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Caminhos a vida extraordinรกria de gente (quase) comum
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Editorial Respeitável leitor, você encontrará nesta publicação o espetáculo da vida escondido nas pequenas coisas. São histórias, perdas, despedidas e recomeços. Acomode-se! Se estiver sentado ou em pé, procure a melhor posição. A cortina se abre agora e começa o show da vida, onde dor e alegria podem se trombar na mesma linha. A primeira edição de “Caminhos” traz a trajetória do palhaço considerado símbolo do Gama (DF). Um homem que está se desfazendo do nome José e se transformando, dia a dia, em Pirulito, o personagem que lhe presentou com fãs e amigos. Boa leitura!
Expediente Repórter: Lanier Rosa // Fotógrafo: Guilherme Assis // Orientadora: Karina Gomes Barbosa // Editoração Eletrônica: Rafiza Varão
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José enterrado, palhaço famoso Considerado símbolo da cidade do Gama, o ex-dono do nome José sorri pouco e chora ao lembrar dos políticos que chama de amigos, mas não ligaram para desejar melhoras após o acidente que sofreu. Uma trajetória solitária e cheia de dificuldades deve explicar porque enterrar o passado seja importante para um palhaço chamado Pirulito. A vida não foi doce com ele
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“Foi ali no acidente que pensei: o palhaço Pirulito está morrendo”
Um palhaço que faz rir. Um homem que chora. A alegria contagiante deve ter ficado em algum lugar do trabalho que não pode mais realizar, ao menos por um tempo. Aos finais de semanais, ganhava entre R$ 700 e mil reais, agora vive de doações. O colorido da roupa que José usa para dar vida ao palhaço Pirulito entrou de uma forma tão voraz em sua vida que se embaralhou a própria identidade. A caneta só lhe serve para assinar a denominação que ganhou dos pais: José. O nome só lhe serve para formalidades. Já as roupas e os admiradores tem contribuído na conquista pela vida que pediu a Deus: ser conhecido, famoso, admirado, cuidado e estar perto de pessoas que considera importantes. Foi com o nariz plastificado de cor vermelha e as tintas que formam desenhos geométricos em seu rosto que o mundo mudou, a vida parou e depois seguiu um pouco melhor. Na ligação feita para descobrir a localização exata dele, José, 44 anos, fez a primeira graça – e uma das poucas: “Estou aqui na cantina, vestido de palhaço-múmia”. Ele estava sentado, sozinho, à mesa de plástico azul. Logo, pegou o prato descartável cheio de arroz, strogonoff de frango e salada e jogou na primeira lixeira que avistou. Desistiu! Era interrompido constantemente pelos fãs, adultos ou crianças que o vinham abraçar e tirar foto como se não o vissem há anos. Levantou-se e depois do cumprimento de saudação, entregou o pequeno papel, obviamente xerocado, com um número de uma conta de banco. A letra insegura delatava que Pirulito ainda não conseguia segurar direito a caneta com a qual escrevera o conteúdo do impresso com o pedido de ajuda, já que ficaria 45 dias sem trabalhar, o que significava não ganhar dinheiro para pagar aluguel, contas e compras. Caminhando lentamente, com uma roupa que destoava dos biquínis e shorts usados pelos frequentadores do clube que visita há mais de dez anos, contava sem parar a história que lhe rendeu as ataduras. O dia 9 de setembro de 2012 era um domingo de sol, daqueles perfeitos para vender picolés e balões.
Pirulito ia em direção ao mesmo clube em que peregrinava enquanto contava a história. Saindo da casa de dois cômodos, no Gama (DF), refez o caminho que faz dominicalmente de olhos fechados. Dia de descanso para alguns, dia de trabalho para ele, que visita os quatro clubes da cidade onde mora, Gama para vender as guloseimas, balões e estalinhos, o preferido das crianças. Aquele dia não parecia ser tão diferente dos outros. Seguiu o cronograma: acordou cedo e se vestiu de palhaço. Do quarto escuro, onde só havia um espelho, um guardaroupas antigo e o buraco onde deveria existir uma cama, fez a pintura no rosto inspirada nos ídolos, os palhaços Atchim e Espirro. Encontrou Helano, dono da Kombi, e começou o trabalho de carregar o carro. O amigo lhe avisou que o veículo estava com problemas e não passava da terceira marcha. Pirulito deu de ombros e continuou a transformar o fundo da Kombi em uma espécie de picadeiro, onde as cores preenchiam tudo o que restasse de vazio. Colocou lá dezenas de balões cheios de gás hélio, responsável por permitir que eles voem imediatamente quando os soltamos. Também alguns algodões-doces que iriam, quem sabe, preencher o céu da boca das crianças que esperavam a visita agendada. No primeiro clube, tudo ocorreu como deveria. Vendeu, abraçou, foi abraçado, tirou fotos, fez a alegria da criançada. No caminho para o segundo clube, algo estranho aconteceu. “Olhei para trás e booooom!”; só viu as chamas. Os balões explodiram. A causa do acidente não foi detectada, mas ele acredita que a Kombi, que tem o motor na parte traseira, tenha aquecido por ser forçada a andar apenas na terceira marcha. O calor junto ao gás hélio fez com que o acidente fosse barulhento. No momento em que se virou para ver o motivo do barulho, teve o rosto queimado. Não havia mais tempo para pensar no que fazer. Posicionou a mão direita na maçaneta, abriu a porta e pulou, ainda com o carro em movimento. “Foi ali no acidente que pensei: o
7 palhaço Pirulito está morrendo!”. O acontecimento divide o palhaço. Por um lado, fica o susto, o medo de morrer e a dor das queimaduras que ficaram pelo corpo. Por outro, Pirulito recebeu carinho, doações e atenção. Agora, a casa está bem mais cheia do que antes, com as frequentes visitas que recebe. Também tem mais móveis, mais alimentos e mais oportunidades para contar a história que lhe marcou fisicamente. Sobre isso, ele discursa com tranquilidade, dando detalhes, falando do carinho que recebeu durante os nove dias em que esteve hospital, dos médicos que o visitavam e até das postagens de apoio no tal do Facebook, que antes sequer conhecia. Ele também não hesita e já perdeu a conta de quantas entrevistas concedeu sobre o acidente: “teve tevê, rádio... todo mundo queria saber se o palhaço Pirulito estava bem”. Muitas reportagens sobre o acidente saíram nos principais jornais do Distrito Federal. Os amigos e fãs também se prontificaram e fizeram um vídeo em homenagem ao palhaço. Depois, postaram no Facebook. A partir daí, pessoas de vários lugares se comoveram com a tragédia. Pirulito conta que foi através da internet, com a qual não tem a mínima intimidade, que houve comoção nas pessoas. “Já era famoso. Depois do acidente, ainda mais. Sou conhecido agora em todos os países”, fala, apontando as mãos enfaixadas para o horizonte. Para ele, agora só falta aparecer no Fantástico e no Jornal Nacional.
O show não pode parar, mas parou Trinta por cento do corpo do palhaço ficou queimado. Seu rosto, pescoço e mãos foram atingidos pela explosão. E foi a partir de então que José Cavalcante dos Santos começou a desaparecer. O nome dado pelos pais perdeu o sentido. Se você, caro leitor, o encontrar na rua, não o chame de José nem de Zé, pois ele não atenderá. “José tem aos montes, palhaço Pirulito só tem eu”, explica. Depois de 25 anos nessa profissão, ele ganhou a atenção e o cuidado que um homem que nunca casou e mora longe da família tanto necessita. Visitas, ligações e muitos abraços. Também tiveram os que doaram: geladeira, fogão e a cama. Não tinha nada disso antes. Gostou mais da cama, doada por um policial. Com o buraco do quarto preenchido, ele não precisa mais dormir no chão que, como conta, foi uma escolha: “eu tenho muitos pesadelos, mas nessa cama grande posso rolar para todos os lados que não caio. Agora sim!”. O lar de Pirulito tem dois cômodos, e a porta da sala/cozinha virada para a rua. É de lá que ele cumprimenta os fãs, como gosta de chamar a todos os que lhe desejam melhoras. Na pequena casa, ele tem uma cômoda de quatro gavetas. Nela, estão guardados seus maiores tesouros. São inúmeros recortes de jornais. Pirulito se anima a cada papel que encontra. Não é de hoje que o palhaço ganha destaque na imprensa. Na posse do ex-presidente Fernando Collor, ele estava lá.
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“José tem aos montes, palhaço Pirulito só tem eu”
Tirou foto com o mais jovem político a chegar ao cargo presidencial. No dia do impeachmeant, também estava lá. “Para mim ele foi um bom presidente, mas tirou dinheiro do pessoal”. Collor não é o único que Pirulito admira. O palhaço gosta muito de políticos. Ele mesmo se denomina “o palhaço do governador”. Durante a recuperação, recebeu a ligação do exgovernador de Brasília, José Roberto Arruda, que lhe desejou melhoras. Outros também o contataram, mas os que não o fizeram é que causaram tristeza em seu coração. O palhaço enche os olhos de lágrimas e confessa o que o deixa mais entristece: “alguns não me ligaram e eu fiquei muito triste”. A alegria volta quando lembra que, antes de Collor subir a rampa, na posse, ele já havia descido, dando cambalhotas e fazendo a alegria dos fotógrafos presentes para a cobertura da posse do novo presidente. Entre os recortes que guarda, há fotos de Pirulito com vários políticos. Outras fotografias o mostram com a blusa do Gama Futebol Clube. Numa delas, a pintura está borrada por causa das lágrimas que escorriam em seu rosto no momento do registro. O time de coração, que só divide espaço com o Flamengo, promoveu um dos maiores momentos de tristeza de sua vida. Num jogo entre Gama e Macaé, em 19 de setembro de 2010, o time brasiliense levou a pior e foi rebaixado para a 4ª divisão. Não havia como não ficar triste, e o palhaço chorou, ganhando destaque nos cadernos de esporte dos jornais do DF.
Foi depois disso que ganhou também o título de símbolo do time Gama. Do inferno à graça A vida como palhaço esconde uma história sofrida, de sonhos perdidos, como o de ser ator das novelas que tanto ama. Desejo nutrido desde quando morava com a família em São Rafael (RN). Ainda pequeno, não teve muito tempo para ser criança. Já com 8 anos ajudava o pai na roça e por causa disso, não frequentou a escola. Só sabe escrever o nome. A única doçura que a vida lhe oferecia naquele tempo estava nos cultos da igreja evangélica que frequentava escondido dos pais. E foi por conta dessa única alegria que José resolveu sair de casa. O pai não gostava. A mãe também não. Eles não acreditavam em Deus e o filho deles também não podia “perder tempo com isso”. Numa das brigas, o pai indagou a mãe sobre o que fazer com a insistência do filho em ir à igreja. “Mande ele ao inferno”, ela respondeu. José disse ter entendido com o tempo que o inferno era a casa onde morava com os pais e ele não sabia. Foi embora e deixou para trás os três irmãos que sobreviveram, de oito que nasceram. E foi assim que se despediu da família e do sonho de ser ator. Ele rodou as ruas sem rumo certo. Aos 11 anos trabalhou como palhaço num “pano de roda”, nome dado a circos pequenos. Ficou lá por pouco tempo e com a experiência decidiu que nunca mais pisaria num picadeiro de novo. “Trabalhar em circo é muito ruim. Você sai com fama de ladrão, como aconteceu comigo”. Ele não sabe
9 explicar bem como isso aconteceu, mas afirma que é comum donos de circos fazerem isso com os funcionários. Logo depois, um tio o convidou para ir para Goiás trabalhar com ele. Sem motivos para ficar, aceitou e viajou mais de 2.700 Km para a nova terra. Com esperança de ter uma vida melhor, trabalhou por meses numa roça. Foi lá que conheceu a única paixão que teve, Graça. Ela era sua prima. Bonita e com idade parecida, Gracinha arrebatou o coração do jovem tímido. A paixão tornou-se seu segredo escondido a sete chaves, já que não tinha coragem para se declarar. Durou pouco. A prima se engraçou por outro rapaz. Desiludido, decidiu que não queria mais se casar. Nunca mais namorou. Nunca mais se apaixonou. Nunca foi beijado e nunca beijou ninguém. José chorou e resolveu ir embora. Depois de tanta desilusão, pegou o caminho para Brasília. Ele queria falar com o presidente e conseguiu quando esteve com Collor. Também com governadores, deputados e aspirantes a políticos. Aos 18 anos, elegeu o Gama como morada. Hoje diz só sair de lá morto, já que foi nomeado pela comunidade como parte da história da cidade. Antes do acidente, Pirulito trabalhava de domingo a domingo. Folga, nem pensar. E nem queria mesmo! Mas com o rosto envolvido por ataduras, fica difícil. Não pode pegar sol, e por isso carrega o guarda-chuvas por onde vai. Essa é a primeira vez que fica longe da labuta. O médico disse
que ele só poderia trabalhar palhaço novamente 45 dias após o acidente. Obedeceu, mas isso não o fez ficar em casa. Ele visita os clubes, vai aos eventos e jogos de futebol feitos para arrecadar alimentos com o desígnio ajudá-lo, e concede entrevistas. Muitos passaram a conhecê-lo depois do acidente. Por causa dessa “fama”, ele diz ter percebido que é como palhaço que conquistou a admiração que queria. E foi a partir daí que resolveu que não mais se identificaria como José. Nem mesmo em casa, quando tira a pintura do rosto e a roupa colorida e folgada, deixa de ser palhaço. Está quase sempre com o nariz de plástico vermelho sobre o rosto, mesmo que as queimaduras causem certo incômodo. Ainda que tenha a liberdade de ficar sem, faz questão de continuar com o nariz. Assim, todos podem o reconhecer e diferenciar de um anônimo, entre tantos outros. Ele é um homem solitário. E diz não ligar pra isso, apesar de estar gostando muito da nova fase que tem vivido em que os vizinhos o visitam constantemente. Quando era só o José, isso não acontecia. Por isso, onde quer que vá, gosta de sublinhar, é o Pirulito. Nos dois cultos de domingo que frequenta religiosamente, vai vestido a caráter. Os pastores não se importam e até ajudaram na campanha de doações para que não ficasse sem mantimentos. Se tiver de ir comprar algo, pegar ônibus, ou mesmo frequentar o jogo de futebol, a roupa é a mesma: botas pretas, uma barra da calça maior que a outra, nariz vermelho, pintura no
10 rosto, e um misto de cores vermelhas, azuis e amarelas. Mas, e se é o enterro de alguém? “Vou de palhaço também. Mas fico quietinho, respeitando o momento”. Essa vestimenta José usa desde os 19 anos, quando resolveu seguir a profissão. Ao chegar a Brasília, aos 18 anos, foi lavador de carro numa concessionária. Não deu muito certo. Resolveu então comprar guloseimas, estalinhos e picolés e sair vendendo por aí, caracterizado como Pirulito. Começou em frente a escolas, e depois a caminhada foi ganhando novos lugares, como clubes e jogos de futebol, onde vende também balões de gás hélio e algodão doce. Ser palhaço era o mais próximo que havia chegado do sonho de trabalhar em novelas, como ator. Ainda assim, diz-se feliz. Palhaçada e política Pirulito sorri pouco. Os lábios ainda machucados atrapalham esse movimento. Mas quando fala dos políticos que conheceu, esquece a dor e mostra os dentes. Lembra de cada detalhe sobre quando foi apresentado a Collor, Paulo Octavio, Itamar Franco, e até Lula, que na época ainda era deputado. Porém, o seu preferido é mesmo José Roberto Arruda. “O melhor governador que Brasília já teve”. O ex-governador renunciou ao cargo por causa das denúncias de envolvimento no esquema de corrupção conhecido como Caixa de Pandora. Apesar disso, Pirulito não abre mão de tecer elogios sobre Arruda e de relembrar, várias vezes, a ligação que recebeu dele, ainda no hospital, prometendo que assim que voltasse de São Paulo o ajudaria no que precisasse. A promessa ainda não foi cumprida. Entre os poucos hobbies que tem, um é mais que especial para o palhaço. Agora, então, que ganhou uma pequena TV de tubo e uma antena externa, daquelas que ficam posicionadas em cima do aparelho, não perde uma. Deita, às 18h, na cama nova, e dali só sai quando a última novela acaba. Tem preferência pelas da TV Globo, mas
se tiver muita violência, desliga logo a televisão. Não sabe o nome de muitos atores, mas consegue se lembrar de Lima Duarte e Antônio Fagundes. Também não tem preferência por nenhuma. Gosta de todas, de forma igual. Antes, para assistir, ia à casa dos vizinhos. Quando José veio para Brasília, ele achava que de alguma forma poderia realizar o sonho de trabalhar como ator em novelas. Não sabia como nem onde, mas qualquer lugar parecia ter mais oportunidades que a cidade onde nasceu. Queria interpretar papeis, encenar com belas atrizes e, principalmente, ser famoso. Hoje não liga mais, já que, como diz, se tornou famoso mesmo. “Eu fiquei mais famoso como palhaço. Talvez se fosse ator nem seria tanto”. A fama de Pirulito faz o coração da irmã caçula vibrar mesmo de longe. Ela mora em Goiás e é a única familiar com quem mantém contato diariamente. Ao falar do irmão, Maria Concebida Cavalcante chora. Diz ter muito orgulho dele. Fala do susto que passou quando soube do acidente, pelos noticiários. Não poderia perder “o maior tesouro da vida” dela. Enquanto executa o ritual da ligação diária, João muda a fisionomia, sorri, fica com os olhos brilhando e pergunta, quase que gritando no aparelho, como está a vida “pelos lados de lá”. Se despede e fecha o celular pré-pago, de modelo antigo. Guarda-o no bolso e fica por alguns segundos em silêncio. Pelos lados de lá, não sabemos. Mas pelos lados de cá, Pirulito tenta apagar quase tudo o que o nome José lhe traz a memória. Enquanto isso, a ansiedade lhe toma pelo dia em que poderá trocar as ataduras pelas tintas. O palhaço Pirulito se despede mostrando o raro sorriso que, quem sabe, quando voltar a trabalhar poderá visita-lo mais. *** Na despedida, nos cumprimentamos. Digo: - Adeus, seu José. E ele diz: Até mais! Mas, José não. Palhaço Pirulito.
“Arruda é o melhor governador que Brasília já teve”
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