Caminhos nº2

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Caminhos a vida extraordinรกria de gente (quase) comum

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Editorial Você entra no ônibus, a passos lentos, enfrentando mais um dia de trabalho. Consegue, raramente, um assento para descansar os pés que trilham diariamente um caminho de luta para sustentar a si próprio e a família. Ao seu lado, um anônimo pede licença e se senta. Quem ele é? Quais histórias traz? Quais marcas, desejos e sonhos? “Caminhos”, caro leitor, o levará a conhecer melhor as pessoas que diariamente passam despercebidas (ou não) por você. As quais você não conhece, mas que fazem parte da sociedade. Essa é uma oportunidade de descobrir o que existe além do que seus olhos podem ver. Boa leitura!

Expediente Repórter: Lanier Rosa // Fotógrafo: Guilherme Assis // Orientadora: Karina Gomes Barbosa // Editoração Eletrônica: Rafiza Varão


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Respeito é bom e o Wildson gosta Aos 25 anos, ele tenta entender porque as pessoas ainda não conseguem respeitar as escolhas feitas sobre o próprio corpo. Entre tatuagens, piercings e outras modificações corporais, o goianense que gosta de falar mostra que por detrás de uma cara de mau pode existir também um bom coração


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“A dor enriquece a alma. Na vida, se você não sentir um pouco de dor, não aprende”

A luz entrava até a metade da escadaria a frente da pequena porta que dava para uma rua comercial movimentada. Depois dos primeiros degraus, era só escuridão indicando para um lugar desconhecido. Alguns passos surgem lentamente do negrume. Eram tênis estampados com listras de zebras. Cada vez que descia, algo era revelado. Calças escuras, camiseta preta e, mesmo sob um calor de 30º, uma blusa de frio, também preta. O comum para por aí. Dalí para cima, a pessoa que dá movimento a roupa não passaria despercebido numa multidão. Wildson Santos, 25 anos de muita história e opiniões. Apaixonado por filmes de terror antigos, HQs e livros sobre vampiros e arte. Simpático, sorridente e falador. Abriu a porta do local onde trabalha sem reservas e antes que fizesse as honras factuais, como a velha pergunta à visita se deseja água ou café, logo começou a desvendar as pinturas e desenhos que tomavam todas as paredes da pequena sobreloja na comercial norte de Taguatinga (DF). Explica o significado de cada caricatura e reclama que as pessoas fazem tatuagens ou cortes de cabelo sem ao menos saberem o que cada coisa significa. À primeira vista, uma pessoa comum assemelharia as ilustrações ao que seria a figura do demônio, já que chifres e dentes pontiagudos fazem parte da imaginário cultural cristão do que seria a aparência da besta. Wildson vai explicando cada uma delas com maestria e, logo em seguida, levanta a blusa e mostra a tatuagem incompleta que toma todas as costas. É uma máscara parecida as outras que estão expostas nas paredes, tem um semblante claramente abatido e vomita flores. Segundo ele, significa tristeza. No entanto, quem o vê assim, sorrindo e contando as histórias que já viveu, ou o que pensa e espera da vida, se esquece da tatuagem que retrata a tristeza e fica a se perguntar qual seria a ligação desse alegre

rapaz a esse sentimento que mistura amargura, desgosto e dor. Vindo de uma família de etnia indígena, por parte da mãe, e cinco gerações de trabalhadores circenses, por parte do pai, logo declara que sua origem foge do comum. A mãe, ex-tatuadora, admiradora do movimento punk e apaixonada por piercings. O pai, já falecido, trabalhava como palhaço e trapezista em um circo que viajava pelo mundo. Foi numa das apresentações pelo Brasil que o português Wellington conheceu Paula. Ela ia às apresentações, ele o deixava entrar por debaixo da lona do circo, sem pagar entrada. No dia em que o circo ia para outra cidade, Wellington a convidou para fugir com ele e viajar com o circo Vostkokt. Ela aceitou e se tornou uma das atrações: bailarina. Ainda pequeno, Wildson chegou a ser palhaço. Desde cedo, o filho mais velho do casal conviveu com a arte. Ele seguiu o gosto da mãe pelas pinturas. Além disso, é apaixonado por filmes de horror antigos. Essa predileção pelas películas de terror veio cedo e foi marcada em sua pele aos 15 anos, quando fez sua primeira tatuagem, o rosto do personagem do filme Hellraiser – renascido do inferno (1987), que trata de sadomasoquismo e dor como fonte de prazer. Entre o estúdio de tatuagem onde trabalha entre segunda-feira e sábado fazendo inserção de piercings ou esporadicamente tatuagens, e sua casa, no Recanto das Emas (DF), onde mora com a namorada há 1 ano e meio, fica a contradição de ter que sair durante o dia. Se pudesse, sairia mesmo só depois do pôr do sol. Prefere o frio ao calor da manhã ou tarde, mas não gosta de chuva. A noite, também há poucas pessoas na rua. São menos olhares de susto, preconceito ou julgamento lançados sobre ele. Há de se explicar. O que fica acima ou por detrás das roupas pretas são dezenas de tatuagens, que tomam seus braços, pernas, pescoço e rosto. Além disso, quatro implantes: dois na testa e dois no alto na cabeça,


7 assemelhando-se a chifres, além de dez piercings posicionados entre nariz, queixo e boca; nas orelhas, alargadores de 10 mm; a língua é cortada ao meio, como a de um lagarto e ao sorrir, mostra de longe seus dentes caninos afiados, como a de vampiros. Foi assim que Wildson decidiu ser diferente e, porque não, chamar a atenção. “Quem diz que não quer chamar a atenção dos outros está mentindo”. Ele gosta mesmo é que as pessoas parem para olhá-lo, apontem e até se assustem, mas quando isso toma vestes de preconceito, atesta que esse é o preço que se paga por ser diferente do que é pregado, como andar de terno. “Eu acho ridículo, por exemplo, quando existe preconceito a gays. Poxa, é o que eles querem e gostam. O que tenho a ver com isso? O movimento que eu participo usa uma maquiagem pesada e roupa feminina exatamente como protesto contra a homofobia”. Enquanto se veste, no quarto, fala do respeito que há entre os adeptos do gótico e as travestis, já que considera os dois como modificações corporais. Quando sai, está ainda mais diferente do dia a dia. Blusa colada ao corpo, com estampa de zebra, uma bota preta com um salto plataforma de 10 cm, calças coladas e um espartilho. Nas unhas esmalte e no rosto maquiagem. Tudo preto, exceto os olhos que são rodeados por uma sombra rosa.

Wildson é adepto do que é conhecido como body modification, ou modificação corporal. Segue a cultura Cyber gótica, que idealiza uma ideia futurista e a incerteza do que acontece ou acontecerá. Para ele, as modificações são formas de prazer e estética. O sofrimento que enfrenta quando realiza os procedimentos é apenas parte do que chama de aprendizado: “A dor enriquece a alma. Na vida, se você não sentir um pouco de dor, não aprende. Faz bem sentir dor, chorar um pouco. Sem isso, a gente não evolui”. E, diga-se de passagem, ele é mesmo um especialista nesse tipo de sentimento, seja por escolha ou falta dela. Aos 25 anos, deixa claro que não gosta de receber ordens e que é uma pessoa difícil de conviver. Não gostava do padrasto e não se dava bem com o tio e por isso, aos 16 anunciou para a mãe sua saída de casa. Ela não ligou. Por algum tempo, fazer tatuagens e piercings incomuns tinham um motivo certo: chamar a atenção da mãe. Missão frustrada! “Para ela, tudo era normal. Ela tem a cabeça muito aberta. Nem ligava!”. Pegou uma mochila com alguns pertences e foi. Não sabia para onde, mas não voltou atrás. Na época, tudo o que tinha eram os amigos e o gosto pela arte. Dormia em praças, em habitações dos “sangues bons” e até em casa de traficantes. “Uma vez os caras me ofereceram para dormir lá [na boca de fumo], e eu aceitei, mas um dia fui acordado a cacetadas”. Para sobreviver, continuava fazendo pinturas,


8 tatuagens e piercings. Era com esse dinheiro que se alimentava e comprava o que precisava, inclusive bebidas alcóolicas. Os 8 anos que viveu longe da casa da mãe, leva como experiência. Não foi fácil! Nem para ele, e muito menos para a namorada, que ficava preocupada cada vez que chegava a hora de dormir e ele não podia continuar na casa dela. Assim foi levando a vida. Entre amigos que o acolhiam até noites ao relento, vivia “na tranquilidade”, como gosta de afirmar. Meia-noite Quando o ponteiro se posiciona às zero horas no relógio, um novo dia começa. É a metade da noite, mas também o início do dia. O céu está escuro e, caso não seja lua nova, as ruas ganham iluminação natural vinda do céu. Mais fraca que o sol, mais forte que os postes. Foi pelo gosto de Wildson de sair somente quando o sol se esconde que ele acabou ganhando dos amigos o apelido de Meia-noite. Sair de dia, só para cumprir o ofício de bodypiercing ou para visitar os amigos. Também tem menos pessoas nas ruas, já que a multidão e o barulho o incomodam. “Quem curte o underground tem a aparência mais bizarra. Então, evitamos sair à noite. Somos mais inclusos. Não gostamos de multidão”. A escuridão da qual gosta fica mesmo nos objetos e no gosto pela noite. Wil, como é chamado pela família, é extremamente carinhoso. Às vezes se confunde com o número de irmãos, mas logo chega a uma conclusão: nove. Paula Santos, mãe de Wildson, casou quatro vezes. Dos 27 anos que viveu no circo, com o pai de Wil, aprendeu a respeitar as diferenças de cada um. Isso fica claro pela forma tranquila como vê as modificações corporais do filho. “O corpo é dele. O importante é ser feliz!”, afirma. A paixão pelas piercings parece mesmo ser de família, já que ela diz amar a

área e sonhar, assim como Wildson, em montar um estúdio futuramente. Já Rayane Maejima, que o máximo de modificação que tem são quatro mechas rosa pintadas nos cabelos, é casada com Wildson há um ano. Para ela, as modificações são secundárias. “Ele não é uma pessoa chata. Não está me incomodando. Então, está bom”. Mas para ela não é tão fácil assim acompanhar as cirurgias que o esposo faz como, por exemplo, no implante dos “chifres”. Ela ficou aflita e com medo. Tinha receio de como o procedimento se daria, mas ficou aliviada quando viu que era preciso somente cortes pequenos, de cerca de 3 cm cada, para inserir as bolotas de teflon. Até filmou a cena, tirou algumas fotos e no fim, a tormenta passou. O que a compensa é a diferença da imagem que ela passa para o que realmente é: “Ele é uma pessoa sincera, engraçada... uma pessoa muito legal. Todo mundo gosta dessa pessoa”. Ela só não apoia a futura modificação que Meia-Noite pretende fazer: pintar de preto todo o branco dos olhos: “Pra mim, isso é o extremo porque não tem volta. Se ele fizer, vou ficar com raiva. Não temos nossas coisas ainda e isso atrapalha”. Rayane acredita que as modificações corporais de Wil podem colocar barreiras na hora de comprar ou alugar uma casa, e até quando tiverem filhos. Não liga para a reação das pessoas quanto a eles, e sim de como o filho pode ser tratado por causa da figura do pai. Mas hoje, o que a incomoda mesmo é a bagunça que ele deixa pela casa: as meias e roupas espalhadas constantemente pelo chão. Ela também se irrita pelo fato de ele usar as roupas dela: corselet, espartilhos, maquiagem e brincos. “Às vezes, eu quero usar minhas coisas e ele não deixa, porque quer usar também”. Quando se conheceram, Rayane tinha 17 anos. A mãe, no início, se assustou com a imagem de Wildson, que apesar das poucas tatuagens, gostava de usar Kilts – saias escocesas – e longos dreads coloridos. Com o tempo, a sogra se acostumou. “Hoje é muito tranquilo. Ela é muito sangue B [bom]”, conta. Os dois resolveram morar


9 juntos porque Rayane não aguentava mais ver Wil vivendo de favor em casas de conhecidos e amigos. Sempre que não estavam juntos, a insegurança tomava conta do coração dela. Quando fala desse tempo, ela se desprende das lágrimas que pareciam velhas amigas de um passado recente e demonstra o sentimento de proteção que tem com o marido. Desde que saiu de casa, aos 18 anos, Wil dormiu em cima de paradas de ônibus e lares, como o do senhor “Chagas”, que ganhou esse apelido por causa da doença que tem. Em troca, ele ajudava Chagas a “dar um rolé” e ir ao hospital. Wil ri da situação, ela chora. Na ida para a casa da mãe de Wildson, ele brinca ao explicar o caminho: “É só descer, é tipo o caminho do inferno”, e solta uma de suas constantes gargalhadas. Quando está entre a família, numa pequena casa na mesma cidade em que mora, ele continua extrovertido, porém, mais quieto. Diante da mãe, o filho mais velho de nove irmãos mais parece um menino acuado. Brinca, mas não fala palavrões. Também não bebe ou fuma perto da mãe: “Por respeito”. Os irmãos e sobrinhas não se contentam ao vê-lo. Raynoma, a caçula, conta empolgada que, ainda aos 10 anos, já está calçando 39. Na despedida, uma fila se forma. Com tantas pessoas, cerca de quinze, seria mais fácil dar um adeus geral, mas não. Uma por uma, as irmãs e sobrinhas o abraçam e beijam. Já fora da casa, ele declara que se não existe carinho entre a família, tudo está perdido. “Tem que ser assim [carinhoso] com a família. Se não é assim, que sentido faz?”. Respeito e agressão Respeito, esse é o significado dos riscos inspirados na cultura Maia desenhados no rosto de Meia-noite. Três traços que se iniciam na testa, e após o intervalo entre nariz e boca, terminam no queixo. O desenho na face grita para os que o veem o que mais deseja das pessoas, ainda que goste de “causar” na sociedade. Quando morou em São Paulo, sentia que as pessoas eram mais tolerantes. Por haverem mais adeptos da modificação corporal do que em Brasília, ele afirma que as

pessoas tinham a cabeça mais aberta. Já na capital do Brasil, por ser um dos poucos com modificações tão visíveis, ele sente que o preconceito é mais intenso. “Em Brasília, as pessoas tem a mente mais fechada!”, conclui. Ele conta do episódio em que foi comprar um terno, entrou na loja e recebeu olhares de desprezo. Foi com o amigo à magazine da frente e se divertiu ao sair com várias sacolas nas mãos e ver a decepção dos vendedores da boutique anterior, que não lhe deram a mínima atenção. Não liga quando as pessoas assemelham sua imagem a de um demônio, como já aconteceu quando trabalhava como web designer. Ficou chateado, mas logo passou, principalmente porque o ex-chefe, meses depois, o pediu para voltar. Ele não aceitou. Sem respeito não há relacionamento, nem mesmo profissional. Will não acredita em Deus. Acha que a religião cristã é só mais uma das culturas vindas de outros países. Também não acredita no diabo, por entender ser criação do homem para tomar a culpa dos erros que todos cometem. “O ser humano tem que botar a culpa em alguém do que faz de errado. Eu não ligo se pareço ou não ao que eles acham ser o diabo. Eu faço o que acho legal! Se agredir a sociedade, está bom!”. Agressão! É o que deseja que sua imagem cause. Ele quer abalar, de alguma forma, os que se impressionam com as modificações corporais que faz. Quer chamar a atenção da sociedade, convencendo-as de que a imagem nada tem a ver sobre o que alguém realmente é. “Estamos no Brasil. Aqui, quem tem tatuagem é considerado vagabundo. Se você veste terno, é o cara ideal, mas se anda largado as pessoas acham que você não faz nada que preste”. Com Wildson nunca foi assim. Já trabalhou como designer, montando cestas básicas, como assistente em uma academia de ginástica, como webdesigner, panfletando, como serígrafo e até

“Quem diz que não quer chamar a atenção está mentindo”


10 fazendo e vendendo desinfetantes, além das pinturas e tatuagens que ainda faz para se sustentar. “Eu sempre ajudei muito minha mãe. A gente tem que ajudar um ao outro. Meu pai faleceu cedo [tinha 7 anos], então fiquei eu. Não tive muito aquela infância massa, sabe? Tinha que ajudar em casa, né?!”. Não poderia ser diferente para alguém que nasceu no dia 1º de maio, quando é comemorado o dia do trabalhador. Quando mais novo, ele morou com a família em vários estados como Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. Nessa época, ainda não era modificado, só tinha tatuagens. Mas foi em Brasília que Wildson conheceu Felipe Klein, um dos primeiros a praticarem a body modification extrema na capital. Filho do ex-ministro de Transportes Odair Klein, Felipe se jogou do prédio em que o pai morava, em 2007. Em novembro de 2012, outra pessoa que admira pelas modificações corporais também morreu. Conhecido no Brasil como homemtigre, Dennis Avner, de 54 anos, deixou fãs por todo o mundo entristecidos. Wildson foi um deles. Isso o fez opinar que talvez as pessoas que realizam essas modificações extremas, como ele, tenha algum distúrbio, e que a morte pode ser uma saída para a sociedade que tanto repudiam: “A vida é meio trash. Não dá oportunidade para as pessoas”. Morrer, apesar de certo para todos, não está nos planos de Wildson já que para o futuro espera fazer exposições de suas pinturas, continuar tocando em festas góticas como DJ e montar um estúdio próprio para aplicação de piercings e tatuagens. Um dia, quando estiver financeiramente estruturado, quer também uma casa e filhos, com a esposa Rayane. Mas o que ele espera mesmo é que as pessoas respeitem as escolhas alheias. “Fazer o que gosta, se sentir feliz. É assim que as pessoas tinham que pensar. Eu faço isso porque eu quero. Não estou machucando ninguém, não estou fazendo mal a ninguém”.

“Estamos no Brasil. Aqui, quem tem tatuagem é considerado vagabundo”


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