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FESTIVAL SESC DE BALLET CLÁSSICO EM HOMENAGEM AO CARNAVAL
SUMÁRIO
2. EDITORIAL: O FIM DE UM CICLO 4. SEÇÃO DE POESIA: A POESIA PERMANECE PARA SEMPRE 6. ESPECIAL, JORGE AMADO: PERSONALIDADE LITERÁRIA DO ANO 10. ESPECIAL, HILDA HILST: LEVANDO O JABUTI PARA CASA 14. SEÇÃO INFANTIL: ERA UMA VEZ PELA ÚLTIMA VEZ 16. ESPECIAL CAPA, GEORGE ORWELL: 1984 CHEGOU PARA NÓS? 22. NOVIDADE: A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER 24. OBITUÁRIO: O ADEUS A PEDRO NAVA & FORAM-SE EMBORA PARA PASÁRGADA 26. SEÇÃO DOS LEITORES 28. TIRINHAS, DE HENFIL
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EDITORIAL O fim de um ciclo De Jack a George - “MAKE LOVE, NOT WAR” Assim que, em 1964, formou-se a louca e ansiosa equipe a fim de construir a Revista Rodapé, sofremos um golpe não apenas político, mas também moral. Os percalços para que uma produção de conteúdo literário, essencialmente contracultural, emergisse em coexistência com o contexto que se moldava abalariam os ânimos de qualquer grupo. Mas, impulsionados pela paixão e falta de medo da geração que já habitava dentro de cada um de nós, a qual nos mostrou que era possível fugir da mesmice prosaica, demos continuidade ao projeto, embora cautelosos.
inevitavelmente, o movimento hippie mundial e qualquer manifestação de contracultura posterior – inclusive a base ideológica dos nossos redatores. A regra geral, como dizia Kerouac, é: viver, “porque os únicos que me interessam são os loucos; os loucos por viver, loucos por falar, loucos por serem salvos, que desejam tudo ao mesmo tempo e nunca bocejam ou dizem coisas clichês, mas queimam, queimam, queimam como fogos de artifício pela noite.” A escrita compulsiva encarnaria não apenas o jazz, o sexo livre e o uso de drogas, mas também a liberação de elementos sempre oprimidos: homossexuais, mulheres e negros. A partir do meio literário, podemos dizer que a luta pela liberdade comportamental pôde ganhar espaço. O leitor deve se perguntar o porquê de um editorial que aborda duas décadas passadas. Tratar brevemente do surgimento desta equipe nos pareceu essencial naquela que seria, infelizmente, a nossa última edição. Esta traz, para o leitor assíduo, temáticas diversas envolvendo autores como Jorge Amado, Milan Kundera, Hilda Hilst e George Orwell, nosso autor de destaque. Cada um, a seu modo particular de se expressar no mundo, questionou sua realidade de maneira fervorosa.
Os beats ou beatniks, cheios de um existencialismo sartriano, eram vagabundos escritores que questionavam a moral e os valores da cultura ocidental. Numa década de recuperação e pós-guerra, a partir de obras como “Pé na estrada” (Jack Kerouac), “Uivo” (Allen Ginsberg) e “Almoço Nu” (William S. Burroughs), eles tentaram propagar um novo estilo vida, influenciando,
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“Se a liberdade significa alguma coisa, será, sobretudo, o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir.” George Orwell
No fim do ano de 1984, nada mais instigante do que discutir a obra-prima do polêmico Orwell. Através de “um exagero para provar um argumento”, ele cria um cenário de horror, alienação e medo, em que o amor e a liberdade não têm vez. Partindo de um viés sociológico, seria possível analisar traços das ditas “profecias” totalitárias de Orwell em nossa sociedade? De que adiantou a vociferação beat contra a violência e opressão? John Lennon estava certo quando disse que “the dream is over”? Depois de uma vida curta, mas gratificante, a Rodapé se despede pesarosa de seus leitores. Esperamos que o adeus seja não apenas o nosso, mas também o de toda uma era que se esqueceu de uma simples frase: Love is all you need. Acreditamos em você; essa geração não pode se calar ou permitir que mais pessoas o façam pelo medo da morte e da tortura. Acreditamos em você, que já se arriscou o suficiente ao comprar essa revista. Leve sempre consigo o conselho de Jack: “as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam.”.
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SEÇÃO POESIA D E
A poesia permanece para sempre Affonso Romano de Sant’Anna Uma coisa é um país, Outra um ajuntamento. Uma coisa é um país, Outra um regimento. Uma coisa é um país, Outra o confinamento. Mas já soube datas, guerras, estátuas Usei caderno “Avante” – e desfilei de tênis para o ditador. Vinha de um “berço esplêndido” para um “futuro radioso” E éramos maiores em tudo – discursando rios e pretensão. Uma coisa é um país, Outra um fingimento. Uma coisa é um país, Outra um monumento. Uma coisa é um país, Outra o aviltamento
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O trecho ao lado pertence ao livro “Que país é este?”, publicado em 1980 como um retrato da realidade vivida pelo Brasil. Representa o choro do autor sobre a repressão e censura política que ainda persiste. Quando este choro se torna um coro significa que algo precisa mudar. A união da população contra o regime ditatorial mostrou-se forte o suficiente para abalar um poder, aparentemente, de ferro. As mais diferentes produções literárias revelam a essência dos tempos atuais, demostrando o esgotamento da subordinação que nos é imposta. Nem mesmo a censura é capaz de mudar a vontade que move as manifestações populacionais. A pergunta: “Que país é este?” já foi feita inúmeras vezes, nos mais variados contextos e pelas mais diversas pessoas. No presente momento, os brasileiros pretendem alterar o que está se mostrando como resposta a essa questão. O movimento “Diretas Já” é a concretização da insatisfação social e repercutiu não somente na política, mas também, entre outros, na literatura. As “Diretas já” reivindicavam eleições diretas à Presidência da República. Apesar da Emenda Constitucional Dante de Oliveira, que oficializaria tal ideal, ter sido rejeitada pelo Congresso, a mobilização civil não perdeu sua força e continua lutando por seus direitos. “Um, dois, três, quarto, cinco, mil, queremos eleger o presidente do Brasil”, foram com essas palavras que mais de 1,5 milhões de pessoas se reuniram para de-
mostrar apoio ao movimento. Quanto ao governante, João Figueiredo, aumentou a censura e ordenou prisões, ocorrendo violência policial. A literatura ficou marcada por relatos pessoais daqueles que participaram direta ou indiretamente dos movimentos para redemocratização do país. Pretendia-se dar voz à realidade que outros buscavam silenciar. A escrita torna-se uma prática longe de ser pacífica. Ela deixa de ser o único meio de discussão da realidade brasileira, que passa a ser estender a organizações sindicais e estudantis, movimentos de massa e associações de bairro. Em todas as formas, o objetivo era explicitar a insatisfação com o momento vivido pelo país. Herdeiros do lirismo nacional e estrangeiro dos anos 60, bem como da poesia marginal dos anos 70, os poetas década de 80, com seus poemas curtos e com linguagem informal, fazem uso de uma poesia intelectual e reflexiva. O deslocamento dos temas de crítica social para os de política contam com a subjetividade das experiências individuais dos escritores. Cria-se um novo público e formas diferentes de produção e distribuição, incitados por um contexto de forte censura, medo e, no fundo, de esperança. Deste modo, põe-se fim no estereótipo de alienação da “geração AI-5”. Os tempos mudam, nada é constante; a sociedade e política sempre se renovam. Permanece somente a poesia, conservando a beleza das palavras, que possuem o poder de ser memória da humanidade.
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J O R G E A M A D O Personalidade Literária do Ano
Escritor, comunista e brasileiro Nesse ano, aconteceu a 26ª edição do Prêmio Jabuti e o escritor e jornalista Jorge Amado ganhou na categoria “Personalidade Literária do Ano”. Ele é um dos maiores romancistas brasileiros, mas como se tornou esse brilhante escritor? Como foi sua vida, sua história? Jorge Amado nasceu no dia 10 de agosto de 1912, em Itabuna, Bahia. Antes mesmo de completar dois anos, uma epidemia de varíola fez com que seus pais, João Amado de Faria e Eulália Leal Amado, decidissem se mudar para Ilhéus, onde eles se estabeleceram por um tempo e Jorge teve seu primeiro contato com o mundo das letras. O menino foi alfabetizado com o auxílio da mãe através de leituras de jornais e, em 1922, foi para o Colégio Antônio Vieira, em Salvador. Seu professor de português, padre Luiz Gonzaga Cabral, ficou impressionado com o aluno após ler uma redação do mesmo chamada “O mar” e passou a emprestar vários livros para ele (obras de Charles Dickens, Jonathan Swift, Walter Scott, José de Alencar e outros renomados escritores). O aluno apaixonado pelos livros sentia-se preso e, por isso, fugiu do internato. Ele atravessou o sertão baiano por dois meses até chegar a Itaporanga - Sergipe, onde seu avô paterno, José Amado, morava. Assim que o levaram de volta para os cuidados dos pais, ele foi mandado para outro internato, o Ginásio Ipiranga, onde participava de jornais escolares
e grupos engajados. Com apenas 15 anos, saindo do regime de internato, começou a trabalhar como repórter policial no Diário da Bahia e depois passou a escrever para o jornal O Imparcial, além de contribuir em publicações da revista A Luva. Nessa época, ele viveu livremente em Salvador e teve forte contato com a vida popular, o que certamente foi importante para o conteúdo de suas obras e para a formação de sua personalidade. Nesse mesmo contexto, conheceu o candomblé, religião que contribuiria para seu entendimento da vida e da nação e marcaria suas ideias e obras. Em 1928, Jorge fundou a Academia dos Rebeldes, grupo literário formado por escritores baianos, como Pinheiro Viegas, Dias da Costa e Alves Ribeiro, que tentavam modernizar a literatura da Bahia com base em “uma arte moderna, sem ser modernista”, ou seja, contra as características presentes no modernismo da Semana de Arte Moderna de 1922. Um ano depois, foi publicada sua primeira obra em O Jornal por meio do pseudônimo Y. Karl: a novela Lenita, escrita com parceria de Edison Carneiro e Dias da Costa. Posteriormente, ele foi para o Rio de Janeiro, onde conheceu grandes nomes da Literatura, fato importante em sua trajetória. Além disso, foi aprovado na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, local onde debates políticos e artísticos aconteciam e o jovem pôde entrar em contato com o movimento comunista, o que influenciou diretamente sua vida e suas obras. Nessa mesma época, ele pu-
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blicou o seu primeiro romance, intitulado O País do Carnaval, livro bastante elogiado pelos críticos, que discutia a ética da intelectualidade brasileira no contexto social e político em que o Brasil vivia. Preocupado com os problemas sociais e com a enorme desigualdade existente no país, em 1932, Jorge Amado filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). No ano seguinte, ele se casou com Matilde Garcia Rosa e publicou seu segundo romance, Cacau, baseado na vida dos trabalhadores da região de Pirangi - Bahia; o livro também fez sucesso, mas foi apreendido por policiais e fez com que Jorge se exilasse na Argentina devido ao seu envolvimento com o comunismo. Nesse contexto, merece destaque o fato de que o escritor participou do jornal A Manhã, da Aliança Nacional Libertadora. Em 1934, já lançou outro romance, Suor, no qual mostra a realidade e o cotidiano de moradores de um sobrado do Pelourinho, em Salvador. No ano posterior, nasceu sua filha Eulália Dalila Amado e ele se formou em Direito. Com um ano de formado, o escritor foi preso no Rio de Janeiro pela primeira vez, acusado de participar da Intentona Comunista. O livro publicado no mesmo período, Mar Morto, recebeu o Prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras. Nessa época, ele já estava ganhando fama internacional. Assim que foi libertado, fez uma longa viagem pela América Latina e Estados Unidos, época em que realizou a produção do livro Capitães da Areia (uma de suas obras mais reconhecidas até hoje, que mostra a vida de meninos de rua na cidade de Salvador e que inspirou um filme em 1971). Quando retornou ao Brasil, devido à implantação do Estado Novo, ele foi preso e seus livros foram queimados em praça pública. Pouco tempo depois, ele foi solto e, em 1939, já tornou-se redator das revistas Dom Casmurro e Diretrizes. No início da década de 40, Jorge foi para o Uruguai e para a Argentina em busca de material para a produção de um livro sobre Luís Carlos Prestes, visando a anistia do mesmo. Logo publicou A vida de Luís Carlos Prestes, em Buenos Aires, e, assim que voltou para o Brasil, foi preso mais uma vez. No ano de 1943, após seis anos de proibições, às suas obras participou novamente do jornal O Imparcial e publicou o romance Terras do sem-fim, livro que aborda a zona cacaueira e as questões que a envolvem.
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Em 1945, participou do I Congresso de Escritores em São Paulo, encontro em que aconteceram manifestações contra o Estado Novo e que acarretou em uma nova prisão para o escritor. Depois disso, ele foi para São Paulo, onde passou a comandar o jornal Hoje, do PCB e a escrever na Folha da Manhã. Virou secretário do Instituto Cultural Brasil - URSS e foi eleito deputado federal pelo PCB. Através de suas propostas, foi responsável por várias leis que visavam o benefício da cultura e pela instituição da liberdade de culto religioso. Alguns anos depois, o partido foi considerado ilegal e Jorge Amado teve seu mandato cassado. Em 1947, após três anos de separação com Matilde, nasceu o primeiro filho da sua união recente com a escritora Zélia Gattai: João Jorge. Pouco tempo depois, o romancista exilou-se em Paris. Em 1949, sua filha do primeiro casamento faleceu e, no ano seguinte, ele e sua família foram expulsos da França por questões políticas, passando a viver na União dos Escritores, na Tchecoslováquia. Em Praga, nasceu sua filha Paloma dois anos depois. É importante ressaltar que em nenhum momento Jorge Amado deixou de produzir seus escritos. Ele voltou para o Brasil e, em 1954, foi eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores. Nesse período, começou a se afastar da atuação política comunista e depois desligou-se do PCB. O escritor passou a se dedicar ainda mais a literatura e ressaltar aspectos como o humor, a sensualidade, a miscigenação e o sincretismo em suas obras. Em 1958, Gabriela, cravo e canela, que dispensa comentários, gerou vários prêmios para o escritor, além de servir como base para futuras telenovelas. Ele fundou a Academia de Letras de Ilhéus e promoveu, na vice-presidência da União Brasileira de Escritores, o Festival do Escritor Brasileiro, juntamente com o
presidente Peregrino Jr. Em 1961, Jorge passou a morar em Salvador, lançou o livro A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água, no qual é retratado o modo de vida de classes populares da Bahia e foi eleito, por unanimidade, para a cadeira 23, que era de Otávio Mangabeira, da Academia Brasileira de Letras. Em 1966, publicou Dona Flor e seus dois maridos e, três anos depois, Tenda dos Milagres, romances célebres do escritor que motivaram a produção de filmes no final da década de 70. Em 1970, recebeu o prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores, como ‘Intelectual do Ano’. Comandou, em companhia de Érico Veríssimo, um movimento contra a censura prévia dos livros. No final da mesma década, merece destaque a obra publicada Farda, fardão, camisola de dormir, que tem como tema o universo da Academia Brasileira de Letras no período do Estado Novo. Em 1981, ele lançou O menino grapiúna e também recebeu homenagem no carnaval de Salvador com o enredo “Bahia de Jorge Amado”. O romancista continua escrevendo e encantando seus leitores; nesse ano, publicou A bola e o goleiro e, recentemente, o impressionante livro Tocaia Grande. Suas inúmeras traduções no exterior fizeram (e ainda fazem) dele reconhecido e admirado em diversos países; foram responsáveis também pela conexão da imagem de Jorge Amado e das imagens construídas em suas obras com a realidade brasileira. O grande escritor, valorizado dentro e fora do Brasil, além do incrível prêmio de “Personalidade Literária do Ano”, também recebeu, nesse ano, o Prêmio Risit d’Aur, Prêmio Nonino, Itália; o Prêmio Moinho Santista de Literatura e o título de Commandeur de la Légion d’Honneur, importante condecoração francesa.
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H I L D A H I L S T
Levando o Jabuti para casa A Odisséia O Jabuti de 1984, ocorrido nesse mês de novembro, honrou Cantares de Perda e Predileção, de Hilda Hilst, com o prêmio de melhor obra de poesia do ano. A autora, natural de Jaú, no estado de São Paulo, e filha do jornalista, poeta e ensaísta Apolônio de Almeida Prado Hilst, está longe de ser uma estranha à cena literária brasileira: ao longo de quase quarenta anos de escrita, assinou Presságio, seu primeiro trabalho lançado e um sucesso de crítica, elogiado por Cecília Meireles e Jorge Amado, Sete Cantos do Poeta para o Anjo, Balada de Alzira e outras publicações de sucesso, além de aclamadas peças de teatro. Sua mais recente empreitada poética, composta de setenta fragmentos, leva título remetente ao livro bíblico, Cântico dos Cânticos. No entanto, o que na verdade é uma dessacralização do sagrado – e celebração do profano – representa um retorno de Hilst à abordagem de temas amorosos, agora de forma mais densa, complexa e contraditória, fundindo atemporalidade, real e imaginário. Reunidos no ano passado pela editora Globo, os Cantares são resultado de anos de escrita. Obras breves e de consideravelmente menos impacto se vistos isoladamente, eles são alinhavados pela predominância da amargura e do ressentimento, bastante presentes em qualquer relação amorosa. Hilst parece saber nos convencer como ninguém de que o amor faz sofrer – mesmo que não consiga nos explicar a razão disso. É um de seus momentos mais seguros e será, certamente, um dos mais memoráveis. Conhecida na cena literária e artística por sempre ter sido
uma mulher autêntica e a frente do seu tempo, características que, somadas a sua beleza sedutora acarretaram a formação de todo um folclore a seu respeito, a autora agora nos permite, confiante, conhecer seu lado mais feminino – sem deixar de lado seu comportamento transgressor. Formada em Direito pela Universidade de São Paulo em 1952, Hilda deu início a sua carreira na escrita antes mesmo da conclusão do curso. Os maiores destaques de sua trajetória literária, entretanto, foram elaborados na Casa do Sol, a partir de 1964. Após ler Carta a El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis, a escritora decidiu afastar-se da vida agitada de São Paulo, e mudar-se para a propriedade, próxima a Campinas. Seria, provavelmente, uma tentativa de estar “em trânsito com o divino”, nas palavras de Kazantzakis, que escreveu um livro sobre um homem que vive lutando, incansavelmente, até que termina sua vida redigindo uma “nova odisseia”: um poema de 33 mil versos, onde há luta constante com a carne e o espírito. Impressionada com a caminhada desse personagem admirável, Hilst isolou-se aos 33 anos, longe de invasões, de suas próprias vontades, de “sua gula diante da vida”, em suas próprias palavras, o que lhe permitiu escrever de forma livre e orgânica. É nesse espaço, detalhadamente projetado para inspirar a criação artística, que Hilda vive até hoje, afastada da agitada vida social que teve quando mais jovem, entregue ao “novo trabalho” que desempenha brilhantemente há mais de vinte anos, e recebendo
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como hóspedes artistas e escritores, entre eles Bruno Tolentino, atualmente diretor da revista Oxford Poetry Now, sucedendo W. H. Auden, e Caio Fernando Abreu, autor do impecável romance Limite Branco.
“Achei que, longe e de certa forma me enfiando também (porque eu era uma mulher muito interessante), durante um certo tempo bem longo, eu pudesse trabalhar, escrever. E foi maravilhoso.” “É mais ou menos uma vocação. Você sente que aquele momento é o momento e que não há muito tempo. Às vezes, as pessoas dizem: “Eu vou quando estiver mais velhinho, ou mais velhinha. Ou quando eu estiver pior. Aí eu começo”. Mas acontece que não dá tempo. Então, aos 33 anos, fui para esse sítio onde moro até hoje, e me entreguei a um novo trabalho.” O prêmio Jabuti recebido esse ano foi uma das muitas ocasiões em que Hilst foi agraciada – ou, podemos dizer, reconhecida. Na década de 60, a escritora recebeu o PEN Clube de São Paulo e o Prêmio Anchieta de teatro. Em 1977, seu livro Ficções foi considerado o melhor livro do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Quatro anos mais tar-
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de, pela mesma associação, levou o Grande Prêmio da Crítica para o Conjunto da Obra – obra, essa, que reúne temas altamente controversos, essencialmente abordando a relação entre Deus e o homem. Há dois
anos, inclusive, Hilda voltou a discuti-la, quando tornou-se participante do Programa do Artista Residen-
de da minha alma. Mas o senhor, se continuar coçan-
te, promovido pela UNICAMP:
Mesmo sem levar em conta seu reconhecimento institucional ou simbólico, é impossível negar a importância de Hilst para a produção literária e teatral brasileira. Tendo sido traduzida para a língua inglesa, há planos para a expansão de seu público ao alemão, ao francês e ao italiano. Há outro de seus lançamentos previsto para ainda esse ano, intitulado Poemas Malditos, Gozosos e Devotos. Assim, corajosa, livre e apaixonada pela originalidade, pela vida e pelos seres humanos, Hilda Hilst continua, da Casa do Sol, a sua odisseia, como uma das mais ativas, constantes e talentosas escritoras de nossa literatura: doze publicações poéticas desde 1950, quatro obras de ficção desde 1970, oito peças de teatro desde 1967, todas unânimes sucessos de crítica, e, em 1984, mais por vir. Estaremos acompanhando.
“Acho que [a alma] é a consciência que vai sempre se manter. Parece que a gente constrói uma alma. Até sobre esse ponto há uma história engraçada. Fui, junto com [o físico] Mario Schenberg, dar uma aula inaugural na Unicamp. Mario achava que nós, eu e ele, havíamos nascido no Egito, que eu havia sido uma sacerdotisa amiga dele. É claro que ele não falava dessas coisas na universidade. ‘Tenho medo de perder o meu emprego’, ele dizia. Mas nessa aula, a que compareceram muitos físicos, por causa do Mario, comecei a falar desses
do o saco dessa forma, sequer constituirá uma alma!”
assuntos. A certa altura, um físico meio gargalhante, que estava coçando o saco, perguntou: ‘Quer dizer então que a senhora acredita mesmo na imortalidade da alma’?. Respondi: “Acredito na imortalida-
DESDE 1959, RECONHECENDO AQUELES QUE NOS MARCAM
PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 15
S E Ç Ã O IN Era uma vez pela última vez Para os pequenos, seus pais e qualquer um que não tenha vergonha de admitir que gosta de livros para crianças, a Rodapé apresenta, pela última vez, uma seleção dos lançamentos da categoria infantojuvenil. E que 1985 traga, para todos que se encaixem em uma das três categorias mencionadas, bons amigos, bons momentos e bons livros – nos despedimos com a plena confiança de que vocês saberão fazer boas escolhas sem nós. E lá vai:
Quando a gente acha que ela não consegue mais melhorar, ela vai e mostra como é que se faz. Com mais de dez anos de carreira, a vencedora do prêmio Hans Christian Andersen de 1982, Lygia Bojunga, lança esse mês seu primeiro livro de contos: Tchau. Longe de ser uma despedida da escritora do mundo das letras, sua obra mais recente mantém seu estilo característico em quatro narrativas densas que englo-
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bam tanto o real quanto o fantástico. É, sem dúvida, a investida mais ousada e instigante da autora de tesouros como A Bolsa Amarela e Angélica, frequentemente comparada a Monteiro Lobato e Olavo Bilac. Lygia, dessa vez, decidiu abordar a difícil questão da separação conjugal: o fim do relacionamento de Rebeca e Donatelo, pais de dois filhos, que é contado em forma de narrativa de suspense, com linguagem compreensível e apropriada para os mais novinhos. Mais uma vez, a autora teve sucesso ao intermediar o mundo adulto e o infantil, sendo capaz (como poucos o são) de sensibilizar os pequenos e fazer gente grande brincar.
Roald Dahl, celebrado autor britânico de A Fantástica Fábrica de Chocolates – obra-prima que acaba de completar vinte anos de publicação –, lança, esse ano,
no Reino Unido, sua autobiografia. Pela primeira vez, Dahl assina um trabalho de não ficção, centrado nas precárias condições de vida da Inglaterra que o viu crescer, durante as décadas de 20 e 30. Uma narrativa deliciosa, Boy, ainda sem previsão de tradução para o português, nem de lançamento no Brasil, acompanha o escritor desde seu nascimento, em 1916, até a obtenção de seu primeiro emprego, dezoito anos mais tarde. Apesar de não ser destinado ao público infantil, o livro certamente agradará a toda uma geração de pais de leitores de Matilda e James e o Pêssego Gigante, que se encantarão com a demonstração de amor do autor pela escrita desde sua juventude, e se identificarão com o garoto praticando travessuras com o doceiro, com o adolescente impaciente com as regras escolares e com o jovem adulto tentando encontrar seu lugar no mundo. A edição original conta ainda com lindas ilustrações de Quentin Blake.
Para os futuros Dungas, Jorge Amado, nosso homenageado da edição, publica A Bola e o Goleiro ainda a tempo do Natal. A história do incompetente goleiro Bilô-Bilô, colecionador de apelidos como “Mão-Furada” e “Rei-do-Galinheiro”, e da bola Fura-Redes, estrela do time e alegria dos artilheiros, é um romance divertido e uma leitura inusitada. Apaixonada, Fura-Redes deve decidir se impede ou não o milésimo gol do Rei do Futebol para poder, finalmente, aninhar-se nos braços de seu amado. Começa, assim, partindo do craque autor de Capitães da Areia, a literatura de chuteiras no país do futebol – capaz de alegrar jogadores, leitores ávidos, crianças, adultos, meninos e meninas. Tem tudo para repetir o sucesso de O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, primeira historieta do baiano destinada ao público infantil.
Para os aspirantes a detetives, o recém-lançado autor paulista Pedro Bandeira publicou recentemente o divertidíssimo Droga da Obediência, pela Editora Moderna. Na obra principalmente destinada aos pré-adolescentes, Miguel, Crânio, Calú, Chumbinho e Magrí – autodenominados “os Karas” – formam um quinteto de investigadores que devem enfrentar uma organização internacional liderada pelo macabro Doutor Q.I, vilão cientista brilhantemente escrito. Releitura da usual história de ação e aventura com reinvenções dos heróis típicos, o livro não passa nem perto de droga. Super aprovado.
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GEORGE ORWELL 1984 chegou para nós?
Vida e Obra Para se escrever uma coisa que continuará sendo influente em muitas gerações futuras - e quem sabe para sempre -, é preciso ter diversas vidas, ou, no mínimo, inúmeras vivências. George Orwell, talvez mais do que qualquer autor do século XX, é um grande exemplo disso. Ele foi capaz de criar outra realidade, prevendo o futuro mais sombrio da maneira mais brilhante, de elaborar uma das mais famosas metáforas da literatura e de produzir incríveis relatos de sua própria história de modo a mostrar a dureza da vida e as faces do homem. Nascido na Índia britânica em 1903, Orwell é conhecido mundialmente por duas obras em especial: A revolução dos bichos e 1984. Enquanto a primeira exprime seu desapontamento com o regime comunista, que se provou, para ele, uma fonte de repressão, a segunda é uma crítica, em forma de um romance absolutamente assustador devido a sua fácil identificação com a realidade, a toda espécie de regime totalitário. Erich Fromm, em 1961, descreveu este livro como “a expressão de um sentimento” e “uma advertência”. O sentimento, segundo ele, seria o de “quase desespero acerca do futuro do homem”, o que “contrasta marcadamente com uma das características mais fundamentais do pensamento ocidental: a fé no progresso humano e na capacidade do homem de criar um mundo de justiça e paz”. A advertência, por sua vez, seria a de que “a menos que o curso da história se altere, os homens do mundo inteiro perderão suas qualidades mais humanas, tornar-se-ão autômatos sem alma, e nem sequer terão consciência
disso”. Sendo seu último livro, 1984 encerra a carreira e a vida de um homem célebre em seu presente e em todos os futuros que se deve permitir imaginar; ele será infinitamente lembrado, não só durante as leituras de seus escritos, mas também nos diversos momentos em que identificaremos, no nosso mundo, conteúdos de suas obras.
“Erich Fromm, em 1961, descreveu este livro como ‘a expressão de um sentimento’ e ‘uma advertência’” George Orwell, contudo, é o pseudônimo de Eric Arthur Blair, criado com a publicação de seu primeiro livro: Na pior em Paris e Londres. Seu pai era um oficial britânico do Departamento de Ópio do Serviço Civil Indiano, mas foi com sua mãe e com sua irmã que se mudou para a Inglaterra com pouco mais de um ano de vida. Estudou na melhor escola pública do Reino Unido, a Eton College, mas desistiu do curso superior e se mudou, aos 19 anos, para Birmânia (atual Myanmar, Índia). Lá, trabalhou como oficial da Polícia Imperial Indiana por cinco anos, ao longo dos quais desenvolveu um enorme sentimento de ódio ao imperialismo britânico e, consequentemente, a qualquer tipo de totalitarismo. Seu período na Índia acarretou, posteriormente, a produção de livros como Dias na Birmânia, O enforcamento e O abate de um elefante. Todos, de certa forma, dizem respeito ao imperialismo, fazendo sucessivas críticas a ele; no
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último mencionado, por exemplo, Blair, através de um trágico episódio, busca mostrar a transformação que a tirania faz no homem.
“desenvolveu um enorme sentimento de ódio ao imperialismo britânico e, consequentemente, a qualquer tipo de totalitarismo” De volta a Londres, passou o outono e o inverno de 1927 vivendo em um quarto alugado na zona mais pobre da cidade. A atração ao East End londrino foi fomentada por ideias socialistas: ele buscava aprender sobre a vida daqueles que eram intensamente
explorados pelo capitalismo. Porém, não se integrou de fato a esse mundo, atuando apenas como observador, com a possibilidade de se recolher em seu quarto ou de voltar a sua vida anterior. O mesmo não se repetiu em Paris, para onde se mudou na primavera de 1928. A fim de sustentar-se, deu aulas de Inglês e escreveu artigos, mas, no final do outono de 1929, começou a viver de forma miserável. Tal período é relatado em A pior em Paris e Londres, livro que foi completado com relatos da vida como mendigo que levou na cidade inglesa. Antes de ambas as situações, entretanto, ele esteve internado com pneumonia, experiência absolutamente assustadora relatada em seu ensaio Como morrem os pobres. O famoso livro Lutando na Espanha foi escrito, já como George Orwell, a partir de sua experiência
Linha do Tempo
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1936 1935
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na Guerra Civil Espanhola, durante a qual se uniu a uma frente antifascista em Barcelona. Essa não foi sua única participação em conflitos: no período da Segunda Guerra Mundial, quando já era conhecido, trabalhou como correspondente para a BBC e para o “The Observer”. Sobre o jornalismo, Orwell certa vez disse que era “publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade.”. Infelizmente, a tuberculose que contraiu entre 1938 e 1939 - época em que se mudou para Marrocos e escreveu Um pouco de ar, por favor! - tomou sua vida, em 1950, apenas alguns meses após a publicação de 1984.
manas com uma simplicidade brilhante e nos trouxe novas visões sobre uma realidade que muitas vezes foge aos nossos olhos (ou será que são nossos olhos que fogem dela?). De qualquer maneira, ele se consagrou como um enorme marco literário e, pode-se até dizer, como sociólogo, filósofo, antropólogo e todo tipo de especialista nas questões humanas. Que suas previsões e visões sejam sempre lembradas pela sociedade; que no futuro não se esqueça do passado; que na riqueza não seja ignorada a pobreza. Para um mundo melhor, quem sabe se inspirar nas ideias de Orwell, prestando atenção no que ele viu, retratou e avisou, venha a ser um bom caminho.
George Orwell viveu as mais diversas experiências e encarou o mundo de uma forma que poucos podem alegar ter feito. Ele desmembrou relações hu-
1938
1945 1939
1949
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As relações entre o presente e o futuro Orwelliano “É um alarme, não uma profecia”, dizia George Orwell sobre seu magnum opus, 1984, publicado pela primeira vez em 1949. A obra, que se erigiu sobre bases polêmicas e causou um alvoroço especulativo sobre o futuro, aponta para as atrocidades de um regime totalitário. Traduzido para mais de 65 línguas, o livro representa não apenas um ataque ao socialismo de Joseph Stalin (claro inspirador da figura do Grande Irmão), como comumente se pensa, mas a quaisquer tendências fascistas e perversidades ditatoriais. Na realidade imaginada pelo autor, após um longo período de guerra atômica, o mundo passou a se organizar em três potências totalitárias: Oceania, Lestásia e Eurásia. O protagonista Winston, habitante da Oceania, é um membro do Partido responsável pela falsificação de documentos no paradoxal Ministério da Verdade. O lema “Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado” legitima o poder do IngSoc (Socialismo Inglês) ao eliminar quaisquer vestígios de um passado histórico, levando à falsa crença de que a presente instância significa o auge de desenvolvimento e progresso.
“Quem controla o passado, Controla o futuro; Quem controla o presente Controla o passado” Nas ruas, nas lojas, ou nos cômodos mais íntimos de cada casa: o Grande Irmão zela por todos sob a forma de cartazes e teletelas, as quais funcionam como televisores e câmeras de vigilância impossíveis de serem desligadas. É dever da população amá-lo, embora nunca tenha sido visto. Aqui reside o “pecado” de Winston: ele não consegue amar o Partido porque preserva, em partes, a memória de uma realidade diferente, em que as pessoas podiam pensar. Por vezes ele cria ser o louco diante de uma maioria homogênea, alienada pelo medo e ódio, os únicos sentimentos que o Partido procura estimular nos homens entre si. No entanto, ao se envolver secretamente com Júlia, uma jovem violadora das leis, Winston, já não sozinho, consegue reafirmar suas convicções a respeito do Big Brother.
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A sociedade, que se estratifica entre membros do Partido e proles, prevê a desigualdade não como mera consequência, mas objetivo. A “guerra” constante entre as três nações não se justifica por ideologias ou disputas territoriais, mas por gerar forças destrutivas de produções excedentes, as quais poderiam aumentar a qualidade de vida da classe baixa e, portanto, fê-la questionar. Esses indivíduos vivem sob a aura do “duplipensar” - termo que caracteriza o controle da realidade e aceitação de duas ideias antitéticas – acreditando piamente no ditado “Guerra é Paz. Liberdade é Escravidão. Ignorância é Força”.
“Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando um rosto humano para sempre.” Passaram-se trinta e cinco anos desde que Orwell deu seu parecer através do antagonista e membro fiel do partido, O’brien: “se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando um rosto humano para sempre”. Ditaduras surgiram (Brasil, Uruguai, Nigéria, Suriname, Chile, Cuba, Peru...), ditaduras caíram (Portugal, Iraque). O que fizemos? O nosso presente é o futuro orwelliano? O que diria nosso autor sobre uma década que se inicia diante do discurso de liberdade para o ocidente - Margaret Thatcher -, em que ao mesmo tempo, no oriente médio, os soviéticos repetem a Primavera de Praga no Afeganistão? Precisar diagnósticos sobre a realidade a partir de um contexto de guerra ideológica, ainda que amainada, seria uma tarefa excepcionalmente complicada e pretensiosa. Nossos intelectuais se sentam apavorados sobre o muro de Berlim, obervando, de um lado, um Tio Sam pregar a dinâmica democrática do sistema capitalista enquanto financia ditaduras na América latina, e do outro, a bandeira vermelha, que fala pela classe operária e popular, mas a priva de liberdades individuais básicas. As duas facetas, que se degolam para primeiro fincar a haste de defesa dos direitos humanos e bem coletivo, nunca se encararam diretamente, utilizando Vietnã, Coreia e Afeganistão como meros quintais de guerra. Não é necessário atravessar as fronteiras do país para observar os efeitos dessa realidade de chumbo. Quando Winston e Julia são descobertos
por sua traição ao partido e levados ao Ministério do Amor, sofrem torturas inimagináveis para que confessem seus “ideocrimes”, e passem a amar apenas o Grande Irmão. Com um nome menos eufemístico, seria o nosso DOICODI, que nos observa desde 1964, uma entidade profética que Orwell não esperava? Quantos desapareceram desde aquele ano? O que realmente aconteceu com Vladimir Herzog? Ninguém prestou atenção quando, dois anos antes, Dylan nos alertava: quantas mortes serão necessárias para que se saiba que já se matou demais? “Entendo como, só não entendo por que”, ponderava Winston diversas vezes sobre a manipulação mental que o Big Brother exercia sobre as pessoas. Como mais tarde veio a entender por meio de O’brien, o único objetivo do poder é o poder em si mesmo, e tudo o que se faz é por amor ao poder. O perigo de um sistema rígido como o totalitarismo, diria a filósofa Hannah Arendt, é que torna os homens incapazes de pensar. O poder burocrático que se estabelece sobre eles é tão grande que se tornam máquinas feitas para obedecer e cumprir as leis. Instaura-se uma “moral” de cunho pragmático e administrativo. No entanto, não se pode observar apenas as mazelas e perigos políticos que pairam por agora. No fim de 1983 e início deste ano, após quase 20 anos de inércia social diante das afrontas à humanidade e democracia por parte do Estado Brasileiro, manifestou-se o primeiro sinal de insatisfação através do movimento que veio a se chamar Diretas Já. A exigência de uma emenda a fim de estabelecer o voto direto no país foi recusada, mas o barulho que se fez mostrou a muitas pessoas a voz que elas não sabiam ter. O grande Jean-Paul Sartre, falecido há quatro anos, disse que somos condenados à liberdade. Talvez se o houvesse conhecido, Arendt não concordasse muito com ele a depender das circunstâncias, mas o certo é que, basta uma minoria como Winston, como Herzog, ou como os líderes das Diretas Já se manifestarem, para que o grito comece a se reverberar. Antes de qualquer coisa, somos livres para escolher entre a liberdade e a manipulação; o povo brasileiro começa a perceber que pode, sim, decidir o presente e o futuro: basta quebrar o cálice e falar.
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NOVIDADE A Insustentável Leveza do Ser OS PARADOXOS (CON)VIVEM NOS AMORES Em meio a uma guerra, quando a maioria só enxerga sofrimento, morte, desespero e crueldade, Milan Kundera viu o amor. Mas não de uma forma supérflua e simples; ele não pensou um romance puro ou bucólico. Os amores criados, ou talvez traduzidos por Kundera, são repletos de dor, ciúme, culpa, destruição, intensidade, sacrifício, prazer, erotismo, peso e leveza. E têm ainda o toque de grandes mestres, como Beethoven, Nietzsche e Parmênides. Profundos, verdadeiros e, para dizer o mínimo, belos. Tendo como cenário a invasão russa à Tchecoslováquia, quatro pessoas, por encontros e desencontros da vida, tiveram seus caminhos cruzados. Tomás, Teresa, Sabina e Franz se envolveram nos mais complexos romances. Com uma visão repleta de filosofia, Milan Kundera os uniu, seja através de encontros físicos ou de semelhanças do ser. Ao longo da narrativa, surgem questionamentos essenciais, como se estamos presos em um eterno retorno e se entre peso e leveza há um que é positivo e outro negativo. Os pequenos e ao mesmo tempo muito importantes simbolismos do livro, os detalhes sobre as complexas identidades de cada personagem, a guerra por trás de suas vidas, os encontros cheios de significados e as diversas reflexões filosóficas, alternadas no decorrer da história, tornam difícil a elaboração de um resumo digno. Nem mesmo é possível uma descrição dos personagens que faça jus à profundidade de suas condições, mas poderia tentar destacar alguns de seus traços: Tomas é um homem bonito e esbelto cuja principal característica é a incapacidade de se prender a uma única mulher; ele possui inúmeras amantes, das quais se mantém desapegado emocionalmente. Porém, ao conhecer Teresa, experimenta um novo sentimento e se vê incapaz de viver sem ela, tendo
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que carregar uma eterna contradição em sua existência – “Muss es sein? Es muss sein! (Tem de ser assim? Tem de ser!)”. Teresa tem por Tomás um amor inegável, mas, ao contrário dele, vive com o peso. O ciúme consome vários momentos de sua vida; ela trilha um caminho artístico através da fotografia e da literatura e não consegue entender como a leveza pode caber no ser. Teresa experimenta também contradições, como o repúdio por sua mãe e, ao mesmo tempo, a consciência de que pode estar repetindo seus passos. Seria esse um eterno retorno? Sabina é uma artista plástica desprendida de seus amores e extremamente sexual; é nela, em especial, que a leveza torna-se insustentável. Valoriza acima de tudo a liberdade, como pode ser visto em seu relacionamento com Tomas - ela é sua principal amante-, mas será esse o caminho para a felicidade? Franz não poderia ser considerado um dos personagens principais, mas não deixa de representar as reflexões de Kundera. Ele é um homem casado e que tem como amante Sabina. Porém, sente a culpa de viver uma mentira; para ele, a fonte desta está na separação entre o publico e o privado. Há em Franz a necessidade de mudanças, mas suas atitudes são dissonantes em relação ao que Sabina acredita. Mesmo com todos os detalhes, a filosofia, os significados e os símbolos, tem-se em A insustentável leveza do ser uma leitura fluida. Tanto seu conteúdo quanto suas palavras vêm de forma sutil e prendem a atenção do leitor, atiçando sua curiosidade e aumentando seu envolvimento a cada página. O livro penetra de algum modo na alma de quem o lê e gera sentimentos diversos, ora de identificação, ora de tristeza, ora de alegria; talvez até mesmo todos simultaneamente. O leitor é envolvido de forma inten-
sa, mas não desgastante. Se sente leve, mesmo com todo o peso. Milan Kundera é como um observador da vida dos personagens, mostrando o presente, o passado e os pensamentos de cada um. Em diversos momentos - de erotismo, tristeza, mudança e muitos outros - ele consegue comentar as atitudes deles e usá-las como uma ponte para refletir sobre os relacionamentos humanos. Dessa forma, o leitor pensa sobre sua própria condição, identificando-se com os personagens e usando a filosofia de Kundera para entender a si mesmo. E o que melhor para pensar sobre o eu do que incríveis figuras de um brilhante escritor em uma realidade tão intensa? Esse belo livro de Milan Kundera chegará ao Brasil em dezembro e, para todos aqueles interessados em profundidades do ser, reflexões sobre a alma, erotismos artísticos e acasos da vida, eu o recomendo com toda a minha aprovação.
MILAN KUNDERA Nascido em 1929, em Brno, Kundera é um autor reconhecido em diversas partes do mundo. Tendo estudado também música e cinema, ele passou, posteriormente, a se dedicar em especial à literatura. Foi expulso, em 1950, do Partido Comunista Tcheco, readmitido em 1956 e, em 1970, mais uma vez expulso. Seu primeiro livro, A Brincadeira, foi publicado no ano de 1967 e acabou por se tornar um importante marco para a Primavera de Praga. Com seus escritos proibidos a partir da invasão russa, o autor se mudou para França em 1975, obtendo sua nacionalidade cinco anos depois.
O NOVO LIVRO DE MILAN KUNDERA, A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER, CHEGA AO BRASIL EM DEZEMBRO
Apesar de ter escrito poemas e peças teatrais, Milan Kundera é mais conhecido por seus romances. Além de A brincadeira e A insustentável leveza do ser, é escritor de Risíveis Amores, A vida está em outro lugar, A valsa dos adeuses e O livro do riso e do esquecimento. Os temas do comunismo, da guerra e da repressão são comuns em seus escritos, sendo abordados de forma sublime através de figuras únicas e dos mais diversos relacionamentos humanos. Kundera não tem o costume de conceder entrevistas, acreditando que é melhor que o conheçamos por suas obras. Por isso, fica a recomendação dos lindos livros desse brilhante autor, que pode ser facilmente considerado um dos mais célebres da atualidade.
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OBITUÁRIO O Adeus a Pedro Nava pessoal e o contexto brasileiro, era carregada de imensa força poética e profundidade observacional, as quais, mescladas à sensibilidade do relato, convertiam-se no mais puro encanto para os seus leitores. A escrita modernista do autor teve como inspiração as transformações de dinâmica e arquitetura pelas quais passaram as cidades em que viveu durante sua juventude, principalmente. Sua ambição de reconstruir o passado, tornando -o durável, não combina com a repentina decisão de pôr fim à própria vida. Os boatos, embora prontamente abafados pela imprensa, talvez por “respeito” à família, se voltavam para a hipótese de que Pedro teria sido chantageado por um garoto de programa. A expectativa de ter sua suposta homossexualidade revelada, num contexto social como o nosso, ajudanos a entender melhor o ocorrido. Há seis meses, no dia 13 de maio de 1984, o médico e escritor modernista Pedro da Silva Nava tirava sua própria vida. Tinha então 80 anos e, segundo relatos de pessoas próximas, como Alphonsus de Guimaraens Filho, não aparentava sinais de perturbação: parecia “alegre e cheio de vida, com a verve de sempre”. No entanto, bastou atender um único telefonema para que o poeta perdesse aquela aparente tranquilidade, e desferisse um tiro contra si mesmo. Dito como um dos maiores memorialistas brasileiros, senão o maior, Nava concebeu oito livros: Capítulos de História da Medicina no Brasil, Baú de Ossos, Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira Mar, Galo das Trevas, O Círio Perfeito e Cera das almas (que não chegou a ser concluído). Seu trabalho como historiador da medicina é igualmente notável, unindo, em seus estudos, a herança positivista de Augusto Comte e Leopold Von Ranke ao pensamento de intelectuais ditos “inovadores das ciências humanas”, como Gilberto Freyre. A narrativa de Pedro, levando em conta sua vida
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Mas caso os murmúrios fossem verídicos, outra questão vem à tona: até que ponto deve-se ocultar o que se é? Se a homossexualidade fosse vista com outros olhos, muito provavelmente Pedro estaria vivo hoje, e este texto não seria escrito. A demonização da conduta homoafetiva chegou ao seu ápice com a recente descoberta da AIDS – associada à “doença dos gays” –, e atormenta não só os indivíduos célebres, como Pedro Nava, mas também os milhares de anônimos que, não vendo outra saída, recorreram à morte para alcançar alguma paz. Nosso passado segregacionista é prova cabal dos efeitos nefastos causados pelo ódio ao “diferente”. Assim, da mesma forma que Pedro Nava conservou a memória brasileira, conservemos a sua também. Afinal de contas, acima de qualquer outro aspecto que possa ser levantado, ele foi um grande escritor – que vai deixar saudades.
Foram-se embora pra Pasárgada O ano de 1984 foi marcado pela perda de grandes nomes da literatura nacional e mundial. No entanto, as obras desses autores, escritas nos mais diferentes estilos, representam um eterno legado que continuará encantando e inspirando as futuras gerações de amantes das letras. O escritor argentino, que nasceu na Bélgica e foi naturalizado francês, foi considerado um dos autores mais inovadores e originais de seu tempo, sendo sua proeza no conto curto e na prosa poética comparada a de Edgar Allan Poe. Suas novelas inauguraram um novo tipo de literatura na América Latina, aduzindo narrativas que mergulhavam na psique dos personagens e rompiam com a linearidade temporal dos fatos. Embora Cortázar seja mais valorizado por suas novelas, O Jogo da Amarelinha é sua obra mais famosa, o literato produziu uma vasta gama de poemas em verso e prosa, tendo também escrito letras de tango e publicado textos junto a livros de fotografia e histórias em quadrinhos.
Apesar da vida polêmica, o norte-americano Truman Capote, como era mais bem conhecido, foi considerado por muitos como um dos maiores escritores deste século, além de um dos pioneiros do dito ‘Jornalismo Literário’. Apesar de ter iniciado carreira como mensageiro de um jornal, depois de árdua dedicação à literatura foi reconhecido por seu conto Miriam. As suas obras seguintes, como Other voices, other rooms, bastante premiada, e Bonequinha de Luxo, adaptada ao cinema, consolidaram sua carreira enquanto escritor. Contudo, foi o livro A sangue frio o seu trabalho de maior sucesso, inaugurando um novo gênero que o próprio Capote denominou de “romance não ficcional”.
Julio Florencio Cortázar (n. 26/08/1914 – m.12/02/1984)
Truman Streckfus Persons (n. 30/09/1924 – m. 25/08/1984)
Maria José Dupré (n. 01/05/1898 – m. 15/05/1984)
José Mauro de Vasconcelos (n. 26/02/1920 - m. 24/07/1984)
A Sra. Leandro Dupré foi contemporânea de nomes como Érico Veríssimo e José Lins do Rego, vivendo numa época em que as mulheres eruditas estavam começando a desempenhar atividades profissionais. Estimada pelos seus escritos direcionados ao público infantil, foi criadora de um dos personagens mais famosos do gênero: o Cachorrinho Samba, que, posteriormente, [protagonizou outros três títulos. Todavia, foi com seu livro mais famoso, Éramos seis, que a autora alcançou o sucesso editorial. A obra, destinada aos leitores adultos, é composta por uma narrativa neutra e por personagens fortes, características que a definiram enquanto literata.
O autor de Meu Pé de Laranja Lima era, infelizmente, mais reconhecido no exterior do que no Brasil. Nascido no Rio de Janeiro e criado em Natal, tinha um processo criativo bastante único: primeiramente, escolhia os cenários de suas histórias; em segundo lugar, transportava-se até esses espaços a fim de estudá-los detalhadamente; e, só então, concebia suas ideias. José Mauro era dono de uma escrita leve e sensível, mesclando, muitas vezes, os mundos real e imaginário. Seus escritos despertam uma profundidade emocional em seu público, deixando-o voluntariamente preso à poesia singular das obras até a última página.
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SEÇÃO LEITORES D O S
Em meio a tantas produções literárias de qualidade, não se pode esquecer daqueles que são novatos no mundo das letras. Apesar de ainda não serem reconhecidos, são dotados de enorme talento, muitas vezes almejando seguir os passos dos grandes escritores que tanto exaltamos nesta revista. Disposta a revelar esses talentos brutos, a Seção dos Leitores dá espaço aos futuros artistas. Recebemos uma densidade grande de material e trabalhamos para selecionar os de mais destaque. Deliciem-se.
Pó
Sobriedade
Não precisa limpar a sola, entre
Hoje os raios da sobriedade finalmente chegaram a mim. Mesmo com o Sol pálido, eles foram capazes de atravessar aqueles oito minutos de pura frustração e chegar. Bastou eu me sentar ao mar, e o mar me olhar, olhar mimar
suje essa sala sem graça com as desilusões que você encontrou em cada esquina, na rua, mas entre faça meu teto desabar com uma gravidade [descomunal que chega quando você chega com seus [temores, e é certo que eu acabei de limpar o sofá, mas entre. e se eu comprei novos lenços pra você [chorar, me perdoe se eu pudesse eu roubava o sputnik eu roubava a cadela laika
que o Sol despontou invejoso Intrometido como filho mimoso Liberou seus raios para o meu gozo Difícil é escapar do afogamento de ânsias e enjoos quando o mar está de ressaca. Benção é ter o âmago iluminado novamente. Amar de contente, e o mar sorridente, sem ter que mirrar a mente para se refugiar nas palavras inacabadas Palavras vis e palavras vãs ditas [inapropridas O escrito disse ao falado que não quer mais [ser adiado
ela lamberia nossas canelas, e nunca mais teria medo ainda que a gente virasse pó Virgínia Duarte
Comunique a todos comunicadores que o comunicado foi enviado: Lavado pelo Sol, um só lavado, guardai nas palavras os refugiados que ainda estão presos no vácuo. Ainda não se passaram oito minutos para eles.
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Clarice Berçot
O soneto só
E a vida levou
Eis o soneto só: catorze versos Escritos em má letra no papel,
Que a vida trouxe
Cada estrofe formando um tal painel
Não deixo
Com os temas e os termos mais diversos.
Não deixe
Mas os termos em vão aqui dispersos Vão muito além de si; são só um véu. Pois, afinal, já para além do céu Não existirão quantos universos? O soneto não é soneto só, Pois ele não é só o que está dito. O soneto diz mais. Diz o que só Ele pode dizer. Diz o infinito. E leu a nós quem o soneto leu, Pois o soneto é nós, és tu, sou eu.
João Manoel Nonato
o que depois tentou levar
Aquilo que é seu é para com você ficar Não sei nem como Porque? Tudo o que apaixona chega sem avisar fica para sempre vai embora quase sempre Não deixe ir o sentimento Amor, medo Tristeza Dor Viva Sinta-se viva.
Quinze
Maria Melhorance
Botou o vestido rendado, colar, penteado
Amor
anel, Shalimar O carteiro, parabéns de lado resolveu fazer a menina chorar Bolo e salão decorados o irmão engomado -
Às vezes é preciso calar a existência e ouvir a vida. O amor é cego, não por escolha, mas porque ele não precisa enxergar. Afinal, é amor. E se assim a verdade se faz, por que esconder-se em meio a tantas aparências? Em que a forma de um corpo vale mais do que a força de um coração? Em nada. E não é tão evidente?! Aos vaidosos: entendam que do mesmo modo que a beleza vem, na melhor das épocas, ela também se vai para nunca mais voltar. Sem despedidas ou pistas de seu destino. Cultivar aparências é como cavar o próprio abismo de onde há de se atirar quando o prazer dos olhos se esvair.
a pátria o chama O fim da festa, lacrado coube inteiro num só telegrama
Use o coração.
Letícia Ferreira
Adrian Miskolczi
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