Nós - diálogos com os vizinhos ciganos

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Lais Rodrigues

NÓS

Diálogos com os vizinhos ciganos

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Colegiado de Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Habilitação em Artes Gráficas e orientação da Profª Elisa Campos.

Belo Horizonte 2016





GratidĂŁo:



Para Glau, Luiz e Chico













Olá, Ingrid e Nicolas. Primeiro quero dizer que me emocionei muito em descobrir vocês, da Embaixada Cigana do Brasil. Meu nome é Lais, sou de Belo Horizonte – Minas Gerais. Sou vizinha de um acampamento cigano da etnia calon e também do Carlos Amaral, cigano e presidente da AGK (Associação Cigana Guiemos Kalon). Minha família mora no bairro há mais de 40 anos e os ciganos estão aqui há quase o mesmo tempo também. Desde 2013 comecei a frequentar o acampamento, estudar a cultura cigana e propor diversos trabalhos com eles, tudo mais voltado para a fotografia, que é meu campo de ação. Estou aberta e muito interessada em mergulhar no universo cigano mais ainda! Conhecer, conviver, fotografar... Quero muito aprender com vocês. Estou em busca também de material para estudo, já que quase não encontramos nada em bibliotecas e livrarias. Vocês poderiam me enviar aqui, por email mesmo, o material gratuito da ONG? Aguardo o retorno. Contem comigo. Abraços, Lais. (27/06/15)





(VIEGAS; SILVA, 1993, p12.)






“Aquela prática de colocar as coisas em suas devidas caixinhas morreu” Reencontrei essa anotação que fiz entre aspas há cinco anos atrás em um caderno esquecido na gaveta. Não consegui lembrar de onde foi tirada mas senti que, de alguma forma, era como se eu já estivesse ensaiando para um possível TCC que se desdobraria anos depois. O percurso, então, tem sido exatamente assim, a mistura: Eles, eu, nós, nossas vidas, a vizinhança, nossas dificuldades, o bairro, os sonhos, alegrias, casos, histórias, memórias, fotografias, artes visuais, festas, rodas de prosa na varanda... E o resultado dessa relação nos últimos três anos com a comunidade cigana calon daqui do bairro não pode ser senão uma diversidade de materiais, que parecem ora terem seus locais específicos ora serem todos uma coisa só. Costumo então chamar de diálogos tudo o que surgiu a partir dessa troca cultural, social e afetiva que estabelecemos. Meu caminho não é somente meu caminho. Se minhas criações saem de uma rotina que por si só é múltipla em áreas e presenças, certamente terão influências de muitos outros caminhos com os quais convivemos na vida coletiva. Nada é isolado.


Preciso dizer que esse livro – que surgiu como uma oportunidade de desengavetar imagens – talvez tente ser um pouco de cada uma das seguintes “caixas” e ao mesmo tempo não chegue a ser nenhuma delas de fato: Fotolivro, diário de bordo, constatações, pesquisas, livro-objeto, documento, álbum de memória, caderno de anotações, diário de criação, reflexões, descobertas, confissões, experimentos_ Alguns dos materiais têm natureza definida. São fotografias, retratos, documentos... Outros ainda não escolheram um único lugar. Trata-se, portanto, de algo que fala mais sobre o processo do que sobre o resultado final. Aqui, os bastidores são tão importantes quanto as fotografias e ao serem revelados eles acabarão por denunciar a bagunça e complexidade natural de todo momento de produção. Enxergo, na verdade, grande parte do que foi realizado como uma ferramenta que acabou ocasionando a aproximação entre eu e eles. Eu os conhecia mais através do ato de fotografar e eles também descobriam quem é essa vizinha por de trás da câmera.




O objetivo central não é decorrer totalmente sobre a história dos ciganos. Contudo, antes de entrar de fato nesse processo que foi e continua sendo construído, há alguns pontos fundamentais para o entendimento do que se segue. Bem, estamos prestes a iniciar aqui uma trilha – coletiva e urgente. E então, usando como desculpa minha ascendência astrológica em virgem, resolvi esquematizar o nosso roteiro em níveis – esses níveis que serão trilhados com o passar das páginas.



O resultado final desse roteiro assemelha-se a uma mandala - aquelas formas circulares utilizadas no mundo todo para diversos fins, inclusive religiosos. Em muitas das vezes, ela representa a sintonia resultante do processo de ordenação do caos, a harmonia do homem com o universo e também a integração e equilíbrio das etapas da vida. Ela exclui, portanto, toda a ideia de desordem, e achei que essas características auxiliariam, pelo menos sutilmente, em um desenvolvimento mais tranquilo e claro deste trabalho. O segundo desenho, que chamei de “A”,”B” e “C”, é para mim uma representação do que é toda relação humana, onde duas pessoas se relacionam criando um terceiro, o “nós”, que é a relação entre eles, mantendo porém a individualidade de cada um. Acontece muito, principalmente em relacionamentos amorosos, uma sobreposição onde a vida particular do “A” e a do “C” passam a não existir. Nesse caso, esse esquema me ajudou a pensar a minha interação com a comunidade: estamos em contato, temos uma relação, e esses materiais são exatamente sobre o campo “B”, ou seja, o que surge a partir do nosso contato – os diálogos. Forma também que encontrei de ressaltar esses trabalho como algo coletivo: Eu, o “C”, não faria nada sem eles, o “A”. O “B” só existe porque “A” e “C” estão juntos. Seguindo os níveis, mergulhemos então nesse mar complexo.



I. Tudo (ou Mundo) [Desmistificando.] A palavra “cigano” está associada no imaginário coletivo a uma série de rótulos fortemente estereotipados. Por um lado, são considerados estrangeiros, nômades, ladrões de crianças, trapaceiros, criminosos, boêmios. Por outro, místicos, exotéricos, livres e sensuais. Estes últimos criados constantemente pelo cinema ou pelas artes, que romantizaram a figura do cigano criando um fascínio pelo seu suposto lado “misterioso”. É mais do que urgente a reformulação da representação ou noção do que é ser cigano que existe ainda hoje. Começamos então com uma importante quebra de conceitos: ciganos é, na verdade, um termo genérico que se refere a um conjunto diverso de cerca de 12 milhões de pessoas, descendentes da etnia romani, espalhadas por várias regiões do mundo. Eles têm em comum a origem indiana e uma língua própria, constituindo a minoria étnica transnacional mais numerosa e vulnerável da Europa. Apesar disso, as condições temporais e espaciais pelas quais passaram ao longo dos séculos configuraram uma variedade imensa entre eles, porque da Índia, provavelmente devido à invasão dos guerreiros islâmicos, migraram para diversos lugares do mundo, o que resultou em uma pluralidade de profissões, religiões e tradições.


[Da origem à diversidade.] Definiu-se a origem cigana a partir da semelhança entre a língua falada por eles e uma língua do Noroeste da Índia. Formando uma cultura ágrafa, eles não deixaram registros escritos e a falta de dados é um obstáculo que historiadores, ciganos ou não, tentam vencer. Do pouco que se tem, grande parte foi escrita sobre um olhar estereotipado, hostil e generalizado de não-ciganos diante das singularidades da cultura que, diga-se de passagem, não é uma cultura universal e homogênea. Aprendi desde o início com o Carlos Amaral, cigano e líder comunitário da comunidade, que meus vizinhos são do grupo chamado calon. Nas últimas décadas, consagrou-se a divisão dos ciganos no Ocidente em três grandes grupos/etnias: os Rom, os Sinti e os Calon. Os costumes e línguas variam muitos entre esses grupos, resultado do contato com os locais que passaram ao longo dos séculos. Os Rom, ou Roma, estão divididos em um número maior de países. Se organizam em subgrupos (natsia, que significa nação ou povo) como Kalderash, Lovara e Matchuara. Predominavam nos países balcânicos e na Europa Central, mas a partir do século XIX migraram também para as Américas e para a Europa Ocidental. Os Sinti são mais encontrados na Alemanha, Itália e França, onde também são chamados Manouch. Os Calon, ou Kalé, estão principalmente nos países ibéricos, onde muitas vezes são mais conhecidos como gitanos. Vivem (acampam ou pousam), em sua maioria, em terrenos públicos, privados, cedidos, ocupados ou arrendados que se situam na periferia dos centros urbanos. Apesar de serem pouco estudados, não se considera que esse grupo tanha tantas ramificações como o grupo Rom.




[Anticiganismo. ] Apesar de tanta diversidade há, além da origem, algo que sem dúvida está presente em todo o mosaico étnico que forma a estrutura dos ciganos: o histórico de perseguição e a contínua rejeição. Mitos, lendas, xenofobia, discriminação racial e religiosa fazem parte dos vários motivos que levam as pessoas a rejeitar os ciganos. Soma-se aqui também a língua própria, os jeitos singulares de se vestirem e habitarem, a leitura de mão e até a cor da pele, que em muitos casos, por causa da origem indiana, é mais escura que a pele dos europeus, o que era suficiente para esses últimos denominarem os ciganos como pretos – como consta em vários documentos “[...] não existe uma cultura cigana e

oficiais antigos.

sim culturas ciganas. [...] Dentro dessa heterogeneidade cigana, o que é tradição

Essa parte da história é muito marcante, porque o anticiganismo

dentro de um grupo pode ser completamente

vai desde a não aceitação de crianças ciganas na escola até o

diferente para outro. Isso irá depender de

genocídio, e essa realidade ainda não se modificou. O descaso com

fatores históricos, geográficos e culturais

o povo cigano atravessa fronteiras e está presente em muitos países

com

grupos

que os consideram um grave problema. Alguns lugares chegam

ciganos tenham convivido (assimilado).

absurdamente a tratar os ciganos como um obstáculo para a questão

Hoje estamos espalhados pelos cinco

da higiene social, como se sua presença “infectasse” o país.

os

quais

determinados

continentes, falamos línguas diferentes e diferentes dialetos romani, praticamos religiões diferentes e adotamos muitos hábitos da população dos países onde vivemos (tendo nascido ou tendo migrado para a região).” (RAMANUSH, 2012, p.133)


[Do apagamento à resistência. ] Estudar os ciganos é um exercício contínuo de refazer os conceitos pré-estabelecidos. Apesar da maior parte no mundo ser sedentária, há uma outra generalização, que gira em torno do nomadismo. As viagens tornaram-se necessidade por dois motivos: primeiro, porque facilitavam o exercício das profissões (comerciantes, artesãos, caixeiros, negociantes de cavalos, feirantes, artistas). E segundo porque eram expulsos dos locais em que chegavam. O caráter nômade foi, portanto, imposto e acabou delineando também uma função econômica e não uma escolha de tradição. As migrações continuam em alguns grupos, inclusive como estratégias de sobrevivência às perseguições e ao preconceito étnico. Muitos outros, por outro lado, se sedentarizaram por razões diversas, principalmente pela dificuldade em achar terrenos para acampar em cada cidade que passavam. O sociólogo Zygmunt Bauman (1999, p89), em Modernidade e Ambivalência, menciona que as comunidades socialmente estruturadas apresentam dificuldades ao lidar com grupos que não possuem lar fixo, denominando o que o autor chama de “estranho”. Essa noção - aliada, no caso dos ciganos, a preconceitos religiosos e a outras questões - traz uma certa desconfiança e em muitos casos vão surgindo várias ações e estratégias para manter o “estranho” a certa distância dos ditos “normais”.




[Segregações sutis] Cria-se juntamente o rótulo do “exótico”, ou seja, diferente do convencional, extravagante. De início, pode parecer uma ideia normal, mas se formos a fundo conseguiremos perceber que se trata de mais uma ferramenta de discriminação. O padrão de comportamento (roupas, músicas, religião, etc.) que nos rege é tão moldado sobre a base da supremacia racial branca, que tudo o que vem de outras etnias ou culturas não-brancas é considerado como bizzaro. Não é um elogio como muitos ainda entendem, mas uma estratégia de segregação que reafirma a cultura do homem branco ocidental como a oficial. Qualquer tentativa de separar as pessoas entre “convencionais” e “excêntricos” de acordo com sua cultura ou características físicas é etnocentrismo. Aprendemos aqui no Brasil, desde pequenos, que uma harmoniosa mistura de raças – indígenas, europeus e africanos - deu origem à sociedade brasileira ou ao mestiço, como somos chamados. É, na verdade, uma tentativa de dizer que aqui no Brasil todos são valorizados, todas as raças têm o seu lugar, criando a ilusão de que não existe mais racismo em nosso país, o que cai em contradição quando não consegue explicar os contínuos casos de driscrimanção racial na atualidade. Para a construção dessa ideologia, há uma falsa valorização das minorias, reduzido-as a vários estereótipos, inclusive o de “exóticos”, mas que, na verdade, é só mais uma forma de sutilmente e propositalmente ir afastando cada vez mais essas pessoas da valorização e inclusão junto ao restante da população. A mulher cigana ainda sofre de uma sexualização sendo, muitas vezes, reduzida no imaginário social como uma representação do sensual, do mistério e do misticismo, e não um ser humano dotado de vida e singularidade.


Essas estratégias de apagamento não são nenhuma novidade.

As elites

sempre usam do afastamento, ocultamento ou da invisibilidade como uma tentativa forçada de uniformizar uma identidade nacional e internacional, anulando tradições de culturas minoritárias, o que se intensifica com a chamada globalização e indústria cultural. Como reação, as culturas tradicionais e as minorias étnicas vão buscando formas para permanecerem vivas. A oralidade vem como uma marca fundamental do processo de resistência desses grupos, mais ainda nos ciganos, por causa de sua cultura ágrafa. Os ensinos são passados entre eles, na troca direta entre as gerações. Considerando que a transmição oral é algo que não pode ser destruído, o corpo vira a forma mais segura de proteger os costumes, uma espécie de guardião: nele ou dele se manifestam a dança, as roupas, a música, e, por fim, a manutenção da tradição. Dessa forma, essa bagagem se torna inerente ao ser que nasce dentro de determinada cultura, fato este que os protege, por exemplo, da interferência da hegemonia cristã e ocidental. Há ainda os perigos da espetacularização, intensamente presente no diálogo entre a indústria cultural e de entretenimento com as culturas não-brancas. Essas sofrem de uma redução dos seus significados mais sublimes para se tornarem coisas mais fáceis para o público assimilar. Partes importantes viram meras histórias, folclores e espetáculos para entreter as pessoas em um momento de pausa diante de um mundo caótico e saturado. Isso acontece, por exemplo, com a indústria audiovisual que insere personagens ciganos em filmes e novelas, mas raramente fala de fato a respeitos deles, representando-os de forma a reforçar os rótulos do senso comum sendo que, no fundo, estão muito distantes do que podem ser todas as multifacetadas identidades ciganas.


(CANCLINI, 1983, p27.)



O que é a cultura popular: criação espontânea do povo, a sua memória convertida em mercadoria ou o espetáculo exótico de uma situação de atraso que a indústria vem reduzindo a uma curiosidade turística? [...] A estratégia do mercado: enxergar os produtos do povo mas não as pessoas que os produzem, valorizá-los apenas pelo lucro que geram, pensar que o artesanato, as festas e crenças “tradicionais” são resíduos de formas de produção pré-capitalistas. O popular é o outro nome do primitivo: um obstáculo a ser suprimido ou um novo rótulo pertencente a mercadorias capazes de ampliar as vendas a consumidores descontentes com a produção em série. O que o turista vê: enfeites para comprar e decorar seu apartamento, cerimônias “selvagens”, evidências de que a sua sociedade é superior, símbolos de viagens exóticas a lugares remotos, portanto, do seu poder aquisitivo. A cultura é tratada de modo semelhante à natureza: um espetáculo. As praias ensolaradas e as danças indígenas são vistas de maneira igual. O passado se mistura com o presente, as pessoas significam o mesmo que pedras: uma cerimônia do dia dos mortos e uma pirâmide maia são cenários a serem fotografados. (CANCLINI, 1983, p11.)


[Existir já é um ato político.] Nicolas Ramanush, cigano sinti e presidente da ONG Embaixada Cigana do Brasil, fala que a palavra resiliência define perfeitamente a história dos ciganos: perseguidos pela Santa Inquisição (A Igreja Católica via uma concorrência nas práticas ciganas que passaram a despertar interesse popular e então os definiam como hereges), pelo nazismo de Hitler (holocausto cigano é chamado de porajmos), pelo regime comunista e, ainda hoje, por diversos países que continuam expulsando ou isolando comunidades ciganas, poucas culturas conseguiram se adaptar ou superar tantas situações adversas como eles. E não é só a rejeição institucional que eles atravessam, porque as populações dos países que vivem também possuem uma visão distorcida e generalizada sobre os ciganos, o que resulta, muitas vezes, em dificuldades de sociabilidade, de convivência, de acesso aos espaços e serviços públicos e de admissão em empregos.




II. Parte (Ou Brasil) Ser cigano no Brasil, é ser invisível: “No Brasil, quando se fala de minorias étnicas, imediatamente se pensa nos povos indígenas ou afrobrasileiros. Ninguém se lembra dos ciganos. Existem milhares de publicações sobre índios e negros, escritas por antropólogos brasileiros e estrangeiros. Hoje possuímos informações detalhadas e atualizadas sobre quase todos os povos indígenas. Desde 1910 existe um órgão governamental, então SPI (Serviço de Proteção aos Índios), atualmente chamado FUNAI (Fundação Nacional do índio), criado especialmente para tratar dos assuntos indígenas, baseando-se na Lei nº 6.001/73, mais conhecida como o Estatuto do Índio. [...]. Quem iniciar os estudos ciganos, logo encontrará um grande problema: a bibliografia sobre ciganos no Brasil é muito reduzida. [...]. Não existe um órgão governamental para tratar especificamente dos assuntos ciganos; nenhuma lei lhes dá proteção especial; na Constituição Federal nem sequer são mencionados. Somente a partir de 1994 os ciganos passaram a ser citados também em documentos governamentais. Desconhecemos a existência de organizações nãogovernamentais pró-ciganas no Brasil. O Movimento Cigano está ensaiando seus primeiros passos. [...] Somente em 2006 o governo instituiu o dia 24 de maio como o Dia Nacional do Cigano.” (MOONEN, 2012, p5.)


Retomando a ideia de mestiçagem, no livro “O povo brasileiro”, de Darcy Ribeiro, não há nenhuma parte dedicada à cultura cigana. Um livro de mais de 300 páginas que se dedicou a estudar a formação do povo brasileiro não levou em consideração uma população de mais de 800 mil pessoas no Brasil que chegaram aqui, inclusive, antes dos negros. Além de terem sua história banida dos livros brasileiros, a tensão que os ciganos têm que enfrentar não é diferente aqui. Chegaram deportados de Portugal e João Torres é citado frequentemente como o primeiro cigano a vir para o Brasil, em 1574. Os mais numerosos atualmente são do grupo calon: cerca de 400 mil no Brasil, que ainda vivem em acampamentos, são nômades ou sedentários, com profissões e religiões diversas. Há também aproximadamente 300 mil ciganos rom e no máximo 100 famílias do grupo sinti.




Segundo o historiador e professor universitário Rodrigo Teixeira Corrêa (2009, p12,) os ciganos estavam, muitas vezes, em dissonância com os ideais de “civilização e progresso”: “São identificados como elementos incivilizáveis, inúteis à sociedade, supersticiosos, corruptores dos costumes, vândalos, enfim, uma anomalia social e racial. Uma vez vistos dessa maneira, as autoridades tentavam controlá-los, porém sem grande eficácia. [...] O fato de não empregarem os sacramentos católicos (casamento ou batismo de crianças, por exemplo) em favor de seus costumes, desafiava a moral religiosa, que pretendia controlar todas as parcelas da sociedade. Embora a “feitiçaria” cigana poucas vezes fosse além da prática da buena dicha (leitura de mão), ela era rigorosamente atacada pelos religiosos.’’


A forma que eles dispunham do tempo, sem o controle do relógio e sem horários uniformemente divididos, também incomodava a elite, porque esta os considerava como ociosos, o que era privilégio das classes altas e também um péssimo exemplo para as classes baixas que deviam rigorosamente trabalhar para manter a “ordem”.




























III.

Ponto (Ou Acampamento cigano calon – BH - MG)

Estão a poucos quarteirões da minha casa. Vejo-os aqui desde pequena e há três anos atrás foi que decidi adentrar nessas barracas com uma curiosidade no olhar: “Olá! Sou vizinha de vocês há muitos anos e queria conhecê-los...” Já me receberam puxando a cadeira para eu e meu amigo Iago sentarmos e assim se desdobrou uma tarde inteira de prosa. Kellyn, a primeira cigana que conheci, com aquele olho azul que parece pular do rosto e os cabelos que quase enrolam o corpo, me conta um pouco da rotina e dos costumes. Senti logo que os calons – pelo menos a maioria, que ainda vive em acampamento – constituem o grupo mais distante da imagem comum que vem à memória ao se falar a palavra cigano.


Quando menciono que tenho vizinhos ciganos, as pessoas começam apressadamente a fazer diversas perguntas a fim de solucionarem a curiosidade e a desinformação. Tentar delinear características, no entanto, é bem delicado, porque a heterogeneidade existe inclusive dentro do grupo calon. O que é tradição para uma comunidade, (acampamento ou família) pode não ser para outra. Escolho assim ressaltar que tudo o que é falado trata-se exclusivamente dos costumes dessas famílias ciganas aqui do bairro, o que significa dizer que pode não ser assim em um outro acampamento calon dentro da mesma cidade.




Sobre o que está aqui, agora: (Respondendo, então, as perguntas mais comuns) - São muitas famílias, divididas em um lote bem comprido que, depois de muitos anos reivindicando, conseguiram a posse. - Do tempo em que estão aqui, a maior parte foi sem saneamento básico, sobrevivendo em condições sub-humanas tendo que atravessar a avenida para usar o lote vago em frente ao acampamento como banheiro. - Alguns já conseguiram construir casas de alvenaria, o que os trouxe mais segurança e melhores condições. Há ainda muitos morando em barracas, tendo que lidar diariamente com situações de enchente, chuva de granizo, desmoronamento, etc. - Mesmo essas construções convencionais ainda mostram que ali mora um cigano: sejam pelas portas e janelas coloridas, pela varanda ideal para as rodas de prosa como é de costume, pelas cortinas alegres ou pelos diversos enfeites. - Falam, além do português, o dialeto chibi, usado somente entre eles. - Os homens exercem diversas atividades: pedreiros, criadores e vendedores de cavalo, comerciantes e camelôs, etc. As mulheres fazem alguns trabalhos manuais (Como costura e pintura em panos de prato) e cuidam da casa e dos filhos. - Alguns são evangélicos – considerando que, como em muitas periferias, a Igreja Evangélica tomou conta - outros são católicos e outros não tem religião definida. - Santa Sara Kali, conhecida como a padroeira dos ciganos, quase não é mencionada. Poucas leem as mãos e essa prática vem se apagando entre as jovens da comunidade.


- O sertanejo é a música que predomina completamente e o forró a dança que está sempre presente nas festas. As roupas masculinas também se assemelham ao estilo do homem sertanejo: calça jeans, botas de couro, chapéu de vaqueiro e cinturão. - Casam-se cedo em acordos entre famílias ou quando alguma jovem gosta de um rapaz e vice-versa, no sistema endógamo (casamento entre membros da mesma casta, grupo ou tribo.) Porém, segundo eles, também é possível casar com não ciganos e a união precoce não é mais uma regra rígida como era no passado, o que acontece com outros costumes a partir do processo de sedentarizar e abandonar a migração, ainda que uma matriz permaneça. - Mesmo com o diálogo com a cultura urbana que o fim do nomadismo ocasionou em muitas famílias, essas ainda continuam firmes e resistentes em muitos dos seus costumes. As mulherres, por exemplo, depois de certa idade, só podem usar vestidos longos e volumosos, mas que tiveram que abrir mão uma vez para serem aceitas sem preconceitos no centro de saúde: para evitar que os funcionários não quisessem atendê-las alegando que ciganos não têm direito ao acesso porque não são brasileiros, algumas tiveram que pôr calça jeans e blusa comum, disfarçando que são ciganas para conseguirem fazer um pré-natal, por exemplo. Essa situação não é só no Brasil, muitos ciganos evitam suas formas particulares de se vestir porque elas trazem uma série de preconceitos. - As barracas são explosões de cor. - Os tecidos coloridos viram a base da decoração: estão nas cortinas que formam a porta das barracas, na mesa, na cama, na geladeira, nos vestidos.


“Durante 500 anos alguns grupos ciganos foram escravos, principalmente, na Romênia. E seus escravocratas usavam as escravas virgens para seus prazeres pessoais e como entretenimento aos “nobres” convidados. E com a instituição do casamento precoce, as famílias ciganas poupavam e defendiam suas filhas, realizando seus casamentos. (Os escravocratas imaginavam que por esse motivo a menina não era mais virgem, e não importunavam)”. (RAMANUSH, 2012, p67)

















No Ă´nibus, no supermercado, na loja de brinquedos da esquina, na loja de artesanatos da Baiana.


Sempre encontro com algum cigano tentando, assim como eu, resolver as necessidades no comércio do nosso bairro para não precisar ir ao centro da cidade. Em todas as vezes fico cativada pelo destaque dos vestidos em um horizonte cinza da paisagem urbana. Não é fácil identificar um cigano na rua como o é no caso das mulheres. Há uma certa rigidez maior para definir o que elas têm de vestir. Costumo brincar que as moradas aqui do acampamento são uma extensão do corpo da mulher: o mesmo tecido que forma os vestidos, cobre a mesa, encapa o botijão e escorre pelas cortinas. É a mulher quem decora e quem cuida, com a mesma dedicação, ao meu ver, que particularmente “se decora” e se cuida. Meu encantamento está sempre mais voltado para elas – as ciganas. Além do fato de que a figura da mulher é mais representativa do que a do homem, desde o primeiro contato estabeleci muito mais relações com elas do que com os ciganos e percebo que, de modo geral, essa é uma situação comum: os homens não ciganos (gajons, como os ciganos chamam) que chegam no acampamento, independente do objetivo, sempre conversam e se relacionam mais com os homens ciganos, e assim é também entre as mulheres. E também porque, sendo mulher, consigo entender as questões e dramas que perpassam nossa existência.... Fotografar então vira uma importante forma de compartilharmos nossas experiências.




Uma troca entre mulheres: a que fotografa e a que ĂŠ fotografada.
















Há uma urgente necessidade de reconhecimento das mulheres - e mais ainda da mulher cigana - como pertencentes à sociedade geral. Apesar dos avanços na luta da mulher e pela igualdade de gênero, ainda não se olhou para a mulher cigana, assim como são raras as discussões sobre minorias que lembram dos ciganos.


















A relação que criamos a partir dessas visitas que eu fazia ao acampamento com o tempo foram se tornando o foco e de repente levar a câmera já não era tão importante. É como se a fotografia tivesse me dado esse presente: claro, a comunidade é muito grande e nem todos eu tenho intimidade, mas tantas amizades surgiram ao longo desse tempo e por fim estabelecemos uma relação de vizinhos próximos. Desejei pausar o trabalho para refletir mais a respeito, pois surgiu-me um receio de que as fotografias que eu já havia feito até então tivessem um olhar de quem vê de fora, alguém distante, mas não era assim que eu me sentia mais. Eles não eram o “campo de pesquisa” e eu não era simplesmente uma “pesquisadora”. No fundo, esse material se transformou em uma memória para eles e para mim. Memória do que vivemos até hoje, das tardes, das festas, dos encontros.

É dessa vivência que surge o material e não somente da câmera fotográfica.


Enxergo também uma importância histórica nessas imagens como uma documentação do que é, hoje, uma família cigana calon brasileira que se sedentarizou, visto que é um registro raríssimo - talvez por que os estereótipos de que são “perigosos”, “ladrões de criança” e “trapaceiros” sejam tão intensos que muitos não se dispõem a aproximar para fotografar comunidades ciganas. Ainda que tenha aumentado constantemente o número de monografias sobre essa cultura, trabalhos audiovisuais não são muito comuns, o que fez com que muitas das fotografias que fizemos fossem compartilhadas virtualmente em páginas de várias ONGs próciganas. Ao resolver então continuar com o que já estava em andamento, observei que essas trocas e afetos influenciaram muito o perfil das fotografias realizadas: tratam-se de algumas imagens que entram no íntimo da pessoa – detalhes dos vestidos que estavam usando, registros do interior dos quartos, etc. Não costumo ser aquela pessoa que chega, fotografa e vai embora. Interessa-me muito mais a troca cultural, a conversa, a vivência, o aprendizado. E então a experiência sempre tem mais importância do que um material físico produzido. Em geral, estou sempre lidando com pessoas e me voltando para onde elas estão. Não consigo pensar em trabalhos que já produzi que não tenham sido feitos a partir de meios sociais. Me interesso pelas trocas e relações humanas e não é um costume meu realizar algo que seja feito inteiramente comigo mesma, fechada em um ateliê, por exemplo. Claro que sempre há um momento em que a gente se fecha em nosso material para encaminhar ou organizar, mas não costumo me realizar totalmente assim.









A primeira vez em que pedi para fotografá-los, em 2013, Kellyn conversou no dialeto chibi com sua mãe e depois me disse para eu procurar o Carlos, o líder comunitário. Só ele autoriza que a comunidade seja fotografada e também monitora o uso dessas imagens em nome do grupo. Ele me contou que muita gente vai lá fotografá-los. Uma vez, tiveram notícia de que saiu uma matéria muito hostil em um jornal em outro país com as fotos que alguns documentaristas fizeram deles – não foi autorizado e muito menos dito que isso aconteceria.




(Abre parênteses: Essa prática de fotografar culturas, territórios e povos sempre foi presente na história da fotografia. Muitos vão fotografar para conhecer outros modos de vida, outros para dar visibilidade a povos esquecidos acreditando em possíveis melhorias, outros para alimentar uma ânsia de informação da burguesia sobre os considerados “menos desenvolvidos”, reforçando uma forma eurocêntrica de olhar o mundo ou uma fetichização do que é considerado “exótico”. Ainda hoje aquela prática da espetacularização que mencionei continua usando a fotografia como ferramenta de representar povos distantes ou culturas tradicionais. “Naquele momento (século XIX),

[...] o realismo fotográfico

foi utilizado para identificar e descrever os nativos de culturas exóticas, os tipos raciais, os pobres, os criminosos, os loucos, etc, contribuindo assim para conformar uma certa percepção destes como ‘diferentes’ ou como ‘outro’ e, no mesmo movimento, definir um padrão de normalidade social ou cultural.” (BARTOLOMEU, 2008, pag39) Tais atividades podem criar uma situação muito delicada como o reforço da visão de que essas pessoas são exóticas. Nesse caso, fotografá-los é mais uma forma de reafirmar a diferença aos olhos de quem se considera “normal”. Além disso, é como se fotografar, vender ou comprar a fotografia induzisse uma lógica de consumo de forma a degluti-los, apreendê-los, possuí-los. E sabemos bem que a nossa sociedade sempre teve essa ideia de que o dinheiro compra tudo, até o outro.


Fico pensando que isso traz mais problemas ainda: pode ser que reforce a ideia de exótico e, por outro lado, as pessoas não têm que se apagarem e igualarem ao branco ocidental para serem aceitas. As culturas tradicionais e as etnias têm que ser respeitadas como são, vivendo em barracas ou em prédios cleans nos bairros modernos. Não temos que ser e viver da mesma forma. Os negros não têm que alisar o cabelo para serem aceitos. Os ciganos não têm que largar suas barracas, seus dentes de ouro ou seus vestidos rodados para serem aceitos. Os índios não têm que consumirem roupas de marcas para serem aceitos. E que fique claro: na verdade não se trata de serem tolerados ou aceitos, mas respeitados. Isso acontece muito: embranquecem e ocidentalizam as pessoas o tempo todo, nas novelas, nos filmes, nas entrevistas de emprego...Somos diferentes sim, todos, uns dos outros, e essa é nossa riqueza. Nesse contexto do “outro”, muitos fotógrafos vão até essas comunidades e territórios, fotografam, extraem informações que precisam e vão embora. A fotografia pode fazer sucesso no mundo inteiro rodando em livros caríssimos e o próprio fotografado nunca a viu. Essa falta de retorno dos fotógrafos em relação aos fotografados me fez, em 2013, imprimir, na forma de lambes, fotografias realizadas durante os eventos dos movimentos sociais dentro da Comunidade Dandara, que é uma ocupação urbana de Belo Horizonte. A ideia era devolver essas imagens que eu havia feito das crianças para elas mesmas, colando esses lambes na porta de suas casas.


O resultado ficou exposto na sétima edição da mostra coletiva de Artes Visuais, a Deriva, no Centro Cultural da UFMG e me trouxe diversas reflexões. Uma delas foi a carência dessas crianças pela visibilidade: se enfiavam na frente da câmera e queriam fotos o tempo todo. Algumas mães me contavam que elas ficavam na porta das casas vigiando para que as fotos não fossem arrancadas ou estragadas. Um pouco depois, eu cursei uma disciplina de nome “Relações étnico-raciais” e nela discutíamos muito essa questão da etnografia, problematizando os cuidados que se deve ter ao fotografar uma cultura ou etnia que não é a do fotógrafo. Achei fundamental ter passado por essas conversas antes de conhecer de fato meus vizinhos calons, porque desde o início já dialoguei com eles tentando repensar essas relações de poder que surgem quando um fotógrafo direciona a câmera para uma minoria. Desde o início, propus a mim mesma estabelecer um trabalho coletivo e compartilhado em que eles iriam me falar o que é para ser fotografado, mostrando assim o modo como eles queriam ser vistos pela sociedade. Tentei sempre trazer essas fotos para eles, impressas. O que não aconteceu com frequência porque eu não tinha condições financeiras de revelar todas e então gravava em um CD para entregá-las a eles. Eu também não tenho equipamentos de última geração e no geral uso algo mais simples e resumido, sem aquele aparato complexo que se impõe muito, invade o espaço e podem intimidá-los. Outra preocupação que me acompanha é sobre a estetização da pobreza. Sinto que muitas fotografias que são feitas de pessoas em situação de miséria podem passar a serem vistas não como uma realidade grave e urgente a ser modificada, mas como uma imagem bonita.


Dessa forma, a denúncia se dissolve, perdendo a importância para o talento do fotógrafo, e a foto vira enfeite para a parede da sala de estar. Essa questão foi muito interessante aqui nesse processo com os calons: eles não estão em situação de pobreza. Existem, claro, muitos ciganos vivendo na miséria e muitos pertencentes à classe alta, mas aqui na comunidade as famílias estão, com algumas exceções, em uma situação financeira estável em comparação com outras realidades ciganas. Os maiores problemas que eles enfrentam é a falta de inclusão social e o não reconhecimento enquanto cidadãos brasileiros. Isso é mencionado por ciganos em várias partes do Brasil e também do mundo: são considerados estrangeiros em todos os países que vivem e/ ou nasceram, o que os impedem de exercer a cidadania e ter acesso aos serviços públicos. Além disso, eu percebia que eles adoram ser fotografados, mas desde que estejam mais arrumados. São muito vaidosos, principalmente as mulheres, e por causa disso eu acabei não incluindo algumas imagens que eu tinha de momentos espontâneos e rotineiros, dando preferência para as fotos em que eles estavam mais produzidos como gostam. Tudo isso fez com que eu registrasse mais a alegria, o colorido, a decoração. É uma documentação do que eles mais emanam: a vivacidade. Ainda assim há casais de idosos que passam bastante dificuldade e famílias morando em barracas com pouquíssima estrutura. Mas são poucos os casos dentro da comunidade e em geral as fotos não mostram sofrimento.

Fecha parênteses)










Visão redutora do outro Apropriação da imagem do outro Apagamento dos traços fundamentais da cultura Espetacularização Generalização Reforço da visão de exótico (e da visão eurocêntrica) Estetização da pobreza Imposição do documentarista sobre a vontade da comunidade Falta de retorno desse material para a comunidade Embranquecer e ocidentalizar as culturas Invasão não respeitosa aos cultos e ritos das culturas


Como então fazer um novo movimento? Como quebrar essa forma impositiva de lidar com o “outro”? Como o fotógrafo pode ser um colaborador? Como a fotografia pode ajudar? Outras representações são possíveis? A visibilidade trará realmente reflexão e resolução dos problemas que as pessoas passam? Quando isolada, ninguém sabe quem são e o que passam? Como fazer da prática algo mais saudável possível para ambas as partes? Voltar a atenção para quem foi colocado no esquecimento é um movimento importante? Mas ele por si só basta? O cuidado com uma cultura que não é a do pesquisador, a desconstrução e a preocupação em saber o que essas pessoas acham sobre a forma como elas são representadas não são tão importantes quanto fotografar?


Essas questões me ocupam diariamente. Como solução: “Em outras iniciativas, flagramos o gesto de envolver efetivamente o outro na construção de sua imagem e do seu grupo social, tornando-os sujeito de sua própria representação e da representação do seu mundo. Uma estratégia nesses casos, presentes nos chamados projetos de inclusão visual, é passar a câmera para aquele que habitualmente era objeto do olhar, criando condições para que agora ele seja o fotógrafo. Assim, busca-se dar a vez e a voz ao outro, a um ponto de vista que, teoricamente, não se posiciona acima ou do lado de fora da situação sobre a qual discorre, mas, ao contrário, é construído ‘de dentro’ dela. [...] Surge aí um gesto novo em direção ao outro: gesto que é da ordem da cooperação, do compartilhamento, do encontro.” (BARTOLOMEU, 2008, p70)



Vivo pensando: aqui, no caso dos meus diálogos com o acampamento calon, o fato de sermos vizinhos tem importância mais que fundamental, pois a proximidade fez com que muitas das preocupações fossem resolvidas naturalmente. Mas até que ponto? Eu não posso dizer que não exista traços de uma relação de poder entre eu, a fotógrafa, e quem fotografei. Essas construções são culturalmente impostas e ficam tão enraizadas que quanto mais se cava, mais se encontra. Porém, me proponho a sempre levar essas reflexões como companhia diante, principalmente, do afeto e confiança de ambas as partes, algo que nossa amizade foi estabelecendo.






O “Nós” é essa tentativa de trilhar o caminho do meio. Primeiro, em admitir que toda fotografia é também uma autobiografia. Um retrato fala sobre a pessoa retratada, mas também fala sobre o fotógrafo. Fotografar é recortar. Vemos não exatamente o que é real, mas o que o fotógrafo viu. E nesse sentido, ao falar ou apresentar essas imagens, não há como descartar traços da minha identidade ou das minhas reflexões e negar que eu também estou retratada em cada fotografia que faço. Segundo, porque os ciganos formam sim a sua própria cultura, com todos os modos singulares de vida. Porém, estão aqui, entre a gente, vivendo no mesmo solo. São conterrâneos, vizinhos, amigos. É por isso que eu uso a palavra “outro” ora entre aspas, ora sem. Não como forma de desconsiderar totalmente as diferenças, porque elas existem e a diversidade é a riqueza da humanidade. Mas como uma tentativa de quebrar com esse costume de lidar com os grupos étnicos sempre como “o outro”, o que pode acabar impedindo o pesquisador de vivenciar, entrar, conviver, entender, participar. Há espaços onde a teoria não é suficiente e que estão no campo prático da experiência. Sem isso o trabalho acaba reproduzindo mais uma vez um olhar de fora, que os considera como distantes, estranhos. Não dá para nos separarmos totalmente assim. Aquela prática de colocar as coisas em suas devidas caixinhas morreu.






1492: Na península Ibérica, a chamada Reconquista Cristã, significa não apenas a expulsão de árabes e judeus, mas de ciganos também; 1496: No auge do pensamento “humanista”, os rom (ciganos) da Alemanha, são declarados “traidores dos países cristãos, espiões a soldo dos turcos, portadores da peste, bruxos, bandidos e sequestradores de crianças”; 1514: Anticiganismo é institucionalizado em Portugal; 1540: Os bispos da Bélgica ordenam a expulsão dos ciganos sob pena de morte; 1558: Elizabeth I faz uma lei na Inglaterra que torna ilegal ser um cigano. Isso quer dizer que a pessoa era condenada à morte simplesmente por ser filha de pais ciganos; 1563: São expulsos da Inglaterra sob pena de morte; 1685: Língua cigana, o romani, foi criminalizado em Portugal; 1710: Em pleno século “das luzes e da razão”, é ordenado em Praga que os ciganos adultos sejam enforcados sem julgamento. Os jovens e as mulheres são mutilados. Na Bohemia, que lhes sejam cortada a orelha esquerda. Na Morávia, a orelha direita; 1715: Escócia inicia deportação de ciganos para os EUA; 1718: D. João determina a expulsão dos ciganos de Portugal; 1719: França expulsa ciganos para as colônias do continente americano; 1721: 220 anos antes de Hitler, o imperador Karl VI ordena o extermínio de ciganos. Determina que homens e adultos fiquem sobre seu sugo e que sejam cortadas as orelhas das mulheres e das crianças como sinal de punição e identificação; 1835: “Caçada aos ciganos” na Dinamarca, no dia 11 de novembro. O resultado foram 260 homens, mulheres e crianças presos ou mortos; 1905: É publicado por Dilmann, o Zigeuner-buch, que enfatiza a crença na tendência genética dos ciganos ao comportamento criminoso, o que inspirou, mais tarde, o nazismo;


1926: Na França, Inglaterra e na Suíça, começa o costume de sequestrar meninos ciganos para serem educados entre não ciganos, prática que só foi abandonada em 1973; 1941: Durante a invasão alemã à União Soviética, os nazis fuzilam em Simferopol (Ucrânia) 800 homens, mulheres e crianças na noite de Natal. Na Iugoslávia, executava-se por igual a ciganos e judeus no bosque de Jajnice; 1950: Quando começa a negociação das indenizações pelo Holocausto, o novo Estado alemão estimou que só os judeus têm direito a elas; 1958: A Tchecoslováquia proibi o nomadismo e esteriliza mulheres ciganas; 1982: O chanceler social-cristão Helmut Kohl reconheceu o genocídio dos Roma no Holocausto. Porém, nesse ano, a maioria que teria direito à restituição já havia morrido; 1993: Tchecoslováquia define ciganos como estrangeiros, negando a cidadania para cerca de 10 a 20 mil ciganos; 1994: Os britânicos criminalizam a prática de acampamento. A França deporta ciganos para os campos de concentração como Dachau e Buchenwald e os mantém presos; 2010: Na Itália, (onde nasceu a “razão do Estado”), e na França (sede mundial da reunião intelectual), os gabinetes em exercício de ambos os governos (com forte apoio popular, ou seja, “democráticos”), ficham e deportam milhares de ciganos para a Bulgária e Romênia; + Os ciganos foram escravizados em vários locais da Romênia por mais de 500 anos. O termo “cigano” inclusive se tornou sinônimo da palavra “escravo” em alguns desses lugares. + Foram escravos na Inglaterra e na Espanha em diferentes períodos. + A Igreja Católica Ibérica foi a principal propagadora e sustentadora do mito da “pureza” de sangue”.











Intervenção efêmera realizada no Salão Nobre da Câmara Municipal de Belo Horizonte. 2016







As outras vítimas de Hitler que o mundo esqueceu: Cerca de 500 mil ciganos foram exterminados pelo nazismo. As crianças ciganas eram usadas para muitos experimentos. Para convencê-las de irem até a câmara de gás, usavam doces e brinquedos. “Lembro-me de um par de gêmeos em especial: Guido e Ina, com cerca de quatro anos. Um dia, Mengele levou-os. Quando eles voltaram, estavam em um estado terrível: eles haviam sido costurados, entre as costas, como gêmeos siameses. Suas feridas ficaram infectadas e escorriam pus. Eles gritavam dia e noite. Então seus pais — eu lembro que Stella era o nome da mãe — conseguiram um pouco de morfina e mataram as crianças, para acabar com o seu sofrimento.” (Depoimento de Vera Alexander, uma prisioneira judia em Auschwitz que cuidava das crianças ciganas)




Bibliografia TEIXERA, RODRIGO CORRÊA. Ciganos no Brasil: uma breve história. Segunda edição. Belo Horizonte: Crisálida. 2009, 176p. CANCLINI, Néstor García. Pontos de partida. In: As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983, PP. 13-41. BARTOLOMEU, Anna Karina. A fotografia e os outros. In: De dentro da favela: o fotógrafo, a máquina e o outro na cena. 291 f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008. CARVALHO, José Jorge de. ‘Espetacularização’ e ‘canibalização’ das culturas populares na América Latina. Revista ANTHROPOLÓGICAS, Recife, UFPE, ano 14, vol.21, 2010, PP. 39-76. HERKENHOFF, Paulo. A espessura da luz – Fotografia Brasileira Contemporânea. In: ANDAJUR, Claudia. A vulnerabilidade do ser. São Paulo: Cosac Naify, Pinacoteca do Estado, 2005, PP. 228-237. MOONEN, Frans, Anticiganismo: ciganos na Europa e no Brasil. Recife: Dhnet, 2011a. 3ª edição digital revista e atualizada. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/ sos/ciganos/a_pdf/1_fmanticiganismo2011.pdf RAMANUSH, NICOLAS. Atrás do Muro Invisível: crenças, tradições e ativismo cigano. São Paulo: Nicolas Ramanush Leite, 2012, 184p. VIEGAS, Alberto; SILVA, José João Sá e. Ciganos: álbum de fotografias. Lisboa: Colibri, 1993, 130p. BAUMAN, Zygmun. A auto construção da ambivalência. In: Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcus Penchel. RJ: Jorge Zahar Editora, 1999, PP. 85-113. ____________. A criação e anulação de estranhos. In: O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, PP 27-48.






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