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Prólogo Berlim. Meia-noite. Março de 1941.
— Então, Kunz? Você acha que é verdade? — Bobagem. Contos de fada. Histórias de avó. — Mas o Führer1 deve acreditar também. — O homem mais jovem insistiu. — Caso contrário, para que esses esquadrões secretos sobre os quais não devemos saber nada? — Está criando mais trabalho, não é? Preparando-se para os dias que estão por vir. O amigo assentiu com a cabeça, mas ainda parecia nervoso. Tinha a sensação de que estava sendo observado. Pior ainda: tinha a sensação de estar sendo farejado, até experimentado. A rua estava silenciosa, e certamente ninguém ousaria enfrentar o SS2, se soubesse o que era melhor para eles. Mas mesmo assim... Ele tinha certeza de que alguém estava à sua espreita. Kuns acendeu um cigarro. A conversa do companheiro o irritava. Estava pensando em pedir transferência para uma patrulha diurna. O barulho de vidro sendo quebrado em um beco próximo fez com que os dois homens se assustassem, apesar de serem bem-treinados. Kunz puxou a arma. — Quem está ai? Nenhuma resposta. Ele fez um sinal para o companheiro ficar de olho na rua enquanto se aproximava da viela. O mais jovem assentiu, detestando o fato de estar 1
Führer: governante, dirigente no idioma alemão. Foi assim que Adolf Hitler se denominou e passou a ser chamado na Alemanha, termo que ficou conhecido para designar o líder máximo do Reich e do partido nazista. 2 Schutzstaffel (SS): organização policial ligada ao partido nazista alemão. (N.T)
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tremendo, desejando não ter escutado as histórias, desejando, mais ainda, não acreditar nelas. Kunz dobrou a esquina, torcendo para encontrar alguns anarquistas embriagados, ou talvez alguns judeus espertinhos. Ficou decepcionado quando só viu uma menina. Estava prestes a repreendê-la por ter quebrado alguma coisa, mas o sorriso brincalhão dela o impediu. Ela era muito jovem, talvez tivesse apenas quinze anos. O cabelo preto e liso ia até os ombros, um corte que tinha sido popular anos antes. Ele tentou imaginar por que uma menina com roupas tão modernas não usava um penteado com mais estilo. — O que está procurando? — Ela perguntou com um sorriso estranhamente compreensivo. Kunz sentiu o estômago contrair e os ouvidos serem tomados por um delicioso zumbido. A menina se aproximou, com os olhos brilhando de modo hipnótico. Todos os pensamentos de cuidar de seu posto sumiram. Ela colocou a mão no rosto dele. O toque era frio, quase líquido. Ele pensou que seu rosto poderia derreter naquela mão pequena. Não sabia se estava inclinado na direção dela ou se a menina o estava atraindo para frente. Ele esperava estar no controle. A poucos centímetros dos lábios dela, ele sentiu um calor contra seus olhos semicerrados. Levantou um pouco a cabeça e viu que os olhos da menina estavam inchados e vermelhos, brilhando. Tentou gritar, mas a dor lancinante e repentina em seu roso transformou o grito em sussurro. Tentou correr, mas sentiu a carne ser rasgada de seu crânio. A mão dela havia se transformado em uma garra que o segurava com força. Ela sorriu de novo, e algo parecido com uma gárgula apareceu em seu rosto crescendo sob a pele. Presas compridas e brilhantes surgiram das gengivas e no breve momento de lucidez em que percebeu que o companheiro tinha razão, ele sentiu os dentes perfurarem seu pescoço e começarem a sugar seu sangue. O jovem policial estava suando, apesar do frio que fazia. A sensação de estar sendo observado era muito forte, e ele tinha certeza de que o olhar estava em sua pele nua, e não no uniforme impecável, e tentou se controlar para não tentar afastá-lo. — Kunz? Kunz, porque está demorando tanto?
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Sua voz ficou fraca. Tentou imaginar se estava no meio de uma piada. Sabia que Kunz não era o único a pensar que ele era um tolo por acreditar em vampiros, e seria uma atitude comum a Kanz reunir-se com os outros para rir à sua custa. Se ele demonstrasse muito medo, nunca parariam de perturbá-lo. Ajeitando os ombros, ignorou o estômago embrulhado e dobrou a esquina. — Kunz! O que… Ele chegou bem a tempo de ver o corpo vazio de Kunz cair na calçada como uma boneca de pano. A vampira sorriu. Havia sangue escorrendo de seus dentes. — Você parece assustado. Se servir de consolo, ele estava com gosto de medo. Mas vocês todos são assim. A qualidade da comida alemã caiu muito desde que o Terceiro Reich teve início. O policial assustado ergueu a arma. — Vampira! Vampira! — Sim. Você é um bom observador. Porém ela não havia dito nada. A voz tinha partido de trás dele. Uma mão esticou-se e entortou a arma dele. O policial virou-se e viu um vampiro. Um olho vermelho piscou. — Mas vocês… Vocês nunca caçaram em pares. — O jovem disse automaticamente, repetindo as palavras ditas por sua avó. Os vampiros riram. — É nosso aniversário de namoro. As coisas perderam um pouco a graça, então resolvemos procurar um pouco de emoção. Ao dizer aquelas palavras, o vampiro afundou as presas no pescoço do policial, dando um gole demorado. Ele se afastou, sentindo o sangue na boca ao tapar os lábios do rapaz aterrorizado para impedir que ele gritasse. O vampiro balançou a cabeça como se estivesse arrependido. — Um buquê perfeitamente terrível. Mas não quero desperdiçar nada. E continuou sua refeição. A vampira observou, sorrindo, enquanto a vida era sugada dos olhos do policial. Enquanto ele perdia a consciência, viu algo estranho nos olhos dela: medo. Ela não estava mais olhando para ele.
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O vampiro soltou o policial e ele caiu com um baque forte que fez com sua mandíbula se quebrasse. — Gunther. Paloma. Eu não esperava encontrá-los em Berlim. Era um homem bonito, judeu, que confrontava os vampiros. Havia uma estaca de madeira presa em sua coxa, mostrando que ele era um caçador de verdade, um homem experiente. Os caçadores nazistas eram de uma raça muito diferente. — Leon, nós também não esperávamos vê-lo. — Gunther, com o rosto retomando os traços humanos, pareceu verdadeiramente preocupado com o bem-estar do homem. — Aqui não é mais seguro pra você, certamente? — Eu e os nazistas fizemos… Acordos. Os vampiros se entreolharam, observando a atitude e o rosto sério do caçador com olhar irritado e envergonhado. — Mas você poderia partir. — Paloma insistiu. Ela não conseguia tirar os olhos da estaca. — Se pensa nisso, então não os conhece. — Leon, Leon, não somos mais seu inimigo. Você deveria saber disso. — O tom de voz de Gunther estava tranquilo e apaziguador. — Eu sei. Mas vocês não podem ajudar a mim e à minha família. Não o suficiente. Sinto muito. Com uma velocidade surpreendente, ele segurou o cabelo de Paloma. A atitude fez com que os vampiros se assustassem, e eles gemeram, partindo para o ataque. Leon enfiou a estaca no coração de Paloma, transformando-a em pó que fez engasgar o policial que estava morrendo, enquanto o terrível uivo de Gunther fazia seu ouvido doer. Ele tentou engatinhar para longe da briga, mas estava fraco demais. Leon segurou os cabelos de Gunther com uma das mãos e o apunhalou com a outra. O pó atingiu os olhos do policial. Leon rapidamente analisou as feridas do rapaz e balançou a cabeça. — Eu não o salvaria nem se pudesse. — Ele murmurou. — Trabalho rápido, Arunfeld. — Outro policial, usando uma cruz de ferro bem-polida, aproximou-se de Leon. — E você disse aos caras que os vampiros velhos davam mais trabalho. Leon enfiou os cabelos dos vampiros no bolso, sem olhar para o policial. 4
— Talvez eu os tenha pegado de surpresa. — Ah! Quer dizer que eles pensaram que você se aliaria a eles e não a nós? Ou será que vocês, caçadores, não se importam tanto com os vampiros mais velhos? É engraçado como vocês se conhecem tão bem. Por que não fazem festas? Leon sorriu, sabendo que era o que devia fazer. — Bem, o Reich valoriza você, Arunfeld. Você fez um bom trabalho treinado Nachtspeere. Você e sua esposa, claro. Que grande perda. O homem que estava morrendo viu os dedos do caçador se curvarem, como se desejasse uma arma. — Pediram… a nós… que servíssemos nosso país. — Leon disse. — Conhecíamos os riscos. Os olhos do policial brilharam. Era difícil saber se ele estava se divertindo ou se ficara ofendido. — Deveríamos cuidar destes corpos. — Leon disse, observando os olhos do homem que morria se fecharem. — Verdade. Uma perda lastimável. Mas esse castigo dos vampiros já é quase passado. O policial partiu na direção do corpo de Kunz enquanto Leon se inclinava sobre o homem quase morto e o colocava em seu ombro. A última coisa que o jovem policial escutou antes de seu suspiro final foi um sussurro e o início de uma oração que, ele tinha certeza, era o que aqueles judeus malditos diziam a seus mortos. Soube bem que não era para ele.
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Capítulo 1 Trem de Berlim a Basiléia. Agosto de 1940.
Havia três jovens oficiais da SS no vagão-restaurante, todos competindo para comprar uma bebida à jovem loira. Não sabia ela que um dedo de álcool antes de dormir fazia muito bem? Brigit sorriu, tomando o cuidado de não olhar nos olhos de nenhum dos homens, corando. Mas aqueles sujeitos não eram o problema; o problema era o outro, levemente superior, passando por eles, fixando nela aquele olhar insistente. Ela percebera que ele a olhava menos de cinco minutos depois do embarque, e o olhar tinha sido demorado o suficiente para causar desconforto. Agora, estavam ali de novo, frios e impassíveis. Seja lá o que ele sabe, é demais. A sensação de medo tomou conta dela, mas ela a ignorou e com delicadeza continuou desvencilhando-se da atenção carinhosa porém insistente dos jovens. Talvez o sargento simplesmente não gostasse de ver homens flertando com uma menina irlandesa e tola. Se iam dispor de seu tempo de folga, que fosse com boas opções alemãs. — Cavalheiros, por favor, deixem a moça voltar para seu vagão. Os senhores perceberam que ela não quer beber. A voz dele era baixa, porém autoritária, com um toque de arrogância. Ele esboçou uma expressão que parecia um sorriso, mas seus olhos não revelaram nada. Os homens olharam para ele – afinal, ele era apenas um sargento. Mas mesmo assim se afastaram um pouco de Brigit para verem sua reação. Ela hesitou, sem saber como participar daquele jogo. Poderia dizer, talvez, que uma bebida seria muito agradável e torcer para o sargento ir embora, pensando apenas que ela gostava de provocar. Ou podia fingir estar grata por ele e 6
aproveitar a oportunidade para a solidão que estava sentindo. Ela só esperava que ele não a acompanhasse, e que não suspeitasse de nada, por mais improvável que isso fosse. Não ofenda nenhum deles. Você consegue fazer isso. Ela lançou um largo sorriso. — Está um pouco tarde. Vocês podem me dar licença esta noite, para eu me despedir? A doçura na voz e o brilho nos olhos mostrou a eles que nem tudo estava perdido, e que enquanto ela e eles estivessem juntos no trem, as chances eram grandes. Eles desejaram um bom descanso a ela de modo efusivo. Se fosse em outra ocasião, ela teria rido. Ela fez um meneio de cabeça de modo levemente agradecido ao sargento de olhar frio e passou por ele, fazendo com que ele simplesmente devolvesse o olhar. Ele permitiu que ela desse alguns passos antes de segui-la. — Fräulein3, — ele disse — um momento, por favor. Droga. Ela não sentiu nada nele que parecesse perigoso, mas havia meses que não conseguia confiar em seus sentidos. Certamente havia algo nele que indicava que ela precisava se preocupar. Possivelmente havia sido passado um alerta para que tomasse cuidado com alguém com a mesma descrição que ela. Ou, claro… ela desejou haver uma maneira de descobrir e de saber exatamente quão detalhado esse alerta tinha sido. Ela tentou perceber algum sinal de irritação no rosto dele ao dar um passo para trás contra a parede do corredor assim que ele se aproximou. Por sorte, ela ficou bem diante de um painel. Ele não conseguiria ver o reflexo, não se quisesse tomar cuidado. — Algum problema? Ela inclinou a cabeça e olhou para ele. A pergunta deveria confundir, ou mesmo acalmar. Ou, no mínimo distrair. Mas não pareceu funcionar. Não bem o suficiente, na verdade. 3
Fräulein: moça, senhorita.
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— Você é muito jovem, Fräulein. Havia quase certo desdém na afirmação, mas que podia ter diversos sentidos. Brigit tentou não alterar sua expressão. Ele sorriu de repente, surpreendendo-a. — Sou o Sargento Maurer. — Disse com o tom de voz tranquilo, mas os olhos ainda alertas. Ela procurou respirar. — Você deveria ter cuidado, sabe… Viajando assim… Sozinha. Não havia como não perceber a ênfase naquela palavra, ou o breve sorriso. Brigit inclinou a cabeça, curiosa. — Talvez eu queira dizer “desprotegida”. O forte desejo de mostrar a ele exatamente como ela era capaz de se defender surgiu dentro dela. — Não se pode sentir desprotegida com tantos policiais a bordo. Havia apenas meiguice e sinceridade em sua melódica voz, mas Maurer não parecia feliz nem lisonjeado. Mas tinha sido enganado? Ela percebeu que ele queria tocá-la, e ela desejou que ele a tocasse, desejou que ele encontrasse uma desculpa para pousar a mão em sua pele. Talvez ele pensasse melhor, perdesse a coragem e recuasse. Talvez pensasse estar errado. Poderia não ser o que ele esperava que fosse. O arrepio do corpo dela não era o frio da mitologia, o frio da morte. Era um tipo de frieza agradável, e não totalmente não humana. Para tocar, ou ainda melhor, ser tocado por Brigit, era como afundar a mão em uma tigela de creme de leite. Um homem podia adorar e se envolver naquela doçura. Não desejaria sair dali. Era um toque que ela podia controlar, mas por mais frio que fosse, era também calmo. Uma promessa, uma ideia de conforto, por mais ilusória que fosse. Ele não a tocou. Em vez disso, fez um movimento com a cabeça, indicando que ela deveria continuar andando. Com as mãos nas costas, ele a acompanhou até a porta de seu vagão. Ela se virou para ele, com um sorriso iluminando o rosto. Adoraria mostrar meu outro sorriso. Aquele que deixaria seu rosto pálido e que causaria um grito antes que eu pudesse me aproximar e… — Estamos em épocas perigosas, Fräulein. Uma moça como você deve ser cuidadosa. 8
Brigit jogou os cachos loiros para trás e olhou para ele com as sobrancelhas arqueadas – a aventureira confiante de dezessete anos, aproveitando a viagem de volta para casa. — Obrigada, posso cuidar de mim. Ainda educada, até simpática. Ainda agindo com extremo cuidado. Ela escorregou a porta do vagão para fechá-la e se recostou nela, escutando o ritmo constante de passos dele ao caminhar pelo corredor. E pensamos que isto seria fácil demais. Não era nada fácil, tendo tantas minas das quais desviar. Mesmo sem querer, ela causava escárnio e inveja nos outros viajando em um vagão sozinha, vestindo roupas caras e sob medida, possuindo tanta beleza. Ela parecia uma moça rica e arrogante, abusando de excessos. Nem mesmo o fato de ser irlandesa ajudava. Ela era um mistério em muitos aspectos. Ela olhou ao redor no vagão escuro e silencioso, observando se tudo estava nos devidos lugares, vendo se o casaco azul ainda estava pendurado acima do espelho. Havia algo nas dependências eficientes e lustrosas do trem que a deixava irritada, apesar dos diversos confortos. O dinheiro entregue a Reichsbahn4, a certeza da superioridade dos trens deles, tudo parecia indicativo da ideia arbitrária que a levara até ali, observando, esperando, pensando. — Os trens ingleses são mais quentes, independentemente do que digam. Ela não costumava falar sozinha, mas o som de seu verdadeiro e repentinamente admirado sotaque britânico serviu de leve conforto. Era a única coisa próxima a ela que ainda era familiar. E, assim, ela se sentia menos sozinha. Quase ficou admirada com a velocidade com que seu mundo havia mudado e se despedaçado. Dois dias. Uma coisinha de nada. Ou dois dias, nove meses e um ano, para ser mais exata. De qualquer modo, o tamanho da mudança era mais fácil de suportar quando misturado ao medo. Não, despedaçado, não, não é justo. Seu mundo real, seu mundo total, estava esperando-a, e ela conseguia senti-lo. Eamon. 4
Empresa estatal que controlava as ferrovias na Alemanha. (N.T.)
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O querido nome ecoou em sua mente, e ela não ousou nem mesmo sussurra-lo. Tinha de manter o controle. Os olhos evitaram o compartimento acima de sua cabeça, onde a carga precisa e volátil que levava estava guardada. Verificou a porta de novo para ter certeza de que estava trancada. Não que aquilo fosse um tipo de segurança, mas até mesmo as ilusões eram bem-vindas naquele momento. Brigit sentou ao lado da janela e tirou os sapatos. Esfregando os pés, ela abriu a cortina apenas o suficiente para olhar para fora. Concentrou-se em afastar os pensamentos e admirar a paisagem rural à noite. Seus olhos bemtreinados conseguiam discernir a beleza em toda aquela escuridão. É curioso ver quanta luz pode existir na escuridão quando se sabe para onde e como olhar. Curioso foi também o fato de ela ter se surpreendido com a própria surpresa. Se havia algo que sabia bem, era a rapidez com que um grupo de homens conseguia destruir o outro. Ela e toda a sua espécie sobreviveram em meio à destruição. Além disso, ela própria havia causado muita destruição, e não havia como negar. Não era a primeira vez em que seu tapete havia sido puxado, mas dessa vez era diferente. Agora não sou só eu. Nem estava terminado. Nunca em sua longa vida ela estivera diante de um perigo tão grande, uma situação na qual grande parte de sua força e de suas habilidades teria de ser canalizada de uma maneira não satisfatória, no mínimo. E se fracassasse... Não posso falhar. Imitarei a atitude do tigre, aguçar o olfato, conseguir o sangue. Não existe outra escolha. Ela repetiu em voz alta, tentando assegurar-se. Ela se lançaria a isso, esperando o melhor. De Berlim a Basiléia, na fronteira suíça; passando pela Suíça, e pela França de Vichy5 e até Bilbao; um barco para a Irlanda; um barco para o País de Gales, um trem para casa. Ela ordenou na mente as etapas de sua viagem como dominós. Era mais fácil aplicar a lógica fria aos afazeres do que pensar 5
Durante a ocupação alemã (1940-1944) parte da França foi controlada pela Alemanha e o restante, com capital em Vichy, era administrado pelo governo francês liderado por Henri Philippe Pétain. (N.E)
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nos detalhes como a extensão da viagem, as muitas horas de luz do dia que durava o verão europeu, os atrasos característicos das viagens em tempo de guerra, por mais determinados que estivessem os novos governantes para manter as coisas em um estado normal e eficiente, e a presença de guardas armados por todo trem. Se ao menos ela soubesse que ele sabia. O que poderia entregar sua condição? Ela parecia respirar, corar, os cabelos brilhavam e os olhos também. E ele não era um caçador; não era treinado na fina arte de detectar. Não era capaz de discernir a pele, o toque, o sussurro. E é preciso ser um de nós para conseguir ler a história em nossos olhos. História. História confusa, irritante. Lições aprendidas sem parar, nunca aprendidas de fato. Ainda assim. Não terminou. Nada terminou. A dois vagões de distância, ela pôde escutar o clique-clique rítmico das botas e suas passadas. Controlou a grande impaciência, a raiva pela ousadia nazista. Como se atreviam a patrulhar corredores a noite toda, como se o trem fosse um prisioneiro. Ela supôs que eles se gabavam por estar oferecendo conforto e segurança para os passageiros ligeiramente intranquilos. Eles que, àquela altura da viagem, era quase todos alemães, aproveitando a certeza confortante do poder da noção e da justificativa absoluta para a violência e desespero que estavam infligindo aos vizinhos fracos e insolentes. Entretanto por mais seguros que estivessem diante da guerra, todo cuidado era pouco. Além disso, aquela marcha constante dava aos soldados uma sensação de importância. Seus irmãos estavam controlando a Polônia, haviam derrubado a França e agora estavam dominando a Inglaterra. Logo, eles também teriam mais domínio do que apenas aquele trem suntuoso. Mas até então, tinham de se auto afirmar da maneira que fosse possível, por isso patrulhavam. Irritantes. Brigit chacoalhou a cabeça, quase se divertindo com seu pensamento. Sua grande força, praticamente inútil. O demônio forte que ela tinha de acalmar e controlar. Sentiu o cheiro de Maurer voltando, com os passos lentos, mas sem parar, do lado de fora de seu vagão. Havia pouco tempo, bem pouco tempo, um homem como aquele já teria morrido. Naquele momento, ele era um homem a temer. Um homem. A se temer. Oh, Eamon, onde estou?
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Rápida e silenciosamente, ela vestiu o pijama de seda e se ajeitou na cama estreita. Talvez eles encontrassem uma desculpa para bater, talvez entrar? Em nenhum momento ela poderia ser vista fazendo qualquer coisa incomum. Sua situação já era absurdamente delicada. Ela não podia correr riscos.
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Capítulo 2 Trem de Calais a Colônia. Novembro de 1938.
Otonia sempre disse que crise repentina era algo que não existia. Como sempre, ela estava certa. Por seis anos os vampiros tinham visto essa possibilidade se aproximando, porém esperavam que as circunstâncias não se tornassem tão ruins. Mas a situação estava péssima. Quase duas semanas antes, eles realizavam suas atividades noturnas, aproveitando a vida. Agora, aquele grupo seleto estava em um trem indo para Berlim por Colônia. Independente do que Otonia dizia, parecia repentino. É fácil para ela falar mesmo. Ainda está na Inglaterra. Os cinco certamente bastavam. Exceto por Mors, que murmurava de um modo que Brigit estava começando a achar áspero. Ele estava animado. Mors adorava ação. Tinha sido ele quem insistira para que tomassem algum tipo de ação em 1916, quando as coisas estavam começando a ficar bem ruins, e continuou dizendo anos depois que se eles tivessem se antecipado, teria sido diferente. Brigit suspeitava de que ele estava certo. Mors era um guerreiro experiente. Gostava de luta e ter algo pelo que lutar. Ele piscou para Brigit. Ela sorriu e desviou o olhar, sentindo que ele continuava a observá-la. Mors era seu melhor amigo, além de Eamon, e o mais velho deles. Meu primeiro amigo de verdade. Ele era exagerado, mas indiscutivelmente poderoso, e ela estava feliz por ter a companhia dele na missão. Não que houvesse qualquer questão de sua participação; na verdade ele era o líder de fato, apesar de algumas pessoas no tribunal questionarem a coerência daquilo, temendo que ele pudesse ser reconhecido. Era um dos mais lendários de todos, com mais de duzentos anos de idade, com a cabeça raspada e brincos (os quais ele havia, pelo menos, removido temporariamente), ele era 13
diferente. Mas forte. Muito, muito forte. Conseguia se mover como um raio. Sua esperteza e capacidade de sedução eram a base da atração vampira. Era um mestre do caos controlado. Eles conseguiriam fazer aquilo, pois tinham Mors. Não que o restante deles não fossem bons. O pequeno grupo contava com apenas cinco integrantes, mas a força combinada deles podiam derrotar um exército. A questão é que não é isso o que vamos fazer. Brigit afastou o pensamento da mente como quem espanta um inseto. Não era apenas sua força física que estava em jogo, mas um acúmulo de inteligência e das habilidades deles. Conhecimento recebido. Isso salvaria o dia. Os milênios deveriam fazer, claro. Brigit sabia disso, assim como Eamon, assim como todos eles. A missão precisava daquele nível de poder. Havia uma nova pele na qual um vampiro entrava ao atravessar o limiar do milésimo ano de vida imortal. Uma camada extra de imortalidade o envolvia com parafina. Todas as centenas de milhares de noites formavam uma proteção sob sua pele, envolvendo todos os órgãos e todas as veias para matar um milenar, e poucos caçadores conheciam a fórmula. Poucos nem sequer acreditavam na atração de criaturas tão antigas. Parecia inacreditável demais para ser verdade. Eles não compreendem. Sempre pensam que é preciso ter força, sedução e ataque. Eles têm conhecimento de nossos amores, mas acreditam que se trata de atração sem fim, apenas. Não conhecem nada sobre nossa vida real. Para viver mil anos, não bastavam apenas comer bem e evitar estacas e facas de caçadores, ou acidentes envolvendo fogo e planejamento ruim. Era preciso cultivar uma forte motivação para viver. Nossos interesses se mantinham constantemente desafiadores, desenvolviam a mente. E havia o amor. Amor puro, profundo, de abalar as estruturas. Ele duplica o poder. A alquimia de tudo isso criava algo próximo de um vampiro onipotente. O mundo dos seres humanos costumavam ignorar a existência deles. O medo seria gigantesco. Mas significava que Eamon não poderia se unir a eles. Nem mesmo Padraic de Cleland. Ao lado dela, Cleland estava olhando pela janela com ar de determinação. Com a mão apoiada na coxa, ele tamborilava os dedos. Brigit 14
observou o movimento por alguns momentos, hipnotizada, e então voltou a se concentrar no nada. Cleland era considerado um exemplo de tragédia no mundo dos vampiros, uma descrição considerada ainda mais merecida porque ele não se importava com ela. Ele havia sobrevivido à perda do grande amor tanto como ser humano quanto como vampiro, e agora, com pouco mais de cem anos em um novo relacionamento, estava recebendo a ordem de deixa-lo, sem saber por quanto tempo. Não por muito tempo, eles haviam decidido. Os nazistas eram arrogantes, e essa fraqueza eles poderiam explorar com facilidade. Eles eram bem-preparados na arrogância humana. Um pouco de elogios cuidadosos e comentários bem-colocados permitiriam que eles se infiltrassem no grupo sem problemas. Os homens se tornariam oficiais, e as mulheres tomariam seus objetos, eles espalhariam sementes de discórdia, confusão e caos. Quebrariam a estrutura do grupo por dentro, e os nazistas não saberiam o que os haviam atingido. Mas Brigit tinha dúvidas a respeito de Meaghan. Ela não era muito adequada para aquele tipo de coisa. Ela olhou para Meaghan, que estava do outro lado, como sempre agarrada ao seu parceiro, Swefred. Eles eram milenares improváveis. Consequentemente, eram vampiros improváveis. Poucos vampiros se encaixavam na descrição feita pelos seres humanos, mas algo que todos tinham dentro de si era um demônio. E apesar de cada demônio ser um pouco diferente, era da mesma matéria infernal. Era o que dava a eles disposição e entusiasmo. Fazia com que ficassem famintos. Tanto Swefred como Meaghan eram calados, retraídos até, e bem mal-humorados. Swefred, pelo menos, tinha um ar elegante – alguma coisa no erguer de sua sobrancelha e em seu nariz levemente torto que o tornava interessante e fazia com que se tornasse atraente. Mas Meaghan, quando não estava calada, reclamava e agia de modo petulante. Brigit nunca gostava de nenhum dos dois. Todos no tribunal se davam bem, à maneira dos vampiros, e Otonia insistia para que isso ocorresse, mas em casa era fácil evitar Meaghan. Mas ali estava ela, bem à frente de Brigit. Eles estavam viajando havia apenas duas noites, e Brigit já se sentia impaciente. Não ajudava muito o fato de Swefred e Meaghan estarem tão próximos e tão carinhosos um com o outro. Não importava que eles tivessem de trabalhar separadamente quanto chegassem, pois Brigit gostaria que Otonia houvesse determinado que eles não devessem se tocar em público. 15
Era como levar um tapa na cara ficar observando os dois. Bem, espero que ela saiba o que está fazendo. Não havia muitas opções. Otonia não podia deixar o tribunal e parecia grega. Leonora parecia judia. E Ramça era totalmente egípcia. Não havia outros milenares na Inglaterra. Não havia nem mesmo outros deles na Europa, desde a última guerra. Então restava Meaghan. Ela era bonita, com certeza, com seu cabelo ruivo e enorme olhos verdes de gato. Mas parecia frágil. Brigit acreditava que os nazistas se interessavam mais por mulheres que demonstravam saúde, exuberância e potencial. Por outro lado, Brigit tinha de admitir que talvez Meaghan fosse à única entre eles que teria menos chances de levantar suspeitas de que era uma vampira. E isso era bom. Especialmente vantajoso também era o fato de os nazistas acreditarem que a Alemanha, e talvez o continente todo, estava livre de vampiros. Eles nunca pensariam que um grupo de vampiros pudessem ter o objetivo de causar a destruição deles. A guarda deles estaria abaixada. Mas o que tinham conseguido já deixava Brigit preocupada. Os vampiros que haviam procurado refúgio na Inglaterra estavam com medo. Um vampiro deveria se preocupar com os caçadores, mas era errado ter medo dos seres humanos. Isso atrapalhava a ordem das coisas. A Europa havia se tornado perigosa, estranha. Proibida. Cleand defendia ficar longe de lugares problemáticos. Na última reunião, ele perguntara a Otonia: “E você acha que realmente deveria fazer isso?”. “1919”, foi a resposta dada por ela. Sim. 1919. Ninguém podia acusar aquele annus horribilis de ser uma crise repentina. Os vampiros tinham visto o mundo dos seres humanos ruir muitas vezes. E por mais que gostassem do elixir que era o caos humano, com os demônios internos muito atraídos, havia certo caos exagerado. A passagem da Guerra Mundial havia trazido mais destruição do que os caçadores podiam causar. Aquela guerra havia prejudicado o estoque de comida dos vampiros, e teria repercussões em toda a geração de seres humanos; de modo que pela primeira vez desde aqueles anos terríveis depois da peste negra, houve fome entre os vampiros, o que inevitavelmente acarretou em conflitos, e depois outra grande e vergonhosa guerra entre vampiros. O pequeno quadro de milenares do 16
continente havia tentado acabar com a guerra, e foram impedidos, para a surpresa do tribunal britânico. Se uma coisa dessas havia acontecido uma vez, poderia acontecer de novo. O mundo dos seres humanos tinha se recuperado e até mesmo os problemas econômicos não pareciam impossíveis de superar, mas a ascensão de Hitler irritava os vampiros. Ele suspeitava que se preocupavam de modo mais intenso do que os governantes de seres humanos sobre como lidar com a tirania cada vez maior que pareciam almejar a aniquilação total. Então, dez dias antes, ocorrera a Noite dos Cristais6 e o fim da discussão. Otonia, que tinha visto a perdição da civilização humana tantas vezes, viu o vidro quebrado como um prelúdio dos corpos despedaçados. Decidiu que Mors estava certo ao querer intervir antes que outra guerra humana pudesse ocorrer e mais uma vez atrapalhar a fonte de alimentação deles, e ninguém discordou. Não era do feitio dos vampiros se envolver em assuntos dos seres humanos. Aquilo era diferente. Era a defesa do que os seres humanos e vampiros valorizavam – apesar de os seres humanos não considerarem entre as próprias delícias o status deles mesmos como alimentos necessários e deliciosos. Dessa vez, os vampiros estavam determinados a se antecipar à devastação. Mas eles tinham outro motivo mais pessoal para dominar e destruir os nazistas. A princípio, eles não tinham acreditado no que os refugiados estavam contando a eles. Era absurdo demais. Sim, os seres humanos sempre desejaram eliminar os vampiros, mas para aqueles que sabiam de sua existência, ficava claro que a erradicação era impossível. Uma meta sublime para um mundo diferente. Os vampiros podiam ser erradicados. O número de seres humanos podia diminuir gradativamente, o prejuízo que eles causavam seria mínimo, mas não teria como limpar a Terra deles. Mesmo que todo ser humano do planeta acreditasse neles, que soubesse que os vampiros estavam entre eles, de nada adiantaria. Talvez quisesse conhecer o mundo dos pesadelos. Mas ainda assim, refugiados tinham vindo da Alemanha, França, Bélgica, Áustria... e assim por diante. Poucos de cada país. Alguns estavam tão abalados que não conseguia aceitar a ideia de segurança, e logo se tornaram vítimas de caçadores europeus e até da luz do sol. Com o mundo deles transformado, eles não sabiam mais quem eram. 6
Ataque ocorrido contra a população alemã judaica e suas propriedades e negócios em 1938 (N.T.)
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Wolfgang, o mais velho, o último sobrevivente do orgulho tribunal prussiano, explicou: — Esses nazistas querem a purificação do sangue. Não basta arrancar os judeus, homossexuais e outros seres humanos de quem eles não gostam da Alemanha; eles querem erradicar os vampiros também. Somos um peso na sociedade humana e devemos ser expulsos. — Eles não parecem do tipo que acreditaria em vampiros. — Mors disse. — Está brincando? — Brigit perguntou. — Eles são obcecados, megalomaníacos que gostam de inventar histórias. Em que não acreditariam? — Os únicos que acreditam em nós são os pragmáticos que respeitam o reino das sombras. E a história. E nem mesmo todos eles conseguem pensar tão adiante. Não posso dizer que me importo. Isso deixa a caçada mais interessante. — Oh, eles acreditam em nós. Eles conhecem suas lendas. Treinam um esquadrão especial de caçadores. Clandestinos, nem mesmo todos os oficiais da SS sabem disso. É chamado de Nachtspeere. — Lanças da noite? — Otonia ficou confusa. — Certamente “estacas”... — Os nazistas gostam da ideia de lanças. E também esses caçadores. Vocês nunca viram nada como eles. — Não entendo. — Otonia disse. — Os Nachtspeere são bem jovens e tolos. Não têm mais nada na vida, por isso são as ferramentas mais valiosas para o Reich. Uma só visão. Disseram a eles que a cada morte de vampiro, eles traçam o caminho para um reino do Céu na Terra. O maior império já visto, porque não tem manchas. — Ignorando o resmungo de Mors, ele prosseguiu. — E eles foram ensinados pelos verdadeiros caçadores. E assim conseguiu atenção total deles. — Não sei como os nazistas encontraram os verdadeiros. Não me surpreenderia se eles se aliassem a alguns irlandeses, mas tomamos conhecimento apenas dos caçadores continentais. Possivelmente um ou dois deles surgiu e deu nomes. A maioria não se dispôs. Mas eles contaram alguns segredos; estabeleceram a base. Com algumas lições e um governo poderoso por trás deles, esse fanáticos retiraram todos os imortais da Europa. Eamon se inclinou para frente. 18
— Como você sabe de tudo isso? Como pode ter tanta certeza? — Eu quase não sobrevivi a um ataque em minha casa. Nosso tribunal foi destruído. Pensei que se tratava de um ataque qualquer – vândalos alemães. Nenhum caçador da Rússia usaria tais táticas sem arte. Fui para Berlim. Fui uma testemunha. Eu... eu peguei um. Um verdadeiro. Eu o torturei até que ele me contasse tudo. – Wolfgang levantou a cabeça ao escutar um sussurro. – Foi a única maneira que encontrei. Sua voz falhou. Ulrika, sua nova parceira e a última dos vampiros de Berlim segurou sua mão. Otonia tocou-lhe no ombro rapidamente, em seguida ficou em pé e observou o tribunal todo. — Então temos um inimigo de verdade. — Um inimigo que teve a sorte de não se meter com os milenares. — Brigit disse. — Podemos ajeitar isso. — Mors sorriu. ****
Eles haviam começado a entender o que os fugitivos quiseram dizer quando o buraco atracou em Calaias. Havia uma criança que nada tinha que ver com uma noite nebulosa de novembro. Meaghan sussurrou algo que apenas Swefred conseguiu escutar, e ele a abraçou e sussurrou em seu ouvido. Os outros três se ocuparam em comprar as passagens de trem. Queriam prosseguir a viagem rapidamente. A França parecia um local cheio de precauções. Atento. Apreensivo. Mas não o bastante, Brigit pensou. Ainda havia muita alegria. E um tipo de fé que ela não conseguia entender, um tipo de variação da certeza de que sempre as coisas ficariam bem, porque era assim que sempre ficava. Exceto quando não ficavam. Acredito que deveríamos agradecer pela constância. Ao passar pelos campos do interior, Brigit começou a sentir algo ainda mais irritante. Muitas daquelas pessoas sabiam, ou suspeitavam, de que os caçadores nazistas que agiam disfarçados estavam expulsando os vampiros da França. Eles aprovavam isso, gostaram disso. Uma França sem vampiros tinha sido o ideal durante séculos e agora tinha se tornado realidade sem peso para os franceses. Muitos tentaram imaginar quais outros benefícios os nazistas podiam trazer, contanto que não houvesse muita comoção. 19
Irritada, Brigit foi para os fundos do trem onde Mors estava sozinho, recostado ao portão de ferro forjado, observando a Inglaterra desaparecer em meio à névoa. Ele sorriu para Brigit. Ela sempre se divertia e se acanhava ao perceber que ele sabia exatamente o que ela estava pensando, e naquele momento não era diferente. — Bem, talvez eles não estejam tão errados. O que fazemos por eles na verdade? — Damos a eles elementos com os quais eles podem assustar seus filhos para que se comportem. — E pesadelos, não se esqueça deles. — Um pouco de terror faz bem a uma pessoa. — Certo. De que outro modo sabemos que estamos vivos? A risada de Brigit foi interrompida pela visão da torre de uma igreja. De estilo normando, e acesa com uma luz forte e laranja, ela irradiava certeza e solidez à cidade. — Senti uma leve vontade de fazer dez vampiros, apenas pra atrapalhar a ordem deles. Mors sorriu do modo mais malvado. — Está se sentindo com energia, não é? — E irritada. — Guarde isso. Vai precisar mais tarde. Ele queria dizer, e ambos sabiam, que ela tinha que tomar cuidado. Brigit tinha um tipo de fogo que ardia internamente que era uma fera única, separada do demônio. Um tempo afastada de Eamon não acalmava essa fera. Ela havia se mostrado duas vezes na vida, e quase a matara. Mors sabia como protegê-la, mas eles teriam de trabalhar afastados um do outro todas as noites. Brigit tinha confiança em seu controle, e na essência de Eamon que estava sempre com ela. Estava convencida de que seria o bastante. ****
O odor tomou conta dela como um objeto cortante assim que eles atravessaram a fronteira da Alemanha. Brigit cerrou os punhos com força, uma reação ao mar malcheiroso e também ao resmungo de Meaghan.
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Elas tinham de trocar de trem para ir a Berlim. Saindo da plataforma, Brigit sentiu como se estivesse passando por uma cortina de água gelada. Ela e Eamon já tinham viajado a Berlim para ver a estreia de Beethoven com uma nova sinfonia, e eles tinham se divertido. Havia alimento em excesso talvez, mas encheu bem a barriga para as noites frias de outono. Havia cafés agradáveis nos quais podiam ficar lendo jornais e saboreando deliciosos cafés. Havia certa agitação nas pessoas que não se via nos franceses, e certamente não nos queridos ingleses, mas não havia nada que deixasse um vampiro intranquilo. Aquilo era bem diferente. Tentando se controlar, ela sentiu o cheiro do frio, da ansiedade, e do que só se pôde imaginar sendo o cheiro de uma catástrofe iminente. Era Eamon, e não ela, que sentia as coisas prestes a acontecer, então ela acreditou ser apenas uma bobagem. Os outros, depois de torcerem o nariz e estremecerem, haviam retornado a capa profissional de indiferença. Exceto Mors, que estava flertando com uma bela jovem. Ela estava corada, mas parecia estar contente em ser observada. Boa sorte, meu amigo. O trem parte em dez minutos. As outras pessoas que esperavam, bem-agasalhadas com seus casacos de inverno, nada perceberam. Brigit observou todas elas. Apenas civis. Normais. Cansados, talvez, e impacientes com a espera pelo trem, mas nada de preocupante. Eram apenas pessoas. Simples, pequenas, comestíveis. Mas não muito deliciosas. A leve intranquilidade de alguns, o nervosismo de muitos outros, não era nada fácil de diferir. Brigit lembrou que poderia ser pior. E já tinha sido pior. A Guerra Civil tinha sido pior. E vários outros momentos. Talvez eu simplesmente não me importe com alimentos estrangeiros. Ela foi até o fim da plataforma e recostou-se no corrimão para ver melhor o trilho vazio. Em sua mente, ela voltou para Calais, atravessou o canal e foi para casa, para Eamon. Sentindo o perigo desse pensamento, ela se virou para o lado, para Berlim, para o refúgio que Ulrika havia descrito, e para a tarefa adiante. Fechou os olhos para reunir sua força. E então aconteceu. Como se tivesse olhado para dentro, viu a apreensão do demônio. Era algo parecido com medo. Tinha o poder de se alimentar de medo, apesar de geralmente escolher não fazer isso, preferindo obter força na sensualidade e no desejo. Brigit nunca havia pensando que o demônio podia perder a coragem. Ela decidira ser 21
corajosa. Não havia passado tantos anos aprendendo a controlar aquela fera interna para permitir que ela tomasse conta em seu momento de fraqueza. O medo dela alimentaria a fera, e isso ela não permitiria. A fera e ela voltariam para casa de novo, depois que o trabalho tivesse sido completado. Mors havia desaparecido, mas Brigit observou os outros três, tentando imaginar se eles tinham dominado seus demônios. Aquilo não era o tipo de coisa que ela podia perguntar. O demônio era a criatura pessoal de cada vampiro, a parte interior do ser naquele outro mundo. Eram e não eram eles. No mundo dos seres humanos, com seus rostos de seres humanos, era como se o demônio não existisse. Não que eles fingissem que ele não existia, mas, sim, que simplesmente não havia reconhecimento. Eles eram duas criaturas distintas, e nenhuma era humana. Brigit apertou as mãos contra os olhos, controlando-se. Quando voltou a olhar para frente, viu um homem observando-a com curiosidade. Ela inclinou a cabeça e sorriu para ele. — Estou com um cisco no olho. — Ah, sim. Inevitável. Mas as estações estão muito mais limpas agora, você não acha? — Oh, certamente. Será que ele pensava aquilo mesmo? A estação não parecia diferente das estações francesas e britânicas e era bem menos bonita também. No entanto, ela assentiu educadamente e caminhou até onde estavam os outros. Sua primeira conversa insincera na Alemanha. Tentou imaginar quantas mais havia antes que ela pudesse partir. Ao pensar nisso, quase sorriu, mas foi interrompida pela chegada barulhenta do trem. Mors surgiu atrás dela, assoviando. Ela se virou para ele com olhos questionadores. Ele piscou. — Tem um palito de dentes? — Sete minutos. Estou impressionada. E as marcas de dentes? Foram cobertas? Ele a levou para um canto mais escuro e levantou uma mão – uma unha se esticou e se transformou em uma lâmina – como uma garra. — Corte no pescoço. Por isso não há luta quando são pegos. Não sei por que os pais não ensinam essas coisas aos filhos.
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Ele abriu o casaco o suficiente apenas para mostrar à Brigit a bolsa da mulher. — Mais uma identidade de que você vai precisar, provavelmente. Pode agradecer depois. — Você é delicado. Então, um crime violento em uma estação de trem movimentada. Que chocante. E eu pensando que os nazistas haviam se estabelecido em uma base de lei e ordem. — Escandaloso, não é? Brigit hesitou e então teve de perguntar. — E o gosto? Mors tinha começado a caminhar para perto dos outros. Parou e se virou para olhar Brigit com certa resignação. — Bem, não viemos aqui por causa da comida. De fato. ****
O trem era insuportavelmente lento. Brigit esfregou o pulso distraidamente, depois olhou para a carca rosa que causara. Rosa. Sua pele ficava rosada sob o toque de mãos e dos lábios dele. O sangue que ficava parado sob sua carne surgia obediente para ele. Ela seguia o caminho da mão dele subindo por sua perna, por sua coxa. Ele apertava a face interna da perna na altura do joelho e ela gemia, agarrando os lençóis enquanto sua boca subia. Mais de seu corpo se abria para ele, para sua língua insistente. Uma parte de sua mente queria que ela prestasse mais atenção do que antes, porque aquela podia ser a última vez, a última vez em que se perderia em tão perfeito êxtase. Mas Brigit não queria pensar nessas coisas. A boca de Eamon agora subia por sua barriga, tomando seu mamilo esquerdo. Seus olhos, intensos e sensuais, olhavam para cima para ver o desejo no rosto dela. Era um olhar e um gesto que sempre a deixava mais excitada, e ela gemia sentindo a dor do querer mais. E havia mais. E mais. E ela não se importava com o que as pessoas pudessem pensar – não ia lavar o cheiro dele de seu cabelo antes da viagem. Mas ela ainda não ia partir. Ainda não. Segurou o rosto dele e concentrou-se na textura de sua pele, no brilho de seus olhos, no desenho de sua boca. Ela o 23
absorvera no momento em que o conhecera, mas queria memorizar seu rosto de novo. Mesmo por entre as lágrimas que não deixavam de marejar seus olhos. — Eamon. Meu Eamon. Meu amado. Ela acordou de repente, tentando lembrar se tinha dito aquilo em voz alta. Mas apenas Mors estava olhando para ela. Brigit desviou o olhar dele e afastou os pensamentos do sonho. Era mais fácil pensar em Mors. Mors era muito diferente dos outros. Quase todos tinham sido seres humanos belos e jovens, bem jovens. Poucos tinham mais de vinte e cinco quando transformados, porque a maioria dos escolhidos, tanto homens como mulheres, eram virginais e relativamente inalterados pela vida. Acreditava-se que Mors tinha quarenta anos. Talvez fosse mais velho, talvez mais jovem, era difícil dizer. Certamente tinha sido um soldado. Um general romano, acreditavam comum pouco de certeza. A maneira de empunhar uma espada, ou mesmo um par de espadas, era aterrorizante por seu poder e habilidade. Em momento ocasionais de intranquilidade, ele procurava caçadores com os quais brigar e desdenhava deles com a risada exagerada e fácil. Sua história não era conhecida, mas todos desejavam conhecê-la. De qualquer modo, o rosto demonstrava certa idade. E isso, na opinião de Brigit, fazia com que sua proximidade com quatro pessoas que tinham metade de sua idade parecesse estranha. Por outro lado, ele cobria a careca com um chapéu de feltro que usava inclinado e tinha uma maneira de vestir o sobretudo que fazia com que ele parecesse arrogante mesmo quando estava sentado em seu assento. Na verdade, longe de parecer bem mais velho do que os outros, ele simplesmente parecia ladino, poderoso, um homem que naturalmente atraía seguidores. Swefred e Meaghan existiam separadamente do grupo, Mors claramente não tinha interesse neles assim como eles não tinham nele, mas o que Brigit e Cleland podiam representar para aquele homem mais velho, com sobrancelhas ironicamente franzidas e arqueadas, e lábios que esboçavam um sorriso, era outra história. Uma história que despertava o interesse de observadores dispostos a especular. ****
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A parada deles seria a próxima, e Brigit estava impaciente. Quanto antes se estabelecessem, mais cedo eles poderiam começar. As instruções detalhadas de Ulrika para chegar ao local abandonado eram lembradas e ela se sentia agradecida por elas serem complexas, e por estar cansada e faminta. Significa que não havia capacidade para pensar no que Eamon podia estar fazendo naquele momento. A distração ocorreu na forma de um odor que chamou a atenção. Um jovem, meio e sedutor, passou por eles no caminho para o banheiro. As cinco pessoas se voltaram para ele, intrigadas. Um espião, Brigit pensou, acreditando que ele era belga. E também um virgem, ou pelo menos pouco experiente. Estava a caminho de encontrar uma mulher em Berlim. O desejo e a ansiedade ficavam claros nele. Uma possível boa refeição entre todos os alimentos sem sabor que eles haviam encontrado até então, e ele teria de ser liberado. Mors cantarolou: “será um feriado loooongo”. ****
Apesar de ser tarde, a estação estava cheia de pessoas e ninguém notou o atraente e bem-vestido grupo de cinco pessoas que, apesar de se sentarem juntos no trem, estavam separadas em diversos pontos da estação. Uma das moças foi na direção do banheiro feminino, a outra para a banca de jornal. Um dos homens precisava de um aperitivo no bar antes de ir para casa lidar com a esposa – honestamente, era um alívio ter negócios em Paris, e um problema ter de ir para casa encontrar uma esposa agressiva e filhos que gritavam sem parar. O barman entendia a situação e eles trocavam histórias. Outro homem pensou em engraxar os sapatos. O terceiro era um turista e acordou a atendente sonolenta do balcão de informações para perguntar em um alemão sofrido se podia pegar um ônibus para seu hotel, ou deveria chamar um táxi. Os guardas de patrulha costumavam perceber as adoráveis jovens que viajavam sozinhas, mas se os guardas em atuação a tivessem questionado posteriormente, eles teriam jurado que nenhuma mulher havia saído da estação durante a noite. Nem homens tampouco. Os vampiros sabiam se mover com rapidez, mantendo-se nas sombras. Apenas um guarda pensou ter visto algo de canto de olho, mas decidiu que tinha imaginado coisas, ou que tinha sido apenas uma faísca, ou algo do tipo. Ele nunca teria imaginado que se tratava do broche de imitação de diamante do chapéu de feltro de Meaghan. 25
Duas horas depois, todos eles chegaram ao refúgio. Era uma parte deserta do U-Bahn7, com a vantagem de nunca ter sido completada, por isso só havia uma entrada acessível pelos seres humanos. Com o tempo, os vampiros que haviam vivido ali tinham cavado um túnel extra que dava na rede de esgoto. Ele era fechado por uma tampa de concreto de modo que o indivíduo teria de ter pelo menos duzentos anos pra aguentar. Até as escadas levavam para uma entrada bloqueada, e então para um pátio convenientemente abrigado através de um açougue abandonado. Brigit ficou surpresa ao ver que, com a máquina de guerra a todo vapor, aquela propriedade valiosa não estava sendo usada; mas a área toda era decadente e localizada nos limites da cidade, fazendo com que não chamasse a atenção de ninguém que quisesse trabalhar, muito menos de quem quisesse viver ali, a menos que não houvesse outra escolha. Ela conseguiu entender por que os vampiros haviam ficado ali por tanto tempo. Ulrika havia garantido a eles que nem os Nachtspeere, nem os caçadores de verdade haviam se aproximado do refúgio. — Os Nachtspeere estão interessados em ação, não em subterfúgio. Eles querem nos pegar enquanto andamos. Com certeza não querem passar muito tempo pensando. Brigit ficou convencida. Os nazistas pareciam gostar de conveniência, e o que podia ser mais conveniente do que encontrar lares de famílias vampiras e simplesmente lançar bombas sobre elas no meio do dia? Para os caçadores verdadeiros, claro, isso era sem graça e não era correto. Uma tática usada como último recurso. Não se passava por todo aquele treinamento e se preparava para brigar e morrer apenas para matar um vampiro sem nem olhar para ele, sem mostrar a face da morte. Não era como a guerra. Um caçador de vampiro que se preze vivia essa missão como arte. Aqueles nazistas nojentos que ousavam dizer que eram caçadores não estavam interessados em arte, os refugiados deixavam isso bem claro. Mas gostavam de ver os olhos das vítimas antes de serem aniquiladas. Malditos. Almas infelizes chamados de homens. O local estava tomado pela névoa, como uma casa abandonada havia muito. Mesmo quando os vampiros tinham vivido ali, ela não era nem de perto o belo castelo subterrâneo de Londres. Meaghan fungou e pareceu hesitante, 7
Abreviação, em alemão, de linha de metrô (N.T.)
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mas os outros começaram a acender uma lareira a carvão na sala principal e espanar as camas. — Não sei vocês, mas eu estou cansado o suficiente para dormir pendurado de cabeça para baixo no teto. — Mors disse brincando. Até Meaghan sorriu ao escutar aquilo. Alguns seres humanos tinham as ideias mais engraçadas. Pessoalmente, Brigit detestava morcegos e se sentia ofendida ao imaginar que uma pessoa podia pensar que ela tinha afinidade com aqueles seres nojentos, muito menos ser meio morcego. Além disso, seria uma perda de tempo dormir se você tivesse apenas partes de si com as quais se acomodar. Desejando não ter pensado aquilo, Brigit se concentrou em escolher seu aposento com uma cama de solteiro. Quanto menos espaço tivesse para se mexer, menos perceberia o corpo que não estava com ela. O corpo que havia envolvido o dela todos os dias por mais de setecentos anos. Brigit apertou as têmporas com a palma das mãos. Engasgou e respirou profundamente algumas vezes. A lembrança do corpo permitia que a atitude fosse calmante. Ela secou as mãos na saia e estava perfeitamente firme quando voltou para o cômodo principal, onde Mors havia pedido que eles se reunissem. Ele havia enchido uma garrafa térmica com o sangue da menina da estação do trem, e agora o despejava em cinco cálices. Sorriu enquanto todos seguravam os cálices, olhando para ele. — À missão. — ele anunciou com um ar solene que assustou a todos. — À missão. — eles repetiram, e beberam. Não era muito saboroso, mas ainda estava morno e foi satisfatório. Melhor do que tentar dormir de barriga vazia. — Um pouco mais de animação! Vamos, não é tão ruim. Logo voltaremos para casa. Ele olhou fixamente para Brigit e Cleland ao dizer aquilo, com um amplo sorriso confiante. Eles assentiram, chegaram até a sorrir, mas evitaram se entreolhar.
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Capítulo 3 Londres. Novembro de 1938.
Todo mundo estava sendo gentil demais. Surgiam sugestões de peças de teatro e shows e mostras noturnas em museus, além de todas as coisas pelas quais ele e Brigit se interessavam. Eamon ficou tocado e agradecido, mas, por ora, preferia ficar sozinho. Padraic sentia-se da mesma forma. Eamon, percebendo a responsabilidade dele por ser muito mais velho, perguntou a Padraic se ele queria assistir a uma palestra sobre ciência no King’s College. Padraic e Cleland gostavam desse tipo de coisa. Ele sorrira com o convite de Eamon, o primeiro sorriso que dava em uma semana. — Você não conseguiria ficar acordado nem dez minutos. — Ele sorriu. — Oh, eu não sei. Provavelmente conseguiria ficar acordado meia hora pela ciência. Mas uma de suas coisas malucas com números faria com que eu saísse. — E ainda dizem que os músicos gostam de matemática. — Não este músico. Padraic sorriu de novo e assentiu. — Obrigado, Eamon. Outro dia, talvez? Eamon assentiu também, e deixou Padraic estudando. Ele caminhou desconsolado pelo West End. Havia muito nervosismo no ar. Os londrinos tinham certeza de que a guerra estava para começar, e provavelmente seria logo. Estavam quase se divertindo forçosamente, tanto para afastar a apreensão como para rir o máximo que pudessem antes de a alegria ser arrancada do mundo de novo. Eamon sorriu. Ele gostava da determinação deles, da coragem. Era o tipo de coisa que fazia com que sentisse orgulho de ser britânico. Os teatros não o atraíram naquela noite. Não conseguia imaginar indo a um show sem Brigit. Eles tinham ido a teatros e a shows juntos por centenas de 28
anos. Como poderia sentar-se em um teatro, como conseguiria se concentrar em um show, ou até divertir-se sem Brigit a seu lado? Impensável. Então ele caminhou lentamente até a Charing Cross Road, tentando imaginar se haveria uma carta esperando na caixa do correio que eles tinham se esforçado tanto para proteger. Eamon sabia que ainda era cedo para que alguma tivesse chegado. Preferia aproveitar a ansiedade a sentir a tristeza da decepção. Otonia também havia criado uma série de códigos que eles podiam usar para se comunicar por telegramas, mas era algo que seria usado apenas em caso de emergência. Para pegar telegramas, tinham de ir ao correio pessoalmente. Otonia tinha certeza de que eles acabariam conseguindo roubar a própria máquina de telegramas, mas, até lá, todas as medidas para evitar qualquer suspeita tinham de ser tomadas. Dois homens de negócios passaram por Eamon, em direção a um clube. — Você pode dizer o que quiser sobre Hitler, mas não pode negar que ele é um homem de atitude. Imagine como o mercado de ações estaria se Chamberlain8 pudesse lidar com tamanha ação. — Estremecido, creio eu. Pessoalmente, prefiro estabilidade no mercado. Acredito que vou investir meu dinheiro na construção de barcos. Pode escrever: vou levantar uma fortuna. — Eu tentaria aviões. Gostaria que a guerra começasse logo, se é que vai acontecer mesmo. É tedioso esperar. Eamon virou-se para olhá-los, incrédulo. Muito curioso pensar em dinheiro quando o custo de uma guerra eram as pessoas. Talvez alguns considerassem mais fácil não pensar nisso de modo muito profundo. Ele julgava inútil esperar compreensão de verdade, apesar de as Leis de Nuremberg9 terem sido impressas e discutidas com muito ódio antes de se tornarem notícia. Todos aprovaram o Kinderstransport10, mas concordaram que ele deveria ter limites. Apesar das grandes melhorias, Eamon ficava confuso ao perceber que pouca coisa tinha mudado na atitude em relação aos judeus na
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Arthur Neville Chamberlain: primeiro-ministro do Reino Unido de 1937 a 1940. Chamberlain defendia um plano político de convivência pacífica com Hitler. (N.T.) 9 Conjunto de leis implementado em 1935 pelo partido nazista que privava de direitos básicos os judeus alemães. (N.E.) 10 Nome pelo qual ficou conhecida a operação de transporte de crianças judias da Alemanha e da Áustria. Em 1938, aproximadamente 10 mil crianças foram embarcadas para a Inglaterra, em uma tentativa de fugir da perseguição nazista. (N. E.)
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Grã-Bretanha desde que ele se tornara membro daquela comunidade, cerca de oitocentos anos antes. Pensando na abrangência daquele preconceito, ele havia dito a Brigit, na época dos massacres russos, que era uma pena os judeus não serem vampiros, como diziam algumas histórias. — Eles seriam um alvo menos frágil, de qualquer modo. — Mas ainda mortos, como querem aqueles demônios. — Sempre tem um porém, não é? Claro, se a morte vai acontecer de qualquer jeito, pelo menos como vampiros eles podiam lutar. Ele sabia que sua lógica estava enturvada, mas aquela não era uma área na qual ele conseguia pensar com sua clareza costumeira. Como um vampiro judeu, transformado na noite do massacre de York, em 1190, ele ainda tinha um laço tênue com aquela parte da sociedade humana. As pessoas que detestavam os judeus estavam erradas: os judeus não eram sedentos por sangue e não havia motivo para relacioná-los com o vampirismo, que de qualquer modo era muito mais antigo do que qualquer religião estabelecida. Mas os judeus eram excelentes vampiros. O grupo deles era um dos poucos humanos dos quais Otonia sabia que não tinha qualquer teoria sobre vida após a morte, de modo que um judeu praticante, uma vez transformado, sempre manteria um traço de humanidade. Em uma de suas canções, Eamon descrevia isso como a dor e a delícia de uma alma parcial. Era como se a alma não conseguisse se desprender totalmente, mas tivesse de se apegar ao corpo com vida que havia conhecido, dividindo espaço com o demônio recém-alojado. O demônio era tão poderoso quanto qualquer outro vampiro, mas esse fragmento de alma dava a um vampiro judeu um tipo de luz diferente. Eles costumavam ser considerados o único coração que batia na comunidade. A missão que tinham não era a das mais fáceis, porque, como Brigit gostava de dizer brincando, “Vocês comem tanto quanto todos nós, mas sentem culpa depois”. Não era totalmente verdade, pois o que sentiam não passava de uma leve melancolia, mas era a ideia. Mesmo assim, eles eram amados, respeitados e eram iguais, e isso costumava ser um grande avanço sobre a experiência humana, indo além da comunidade judaica, de modo que ficavam preparados para as provações da vida de vampiro. A regra “só para milenares” fazia sentido, mas irritava mesmo assim. Ele detestava a ideia de não fazer nada. Eamon era cheio de energia, e gostava 30
de ser ativo. Havia alguns que se diziam simpatizantes dos nazistas para irritar e provocar, mas eles eram tão inconsequentes que não valiam o esforço. Eamon queria fazer a diferença. Pior ainda do que a inutilidade era a sensação do caos iminente. Ele não conseguia ver o futuro literalmente, mas mesmo na época em que era um ser humano, quando algo explosivo estava prestes a acontecer, sentia as vibrações, como alguns animais conseguiam sentir um desastre natural se aproximando. Era algo que havia nascido com ele e se intensificado com o passar dos séculos. Ele sentira que a peste estava próxima, não sabendo exatamente o que era, mas percebia que se tratava de algo para o qual os vampiros tinham de estar preparados. Então eles roubaram alguns carneiros e porcos de todos os fazendeiros da região – a maioria acabaria morrendo – e os mantiveram em um abrigo escondido. Não era a solução perfeita para ninguém. O sangue dos animais não tem os mesmos nutrientes e potência. Alguns vampiros novos tinham sugerido a captura de seres humanos. De modo áspero, Otonia havia lembrado a eles que tal sofrimento não era o que os vampiros gostavam de causar. Infligir um pouco de medo durante a caçada, se o vampiro quisesse, era aceitável e poderia dar um sabor diferente à refeição, mas sequestrar e alimentar-se de um ser humano por meses a fio era um ato pelo qual até mesmo um demônio sentiria repulsa. Os animais não forneciam alimento suficiente, os vampiros tinham de racionar, mas dessa maneira eles se mantinham vivos. O círculo deles era o único na Europa que se mantinha inteiro, e assim o tribunal apenas aumentava sua influência. Dessa vez, Eamon ainda não sabia ao certo o que eles deveriam fazer, mas sentia um peso no peito que indicava que a guerra era, provavelmente, inevitável. Isso significava que Brigit e os outros não teriam sucesso, e que estavam se colocando em perigo quase sem motivo. Isso era o pior sobre os seres humanos. Sua vontade sempre prevalecia, como se fosse forte o bastante. Não, não. Nunca tentamos isso. Só estou chateado porque sinto falta de Brigit. Não há motivo para eles não alcançarem o que todos esperamos, e mais. Ele abriu um sorriso lentamente. Aqueles malditos e infelizes da milícia nazista. Eles não saberão o que os atacou.
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Apesar do frio, as ruas do Soho estavam cheias. Havia a pressa comum para tomar algo rápido, beliscar ou até comer um sanduíche antes do horário da peça ou concerto. As pessoas que estavam ali apenas para jantar, ou que iam a um evento particular posteriormente e, assim, tinham mais tranquilidade, olhavam para os desesperados e se divertiam, mesmo que tivessem passado pelo mesmo sufoco na noite anterior, ou passariam por ele na noite seguinte. Eamon preferia tomar uma bebida depois de uma apresentação, quando os prazeres ou horrores podiam ser longamente discutidos. Quanto a comer, bem, esse era um show à parte. Geralmente era prazeroso. Ele começou a murmurar ao caminhar, sentindo o cheiro do ar, procurando. Era uma das únicas coisas que ele e Brigit faziam sozinhos – como qualquer vampiro. Caçar. Comer. Poucas ocasiões pediam um banquete compartilhado. O aniversário do rei. O solstício de inverno. Mas, para a maioria das refeições, cada um tinha de dançar sozinho. A seu próprio ritmo. — Literalmente, em seu caso. — Brigit sorriu. Era verdade, mas não era um ritmo comum. Não era nem mesmo música, mas, sim, um tipo de código. O murmúrio de Eamon preenchia o ar como a teia de uma aranha, espalhando-se em círculos concêntricos, tecendo seus fios por becos escuros até, por fim, prender uma mariposa. Cerca de meia hora depois, ele sentiu uma vibração. Ela estava duzentos metros à frente. Eamon sentiu a moça virar a cabeça, curiosa, interessada. Ela cheirava a furtividade. Ele parou de murmurar quando entrou em uma viela e se recostou em um muro, observando a garota, que agora estava olhando para a porta dos fundos de um bar sujo. Quando um jovem embriagado saiu, afundando o chapéu na cabeça, ela se aproximou, habilidosamente pegando seu relógio de bolso. Quando tentou pegar a carteira, no entanto, ele a viu. — Saia! Eu não estou interessado. — ele disse, crendo que ela era uma prostituta. — Não custa tentar. — Então sorriu. Ele fez um gesto para afastá-la e subiu a rua cambaleando. Ela levantou o relógio, apertando os olhos ao analisá-lo sob a luz fraca. — Ainda não são nove. — Eamon disse atrás dela. Ele colocou a mão sobre a boca da moça quando ela se virou, abafando seu grito de susto. O sorriso gentil e os olhos intensos de Eamon a acalmaram. 32
Mas aqueles olhos também confundiam. Alguma coisa naquele sorriso sugeria que o homem não era totalmente inocente. Ela gostou daquilo. Talvez gostou de ver como ele estava bem-vestido. Se conseguisse levá-lo para algum lugar escondido e distraí-lo, talvez conseguisse ir embora com o sustento do mês. Os séculos de experiência atacando mulheres de reputação duvidosa possibilitavam a Eamon ler os pensamentos das moças, e sempre se divertia. A ladrazinha tola, como tantas antes dela, não parecia perceber que era ela que estava sendo levada a um lugar escondido. Eles caminharam, e ele manteve a mão sobre a parte baixa das costas dela. Ela sentiu arrepios descerem pelas pernas. Os olhos dele quase não se desviavam do rosto da moça, e ela se sentia sendo absorvida por ele. Nervosa, ela olhou para os lábios dele, cujo contorno a deixava hipnotizada. Parecia quase certo que o som desconhecido e sedutor que a havia encantado estava vindo deles, e se eles conseguiam ser mágicos daquela maneira sem nem ao menos tocá-la, a ideia do contato era sedutora e igualmente insuportável. Ela não sabia nem queria saber como eles tinham ido parar em um canto isolado e escuro. Ela estava gostando de sentir o toque dele, de sentir seu corpo contra o dele. As mãos dele a puxavam para seu corpo. E aquela boca, ah, aquela boca! Ela não encontrou seus lábios famintos, mas brincavam ao redor de suas orelhas e mandíbula fazendo seus joelhos tremer. Ela sentia o corpo todo estremecendo. Houve uma repentina pressão em seu pescoço, algo que podia ser dor, mas ela queria mais, queria o calor do abraço dele para deixá-la ainda mais entregue, desejava que ele envolvesse cada pedaço dela em sua maravilhosa boca. Os dedos dele massagearam sua coluna com firmeza e delicadeza ao mesmo tempo, e se ela percebesse que o efeito era levar seu sangue para a garganta dele, ainda assim ela não teria se importado. Eamon tomou cuidado para deitar o corpo vazio, ajeitando a saia da moça sobre os joelhos, mas a usou para limpar os lábios delicadamente. Ele ficou em pé e sussurrou – a mesma atitude reflexiva, como muitas vezes antes, a memória do corpo de como expressar um sinal de arrependimento. O desperdício de uma vida, e ainda assim ele tinha de prosseguir com a sua. Um enigma. Às vezes havia algo pequeno que ele podia fazer, uma reparação. Gostava disso. Procurou com cuidado no casaco da menina.
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Dez minutos depois, o jovem embriagado estava se esforçando para enfiar a chave na fechadura na casa da família. A mãe abriu a porta franzindo a testa. Mas ela desfez a carranca e seus olhos se arregalaram quando viu algo inesperado sobre o ombro do filho. O homem olhou atrás de si, apreensivo. Um homem bem- apessoado com um sorriso peculiar estava ajeitando casualmente o relógio de bolso do filho. Ele o entregou para o jovem surpreso. — Estou generoso esta noite. Mas você não deveria beber tanto. Vai precisar de sua força para a briga que o espera. — E, assentindo de modo educado, ele se foi. O jovem olhou para a mãe. Sentindo frio de repente, ele entrou. ****
A caminhada por Candem Town foi longa, porém agradável, e ele subiu a Malden Road a caminho de Hampstead Heath. Uma pessoa se cansaria caminhando um quarto do caminho, mas os vampiros gostavam de andar. Além disso, sempre conseguiam se mover com mais rapidez quando necessário. Mas ainda estava cedo, e Eamon queria voltar para casa com calma. Em Parliament Hill, ele olhou para a cidade, da maneira que ele e Brigit tinham feito por tantos séculos. Eamon ainda se surpreendia com a maneira com que a região tinha se expandido e mudado. Ele adorava as luzes. Havia vida, aventura e promessa ali. As luzes em Berlim possivelmente não são tão calorosas. Alguns vampiros mais novos viam a missão como uma aventura. Até mesmo Mors provavelmente se sentia assim. Eamon pensou. Mors ainda tinha um grande apetite pelo perigo. Presumia-se que as criaturas da noite ainda se alimentavam do perigo com a mesma disposição com que se alimentavam do sangue da jugular, mas isso só persistia pelos cem primeiros anos. Depois, um vampiro fazia a distinção entre perigo e risco. A menos que aquele vampiro fosse Mors, o que nesse caso era muito empolgante. Eamon também adorava o risco, mas com o passar dos séculos ele e Brigit tinham se tornado menos inclinados a ele. Havia muito mais a se fazer. A vida eterna abria um leque grande de possibilidades. Como ser humano, a 34
habilidade natural de Eamon pela música era algo com que ele e sua família nunca poderiam sonhar em conseguir sustentar, mas como vampiro ele havia aprendido a tocar a rabeca, depois o violino e uma série de outros instrumentos, apesar de sua paixão ser pelos dois primeiros. Ele gostava de sentir os instrumentos em sua mão e a maneira com que os arcos passavam pelas cordas. Quando os concertos começaram a ser populares, ele teve de aprender a tocar piano. — Você não pode tocar George Formby no violino, não se quiser conseguir a expressão certa. — Ou acertar a nota. — Brigit sorriu. E apesar de George Gershwin ser bastante divertido para a prática do violino, não era a mesma coisa. O piano, sim. Para algumas coisas. Música e Brigit. Contanto que ele as tivesse, ele tinha o mundo todo em seu tranquilo coração. O tribunal se estabeleceu em um castelo abaixo de Hampstead Heath. Otonia gostava da vista e do ar fresco. Os milenares atuais ficavam impressionados com o modo eficaz com que ela havia escolhido o local, que era totalmente selvagem na época – a Kenwood House chegou depois. Ela havia sentido que Londres se tornaria o centro do mundo civilizado, e que ela passaria muitos anos no centro das coisas, ou esperando para que as coisas surgissem de novo, não importava se fosse um centro, para permitir que os eventos a assumissem. Então eles partiram em direção ao sul a partir de Yorkshire, e não tinham motivos para se arrepender. Eamon passou pela árvore oca que pontuava a entrada do castelo. Não que um humano fosse capaz de ver que ela era oca – os vampiros haviam construído uma porta de correr quando o Heath passou a ser mais frequentado. Mesmo que um ser humano conseguisse entrar, ele nunca encontraria a outra porta para a base do tronco, nem saberia como abri-la. O apartamento que ele e Brigit tinham dividido por tantos séculos era quente e confortável. Eamon acendeu a lareira na sala de música e de livros, e afundou em sua poltrona confortável. Se fizesse um esforço, conseguiria perceber a depressão na poltrona de Brigit, que continuava ali mesmo depois de uma semana de ausência. Ele esperava não se tratar de uma ilusão. Ele abriu o livro que andara lendo, e então percebeu que não conseguia se lembrar de nada do último capítulo. Mas ele não queria ler. Seus materiais 35
de rascunho estavam no canto, mas não queria pensar. Ali estavam seus instrumentos. Agora, eles eram apenas os únicos confortos verdadeiros. Eram seus amigos, o pequeno piano, o violino Amati, e a rabeca, aquele pequeno objeto, o precursor do violino, tocado ao ser apoiado de modo desajeitado na coxa. O instrumento que tinha iniciado tudo para ele e para Brigit. Todos eles também sentiam falta dela. Eram os únicos que entendiam de verdade. Mas isso não era justo, claro. Era egoísta. Ele estava inquieto, muito inquieto. Precisava de mais distração. Eamon sabia que Padraic provavelmente estava na biblioteca do castelo – uma biblioteca que qualquer ser humano admirador de livros, sobretudo colecionadores, faria de tudo apenas para visitá-la. Otonia havia roubado livros no passado, e adquirira mais conforme o tempo passava, e conforme outros se uniam a ela. Então, trabalhos que os seres humanos pensavam estar perdidos, ou os quais não sabiam existir, podiam ser encontrados naquela sala fria e enorme. Sem falar das primeiras edições. E também todas as obras de Shakespeare. Alguns livros tinham até a assinatura do autor. Não quero conversar, eu quero... Bem, muitas coisas. E nenhuma delas ele ia conseguir, não naquele momento. Praticamente agarrou o violino Amati e o colocou embaixo do queixo. O arco estremeceu em sua mão. Aonde iremos esta noite, meu amigo? ****
O arco tocou as cordas, e lançou uma lembrança em melodia. Brigit. Brigit, e o som de seu riso, o som de uma chuva repentina em uma noite no meio do inverno. Os dois, brincando e pulando no Tâmisa, pulando de barco em barco, até muitos deles racharem. Pulando para subir em pontes e desafiando o relâmpago a se aproximar. Imitando-o com a própria energia e luz. Perseguindo a tempestade até o alto do pântano. Caindo na grama, sentindo dor com a queda, mas ainda assim rindo. Descendo o monte rolando. Segurá-la enquanto rolava, virando-a para que ela caísse sobre ele e não no chão lamacento. Prendendo seus cabelos úmidos entre os dedos...
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O Amati continuou tocando, uma melodia doce e erótica que criava círculos ao redor dele, passava pelo castelo, tocando levemente aqui e ali em ouvidos dispostos, prometendo os sonhos mais felizes enquanto as notas voavam pelo ar, até chegar aos pálidos raios de sol que refletiam na Terra. Ali, como turbilhões, eles subiam, subiam... e não chegavam a lugar algum.
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Capítulo 4 Trem de Berlim a Basiléia. Agosto de 1940.
Brigit aproveitou a parada prolongada do trem à noite para esticar as pernas em um rápido passeio pela plataforma pequena e bem-protegida. Comprou duas barras de chocolate e um jornal de um jornaleiro com aparência cansada, que não retribuiu o sorriso e os colocou dentro de sua bolsa Hermès de couro rígido. O calor da noite era agradável, e ela respirou profundamente diversas vezes, como se aproveitasse o ar fresco. Mas a única pessoa que a notou foi uma jovem mãe contrariada cuidando de dois meninos chorões – gêmeos – vestidos com roupinhas de marinheiro. A mulher pareceu se ofender com a beleza e a calma de Brigit e resmungou ao passar por ela, murmurando algo ininteligível. Controlando a vontade de rir, Brigit continuou caminhando com rapidez. Afinal, uma Fräulein saudável precisava fazer exercícios físicos. Fazer o sangue circular. Mais uma vez, Brigit sentiu o riso surgir. Desejou que o demônio pudesse engoli-lo. Estar ao ar livre a deixava animada. Dava a ilusão da liberdade. Ela se forçou a se concentrar na fuligem e na imundície, no cheiro de cigarros em excesso e de suor sob o tecido leve de sua roupa. Aquela não era atmosfera para a alegria. Por mais que soubesse que deveria passar a impressão de tranquilidade, de uma jovem vivendo uma grande aventura, ela também tinha de ser capaz e controlada. Uma mulher com responsabilidades, que levava tais responsabilidades a sério. Equilíbrio. E equilíbrio tinha sido algo que ela havia treinado a vida toda, e não estava fazendo algo novo. Mas eu estou. Oh, Eamon, estou. Pelo menos esse pensamento fez com que ela parasse de sorrir completamente. O apito tocou e, sem vontade de esperar a segunda chamada,
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ela decidiu embarcar de uma vez. Quanto mais tempo passasse em um lugar fechado, melhor. Na porta do vagão, o carregador estava ajudando um casal de idosos um tanto surdos com a bagagem, e eles não paravam de gritar para que o homem tomasse cuidado. Outro passageiro que embarcava, um jovem magro com óculos de aros escuros, sorriu de modo simpático para a senhora e ofereceu o braço. — Posso ajudá-la a entrar no trem, madame? A mulher rejeitou o braço como se fosse veneno. — Não pense que pode pegar minha bolsa, seu rato! O exército seria bom para você, não é? Roubando em vez de lutar pela glória da pátria? O exército sabe o que fazer com ladrões podres como você, pode escrever! O homem corou, tentou se desculpar e se afastou. O carregador fez um gesto para ele acima da cabeça da senhora, querendo dizer que velhas como aquela não mereciam ajuda de ninguém. Mas a velha em questão não tinha acabado de humilhar o moço azarado. — Você parece judeu, certo? Pensei que os judeus tivessem sido varridos daqui. O jovem ficou boquiaberto. — Talvez se a senhora não estivesse ficando cega, poderia ver que sou católico. O pequeno grupo de passageiros que esperava atrás do casal de idosos riu. A mulher, parecendo decidida a não escutar a resposta, continuou importunando o carregador. Profundamente irritada, Brigit seguiu para o vagão seguinte. Ao entrar, olhou para trás e viu o casal embarcando finalmente. O jovem ofendido entrou em seguida, orgulhoso demais para permitir que o carregador pegasse sua maleta. Brigit permitiu que seus sentidos analisassem aquele homem, sentindo que ele podia ser uma boa possibilidade de refeição. No mínimo merecia mais investigação. Enquanto pensava nisso, viu um homem de meia-idade em um terno pesado de seda carregando uma maleta brilhante de médico que, Brigit tinha certeza, estava de olho nela. E alguma coisa naquele olhar, em sua avaliação fria e calculada, observando tudo sobre ela, fez todos os seus órgãos reagirem. Ele se virou e caminhou para o interior do trem. Dois jovens bonitos vestindo uniformes seguiam o médico como cãezinhos obedientes, carregando 39
seus livros e bagagem com reverência. Brigit decidiu ficar mais tempo no vagão vazio antes de voltar para seu compartimento. Não estava com vontade de esperar no corredor enquanto o azarado carregador tentava acomodar o casal de idosos reclamões. Também não quis se aproximar mais do médico e de seu olhar. Talvez ele não estivesse me observando. Talvez apenas estivesse olhando para o nada. Distraído. Mas ela sabia que não era isso. O olhar era mais áspero do que qualquer coisa que ela tenha visto, mesmo no rosto frio e interessado do Sargento Maurer. Mais áspero e mais triunfante. E isso, se significava o que ela esperava que não significasse, poderia indicar um novo nível de perigo que ela não sabia ao certo como enfrentar. Essa incerteza era mais desconcertante do que o olhar do médico – ela não conseguia se habituar a ele. Suas faculdades estavam prejudicadas. Ela teria de se alimentar logo. Não que isso ajudará muito. Droga. O ideal teria sido uma refeição na estação, mas ela não estava sozinha para atrair uma, e não tinha nenhum candidato possível. Havia um problema em escolher alguém em um local público: tanto o vampiro como a refeição tinham de ser discretos. A presa tinha de passar a impressão de ser alguém cujo sumiço não fosse percebido imediatamente. Não bastava que a pessoa estivesse viajando sozinha; tinha de não ser notada. Qualquer outra coisa levantaria suspeita. E apesar de seu status de mulher inocente ajudar no caso de interrogatórios, isso a atrapalhava na busca por alimento. Os homens em viagem, principalmente durante o tempo de guerra, se abriam menos para tais possibilidades. Além disso, Brigit tinha de tomar cuidado ao usar seus atrativos, porque alguém, como a mãe dos gêmeos, podia ver e fazer escândalo. Não havia problemas para Mors, pois as pessoas esperavam que uma moça tola fosse atraída por um homem sorridente e sensual, e se ela fosse encontrada morta posteriormente, e o homem tivesse partido, bem, seria culpa dela mesma, não é? Seus pais não haviam ensinado ela a ter bom senso. Uma jovem bonita sorrindo de modo encorajador a um homem, no entanto, e afastando-o da vista das pessoas, tinha mais chance de ser lembrada. Era melhor não ser vista quando estivesse procurando por alimentos. Principalmente naquelas circunstâncias.
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Ela teria de se desfazer do corpo. Até mesmo fingir um suicídio era arriscado e podia atrasar o trem. Teria de encontrar alguém viajando sozinho, atraí-lo para um local discreto antes da parada, alimentar-se e então jogar o corpo pela janela antes de o trem partir de novo. Os funcionários acreditariam que a pessoa havia desembarcado. Quando alguém esperando essa pessoa alertasse as autoridades, o trem e Brigit já teriam partido muito antes. E quando eles encontrassem o corpo, ela já teria disfarçado as marcas e estaria torcendo para que tudo desse certo. Brigit sorriu para o carregador, deu-lhe uma ordem qualquer e voltou para o seu compartimento. Ali, tirou o chapéu, as luvas e sentou a fim de se preparar para o desafio do jantar. Preferia ficar ali, com a porta fechada atrás dela, escutando a respiração ritmada de sua preciosa carga. Mas sabia que aqueles que julgavam certo que ela aparecesse existiam em maior número do que aqueles que pensavam ser mais adequado que ela permanecesse em seu vagão. Por enquanto, era melhor que ela agradasse à maioria. A opinião deles era mais importante. Quando percebeu que não mais podia evitar, trocou de vestido, arrumou o cabelo e conferiu se suas roupas estavam perfeitamente ajeitadas. Detestava ter de sair do vagão tão desprotegida, mas tinha pouca escolha. — Volto logo. — ela disse com frieza determinada, batendo a porta ao sair e pensando na entrada humanamente impossível de ser aberta no castelo sob Hampstead Heath. No corredor, Brigit conseguiu sentir o cheiro do jovem em seu vagão, a apenas três portas de distância do dela. Ela sorriu, pensando que ele estivesse procurando uma gravata mais bonita antes de entrar no vagão-restaurante, como maneira de retomar sua dignidade e restabelecer seu status. Ou então esperaria até ter certeza de que o casal mal-educado tivesse acabado de comer. Brigit tentou sentir o cheiro do restante do vagão. Estava vazio. Os passageiros estavam comendo, fumando ou jogando cartas, mas nenhum estava em seus vagões. Decidiu aproveitar a chance. O sussurro começou baixo em sua garganta. Não era para seduzir, apenas para intrigar, com a intenção de ser sentido e não ouvido. Uma gota na água. Um som para dar início a um pensamento. Nada racional bem coerente, mas o início de uma comoção que por fim se transformaria em desejo.
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A porta estava parcialmente aberta e ela conseguia escutar murmúrios. Bateu com vergonha. Ele esticou o pescoço e olhou fixamente para ela. — Sim? — Olá. Sinto muito em incomodá-lo, mas foi horrível o que aquela mulher disse. Acho que você lidou brilhantemente com a situação, tenho certeza de que eu teria me atrapalhado toda. Sou péssima em confrontos, um terror. A propósito, meu nome é Brigit, como vai? Surpreso e lisonjeado, ele hesitou, mas pareceu ficar mais confiante ao ver o largo sorriso que ela lançava. — Hum, olá. Bem. Não, tudo bem. Sim. Sou Kurt. Uma senhora terrível, não é? Bem, acho que precisamos ter paciência com eles. Deram um aperto de mãos. Ela emitiu uma vaga vibração ao olhar para ele com hesitação. O jovem agiu. — Posso lhe oferecer uma bebida? Tenho uma bebida excelente. — Ótimo. Brigit divertiu-se com a rapidez com que ele encontrou duas taças, como se estivesse esperando visitas mais cedo ou mais tarde. Era bem provável que ele tivesse a intenção de impressionar um homem que pudesse acabar sendo um cliente, talvez, uma vez que Kurt não parecia ser o tipo de homem com conhecimento sobre mulheres. Educado, sim, mas fraco e pálido, com um cabelo um tanto oleoso e uma gravata puída. Um homem que queria impressionar, mas que tinha um pouco mais de dinheiro do que bom gosto ou educação. Ela encostou o copo no dele, pensando nas possibilidades. Ela tinha de fazer as perguntas certas, obter as informações pertinentes, ter certeza de que ele poderia ser abandonado com facilidade sem levantar suspeitas. — Então, Kurt, já que não é do exército, para onde está indo? — Tentei entrar para o exército, mas não me aceitaram. Tenho taquicardia. — Que coincidência engraçada! Eu também. — É mesmo? Bem, estou indo a Paris. Soube que eles precisam de alemães que falem francês para cuidar de negócios, para quando as leis sobre a raça estiverem estabelecidas.
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Ele não percebeu quando ela empalideceu. Continuou falando sobre como queria ser um artista, e estava esperando poder abrir uma galeria – ela não estava prestando muita atenção. As leis de raça. Na França. Por que estou surpresa? Se a liberté foi derrubada, por que a mesma coisa não aconteceria com a égalité? Kurt havia aberto um caderno de desenho e estava narrando com orgulho o caminho de sua viagem artística gabando-se de sua habilidade. Brigit exclamou “ah” e “oh” com admiração, feliz que Eamon não pudesse ver os desenhos. Ele teria matado Kurt apenas por sua falta de talento. Eamon era, além de um grande músico, um artista muito cuidadoso. Fazia desenhos de cada um dos vampiros do tribunal e todos diziam que não havia necessidade de reflexão quando se tinha um dos desenhos dele. — Sempre adorei as galerias de Paris. — Brigit sorriu. — Tenho certeza de que você vai fazer tudo muito bem. Não que eu conheça arte, mas eu acho que a sua é muito boa. — É uma questão de opinião. Uma senhorita educada e bela como você, claro, aprecia as melhores coisas da vida. Sabe o que é atraente. — Sei? — Claro que sim. Vê a atração todos os dias em que se olha no espelho. Ela riu envergonhada. Malditos homens. Ele sabe que não é homem se com sua lábia não conseguir ganhar uma mulher, e acha que com um elogio bobo vai ganhar o que quer. — Posso ver que você é refinada. — ele disse. — Provavelmente já foi a noites de estreia e a todos os melhores concertos. E já jantou e dançou em alguns dos melhores salões depois, não é? Ele estava assumindo sua ambição, desejando-a, mas querendo também sua riqueza e influência, suspeitando que ela não dava valor a elas. Sabia a diferença entre uma menina inglesa e uma irlandesa, e sabia que a irlandesa, com todo o seu dinheiro e beleza, conhecia o preconceito, havia sofrido humilhações. Mas sua arrogância bem-treinada ia além de qualquer empatia natural, e ele tinha certeza de que ela não conhecia a real injustiça, nada parecido com o que ele e seus amigos e familiares haviam enfrentado durante os anos em Weimar. Mortal idiota. 43
Outra pequena vibração na garganta dela fez com que ele se estabelecesse. Ele parecia adorar estar ao lado da criatura charmosa e sorridente que olhava para ele com olhos desconhecidos e brilhantes. Brigit estava perto dele agora, com o demônio a milímetros sob sua pele, com as presas começando a surgir embaixo de seus dentes de ser humano, quando se ouviu vozes altas e pessoas correndo no corredor. Um grito repentino e um jovem entrou pela porta de Kurt, de modo que ele e Brigit deram um pulo e se assustaram. O homem e seus amigos pararam para observar e sorriram de modo malicioso. — Desculpe. — ele disse com uma piscadela descoordenada. Ele se afastou e seu riso ecoou até o outro vagão. Tentando recuperar-se, Kurt bebeu o último gole de sua bebida. — Posso convidá-la para jantar? Eles tinham sido vistos juntos, e apesar de os jovens estarem embriagados, poderiam lembrar-se dela. Um novo plano precisava ser armado. Brigit forçou um sorriso e levantou-se, acalmando o demônio. — Considere-me convidada. O vagão-restaurante estava lotado. Os dois tiveram de se apertar ao lado de um homem, que parecia não se importar com a proximidade, desde que pudesse continuar comendo seu filé em paz. Mas ele levantou o olhar quando Kurt começou a falar sobre arte de novo. — O problema dos expressionistas é que eles não se interessam pela beleza. Não há motivo para criar arte se não há o desejo de criar algo belo. Você não acha? O companheiro de jantar respondeu antes de Brigit. — Isso tem sido um problema com a arte há anos. Somos abençoados por ter o Führer, pois ele está expurgando todo esse lixo. Coisa ruim. Há anos não tenho vontade de levar minha esposa ao museu. Quem teria? Ficou claro, para a irritação de Brigit, que o homem (“Herr Eberhard, e muito prazer”) havia assumido o controle de uma galeria de Berlim e estava procurando fechar negócios em Paris. Deixando de ser o foco da atenção de Kurt, Brigit foi forçada a interpretar a garota entretida na importante conversa dos homens. Eles pediram o jantar e uma garrafa de vinho, e Kurt sorria para ela, um homem que mal conseguia acreditar na sorte que tivera. 44
A mente de Brigit estava a todo vapor. Parecia certo que os dois homens estavam interessados nas mesmas coisas, e quanto mais se aproximavam, mais a esperança da refeição sumia. Ela comeu seu ensopado mecanicamente, farejando ao redor qualquer coisa mais possível, e pensando na melhor maneira de se livrar daquela conversa pretensiosa e ofensiva. Foi quando ela o viu. O médico, com grande confiança. Estava comendo sozinho. Ostensivamente folheava uma publicação médica enquanto comia e bebia café, mas ela sentiu os olhos pequenos dele se levantando em sua direção. Ele é um problema. Exatamente o que preciso. Mais problema. Um calor repentino surgiu dentro dela – o desejo de despertar o demônio totalmente e matar todos os homens do vagão. Comer independentemente de quanto a satisfizesse e continuar até. Exatamente. Até o quê? Você está presa. Tem um trabalho para realizar. Concentre-se nisso. Não importa toda esta bobagem. Se ao menos fosse fácil assim. Se ao menos ela não estivesse sozinha. — O que acha, Brigit? O sorriso interessado não havia sumido de seu rosto, mas ela não fazia a menor ideia do que Kurt estava perguntando. — Acho tudo maravilhoso! Kurt sorriu e virou-se para seu outro amigo útil com ar de triunfo. Pelo canto do olho, Brigit viu o médico terminar o café e sair do vagãorestaurante. Ele não parava de olhar para ela, quase sem piscar.
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Capítulo 5 Berlim. Dezembro de 1938.
— Pelo menos ainda podemos dar um espaço entre nossas refeições, até certo ponto. Já é alguma coisa. Brigit assentiu. Cleland estava certo, já era alguma coisa. Eles tinham de pensar nas coisas positivas que existiam e cuidar delas. Os milenares conseguiam passar quase uma semana sem alimento e ficarem perfeitamente bem, apesar de o ideal ser que eles se alimentassem a cada quatro ou cinco dias. O grupo de cinco pessoas estava descobrindo, no entanto, que a pressão e a tensão aumentavam a fome. Estavam felizes por comer mais nazistas, porém apreensivos com tantos desaparecimentos sendo percebidos. Mas mais problemático era o gosto. Os nazistas eram quase indigestos. O sabor do ódio era difícil de engolir. Mas eles ainda podiam dar espaço entre as refeições. Mors, claro, teve facilidade para encontrar um bom uniforme que servisse, mas como Cleland disse, ele tinha grande sorte. — Quando um major de Freiburg decide beber até cair sozinho em um beco em sua primeira noite na cidade, ele está implorando para ser comido, não é? Então Mors estava com sorte, porque ninguém ainda havia encontrado o major, mas a foto de seu cartão de identificação era mais difícil de alterar do que se pensava. Até aquele momento, ele havia conseguido evitar mostrar a foto a alguém, mas queria que Swefred se apressasse para encontrar uma maneira de fazer o homem falecido parecer mais com um homem imortal. — Você poderia tentar fazer seu cabelo crescer. — Swefred resmungou. — Mais fácil apagar o dele. Isso era verdade, apesar de muito trabalhoso. Swefred tinha interesse em artes e se tornara fascinado por fotografia. Isso, claro, era inútil para os 46
vampiros, por isso ele se dedicou a alterar fotos e os resultados costumavam ser interessantes. Ele tinha certeza de que podia alterar os cartões de identidade que conseguiam roubar para ficar bem-apessoado na foto, e para isso só precisava de mais tempo – tempo de que eles certamente não dispunham. Brigit e Meaghan tinham entrado em diversos grupos, e pelo que conseguiram ver, concluíram que a máquina nazista era ainda mais bem-lubrificada do que os refugiados haviam descrito. Mors achava muita imprudência do major por quem estava se fazendo passar, aquele tal de Wener, estar em um círculo tão restrito quanto os veículos de guerra. Ele não conseguia entender por que isso limitava seu futuro – certamente ele ainda seria convidado para as melhores festas? De que outro modo as pessoas esperavam conduzir negócios de verdade? Nas reuniões, isso sim, e durante o dia. Os tempos tinham mudado. Os planos não eram discutidos em meio a bebidas e cigarros nas festas à noite. Ou, pelo menos, nenhum plano que tinha sido compartilhado com eles. Não se confiava nas mulheres em especial, aparentemente. Nas mulheres que faziam perguntas, menos ainda. A confiança tinha de ser conquistada lentamente. ****
Um rico general estava celebrando o noivado da filha com uma festa tão grande que diziam que ele havia gastado a fortuna de um judeu. E Brigit suspeitava de que esse comentário era literal. Pelo que ela sabia do general Pfaff, ele era um dos poucos homens verdadeiramente idiotas na festa. Do tipo que chegaria a uma posição de poder com um pouco de sorte e com o dinheiro da esposa. A aquisição repentina de uma fábrica só podia ser atribuída à fuga repentina do proprietário judeu da Alemanha. Brigit procurou se consolar acreditando que a total falta de habilidade de gerenciamento do general acabaria com aquela fortuna dentro de um ano. Enquanto isso, ele estava aproveitando para fazer uma lista de convidados a dedo, que era ótima para todos os milenares. Os homens atacariam esposas que parecessem entediadas e que pudessem estar suscetíveis a galanteios, e as mulheres procurariam por homens que estivessem em ascensão e abertos à possibilidade de ter uma amante.
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Brigit estava contente com o fato de a festa não ser um jantar formal onde todos ficavam sentados. Todos podiam circular tranquilamente e ela pôde usar um vestido mais casual. Essa era uma das coisas de que mais gostava no novo século, por mais problemático que tivesse sido. A moda havia mudado e permitia que ela mostrasse suas belas pernas. Com os sapatos de salto, a meiacalça e o vestido de seda que dançava ao redor de seus joelhos, ela sabia que qualquer homem que corresse os olhos por aquela barra seguiria subindo o olhar até onde pudesse. Os seres humanos podem estar mais rudes do que eram em 1914, mas as roupas estão melhores. Cuidadosamente passou um pente de osso pelos cachos macios e passou o rímel em seus cílios. Como sempre, sorriu para si mesma como reação que uma mulher teria diante da ideia de se arrumar sem um espelho. Era verdade que enfeitar-se era uma das primeiras coisas com as quais as jovens mulheres, e até os homens, se preocupavam, mas era muito fácil. A garantia da beleza era tudo de que uma pessoa precisava para se manter feliz; a liberação do reflexo era bem-vinda quando aceita. — Quando não podemos nos ver, começamos a nos ver. — Otonia gostava de dizer de seu modo enigmático. Mors preferia ser mais direto. — Eu sei que estou lindo, de que outra prova preciso? A comunidade humana de Brigit era pequena e isolada, e ninguém ali sabia nem mesmo o que era um espelho. Ela só tinha visto seu reflexo em água antes de ser transformada. Apenas quando Eamon a atraiu ela começou a conhecer o próprio rosto. Uma sensação curiosa, ver-se de novo depois de tantos séculos. Loira, olhos azuis, lábios rosados e cheios, e dentes fortes e brancos – claro que ela era perfeita para aquela missão. — Uma inglesa antiga que se parece exatamente com uma Fräulein alemã. — Otonia dizia rindo. Como presente de despedida, Eamon havia feito uma pintura dela. Os dois juntos, esboçando sorrisos, com amor profundo denunciado nos olhos, apesar de estarem olhando para a frente e não um para o outro. Alguém podia pensar que havia algo fascinante que valia a pena aquele olhar atento, mas a maneira com que os cílios dele se tocavam, com que seus cabelos se misturavam, revelava a verdade. Acima de tudo, eles existiam um para o outro, 48
apenas e sempre. Eamon desenhou o próprio rosto de memória, uma memória boa para quem não via o próprio rosto havia cerca de setecentos e cinquenta anos. Um belo rosto. Mais do que belo – atraente, até misterioso. Brigit havia memorizado aquele rosto ao longo de séculos, e sempre via algo novo sempre que olhava para ele. E gostava disso. Cada um deles tomou um rumo diferente para chegar à casa do general. Quando Brigit chegou, o único do grupo a quem ela viu foi Mors, que estava conversando do lado de fora com dois soldados. Eles pareciam controlar a entrada para a festa, o que fez com que Brigit sentisse vontade de rir. Não estavam pedindo identificação, mas consultavam uma lista de convidados. Para a sorte dos vampiros, eles pareciam irritados com a tarefa absurda. Treinados para defender a pátria e ali estavam, atuando como porteiros em uma festa de gala, com apenas um pastor alemão para lhes dar um ar impotente. Brigit tentou imaginar se eles estavam sendo pagos para aquilo. Supôs que o major Werner de Mors estava na lista; ele estava distraindo os homens para que os outros quatro pudessem entrar sem ser perturbados. Ou talvez estivesse de fato interessado no cão que, longe de ser feroz, estava pulando para alcançar a mão de Mors como se o vampiro estivesse oferecendo um pedaço de bacon. Era algo curioso o entendimento de Mors com cães. Parte daquela lenda inimitável. A mitologia dos vampiros costumava citar que outras criaturas da noite, reais ou imaginárias, não se davam bem com os imortais, mas não era verdade. Em primeiro lugar, nenhuma das criaturas imaginárias existia; em segundo, raposas, corujas e outros animais noturnos do tipo mantinham uma distância respeitosa dos vampiros. Tinham suas presas e seu próprio caminho. Conheciam os imortais como eram. Além disso, existia um tipo de acordo estabelecido: feras não mantêm outras feras como animais de estimação. Como sempre, Mors era diferente. Ele adorava e respeitava os cães, e eles a Mors. Seu afeto era pelos cães de raças misturadas aos quais ele podia salvar de uma vida de servidão ou uma morte dolorosa. Os cães se desenvolviam bem com os cuidados de Mors, e viviam muito mais anos do que deveriam, com a rapidez dele, adorando a noite. Ninguém sabia como ele fazia aquilo, pois certamente não podia dar poder a eles. Brigit sempre quis perguntar, mas controlava-se. Mas, a cada vinte anos, um cachorro morria. Os vampiros se perguntavam como Mors aguentava, apegar-se tanto a criaturas às quais logo 49
teria de dizer adeus. Sua tranquilidade inabalável fazia com que algumas pessoas pensassem que a despedida não o afetava, mas o amor que demonstrava por seus animais era real, então o que se passava dentro de Mors quando ele se virava e tomava um rumo separado só ele sabia. — Venha aqui! — Cleland disse, e a ordem ecoou na mente de Brigit, tirando-a de seus pensamentos e ela subiu os degraus, quase sem ser percebida. Assumindo seu papel, ela hesitou na porta, olhando ao redor com nervosismo, como se procurasse uma amiga. Sem querer, cruzou olhares com dois jovens que a olhavam com interesse. Engoliu em seco e olhou para baixo, ajeitando a saia no quadril para garantir que eles percebessem como eram convidativas aquelas ancas voluptuosas. Virando-se de costas, ela fingiu surpresa ao ver o rosto quadrado e frio de um coronel com suas taças de champanhe. — Boa noite, eu a vi em pé sozinha e sem uma bebida e pensei que seus problemas deveriam ser remediados imediatamente. — Quanta gentileza! Muito obrigada. — Você parece ser uma moça de Heidelberg. — É mesmo? — ela respondeu, uma menina ingênua brincando de ser misteriosa. Heidelberg, hem? Bem, algo útil. Os ciganos afirmavam que o domínio de muitos idiomas e das artes fazia parte da mágica do mal do demônio. O tribunal acreditava que uma vez que sua mente se via livre dos detalhes e das bobagens da vida humana, expandia-se a todo o seu potencial e permitia que você, se quisesse, mergulhasse de cabeça na educação e na erudição. Havia vampiros que eram mais lidos do que os maiores filósofos seres humanos podiam desejar, apesar de os vampiros terem ciência da injusta vantagem. Os milenares se aproveitavam dessa vantagem, falando alemão impecável com sotaques que não traíam suas origens. O coronel estava falando sem parar sobre o único dia que passou em Heidelberg e sobre os montes, o castelo e a bela zona rural. Brigit bebericava o champanhe e tentava imaginar se ele era o tipo que permitia que uma mulher falasse. — Sou da Bavária. Somos afortunados, adoramos música. — Eu também! — Você toca algum instrumento, canta? — Nenhum dos dois. Apenas adoro escutar. 50
O coronel lançou a ela uma piscadela repugnante. Uma mulher asquerosa usando algo que parecia um vestido tirolês de festa aproximou-se e passou o braço pelo do homem, sorrindo abertamente para Brigit. — Grüss Gott. Sou a esposa do coronel. Nós nos conhecemos? A senhorita não me parece familiar. — Sou Brigitte, madame, prazer em conhecê-la. Seu marido estava me contanto que adora música. — Estava? Que adorável. O coronel corou, e Brigit se divertiu com a semente de discórdia que havia plantado. Nem mesmo um coronel pode dedicar tudo a seu país quando está tentando provar à esposa que é muito fiel. No entanto, Brigit tentou imaginar se talvez estivesse enganada a respeito dessas prioridades, quando um general pigarreou para chamar a atenção do coronel. O general virou a cabeça na direção do corredor e o coronel afastou o braço do de sua esposa e mal olhou para as mulheres ao marchar na direção do general. Sozinhas, não havia o que ser dito. A esposa do coronel olhou Brigit de cima a baixo, concentrando-se em suas pernas e seios. Brigit sorriu com simpatia, o que fez a mulher sentir um calafrio, e, com um toque de requinte apressou-se a voltar para perto das mulheres que Swefred e Cleland tentavam entreter, o que Brigit percebeu que pouco funcionava. Até aquele momento. Servindo-se de um canapé, Brigit parou para se divertir observando um garoto, de talvez dezessete anos, que estava sendo simpático demais com uma garçonete. A moça, sentindo-se desconfortável, aproximou-se de Brigit e quase implorou para que ela lhe pedisse alguma coisa. O garoto lançou a Brigit um olhar que ela não conseguiu entender – talvez ele soubesse que ela ficaria do lado de uma moça que estivesse sendo perturbada. Quando ela olhou para baixo para ele, divertindo-se, sentiu o cheiro da estaca que ele carregava em uma balestra adaptada. Nachtspeere. Aquele garoto quase criança seguindo na direção em que sua genitália o levava era um caçador do Reich. Brigit olhou por mais tempo, permitindo a ele a oportunidade de reconhecimento. Não houve, e ela percebeu que ele carregava a estaca por nostalgia, porque Berlim estava limpa. Além disso, ele estava apenas participando por cortesia de seu supervisor. Brigit apertou os olhos – o
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rosto do caçador corou sob o olhar e desdém dela. Ele olhou para baixo e se afastou. Ele não me conhece. Ele não faz a menor ideia de quem sou. O garoto tentou disfarçar entrando na conversa com Mors e outros dois homens. Depois de diversas frases desinteressantes que estavam esgotando a paciência, Mors virou-se e olhou nos olhos dela. Ele não sabe nada sobre nós. Eles não estudaram as lendas, de maneira alguma. Saber que os milenares britânicos eram totalmente desconhecidos dos Nachtspeere foi apenas uma pequena compensação pela repentina falta de alvos valiosos. Brigit caminhou pelas salas de jantar e de estar, bebericando sua bebida e tentando farejar aqui e acolá, como se procurasse alimentos. O corredor no qual o coronel havia desaparecido estava escuro e convidativo. Ela demonstrou interessar-se pelas gravuras supérfluas de caça que pontuavam as paredes e estudou cada uma com muito cuidado, sem perceber que estava se afastando cada vez mais do ambiente da festa. A porta estava negligentemente entreaberta, como se houvesse a certeza de que ninguém sem ser convidado para ir tão longe naquela festa particular sequer sonharia em entrar. Havia vinte e quatro homens reunidos, com bebidas nas mãos, e eles pareciam se conformar com a velha ideia de que os negócios de dominação tinham de ser discutidos em festas. — Se o Führer disser que a Polônia pertence à Alemanha, não vou discutir. O interior é maravilhoso. Só é ruim pelas pessoas, entretanto. Trabalhadores imprestáveis. — Exatamente o que o Führer diz. Então devemos relembrar que eles são na verdade alemães, e então começarão a trabalhar de novo. Trabalharão como se a vida deles dependesse disso. — Que é o que vai ocorrer. Boas risadas foram a resposta para aquele alegre comentário, e as bebidas foram servidas novamente. — Não consigo entender como conseguimos perder a Polônia. — O fato de haver tantos judeus na Alemanha nos enfraqueceu. Não cometeremos esse erro de novo. Vai ser bom ter mais espaço. — Precisaremos dele para todos os filhos que o Führer quer que tenhamos. 52
Um oficial de meia-idade alegre abriu uma garrafa de champanhe e a rolha voou pela sala. Pousou bem aos pés de Brigit, como se fosse um míssil guiado. Ela olhou para a rolha, mas quando ergueu os olhos para encarar a mistura de hostilidade e curiosidade à sua frente, agiu como a mais doce, encantadora e ingênua Fräulein que eles já tinham visto. A maneira infantil de corar e sorrir era encantadora, até musical, e amoleceu quase todos os olhares mais duros. — Vocês precisam me perdoar, cavalheiros, não tive a intenção de atrapalhar vocês. Queria apenas saber aonde tinham ido todos os homens elegantes. Profundamente embaraçada, ela corou de novo, e colocou as mãos sobre as faces rosadas, sem ousar olhar para os olhos risonhos. Alguns sorrisos eram indulgentes, outros estavam prestando atenção às curvas dela, e eram um pouco diferentes. Mas a distração, por mais agradável que fosse, ainda precisava ser afastada. Um oficial fez um meneio de cabeça a um homem mais jovem, dando a tarefa a ele. Ele assentiu de modo breve e cortês e virou-se para Brigit. — Permita-me levar a senhorita de volta e lhe servir um champanhe. Ela sorriu e aceitou o braço do jovem, permitindo que o polegar raspasse no pulso dele rapidamente, dando a impressão de ser um acidente. Brigit percebeu que o oficial estremecera, e ficou satisfeita. O nome dele era Gerhard, e ele cheirava a ambição, o que por si só não era nada incomum para jovens em Berlim, mas havia um nítido ar de determinação nele, algo que podia ser descrito como presas. Ele certamente estava olhando para Brigit como de desejasse engoli-la. Ela suspeitou que aquele desejo partia mais da ambição do oficial do que da atração que ela exercia. Uma mulher como Brigit, um prêmio que podia ser ostentado, seria ótimo de se ter. Homens ambiciosos e pouco atraentes sempre se aproximavam das mulheres mais lindas. E Gerhard não era atraente. Brigit se perguntou se ao menos a mãe dele gostava daquele rosto magro. O oficial mantinha os ombros para trás de modo pouco natural, uma postura que provavelmente tinha a intenção de passar a autoridade e o poder de um soldado, mas estava claro que ele esperava apenas que ninguém visse como seu peito era côncavo e magro. Os cabelos loiros eram finos e escorridos. As sobrancelhas quase brancas deixavam seu rosto sem traços. Eram mais grossas perto do nariz, onde 53
levantava, dando a ele um ar esquisito. Os olhos eram pequenos, e havia tantas perguntas nele que não restava espaço para alegria e calor. Gerhard tinha a aparência de um burocrata eficiente, não um candidato aos círculos mais privados, mas sua mente era rápida e sua maneira de agir era lisonjeira sem ser exagerada. Seu sucesso com as mulheres era nulo, mas ele sabia exatamente como fazer um homem se curvar em favores e estava bem estabelecido no caminho para o progresso, arrependendo-se apenas do fato de ser tediosamente lento. Brigit mal conseguia crer em sua sorte. Ele estava no Ministério de Armas, Munições e Armamentos e talvez tivesse o conhecimento do tipo de documentos que podiam ser úteis. Seria fácil lidar com Gerhard, ela pensou. Provavelmente não teria de gastar força alguma. Ele entregou a Brigit uma taça de champanhe e deixou que os dedos dela tocassem os seus quando ela aceitou a bebida, o que só podia ser interpretado como uma intenção maior. Ele a deixara perto do salão, onde Brigit viu Swefred, Cleland e Meaghan dançando com o que pareciam alvos certos. Melhor ainda, Mors estava conversando com um capitão, que havia chegado atrasado e foi recebido por Gerhard. O rapaz sorriu para Brigit. — Eu a verei em breve então, Brigitte. — Vou esperar ansiosamente isso. Não houve duvide de que Mors acompanharia os dois homens de volta ao círculo de poder. Brigit sentiu orgulho por ele parecer mais adequado naquele uniforme do que qualquer outro homem uniformizado ali – e todos viam isso. Isso se chama desenvoltura, seus tolos. E vocês nunca terão isso, mesmo que vivam duzentos anos. É preciso nascer com isso. Mors virou a cabeça o suficiente para olhar Brigit nos olhos, e piscou. Ela abriu um sorriso largo e não conseguiu resistir à tentação de sussurrar algo que só ele poderia ouvir: — Acabe com eles. ****
Eles compararam as conquistas quando voltaram ao refúgio. Mors, claro, havia conquistado aceitação e respeito, e os homens com quem ele
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conversara riram tanto de suas piadas que não tinham percebido como ele escapara das perguntas que fizeram. Cleland havia encantado a esposa de um jovem propagandista. Swefred tinha feito amizade com diversos jornalistas importantes. E Meaghan estava sendo perseguida por um homem em ascensão na Câmara de Cultura do Reich. Brigit riu com escárnio ao escutar aquilo. — Cultura! Eles perseguiram todos os melhores artistas e músicos, quão trabalhoso deve ser justificar uma câmara inteira? — Ele falou que eles são muito ocupados. — Meaghan disse de modo defensivo. — Provavelmente caçando mais artistas para mandar ao exílio. — Não, tentando criar artistas novos para agradar aos gostos forçados. — Mors disse. — Eles provavelmente mantêm um caldeirão na adega: Jogue algumas pimentas e bam!, cria-se um artista instantaneamente. A maior alquimia: A criação da criatividade. Ah, que nazistas espertos. Mexa e maravilha: Um músico! Meta a colher e tire um dramaturgo! Faça isso de novo e tire um ator, preparado para declamar com voz de barítono. Ele termina com um floreio e com um som repetitivo a orquestra começa uma marcha. Oh, eles gostam de uma boa marcha, não gostam? Que mistura deliciosa. Mas existe um porém, sempre há um porém. Esses modelos de eficiência se esqueceram de um ingrediente essencial! Dramaturgo! Ator! Músico! Pintor! Eles não precisam de corações? E almas, sim, em última instância, eles precisam de almas. Esse suflê não vai ficar bom. E essa é uma grande falha, não é? Oooohhh, sim, seja lá o que aquele tal de Speer tenha em mente, os maiores impérios são lembrados por sua cultura, e essa tentativa sem valor de império infelizmente é péssima. Pobres iludidos. Eu acabaria com o sofrimento deles agora, se eu tivesse uma alma boa, mas é muito divertido observar. E precisamos nos divertir nesses tempos estranhos, não é? Swefred ficou em pé e abraçou Meaghan. — Alguns mais do que outros. O sol está nascendo. Vamos dormir. Continue se quiser, pois tenho certeza de que você pode continuar nesse caminho por muito tempo. — Sim, posso brincar comigo mesmo por horas a fio. Swefred e Meaghan deixaram os outros três rindo. O sorriso simpático de Brigit continuou em seus olhos, mesmo enquanto ela balançava a cabeça de modo negativo a Mors. 55
— Mas isso não é verdade. Você sabe que não é. O Império Romano talvez tenha sido o mais poderoso que o mundo já conheceu. E eles tinham construções e esculturas, sim, mas nada como os gregos. Suas peças, poesias, tudo era derivativo. Ninguém se importa. — Eles tinham boa música. — Ninguém se lembra disso. — Eu lembro. — Mas isso não quer dizer nada. Você não conta. O que conta é a história, e para a história, o que tornou os romanos grandes foi a capacidade que eles tinham de alcançar qualquer lugar no mundo... e esmagá-lo. Mors ficou em silêncio por um instante. — Gosto quando você fala de modo figurativo. Ela se virou e ele esticou o braço e a segurou pelo pulso. — Eles não terão a chance. Se não estivéssemos aqui, pense em quão poderosa seria a nossa Inglaterra. Brigit sentiu orgulho e sorriu para ele. — Mas nós estamos aqui. A Inglaterra pode economizar sua força. Então, Cleland falou. — Fomos bem esta noite. Estabelecemos uma boa base na qual eles poderão deitar. Antes de Brigit se deitar para dormir, ela apertou o desenho dela e de Eamon, querendo sentir o calor dele sob seus dedos. Oh, meu Eamon. Vou jogar este jogo como uma campeã. E vou para casa para você. Em breve. Pela primeira vez desde que Otonia havia anunciado o plano, Brigit foi dormir sorrindo.
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Capítulo 6 Londres. Dezembro de 1938.
Mesmo depois de ler a carta pela terceira vez, o papel ainda tremia em sua mão. Eamon não sabia por que estava tão chateado. Afinal, aquele era o plano e tudo estava ocorrendo exatamente como ele esperava, então que diferença fazia? Aquele Gerhard certamente parecia disposto, o tolo perfeito para as habilidades de Brigit, e com conexões tão boas que o caminho para o sucesso parecia certo. E, claro, Brigit teria muitas maneiras de lidar com um homem como ele, maneiras de garantir que ele a tocasse quando não tinha a intenção. Então, não havia motivo para Eamon sentir ciúmes. Mas ele não conseguia evitar. Ela teria de sorrir para Gerhard, conversar com ele, escutar. Com o propósito de destruição, mas mesmo assim ele teria a atenção dela. E ele, Eamon, não estava ali para abraçá-la quando chegasse em casa todos os dias antes do amanhecer. Se ao menos ele estivesse perto, podia ser o receptor de toda a energia frustrada dela. Poderia limpá-la com os olhos e a língua. Podia apertá-la contra ele para que ela se soltasse. Podia mantê-la segura e tranquila. Colocou a carta no bolso da frente, esperando guardar também sua chateação. Otonia dissera a ele que o controle de Brigit era excelente, que ela conseguiria fazer tudo aquilo tranquilamente e que ele se sairia bem caso tentasse concentrar sua preocupação e atenção onde mais ajudaria. — Além disso, Mors está lá. Ele a salvara da primeira vez e poderia fazer isso de novo, se fosse preciso. Mas não acredito que será. Sim, Mors estava lá. Mas apesar de sua longa amizade com Brigit, não tinha um nível muito forte de ligação com ela. Eamon, mais de duzentos anos mais novo que ele, tinha sido ligado a ela antes mesmo de sua transformação. Durante aqueles séculos, eles tinham se interligado, e ele conseguia sentir o que ela estava sentindo a quilômetros. Se houvesse qualquer problema, ele 57
conseguiria chegar lá mais rapidamente que Mors, apesar da lendária velocidade do vampiro. Mors e Brigit eram amigos, próximos da maneira com que um irmão e uma irmã humanos conseguiam ser, mas quando então, ainda como ser humano, Eamon havia olhado dentro dos olhos de Brigit, vira vida ali dentro. Nos dela e nos dele. A vida de um era guardada pelo outro, assim como a felicidade. E ali estava ele, seguro, confortável e sem função em Londres. Irritado demais para pensar em comer, ele voltou a caminhar pelas ruas. A noite estava úmida e fria, e as pessoas corriam de táxis e ônibus para abrigos do modo mais rápido que conseguiam, esforçando-se para manter os guardachuvas e os ânimos intactos. Dois homens tinham uma discussão acalorada sobre quem havia conseguido o táxi primeiro, e o motorista mal-humorado só estava esperando que o caminho fosse aberto para que pudesse partir e deixar os dois discutindo. Eamon observou os homens por um instante, e não conseguiu deixar de interferir: — Por que não analisam se estão indo para a mesma direção? Poderiam dividir o táxi. O motorista, interessado, virou-se para ver a reação dos homens. — É justo, para evitar problemas. O senhor está indo em direção a Chelsea? O mais educado dos dois esperou uma resposta do adversário. O homem observou Eamon com um sorriso de desdém. Eamon percebeu que ele havia bebido um pouco demais depois do trabalho, e precisava extravasar seus sentimentos. — Você é judeu ou uma bicha? — o homem perguntou. — Deve ser um deles, pois são os únicos que sugerem que homens que não se conhecem se unam para economizar dinheiro. Tanto o motorista como o homem que estava indo para Chelsea ficaram enojados pelo comentário e aproveitaram a chance para fechar a porta e ir embora. Antes que pudesse haver qualquer protesto, Eamon estava diante dele, sorrindo de modo intimidador. O homem não havia percebido que Eamon era alto, quanta força havia em seus ombros e braços. Ele queria dar um passo para trás, ou gritar por ajuda, mas estava congelado. Ninguém os notou. — Na verdade, não sou nenhuma das duas coisas. — Eamon disse. Sua voz tinha um ritmo que espalhava um calor e zumbido repentinos pelas pessoas 58
que passavam, mas que deixaram o homem se sentindo como se alguém estivesse apertando seu crânio. — Mas você não deveria ofender ninguém dessa maneira. Sabe disso, não é? Não é educado. E ele apertou o ombro do homem com a mão, fez um meneio de cabeça e se afastou em meio à névoa. Porém mais tarde, no hospital, quando os médicos estavam se esforçando para consertar a clavícula quebrada do homem, ele não conseguia se lembrar de como havia se ferido. ****
Desperdício, desperdício, desperdício. Eamon colocou a mão na nuca e subiu a escada comprida que levava ao depósito da biblioteca. Eu não deveria ter feito aquilo. Não deveria. Ele ainda é jovem, cheio de vigor. Estou chateado demais, e isso está atrapalhando meu bom senso. Estou sozinho. Não sou bom quando estou sozinho. Qualquer um poderia confortá-lo, se ele pedisse, diria que eles eram apenas criaturas, que não importava quão velhos e circunspectos eles fossem, ainda assim aquele era o tipo de comportamento que deveriam esperar deles, e, além disso, o ferimento não tinha sido tão grande e o tolo mereceu. Talvez. Mas eles não deveriam policiar o mundo dos seres humanos, interagir demais – isso atrapalhava o equilíbrio. A menos quando precisamos, claro. Assim é diferente. Ele esperava. Seu estômago estava embrulhado. Ele pensou que ia vomitar e apertou o rosto contra a pedra fria, fechando os olhos. Um tipo especial de culpa estava correndo por ele, que não conseguia interromper a sensação. Não tinha nada ver com o homem a quem ele havia ferido, nem com sua capacidade de ajudar na missão, nem com a antiga dor já conhecida, aquela que o perturbava com diversos níveis de intensidade havia séculos. Era algo novo e ruim para ele. Por fora, todos sabiam que ele estava assustado com aquela chama desconhecida dentro de Brigit, aquela que só ele sabia controlar. Mas havia outro medo dentro dele. Ela podia mudar. Podia voltar e não ser sua querida. Ele estava sendo injusto, sabia muito bem, e sentia culpa. Mas por quanto tempo eles podiam comer pessoas tão repletas de ódio, medo e ira? Sem nenhuma 59
variação na dieta, ou no ar que os cercava, mesmo que não tivessem de respirar, o que aconteceria? Os refugiados talvez nunca mais fossem como antes. Brigit poderia ser marcada da mesma maneira? Por favor, Brigit, nós ficamos tão bem juntos. Trabalhamos tanto para chegar onde cheg amos. Não mude. Não se afaste de mim. A diferença de idade entre eles raramente o incomodava. O que eram duzentos e setenta e quatro anos quando eles tinham vivido juntos três vezes esse tempo? Só importava naquele momento, porque a idade dava a ela uma força que ele não tinha. Mas ele conhecia os pontos fracos dela também, nos quais ela era mais fraca que ele, e quem mais poderia protegê-los? Mas e se ela não precisar de mim? Detestando a si mesmo por pensar naquilo, ele procurou em sua camisa o medalhão que sempre usava. Uma mecha do cabelo dela estava ali dentro. Eu conheço você muito bem. Seu cabelo era comprido e desgrenhado naquela época, e seus olhos eram selvagens e você era solitária e faminta. Estava enterrada na escuridão e perdida no ar, como se fosse Caliban e Ariel juntos. Você era Brigantia e antes disso era ser humano, e em todos aqueles anos você estava procurando, procurando, e sua busca terminou em meus olhos. Ele sabia. Sabia tudo. Ela havia contado sua história para ele como se fosse um baú de tesouros, e ele havia absorvido tudo de bom grado, como se fosse sua própria história. E as partes que ela não conseguia ver, ele conheceu por meio de sua forte visão interna. Para recomeçar, sentir a história toda, lembrar de novo o que ele sabia de modo tão íntimo para mantê-la presente, mesmo quando distante... Ele apertou o medalhão nos lábios e se concentrou. ****
Mil e vinte e três anos antes, uma pequena comunidade brigante continuava a viver como os antigos bretões, sem se deixar influenciar pelos romanos ou vikings, apesar de estarem sobrevivendo na cidade que eles chamavam de Jorvik, que ficava a meio dia de distância a pé. Seja porque sua localização nas cavernas ou campos era de difícil acesso, ou porque não eram conhecidos, ninguém se importava nem discutia sobre eles. Apenas alguns dos nomes que haviam sido espalhados pelos diversos invasores permaneciam nas 60
mentes dessas pessoas, e foi assim que a dama mais jovem e bonita entre eles passou a ser chamada de Hilda. Ninguém podia saber, quando ela nasceu, como o nome lhe seria útil, pois havia um espírito guerreiro dentro dela. Seu temperamento era assustador, especialmente por ser muito imprevisível. Alguns se perguntavam se talvez se tratasse de um mau agouro, e ocorreram algumas tentativas de matá-la, como se isso fosse, talvez, o que os deuses queriam, mas ela escapara de todas as tentativas. Ou, como diriam os mais antigos, os deuses tinham intervindo. Eles não conseguiam entender de onde tamanha raiva havia saído, e concluíram que a mãe dela devia ter se aproximado de uma fogueira quando Hilda foi concebida. As mulheres cuidaram dela desde então para manter distância das chamas durante momentos tão delicados. A fase adulta não havia melhorado seu temperamento, apesar de ser notado que ela era tão rápida para rir quanto para dizer algo cruel. Aos dezessete anos, seus pais já tinham morrido havia muitos aos e ela não tinha irmãos. As pessoas sentiam menos medo dela do que antes – ela era apenas parte do cenário, a parte mais bela e interessante. Nenhum homem tinha a coragem de interromper a solidão dela. Mesmo que ela pudesse ser perseguida, não podia ser capturada – corria mais rápido do que o jovem mais forte. Mas eles a admiravam. Ela gostava de subir em árvores de olhar para a terra. O sol refletia em seu cabelo loiro e os olhos eram da cor do céu a que eles tanto observavam. Às vezes ela não parecia totalmente real. Apenas a mulher curandeira, Ceara, que havia tomado conta dela, sabia do interesse de Hilda por ervas, e especialmente por coisas que podiam crescer à noite. Se alguém mais tivesse tomado conhecimento de que ela saía para vagar no escuro assustador, ela teria sido expulsa com certeza. Mas Hilda não via motivos para temer a escuridão. As coisas aconteciam no escuro. Havia criaturas, algumas que nunca podiam ser vistas, mas que eram maravilhosas de ouvir. Durante as tempestades, havia raios, o que a deixava muito animada. E havia coisas que cresciam. As ervas tinham poder. Podiam tirar a doença das pessoas. Algumas podiam até afastar o desespero com seu odor. Não havia ira nela quando estava entre as ervas, tirando-as delicadamente da terra. Nos dias quentes de verão, ela gostava de caminhar até a fonte que alimentava o rio. Enchia o vaso com água, à qual adicionava pitadas de alecrim, depois de descobrir que isso resultava em uma bebida agradável. 61
Então, subia em uma árvore e olhava para a fumaça alta que indicava a localização de Jorvik. Hilda não tinha muita paciência com vikings ou com suas histórias. Apesar de seu temperamento, ela não via motivos para violência, a menos que houvesse motivo, por isso os homens que usavam de violência para passar pelo mundo eram automaticamente reprovados. Ainda assim, a ideia dos vikings a deixava intrigada. Eles tinham vindo de outro lugar. Conseguiam fazer as coisas acontecerem. Eles sobreviviam em um lugar no qual a fumaça sugeria que eram ativos, e talvez até interessantes. Não, tinha de ser interessante. Vivo. Entrar na cidade seria entrar em um mundo no qual talvez os dias não fossem guiados pela constância invariável. Se ela não suspeitasse de que uma menina sozinha entrando em uma cidade seria uma presa imediata para os homens de ação, ela iria diretamente, sem arrependimentos. Ela também se perguntava o que existia além do mundo dos vikings. Era outra coisa que ela desejava, que parecia totalmente inalcançável. Não conhecia a palavra amor, mas sabia que existia algo de que precisava que era maior que a cidade, o rio, a floresta. Ela se sentia confortada ao saber que poetas haviam escrito sobre tais desejos, mesmo que ela tivesse certeza de que não poderia alcançá-los. Só sabia que existiam momentos de alegria e desejo que ela queria dividir com alguém que conseguisse compreender, que soubesse falar um idioma que ia além de palavras, e saber que essa pessoa nunca existiria para ela às vezes apertava tanto seu coração que ela acreditava que podia explodir, e tinha de enterrar a si mesma na folhagem para que seu choro não fosse ouvido. Mas naquele dia, no entanto, ela apenas suspirou. As lágrimas e desejos não faziam diferença. Caminhou lentamente para casa, pelo rio, aproveitando a lama entre os dedos e os raios de sol brincando na superfície da água. Existiam prazeres em seu mundo, e ela não era o tipo de garota que os ignorava. ****
Seis meses depois, um grupo de vikings estava viajando longe demais para uma noite escura de inverno. Eles subiam os montes, mas não teriam encontrado a comunidade se não fosse o dia de comemoração do inverno e se não tivessem encontrado uma fogueira cerimonial. Talvez, se ninguém houvesse gritado, as coisas não teriam ocorrido como ocorreram. Havia 62
alimentos suficientes para a comunidade e um grupo de vikings famintos. Mas havia gritos, invocações. Um pedaço de tronco foi arremessado. Assim aconteceu. Hilda considerou repulsivo o som do grito. Para que gritar quando se podia brigar? O que havia de bom no grito para as pessoas? E ela lançou um pedaço de lenha, e o som da madeira em contato com a nuca do homem, através de seu cabelo oleoso – o barulho do impacto – foi empolgante. Ele caiu aos pés dela, e Hilda arrancou a espada que ele empunhava. Mas, rapidamente, duas coisas aconteceram que mudaram seu rumo. O impacto da fúria dentro dela, útil, finalmente, parecia fazer sentido e quase a acalmou quando percebeu que era só aquilo, que ela queria. Ação. A pequeneza daquela vida era o que causava tamanha paixão. Hilda queria sair, correr pelo mundo fazendo coisas. Aprendendo. Vivendo. Procurando ativamente algo que pudesse chamar de alegria. Não havia nada ali pelo qual ela quisesse ficar e lutar. Queria voar. A segunda coisa que aconteceu foi que seus olhos, brilhando com a delícia da consciência, foram vistos. E ela viu que eram vistos. Apenas uma garota humana que havia passado tanto tempo de sua vida explorando a escuridão podia ter visto aqueles olhos. Apesar de ela não saber o que eram, ela sentia o que eles pretendiam. Captura. Não. Ah, não. Não cheguei até aqui para ser tratada como escrava por um bruto. Não é essa a vida que terei. Então ela se virou e correu. Durante alguns anos depois, seus pensamentos se voltavam para aquela fuga. Como ela devia ser, com olhos que conseguiam ver muito melhor no escuro do que os dela. As costas fortes, a cintura fina. A luz da lua passando às vezes em sua perna através do tecido rasgado. Os cabelos cacheados esvoaçantes enquanto ela escapava pela mata, correndo como uma égua selvagem. Ela era a maior tentação, uma criatura feroz a quem seria um prazer domesticar. E o olhar atraente dela não era nada comparado ao odor inebriante. As ervas que cultivava, a determinação e o riso dentro dela, tudo em ebulição. E, claro, a evidente ira, a ira que surgia por meio de seus poros e que indicava atração pura para o tipo de temperamento que havia sido atraído por ela antes mesmo de ela lançar aquele tronco. O odor perdurou... foi a corda que a prendeu pelo labirinto. 63
Havia uma caverna rasa perto do rio, perto do local onde ela gostava de pescar, e foi ali que ela se abrigou. Não encontrou nada no escuro, e ela entrou e direcionou-se diretamente para um canto coberto por musgo que formava um agradável ninho. Havia uma poça ao lado e ela se curvou para lavar o rosto. As gotas ainda estavam no ar quando seu reflexo distorcido a assustou. Não por causa dele, pois ela havia visto seu rosto na água muitas vezes, mas porque estava claro o suficiente para que ela pudesse ver. Havia uma tocha. Ela havia sido seguida. Sua intuição foi rápida e certeira, mas ele a segurou pelo pulso no momento em que ela encostou a espada em seu estômago. O homem sorriu. Não estava vestido como os outros vikings, e havia algo em seu rosto que fez com que ela pensasse que ele era ainda mais desconhecido do que os outros. Era estranho. Ela não o considerava atraente, mas não conseguia parar de olhar para ele. Só conseguia encará-lo, então foi o que fez. Independentemente do que ele planejara fazer, não havia a menor chance de ela permitir que ele aproveitasse aquele momento. — Que menina curiosa e vulcânica você é. Sim, esse é o tipo de calor que uma pessoa poderia aproveitar por anos. Ela não sabia o que ele queria dizer, mas o tom de sua voz estava fazendo com que ela sentisse vontade de vomitar. — Sou Aelric. Qual é seu nome? — Você vai me levar para onde quiser, mas eu não vou lhe dar nada. Ele pareceu achar aquilo engraçado. E isso, por sua vez, a deixou mais determinada a matá-lo. Ele deve ter percebido, porque tirou a espada que ela empunhava e a jogou na parede rochosa da caverna. Hilda nunca havia sentido medo na vida, mas agora alguma coisa a incomodava sob o couro cabeludo. Não era força humana. Havia outra coisa acontecendo ali. A noite estava fria, mas o suor se acumulava embaixo dos braços. Ele sorriu, e foi um sorriso inesperadamente meigo. Esperançoso. Ele sussurrou e a acariciou de um modo que derreteria qualquer virgem impressionável e ingênua, e apesar de Hilda ser virgem, seu medo se transformou em condescendência, combinado com resignação desdenhosa. Como ela esperava, era aquele o resultado. Grande estupidez. Um grande desperdício. Não havia mais do que aquilo – em algum lugar, qualquer lugar? 64
E ela não podia correr? Aquele hálito quente em seu pescoço, mãos, pressionando suas costas. Uma nova fúria impaciente se formou dentro dela. Ele parecia estar rosnando como um animal. A sensação era de que seus órgãos estivessem se expandindo e ela espirraria uma fúria pastosa, esperando que ele se afogasse nela. Hilda não tinha sentido a mordida, e apertara a parte de dentro das bochechas com tanta força com os dentes que sentiu o gosto do próprio sangue, mais o que o do dele, quando ele posicionara o pescoço e o pressionara em sua boca. Ela pensou em apenas uma coisa coerente, que atrapalhava seus sentidos. Você não vai me possuir, não vai me possuir. Vai fazer o que tiver de fazer, mas não vai me possuir. Não vai. Não vai. E um último “não vai” foi o último pensamento humano que ela teve ao cair em um sono de morte. ****
Como em qualquer tipo de fenômeno, existe um ritual envolvido na transformação de um vampiro. Um vampiro de longa vida e poderoso é sempre criado sob determinadas leis. Se Aelric fosse o tipo de vampiro que escutasse com qualquer nível de atenção, ele ainda assim não se renderia a orientações, principalmente se feita por Otonia. Ele se mantinha com o tribunal apenas porque no fundo sabia que não tinha a habilidade de liderar uma pequena família própria, e nenhuma família razoável adotaria um vampiro tão imprudente, fútil e tolo. Tinha sido apenas a proteção do tribunal que permitira que ele vivesse cerca de cinquenta anos, e até mesmo isso era surpreendente para Otonia. Mas nada era tão impressionante quanto a sorte que havia transformado a vampira que antes era Hilda. Não podia ter existido outra estrela da sorte no universo naquelas vinte e quatro horas – toda a sorte devia estar sobre ela. Havia muitas chances para que desse errado. Aelric não havia percebido que o calor nela era fúria e escárnio. E quase era tarde demais para a oferta sangrenta dele – seu sangue estava nos lábios dela quando Hilda fechou os olhos. Ele havia realizado um trabalho ruim ao enterrá-la, sem prestar atenção às pedras do solo. Escapar do local do enterro tinha de ser difícil – metade da virilidade de um vampiro era conquistada naquela cova –, mas se demorasse 65
demais um vampiro podia ficar fraco, até morrer de fome. Mas Hilda era forte, e a raiva com a qual havia morrido ainda corria dentro dela, e ela impacientemente saiu da cova. Um vampiro devia nascer com paixão, desejo, e não raiva, mas foi a ira e o solo difícil que se uniram para dar a ela a força de um centenário em sua ascensão. A fome por sangue e vida não era o interesse delicado que deveria ser, mas uma tempestade, de modo que quando Aelric estupidamente esticou o braço para ajuda-la a sair do solo, ela passou por ele, derrubando-o. Ele a seguiu enquanto ela caminhava, com intuição perfeita, até o ponto onde sabia que o alimento a esperava. — E se eu conseguir um alimento bom para sua primeira refeição? Não que ele não soubesse que você deve permitir que sua cria encontre seu primeiro alimento, mas havia algo nela que o deixava disposto a ser solícito. A antiga dança entre homens e mulheres – quanto menos interessada uma mulher fica, mais um homem tenta agradá-la. Nem mesmo um vampiro ficava imune a isso. Mas ela havia levado consigo seu desdém pela ajuda, principalmente a ajuda de homens. A única resposta que ele recebeu foi um rosnado, que não teria sido mais assustador nem mesmo se suas presas estivessem esticadas. Por fim, ele parou e esperou, ansioso e confuso, observando enquanto ela descia um monte direção à sua antiga casa. Havia corpos espalhados pelo chão, e os vikings ainda estavam ali, embriagados e festejando, como se uma noite toda não tivesse passado. Um jovem viking estava sentado ao lado da fogueira, puxando a pele queimada de um porco assado – dos quais havia muitos, agora que a maior parte da comunidade estava morta. Porcos aos porcos. Isso fez com que ela desse risada, e o som fez com que o jovem olhasse para cima. Sorriu. O líder dissera que algumas das meninas que estavam se escondendo retornariam assim que sentissem fome, e ali estava uma delas. Uma loira magra que devia ser bonita sem toda aquela sujeira. Um corpo de infinitas possibilidades. Olhos brilhantes. Um banho e um bom pente, e ela ficaria deliciosa. — Bem, menina bonita, você deve estar morrendo de fome. Ela sorriu. Ele ficou surpreso. — Você não está me entendendo, não é? Ela entendia, mesmo que não como ele esperava. Mesmo assim, era tudo de que ela precisava. 66
Ele ofereceu a carne a ela. — Coma um pouco. Está fresca. Vamos, pode experimentar. E ela experimentou. ****
A fincada. A refeição. O nome. Aquela era a fórmula. Nem todos os vampiros escolhiam novos nomes quando se transformavam, mas até mesmo isso era uma escolha, manter o nome humano. Seu criador podia dar conselhos, mas apenas se o vampiro pedisse. Não era uma relação de pai e filho. O vampiro era parceiro de seu criador, o que era totalmente diferente. O nome escolhido marcava o vampiro, ajudava que ele se transformasse em quem era. As crias que desejavam que seus criadores lhe dessem nomes raramente duravam muito. Alguns sabiam disso por intuição, mas muito porque o criador explicava tudo no caminho para o refúgio. Ela sabia por intuição, o que Aelric deve ter percebido. Ele sugeriu que ela se chamasse Fleta, devido à sua velocidade. Ela parou e o olhou nos olhos. Agora que eram iguais, e que ela havia se alimentado, podia avaliá-lo verdadeiramente. Ele era fraco. Teimoso, meigo e tolo. Seus poucos bons instintos – e ela tinha sido um deles – não eram nada comparados com os ruins, que dominavam. Ele havia a transformado em sua solidão, pois não tinha nada nele que provocava a confiança e a amizade, muito menos amor dos outros. Ele era um membro do tribunal porque era vampiro, porque nenhum vampiro era forçado a ficar sozinho, mas era aí que acabava a proteção. Ela sentia pena dele, mas conseguia ver como ele a atrapalharia. Seu conhecimento e autoconsciência estavam se expandindo a cada minuto, como se agora que ela não precisava respirar oxigênio, estava inspirando, no lugar dele, a sabedoria do mundo. Isso a introduziu a uma nova sensação – a frivolidade. Ela se sentia grande e abrangente. Sentia-se como um urro. — Meu nome é Brigantia. — O quê? Ela respondeu automaticamente, porque não era a voz dele que ela escutava. — Brigantia. Nossa deusa. Você não me dará nenhum outro nome. E ele nunca ousaria tentar.
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Ser criado era um ato íntimo, e esperava-se que sua criação seria uma parceria íntima. Tinha de ser uma relação simbiótica. Talvez, com o tempo, um se afastaria do outro, mas era raro. O beijo intenso tinha a intenção de abrir a porta para beijos mais profundos e mais intensos. Só por que o sangue não mais corria nas veias, não significava que ele não podia ferver. Assim como criador e criatura dividiam o sangue, tinham de dividir os corpos. Brigantia conhecia seu dever, sentia sua obrigação e se perguntava também se faria diferença. Suspeitava que não, e acreditava que seria injusto não tentar. Ser virgem não tinha o mesmo peso místico para um vampiro quanto para uma menina humana, por isso não havia nada que a fizesse sentir qualquer tipo de arrependimento da falta de fervor dentro dela ao sair de seu banho quente e passar pelas cavernas do ninho de Aelric. Ninguém pede por esse presente, mas, uma vez dado, costuma ser bem-vindo e recebido com gratidão. Ela sabia que tinha entrado em algo especial, e se sentia agradecida por Aelric ter a escolhido. Só não conseguia deixar de desejar que outra pessoa tivesse feito a escolha. Uma única vela queimava sobre uma mesa no canto da caverna. Aelric, vestindo apenas uma túnica curta, pegou a mão dela quando Brigantia entrou e a levou à luz da vela. Precisou tentar algumas vezes, mas conseguiu abrir seu manto e olhou para ela, boquiaberto. Ela olhou dentro dos olhos dele e tentou ver a si mesma. Seu único interesse ao próprio corpo tinha sido o que ele podia fazer – a aparência parecia algo inútil de se perceber. Agora, ela via os músculos longos e robustos de suas pernas, a pele sedosa, as gotinhas de água ainda presas a seus cachos dourados e delicados que cobriam seu corpo e davam a impressão de que ela brilhava à fraca luz. Barriga reta. Seios empinados e grandes. Pescoço comprido. Braços fortes, ombros erguidos, dedos longos. Ele estivou o braço e envolveu as nádegas dela, apreciando-as. Por ele, ela ficou contente por seu corpo ser agradável, mas enquanto ele o explorava demonstrando inexperiência, primeiro com as mãos e depois com a boca, ela sentiu um arrepio lhe percorrer como uma vespa. A dor que tomou conta dela quando ele a penetrou não era dor de uma moça virgem, não a combinação de dor e felicidade que marcava a ocasião quando ocorria de melhor maneira. O que Brigantia sentiu ia além do corpo, de 68
sua pele sendo puxada por trás. Ela sabia o que aquilo devia ser, sabia que era sagrado, algo especial, que seu coração se abriria tão rapidamente quanto suas pernas, e com o mesmo calor. Mas suas pernas se abriram apenas porque Aelric quis que se abrissem, e seu corpo forçou o calor mesmo contra sua vontade, para se proteger de uma dor maior. Brigantia pensou que teria recebido de bom grado mais dor física para que pudesse se anestesiar dos pontos tortuosos aonde sua mente estava chegando. Mais uma vez, Aelric causou medo nela, e aquele foi maior, porque ela sabia que seu destino estava selado. Todas as noites antes do amanhecer, aquilo se repetiria, ela teria de dar seu corpo, o que deveria ser um prazer, mas que só fazia com que ela se lembrasse de como estava sozinha. Sozinha, e talvez merecesse estar assim. Ele a mordiscou diversas vezes, com delicadeza, com os dentes humanos, um tipo de reparação pela outra mordida, mordidas que tinham a intenção de aumentar seu desejo em vez de sugar sua humanidade, mas ela não sentiu nada. Ela precisava que aquilo terminasse antes que ele a visse chorar. Depois de quinze minutos que parecerem intermináveis, ele atingiu o clímax, gemendo sobre ela em derrota arrebatadora. O peso do corpo dele, frio e quente, não era uma coisa tão desagradável, e ela acariciou os cabelos dele com delicadeza espontânea. Mesmo assim, ela suspeitava de que ele sabia, ou pelo menos sentia, que aquilo não era uma união de corações. Ele era um tolo, mas não podia ser totalmente insensato. Aelric levantou a cabeça para olhá-la. Seu desejo tinha sido tão grande. Aquelas curvas, aquele cabelo... ele pensara que ela era uma criatura na qual podia se perder por completo. Mas apesar de todo o calor interno, ela estava inexplicavelmente fria. E ainda, quando Aelric se deitou de costas, ela olhou para ele e sorriu, e o sorriso foi quente. Era a primeira expressão delicada que ele havia visto no rosto dela, e isso a deixava ainda mais bonita, e Aelric acreditou ter sentido seu coração acelerar. Criatura impressionante. Ela afastou os cabelos suados do rosto dele, deu-lhe um tapinha no rosto e colocou um manto sobre os ombros. — Aonde você vai? — Quero sentir o ar. — Já está quase claro. Você precisa ser cuidadosa. Não vá. — Vou voltar.
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Na entrada principal da série de cavernas, ela se sentou, recostou o queixou sobre os joelhos e olhou para a escuridão à sua frente. As estrelas não estavam mais ali, porém o céu ainda estava escuro. Finalmente, uma chance de pensar, de absorver tudo o que tinha acontecido. Havia alguns sussurros de arrependimento. Se soubesse que a manhã sem graça de dois dias antes seria a última oportunidade de ver o sol, teria prestado mais atenção. Enquanto eu viver, vou me lembrar de que a luz do dia é algo bonito. Ela me assusta e pode me matar, mas vou me lembrar de que ela é bela. Ela sabia que sentiria falta de ver as flores se virando para o sol, de ver todas as cores de cada planta que crescia sob seus cuidados, o arco-íris da natureza. Mesmo assim, ela sempre amara as plantas da noite, os botões que escolhiam as horas mais escuras da noite para se abrir. Ela tentou pensar se alguma coisa em sua vida como ser humano lhe dera um indício de que aquilo estava para acontecer, se estava planejando e se a havia preparado. Nunca soubera nada e sobre os vampiros, mas curiosamente não sentia surpresa com o ocorrido em seu destino. Pelo que percebera, sua mente repassava o monólogo de todos os novos vampiros, apesar de nenhum deles saber que era um tipo de roteiro. Meu lado humano morreu. Parte dele continua em mim, talvez sempre estará, mas existe um demônio também. Os seres humanos agora são meu alimento, minha vida e presa. Sou apenas da noite, a partir de agora e sempre. Para sempre, seja lá até quando for, e espero que dure milhares de anos. Eu não teria escolhido esta vida, mas ela me escolheu, e eu a aceito. Estou ligado a eles. Mas a partir dali, seus pensamentos tomavam um rumo único para ela, e iam por um caminho que ela desejava não ter de seguir. Não sinto amor por Aelric, apesar de ele ser meu criador. Sinto gratidão pelo presente, e até por seu desejo, mas sinto pena dele por suas boas intenções e tolice, e certamente nunca senti pena de ninguém enquanto era ser humano, mas não é nele em quem posso confiar todo este amor que pesa dentro de mim. Não. Eu não consigo amá-lo e nunca amarei. E ele... ele não me ama. Pensa que me ama, e isso é bonito, mas ele apenas ama a ideia. Ele nunca vai me ver, quem sou agora e quem serei. Saí da luz para a escuridão eterna apena s para ser afastada do amor? O amor não é a única luz verdadeira nesta escuridão? Ou talvez esta seja apenas a minha marca. Como moça e agora como criatura. Não fui feita para o amor. 70
O céu estava ficando azul-escuro. Era hora de ir. Aelric estava mantendo a cama aquecida para ela, e isso seria agradável. Era importante. Ainda assim, ao dar as costas para o sol que nascia e ao entrar no túnel, ela se questionou como um coração que não mais batia podia sentir-se despedaçado. ****
Eamon ficou em pé, secando o rosto molhado. Havia séculos que não pensava na história confusa de Brigit, mas aquele mundo era mais vívido do que as lembranças de sua própria história. A dor de Brigit o feria. Ele queria voltar no tempo e reorganizar as coisas. Ele não sentia ciúme por causa de Aelric, do vínculo que ele havia estabelecido com Brigantia, dos anos que passaram dividindo uma cama. Talvez tivesse sido diferente se ela o amasse, mas a única coisa que Aelric teve que Eamon gostaria de ter tido era a chance de olhar nos olhos humanos dela. E uma vez que isso nunca seria possível, ele não se importava. Também sabia que não seria a mesma coisa. Os olhos azuis intensos que encontraram os deles quase trezentos anos depois tinham sidos moldados pela vida. Eles eram marcados menos por aquela fome e ira do que pela solidão. Havia um grande conhecimento da humanidade neles, e uma inteligência sedutora, e o vestígio de algo parecido com esperança assustadora. Algo que, em sua mão, havia se desenvolvido. Não perca isso, Brigit. Não volte sem o brilho. — Eamon? Você está bem? Padraic tinha subido a escada e olhava para ele com preocupação. — Estou bem, obrigado. Só estou pensando. Padraic assentiu e esticou a mão para ajudá-lo a se levantar. Eamon não olhou nos olhos dele e não disse nada quando ele se virou e voltou para sua torre. Não havia percebido quanto precisava sentir um toque amigável, mesmo que por um breve momento, e não tinha certeza de que podia tolerar aquilo.
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Capítulo 7 Londres. Dezembro de 1938.
Uma onda de calor tomara conta da terra. Brigit podia sentir os cabelos começando a endurecer. Não conseguia se lembrar de já ter experimentado tamanha fome e desconforto. O demônio estava inquieto, ansioso, arranhando seu corpo. Não havia mais nada para ele. Já era hora de se arriscar. A água no pequeno banheiro permanecia quente, mas ela molhou um pouco o pescoço e os braços mesmo assim, dizendo a si mesma que aquilo oferecia alívio. Havia o problema de deixar novamente a carga sem supervisão, mas não tinha como evitar. Já havia passado a época em que ela conseguia espaçar as refeições. Um pouco mais de esforço e ela ficaria tão delicada quanto a carga. Prendendo o cabelo em um coque e colocando uma camélia de seda atrás da orelha, ela saiu do vagão. Se não estivesse tão indisposta, seus joelhos não teriam cedido com tanta facilidade quando a luz do pôr do sol a atingiu bem nos olhos. As cortinas costumavam ficar fechadas naquela hora da noite para evitar a claridade, mas alguém havia levantado a cortina ao lado de seu compartimento. A luz queimou sua pele e o demônio rosnou, quase apontando suas presas. Ela abaixou a cabeça e fechou a cortina rapidamente. Tentando recompor-se sentiu um odor fraco, mas não viu ninguém por perto. Tinha certeza de que era o médico, mas não sabia por quê. Aquelas pessoas se orgulhavam da lógica, e onde estava a lógica em mandar um médico atrás dela? Se é que era o que eles estavam fazendo. Havia outras possibilidades. Ela não conseguia imaginar quem poderia tê-la descrito bem o suficiente para torná-la um alvo com tamanha precisão, porém era mais seguro pensar que tinham suspeitado e tentavam ter certeza antes de fechar a armadilha.
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Bem, onde vocês estão pequenos covardes? Acabei de demonstrar uma grande fraqueza, estão satisfeitos? Não querem dançar ao meu redor como se eu estivesse morta? Ela atravessou o corredor com a fúria e a raiva ressoando em seus ouvidos, os dedos nervosos esperando algo para rasgar. Kurt não estava em seu vagão, e ela suspeitou que ele estivesse com aquele porco do Eberhard, planejando alegremente a ascensão meteórica no mundo da arte. Decidindo que estava na hora de deixar o cuidado de lado, Brigit adicionou a morte deles à sua lista de coisas a fazer antes de descer do trem. Haveria tempo de planejar assim que conseguisse pensar de modo adequado. Assim que ela... — Fräulein! Maurer se aproximou dela, sorrindo. Uma mulher rechonchuda com um chapéu enorme fungou ao passar por Brigit e lançou um olhar ao sargento que sugeria que ele não deveria gastar o tempo prestando atenção a tamanho lixo. Maurer não percebeu; ele estava olhando fixamente para Brigit. Seus olhos brilhavam. — Está gostando da viagem? A voz dele era educada e demonstrava interesse verdadeiro. Brigit ficou confusa. Não tinha ideia do que pensar dele. Decidiu que era melhor participar do jogo e interpretou o papel esperado: o de menina mimada e tola. Do tipo que ele se cansaria logo. — Estou, mas está demorando mais do que eu esperava. As paradas são muito longas. Já não deveríamos ter chegado à Suíça? — É verdade, é verdade, peço desculpas, mas você deve entender que é preciso tomar muito cuidado, é preciso ter muita atenção para conferir papéis e bagagens. Está ocorrendo uma guerra, como bem sabe, e existem espiões entre nós. Todo cuidado é pouco. E receio que os ingleses conseguiram danificar algumas estradas com as bombas. Isso está nos atrasando consideravelmente. Brigit viu-se na estranha situação de festejar por seu país de origem, ao mesmo tempo em que se sentia contrariada com suas ações. — Sim, mas eu pensei que os trens alemães fossem eficientes mesmo durante uma guerra. Eu já poderia ter chegado a Bilbao! — Seria interessante.
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— Em uma próxima vez eu talvez vá. Mas, como eu ia dizendo, está tão calor que não consigo pensar em uma viagem tão comprida, nem por brincadeira. — Sim, o calor está forte. Todos ficaríamos mais felizes se pudéssemos usar menos roupas. Brigit não tinha mais energia para corar, porém respondeu ultrajada. — Sargento Maurer! Receio que essa não seja a maneira mais correta de falar. — Vamos, Fräulein. As moças que fazem refeições com artistas são conhecidas por sua mente aberta. Um sorriso ameaçou surgir em seu rosto, e ela rapidamente o transformou em desaprovação. — Talvez na Alemanha, mas não é o caso da Irlanda. Seu tom de voz controlado diminuiu a reprovação e pareceu ser um tipo de pedido de desculpas por sua nação. Mas ela manteve um brilho de alerta no olhar. Para sua surpresa, isso pareceu deixá-lo interessado; ele a segurou pelo pulso e a puxou contra ele, sussurrando em seu ouvido. — Você deveria permitir que eu entrasse em seu vagão para podermos tomar um banho e assim refrescá-la se de fato já não estiver fria. — Como você ousa? — Ela tentou se afastar e ele prendeu seu outro braço nas costas dela, segurando seu quadril. — Vocês deveriam tomar cuidado, sabe? Você e seus amiguinhos. Talvez, se forem bonzinhos comigo, posso cuidar de vocês. Você gostaria que isso ocorresse? Gostaria que eu cuidasse de você? — Posso cuidar muito bem de mim mesma, obrigada. Eu e os outros, fique sabendo. — Sei que é o que pensa. Mas pode estar errada. — Vou levar isso em consideração. Agora, se me dá licença... O ruído de pessoas correndo e de crianças rindo assustou os dois, e ele a afastou. Ambos ficaram em pé, olhando fixamente um para o outro, enquanto meninos corriam por eles, seguidos pela babá cansada que gritava para que fizessem o favor de parar e se comportassem bem. Quando a agitação se deslocou para o outro vagão, Maurer segurou Brigit pelo queixo, virando sua cabeça de modo que ela olhasse para ele nos olhos. 74
— Você está sendo observada. É inteligente o suficiente para saber disso, creio eu. Então, talvez deveria estar se perguntando quem prefere que a observe: eles ou eu? — Oh, então eu tenho opções? — As coisas podem ser ajeitadas. Com um gemido de ansiedade, ele passou o dedo pela garganta dela, perigosamente perto de onde deveria haver pulsação. Ela fixou os olhos nele, lutando para manter a concentração dele em outras possibilidades. Ele piscou, afastou-se e atravessou o corredor, assoviando fora de ritmo. Juro que mesmo que passasse um ano tomando banho, ainda assim não afastaria de mim a presença de todos esses monstros. Abalada e enjoada, Brigit caminhou na direção do vagão panorâmico, desesperada para respirar ar fresco, esperando que a plataforma tivesse uma cobertura que a mantivesse afastada dos raios de sol ainda presentes. Ela viu a babá e os meninos barulhentos aguardando impacientemente por uma mesa no vagão-restaurante. Um menino gritou quando Brigit passou, assustando-a. Os outros meninos riram com maldade e a babá sorriu se desculpando. Brigit percebeu que a mulher queria começar uma conversa, e por mais simpática que parecesse, a vampira não tinha força nem vontade de responder. Para sorte de Brigit, outro menino gritou, esperando ver a bela moça pulando de susto de novo, e a babá repreendeu todos eles. — Com licença. — Brigit murmurou, na esperança de passar a impressão de que não pretendia ficar ali, e caminhou na direção do fundo do trem. Já que o pedido de desculpas feito pelo menino quase não pôde ser ouvido, ela se sentiu segura em ignorá-lo. Felizmente o vagão panorâmico estava vazio e o trem tinha acabado de fazer uma curva, o suficiente para que eles seguissem na direção sudeste, e Brigit pôde contemplar o escurecer atrás do trem. Pensou que podia agradecer a Maurer pelo ligeiro atraso que garantira aquela situação vantajosa, mas seu sendo de humor havia se perdido em algum ponto. O que aquele sapo havia insinuado? As palavras dele não saíam da mente cansada de Brigit. “Fria”, “amiguinhos”, “sendo observada”, bem, esta última era informação desnecessária. Mas “Se de fato já não estiver fria” – a frase mais idiota que ela já tinha ouvido, e ainda repleta de duplo sentido. Certamente ele estava tentando descobrir alguma coisa, mas podia estar se 75
referindo à frieza de uma menina que recusa os avanços de um homem, que nem sequer dá um beijo rápido quando parece adequado. Devia ser isso, ela pensou, porque caso contrário ele estaria tentando seduzir e ameaçar a quem sabia ser uma vampira e nenhum homem em sã consciência... Por outro lado, ela estava sendo observada por diversos bons motivos, e ele podia saber que ela estava de mãos atadas, incapaz de libertar o demônio. Assim, talvez ela fosse irresistível, talvez a ideia de tocar um corpo repleto de poder, de outro mundo, um que remetia a um tempo muito antigo na história, fosse uma tentação à qual valesse a pena se entregar. Talvez. E quanto aos grupos de pessoas observando? “Eles ou eu”. A quem ele se referia ao dizer “eles”? Seus superiores? Agentes secretos? Ou ele sabia a respeito do médico e de seus acompanhantes? E “amiguinhos”. Uma frase que fazia com que ela sentisse o sangue gelar. Ela queria que ele estivesse falando de Eamon, Mors ou Cleland. O tribunal todo. Qualquer coisa, menos o óbvio. Qualquer coisa, menos a carga preciosa e rara. A única coisa a que ela estava determinada a proteger que não poderia se proteger sozinha. Se Maurer, se qualquer pessoa pensasse em qualquer coisa que comprometesse a segurança daquela carga, não havia nada que ela não estivesse disposta a fazer. A ideia de tê-lo tocando seu corpo fazia até seu demônio sentir nojo, mas se tivesse de ser, em vez de sua morte, ela estava disposta. É muita coisa, muita coisa, muita coisa. Como vou conseguir continuar? Ela respirou profundamente, prendeu a respiração e soltou o ar. Isso não trouxe alívio. Que pena que a quantidade de oxigênio da atmosfera não é limitada. Assim, pelo menos, eu teria prazer em roubar o ar de alguém. Ela precisava da música de Eamon naquele momento. Se ele estivesse ali, tocaria e cantaria uma canção para afastar todos os medos e a sensação de impotência dela. Murmurou levemente, à sua maneira pouco melodiosa, procurando por vestígios da magia de Eamon que ainda existiam dentro dela. Não encontrou. Já havia usado tudo. A porta atrás de Brigit foi aberta e uma mulher grande, de ombros largos, caminhou pela plataforma. Ela mantinha os lábios unidos e tinha o
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pescoço grosso, fazendo com que parecesse um peixe. Ao ver Brigit, ela abriu um largo sorriso. — Não está tão quente agora, não é? — Ela parecia simpática demais, uma mulher disposta a encontrar uma amiga. — Sim, está um pouco melhor. — Eu acho que tem um lago aonde estou indo. Vou gostar se tiver. Sempre quis passar um tempo em um lago no verão, sabe? — Não sabe para onde está indo? A mulher riu. — Não, esta viagem não foi exatamente planejada. Ela inclinou-se de modo confiante, demonstrando grande vontade de contar sua história para alguém, e quem seria melhor do que um desconhecido? — Meu noivo enviou uma carta para mim de Berna, sabe? Bem, meu ex-noivo, devo dizer. Eu sabia que ele não estava interessado em lutar, mas não percebi que chegaria ao ponto de sair da Alemanha. Não me leve a mal, pois gostei da covardia dele. Eu teria de ser maluca para me casar com um homem que estivesse se preparando para partir e ser morto. É o que acho. — Mas certamente a guerra terminará logo, e não existe o risco de outras pessoas serem mortas, não é? A expressão da mulher ficou séria, como a de uma pessoa que conhecia como o mundo funcionava. — Você é jovem, claro. Eu tenho vinte e seis anos, sabe? Já vi muitas coisas. A propósito, meu nome é Elsie. Qual é o seu? — Brigit. — Você é irlandesa, certo? Sorte a sua vir de um país neutro. — ela continuou falando, sem perceber a leve alteração de Brigit. — Bem, o Führer detesta a guerra, claro, mas os terríveis judeus têm de complicar tudo. É só por causa deles que mais guerra está acontecendo. Por causa deles e dos comunistas, claro. Brigit observou a pele oleosa de Elsie e os olhos claros, parecidos com os de porcos. Carregava neles aquele brilho de superioridade. Aquela mulher patética, abandonada pelo que certamente era um homem aliviado, tinha de saber, no fundo, qual era seu valor na situação geral. Mas, não, os nazistas carregavam esse peso para ela de modo bizarramente magnânimo. Brigit
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passou a língua sob os dentes sentindo as pontas das presas começando a aparecer. Elsie continuava falando, como se Brigit tivesse perguntado algo. — Então, claro, os judeus devem ser destruídos facilmente... não sei por que o Führer não convoca minha avó para derrubá-los; isso seria bom de ver. Mas o que quero dizer é que muitos homens serão afastados de suas obrigações para conosco, mulheres. Quero uma vida tranquila em uma fazenda. Quero ter muitos filhos, não porque o Führer diz que devemos ter filhos, mas porque gosto dessa ideia, sempre gostei. Para isso, é preciso um homem estável, sabe? Um homem forte e trabalhador que cuide do lado burocrático das coisas e que cuide de mim e de meus filhos. Quando se tem um homem assim, não se passa fome, sabe? Brigit imaginou rapidamente como seria Elsie com um bando de crianças sem rosto e sem nada na cabeça atrás dela. As presas aumentaram um pouco mais. — Mas com certeza, se seu noivo a deixou... Elsie riu mais uma vez. Brigit conseguiu sentir o cheiro de cebola em seu hálito. — Eu só não queria que ele desse a palavra final, sabe? Ele disse que só tinha concordado com o noivado porque a mãe dele gostava da minha, mas que agora que ela estava morta, ele podia fazer o que bem quisesse e de jeito nenhum se casaria com uma vaca louca como eu. Ele queria uma nova vida, segundo ele, sabe? E o que quer que isso mostre sobre ele, fugir de uma briga... bem, é a vida dele, certo? Fiquei surpresa por que os suíços o deixaram entrar, mas parece que ele já está casado com uma moça, e não faço ideia de como conseguiu isso, mas se ele não contou sobre mim, ela vai levar um pequeno susto, creio eu! Os olhos de Elsie brilhavam. — O que sua família acha disso? Eles não podem ter deixado você partir sozinha, e durante uma guerra ainda por cima. — Ah, a guerra. Está na Inglaterra agora, não é? Mas eu não contei a eles, e por que contaria? Eles teriam tentado me convencer do contrário, e nunca ninguém conseguiu fazer isso, e eu tenho razão. Não vou voltar, além disso. Seja lá o que ele tenha feito, está feito, mas tenho certeza de que posso
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encontrar um fazendeiro suíço que goste de uma moça que não tem medo de trabalhar, sabe? Brigit sabia. Ninguém sabia aonde Elsie estava indo e ninguém a estava esperando. Ela não havia despertado a atenção das pessoas no trem e não era memorável o bastante para que alguém de seu vagão percebesse caso ela não voltasse. Ou, quando percebessem, tudo já estaria feito. Não havia nada de atraente nela para uma refeição, mas o ponto era que Elsie estava sendo servida de bandeja. O demônio nem se importou em deixar vermelhos os olhos de Brigit. As presas surgiram e Brigit colocou a mão sobre a boca de Elsie, apesar de aquilo não ser realmente necessário, pois Elsie não teve tempo nem mesmo para demonstrar surpresa antes de Brigit afundar os dentes em seu pescoço e começar a beber o sangue de modo desesperado. Brigit comeu como uma criança faminta, sugando a força de Elsie de modo que ela não lutasse. Brigit afundou os dentes ainda mais profundamente, apertando sua presa como se esperasse que o sangue começasse a sair pelos poros. O gosto não era tão ruim quanto poderia esperar, e a moça tinha muito sangue. Quando Elsie estava seca, Brigit fechou os olhos, sentindo o sangue correr dentro dela, revigorando seu cérebro, sua pele, seus sentidos. Fazendo com que ela melhorasse. Não era a restauração completa e pura de que gostaria, mas não estava esperando aquela oportunidade. Foi no entanto um alívio. Ela limpou os lábios no colarinho de Elsie e suspirou profundamente. Dessa vez, o oxigênio a satisfez. Pela primeira vez em dias ela voltava a se sentir ligeiramente normal. Brigit logo cuidou do corpo. Esticando uma garra embaixo da unha da mão, abriu um corte sobre as marcas de mordida para que parecesse um ataque a faca. As manchas de sangue do colarinho podiam impedir que alguém examinasse o resto de seu sangue. Talvez não funcionasse, mas Brigit não podia pensar nisso. Lançou o corpo por cima das grades. Ele bateu nas árvores e pousou em um arbusto. Com sorte, o corpo só seria encontrado muitos dias depois, e a ação das doninhas prejudicaria a investigação. A pequena bolsa de Elsie tinha caído no chão e Brigit olhou dentro dela. Só havia papéis, um espelho pequeno e um batom pouco usado. Brigit passou o batom, mesmo sabendo que a cor não era ideal, e o apertou entre as mãos, jogando o pó nos trilhos. O espelho foi em seguida. Os papéis foram guardados no bolso da jaqueta para serem jogados fora depois e a bolsa foi lançada com vontade sobre 79
as grades do trem, e Brigit sabia que seu destino era o condado mais próximo. Ela ajeitou os cabelos com as mãos e abriu a porta, sentindo-se pronta para qualquer novo problema que aquela viagem maluca apresentasse. ****
A força e a confiança renovadas de Brigit titubearam quando ela chegou ao corredor de seu vagão e viu três homens do lado de fora de seu compartimento. Um deles se virou ao escutar seus passos e murmurou algo aos outros dois. O mais atarracado moveu-se para a frente, sorrindo de modo cortês, esticando a mão em um cumprimento. Era o médico em quem ela não confiava. — Boa noite, Fräulein. Sou o Dr. Schultze. Espero não tê-la assustado. Estou esperando para falar com a senhorita já há algum tempo. — É mesmo? E pensou que seria aceitável vir até a minha porta, quando seria fácil ter me encontrado em uma área comum? A reação de Brigit foi mais um protesto do que uma repreensão, porque a inclinação daquela moça, por mais arrogante que pudesse parecer, era olhar para a maioria dos homens de modo simpático, pelo menos até que eles lhe dessem motivo para mudar de atitude. — Pensei, talvez, que um pouco de privacidade seria bom. Mas, sim, foi uma atitude presunçosa de minha parte. Espero que a senhorita possa me perdoar. Não havia qualquer sinal de sarcasmo em seu inglês correto e cuidadoso, e seu sorriso era perfeitamente agradável, mas tudo não passava de artimanha. Ou talvez o médico não soubesse que, com atitude e proximidades adequadas, ela conseguia perceber que seus acompanhantes eram caçadores – em treinamento, o que mudava a situação. Às vezes ela esquecia quão pouco eles conheciam suas habilidades. Era uma vantagem, e Brigit tinha de aproveitar as vantagens. Pelo menos só estão atrás de mim. Já é alguma coisa. Mas não tinha certeza daquilo. O mais importante era esperar que todos os possíveis desastres estivessem à mostra, assim tinha menos chances de se surpreender.
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— Eu estava indo pegar uma bebida, doutor. Talvez possa me acompanhar? Você e seus amigos? Ela teve de se esforçar para não se referir a eles como “amiguinhos”. Ele olhou para os dois homens, como se acabasse de lembrar que eles estavam ali. — Estou sendo muito mal-educado! Acredito que conversas com uma moça bonita cause isso, pois eu deveria ter apresentado meus jovens residentes logo no início. Weber e Lange, e eles estão à sua disposição, assim como eu. Os dois homens apertaram a mão dela, e Brigit tentou imaginar se eles estavam avaliando sua temperatura. Vocês não vão conseguir nada, homenzinhos, porque entre o tempo e a comida, vou parecer um ser humano ao toque por alguns dias. — Desculpe-me, mas pode me dizer seu nome? — McRae. Brigit McRae. — É um prazer conhecê-la, Fräulein McRae. Podemos ir ao bar. A menos, claro, que a senhorita queira fazer alguma coisa dentro de seu compartimento primeiro? — Não, nada que não possa esperar. Weber e Lange se entreolharam, mas seguiram Brigit e o médico de modo obediente. O médico esperou até Brigit ter engolido um pouco de seu vinho antes de começar a explicar seu propósito. — A verdade, Fräulein, foi que percebi que a senhorita parecia pálida e retraída para uma moça bela e saudável. Sei que é presunçoso de minha parte, claro, mas não consegui evitar a preocupação. A senhorita está passando por problemas? Seu sorriso era solícito, mas o absurdo daquela mentira fez com que Brigit sentisse vontade de mostrar as garras e rasgar o rosto dele. E então pensou que essa devia ser a ideia. Não o ato de rasgar sua pele, mas de ver a garra. Eles queriam provas. Ela imaginou por que eles não tentavam atacá-la com uma estaca, sem aquelas preliminares tolas, mas sem dúvida eles planejavam algo maior. Uma captura, uma execução pública ou outra coisa, algo diabólico. Brigit havia aprendido nos últimos dois anos que os nazistas não costumavam pensar pequeno. O fato de eles não saberem como enfraquecer e derrotar, muito menos matar, um milenar não trazia muito consolo. Os olhos do médico estavam 81
famintos. Brigit reconhecia quando estava servindo de prêmio. O pior é que não havia desejo sexual, nem da parte deles nem dos caçadores em treinamento. Isso deixava a coisa mais complicada. — Acredito que estou muito bem, obrigada. Sempre fui pálida. A Irlanda não é um país quente. — Você deveria aproveitar o verão europeu e tomar um pouco de sol. — Não é possível tomar sol em um trem. — Não, mas você deveria passear pela plataforma na próxima parada durante o dia. Tenho certeza de que é mais saudável não só para você, mas... — Ela está corada agora. Schultze olhou com surpresa para Lange, e Brigit também se assustou, acreditando que o rapaz era bem-doutrinado demais em seu papel de intimidador silencioso para falar. Weber simplesmente olhou para o companheiro, e então olhou rapidamente para o médico, querendo saber o que fazer. Lange estava observando Brigit com interesse. Ela enrugou o nariz e se voltou ao médico. — O calor me deixa cansada. E, claro, tenho minhas responsabilidades. Sua preocupação é lisonjeira, doutor, mas, como o senhor pode ver, sou uma moça saudável e acredito que sou capaz de cuidar de mim mesma. Agora, se me dá licença, tenho coisas a fazer. Enquanto se afastava, pôde escutar os três homens sussurrando, mas sua audição não era tão potente a ponto de entender qualquer palavra. Mas não importava. Eles sabiam. Provavelmente sabiam de tudo. Mas como, como eles sabiam? Os planos tinham sido bons e cautelosos. E um médico. Por que diabos mandariam um médico atrás dela? Devia haver algo mais naquilo, em tudo. Ou talvez não. Ou talvez fosse apenas uma enorme mudança que os nazistas estavam realizando, que o mundo todo sofreria. Talvez fosse apenas maluquice, sem propósito. Propósito nenhum. Finalmente estavam se aproximando de Stuttgart, e Brigit começou a se sentir ansiosa, com a esperança de que houvesse um telegrama esperando-a. Ela poderia enviar uma mensagem a Eamon antes de entrar no trem e, se tudo corresse como planejado, sua resposta pareceria ter sido enviada de Berlim.
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Mas se eles sabiam quem ela era, e o que fazia, então sua mensagem pode ter sido interceptada. No entanto, tinha certeza de que Eamon sabia onde ela estava e o que estava fazendo. Conseguia senti-lo, sentia a energia que ele mandava para ela. Brigit sabia que Eamon daria qualquer coisa para estar ali, para passar por aquele pesadelo com ela, mas ele ficaria em Londres, como havia ficado todo aquele tempo, e seguiria a jornada dela pela mente. Sim, Brigit conseguia senti-lo, mas queria um telegrama. Desesperadamente. Para irritação de Brigit, Maurer apareceu quase do nada enquanto ela se aproximava da porta do trem que desacelerava, sem lhe dar a chance de chegar rapidamente ao escritório antes que alguém percebesse que ela já havia desembarcado. Brigit procurou se acalmar, pois era melhor que ele estivesse com ela do que em seu compartimento, procurando por algo, estando ali a carga desprotegida. Ele caminhou ao lado dela como se tivesse esse direito, ignorando o fato de não ter sido convidado, e sorriu. — Caminhando sozinha de novo, Fräulein? — Não é o que parece, sargento Maurer. — Não gosto de perder oportunidades. — Quanta prudência. E na primeira oportunidade vou matá-lo. — Está apenas caminhando ou quer alguma coisa? Um jornal, talvez, ou chocolates? — O senhor está perguntando demais. Não posso dizer que gosto disso. — Você é uma garota que levanta dúvidas. — E se eu não quiser responder? — Bem, acho que todos somos livres para fazer nossas escolhas. Certamente. A menos que sejamos judeus, franceses, polacos, ciganos, comunistas, homossexuais... — Mas você certamente seria sábia o suficiente para responder a mim, pequena Brigit. Ela sabia que seus olhos estavam vermelhos, e até sentiu suas presas no lábio inferior, mas estava se controlando. Poucos passageiros iam embarcar naquela estação, e Brigit tinha, no máximo, cinco minutos para fazer o que precisava ser feito e não ia ser impedida. Ela se aproximou de modo que seus lábios estavam quase tocando a orelha dele. 83
— É mesmo? Eu seria sábia ao fazer isso, pequeno homem? — E ela soprou uma ideia a ele, feliz com o breve retorno de algumas de suas habilidades. Não duraria muito tempo, e ele podia perceber mais tarde, mas ela precisava fazer o que tinha de ser feito. Não teve tempo de se divertir com ele voltando para o trem, levemente embriagado e confuso, tentando pensar se a babá que estava cuidando dos meninos barulhentos estava esperando encontrá-lo no vagão panorâmico assim que as crianças estivessem dormindo tranquilamente. A máquina de telegramas estava funcionando a todo vapor no pequeno escritório, e o homem magro que cuidava dela assoviava enquanto preparava as mensagens. Ele olhou para a frente quando Brigit tocou a campainha. — Com licença. — Pois não? — Estou esperando um telegrama. Senhorita H. Morris. O homem a analisou brevemente, e então procurou no arquivo de telegramas recentes. Seus dedos pararam em um perto do monte da frente. Fez uma pausa e olhou para Brigit de novo. — De Berlim? — Isso mesmo. Ele olhou para ela, e então para o telegrama. — De um Sr. Jakes. É um nome inglês, não é? — Acredito que poderia ser, mas ele é irlandês como eu. Meu primo, na verdade. Está lá a trabalho. Erguendo uma sobrancelha, ele supôs que o primo da moça era membro do IRA e estava trabalhando com o Reich, tentando passar a eles informações úteis na luta contra os ingleses. Ele sorriu e entregou o telegrama. Brigit quase voltou pulando para o trem, guardando o precioso telegrama no bolso da jaqueta. A mensagem tinha sido enviada! Brigit pressionava contra o corpo as palavras de Eamon! Ela colocou a mão sobre o bolso, como se o telegrama pudesse cair e voltar ao escritório. Ela acreditava poder senti-lo quente sob os dedos. Quando entrou no corredor, no entanto, Maurer estava ali. Estava inclinado para a frente, esfregando as têmporas. Um carregador levou um copo de água para ele e olhou Brigit fixamente, como se tivesse certeza de que o mal-estar repentino
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do sargento era culpa totalmente dela e como se esperasse a expulsão imediata da moça irlandesa. — Algum problema, sargento? Maurer se endireitou e olhou para o carregador, que baixou os ombros com desânimo e se afastou. — Uma dor de cabeça momentânea, um pouco de tontura. Nada com que você deva se preocupar. — Há um médico muito simpático a bordo, o Dr. Schultze. Quer que eu o ajude a encontrá-lo? Ele observou o rosto dela, que Brigit manteve sem qualquer expressão. — Não, obrigado. Não é necessário. — Ele sorriu repentinamente, e um tanto demais. — Esse médico está preocupado com sua saúde? Brigit se arrependeu de tê-lo mencionado. — Ele disse alguma coisa nesse sentido, mas como qualquer pessoa pode ver sou totalmente saudável. — Que sorte a sua, não? Ele demonstrou certo desdém em sua expressão que ela sentiu vontade de arrancar com a unha. — Não sou do tipo que acredita em sorte. É por isso que nunca desejo sorte a ninguém. Ele se inclinou parecendo piscar. — Não fique muito à vontade... Fräulein. — Não. Não espero ter minha paz perturbada em breve. Se me dá licença... Um casal ansioso por voltar para casa, em Barcelona, aproximou-se de Maurer e lhe fez perguntas em uma mistura e catalão e alemão imperfeito. Sorrindo pela falta de sorte do sargento, Brigit entrou em seu compartimento, determinada a ler no mesmo instante as palavras de Eamon. Ela bateu a porta, sentou-se no chão e abriu o telegrama. Querida Prima. Recebi o bilhete da mudança de rumo. Informei à tia. Tomarei as providências. Entre em contato em Bilbao com informações sobre o barco. Firme-se na grandeza demonstrando fé. Boa viagem. Com amor. Jakes.
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Brigit leu a mensagem diversas vezes, detestando a brevidade, adorando a prova de que Eamon sabia onde ela estava, o que estava acontecendo, e o fato de ele e Otonia estarem criando um novo plano para facilitar a chegada na Irlanda. Claro, eles não podiam fazer muita coisa, mas saber já era alguma coisa. Tinha de ser. “Firme-se na grandeza demonstrando fé.” Bem, ela sabia o que Eamon queria dizer com aquilo, mas desejou que ele pudesse lembrar que, apesar de toda a explicação paciente, ela não conseguia decorar notas musicais em sua mente como ele ou Mors conseguiam. “Fá Sol Mi Ré Fá”. O início de uma das várias músicas dele sobre ela. Brigit não sabia qual, mas não importava. Guardando as palavras do telegrama na memória, ela molhou o papel, e também os de Elsie, na pia pequena do lavatório, amassou e jogou os pedaços pela janela. “Fá Sol Mi Ré Fá”. Talvez aquilo lhe aparecesse em um sonho.
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Capítulo 8 Berlim. Março de 1939.
Os jantares com Gerhard tinham se tornado uma rotina tediosa, com uma conversa quase tão sem graça quanto a refeição. Ele era fleumático, algo nada surpreendente, para escolher os alimentos e tão consciencioso em limpar todos os pratos, sem deixar uma migalha, que Brigit suspeitava de que ele apanhava muito na infância quando não comia tudo em uma refeição. Apesar do grande apetite, Brigit não tinha a sensação de que ele gostava da comida. Ele parecia ver o ato de se alimentar como necessidade e obrigação, tal qual via grande parte de sua vida. Sua única paixão era pelo poder e cada vez mais por Brigit. Mas ele, como todos os outros membros do partido de quem os vampiros cuidavam com atenção, era circunspecto e cuidadoso ao extremo. Até Mors, por mais recluso que fosse, tinha dificuldades em conseguir acesso total e informações que desejasse, muito menos a oportunidade de encontrar alguma influência e achar o caminho para a destruição. Havia algo de errado, mas os vampiros não pareciam querer discutir o assunto. A conversa confirmaria suas preocupações. Brigit tinha certeza de que Swefred e Meaghan haviam sidos convencidos dessa possibilidade o tempo todo e estavam meio satisfeitos com a falta de sucesso, como se isso forçasse crenças que só eles tinham. Mas eles pareciam estar trabalhando com a mesma intensidade que os outros três, e então Brigit fez um esforço para ser bondosa, levando em consideração que seus pensamentos mais amargos eram apenas um desdobramento de sua falta de simpatia pelo casal, sua frustração com Gerhard e seu desejo ardente por Eamon. Em algumas manhãs, enquanto se esforçava para dormir, ela pensava escutar o murmúrio suave de Swefred e Meaghan fazendo amor. Seu quarto não era tão perto do deles para que isso fosse possível, mas Brigit tinha a sensação mesmo assim e se detestava por isso. O fato de ir para uma cama, sozinha, e saber que acordaria sozinha, geralmente com o rosto molhado de lágrimas e as coxas úmidas, era tão desgastante quanto o minueto no qual ela,
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discretamente, tentava guiar Gerhard. Talvez se aquela dança encontrasse ritmo, ela poderia se sentir menos desesperada. Cada vez mais, ela e Cleland estavam encontrando desculpas para não ficarem sozinho no mesmo cômodo. Por mais que pudessem consolar um ao outro, nada se comparava ao medo de falar de quem eles sentiam saudade. Brigit sabia que só estava conseguindo passar os dias por não escutar o nome mágico de “Eamon” sendo dito por alguém. Até Mors, cujo tato podia estar à da altura de Átila, o Huno, e cuja sutileza costumava ser comparada a uma pancada na cabeça, tomava cuidado ao tocar no assunto de quem não estava por perto. Brigit não sabia nem queria saber se o cuidado existia em razão do afeto e respeito que ele sentia por ela ou pelo fato de ele estar envolvido na missão. Ela sentia gratidão. As notícias da casa eram superficiais, no mínimo. Eles não podiam ter uma caixa postal em Berlim, uma vez que os alemães faziam muitas perguntas. Até receber telegramas com frequência costumava chamar a atenção. Pior ainda, parecia que todas as agências de telegramas eram localizadas em um ponto não acessível pela rede de esgoto e não protegido do sol, então nas tardes nas quais o sol demorava a se pôr, as opções diminuíam. Pelo menos eles podiam enviar cartas para casa uma vez por semana. Brigit adorava pensar em Eamon entrando no correio central de Londres, facilmente acessível pela rede de esgoto no verão, para encontrar uma carta dela na caixinha de latão. Mas Brigit desejava que ela, ou qualquer um deles, tivessem notícias mais interessantes para contar. Aquela falta total de progresso não fazia sentido. O demônio gostaria de surgir com rapidez, atacar com força e então voltar urgentemente para Londres. Organizar uma invasão durante uma grande reunião e matar todos eles: Hess, Speer, Göring, Himmler, Eichmann, Goebbels, e deixar Hitler por último. Não queira comer nenhum deles, claro, porque seria venenoso, mas podia executar ataques violentos que, como alguém podia esperar, traria um fim decisivo a esse Reich. Parecia possível, e talvez, em 1934, o fosse. Mas existiam muitos aspectos negativos. As reuniões aconteciam durante o dia, até onde eles sabiam, e era muito bem – protegidas. Os nazistas eram confiantes, com um poder que Napoleão invejaria, e ainda não deixavam nada sem cuidados. Brigit via todos como meros meninos, ainda encantados com a ideia de gangues e esconderijos secretos... a diferença era que eles tinham músculos e armas com os quais se defender, e o imponente Reichstag11 não era secreto. Mas havia algo enfurecedoramente infantil a respeito da crueldade sem limites de suas maneiras de agir; na alegria que aqueles no poder sentiam em ser colocados em uma sala exuberante planejando um império construído com sangue e 11
Sede do Parlamento alemão (N. T.) 88
intimidação; e na imponência que certamente aqueles que guardavam a sala exibiam, crendo ser poderosos. Os milenares sempre souberam que os frascos, quando recebiam privilégios e se aproximavam da grandiosidade, seriam sempre os mais perigosos em suas atitudes, pois tinham muito mais a provar. Os milenares tiveram ainda mais motivo para ficarem transtornados quando Mors disse que alguns Nachtspeere estavam entre os que protegiam os corredores do poder. Ele não tinha certeza, pois até mesmo a investigação sutil que havia feito tinha sido arriscada, mas apenas a ideia bastou para que eles se assustassem. Os nazistas estavam encantados com a certeza que tinham. Ela os guiava. Se havia algo de que tinham certeza, era que a Alemanha, Berlim em particular, estava livre de vampiros. Possivelmente, os Nachtspeere foram mantidos em suas tarefas em razão da superstição que ainda restava, mas parecia mais provável que os nazistas queriam ter a certeza de que o esquadrão que eles treinaram com tanto cuidado ainda se sentisse indispensável. O demônio provocava Brigit mesmo assim, fazendo com ela lembrasse que os Nachtspeere, até onde eles sabiam, não tinham armas nem habilidade que derrubasse um milenar, mas isso não importava. Eles não tinham certeza, era apenas uma hipótese, e eles não sabiam quantos caçadores de verdade permaneciam no domínio nazista e podiam estar prontos para persegui-los, se tivessem indícios da presença dos milenares. Podiam vencer a todos na construção, mas e depois? Como conseguiriam garantir a si mesmos uma fuga segura? Os túneis do metrô e a rede de esgoto não permitiam que eles viajassem durante o dia com a mesma liberdade e até onde queriam. Até mesmo chegar a sede do Reich seria difícil e, depois disso, havia a questão da entrada. Apenas Mors teria a permissão de entrar com certa facilidade. O pensamento fez Brigit alterar-se, imaginando como ele aceitaria o desafio, como ele estaria disposto, o modo descuidado com que conseguia enfrentar a morte e o perigo. Não importava que os nazistas eram espertos, que eles podiam chegar a abrir buracos nas janelas e paredes para deixar entrar o sol. Ele sairia rosnando e levaria consigo o máximo de pessoas que conseguisse alcançar. Mas está pronto para morrer, meu querido amigo? Está mesmo pronto para morrer? Ela sabia a resposta, e sabia também que não era a pergunta certa. Era mais adequado perguntar se ela estava pronta pra que ele morresse, e ela também sabia a resposta. Não aqui, não agora, não para aquilo. E ali estavam eles. Era possível que ele encontrasse uma maneira mais rápida de entrar, entretanto existia a grande possibilidade de que eles não saírem, e essa não era a questão naquela missão. Eles tinham de sobreviver. O poder deles era imenso, mas eles não eram totalmente invencíveis, e assim
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tinham de ser cuidadosos. Cuidado infinito, sempre cuidado infinito. Eles estavam ali para devolver, e além disso para tornar a Europa segura para os vampiros de novo e para manter a saúde e segurança dos vampiros no mundo. Eles tinham de se lembrar disso. Muitos milenares já haviam morrido depois da guerra humana. Nem mais um deles podia ser desperdiçado. Não se pretendessem sobreviver. Brigit espetou uma batata cozida demais com uma intensidade maior do que pretendia, e Gerhard interrompeu seu monólogo para olhar para ela, surpreso. — Sinto muito, querido, estou atrapalhando você? — Oh! Oh, não, não, eu estava apenas... é muito frustrante esperar que as coisas aconteçam. É verdade. Gerhard sorriu, pensando claramente que ela estava se referindo à carreira dele. Ele deu um tapinha de aprovação na mão dela, cheio de complacência carinhosa. — Compreendo sua frustração, querida, mas precisamos ser pacientes. Veja nosso querido Führer, e imagine se ele não fosse paciente tantos anos atrás. Viu o que a paciência deu a ele? Espere e observe, não vai demorar muito, e você e eu iremos a todos os melhores eventos e eu poderei fazer coisas fantásticas para você. Ela apertou a mão dele. — Não preciso de nada disso, mas agradeço. Você é muito doce. — Você também, minha querida, você também. Ele lançou a ela um olhar malicioso. — Talvez, minha pequena Brigitte, existam coisas pelas quais não precisamos esperar... Seu polegar raspou palma da mão dela com segundas intenções. Ela sorriu, corou e tentou se afastar. — Gerhard, por favor, aqui não. — Ela olhou ao redor, preocupada com a possibilidade de alguém perceber aquele comportamento um pouco inadequado para um jovem oficial em ascensão. Bobagem de sua parte, claro, e algo que traía suas origens de moça de cidade pequena, mas nenhum homem desistia. — Está com medo de que alguém conte sobre seu flerte à sua tia? — ele perguntou sorrindo. Ele raramente mencionava a vida dela, pois não era um assunto que lhe interessava, exceto que sua frouxidão de rigor a deixava livre para vê-lo todas as noites. Órfã, ela havia deixado Heidelberg para cuidar de uma tia reclusa perto de Berlim e aprendeu a prestar assistência, mas logo descobriu que cuidar de
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sua tia seria um trabalho de tempo integral. Felizmente, a senhora se retirava cedo e não se importava para onde Brigit ia todas as noites, desde que estivesse em casa para preparar o café da manhã. Havia uma governanta que poda cuidar das coisas caso houvesse qualquer problema. Naturalmente a situação não era tão simples quanto ele gostaria que fosse. A senhora cuidava de seu dinheiro com pulso firme, como se fosse judia, e se recusava veementemente a comprar um telefone. Ela também era muito restrita em relação a visitantes e tão paranoica com ladrões que proibia Brigit de passar seu endereço. Brigit não tinha chance de fazer amigos e não tinha outros parentes, por isso não era esperado que ela recebesse cartas. Mulher estranha, mas Gerhard compreendia. Ela havia passado por dificuldades e a princípio desconfiava de todo mundo. Era bem provável que ela não fosse deixar dinheiro algum a Brigit. Ele não se importava. Brigit parecia gostar muito dele e queria encontrá-lo sempre que possível, e uma vez que ela não parecia ter problemas para se dirigir a loja da esquina para telefonar para ele, tudo bem. Ele tinha bastante trabalho apara realizar para se preocupar em namorar uma mulher. Não que ele considerasse que estava namorando. Ambos sabiam que ele não estava em posição de fazer aquilo, ainda não. Não, ele estava mantendo uma amante, apesar de estar um pouco frustrado com o tanto de esforço exigido. Aqueles jantares eram muito bons, ela ficava bem em seus braços, e seus beijos e corpo eram divinos, mas ela só permitia ser levada ao escritório dele, não à sua casa, e ela fazia mais perguntas sobre seu trabalho do que ele gostaria de responder. Era exaustivo. — Não quero que ninguém pense que eu sou esse tipo de garota, seja o que for, e se a proprietária de sua casa nos visse, ela não o veria com bons olhos também, não é? E você não pode permitir uma coisa dessas. — Você é muito meiga, minha Brigitte, e esperta também. Você sabe que o guarda do meu escritório só vai pensar coisas boas de mim se me vir levando você para dentro? — Você não deve brincar! Seria horrível ser pego! Aquilo não era verdade. Muitos dos homens eram casados e cometiam pecadilhos dentro dos escritórios. Gerhard não era muito bem-visto por não fazer isso, mas ninguém dava muita importância. No entanto, ela parecia gostar da ideia do subterfúgio e ele gostava de deixá-la contente. Os olhos dela estavam arregalados e interessados. Isso amoleceu o coração dele e incendiou suas partes íntimas. — Vamos. Ele pagou rapidamente e a segurou pela mão, quase arrastando-a para fora do restaurante.
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Dez minutos depois, eles tinham passado pelo guarda noturno, corrido escada acima e trancado a porta do pequeno escritório de Gerhard. Brigit acendeu a luz como sempre fazia e Gerhard se perguntou por que ela nunca se cansava de explorar a mesa e os arquivos. — Oh, Gerhard, eu adoro a maneira que seu escritório parece oficial! Claro que ele deveria ser bem maior, e mais imponente, mas parece que eles estão contentes com você, eu acho. Quais são as chances deles permitirem que você tenha uma secretária? — Nenhuma por enquanto, não enquanto eu for um assistente de baixo escalão. — Ele riu. Ela balançou um dedo de desaprovação para ele. — Você não deve nem brincar a respeito de ser de baixo escalão, pois sabemos que isso não é verdade. Talvez você ainda não esteja aonde deseja estar, mas sabe como é importante. Ele sorriu, divertindo-se com a ignorância e orgulho simples dela. Se ela continuasse a agradá-lo daquela maneira, ele poderia u dia recompensá-la com o casamento, apesar de ser difícil de se imaginar isso, a menos que a tia difícil decidisse permitir, e nesse caso o casamento teria de ser importante o bastante para superar o estigma de pouca educação e passado ruim. No entanto, não havia motivos para pensar nesse aspecto do futuro. O único futuro em que ele estava realmente interessado era no de sua carreira, e o único presente que o interessava naquela noite era o corpo voluptuoso de Brigit. Apesar de o sangue dela ferver por ele, Brigit não resistia aos jogos tolos. Pegou um bloco e um lápis e, com as costas eretas e as pernas cruzadas, preparou-se para fazer anotações. — Agora vejamos... Caro Dr. Todt, eu percebi uma falta de novos rifles para substituir aqueles que foram usados na guerra. Acredito que isso é uma vantagem ao inimigo e que poderia ser facilmente resolvida se o homem certo fosse colocado no comando... Ele estava em pé diante dela, seus joelhos quase tocando, seu rosto sorridente, porém insistente. Gentilmente, ele pegou o bloco de papel das mãos dela e fez um movimento para que ela ficasse em pé. Em vez disso, para a alegria dele, ela ficou em pé e enrolou a gravata dele entre os dedos, puxando até que o rosto dele estivesse na mesma altura do que o dela. Ele não se acostumava com o beijo dela. Na verdade, ele não tinha quase nada com que comparar aquele beijo, mas havia algo que o deixava assustado naquela boca, quase como se ela estivesse se enterrando nele. Todas as vezes em que ela o beijava, ele sentia que de repente ela ficava bem mais velha do que era, e se transformava em outra pessoa. Em parte, ele queria se
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afastar, até fugir e nunca mais a encontrar, mas ele sabia que aquela era uma boca que ele não podia deixar. As mãos dela envolveram a cabeça dele, e Gerhard ficou de joelhos. De algum modo, os dedos dela estavam dentro da boca dele e seus lábios dançavam ao redor de sua orelha. Ela soprou e ele caiu de costas no tapete de lã, exausto, com os prazeres do corpo dela continuando a percorrer seu corpo muito tempo depois de tê-los sentido. Ele ficou tonto, com uma sensação agradável, sentindo o peso do corpo dela sobre o dele. Brigit procurou nos papéis rápida e meticulosamente enquanto Gerhard estava entregue no chão. A força do cenário sussurrado por ela parecia aumentar a cada encontro. Mais cedo ou mais tarde, ela teria de ir muito além na verdade, a menos que conseguisse informações que eles pudessem usar. A maioria das gavetas estava trancada, e Gerhard não havia dito onde guardava a chave. Se ela quebrasse os cadeados, não teria como se livrar da culpa, então ela tinha de conseguir aproveitar o que pudesse dos papéis que estavam disponíveis, e mais uma vez eles não passavam de ordens. Ordens, ordens, ordens, eles adoram suas ordens. De repente, Brigit encontrou um conjunto de ordens que fez com que ela se sentasse, teve de ler todas elas diversas vezes antes de conseguir extrair algum sentido e, mesmo assim, elas não faziam sentido. Como Mors não havia tomado conhecimento daquilo? Como nenhum deles tomara conhecimento daquilo? Como era possível? Ela olhou para o contente Gerhard. — Você não está fazendo isso a sério, não é? Ele se remexeu, mas continuou dormindo. Brigit reorganizou os papéis e voltou a se deitar, apesar de, na realidade, querer jogá-los pela janela. Quanto mais cedo ela o acordasse, mais cedo poderia chegar em casa e todos poderiam começar a trabalhar. ****
— Quando? Brigit respondeu a pergunta com sarcasmo. — Na Tchecoslováquia na próxima semana. Na Polônia em setembro. O outono é um bom momento para se começar uma guerra, principalmente com um país com que se tem um pacto de não agressão. — Ele denunciou isso, ou você não se lembra? — Sim, bem, e eles assinaram um com a Dinamarca, você acha que isso quer dizer alguma coisa? Algo certamente vai azedar naquele Estado, pode
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escrever. A guerra está se aproximando, os planos estão em ação, e que diabos faremos em relação a isso? — Estou tentando, mas o que eu posso fazer quando meu homem está envolvido na cultura? — Meaghan perguntou, com seu sotaque irritante e petulante. Ela cruzou os braços e olhou para a chaleira. Swefred posou a mão no ombro dela e olhou pra Brigit e para os outros de modo resignado. — Eu pensei. São as perguntas que os jornalistas não estão fazendo que me preocupam. Quando eu mostrei ao cara de quem eu sou amigo que ele parece não estar fazendo nada além de regurgitar a linha do partido nos jornais, ele ficou surpreso, por assim dizer. Como se não conseguisse imaginar seu trabalho envolvendo qualquer outra coisa. Acredito que eles estão bem orgulhosos do que foi alcançado, e desse grande futuro. Eles querem continuar exaltando tudo nos jornais. — Ou estão com muito medo para fazer qualquer outra coisa. — Brigit disse com desdém. — Não sem razão. Mas precisamos entrar nesse círculo interno. Seus olhos se desviaram para Mors enquanto falava. — Não quero tirar a diversão de ninguém. — Desde quando? — Cleland piscou para ele. Ele se virou para Brigit de modo decidido. — Milhares de alemães têm dito há anos que deve existir um império alemão completo de novo, que Danzig é, por direito, parte da Alemanha, assim como a Áustria. Vamos lá, vocês se lembram de Von Bismarck. — Brigit apertou os lábios e olhou para cima. — Bem, o que você esperava? — Cleland prosseguiu, um pouco mais alterado. — Você já viu impérios se formando antes. Você achou que eles especificariam todos os planos nos jornais para que o mundo lesse? Realizar um referendo internacional, talvez? — Não seja cansativo. Só quero saber por que já não sabíamos disso, por que não impedimos isso? Está ficando meio tarde para interferir. — Isso não tem sido muito fácil, não é? — Cleland perguntou. — Essas pessoas não são carneirinhos bonzinhos, você deve ter percebido. — Estamos fazendo o melhor que podemos. — Swefred disse, quase tão petulante quanto Meaghan conseguia ser. — Será? Será mesmo? Se tivéssemos boa publicidade falsa, para confundir as pessoas, poderíamos criar o caos. Era esse o plano, certo? Cleland e Swefred se entreolharam, irritando Brigit ainda mais. — Então, o que vamos fazer? O que estamos fazendo? — Brigit exigiu saber. — Temos de ser tão espertos, tão capazes, tão poderosos, e o que estamos fazendo? Como vamos impedi-los se eles estão se preparando para
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acabar com a Polônia. Eu nem consigo comer alguém que valha a pena, temos de tomar muito cuidado. O quê? O que faremos agora? — Ela tem razão. — Mors comentou, pousando a mão no braço tenso de Brigit. — Já deveríamos ter tido mais progresso. — Fica difícil ter progresso contra tamanha determinação. — Cleland protestou. — Eles têm certeza de que estão certos, e são fiéis uns aos outros, ao partido e a ele. Eu acredito que a Deusa de Discórdia teria dificuldade em causar desarmonia nesse grupo. Devemos ter cuidado e ser espertos. — Mas não podemos ser escravos completos do cuidado. — Mors bateu na parede para dar mais ênfase ao que dizia. — Não podemos, a menos que perdamos mais e mais. De fato, como diz a moça, é nosso propósito impedir tais ações. Devemos ser fiéis a nós mesmos, corajosos e impiedosos. Ambição! Ambição... — Com esse pecado os anjos caíram. Até mesmo Meaghan olhou surpresa para Swefred. O rosto dele estava impassível, inescrutável, e Brigit tentou imaginar se ele tinha feito uma piada. Não parecia algo comum a ele, mas ela lembrou que fizeram questão, em todos aqueles anos, de não o conhecer muito bem. Mors recuperou-se da surpresa por ter sido interrompido e sorriu. — Certo, mas nunca fomos anjos. Nem mesmo iluminados. Podemos nos prender a nossa ambição. — E então? O que faremos? — Brigit sabia que era ela mesma quem agora parecia petulante, mas havia algo estranho passando por sua pele, e ela queria um plano no qual pudesse se prender com ânimo renovado. Mors olhou em seus olhos, emitindo uma faísca pela sala. — Há um grande general prussiano vindo para Berlim em breve. — Mors disse com um ronronar hipnótico. — Um de nossos mais famosos heróis da Grande Guerra, porém uma estrela muito antes disso. Ele tem sido essencial ao Reich, mas aparentemente mudou de ideia, e agora está prestes a ser um dos principais comandantes e consultores. Eles acham que isso fará uma enorme diferença. Brigit interrompeu. — Então você sabia que eles estavam se preparando para a guerra! — Não, minha impaciente Yorkista. Eu sabia que eles estavam se preparando para um império, e isso não é necessariamente a mesma coisa, como a anexação da Áustria à Alemanha demonstrou. Brigit resmungou e cruzou os braços. Mors continuou. — Eles estão organizando uma grande festa para o general Von Kassel, e ele falará a um grupo pequeno. Vai estar em todos os jornais. — Mors fez uma pausa para piscar a Swefred. — Ele vai chegar carregado de tesouro.
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Pode-se questionar onde tudo foi encontrado, mas não importa. Não seria uma vergonha se ele e todos os seus guardas fossem assassinados antes do início das festividades? E problemático também, pois quem entre eles poderia chegar a pensar em algo tão terrível, muito menos realizar? De fato, se a sabotagem for feita de modo a parecer cometida por uma equipe dentro do partido, bem, será que as coisas poderão ser como antes? Até mesmo Meaghan e Swefred pareciam interessados. — Então quando? Quando ele virá? — Brigit sentia-se tão impaciente quanto uma criança, mas não se importou. — No fim de maio, pelo que estão dizendo. — Mas vai demorar muito! — Isso nos dá tempo de planejar de modo adequado, como Otonia teria feito. Os outros assentiram, satisfeitos, mas Brigit não conseguia afastar sua inquietação. Tinha de fazer alguma coisa, naquele momento. — Estou com fome. Acho que vou sair. Cleland olhou para o relógio. — As opções são poucas a esta hora da noite, Brigit. Logo vai amanhecer. Tem certeza de que quer se arriscar? — Não dá para esperar. Ela sentiu que os outros se entreolhavam, e conseguia escutar as perguntas sussurradas, mas não se importou. Precisava de algo mais do que uma refeição. Precisava causar uma morte. ****
A noite estava fria, e parecia muito mais uma noite de meio de inverno do que de começo de primavera. Brigit passou descontente pela névoa gelada e azulada. Primavera. Logo os dias começariam a ficar mais longos, dando a eles ainda menos vantagem. Eles tinham de ter chegado mais cedo, no outono. Mas em novembro acreditavam saber o que estavam fazendo e como executariam o plano. E apesar de não terem admitido uns aos outros, nem mesmo para si mesmos, eles tinham pensado que a missão estaria completa até aquele momento e que estariam em casa. Ela pensou no plano de Mors e no efeito que poderia ter. Se eles fizessem tudo certo, podia ser o golpe pelo qual esperavam. Algo definitivo, uma coisa para tirar os nazistas do jogo, para impedir que eles levassem o prêmio tão concorrido. Mas ela desejou que elas pudessem fazer aquilo naquele momento.
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Não. Eu gostaria que já estivesse feito. Ao chegar ao centro, ela começou a farejar, à procura. Depois de meia hora, começou a ficar preocupada. Cleland tinha razão, era um horário ruim para tentar. Em Londres, sempre havia clubes e festas que iam até tarde, mas ali, apesar do glorioso sonho de uma sociedade que eles supostamente estavam realizando, não havia nada tão divertido. O hedonismo feliz da época de Weimar não mais existia, assim como devia ser na época em que homens como Mikhail Bakunin12 ou Aleksandr Herzen13 talvez olhassem para a Alemanha como uma inspiração para a democracia que eles esperavam cultivar na Rússia. Talvez as pessoas fossem confiantes e se sentissem fortes, e tivessem um modo de extravasar as energias e algo em que pudessem acreditar. Tudo isso, sim, mas o mundo deles era melancólico. Claro que ela apenas caminhava à noite e não era muito secreta além do que a missão exigia, mas para ela parecia que era o grupinho de vampiros deles que ria com qualquer coisa, como prazer, naquela cidade estridente. Que surpresa para os livros se a história pudesse registrá-lo. Um grande novo mundo, de fato, onde apenas os imortais experimentam pura alegria. Sinto vergonha por vocês. Ela riu. O riso se transformou em um gorgolejo quando ela sentiu, finalmente, o cheiro de uma presa e saiu feliz na direção dela. Dois vigias do lado de fora de um caixa-forte haviam aberto um bom gim e estavam fazendo um brinde ao futuro sucesso de ambos enquanto progrediam. Eles brindavam ao círculo interno, ao Führer, claro, à pátria e a suas belas filhas loiras. Podia ser o efeito de toda aquela bebida, mas um dos vigias tinha certeza de ter visto a cabeça loira de uma das filhas piscando para ele em um beco. Um sussurro doce soava em seu ouvido: “Komm her, mein Schöner. Ich hab’ was für dich.” Bem, se uma loira com uma voz tão enigmática tinha algo para ele, quem era ele para deixá-la esperando? Seu compatriota nem sequer percebeu que ele havia se levantado e estava seguindo na direção do beco, e provavelmente pensou que ele apenas ia se aliviar. O que, de certo modo, era o que ia fazer. Ele se apressou, quase pulando até onde estava a loira, que era tão bonita que ele quase parou de respirar. Ela parecia saída de um filme. Sim, as coisas definitivamente estavam mudando em sua vida. Devia ser o uniforme. As mulheres não resistiam a um homem de uniforme. Ela acariciou o rosto dele. Sua mão era fria, quase gelada, mas o toque era elétrico. Seus dedos dançaram pelo cabelo dele, desceram pelo pescoço – 12
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Teórico e político russo, um dos expoentes do anarquismo do século XIX. Político e escritor russo conhecido como pai do socialismo russo.
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como uma criatura tão jovem, com um sorriso tão delicado, podia ser tão experiente? Ele não havia percebido que eles estavam caminhando, não fazia ideia de onde estava, mas os lábios dela roçavam em sua orelha e faziam seus joelhos tremer. O sussurro dela não era compreensível, talvez fosse algo tirado de uma velha canção. Era fascinante e ao mesmo tempo perturbador. Mas nem tanto para que ele não derretesse sob aquele toque suave. Brigit sorriu olhando para ele. Jovem, bonito, tomado pela ambição. E não era um anjo tampouco, e estava prestes a cair. Aquele paragão, um modelo ariano, um simples vigia que estaria na Gestapo14 logo, se soubessem com quem se relacionar e se fizesse favores que bastasse. Ele era o tipo que derrubaria portas, bateria em inocentes e destruiria famílias, depois iria para casa pegar os próprios filhos no colo. Brigit olhou com mais intensidade para ele, e sorriu ainda mais. Sim, e depois colocaria os filhos para dormir, cumpria a obrigação de fazer amor com a esposa, e então fugiria para ter algumas horas com sua amante atual. E todos os domingos ele entraria na igreja com o coração orgulhoso, limpo e confiante. O sorriso aumentou, e ela levou a mão ao peito dele com firmeza, cuidando para que ele visse tudo. O vermelho de seus olhos, os ossos protuberantes do rosto sob a pele macia, a mandíbula que aumentava para acomodar suas presas brilhantes e bem-cuidadas. Ele balançou a cabeça, assustado demais para gritar, certo de que estava apenas em um terrível pesadelo. Tinha muitos planos para sua vida, estava mantendo a esperança de sua família de viver em um país expurgado de indesejáveis, no qual ele poderia chegar longe. Poderia e chegaria. Ele não podia estar prestes a ser arrasado, esvaziado de modo tão impossível e infame. Não. Todos sabiam que o Führer havia purificado a terra, que não havia mais vampiros na Alemanha e que nunca mais haveria. Impossível. Ele continuou balançando a cabeça de modo negativo, e ela se balançava praticamente sozinha. Brigit segurou a cabeça dele e a forçou a se mexer em um outro sentido, assentindo. Com mais um sorriso, ela afundou os dentes nele, adorando os movimentos de angústia, adorando sentir seu corpo se contorcer em desespero. Ela sugou lentamente, querendo arrancar a dor, mas fazia muito tempo desde que ela matara um homem usando apenas medo, e havia se esquecido de que precisava de um gosto para isso. E quanto ao gosto dele, bem, talvez fosse o pior de todos os alimentos que havia comido. Sua frieza, arrogância, ar de superioridade. Tudo isso, aumentando o medo e a fúria, fez arder seu estômago. Ela engasgou e o sangue espirrou por seu nariz e escorreu pelas costas dele. Ela se afastou, tossindo. Se Eamon estivesse ali, estaria rolando no 14
Polícia secreta do Estado alemão na época do regime nazista. (N. T.)
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chão de tanto rir. O vigia recostou-se na parede, ainda não morto, e lúcido o bastante para olhá-la com os olhos vidrados e sorrir. — Engasgou comigo, vampira? Ótimo. — Ele sorriu com fraqueza. Brigit limpou o sangue dos lábios, que agora estavam pressionados. Ela segurou o vigia pelo rosto e endireitou-o para que ele a encarasse. — Está me desafiando, não é? Isto não é nada, eu juro que o que tenho dentro de mim é muito mais assustador e destrutivo do que qualquer coisa queimando em sua alma. A minha é um pesadelo eterno, ou você não sabia? Mesmo enquanto dizia aquelas palavras, ela se perguntou rapidamente se era verdade. Alguma coisa mos olhos dele demonstrou que ele não tinha muita certeza e isso fez com que os olhos dela ardessem mais. Ela afundou os dedos ainda mais profundamente no rosto dele, sentindo os ossos se quebrarem com a pressão. — Não sabe que eu poderia me alimentar de você por um mês, se quisesse? Ele conseguiu dar de ombros, sem tirar os olhos dela. Bem. Coragem. Certamente não tinha sentido esse gosto antes. Mas ela queria que ele soubesse, compreendesse, assim como queria que todos eles entendessem a que tipo de destino estavam se direcionando, quanto mais tempo se mantivessem naquele caminho. Ele estava engasgando, e ela percebeu que ele estava reunindo sangue e saliva suficientes para cuspir no rosto dela. Ela segurou os lábios dele para fora, de modo que parecessem um bico de pato. — Sua mãe nunca lhe ensinou que você deve ter respeito pelos mortos? Ao dizer isso, ela apertou as presas nos lábios dele, silenciando-o. A dor e a ardência dos olhos dela fizeram os dele ficarem marejados. Ela mostrou mais do demônio sobre sua carne – uma garra de três centímetros estendida de seu dedo indicador. Ela o furou um pouco acima do mamilo e desceu lentamente, bem devagar, até o lado interno de sua coxa. Os olhos vermelhos dela tornaram os dele agonizantes. Ela se afastou dele rasgando seus lábios. Usando apenas o dedo indicador e o polegar, ela conseguiu quebrar a mandíbula dele. Ele já tinha parado de gritar e implorava desesperadamente pelo alívio da morte. Ele segurava o casaco dela em um pedido silencioso. Ela se inclinou para o ouvido dele para mais um sussurro. — Sim, eu poderia mantê-lo vivo, consciente, sentindo esse dor por um mês. E eu não dormiria nem um segundo, para não perder nada, pode ter certeza. — Ela parou, deixando as palavras serem absorvidas. — Mas não farei isso. Porque, diferentemente dos seres humanos, não causamos dor por diversão.
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A gratidão surgiu nos olhos dele e ela assentiu, satisfeita. O que sobrou dele caiu de modo muito mais suave. ****
A Tchecoslováquia caiu sem resistir, os judeus alemães perderam ainda mais seus direitos, e um navio repleto de refugiados foi rejeitado pelos Estados Unidos e mandado de volta para à Europa. Não havia nada nos jornais que evidenciasse a presença dos vampiros. A chegada do general Von Kassel foi retardada, o que apenas aumentou a ansiedade. Por fim, entretanto, ele estava a caminho, e estavam prontos para ele. O acontecimento ocorreria no dia 21 de junho, o que divertiu Mors. — Ótimo. Um pesadelo de uma noite de verão. Von Kassel estava chegando em um dos trens pessoais do Führer. Uma mulher com quem Cleland tinha feito amizade deu a ele alguns detalhes sobre o tesouro que o general trazia – dinheiro e valores que os judeus bavários não podiam mais manter. Ela mal conseguia compreender como eles tinham se dado tão bem, em primeiro lugar. As pilhas de marcos alemães confiscados foram colocados em carros-fortes no trem, para serem enviados em segurança para a Suíça, mas as joias e os objetos seriam distribuídos de modo justo, a menos que as infelizes Magda Goebbels15 e Eva Braun16 quisessem mais do que tinham direito. — E tem mais. — Meaghan sorriu. Os quatro olharam para ela. — Ele está trazendo cultura aprovada. Uma editora forneceu todos os livros de história para os estudantes de Berlim pelos próximos dois anos, e o departamento de educação da região gastou muito dinheiro nesse investimento. E quanto à arte, bem, simplesmente milhares foram investidos na comissão dessa arte, tudo que será pendurado nos grandes salões de poder e nas escolas. Retratos do homem, em grande parte, e de muitos dos homens ao redor dele. Para que ninguém esqueça dos rostos desses arquitetos. — Ela olhou timidamente para Brigit. — Mas foi o que o homem da Câmara disse. Swefred a beijou e os outros três desviaram o olhar, mas estavam muito impressionados. O trem e tudo dentro dele era praticamente a tumba de Tutancâmon. Era perfeito. ****
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Esposa de Joseph Goebbels, ministro do Povo e da Propaganda de Adolf Hitler. (N. E.) Amante de Hitler, tornou-se sua esposa um dia antes dos dois terem se suicidado. (N. E.)
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O general Von Kassel e seus doze guardas estavam adiantados. A maioria dos convidados esperados estava em visita à nova escola e só chegaria dali a uma hora. O pequeno grupo de oficiais da SS e homens em cargo de menor escalão que trabalhariam aquela noite estavam nervosos e retraídos, mas o general afastou a preocupação deles, contente, e disse que estava muito feliz de poder se sentar diante de uma lareira e esperar. Ele não se importava com viagens longas de trem. O tenente responsável o parabenizou por ter acendido uma lareira na antessala opulenta do auditório e abriu algumas garrafas a mais de bebida. Ele pretendia abri-las mais tarde, mas não se importava, pois os elogios à sua organização seriam uma recompensa melhor. A antessala era um cômodo esquisito, grande, com pé direito alto e cortinas pesadas de veludo que acumulavam muito pó. Mas o general parecia satisfeito e se ocupou acendendo um cachimbo. — Guten tag, general. — murmurou uma voz delicada atrás dele, e ele e seus guardas se assustaram. Ninguém havia visto a bela jovem de cabelos ruivos entrar, mas ali estava ela, ao lado de uma poltrona, sorrindo de modo convidativo. — Espero que esteja fazendo boa viagem. — A loira de enormes olhos verdes devia ter saído do antigo tapete persa, mas o general não estava interessado em fazer perguntas. Estava impressionado por aqueles ignorantes alemães terem tamanho bom senso e bom gosto. As moças eram belíssimas. Deviam ser prussianas. O guarda ficou ali perto, esperançoso, não acreditando que o general dividiria, mas querendo estar pronto se tivesse chance. Von Kassel percebeu os olhares que as moças estavam lançando a ele, como estavam analisando sua figura. Ele tinha mais de sessenta anos, era verdade, mais ainda era belo e poderoso. Um guerreiro em sua essência. — Esta é sua primeira viagem a Berlim, general? — A loira perguntou. — Não, eu vim a Berlim na infância. — ele respondeu, de modo alegre e ao mesmo tempo ríspido. — Era muito diferente. Um lugar mais quente, repleto de vida. — Eu concordo. — Mors disse, assustando o grupo. Eles não tinham escutado a porta se abrir, mas três homens desconhecidos, com espada em punho, recostaram-se na parede. Von Kassel olhou além de Mors para o corredor curto que levava em direção ao auditório. O cheiro do espaço repentinamente muito silencioso causou-lhe um arrepio no pescoço, como sempre ocorria no auge da batalha. Mors estava sorrindo para ele, e por um breve momento Von Kassel pensou tê-lo reconhecido, ou talvez ele simplesmente conhecesse um soldado quando via um.
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— Se não gostou do que Berlim se tornou, por que está aqui para ajudála no novo caminho? — O tom foi educado, mas o desgosto e a malícia estavam claros. Von Kassel apenas olhou, e Brigit suspeitou de que ele não tinha resposta, ou nenhuma que quisesse dizer em voz alta. Os prussianos sempre tinham se considerado superiores aos alemães, e ter de abrir mão do próprio reino, e começar aquele novo Reich, muito mais poderoso do que o deles já tinha sido, era vergonhoso. Sem dúvida, Von Kassel tinha planos de se unir a Hitler para reconstruir o reino prussiano novo. Mors olhou para ele com uma mistura de pena e diversão. Os guardas tinham pegado suas armas e só estavam esperando a ordem do general para atirar. Brigit e Meaghan sorriram para os dois homens e passaram suas mãos em seus cabelos. Os outros oito guardas e general estavam parados, e ficaram aterrorizados quando os vampiros cortaram as cabeças, arrancando-as dos corpos e lançando-as em direção ao fogo. Quando os gritos começaram, Mors, Cleland e Swefred fizeram movimentos simples e quase descuidados com as espadas. As oito cabeças caíram no carpete, rolando como bolinhas de gude antes de serem cobertas pelos corpos que caíram. Mors sorriu para Von Kassel. — O senhor deveria estar contente, general. Será um bom exemplo do que acontecerá a todos em Berlim se continuarem nesse caminho. O senhor parece ser o tipo de homem que gosta de dar exemplos. Mors se aproximou e Von Kassel empunhou a própria espada com prática e graça. Mors sorriu, e nem mesmo Brigit viu como segundos depois a espada do general estava na outra mão de Mors. Os braços de Mors nem sequer pareciam ter se mexido, mas o corpo de Von Kassel estava no centro da sala, cabeça e membros feridos, veias à mostra encharcando o tapete do sangue. Brigit encontrou o gancho que abria a claraboia e cinco vampiros entraram. Apenas Mors sabia o truque de fechá-la para que ficasse trancada pelo lado de dentro. Eles se esconderam perto da entrada do auditório, observando os convidados se aproximando, analisando o momento para causar mais impacto. Eles tinham cuidadosamente calculado o próximo passo, desejando que o terror aumentasse. Os primeiros homens entraram e escorregaram no sangue, assustando-se com o que viam. Os mais fortes corriam pelo auditório, empunhando armas, gritando ate encontrarem a antessala. Eles gritavam para aqueles que não estavam vomitando que procurassem os assassinos, que não deveriam estar muito longe. Os vampiros tinham reservado alguns deles para correr para o trem, sabendo que ele também seria um alvo.
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Mors poderia ter lidado sozinho com os nazistas e com o general, mas os outros quatros estavam determinados a participar da diversão. A missão era afinal um esforço em grupo, e pouco progresso havia feito para que eles não quisessem se reunir para causar grande caos. Além disso, era mais claro e mais silencioso dessa maneira, melhor para o que eles estavam prestes a fazer. O trem estava repleto de guardas de orelhas em pé com os gritos vindo do auditório próximo. Todos os homens sentiram um golpe de ar frio e tiveram um milésimo de segundo antes de ver o vulcão de sangue explodir do guarda diante de si, que tinha sido arrasado pelas garras parecidas com lâminas de um vampiro em disparada. Os homens que chegaram correndo da cena sangrenta do auditório só viram corpos. Eles pararam, escutando um rosnado, um uivo, e então observaram boquiabertos quando o trem explodiu. A bola de fogo subiu como se o sol estivesse nascendo. Os gritos de medo e surpresa, além do som de destroços perfurando a carne e aumentando o incêndio eram néctar dos deuses para os vampiros. Eles controlaram o riso enquanto todos gritavam que os sabotadores deviam estar por perto, que não havia maneira de eles escaparem, mas ninguém pensou em olhar para cima. Mors deu o sinal e os vampiros se afastaram, saltando levemente como gazelas acima do teto das construções, voltando ao refúgio, aproveitando o cheiro de coisas queimadas e a promessa de uma viagem quente de volta para casa. ****
— Foi desumano demais. Havia um toque de elogio no tom de Cleland, porque ninguém queria fazer Mors se sentir pior do que já se sentia. Eles nunca o tinham visto agir de modo covarde, e isso era mais assustador do que a percepção do novo problema. A exatidão nos assassinatos, a destruição perfeita do trem e a falta de pistas haviam levado muitos do grupo a dizer que poderia existir algo demoníaco entre eles. Parecia que alguém havia consultado um livro de lendas e descoberto que outros inimigos da Grã-Bretanha tinham sido mortos do mesmo modo que Von Kassel, e as lendas tinham certeza de que aquilo era trabalho de Mors. Era apenas a atuação brilhante de Mors, combinada com as poucas imagens de seu rosto nos livros de lendas alemães, que impediam a todos de perceber quem de fato era o major Werner, mas Mors ainda estava envolvido. — Não foi apenas o assassinato, mas tudo. Fomos muito bons. É por isso que não está nos jornais. — Swefred estava sendo gentilmente encorajador. E era verdade. Quando Brigit perguntou a Gerhard sobre a
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reunião com Von Kassel, porque ela sabia havia semanas que seus supervisores iriam, ele ficou pálido e disse que algo tinha dado errado, mas que ela não deveria se preocupar. Meaghan disse que a Câmara de Cultura estava arrasada, e que o Departamento de Educação de Berlim estava em polvorosa, mas com tantos eventos planejados para o outono seria melhor não levantar suspeitas no público em geral. — Então os planos ainda estão avançando. — Mors comentou com um sorriso de amargura. — Gostaria de saber que papel eles estão esperando que meu major desempenhe nesse joguinho de guerra deles? Eu deveria me preocupar por eles não terem me contado? Brigit colocou a mão sobre a dele, passando o polegar com delicadeza sobre o pulso. Ela queria aproveitar o sucesso deles mais, porém três semanas depois era como se nada tivesse acontecido, e o único resultado era que eles tinham de ser mais discretos do que nunca, com receio de que as investigações chegassem perto deles. Mas Mors continuava sendo um membro próximo de seu grupo de nazistas, eles não pareciam suspeitar dele, e os outros não haviam percebido mudanças em seus círculos. Quanto a Gerhard, ele continuava como sempre, e Brigit sabia que ele não sabia interpretar, então sua atitude devia ser genuína. Isso era bom, mas o fato de os vampiros terem demonstrado tanto poder, assumido um risco tão grande e por fim alcançado tão pouco, era muito ruim. — Vamos ter outra chance. — Brigit disse com autoridade simplória, sabendo que era o que Eamon pensaria. Mors sorriu para ela. — Claro. E uma coisa é certa: eles estão dormindo com bem menos tranquilidade. Gosto disso. Mas conforme o verão foi passando, Brigit tinha a sensação de que eles só tinham aumentado as ambições dos nazistas. Os judeus alemães foram expulsos de cargos do governo, Eichmann recebera ainda mais poder e os vampiros não tinham se aproximado de sua meta. Otonia dizia que eles deviam continuar, sem perder a fé. Eles tinham se saído bem, estavam fazendo progresso; só estava demorando mais do que pensaram. Mas deveriam se sentir encorajados: o mundo estava ficando nervoso e prestando atenção na Alemanha, com certeza, e entre o bom trabalho deles e a critica dos outros governos, a guerra podia ser evitada e os nazistas derrotados. Pela primeira vez na vida, Brigit sabia que Otonia estava enganada. Ela admirava o otimismo da líder, assim como admirava sua força, inteligência e coragem, mas ela estava errada. Os alemães adoravam Hitler, não questionavam nada, adoravam a ele mais do que as suas famílias e a eles mesmos. E os outros governos? Aqueles que não tinham feito nada quando o Tratado de Versalhes foi notoriamente violado na ocasião da anexação da
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Áustria á Alemanha? Eles haviam dado de ombros quando Hitler se apossou de Sudetenland, bocejado quando a Tchecoslováquia foi vencida e continuaram a tolerá-lo. Brigit queria rir, sentia vontade de dar tapas nas cabeças dos líderes mundiais para mostrar a eles que aquela não era a maneira certa de evitar a guerra, que não fazia sentido em aceitar tudo, que o mundo estava apenas evitando o óbvio. Não ia acabar, nunca acabaria. Os nazistas estavam mais famintos do que um novo vampiro e iam abrir cominho comendo tudo sem a menor preocupação, de um modo que nenhum vampiro seria capaz de fazer. Agora que tinham recebido a faca e o queijo de novo, podiam comer com ainda mais rapidez, requinte e maldade. Possivelmente, como muitos impérios antes deles, eles se entupiriam até explodir, mas isso ainda significaria que o mundo tinha sido arrasado. Seres humanos e vampiros morreriam de fome juntos, esperando que a vida começasse de novo. Brigit se escondeu na sombra da porta do metrô, fazendo a contagem regressiva dos segundos até que fosse seguro partir para seu encontro com Gerhard. Em quatro outras portas, ela sabia que os outros estavam fazendo a mesma coisa. Mors, de volta a seu estado alegre e seguro, piscava para ela quando seus olhares se cruzavam. De longe, muito longe, ela sentia dedos amorosos acariciando-lhe a face. Eamon acreditava nela, em todos eles. E isso acabava com todas as dúvidas. Mais uma vez, ela sentiu o arrepio da certeza. De que importava que tudo estava demorando mais e parecia mais difícil do que eles tinham imaginado a princípio? Eles estavam ali. Haviam dado um golpe forte, deixado marcas, e continuavam a abrir caminho como um sacarolhas, comendo de modo estável, chegando à base. A partir dali, não haveria calmaria nem piedade. O mundo pode não saber o que vocês pretendem fazer, mas nós sabemos. E a cada dia sabemos de mais coisas. E vocês, vocês não sabem nada. Querem colocar o mundo na escuridão, mas não existe escuridão, apenas ignorância, e vocês nem mesmo sabem que não conseguem ver. Grandes mestres, não é? Vocês vão aprender. Nós é que seremos seus mestres, com certeza. Quando Brigit partiu para o restaurante conforme combinado com Gerhard, ela ergueu o queixo de modo arrogante e seus olhos brilhavam de ansiedade. Os homens a admiravam enquanto ela passava, mas ela não viu nenhum deles. Só via os rostos assustados de Hitler e de seus comparsas do círculo interno quando percebessem que o impossível os havia atingido, e que de fato eram as criaturas que eles temiam e detestavam quase mais do que qualquer outro que tivesse encontrado uma maneira de derrubá-los.
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Capítulo 9 Londres. Agosto de 1939.
— Você tem sorte, sabia? Padraic deitou-se na grama ao lado de Eamon, esfregando a barriga. — Por quê? Porque não tenho indigestão? Quem você comeu? — Um bêbado que fuma muito. — Todos eles fumam muito. É a tensão, acho. Ou talvez eles gostem do gosto. — Mas eu não gosto. — Nem eu. Eles se sentaram em silêncio, observando o brilho das luzes na cidade. O estômago de Padraic roncou e ele apalpou a barriga, frustrado. Eamon sorriu e Padraic continuou. — Eu não estava me referindo a isso, quer dizer, à sua sorte. — Não pensei nisso. — Você pensou. — Talvez. O vampiro mais jovem avaliou seu companheiro. Ele continuou, hesitando levemente. — É meio ruim ser o segundo amor dele, sabe? Sei lá, é totalmente difícil não sentir que uma comparação é feita o tempo todo. Ele não teria me criado se não tivesse perdido Raleigh, claro. — Não, mas é assim que as coisas acontecem. Você não queria estar aqui, não é? — Sim, eu sou feliz aqui e é verdade. O que eu seria se não estivesse aqui? Uma bicha irlandesa morta e esquecida, certo? Vou dizer uma coisa: era bem mais fácil ser homossexual em Londres, mesmo com eles não muito simpáticos com os irlandeses, do que ser um homossexual na Irlanda. E mais fácil ainda ser um vampiro homossexual. — Ele observou Eamon de novo e riu. — Quem diria que haveria uma época em que seria melhor ser judeu na Inglaterra do que uma bicha?
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— É essa a vantagem de ter uma vida longa, pois vemos as coisas mudando. Nenhum deles tem uma vida mais fácil, creio eu. — Não, temos a vantagem deles aqui. Eamon ficou em silêncio, impaciente e ao mesmo tempo esperando o momento em que Padraic voltaria ao assunto principal. — Deve fazer diferença, não tem como não fazer, sabendo que você foi o único a quem ela já amou. — Você não deveria pensar nessas coisas, pois vai se chatear e isso não faz bem a Cleland. Ele esperou algumas centenas de anos antes de encontrar você. Ele sabia que era de verdade, e você também sabia, você sabe disso. Ele amou antes, e daí? Tudo isso quer dizer que ele aprendeu a amar, não quer dizer que ele o ame menos. Padraic assentiu. Eamon compreendia como ele se sentia. Era esse o problema com uma longa separação: a mente voava para lugares perigosos. Entre eles estava a pergunta não respondida de Padraic. “Por que não houve mais ninguém em todas aquelas décadas?” E não era a pergunta mais fácil de responder. Era uma pergunta que ele havia feito a ela mais de uma vez, como se estivesse aprendendo, mas apesar de ela sempre ter sido muito honesta, parecia que nem mesmo ela sabia o motivo. Os pecados dela finalmente tinham sido perdoados e seu coração estava limpo e pronto para se abrir, e foi então que ela o conheceu. Mas antes existia Aelric, e todos aqueles anos entre eles. ****
Ninguém no tribunal conseguia acreditar no bom gosto demonstrado por Aelric ao escolher Brigantia, nem na sorte que ele tivera com tal escolha. Apesar do temperamento que podia ser repentina e frequentemente ruim, ela assumira a vida das trevas com decisão e era admirada por todos. Otonia fazia questão de acompanhar os novos desde o começo, para avaliar seu potencial. Brigantia era uma predadora poderosa, Otonia descobriu, com uma habilidade impressionante de conseguir a presa escolhida. Quando se alimentava, parecia estar sugando mais do que sangue; ela queria tomar a essência do mundo a cada morte. Aquela era uma vampira que queria mais do que a caça e o alimento. Uma vampira que precisava de cuidados atentos. Era aí que Aelric criava outro problema. Um criador não tinha de instruir, mas tinha de ser um guia. Deveria iniciá-la nas mais profundas complexidades da vida dos imortais, com suas turbulências e também alegrias. Aprofundar-se era o caminho para uma existência longa e próspera.
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Brigantia aprendera a ler mais rapidamente do que qualquer vampiro. Otonia a ensinara, e ela foi rápida para aprender diversos idiomas também. Ela devorava livros como se fosse sangue. — Vá com calma, ou você vai ler a biblioteca toda em um ano e não terá mais nada para ler. Brigantia sorriu e jogou a cabeça para trás. — Posso começar de novo e aprender ainda melhor. E os seres humanos terão de escrever mais. Eles não parecem ter o mesmo interesse que tinham na sua época. Por que você acha que isso ocorre? Otonia correu a mão carinhosa por um volume de Aristófanes. — Os tempos mudam. A vida era mais rica naquela época, mas os seres humanos nem sempre valorizam o que têm. Mas espere, pois tenho certeza de que as coisas mudarão de novo. Nossa Inglaterra terá sua animação, e nós também. Os olhos famintos da jovem vampira brilharam de ansiedade. ****
Ela era inteligente, muito mais do que Aelric, porém não sabia como a vida de um vampiro podia acabar. Essa era uma das primeiras coisas que um criador tinha de ensinar, de modo delicado e carinhoso, para afastar o medo. Aelric não era sutil, mas não tentava justificar sua falha. Não parecia certo que outro assumisse aquela tarefa essencial, mas Brigantia era impulsiva, até mesmo para uma nova vampira, e o tribunal preferia mantê-la. Eles nunca tinham visto um vampiro que corresse pelas florestas perseguindo tempestades, cuja risada selvagem ecoasse pelos pântanos, que passava horas em um abismo, recitando ao mar as novas poesias recémaprendidas e desafiando as ondas para alcançá-la. Certa vez, escutou Mors dizer algo sobre “felicidade furiosa e fúria feliz” e soube, com prazer e orgulho, que ele estava falando sobre ela. E algum tempo depois, descobriu que ele havia falado sobre ela de novo, com Otonia. — Criatura maravilhosa a nossa Brigantia, não é? Quem imaginaria que Aelric seria capaz disso? — Todo mundo tem sorte pelo menos uma vez na vida. — Ela gosta de correr riscos. Eu a vi pular entre vikings para capturar um deles. Os outros se borraram de medo. Ela segurou a presa e lançou as flechas dos vikings contra os próprios enquanto eles fugiam. Errou, provavelmente de propósito, mas sua risada foi algo para ser ouvido. Eu não me surpreenderia se fosse possível escutá-la em Cúmbria.
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— Sim, o demônio dela é especialmente forte. Mas não é muito sábio que alguém tão jovem chame tanta atenção. Pessoas demais conhecerão o rosto dela. — Um rosto como aquele? Elas deveriam ser gratas. — É verdade. Mas é cedo demais para virar uma lenda. Ela precisa de controle antes. — E Aelric não pode ajudá-la com isso. Não poderia nem mesmo se quisesse. Então o que você acha? Eu devo interferir? — Sim. Mande Aelric para uma longa viagem para que eu possa conversar com ela sem ser interrompido. — Sim, posso fazer isso. Ele morre de medo de mim. É divertido. Vou aproveitar e levá-lo a um passeio pela natureza. Talvez empurrá-lo de um abismo. Otonia sorriu, mas não disse nada. Certa noite, enquanto Brigantia cuidava de seu novo jardim, Otonia sentou-se à beira da terra recém-cavada, puxou um fio de sua roupa e começou a enrolar. — Em seu mundo, existiam histórias sobre vampiros? — Nenhuma, mas para ser franca eu nunca prestava atenção ao que os mais velhos diziam. Só prestava atenção ao curandeiro. Eles não inspiravam muita confiança. — Acredito que é sempre o que ocorre. Mas Aelric contou sobre os caçadores? Brigantia olhou para ela de modo questionador. — Não, não pensei que ele tivesse contado. Para explicar de modo simples, os seres humanos têm entre eles grupos que aprendem a matar vampiros. É a mesma teoria dos grupos que saem para matar animais, mas estes são um grupo mais requintado. — Eles realmente nos caçam? — Bem, às vezes. Outras vezes apenas protegem o vilarejo. Depende bastante. Os romanos eram ótimos caçadores, tínhamos de ser habilidosos para sobreviver em Roma, mas valia a pena. Aqui eles são menos concentrados. A vida costuma ser difícil, creio eu, então eles não se preocupam tanto em destruir uma comunidade de vampiros. Além disso, dormem cedo. — Mas... eu não entendo. Eles podem... podem nos matar? — Podem e costumam fazer isso. — Pensei que fosse apenas a luz do sol... — E o fogo. Apesar de este ser um pouco mais lento e bem menos confiável, como descobriram quando queimaram a biblioteca de Alexandria. — Foi para destruir os vampiros.
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Otonia sorriu. — Os relatos variam. É uma longa história. Mas não, predominantemente foi uma ação política, com um pouco e conflito religioso misturado, claro. O fato de os vampiros estarem usando-a tarde foi apenas uma vantagem a mais. Como costuma acontecer nesse tipo de pensamento dos seres humanos, eles perderam mais do que ganharam. Mas ganhamos uma boa mudança. Ela sorriu alegre, pensando na biblioteca de dentro das cavernas, e então retomou o assunto. — Mas uma lâmina bem-usada pode arrancar nossa cabeça, e não há como nos recuperarmos disso, como você pode imaginar. — Posso imaginar. Mas preferiria não imaginar, se não houver problemas para você. Otonia sorriu. — Bem, então o método favorito de execução deles, ao que parece, é também o mais engenhoso. Não sei como eles descobriram, mas parece que um pedaço afiado de madeira, do comprimento certo, pode atingir o nosso coração. Rápido, limpo e eficiente. — Por que nossos corações são tão vulneráveis? Eles não fazem mais nada de útil. — Talvez isso não seja tão verdadeiro como podemos pensar. Mesmo que tivéssemos recursos científicos, um cadáver de um vampiro não pode ser estudado. — Por que não? — Porque desaparece. — Não entendi. — Infelizmente, você verá com os próprios olhos um dia. Todos vemos. Brigantia já estava acostumada e costumava se divertir com a maneira misteriosa de Otonia falar. Ela gostava que todos pensassem sobre as coisas, questionassem. Mas naquele momento Brigantia percebeu que a reticência de Otonia tinha mais a ver com dor. — Então eles nos caçam? — Sim e não. Eles são conhecidos por procurar e destruir refúgios, mas concentram-se em famílias menores. É por isso que nossas cavernas são tão profundas; eles demorariam a chegar até nós, e nós, os mais velhos, conseguiríamos ouvir. Os caçadores poderiam entrar, mas não sobreviveriam a nós. Acredito que eles sabem disso. Trabalham geralmente em duplas e procuram duplas. Nosso descuido é o que costuma ajudá-los. Sapatos com manchas de sangue que deixam marcas. Muita farra perto de um local de moradia de seres humanos. Coisas assim.
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Brigantia balançou a cabeça em aprovação, pensando nas próprias farras e na sua falta de cuidado. Um pouco mais sobre a vida dos vampiros tinha sido revelado. E Aelric deveria ter contado. Ela se perguntou por que ele não havia contado. Talvez fosse pela delicadeza dele, por querer protegê-la. Talvez ele estivesse esperando que ela começasse a gostar dele. Ela ainda dormia na mesma cama que ele afinal, apesar de não acontecer quase nada além de dormir. Ela sabia que podia pedir a própria câmara e que ninguém pensaria qualquer coisa a seu respeito, mas ainda parecia cedo demais. Não queria que os outros pensassem que ela era fria. Para sua surpresa, Brigantia colocou a mão sobre o braço de Otonia, procurando a tranquilidade transmitida pelo contato. Não era algo que ela sentira necessidade de fazer quando era ser humano. — Alguns caçadores devem ser habilidosos. Não pode ser apenas nossa falta de cuidado que os atraia. Otonia sorriu e apertou a mão de Brigantia. — Não. Como ocorre com a maioria dos homens, aqueles que são mais determinados a seguir adiante... conseguem. ****
Várias semanas depois daquela conversa, Brigantia ainda estava pensando nas artimanhas e habilidades dos caçadores, perguntando-se como eles não encontraram os vampiros nas cavernas durante o dia. Ela queria saber como eles aprendiam a fazer o que faziam e como eram fortes unidos. Esse sentimento que tinha em relação a eles não era medo até onde ela sabia, mas era uma curiosidade forte e mórbida. Aelric viu que a mente dela estava ocupada, longe e procurou em vão ajudar. — O que foi? O que houve? São todos os livros que você vem lendo? Deveria sair e brincar mais, que é para isso que serve a vida. Saia e divirta-se. Sem vontade de responder, Brigantia delicada e educadamente fez um sinal de contrariedade para ele, o que deveria ser entendido como um alerta. Aelric reconheceu que a mudança de atitude era carinho e tentou mais uma vez acalmar e agradar com vigor. Brigantia logo começou a se irritar, mas não queria dar início a uma discussão. Tentava se manter distante dele, mas ele se prendia a ela e não se afastava. A voz dela ficava cada vez mais suave quando ela pedia que ele permitisse que ela ficasse mais à vontade, mas ele não parecia perceber que ela estava falando sério. Uma semana depois, Brigantia estava voltando tarde para casa depois de uma caçada infrutífera quando Aelric caiu de uma árvore bem em seu caminho.
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— Olá, minha Brigantia. Teve uma noite ruim? Ela se assustou tanto que deu um pulo para trás, escorregou e caiu sobre um monte de estrume. Ela teria se levantado mais rapidamente se Aelric não tivesse tentado ajudar, e ambos ficaram cobertos de estrume dos pés à cabeça quando conseguiram ficar de pé. Se fosse outro momento, em outra companhia, ela teria rido, mas uma raiva começou a se formar dentro dela, como nunca tinha sentido, e ela sentiu um grande desespero para chegar a um lugar onde pudesse se lavar. Mors estava no corredor onde ficavam os banheiros feminino e masculino, brincando com Leonora. A princípio, ele pensou que Brigantia havia se sujado com teias de aranha e que os fios estivessem grudados em seus cílios como bigodes de gato. Mas então percebeu que se tratava de fumaça. Fumaça saindo dos olhos de Brigantia e rodeando sua cabeça. Seu rosto estava muito corado. O cabelo dela – que ele consegui ver mesmo em meio a todo o estrume – estava ficando vermelho e se eriçando, apesar de não estar ventando. Aelric estava seguindo Brigantia, entoando um monólogo estável. “Sei ouvir, é verdade, você deveria tentar, deveria confiar em mim; você me deve isso, sabe? Você me deve isso e mais. Você deve a mim tudo o que é, pois eu não a escolhi? Eu a criei! Eu lhe dei um presente e quando você vai demonstrar gratidão de verdade?” Ele saltou na frente dela com os braços cruzados, e ele, Mors e Leonora testemunharam a explosão de Brigantia com toda a sua força. Não foram apenas presas, garras e olhos vermelhos. Era algo que parecia regurgitar do Inferno. Ossos da cor de sangue apareceram embaixo de sua pele. Então, algo que ninguém tinha visto em um vampiro: chamas saindo de seus cabelos e cílios. Ela rosnou e o fogo saiu de sua boca. Aelric desmaiou e a garra foi na direção de sua garganta, mas Mors segurou Brigantia e a jogou dentro da banheira, segurando-a dentro da água quente até as chamas desaparecerem e ele vir os ossos voltarem a seus lugares, e a pele assumir a cor de sempre. Brigantia cuspiu ao chegar à superfície da água e ficou em silêncio enquanto Leonora colocava uma toalha ao redor de seu corpo. Quase trinta centímetros de cabelos chamuscados caíram a seus pés, e suas unhas estavam pretas, mas, afora isso, ela estava bem. Ela limpou o rosto e olhou para a água suja com arrependimento. — Bem... merda. Mors riu e Brigantia olhou para ele com raiva. Estava tremendo de cansaço, medo e dor, porque o fogo havia queimado profundamente dentro dela, mas ela sentia que estava voltando ao normal, ainda mais quando ela fez questão de pisar em Aelric, que ainda estava inconsciente, enquanto Mors a guiava de volta a uma caverna pequena e desocupada.
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— Acredito que você quer a sua câmara agora, certo? Vai dormir melhor. Ele esperou do lado de fora enquanto ela vestia roupas secas, depois entrou e a colocou para dormir como se ela fosse uma criança. Segurou a mão dela e sorriu. — Bem, pequena Brigantia. Todos sabíamos que você era casca de ferida, só não sabíamos com que intensidade. Ela riu e fechou os olhos. — Obrigada, Mors. Ela disse aquilo em um sussurro baixo, mas ele escutou. Inclinou-se e cantarolou uma canção antiga em seu ouvido, fazendo-a adormecer profundamente. ****
Ela não conseguia deixar de ser a nova pessoa de quem estava passando a gostar tanto, mas o fogo a dominou. Sem dúvida, Mors sabia o que ela não queria contar a mais ninguém, nem mesmo admitir a si mesma, que era o fato de que o fogo quase a matara. Seus movimentos lentos e cuidadosos dos dias seguintes eram resultado de órgãos chamuscados que estavam dolorosamente sarando. Seu esôfago doía demais para fazer a pergunta à Otonia da qual ela já sabia a resposta. Ninguém mais tinha um fogo interno como aquele. Outros demônios não podiam explorar tanto a ponto de matar seus hospedeiros. Ela levou a mão ao ponto onde sabia que o demônio residia, perguntando a si mesma por que ele faria uma coisa daquelas com ela. Brigantia acreditava que ele a amava, e a estava ajudando a crescer. Agora, ele parecia mais uma coisa na qual ela não podia confiar, uma coisa que, por uma bobagem, poderia se voltar contra. Nada foi dito sobre o incidente, e todos a trataram da mesma maneira. A única diferença era que os olhos de Mors brilhavam de modo sarcástico sempre que eles se entreolhavam. Por fim, foi ele, e não Otonia, que lhe deu uma explicação que a deixou confortada. — Você era um ser humano nervoso, não era? Você nasceu com raiva, cheia dela. De vez em quando ela simplesmente explodia dentro de você e atingia a quem estivesse por perto. Brigantia não perguntou como ele sabia de tais detalhes. Esperou que ele continuasse. — Não é o demônio. Não seria. Seu lado humano estava repleto de ódio quando morreu. Era forte demais para simplesmente ser absorvido pelo
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demônio. É sua própria fera. É o fogo, sua manifestação física da raiva humana. Parabéns, Brigantia. Você realmente é única. Não havia como saber se aquilo tudo era verdade, mas ela aceitou. E foi melhor. Por sua vez, Aelric mantinha distância da criatura que ele havia feito e à qual dava tanto valor. Não importava se ele tinha visto assassinato ou morte naqueles olhos em chama. Ela não era nada parecida com o que ele esperava quando tirou sua bondade e depois sua virgindade. Ele tivera o sonho de encontrar uma companheira bem-humorada que olhasse para ele com adoração, que o enchesse de amor e risos e que nunca saísse de seu lado. Ou talvez ele desejasse algo parecido com o que dividiam Swefred e a retraída Meaghan, uma companheira que apesar de passiva e séria não via mais nada no mundo além do homem que nunca queria se afastar dela. Ele era o mundo dela, e ela, o dele. Era isso que Aelric desejara, e talvez a inveja do tribunal, e ele voltou para sua cama sozinho, enquanto ela, a quem ele tanto desejava e amava, evitava seu olhar. Conforme ele se tornou mais distante e preocupado, Brigantia sentia-se ansiosa e até preocupada. Para o próprio embaraço, às vezes ela não conseguia deixar de tentar consolá-lo e animá-lo. Aquela mistura de obrigação e culpa prejudicava o relacionamento. Algo parecido com uma trégua ocorreu por fim, e Aelric começou a caçar com ela, mesmo sabendo que isso violava todas as leis deles. Ele não conseguia parar, pois estava viciado em vê-la caçar. Uma sensação perturbadora de obrigação, por menos sentido que fizesse, fez com que ela voltasse para a cama dele, apesar de sentir ainda menos prazer que antes. E não demorou muito até que ela se irritasse com a presença dele de novo. Mas ela agora tinha quase vinte e cinco anos e aos poucos aprendia a se controlar. Ninguém imaginara que Aelric chegaria a seu primeiro século, e tinha sido a influência dela que realizara aquilo. Essas coisas a impediam de desaparecer quando ele agia de modo infantil e cansativo. — Eu sempre quis comer um casal junto, e você? — Eu não. — Mas vamos tentar, você não acha que vai ser divertido? — Não. — Seria divertido, sim, e você gosta de coisas novas, não é? — Aelric, estou com fome. Quero comer sozinha. Depois disso, preciso cuidar de umas plantas novas... — Viu? Você disse novas.
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— Plantas. De meu jardim. Sim, eu gosto delas. E você sabe disso. Agora vá. Apresse-se, pois vai ter dificuldades de encontrar algo bom para comer se demorar demais. Aelric demorou-se, desejando dizer mais coisas, mas finalmente se afastou deixando Brigantia seguir em direção à taberna Nessgate. Não era obrigatório, mas ao escolher uma refeição, os vampiros costumavam procurar pessoas do sexo ao qual se sentiam atraídos sexualmente. Uma vez que a maioria dos alimentos era morta por meio da sedução, e não pelo medo, isso facilitava o processo, e o deixava mais interessante. Era um ato de interpretação de que os vampiros gostavam. Brigantia costumava pensar sobre isso e concluiu que era a mera falta de realidade da vida dos imortais que fazia com que eles gostassem tanto do drama. De qualquer modo, a sociedade humana sendo como era, havia menos mulheres no escuro à noite do que homens. Até as prostitutas se abrigavam em bordéis, apesar de ainda serem alvos fáceis, já que ficavam perto de janelas e costumavam convidar os homens para entrar. Às vezes, aqueles que procuravam mulheres esperavam até quase o amanhecer, quando as moças saíam para cuidar de vacas e do gado. Outras vezes, era preciso admitir o fracasso e dar a noite por encerrada. Até os mais novos precisavam se alimentar apenas uma vez a cada três dias. Quanto mais velho o vampiro ficava, mais tempo podia ficar sem alimento. E isso, claro, era melhor para a população de seres humanos e, por sua vez, melhor para os vampiros. Mais seleção. Eles podiam ser mais seletivos. A taberna não era tão barulhenta quanto Brigantia esperava que fosse. Os homens e a maneira com que mudavam sob a influência de bebida alcoólica... era sempre divertido. Geralmente tornava o jogo fácil demais, mas era preciso encontrar a presa em seu hábitat natural. O jovem que foi embora cedo cheirava a luxúria, e estava de fato caminhando em direção ao bordel. Definitivamente muito fácil, mas divertido. Brigantia agradavelmente o atraiu e aumentou suas expectativas, pois era muito mais bonita e misteriosa que as prostitutas do bordel. Ela nem havia pedido dinheiro antes de levá-lo a um canto escuro e passar a mão fria por seu braço e ao redor do pescoço. Seus olhos estavam fechados e ele se entregava ao prazer quando Aelric surpreendeu Brigantia por trás e quebrou o encanto. — Sobrou um pouco? Estou morrendo de fome. Brigantia virou-se. Sua presa gritou de dor. Sentindo o sangue escorrer pelo pescoço, ele começou a gritar. — Vampiro! Vampiro! Dois vampiros! Socorro! Ele correu, não muito, mas foi o suficiente para ser ouvido.
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Brigantia o alcançou rapidamente e mordeu seu pescoço. Mas era tarde demais, pois ela conseguia escutar a movimentação da cidade e sentir o cheiro de medo... e de caça. Sua primeira reação era abandonar Aelric, sabendo que conseguia correr mais rápido sem ele, mas, assustado, ele correria diretamente para casa, o que seria um grande desastre. Brigantia então o segurou pelo pulso e o arrastou atrás dela, correndo em zigue-zague na esperança de que o odor desaparecesse. Era difícil correr naquela situação. Ela não sabia se eles viriam do centro ou dos bairros. Talvez estivessem entre os guardas nos muros? De quanta luz eles precisariam? Ela queria desesperadamente parar e pensar, mas Aelric impossibilitava o raciocínio. — Podemos ir agora, Brigantia, nós os despistamos. Tenho certeza. — Eu não tenho. — Bem, então vamos enfrentá-los. Vamos, coloque aquele fogo para fora... isso pode fazer com que eles morram de medo. — Eu não seria capaz nem se quisesse. Será que você não entende? — Ela parou e olhou para ele. — Mal comecei. Não estou pronta para morrer. — Você não pode morrer nunca. Brigantia se perguntou se aquela era a coisa mais gentil ou mais estúpida que Aelric já havia dito. Não havia tempo para pensar. Estavam no meio da floresta, — quilômetros ao norte das cavernas. Ela estava pensando em ir até o rio para despistá-los e voltar até o sul nadando. Seria difícil, mas não havia plano melhor. Gostaria de saber quantos homens os perseguiam, e se eles tinham habilidade. Aelric era mais do que inútil. Ele falava alto demais, queria brigar, achava tudo engraçado e acreditava que Otonia não sabia de nada. Humanos capazes de matar vampiros? Absurdo, maluquice. Uma lenda do folclore. — Talvez nós sejamos as lendas do folclore. Isso fez com que ele se calasse, já que não entendeu. Tudo acontece rápido, mais rápido do que ela poderia ter imaginado. Os gritos de repente ficaram próximos, e apesar de Brigantia estar assustada, não entendia por que estava sem reação. Segundos depois, ela percebeu que Aelric havia subido um monte, e a luz e os caçadores o localizaram. Foi azar. Simplesmente azar. Ela tinha ido parar em uma vala rasa, coberta com as folhas caídas das árvores, e não estava à vista. Foi sorte. Simplesmente sorte. Ela pressionou o corpo contra o chão, desejando correr, porém prostrada de medo. E ela viu... viu tudo muito bem. Aelric lutou, e não foi uma lata da qual se envergonhar, mas sua sorte estava contra ele. Apesar de ele ter quebrado o braço de um dos homens, ficou
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livre para o outro. E ele estava ali onde tudo havia começado. Sempre existe uma chance. Mesmo que o fim seja o mesmo, sempre existe uma opção para chegar lá. Quando ela era um ser humano, poderia ter ficado com seu povo, lutado contra os vikings e morrer por um ferimento a faca ou de vergonha pela escravidão sexual. Poderia ter deixado Aelric para trás naquele beco quando o homem gritou, mas ele era o criador dela, e Brigantia não conseguiria fazer isso. Naquele momento, pelo mesmo motivo, ela tinha de dar um passo à frente. Era a sua chance. Um momento cegante de pura oportunidade. Como se fosse um sonho, Brigantia viu-se voando atrás do homem que segurava um pedaço de madeira pontuda. Ela segurou os braços dele, arrancou os dois na altura do cotovelo, soltou ambos e agarrou a cabeça do caçador. Virou-se rapidamente e com a força certa. O outro homem só precisou de um chute para ter as costelas quebradas, e Aelric poderia se alimentar dele. Muito fácil na verdade. Pronto. Mas Brigantia não se moveu. Aelric se virou e viu a morte se aproximando, e viu que ela não estava ali. Viu que ela estava deixando tudo aquilo acontecer. A traição e a dor que ela viu nos olhos dele a atingiram assim como a estaca o atingiu, de modo que ela sentiu a ponta entrar no coração, sentiu o corpo se contrair. Então, ocorreu o que Otonia não havia descrito: o demorado segundo antes de o corpo cair e transformar-se em pó. O corpo estava ali e, de repente, não estava mais. Aelric existira, e agora não era nada. Pele, carne, osso... apenas ar e pó. — Muito bem. — O caçador com o braço quebrado parabenizou seu parceiro. — Vamos encontrar o outro. Deve estar por perto. — Não, não, você está ferido. Não podemos correr o risco. Venha, apoie-se em mim, ali está o homem, vou levar você de volta. Ela esperou muito tempo, até que estivessem a quase dois quilômetros de distância, e mesmo assim não conseguia se mexer. Quando seus dedos deram sinal de vida, ela estava em choque, sem acreditar que ainda conseguia reagir. Ela engatinhou para o ponto onde tudo havia acontecido. Arrastando-se de joelhos, viu um leve contorno de corpo, ou talvez pensou ter visto. Pegou um pouco de terra dali e a levou ao rosto. Não havia cheiro. Nem gosto. Nada que a relacionasse com qualquer coisa que não fosse terra. Aelric. Exagerado, tolo, ansioso. Ele a criara, mas também quase a destruíra. Sua falta de cuidado o traiu. Mas aqueles momentos, aquele instante antes de os caçadores chegarem, a parte que ela não viu... poderia ela tê-lo puxado para aquele esconderijo? O instinto que a escolhera poderia ter voltado mais uma vez para salvá-la? Estaria ela presa a ele por mais uma vida? O que teria acontecido a seu lado humano se ela tivesse fugido sem qualquer vampiro perseguindo-a? Com certeza já estaria morta muito tempo
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antes. Poderia ter vivido algumas aventuras, mas nunca teria conhecido alguém como Otonia ou Mors. Nunca teria aprendido a ler. Seu mundo havia sido aberto, e Aelric tinha sido o facilitador. E houvera aqueles outros segundos, que ela poderia ter usado para mantê-lo inteiro. Os segundos que ela usara para fazer uma escolha mesmo sem ter conseguido formar um pensamento. O que acontecera com eles? Com muito cuidado, ela cavou um buraco raso e jogou as cinzas dentro. Fez um montinho de terra e o envolveu com pedras. Usando um graveto, escreveu as palavras “Aelric existiu”. Descendo pelo rio, com apenas o rosto para fora da água, ela tentou imaginar por quanto tempo as palavras durariam. Quantas horas permaneceriam ali até um vento varrê-las, fazendo os grãos de terra rolar para longe, para o nada, como Aelric? Havia algum registro, em algum lugar, das palavras escritas? Alguma coisa no universo lembrava? Ou tudo simplesmente era apagado para sempre, sumia? Mas eu as escrevi. Sim. Elas estavam ali. Foi Celand que a viu quando Brigantia saiu do rio, molhada e sem expressão. Ela se moveu, pronta para falar, mas mudou de ideia. Ele a seguiu até a caverna de Aelric e observou Brigantia entrar. Cleland espiou e viu que ela estava sozinha, sentada na cama, olhando para a frente. Todas aquelas belas palavras “Não é sua culpa”, “Você não deve se culpar”, “Ninguém vive para sempre, até onde sabemos”. Elas caíram ao redor dela como uma chuva que nunca toca a terra. Ninguém mais poderia ver aqueles instantes. Os pequenos períodos de tempo. O baú do tesouro que ela não conseguia ver e aquele que ela via com clareza. Os segundos não aproveitados. O arrepio em seu coração e no fundo dos seus olhos não era a culpa de não sentir falta de Aelric, mas a possibilidade que existia dentro daqueles segundos perdidos. Aqueles segundos permaneceram com ela por décadas. A Inglaterra mudou. William chegou e os vampiros viram catedrais serem construídas e os restos do pré-cristianismo morrerem. Cada vez mais descobriram que as cruzes que algumas pessoas carregavam ou usavam podiam ser dolorosas. Otonia não sabia por que isso era um problema para os vampiros pré-cristãos, vendo que os judeus não tinham problemas com cruzes e contavam as histórias mais divertidas a respeito das reações que viam na presa que pensava que a cruz a salvaria. Então, os vampiros aprenderam novas técnicas de sedução. As tendências eram interessantes, assim como a arquitetura. Os normandos tinham gosto bom. Havia pouca literatura ou entretenimento de qualidade – aqueles vampiros da Grécia e de Roma ainda
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sentiam saudade daqueles tempos e esperavam que eles voltassem logo – mas York surgiu e havia muita vida para aproveitar. Mas Brigantia atravessou esse tempo em uma névoa, ainda sofrendo por uma oportunidade perdida, pensando se havia arrasado com um vampiro a quem ela nunca amara de propósito, e no que aquilo lhe causava. E ainda, no último quarto de seu segundo século, ainda perturbada e enterrada naqueles segundos infernais, Brigantia percebeu que estava se aproximando de uma época na qual alguma coisa tinha de acontecer. Ou ela se libertaria... ou morreria. Como se pudesse ler seus pensamentos, Otonia sugeriu que Brigantia já estava pronta para sair e encontrar um companheiro. Ela estava caçando, percebeu, à procura de algo sobre o que não pensava havia séculos. Não iria a seu encontro, apesar de ela desejar que isso ocorresse. Ela queria, desejava, precisava e sabia mesmo sem sugestões do que deveria acontecer, a fim de que ela não perdesse algo em si para sempre, ou perdesse a coragem de encontrar. Otonia podia dizer se tratar de um companheiro, mas Brigantia sabia que era mais. Era sua maior esperança e, apesar de não saber por quê, seu maior medo. Mas ela tocou a nova flor que se abria em seu jardim e percebeu a promessa, em algum lugar na terra, de algo, de alguém que pudesse tirá-la de dentro do ser que ela nem sempre conheceu ou de quem nem sempre gostou, para entrar no ser que finalmente se tornaria.
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Capítulo 10 Trem de Berlim a Basiléia. Agosto de 1940.
O Médico, seus jovens caçadores, oficiais, até mesmo a babá simpática e o bajulador Kurt, todos aqueles seres humanos irritantes que exigiam a atenção de Brigit por um motivo ou outro eram terrivelmente cansativos. Brigit sentiu saudade da época feliz em que não havia interação com os seres humanos em sua vida, exceto quando ela queria. Existiam centenas de seres humanos a quem ela admirava ao longo dos séculos, geralmente artistas: escritores, poetas, dramaturgos, atores, músicos, pintores e assim por diante. Pensadores. Aqueles que construíam belos prédios, ou que abriam as mentes para a ciência e para as possibilidades com os números, ou que defendiam a igualdade entre os seres humanos. Aqueles que se importavam. Eram homens e mulheres a quem ela poderia admirar e até amar, de modo verdadeiro. Mas Brigit não era forçada a interagir com eles. Não era forçada a fingir ser um deles, a fazer uma dança complexa e esperar que ninguém conhecesse a verdade e, assim, a tirasse do ritmo. Todos ficavam em seus devidos lugares e o mundo era equilibrado. Agora que sua barriga estava cheia, seu corpo todo pedia para dormir. O demônio fazia tudo, mas não a deixava dormir. Brigit tinha cochilado por pouquíssimo tempo desde que embarcara, sentindo o perigo de dormir durante o dia, porém preocupada com o fato de que podia ser mais perigoso à noite. Como poderia dormir, com tantas obrigações. A carga preciosa estava sob seus cuidados, todos aqueles homens horríveis por perto, esperando, preparando, mas ela não sabia exatamente para quê. O pior pesadelo, e era isso que eles queriam, e ela não queria ser pega dormindo quando as coisas acontecessem. Já era ruim ter de deixar a carga sem proteção para comer e circular pelo trem, participando do jogo. Dormir parecia um luxo. Mas a necessidade de descansar estava tomando conta de seu corpo, e ela teria de entregar-se a ela. Decidida a não correr riscos, ela deitou-se à frente da porta do compartimento. Não era confortável, mas parecia uma boa maneira de se precaver. Não é o ideal, certamente, mas pelo menos vou me sentir melhor. 120
Brigit fechou os olhos, permitindo que o seu corpo fosse levado pelo ritmo calmante do barulho constante do trem. Ela adorava trens, apesar de ter sofrido com o avanço deles, vendo que as ferrovias destruíam a natureza que ela tanto amava. Mas viajar sempre tinha sido algo que a deixava animada, e os trens facilitavam as coisas. No entanto havia algo que sempre a fazia pensara a respeito de viajar. Parecia errado que uma pessoa estivesse em um lugar, amasse aquele local, levasse o que pudesse dele, mas então, ao partir, tudo continuava sem você, exatamente como era, sem saber nem ligar para o fato de que a pessoa não estava mais ali. Brigit sentia a mesma coisa em relação ao teatro. Havia noites em que ela mal conseguia suportar o fato de uma apresentação que ela adorava estivesse acontecendo com a mesma energia e emoção, talvez até mais, de quando ela e Eamon estavam na plateia. Eles tinham acabado de assistir à peça A importância de ser sério pela quinta vez, e Eamon tivera de secar as lágrimas de êxtase de seu rosto. — Como você suporta a ideia de que haverá outra apresentação amanhã e não estaremos lá? — Nós tivemos a chance. Não podemos roubá-la dos outros, isso seria cruel. — Não, Eamon, estou falando sério. Você não me entende? — Entendo, mas qual é a resposta que você quer então? Que eu pare o tempo? Que você seja a única a viver tudo sempre? — É claro que não. Só não gosto de fazer parte de uma coisa e ver que ela não sente minha falta quando vou embora. — Somos vampiros. Ninguém sente nossa falta quando vamos embora. — Não. Mas pelo menos deixamos nossa marca em um lugar. — Deixamos espaços vazios onde almas já se misturavam. — Causamos impacto. — Não exatamente artistas, mas somos memoráveis mesmo assim. Ela riu e bateu com delicadeza no peito dele. A batida perto de sua cabeça a acordou repentinamente, e um rosnado baixo emitido de algum ponto sobre seu abdome foi ouvido apenas por ela, mas a deixou preocupada. Não importava que ela estava exausta e aterrorizada. Tinha de ser forte. Mais do que forte. — Desculpe, eu não queria acordá-la. Brigit olhou para cima surpresa. A carga volátil da qual ela cuidava tanto havia escolhido um momento inconveniente para sair do compartimento de bagagem. Ou melhor, a menina tinha feito isso. O menino estava deitado de barriga pra baixo, mexendo as pernas e olhando pela janela. Brigit tossiu e esfregou os olhos, determinada a reassumir o papel de guardiã e protetora. — Por quanto tempo dormi?
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— Cerca de uma hora. — Uma hora. Que maravilha. — Eu peço desculpas. Você não pode voltar a dormir? Vai demorar muito até chegarmos. — Não. Preciso ficar acordada. Vou dormir quando morrer. — Isso é uma piada? — Sim, e não é ruim, levando em conta as circunstâncias. — O que é piada? — Lukas quis saber. — Nada. — a irmã garantiu a ele. — Nossa guardiã está falando como uma adulta. Foi a ironia usada por Alma na palavra “guardiã” que irritou Brigit. Ela sentia pena das crianças, mas já que estavam no mesmo barco, ela decidiu que algo parecido com uma trégua podia ser apropriado. — Estou entediado. — Lukas reclamou, olhando para o queixo de Brigit. — Todos estamos. — Alma concordou. — Podemos brincar com seu ursinho? Lukas olhou esperançoso em direção à porta. Ele queria correr e brincar com as outras crianças, mas Brigit não podia permitir. Já era ruim o fato de ela ter de cuidar daquelas crianças humanas, mas não tinha a menor intenção de perdê-las. Quando elas não estavam à sua vista, ela insistia para que permanecessem dentro do compartimento com a porta trancada, e que Alma tomasse conta das coisas com rigidez. A vantagem de ser uma vampira era que suas ordens não eram questionadas. As crianças podiam não gostar nem confiar nela, mas sabiam que estavam cercadas por inimigos, por isso obedeciam. — Que notícia você recebeu? Brigit não havia contado às crianças sobre o conteúdo do telegrama. Não era da conta delas, e quanto menos soubessem, mais seguros ficariam. — Eu já disse que não havia nada de importante. Apenas notícias de casa. — Não consigo entender por que Papai não pode enviar telegramas em códigos para que saibamos que ele está bem. — Já falamos sobre isso. — E não é perigoso que você receba telegramas. — Sim. Por isso foi apenas um. — Então o que eram os outros papéis que você destruiu? — Apenas papéis, não importa. — Importa. Você parece melhor. Você comeu. — Aquela foi apenas uma afirmação. Brigit não respondeu. Ela daria qualquer coisa para ainda estar dormindo.
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— Quanto tempo vai demorar até chegarmos em Bilbau depois da baldeação? — Não muito. — Pensei que seria mais rápido. — Eu também. Alma ficou em silencio, e Brigit ficou feliz. Ela não tolerava aquelas conversas, as palavras que tornavam a situação muito mais real do que era. Os últimos dias pareciam mais um terrível pesadelo do que qualquer outra coisa. Duas crianças sendo cuidadas por um vampiro era uma piada, um absurdo, difícil de acreditar. E todos os homens observando-os, todas as armadilhas disfarçadas, era tudo ridículo demais. Mas era real. Eu não tive escolha. Tive de fazer. O que não importava. O que importava agora era fazer com que as crianças existissem em segurança. Não havia nada a ser feito além de esperar que ela parecesse uma babá cuidando de crianças a caminho da Irlanda. Não interessava a ninguém, na verdade, por que um pai alemão escolheria educar seus filhos em Dublin, mas ela preferia não ter de responder às perguntas. Não que a Irlanda seria o destino final. Brigit temia o tempo que passariam ali, naquela terra de conhecidas caçadas a vampiros, tortura e destruição. Ela amaldiçoou o momento em que sua querida Londres havia sido colocada em perigo, tanto quanto amaldiçoava as próprias bombas. A fuga deles seria muito mais fácil se eles tivessem podido viajar diretamente para Calais e então cruzado o Canal. O caminho demorado e a incerteza do horário do trem de Bilbao a Cork aumentavam a apreensão. Sem dúvida, a Espanha era muito bonita, mas Brigit não tinha interesse em passar férias no país. Uma batida na porta fez todos eles pular. Brigit ficou em pé e ajeitou o cabelo, enquanto Alma e Lukas escondiam os rostos atrás de livros. — Quem é? — Brigit perguntou delicadamente. — Kurt, Fräulein. Ela fez uma careta antes de abrir apenas uma brecha para que ele não olhasse dentro do compartimento. Ele parecia animado, e disse com ansiedade. — Desço na próxima parada. Vou para Paris. — Que beleza. E aposto que será uma grande aventura. — Você não pode ir comigo? Ela se controlou para não rir. Que tolos esses mortais são. — Isso é muito gentil de sua parte, mas creio ser impossível. Tenho um roteiro que preciso cumprir. — Mas...
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Ele se inclinou e viu o olho interessado e atento de Alma. Ele olhou para Brigit assustado. — Mas o que...? — Crianças. Esta não está sendo uma viagem prazerosa para mim. Estou sendo paga para levá-los para a escola deles em Dublin. A mãe deles era irlandesa, sabe? Ela fez uma voz séria e disse aquilo em um tom respeitoso, dando a entender exatamente o que pretendia sem ter de dizer mais nada. Ela não queria que ele olhasse para as crianças de perto. — Mas... eles não estavam com você ontem à noite? — Estavam cansados, por isso eu os coloquei para dormir cedo. Agora, se me dá licença... — Espere! Por favor, pode vir a meu compartimento rapidamente? A intensidade de seu olhar era engraçada. Ela pensou. Matá-lo levantaria perguntas, por causa de Eberhard, mas ela estava louca para acabar com ele e havia muito movimento na parada seguinte. Ela lançou a ele um sorriso simpático. Ele sorriu de modo agradecido e nem sequer pensou em acenar para as crianças antes de sair correndo para seu compartimento para se preparar, apesar de não ter ideia do que faria. Alma estava em pé com os braços cruzados. Ela ainda não tinha doze anos completos, mas tinha muita força e Brigit a respeitava. — Você não acha que já nos deixou sozinhos mais do que o suficiente? — Não é porque quero. — Você já comeu. Não precisa dele também. — Isso é diferente. Você não compreende. — E se eu entender? Era possível que ela entendesse. A menina era muito esperta e altamente intuitiva. Mesmo assim, Brigit não tinha intenção de confiar nela. — Alma, pode fazer o favor de se sentar e... — Eu escutei a conversa deles! — O quê? — Estavam falando sobre uma mulher desaparecida. Uma vaca feia, eles disseram, e não tinham certeza de que ela havia saído do trem. Estavam rindo disso. É claro que estavam. — Certo, agora escute. Preciso que você me conte exatamente o que eles disseram. Alma olhou rapidamente para Lukas, mas ele estava muito concentrado lendo para seu ursinho para prestar atenção em outras coisas.
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— Um dos oficiais, acho que foi um deles, estava do lado de fora e disse que uma mulher estava desaparecida. Eles começaram a pensar em quem poderia saber de alguma coisa. — Sei. Parecia um pouco demais admitir para a menina que ela havia comido a mulher em questão, por mais que isso estivesse subentendido. Apesar de Alma achar que sabia o que Brigit fazia, e por mais esperta que fosse, ela ainda era uma criança e estava sob a tutela de Brigit. Mas aquela proteção era o que impedia Brigit. Ela devia manter a fachada, apesar de os inimigos terem quase certeza e estarem apenas tentando obter provas antes de lançar a armadilha. As nuvens, as dúvidas que ainda existiam, tinham de continuar existindo, a possibilidade de ela ser humana e, sendo um ser humano, rica e irlandesa, e não alguém a quem eles podiam tentar destruir sem esperar consequências. O assassinato de uma moça irlandesa rica e indiscutivelmente bem relacionada poderia ser o tipo de coisa que começaria a tirar os irlandeses de sua neutralidade em direção a uma parceria relutante com a Grã-Bretanha. Ou, no mínimo, deixá-los mais frios em relação à Alemanha. Também era um risco muito grande a se correr. Mas, se por outro lado ela fosse uma vampira que eles pensavam, ainda que não soubessem o que era ser um milenar, eles teriam de agir com cuidado. Tomavam conhecimento de notícias sobre enormes massacres cometidos por um único vampiro, e apesar de ela parecer uma moça delicada, queriam se proteger. As ordens eram para que agisse sorrateiramente. As pessoas não deveriam saber que vampiros haviam entrado no continente. Além disso, apesar de estarem preparados para morrer pelo sonho, nenhum estava disposto a ter uma morte tão vergonhosa. Eles queriam humilhá-la, torturá-la e sair ilesos. Ela era capaz de tolerar com facilidade, mas sabia que eles tinham suspeitas sobre as crianças também, e isso era inaceitável. Seria tolice dela esperar que eles não soubessem de quem eram aquelas crianças, ou mesmo que elas eram judias. Não, a menininha tinha razão. Brigit não podia deixá-los sozinhos de novo, não por causa de Kurt. O que Mors havia lhe dito meses antes no trem para Berlim ainda era verdade: ela não podia matar todos eles. Detestava Kurt e tudo que ele representava, mas matá-lo criaria uma trilha de sangue com a qual ela não saberia lidar e, com isso, não ganharia nada. O verme teria de continuar vivo, e alimentar os vermes outro dia, de outra maneira. No fundo, o demônio a cutucava. Ele estava cansado de discriminação e cautela. Queria ação. Ela fechou os olhos, disposta a calá-lo. A melhor parte da coragem é a discrição, meu amigo.
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Ambos sabiam que haveria tempo suficiente para a ação. Transportar duas crianças marcadas para morrer na Alemanha para a segurança da Inglaterra certamente era ação, mesmo que com ela o demônio não se fortalecesse. Ele teria de esperar. E ela também.
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Capítulo 11 Berlim. Outubro de 1939.
Eles não paravam de analisar os papéis, sem falar, sem trocar olhares. Todos tinham mantido seus disfarces e suas tarefas, mas o peso do fracasso não os abandonava. A Polônia estava ocupada e a guerra tinha começado. Era verdade que pouca coisa parecia estar ocorrendo naquele momento, mas não fazia diferença. Havia mais coisa prestes a acontecer, e eles não precisavam da sensibilidade de Eamon para perceber. Eles se consolaram na humilhação de Chamberlain, e gostavam dos discursos que Churchill estava realizando, mas se desesperavam ao ver que as coisas não andavam. Alguma coisa tinha de acontecer, e todos os dias passados na falta de ação pareciam mais um passo rumo à aniquilação. — Deveríamos ir embora. Para o inferno o que Otonia pensa, e todos esses idiotas e este país cretino. Devemos ir embora enquanto ainda podemos. Todos olharam Swefred. Brigit apertou os olhos. — Você esta se tornando um grande defensor da passividade, não é? O soco forte de Meaghan na mandíbula de Brigit foi inesperado. Meaghan tinha apenas vinte anos a mais que Brigit, e seu nervosismo e falta de emoção davam a impressão a todos de que, milenar ou não, ela não tinha muita atitude ou força. Então, quando ela agrediu Brigit e a fez cair no chão, com muita dor, demorou um pouco para que os presentes entendessem o que estava acontecendo. Apenas quando Meaghan, com os olhos verdes com traços rosa e as presas totalmente expostas, segurou Brigit pelas orelhas e a virou para cuspir em seu rosto foi que Cleland interveio e a empurrou para trás. Ele jogou Meaghan contra a parede e acertou o antebraço na garganta dela. — Sua cadela inútil, irritante e resmungona! Deveríamos enviar você em pedacinhos de volta a Inglaterra! Swefred, com o rosto vermelho de raiva, segurou a garra esticada de Cleland e quase a arrancou quando um barulho alto como uma explosão arremessou todos eles para um canto. Brigit, ainda surpresa, apoiou-se no cotovelo para olhar Mors. Era sobre aquilo que as lendas falavam, com medo e terror. Era aquilo que significava ser um vampiro com mais de duzentos anos. 127
Um vampiro forte, repleto de fúria. Seu corpo de repente pareceu colossal, como se tivesse crescido três metros de altura, seu crânio inchou e ameaçava rasgar a pele, seus olhos ficaram arregalados, prestes a saltar das órbitas, emitindo calor e morte. Ele rosnou de novo, e Meaghan protegeu a cabeça com os braços. Mors agarrou Meaghan e Swefred com uma garra e Cleland com a outra, e os colocou em pé. — Lembrem-se de quem vocês são. Somos milenares do tribunal britânico. Quem somos? Ele chacoalhou Swefred, que disse: — Os milenares do tribunal britânico. — E o que isso quer dizer? — Que somos grandes, nobres e admirados pelo mundo dos vampiros. Mors se virou para Meaghan. — Você discorda? — N-não. — Você sabe o que significa comportar-se como um milenar do tribunal? — Sei. — Tem ideia do que eu farei com vocês se um dia voltarem a não se comportar como devem? Meaghan olhou para ele, com o rosto contorcido de medo. Mors os lançou longe e se virou para Brigit, reassumindo suas feições humanas. Ele passou o dedo em cima do ferimento grande e inchado no rosto. — Isso deve estar curado até amanhã à noite, e você pode ir lidar com Gerhard um pouco mais. Vamos conhecer um pouco mais os planos de guerra deles. Swefred, apesar de ainda estar trêmulo e assustado, voltou a ficar em pé. — Mas é isso, exatamente isso. O que podemos fazer? Já deveríamos tê-los destruído, aberto o caminho para um governo mais adequado. Não os impedimos de fazer nada. — E se partirmos agora, certamente nunca alcançaremos isso. Eles são homens de ação, e nós também seremos! Já chega com esse excesso de autopiedade e derrotismo! Sabemos o que e quem somos. Somos criaturas de poder e não terminamos ainda, iremos até o fim. O que somos, covardes? É o que temos de fazer e temos motivo, vontade, força e recursos para cumprir essa missão. Se não nos importarmos com vinte mil homens, partiremos agora e veremos a morte de vinte milhões de homens, bons alimentos a maioria deles, e progenitores de mais alimentos, e se nossos pensamentos não podem ser sangrentos quando pensamos nos nazistas, os planos deles acabarão se concretizando.
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Swefred assentiu, com os olhos fixos no joelho. Meaghan apertou os lábios. Ela olhou para Brigit rapidamente, e então ficou em pé e caminhou até sua câmara. Swefred foi atrás dela. Brigit manteve fixo o olhar em algum ponto entre Mors e Cleland. — Obrigada. Vocês dois não precisavam interferir. — Eu precisava. — Mors responde com a voz séria. — Eu nunca gostei dela. — Cleland comentou. — Mas eu não deveria ter, quero dizer... ah, inferno. Não vão contar ao Padraic, certo? Eles murmuravam que obviamente não, pois o que tinha passado estava terminado e não precisava voltar a ser mencionado. Cleland surpreendeu Brigit dando-lhe um beijo na testa, em seguida virou-se rapidamente e foi para o quarto. Brigit tinha certeza de que vira lágrimas nos olhos dele, mas achou melhor deixá-lo sozinho. Mors pressionou um pano frio em seu rosto e se ajoelhou, de modo que olhasse dentro dos olhos dela. O olhar a deixou desconcertada, e ela percebeu que fazia muitos séculos, certamente antes de Eamon, desde que ele olhara para ela com tamanha intensidade. Uma pergunta lhe ocorreu e ela tentou esquecê-la, e se Mors tinha visto seu desconforto, não deu qualquer indício. Ele sorriu. — Quem a assustou mais: ela ou eu? Brigit sorriu, mesmo com a dor. — Acho que empatou. Ele enrolou o dedo em um de seus cachos e puxou de modo brincalhão. — Vamos, vá dormir. Você precisa descansar. Ela não argumentou, sentindo-se totalmente esgotada. Ele a abraçou para guiá-la ao quarto. — Você não pensava que eu sabia interpretar tão bem, não é? — Que bobagem, você veio conosco para o papel secundário, e não pense que não me lembro. — Nenhum de nós costuma esquecer, você sabe disso. Na porta, ele segurou sua mão e olhou para ela de novo. Pela primeira vez desde que o conhecera, ela teve a impressão de que ele queria dizer alguma coisa mas não conseguia. A pergunta surgiu em sua cabeça de novo, e Brigit se afastou. Desesperada para interromper aquele clima incomum e estranho, ela sorriu o velho sorriso brincalhão e tocou o ombro dele. — Você perdeu uma oportunidade, sabe? Podia ser orador com facilidade. Ele sorriu e as coisas voltavam ao normal. — Ah, talvez, mas vou deixar essa habilidade para depois. Pode ser que precisemos dela outro dia.
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Quando Brigit deitou-se, querendo descansar, torceu para que eles não precisassem chegar tão longe. Em seu coração, pensando em Eamon, ele tinha mais desejo de ir embora do que vontade de ficar, mas, pensando em Eamon, o desejo de lutar ainda era forte. Permitindo que seus pensamentos se tornassem agradavelmente sangrentos, ela fechou os olhos, sentindo o demônio dentro dela ronronar. Brigit escutou até escutar Swefred e Meaghan partirem na noite seguinte antes de sair. Ela pegou o caminho mais demarcado para chegar ao escritório de Gerhard. Ela sabia, mesmo sem perguntar a Cleland, que seu rosto estava pálido e bonito como sempre e ela se sentia disposta a enfrentar a tarefa de escutar Gerhard falar e falar sobre todas as grandes coisas boas que estavam ocorrendo no mundo agora que o Führer havia dado a eles uma amostra do verdadeiro poder da Alemanha. ****
Mas havia algo errado. Talvez fosse o resto da tensão causada pela briga, ou apenas impaciência como tédio do processo e o que parecia algo que interminável, mas ela não conseguiu envolver Gerhard. Tentou imaginar se ele poderia estar ficando imune ao seu poder de atração. — Ah, Brigitte, Brigitte, imagine o dia em que estivermos tomando banho de sol o ano todo! — Eu não acho que os fazendeiros gostariam muito disso. Ele riu. — Vamos lá, tolinha, sei que você tem a poesia dentro de você apesar da falta de estudo. Pense mais, liebchen, pense mais! — Descreva mais, então. Deixe-me ver tudo por meio de seus olhos. — Bem, você sabe o que o Führer disse no Reichstag, que toda a Europa será limpa. Teremos espaço, muito espaço. Não haverá nada indesejado. Os judeus, os ciganos, todos aqueles que são máculas óbvias. Eu fiquei sabendo, e não deveria ter sabido na verdade, mas eles confiam em mim, que o extermínio dos doentes mentais e deficientes já começou. As pessoas podem sentir pena, mas eles são um desperdício de nossos recursos, e não podemos arcar com isso. Não queremos nada além de saúde e vigor em nosso novo e grande mundo. Uma criança que não tenha capacidade, bem, ela não serve como ser humano, não é? Como no caso de um judeu. Então teremos um mundo limpo e saudável no qual viver. Eu poderia até chorar de alegria. Brigit estava surpresa, quase sem entender o lixo de tudo que ele estava dizendo, e seu tom rude. Era verdade que ela nunca havia comido ninguém com deficiência mental – e ela acreditava que nesse grupo não eram incluídos
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os tolos –, mas o motivo para isso é que eles não saíam nas ruas à noite, não porque ela tivesse qualquer preconceito contra eles. Havia instituições e talvez a humanidade já tivesse se desenvolvido o suficiente para tratar seus semelhantes menos afortunados com gentileza, não? Mas a gentileza não parecia muito importante naqueles tempos estranhos. — Para onde todos eles irão? — Quem? — Todos. Vocês podem mesmo limpar a Europa de todos – judeus, ciganos, comunistas, homossexuais, todos os considerados inimigos do Estado? Importa realmente se existem homossexuais na Suécia, por exemplo? Em que isso afetaria a Alemanha? — Você é muito engraçadinha. Estamos falando sobre grandes princípios, minha querida. Mas espere: estou sendo injusto; não posso esperar que você compreenda. Venha aqui. — ele a colocou em seu colo e acariciou seu pescoço. — Mas deve haver um plano, não é? As pessoas não desaparecem simplesmente. — Oh, planos, planos, planos. Eu tenho um plano agora. Quer saber qual é? Ela forçou um sorriso e colocou a mão no peito dele, mantendo-o a distância. — A Alemanha não está um pouco preocupada com a Inglaterra? Pergunto porque ela ainda é considerada como estando em guerra, não é? Ele balançou a mão, rejeitando aquela ideia. — A Inglaterra! Eles tiveram todas as chances, sabe? O Führer vê com bons olhos os ingleses puros. Eles são arianos bonitos, como você. Mas querem seguir o próprio caminho, tolos teimosos. Bem, ainda não me disseram tudo, mas eu soube que há um plano para derrubá-los, de um jeito ou de outro. — Isso é realmente possível? — Todas as coisas são possíveis. Agora, chega dessa conversa cansativa. Ela está fazendo você franzir a testa e só quero ver sorrisos. Ela sorriu porque tinha de sorrir, mas estava ardendo de raiva por dentro. Não era apenas o fato de o demônio estar com fome; ela mesma queria mais. Ele não estava sucumbindo aos sussurros dela, e Brigit sabia que isso se devia ao fato de ela estar se sentindo contrariada e frustrada, e não conseguia se concentrar. Estou tão perto. Ele sabe mais, ele pode me dar algo para usar. Por que não consigo chegar lá? Por quê?
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Mas o canal estava fechado aquela noite. Não restava mais nada a fazer além de dizer a ele que a camareira estava doente e que ela devia voltar cedo. Com um beijo que quase a fez sufocar, Brigit se foi. ****
Repleta de frustração, ela caminhou com fome pelas ruas. Havia alguma coisa no silêncio daquela noite que aumentava sua raiva, sua vontade de devastar a nação. Cinco milenares irados certamente eram capazes de destruir e causar mais medo e revolta do que a Noite dos Cristais. Mas isso não podia acontecer. A possibilidade de haver caçadores no país que soubessem destruir os milenares não existia. Independentemente do que eram capazes, não podiam acabar com tudo. Era provável que os alemães se tornassem mais dedicados a Hitler do que nunca, acreditado não apenas que a infestação não era sua culpa, mas também que ele a interromperia, certamente como havia começado a expurgar as pestes que eram todos indesejados. Também não havia como criar tamanha carnificina sem matar inocentes, e apesar de não haver dúvidas de que a maioria das vitimas que eles haviam aniquilado ao longo dos séculos era formada por inocentes, aquilo seria algo bem diferente. Crianças morreriam, para começar, e seria o tipo de matança que eles tinham ido a Alemanha para evitar. Eles eram predadores, sim, mas não monstros sem critérios. O cheiro do caos surgiu quente e repentinamente no ar e ela se virou na direção dele. Dois oficiais da Gestapo com armas em punho prendiam um pequeno grupo de judeus. Três famílias, aparentemente. Havia uma mistura de medo e desafio no rosto e na expressão das pessoas, mas a resignação podia ser vista na postura. Brigit seguiu a procissão, sua fome aumentando. Não era a morte que queria. Era o trunfo da vida. Tomada por um calor estranho, ela segurou um dos oficiais pelo braço. O homem se virou fazendo uma exclamação, mas ao ver o sorriso simpático, ele se calou. O grupo parou, aproximou-se, curioso. — O que está fazendo sozinha, Fräulein? — O homem perguntou. — E o que quer ao nos parar se estamos em serviço oficial? — Que tipo de oficial exige que mulheres e crianças sejam levadas para longe na mira de armas, na escuridão? — A voz dela era suave, porém insistente. O homem fez cara de raiva. A moça podia ser uma bela e perfeita ariana, mas estava entrando em território proibido. — É melhor ir para casa, Fräulein, e aprenda a não fazer perguntas. O oficial tentou se mexer, mas ela o segurou pelo pulso. — Gosto de perguntas. E gosto ainda mais de respostas.
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Ele olhou nos olhos dela e disse de modo robótico. — Eles têm causado agitação, violado as leis, apesar de todo o nosso trabalho em Nuremberg17 estar à disposição para acordo. Eles têm de servir de exemplo. Ele não percebeu que sua mão estava perdendo a circulação. — As crianças também? — O sangue ruim vem de família. O grupo de judeus ficou surpreso demais para reagir quando os dois oficiais caíram. O sangue escorreu pela sarjeta. Sem qualquer preocupação, a moça entregou as armas a um homem que parecia perceber o que ela podia ser. Ela falou com a voz baixa e um tom autoritário. — Fujam. Peguem um trem e fujam sem olhar para trás. Eles obedeceram, mas enquanto desapareciam, Brigit foi surpreendida pelo novo odor que eles emitiam. Eles eram os mortos-vivos. Ela não havia conseguido nada, talvez um pouco mais de tempo para que eles seguissem para seu fim certo. Enquanto ela arrastava os corpos pra um incinerador próximo, percebeu a si mesma e aos outros quatro vampiros, gigantes, dando os braços uns aos outros para bloquear a incansável marcha dos nazistas... e sendo vencidos. Não com facilidade, talvez, mas inevitavelmente. Mesmo assim, ela nunca tinha sentido tanta vontade de lutar, proteger e vencer no mundo dos seres humanos. Tudo aquilo havia se tornado maios do que ela, do que todos os vampiros, e ela estava tão lívida que por um momento pensou que podia agarrar as fronteiras com as garras e arrancar o país. Brigit virou a esquina e escutou o grito de um homem. Estava ocorrendo uma manifestação dentro do que tinha sido um teatro pequeno e bonito. O demônio espichou as orelhas, farejando o ar. O homem estava gritando, um aspirante a Hitler, responsável por manter os homens na cidade entusiasmados e em alerta. Para lembrar o eles quem eram e o que significava ser a raça líder. Homens. Homens que estavam sendo chamados para continuar agindo. Não havia nada de inocente ali. O demônio cantarolou e percorreu seu corpo, como uma serpente dançando a música de um encantador. Brigit sorriu. Sim, meu querido demônio. Vou satisfazê-lo. Ela entrou no teatro. Havia apenas um guarda entediado na porta, e quando ele começou a ordenar que ela fosse embora, Brigit quebrou o pescoço dele com um gesto rápido. Uma risada cresceu dentro dela, mas ela a manteve sobre controle, rasgando o braço do guarda para prender as maçanetas das portas duplas, fechando-as por dentro.
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Cidade alemã onde ocorreu a reunião anual do partido nazista entre 1933 e 1938. (N.T.)
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Faça um reconhecimento de território, menina, há uma porta do palco também. Em primeiro lugar, ela checou as janelas das salas. Dois homens estavam fumando no banheiro. Eles olharam para ela com leve surpresa, e dessa vez ela riu, depois de bater a cabeça de um dos homens no pescoço do outro, com as expressões deles ainda congeladas. Um dos homens ainda estava vivo, e ela arrancou suas pernas para segurar a janela aberta. Isso o matou. Parando apenas para aproveitar o cheiro do sangue quente e borbulhante, ela sussurrou um velho encanto que impedia que ela fosse percebida e usou de velocidade para passar pelo teatro, contando os participantes, avaliando as possibilidades enquanto ia para os fundos. Dois oficiais da SS estavam ali, esperando que o orador terminasse para que pudessem ir para casa jantar. Eles olharam para ela e um começou a falar, mas ela sorriu e lançou as garras esticadas nos rostos dos dois, arrancando olhos e massa encefálica. — Vocês não me viram. As cabeças deles caíram com facilidade e ela deu uma gargalhada. Aquilo era divertido. Ela pegou as armas deles, sem interesse nelas, mas pensando que variar e surpreender a plateia seria bom. Escutando o orador falar imundícies, gritando sobre a desumanidade dos judeus e como suas peles pareciam com a de ratos, ela se sentiu motivada para rasgar um dos homens e arrancar seu intestino para trancar a porta. Sentiu muito por não tê-lo mantido vivo para que ele aproveitasse aquilo, mas compensaria. Sim, compensaria. Você tem sido muito bom, meu querido demônio. Você merece presentes. Com o trabalho de preparação concluído, ela olhou a plateia com mais atenção. A maioria era jovem, mas muitas pessoas eram de meia-idade e com aparência cansada. Provavelmente sentiam que tinham de estar ali; pareceria que não eram indiferentes ou coisa pior se não mostrassem a cara naquelas reuniões. Brigit ficou enojada ao ver que nenhum deles ousava dizer uma palavra contra tudo que eles sabiam que estava acontecendo, e que continuaria a acontecer. Ela sabia que havia alguns que não aprovavam aquilo completamente, e a disposição que tinham de baixar a cabeça e simplesmente ir de acordo com o vento fazia o demônio ficar ainda mais irado. Dois Nachtspeere bem-treinados estavam na frente, deixando Brigit desconcertada. Aparentemente, eles estavam em todos os lados. Eram sobras dos negócios com o general Von Kassel e do trem, ela supôs. Os nazistas não acreditavam de verdade que os vampiros tinham voltado ao continente, mas não deixavam de se precaver. Além disso, o Reich tinha investido muito esforço no treinamento de seus caçadores. Alguns tinham sido promovidos,
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estavam sendo levados para categorias mais ativas. Outros foram mantidos em reserva até a Grã Bretanha e a Rússia se tornarem território nazista e seus vampiros estarem prontos para serem colhidos. Enquanto isso, queriam sentir que ainda estavam sendo úteis. O que não eram, pelo menos contra ela. As armas deles conseguiam matar apenas os vampiros mais jovens. Eles não eram uma ameaça. Havia mais de duzentos homens ali. Eram muitos, mais do que ela havia atacado em muito tempo. Na verdade, a última vez em que tinha enfrentado tantos homens assim tinha sido com Eamon, lutando pelos Yorkistas na Guerra das Rosas. Apesar de York ter se voltado contra ele como ser humano, ele ainda adorava a cidade, e os dois tinham sido poderosos como soldados fiéis. No entanto, ela não era uma milenar na época. A força que sentia agora era muito forte. O que estava prestes a fazer era algo que não apenas um milenar podia fazer com a graça e completude que ela sabia que alcançaria. Aquilo seria fácil. Fácil demais. Ela foi para o fundo e inclinou-se para um homem na última fileira. Quebrou o pescoço dele e observou seu corpo ir para frente, de modo que seu companheiro o cutucou. — Vamos, você esta parecendo um morto. Ela mordeu a palma da mão para não rir alto. Ainda não. Seu sangue estava tão quente que ela queria gritar extasiada. Fechou os olhos e jogou a cabeça para trás, deixando a emoção percorrer seu corpo, permitindo que o calor lhe desse mais força. Três outros corpos, ainda rápidos, ainda silenciosos, e a morte a preenchia com um contentamento sensual, ansiando por aquele momento, aquele instante doce de satisfação. O grito. Ela havia parado para comer e olhou para cima após sugar um pescoço de alguém ainda vivo, com as presas totalmente esticadas, com as pontas molhadas de sangue. O sangue manchou seus lábios carnudos. Seus olhos estavam vermelhos, grandes, repletos de maldade e prazer. Veias inchadas eram vistas sob sua pele. Até mesmo suas madeixas se esticavam e eriçavam das raízes, tomadas pela energia. Foi o que o homem viu. Aquilo e o sorriso lívido, as garras que estavam aparecendo nos dedos compridos, quebrando sua coluna e arrancando um grito. E naquele momento eram ouvidas ondas e mais ondas de gritos, o belo refrão, alto. Ela se sentia como se estivesse ficando maior e maior naquele barulho glorioso, nos caos rítmico. Foi um riso bonito, estrondoso e orgástico que surgiu de dentro dela enquanto os homens corriam para as portas, com os maiores esmagando os menores em meio ao medo – sim, ali estava o grande ideal de irmandade e de
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união de todos eles –, o espectro da morte mostrando que os desejos mais básicos da humanidade sempre prevaleceriam no fim. Quando viram que as portas não podiam ser abertas, tantos deles correram pra a escadaria de madeira que levava a uma coxia, que ela acabou ruindo, fazendo com que eles aterrissassem uns sobre os outros em um monte de membros e gemidos. Eles voltaram para as paredes, procurando nelas, gritando para que alguém empunhasse uma arma para matar a fera. Brigit riu mais forte, enterrou o dedo na testa do homem mais próximo e foi descendo até os testículos dele, que estouraram em sua calça com grande facilidade. Ele se remexeu, ainda vivo, e ela o pegou e o girou como se fosse um trapo, mandando vértebras para todos os lados. Os gritos se transformaram em gemidos e muitos homens se voltaram para o orador, esperando à toa que ele pudesse conseguir ajuda, acreditando que devia haver alguma coisa. O que quer que os tivesse atacado, não podia ser real. Não podia ser algo que poderoso Reich não conseguisse controlar. O orador ficou impassível, balançando suavemente, como se tentasse definir se havia entrado em algum pesadelo assustador. Brigit gostou daquilo. Os homens que querem infligir pesadelos a outras pessoas deveriam conhecer um de perto. Ele era apenas um soldado, sim, mas ela ainda o estava deixando para o fim. Queria que ele sentisse muito medo. Entrando em ação como um bimotor enferrujado, um dos Nachtspeere parecia ter se lembrado o que tinha que fazer. Ele pegou a pequena balestra no coldre preso à cintura e mirou com mais cuidado que ela esperava, uma vez que ele estava pálido e tremendo. Ele atirou e Brigit pegou a pequena estaca afiada como uma lança e a rolou entre as mãos, espalhando serragem pelo chão. Sem parecer ter se mexido, ela estava em cima dele, com a mão em seu peito. — Em nenhum de seus treinamentos você aprendeu que isto poderia acontecer? Não sabe lutar? Ou estava ausente no dia em que ensinaram táticas secundárias? Ele engoliu em seco. Ela o puxou com uma força que aproximou seu corpo e fez com que sua cabeça saísse voando pelo salão. O outro Nachtspeere não havia se mexido. Ele pegou sua arma com a mão trêmula. Brigit foi para trás dele, passando um braço por seu peito e usando a outra mão para quebrar a estaca no meio. — O que foi? Você não tem coluna? Ela colocou as mãos sobre os ombros dele e os uniu quebrando a espinha. — Pronto, aí está. Não sabe o que dizem sobre usar ou largar?
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E ela arrancou a espinha dele como um chicote. Houve um momento de silêncio entre os homens restantes, aquele momento indescritível do começo da percepção, quando eles perceberam que estavam presos, que estavam tentando se manter vivos de maneira inútil, pois o destino estava selado. — Sim. — Brigit disse a eles. — Vocês já eram. Um homem de meia-idade, com o rosto tenso, deu um passo à frente da multidão assustada e pegou seu crucifixo. Começou a cantar uma canção antiga para afastar vampiros. Brigit sorriu, apreciando sua coragem. Ela admirava seu modo de confiar nas velhas tradições. E, claro, se ele fosse mais poderoso, e ela fosse mais jovem, aquilo teria causado um certo efeito. Diante de todos aqueles homens que detestavam judeus, ela adoraria ser Eamon, para mostrar a eles como o crucifixo a atingia pouco, mas aquele não era o momento de pensar em Eamon. Ela diminuiu a velocidade, e sentiu o brilho de esperança no salão. O suspiro que significava que havia uma chance, que aquele homem discreto, educado, com sua barriga protuberante, calvície e olhos cansados podia ser o salvador. Ela olhou nos olhos dele. Era um bom homem, comum, do tipo que cuidava da vida, mantinha a cabeça abaixada, cuidava da família e só queria levar a vida. Queria gozar de uma vida tranquila até chegar sua hora de morrer. Brigit de repente sentiu uma nova onda de raiva. Onde estava todo o cristianismo generoso quando o problema começava, quando as palavras se tornavam ataques, quando os ataques se tornavam expulsões, e, agora, quando as expulsões estavam se tornando morte? Como ele ousava abraçar sua boa vida e fé e fechar os olhos para o medo e para o sofrimento? Mesmo se eles fossem judeus, ciganos, deficientes, homossexuais, comunistas, qualquer coisa... onde estava escrito na Bíblia que a dor deles deveria ser ignorada? Ela o interrompeu. — Se todos vocês tivessem se levantado, dito não, se tivessem todas essas palavras boas, eu não estaria aqui. Ele arregalou os olhos. Havia apenas um pouco de compreensão de sua parte, mas era suficiente. O cheiro da vergonha era exalado de seu pescoço. Não era suficiente para saciá-la, mas mesmo assim queria a morte. Ela sussurrou um idioma antigo com voz sedutora, um leve hipnotismo e uma piscadela. Ele caiu antes do crucifixo. Isso pareceu motivar o orador, que começou a gritar de novo, gritando sobre o mal entre eles, que era real, que precisava ser destruído e como eles fariam aquilo.
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— Como? — Brigit perguntou. — Como vocês destruirão esse mal? Ela começou a cantar. Pulou nos assentos e dançou por eles, girando como uma bailarina. Foi surpreendente e bizarramente belo. Ela foi tirando homens que se escondiam embaixo dos bancos enquanto girava, arrasando-os, jogando seus corpos longe. — Bem, vamos lá. Venha me destruir. O que vocês têm para me destruir? Onde está todo o seu poder? Eu não sou apenas uma menininha? Ela deu uma pirueta no palco, parando sob o holofote, permitindo que seu rosto e seu corpo voltassem brevemente a imagem humana, para que eles pudessem ver. Um jovem nos bancos ficou boquiaberto, sem conseguir acreditar na beleza dela. Ela sorriu para ele. — Já foi beijado? Ele negou com a cabeça. Ela o puxou para si, mostrou as presas e mordeu seu rosto. Um tiro repentino a assustou. A bala raspou em seu ombro. O homem mirou de novo e ela roubou sua arma. — Se quer usar uma arma, use-a direito. A bala entrou no meio dos olhos dele. Um dos últimos homens que restaram pegou uma arma e mirou no próprio coração, mas ela não aceitaria aquilo. Deu um salto, agarrou o homem e lhe deu um chute no estômago. Restavam três. Ela os envolveu em um abraço, com os olhos fixos nos do orador. Ele não conseguiu ver o que ela viu, apenas percebeu que enquanto ela caminhava em sua direção, sangue fresco pingava de seu casaco. Ele gemeu, subindo no palco. — Você não vai sobreviver, você não vai sobreviver. — ele gritou. — Vamos acabar com sua espécie bestial no fim. Não podem nos deter. Somos poderosos demais. — Eu não teria tanta certeza se fosse você. Com passos calculados, ela se aproximou dele cada vez mais. Ele segurou a cortina desbotada e puída atrás dele, gritou e saltou, subindo cerca de meio metro antes de o tecido se rasgar e ele cair no chão em meio a uma nuvem de poeira e fios. — Detesto ver um teatro em más condições. Que desperdício. E você certamente entende de desperdício, não é? Ela esticou a mão para ele, e delicadamente o levou de volta para baixo do círculo de luz, girando lentamente, como se aquilo fosse uma apresentação de valsa. — Por que você abandonaria este lindo holofote?
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Ela caminhou para trás dele, colocou a mão em suas faces e virou a cabeça dele para que ele olhasse a luz brilhante. — Até mesmo um aluno no primeiro dia de conservatório sabe que se deve apresentar o clímax de frente, no centro do palco e sob o holofote. A plateia merece isso. Ele estava quase desmaiando de medo. — Mal... mal... — ele murmurou. — Não, assim não. Você precisa acertar a fala ou não dizer nada. Quer tentar de novo? Banhado em suor, ele ficou de joelhos. — Então acho que eu devo terminar o ato. Ao dizer aquelas palavras, ela abriu a boca do orador, puxou a língua para fora alguns centímetros, e fechou sua mandíbula para que metade da sua língua caísse no palco. Ele urrou com a boca cheia de sangue. — Você e os seus. Que talento para o drama. Eu prefiro pensar que este showzinho terminou. Sim, acredito que foi o fim. Já não é hora de as luzes apagarem? Ela o empurrou na direção do holofote. A cabeça dele atravessou o aparelho, produzindo uma chuva de faíscas sobre a carnificina. Brigit fez um cumprimento e saiu do palco pela esquerda, escutando uma onda de aplausos para ela na rua ainda silenciosa. Foi uma mistura de choque e horror que muitas pessoas no bairro viram os restos chamuscados do teatro e lamentaram por aqueles que morreram de modo tão aterrorizante. Ninguém conseguiu entender como a tubulação de gás explodiu causando tanta destruição, como tudo e todos foram queimados a ponto de não poderem ser reconhecidos. Suspeitaram de um incêndio proposital, mas a devastação tinha ido além da capacidade humana. Os oficiais não podiam fazer nada além de confortar as centenas de familiares enlutados, dizendo que ás vezes coisas terríveis aconteciam e nada poderia ter sido feito para mudar isso. Era mais fácil acreditar nisso do que em qualquer outra possibilidade. Brigit passou o dia dormindo o sono dos imortais justos.
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Capítulo 12 Londres. Janeiro de 1940.
— Tem alguma coisa errada além do óbvio. Eamon se assustou. Otonia havia se sentado ao seu lado sem que ela percebesse sua aproximação. Era esse o lado bom de ser tão antiga. Ela não mais se importava em seduzir a presa, apenas fazia o que tinha de fazer e cuidava de outras coisas que estivessem em seus planos. — Não pensem que não gosto de meu alimento. — ela explicou. — Só não quero perder as outras coisas. Ela apoiou a mão no ombro de Eamon e olhou a cidade. — Espero que dure. Ele assentiu, prestando pouca atenção. Estava pensando havia semanas, e sabia que todos tinham percebido, mas eram diplomáticos o bastante para manter distância. Mas Otonia havia percebido algo mais e estava determinada a se livrar de qualquer problema antes de uma ideia criar raízes. Era interessante e assustador o jeito com que ela sentia as coisas, Eamon não estava interessado em conversar. Isso não parecia irritar a líder, pois sabia que ele a escutava. — Não é engraçado o nosso modo de pensar? O tempo é tão diferente para nós. Um luxo, mas nem sempre o valorizamos. Podemos passar séculos pensando em um problema e nunca resolvê-lo. Talvez devêssemos escrever filosofia. Ele respondeu: — Não estou pensando... — Eu sei. O sorriso dela foi gentil, com uma compreensão profunda marcada em cada ruga de seu rosto. Otonia não era bonita; seu rosto tinha traços muito fortes para que fosse bela. Mas havia algo nela que fazia com que você quisesse olhar para ela de novo. Sua voz era grave e os olhos inteligentes 140
podiam prender a atenção por horas ou séculos. Todos diziam que tinham sido essas qualidades que a levaram a seu criador, que ela talvez o tivesse seduzido, e não o contrário. O rosto dela também era o único rosto entre eles, além de Mors, que não demonstrava a idade que tinha. Se alguém olhasse para ela rapidamente, diria que ela esta na faixa dos vinte anos, mas analisando melhor, os milênios estavam marcados em sua pele. A amplitude de conhecimento e experiência dela era o que fazia surgir o respeito e a confiança e, como não podiam negar, o amor. Até mesmo naquele momento, quando ela sabia que Eamon e Padraic, e os milenares em Berlim pensavam que ela havia cometido um grande erro de análise, ela não pedia desculpas nem perdão. Se preciso fosse, ela o faria. Otonia não se preocupava. Ela pegou a agulha que sempre carregava em seu casaco e se concentrou em tecer lã, para não ter de ficar olhando para Eamon. — Eles podem dizer muita coisa. Ainda temos esperanças. Eamon quase não mexeu a cabeça, mas ela viu. — Você gosta de Mors, é claro, mas talvez não confie nele? Não que isso importe, pois confia muito em Brigit. E o fato de eles terem tido dois séculos nos quais poderiam ter se tornado mais do que amigos, mais do que irmão e irmã, mas isso não ter acontecido, talvez não seja a mesma coisa que estar sozinho, assustado e sobre grande pressão em território inimigo. Então você acha que quando ela voltar para você, não será mais sua mulher. Ou não do mesmo jeito. De todas as coisas que ele temia perder em Brigit, aquela era a que começara a derrubá-lo com mais intensidade, e ele suspeitava que a explicação estava no fato de ser algo possível. Mas detestava essa ideia e detestava a si mesmo ainda mais. — Estou preocupado que o desastre possa provocar a infidelidade. Honestamente, não sei se ela rolaria de rir ou se nunca me perdoaria por isso. É um absurdo. Eu me sinto tão... humano. — Você parece humano. Ele sorriu. — Bem, isso é alguma coisa. Mas temos de ser maiores que isso. Não sei o que há de errado comigo. — Não há nada errado com você. Simplesmente sente saudade da mulher que mantém seu coração seguro. 141
Ela ficou em pé e deu um beijo rápido na cabeça dele. — Ninguém nunca disse que era fácil manter aceso o fogo da paixão. Quando ela se foi, ele deitou de costas na grama e olhou para as estrelas. Fogo da paixão. Mas é mais do que isso, não é? Você sempre teve muito mais do que isso dentro de você. Ele não sabia por que gostava de reviver o passado deles em sua mente – era como se escrever a história em sua mente fosse um talismã que a mantinha presente, mesmo quando não estava. Você estava tão faminta e tão feliz. Como eu, mas por motivos muito diferentes. Mas por tudo que eles haviam se tornado depois, ele não podia pensar na história sem lembrar de como tinham começado, e do que ele havia perdido. A comunidade judaica do século XII de York não era grande, mas era feliz e vivia bem. Na verdade, havia alguns incidentes, e as pessoas tinham conhecimento de coisas ruins acontecidas na Inglaterra, mas mantinham fé em Deus, no rei, e em seus bons relacionamentos com os vizinhos não judeus. Cada um cuidava de seus problemas, obedecia às regras e procurava ser discreto. A maioria deles realizava o trabalho tedioso e ruim, se preciso, de emprestar dinheiro, tendo poucos outros recursos. E nem todos eram ricos, independentemente do que pensavam os vizinhos. Jacob de Emmanuel e sua pequena família com certeza não eram ricos, apesar de as coisas estarem melhorando graças ao talento de Jacob em fazer pães. A família sempre tinha feito o alimento para a comunidade, mas ainda pequeno Jacob demonstrava destreza com a massa que tornava o pão tão delicioso, e sempre tinha de fazer mais para todo mundo. Sabia-se que mesmo algumas moças não judias iam ao bairro judeu para compra pão de Jacob. Em todos os cantos diziam que aquele fato devia-se mais à beleza do moço do que com a qualidade do pão, e respeitavam essa admiração. A aparência de Jacob chamava a atenção da comunidade toda. Ele era mais alto do que qualquer homem, para começar, e tinha os ombros largos e musculosos por carregar sacos de farinha desde os dez anos. Seus dedos eram compridos e fortes e nunca pareciam se cansar, mesmo depois de moldar cem pães. Ele tinha cabelos castanhos, lisos e sedosos, e olhos brilhantes e atraentes que às vezes eram castanhos, outras verde, dependendo da luz. Seu sorriso fácil era alegre, e fazia seus olhos brilharem de um modo que desconcertava 142
qualquer moça solteira da comunidade. Ele também tinha habilidade com as palavras, o que fazia com que parecesse mais experiente do que era. Os homens que não tinham a tarefa doméstica de comprar pão encontravam motivos para ir à padaria mesmo assim, simplesmente para trocar algumas palavras com aquele padeiro interessante. Agora, com quase dezoito anos, esperava-se que se casasse logo. Ele sabia disso, e estava preparado para cumprir sua obrigação, mas estava hesitante. Talvez ele pudesse exigir uma moça com algum dinheiro, mas apesar do que as pessoas pensavam dele, ele não tinha uma opinião tão boa a respeito de si mesmo para receber mais do que parecesse apropriado. Mas como ele poderia cuidar adequadamente de uma esposa e de filhos quando já havia um tio, um irmão e uma irmã menores para cuidar, e uma vez que ganhava dinheiro e só conseguia sustentar a sua família? Ele nunca teria coragem de expressar o outro motivo para sua hesitação. Ele sabia como as pessoas veriam aquilo. Existiam moças bonitas e bemhumoradas, mas ele pensava em algo que queria e não conseguia articular nem mesmo quando ficava deitado olhando para as estrelas. Parte de seu sonho era ter mais estudo. Ele era inteligente, sabia disso, e o rabino estava preparado a ajudá-lo, mas a morte precoce de seus pais fazia com que ele se sentisse na posição de homem da família. Seu tio tentava com insistência, mas estava envelhecendo e ficar em pé por muitas horas era desgastante demais. Então quem além de Jacob podia lidar com os negócios e cuidar de tudo? Ainda assim, ele queria aprender mais. Ainda mais do que o rabino podia ensinar, mas ele reprimia essa ideia. Parecia desrespeitosa. E havia a música. A obsessão não declarada. Seus sonhos eram sempre em melodia. Seus pensamentos tinham ritmo. A música fluía por ele enquanto fazia pão. Todos os sons que escutava, onde quer que fosse, ele queria captar e recriar em forma de canção. Estava em todos os lugares, mas estranhamente fora de alcance. Ele costumava cantar em voz alta, mas havia força, intensidade e uma beleza unicamente encantadora em sua voz de tenor que os outros julgavam desconcertante, por isso ele procurava não cantar quando não estava sozinho, ou na sinagoga. O canto do Shabat não era suficiente. Ele tinha de ir para a igreja mais próxima aos domingos e se esconder, para poder escutar mais música. Ele se envergonhava de esconder seu gosto pela música
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dos gentios, mas não conseguia se controlar. Ele precisava mais do som do que de água. Ele era um homem determinado, e não sabia o que mais podia fazer. Certa vez, alguns artistas tinham chegado à cidade. Os judeus não tinham permissão para participar das apresentações, mas quando Jacob soube que haveria um concerto à noite para o magistrado, ele se aproximou sorrateiramente do local, subiu em uma árvore e ficou escutando. Felicidade. Aquilo era vida. Ele conseguia ver os músicos e sentir o prazer no rosto deles. A alegria em fazer música. Um deles tocava uma rabeca. Jacob observou. Durante toda sua vida, ele havia conhecido coisas... sentido todas elas. Ele soubera com terrível certeza no começo das doenças que seus pais morreriam. Ela soube desde que sua irmã Alma havia começado a engatinhar que ela seria o tipo de criança que faria travessuras e riria facilmente e seria uma grande amiga. Ele sabia agora, com total certeza, que se um dia segurasse uma rabeca, se a posicionasse na sua coxa, e começasse a tocar, ela lhe obedeceria. Ela tocaria todas as músicas que já tinham surgido em seu cérebro incansável. O desejo o sufocou. A impossibilidade perturbava seus sonhos. O homem tocava, e Jacob chorava. Talvez houvesse uma mulher que pudesse entender tudo isso, talvez houvesse uma maneira de ter outra coisa, talvez... mas aqueles não eram bons dias para contemplar a felicidade. As notícias não eram boas. Os judeus estavam sendo perseguidos na Inglaterra, eram expulsos de suas casas e as viam ser incendiadas, ou às vezes eram queimados dentro delas. Ou enfrentavam a espada. Jacob queria que eles ficassem prontos. Ele sabia que havia uma luta se aproximando, e desejou que tivesse uma arma. Queria revidar. Morrer lutando, se fosse morrer. Sabia que era forte, mas com apenas facas de pão não tinha chance. Ainda assim, ele estava pronto para mostrar àqueles que os perseguiriam o que era honra de verdade, mesmo se fosse a última coisa que fizesse. Mas e as crianças, Deus do Céu. E as crianças? À noite, o problema aumentava, os judeus de York decidiam escapar para proteger o castelo para se proteger. Havia pouca escolha – casas tinham sido queimadas e alguns haviam sido mortos. Mas os homens do rei estavam se aproximando: acalmariam a multidão e restabeleceriam a ordem. A vida continuaria. Assim era. Jacob não acreditava nisso, mas qual era a escolha? Ali estavam seu tio e os filhos, sem maneira de escapar. Ele detestava a ideia de 144
fugir, mas aquelas três almas dependiam de seus cuidados. Ele estava em situação difícil, de mãos atadas. Não havia mais nada a fazer. Eles caminharam rapidamente, em silêncio, com os olhos fixos no caminho. Uma voz suave sussurrou no ouvido de Jacob e ele virou a cabeça, mas não viu ninguém. Alma e Abram estavam quietos, o tio estava ofegante demais pela caminhada para falar. E aquela era uma voz – talvez ele estivesse enlouquecendo, juntamente com o resto do mundo –, mas aquela voz parecia com algumas das canções que ele havia criado. Chacoalhou a cabeça para afastar os pensamentos e se concentrar nas orações. Shma Yisrael, adonai eloheinu... onde estava Deus? Enquanto subiam os degraus para a porta da torre, foi Jacob, não seu tio, que teve dificuldades em vencê-los, como se uma grande força o estivesse segurando. Ele teve a forte sensação de que estava andando em uma parede de pedras de gelo. Ele parou, mas sentindo o peso ao redor dele, puxando-o para baixo, para longe. Ele levou as mãos aos olhos doloridos. O mundo e ele certamente estavam ficando malucos. — Jacob? Você está bem? — ela segurou seu cotovelo com preocupação. — Venha. Vamos. Vamos, deixe-me ajudá-lo. Dessa vez ele viu. Ela. Mas ela não podia se real. Era um fantasma, uma miragem, em pé ali, no monte do outro lado da torre, com os cabelos compridos e soltos esvoaçando ao redor do rosto, com a mão esticada, uma promessa em seus olhos de azul profundo. Por que ele podia ver seus olhos? Ela estava longe demais. Mas ele conseguia ver. E tinha de ir até ela. — Onde está indo? Meu Deus. Ele olhou para eles, os dois rostinhos pequenos, confiantes, e a mais velha, assustada. O que estava fazendo? Ele balançou a cabeça com força, lutando contra a náusea e as veias latejantes em suas têmporas. Eles tinham de entrar. No entanto quanto mais se aproximavam da porta, mais seus pés queimavam. Ele se sentiu atingido por agulhas congelantes. Parou de novo, desesperado para respirar. — Você deve vir. Há outra chance. — a voz demonstrou urgência, até medo. — Não há outra chance. 145
— O quê? — Seu tio e Alma arregalaram os olhos, perplexos e preocupados. Abram estava sonolento demais para perceber que Jacob estava enfraquecendo e que sua voz estava rouca e estranha. A voz musical havia envolvido Jacob e ele percebeu que não queria se afastar. Ele sabia também que não podia entrar no castelo. O gelo era impenetrável. Gostaria de conseguir respirar adequadamente, de poder pensar, poder determinar o que eles deveriam fazer. Ele se moveu de modo precipitado e o tio tocou seu braço. — Fique aqui fora por um momento e respire. Vou levar as crianças para dentro. — O tio não conseguiu escutar sua voz, nem sentir o gelo, mas mesmo à fraca luz pôde ver que os olhos de Jacob estavam vermelhos e a pele pálida, com marcas vermelhas. Se ele ia vomitar, melhor que fosse do lado de fora. Jacob inclinou-se rapidamente para seu irmão e irmã e beijou a face de ambos. — Perdoem-me. Meu Deus, perdoem-me! Alma apertou a mão dele, mas não disse nada. Ele envolveu o rosto dela com as mãos e olhou em seus olhos. Os olhos castanhos dela eram mais escuros do que o dele, maiores e mais vivos. Eles sorriram, apesar de manterem o rosto com uma expressão séria. Ela assentiu, demonstrando compreensão ou despedindo-se, ele não sabia. Amada irmã. Melhor amiga. Droga. Não! Ele não ia deixá-los. Ele se recomporia e entraria de novo. Seu tio bateu de leve em seu ombro. — Você vai ficar bem em um minuto. Estaremos esperando por você. E entraram. Apesar de outros terem entrado, Jacob teve certeza de que a porta gelada se fechava sugando-os profundamente. Esticou os braços, mas o sussurro parecido com uma canção foi ouvido de novo. Ele tinha de partir. Ele quase flutuou em direção da menina maravilhosa, certo de que estava no caminho dos sonhos. — Não, é real. — ela sussurrou, apesar de ele não ter dito nada. — Despeça-se deles mais uma vez. As crianças vão escutá-lo. Ela colocou a mão em concha sobre a boca de Jacob. E como se fosse um sonho, ele fez o que ela pediu. — Alma. Abram. Eu amo vocês. Deus esteja com vocês sempre. 146
Ele queria dizer mais, ou talvez apenas dizer as mesmas palavras de novo, mas o som não saiu. A moça tirou a mão fria dos lábios dela e envolveu os dedos dele. — Elas não estão com medo. Os olhos dela eram sinceros, e ele acreditou em suas palavras. Ela aplicou um pouco de pressão na mão dele, o suficiente para tirá-lo daquele local terrível. Jacob não sabia para onde estavam indo, mas não se importou. Eles tinham ultrapassado os muros da cidade, e estavam em uma clareira iluminada pela lua. Ele olhou dentro dos olhos dela e se esqueceu de que menos de uma hora atrás havia guiado sua família para fora de casa, tentando não pensar se voltaria. Quem pensaria em alguma outra coisa olhando naqueles olhos? E apesar de ser loucura pensar assim, ele teve a impressão de que ela era a mulher mais solitária que já tinha visto, mas perdida no amor. Apesar da apreensão e de não conhecê-la, ele nunca havia se sentido tão completo até aquele momento. E desde sua infância, adormecido sob a mão carinhosa de sua mãe, ele não se sentia tão amado e protegido. Era incompreensível, mas Jacob não se importava. Sempre tivera afinidade com aquilo que não conseguia compreender imediatamente. A menina sorriu repentinamente, um brilho que tirou seu fôlego. A energia que ela radiava brilhava com força ao seu redor, um feixe de luz na escuridão. Havia inteligência naqueles olhos grandes e solitários, e um mundo perdido, um mundo a ser descoberto. Ele nunca sentira uma vontade tão forte de tocar alguém. Seu coração estava acelerado, era como estivesse se expandindo, batendo contra suas costelas. Lentamente, como se conseguisse ver todos os movimentos de outra ótica, ele levou os dedos ao rosto dela. O toque com a pele dela fez com que ele sentisse um raio atravessá-lo – frio e quente. Os olhos dela brilhavam e ele controlou a surpresa. Não tinha ideia de como era o amor entre um homem e uma mulher, mas a forte energia que agora estava rondando ao redor dele, espetando sua pele, indicava que ele estava indo para casa. Brigantia estava aterrorizada. Ela sentira o cheiro dele antes de vê-lo, e o cheiro havia causado um arrepio em seu pescoço e dor em seus dedos. A inteligência, a postura, a coragem dele. Seu interesse por tudo o que existia no mundo, e mais. E música, música que fazia com que ela pensasse nos raios de 147
sol sobre o rio, a sensação de se deitar em um monte e olhar entre as árvores para o céu azul e brilhante. Ela havia deixado sua humanidade duzentos e setenta e quatro anos antes e as lembranças felizes daquela vida fluíam por suas veias vãs. Ela levou as mãos à cabeça, concentrando-se o máximo que conseguia. Mas olhou para cima e viu aqueles olhos. Virou o rosto para uma árvore, tentando pensar. Isto é amor. Este é o amor que eu pensei ser apenas coisa de poesia antiga e sonhos vãos. Ela olhou para ele de novo. Consigo escutar os batimentos cardíacos dele, quero entrar nesse coração. Quero ser a única por quem ele baterá. Ela teria de transformá-lo, não havia outra opção, pois como ser humano ele já era um morto-vivo, mas transformá-lo significaria que o coração dele não bateria, e será que ela o merecia, merecia essa possibilidade de amor? Ela sabia muito bem que transformar alguém não significava que essa pessoa passava a amar seu criador. Os judeus estavam a caminho do castelo para esperar ajuda em segurança. Mas havia pouco deles, e o ódio no ar era grande. Se ele entrasse ali, não sairia. Ela disse a si mesma que era a única chance dele, mesmo sabendo que estava se referindo à sua própria chance. Então, com a culpa sendo superada pelo desejo e pela esperança, fez seu chamado. E ali estavam eles. Ela sabia o que tinha de fazer. Otonia havia explicado. Com muito cuidado, com intensa delicadeza, e ainda com controle. — Qual é seu nome? — Jacob. Da família Emmanuel. Qual é o seu? — Brigantia. — Um nome antigo. — Sim. Minha família é antiga. Ela tentou parar de falar, com medo de que isso acabasse com o encanto. Pousou a mão no peito dele, memorizando como era sentir seu coração. Ele colocou a outra mão sobre o dela e seu estomago se contraiu. Otonia não havia dito que as coisas seriam daquele modo. “E ainda devia se controlar.” Fácil falar, difícil fazer. Ela estava desesperada para beijá-lo. Lutar contra aquela vontade estava tomando a maior parte de suas forças. Isso seria errado. Seria seduzi-lo sem 148
que estivessem juntos de fato. Não seria real e não seria amor. Por mais tempo que levasse, ela esperaria aquele beijo, até ele estar no lugar certo com ela. Ela alcançou seu ouvido, sussurrando de novo. Uma fórmula que a levava de volta à sua época, e ninguém sabia quando era. Mas foi um sussurro suave que ficou preso como névoa entre eles. A respiração dele estava quente sobre o pescoço dela, ele a abraçava com força, com o coração aos pulos. O demônio estranhamente não quis se mostrar – ela queria se deitar com ele. Mas, por fim, a força do coração dele contra seu seio e a sensação do sangue dele sob seu toque despertaram o demônio, e as presas dela surgiram nas gengivas. Com o máximo de delicadeza, ela mordeu. Claro, Jacob sonhara em abraçar uma mulher, e tentava imaginar como seria. Queria beijar uma moça, de maneira adequada, e nenhuma outra mulher havia despertado tamanho desejo como Brigantia. Mas ela fugiu de seus lábios, com o hálito quente em seu pescoço, e ele tentou imaginar por que queria tanto de uma desconhecida, ou por que tinha a sensação de que ela era alguém a quem ele conhecia antes mesmo de ter nascido. Sua mente estava rodando. Ele estava flutuando; não, afundando. Ele a estava apoiando ou ela a ele? Seu sangue corria com tanto rapidez que ele não percebeu que estava sendo sugado, e logo estava se tornando uma aberração da natureza ao mesmo tempo e que seu coração acelerava e ficava lento. A única certeza que ele tinha era de que sua boca precisava estar em alguma parte da carne dela. Como se ela lesse sua mente, ou, melhor ainda, tivesse a mesma necessidade que ele, ela escorregou a mão pelas costas dele, subindo por seu rosto. Ele pressionou a palma da mão dela contra os lábios entreabertos, sentindo a doçura salgada do gosto dela e a pressão da ponta de seus dedos contra seu rosto. Havia calor naquela mão. Calor e umidade, apesar de ele não ter percebido, e se ele tivesse visto o sangue pingar de seu corpo, ele teria se assustado ainda mais do que com o sangue que escorria por sua garganta seca. Mas ele não estava em condições de perceber nada. Durante anos depois, ele sentiu orgulho de, apesar de longe do modo que havia imaginado ou pretendido, ele havia, de fato, morrido em pé. ****
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Não há consciência na cova, assim como não há consciência do passarinho quando bica a casca do ovo dentro do qual se encontra ou mesmo de um bebê saindo do corpo da mãe. A cova é determinada, a tarefa árdua e dolorosa do nascimento de um vampiro. Apenas quando ele desenterrou a cabeça e afastou a terra de seus olhos, seu cérebro voltou a funcionar de novo. Ela estava ali, observando, seu rosto adorável iluminado pela lua. Ele saiu da cova e se ajoelhou na beirada, sentindo a necessidade de suspirar de exaustão, mas, é claro, não houve como suspirar. Ele queria que ela não estivesse ali, que não estivesse observando. Não queria que ela o visse se esforçar, puxar o ar de que não precisava. O arrepio em suas costas não era causado pela noite nem pelo corpo dele, mas por ela. Ela e a frieza que plantara dentro dele. Ele olhou para a cova vazia, esperando ver uma sombra de si mesmo dentro de toda aquela terra revirada. Observou suas mãos – sujas mas familiares, e se perguntou de onde aquela sensação vinha, a sensação que eles estavam envolvidos em algo imenso, superior, algo que o prendia e que estava determinado a possuí-lo. Suas mãos não eram mais dele. Comida. Precisava de comida. Sustento para preencher o vazio, para acertar sua mente. Uma refeição quente, gostosa, a essência da vida. O prato de ensopado de carneiro que surgiu em sua mente dançou diante dele, com seus aromas se dissipando a cada instante, pedaços de carne e de legumes evaporando, com o caldo sumindo. O sangue borbulhava no fundo da tigela, sangue que tinha sido retirado e enterrado, e agora se mostrava. Sangue. Algo impuro, proibido, apesar se ser algo que os gentios afirmavam que os judeus roubavam para fazer seu pão ázimo na Páscoa judaica. Mas quando a tigela se transformou em uma banheira e o convidou para se molhar, ele sabia que era sua tarefa, e não fugiria. Uma certeza enfurecedora mostrava para ele exatamente aonde devia ir. Os passos eram refeitos, indo para trás mesmo como se ele tivesse pulado para a frente em um turbilhão. Passando por uma barreira pesada sob sua pele, voltando para o local onde ele tinha vivido. E o tempo todo ela o seguia. Ele conseguia escutar o murmurinho dos pensamentos que ela não expressava em palavras, seus lábios abertos e depois fechados, e sentiu prazer em sua incerteza. Ela o havia tirado de onde ele vivia e o colocara ali, naquele precipício peculiar, e apesar de um eco sussurrar que 150
ele havia desejado aquilo, que a canção que o atraíra a ela era a canção que ele sempre cantara, que tinha de cantar, sua vontade naquele momento não era perdoar. Para peso de sua alma parcial era muito grande. E ali estavam eles, como ele sabia que seria. Os abutres. Nem mesmo abutres, pois os corajosos e determinados haviam invadido a casa dos judeus na noite anterior. Ali estavam os parasitas fracos que sofriam para conseguir ossos e tinha a sorte de conseguir um pedaço de cartilagem se encontrassem algum. A casa pequena e simples na qual ele havia nascido e vivido durante sua curta vida ainda cheirava a pão. Ele podia abrir a porta e entrar, o que significava que a casa estava vazia e seus donos não voltariam. Estava totalmente vazia. Móveis, panelas, lençóis e brinquedos de criança. Outras crianças tinham brincado com aqueles brinquedos naquele dia. A visão o deixava repleto de uma raiva que ele não considerava possível. Ele afastou a raiva para usar depois e concentrou-se no odor. Ela estava na cozinha. Procurando nos armários com a luz de apenas uma vela por objetos deixados. Já tinha encontrado um pouco de sal e uma faca cega. Estava feliz por sua sorte. — Vá embora, este é meu lugar! — Seu grito fez um eco de dentro do armário, e seu traseiro enxerido era obscenamente grande. — Agora é? A voz era agradável, simpática, carregada de sarcasmo. Ela estremeceu. E ficou em alerta, como uma raposa que escuta o latido distante dos cães de caça. Ele achou divertido e tentou imaginar o quanto ela já havia percorrido com aquele traseiro. Ela se virou rapidamente e olhou para cima. Sim, ele a conhecia. Uma das moças que a paqueravam que às vezes ia comprar pão e admirar seu rosto. Ria e até piscava. Exatamente o que ela esperava dele, ele nunca quis saber, mas se ela pensava que seu rosto e atitude significavam alguma coisa para ele, estava bem enganada. Ele não era tolo de se recusar a vender os pães porque isso poderia causar problemas, e a comunidade judaica toda sempre teve a determinação de evitar problemas. Mas os problemas aconteciam mesmo assim. Não é?
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A menina se mostrou envergonhada. Afastou uma mecha de cabelo do rosto. Havia farinha grudada em suas faces e cabelo, deixando-a com cara de tola. Ela tentou sorrir. — Você voltou. Pensei... — Que eu não ia voltar? Que havia conseguido permanência fixa no castelo, talvez? Justamente eu? Bem, por que não? Poderíamos ganhar nosso sustento ali certamente. Implorar aos porcos. Creio que isso seria apropriado. Os animais mais sujos na opinião de vocês cuidando dos animais mais sujos na opinião deles. Que divertido. — Não, não... você não entendeu. Não sou assim. Alguns cristãos são, creio eu, mas esse comportamento não é adequado para os cristãos, não mesmo. Você precisa acreditar em mim. — Eu acredito. Acredito que você só pensou que, já que todo mundo tinha esvaziado nossas casas, você poderia vir ver o que poderia ser seu. Por que apenas as pessoas que querem que morramos conseguem prosperar por meio de nossos recursos? — Mas você não está morto. Vocês voltaram para cá? — Isso seria ótimo, não? Uma bela recepção. — Sinto muito, Jacob. Sinto muito mesmo. Estou contente por você estar bem. — Onde estão meu irmão e minha irmã? E meu tio? Todos os meus amigos. — O quê? — Você também gosta deles? Ele não queria aproveitar o medo dela por muito tempo, mas não conseguiu se controlar. Ele podia fazer algo muito pequeno naquele instante, uma oferta minguada aos determinantes de retribuição do universo. O medo que emanava das almas do castelo em comparação com o medo daquele coelhinho bobo em forma de mulher. Nem como ser humano nem como vampiro ele acreditava no dito popular de “olho por olho, dente por dente”, mas naquele momento, naquela cozinha vazia, sentindo o caos tomando conta do castelo distante, ele queria aquele medo. Talvez se ele tivesse sentido o cheiro de remorso dela, de arrependimento, se soubesse que ela se penalizaria, arrependeria e sofreria. Mas ela só estava chateada por ter sido flagrada, mas
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por dentro sabia que sua palavra valia mais do que a de um judeu, apesar de ser mulher. Ele não poderia provar a culpa dela. Não tinha nada. A certeza de sua superioridade, a benção divina por ela ter nascido cristã, saber que ele e seus irmãos judeus, trabalhadores, calados e descentes como eram, recebiam castigos... não, ele não toleraria. Ela podia ser apenas um símbolo trivial do pensamento que prejudicava a todos eles, mas era o suficiente. Ele a colocou em pé e manteve um braço sobre ela, sorrindo aquele sorriso aberto e brilhante que tirava o sono de muitas meninas. Ela corou, e o rubor tomou seu pescoço e face. Qual seria a seria penitência por tocar um belo judeu? Passar a mão nos seus cabelos? Permitir que seus seios roçassem contra o tecido da camisa dele? Seus dedos apertaram as costas dela, aumentando a pressão quanto mais descia. Então só aquilo era necessário: humilhe um homem e ele ficará em suas mãos e realizará seus desejos. Ela ia se casar em breve, não importava. Muitos homens na cidade a desejavam, com seu riso e graça, mas era aquele homem, o homem proibido de olhos sensuais, com quem ela queria estar. Ela o abraçou pelo pescoço e o puxou em sua direção, olhos abertos o suficiente, esperando ver o prazer no rosto dele. Sim, ele estava sorrindo de novo, lentamente, um sorriso discreto que foi ficando maior... ela estava assustada demais para gritar. As presas surgiram antes de os olhos ficarem vermelhos. Ele sentiu os dentes compridos e percebeu algo peculiar e diferente. Ela se remexeu, e ele também gostou daquela reação. O corpo redondo e ardente. A carne que ela queria que ele tocasse. Ela desejava sentir os lábios dele em seu corpo, apesar de não ter tido a dignidade de respeitar sua família. — Você comprava meu pão, mas preferia morrer a ter de compartilhá-lo comigo. Mesmo assim, vamos fazer uma última refeição juntos, sim? Quero dizer, a sua última. A minha primeira. ****
Mas o gosto bom do alívio o deixou assim que ele saiu da casa sem olhar para trás. Não conseguiu ficar à vontade com Brigantia presente, não teve vontade de explorar seu novo mundo. Para sua surpresa, viu-se de volta à sua cova, com certo desejo de voltar para dentro, cobrir-se com a terra como se ela 153
fosse um cobertor e ficar ali. Só havia dois lugares nos quais ele podia estar: sobre a terra, como antes, ou dentro dela, desintegrando-se. Brigantia ficou em pé ao lado dele e ele finalmente olhou em seus olhos. Agora que ele estava no mesmo lado que ela, a sombra que envolvia os dois o repelia. Ele sentiu como ela irradiava vida, até calor, e havia um brilho nela e uma energia profunda que o enfeitiçavam, a maneira com que os olhos expressivos e transbordantes dela acendiam pequenas fogueiras sobre a pele dele. Ele não podia dispensar nada daquilo, mas não queria beijá-la. — Você está morta. Estamos mortos. Somos os mortos-vivos. — Essa é uma definição simplista, mas não totalmente correta. — Você me matou. — Salvei você. As palavras eram arrogantes, mas o tom era firme. Até desesperado. Ela era forte, muito mais poderosa do que ele, devido à idade, mas, no momento, ele tinha um poder do qual ela não dispunha, e aproveitou. Ele estava perdendo tempo. Sabia onde tinha de estar e sua nova força e poder significavam que ele poderia fazer tudo o que sempre quis e mais para ajeitar o mundo. Os olhos dela estavam no meio do caminho. A velocidade com que podia viajar era muito alta e ele se divertia com ela. Sempre tivera o corpo forte, mas aquilo, a sensação de que ele podia derrubar uma fortaleza, destruir um homem com os dedos, era deliciosamente assustadora e ele queria mais. Ao ver o castelo, ele hesitou, farejando o ar para localizar vida. Sim, eles ainda estavam lá. Assustados, porém vivos. Naquele momento, ele se moveu lentamente, arquitetando um plano. Brigantia tocou seu casaco com o dedo. — Amigo, espere. — Amigo? Eu sou seu amigo? — Eu, bem, eu... Uma onda de compreensão tomou conta dele. Eles eram uma família, independentemente de ele gostar da ideia, mas ela estava esperando que ele dissesse seu nome. Ela queria chamá-lo e escolheu a única maneira disponível, apesar de inadequada. Ele gostou da atitude demonstrada, mas não estava pronto para responder. Não estava pronto para abandonar o nome de Jacob, não enquanto muito de Jacob ainda estava ligado a ele e no castelo. Se não tinha 154
um bom motivo para ser cruel com ela, certamente não estava disposto a ser gentil. Ela esperou, com paciência e esperança no olhar, porém, mais uma vez, ele se afastou. Assim que ela entendeu o que ela pretendia fazer, correu até ele com grande velocidade e força, mostrando o que era ter dois séculos de vida. Ela segurou os braços dele com força e seu olhar foi intenso. — Você não pode, não deve. — Está me dizendo o que fazer? — Por favor, acredite em mim. Eu o salvei, mas não há como salvá-los. É tarde demais e não temos número suficiente de vampiros aqui. Ninguém sobreviveria. — Como ousa me dizer para não salvar minha família? — Eles não são mais sua família. Foram os vestígios do homem, não do demônio, que a golpearam no rosto. Ela levou a mão para cobrir a face vermelha, com uma marca fraca de dedos, os olhos arregalados e tristes. Jacob deu um passo atrás, assustado, e olhou para a palma da mão que ardia. Ele tinha uma nova relação com seres humanos, e então a mulher a quem ele havia comido não era mais sua semelhante, mas aquela criatura era sua família, por mais que ele desejasse negar. E apesar de estar pronto para defender sua família contra qualquer um que pudesse feri-los, nunca se disporia a causar qualquer dano a uma alma que fosse. Mas essa percepção fez com que ele parasse, tirasse a culpa e o horror de seu coração. Não havia alma dentro da bela vampira. Independentemente de quantas lágrimas pesadas rolassem pelo rosto dela enquanto estava sentada em uma pedra, olhando para ele. Qualquer um podia sentir a dor, o que não era a mesma coisa de ter uma alma de verdade. Mas um vestígio de sua alma tomou conta de seu peito, puxou-o na direção do castelo, e deu a ele um senso implacável de superioridade. O que mais ela tivesse, não tinha aquilo, um resto de humanidade e uma causa. Talvez mais tarde ele pudesse se arrepender, mas naquele momento precisava agir. Soube, antes mesmo de chegar ao castelo, que havia alguma coisa errada, muito errada. Pior do que imaginar. Havia um cheiro que ele não conseguia definir, mas enquanto o fedor dominava seus sentidos, ele percebeu que nunca o esqueceria, que assombraria seus sonhos por anos. Não pensou em
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começar a fugir, em gritar os nomes deles. Apenas quando bateu no que pensou ser uma árvore e caiu de costas, percebeu que seus músculos tremiam. O vampiro, e ele sabia se tratar de um vampiro, que olhou para ele era algo terrível de ver. Uma criatura careca com olhos hipnóticos e uma boca poderosa sorrindo de modo frio, cruel e irônico. Ele se abaixou e colocou a mão no ombro de Jacob. Não havia nada antipático naquele gesto, mas o medo tomou conta de Jacob. — Você é o vampiro que Brigantia criou a noite passada. Não era uma pergunta, e Jacob estava nervoso demais para assentir. — Sou Mors. Pode fazer todas as perguntas que quiser sobre mim, e nunca receberá uma resposta. — Mors parou e sorriu quando um cão se aproximou e lambeu sua mão. A cena era tão incongruente que Jacob sentiu vontade de rir. Suspeitou que o vampiro havia percebido sua reação, porque o olhar que Mors fixou nele afastou qualquer disposição para rir. — Brigantia esperou muito tempo para criar um vampiro. Muito tempo. E eu fui amigo dela, até mesmo um irmão, durante todo esse tempo. — As palavras eram casuais, mas Jacob se assustou enquanto prestava muita atenção. — Há muito a ser aprendido ao entrar neste mundo. A falta de cuidados proposital não poderá existir. Não se você quiser sobreviver. Dito isso, ele puxou Jacob pela mão e o colocou de pé. Aquilo podia ser visto como um ato simpático, exceto pelo fato de Mors estar segurando a mão que golpeara Brigantia e ele a apertou com tanta força que Jacob conseguia sentir a cartilagem se desintegrando. Ele se assustou, tentou se livrar, mas Mors apenas sorriu. — Vai amanhecer em menos de uma hora. Vamos para casa agora. Sem discussão. Jacob sabia que não devia reclamar. Ele se perguntou se Mors havia visto o tapa, porque tinha certeza de que Brigantia não contaria a ninguém. Mors havia percebido alguma coisa e não ia aceitar bobagens daquele novato. A força que ele irradiava era intimidadora. Jacob tentou imaginar se os membros dos vampiros voltavam a crescer depois de arrancados, e concluiu que não queria descobrir. Dentro das cavernas, Mors levou Jacob a uma câmara vazia que ele percebeu, pelo cheiro, que ficava perto da de Brigantia. Algo dentro dele indicava que ele devia dormir na mesma câmara que ela, mas ignorou aquela 156
sensação. Mors o observou, ainda sorrindo. Seu olhar passou de Jacob para um livro empoeirado sobre a mesa. Ele o pegou, virou e disse: — Em algumas coisas não se pode interferir. Algumas coisas devem acontecer. — O que isso quer dizer? — Oh, nada. Apenas que o caos humano é assim. Humano. — Não estou entendendo. — Não. Não está. Ainda não. Durma bem. Apenas quando Mors partiu Jacob percebeu como estava exausto, e como sua mão doía. Estava coberta por hematomas escuros e com formato de dedos. Ele se deitou, olhando para o teto escuro, tentando imaginar se os soluços que escutou ao cair no sono intranquilo eram da vampira solitária e magoada da câmara ao lado ou da família e amigos assustados trancados na torre do castelo a muitos quilômetros dali, rezando por um milagre. Jacob acordou assustado, com a sensação de que não deveria ter dormido, que deveria ter mantido vigília, que deveria estar em outro lugar. Lavou o rosto com água e correu pelo túnel para a entrada do refúgio, mas foi recebido pela intensidade do sol do fim da tarde. Ele gritou a caiu, esfregando os olhos com terra fria. Apenas quando a dor passou ele percebeu que a mão não estava mais dolorida. Jacob olhou para ela e constatou que os hematomas tinham quase desaparecido por completo. As maravilhas de seu novo corpo, de suas forças e fraquezas ainda o fascinavam muito e ele estava ansioso para conhecer aquele novo ser, assim que tivesse tranquilidade para pensar. Mas eu estou morto. Sou um corpo morto. O que mais posso aprender além disso? O que mais importa? Enquanto pensava, uma pequena parte dele sabia que não era verdade, mas Jacob estava furioso demais para se importar. Ele ficou sentado protegido dos raios de sol e envolveu os joelhos com os braços, esperando pelo momento em que poderia sair. Não demorou muito para sentir Brigantia atrás dele, olhando para ele. Jacob a ignorou totalmente. Muito tempo depois, percebeu que Mors estava sentado logo atrás de Brigantia, observando-a enquanto ela observava Jacob. Ele não se importou. Estava sentindo as ondas da energia horrível que emanava
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do castelo e contava os segundos sem paciência e com amargura, apesar de sua intuição lhe dizer que já estava muito atrasado. Quando o sol finalmente desapareceu no horizonte, ele saiu correndo. O cheiro estava muito ruim, de virar o estômago. Mais uma vez, foi Mors quem o pegou e, mais uma vez, Jacob teve a sensação de medo e de surpresa ao perceber a velocidade e habilidade de um vampiro tão forte e antigo. O olhar de Mors era quase de pena e compreensão, e não de raiva, o que assustou Jacob muito mais. — Você não devia ir. — Preciso ir. — Não há mais nada. Jacob olhou fixamente para ele. Naquele momento, os olhos de Mors demonstravam uma fúria resignada, o olhar de alguém que tinha visto algo que não queria ver, mas não ficou surpreso, pois já tinha visto muita coisa que não deveria ser vista. Jacob esperou, sabendo o que seria dito antes mesmo de Mors abrir a boca. — A guarda nacional chegou. A multidão estava agitada. Os judeus sabiam o que ia acontecer... por que o que mais podia acontecer? Todos sabemos o que significava uma promessa de misericórdia. Seu rabino foi um homem corajoso. Todos eles foram corajosos. Ele disse que seria melhor morrer nas mãos carinhosas deles do que encará-los do lado de fora. Os homens mataram as mulheres e as crianças primeiro, e depois a eles próprios. Alguns acreditaram que tinham uma chance, e não preciso dizer o que aconteceu com eles. Depois houve um incêndio. E os gentios estão felizes. Eles destruíram todos os registros de dinheiro que deviam aos judeus. Queimaram as últimas casas deles. Acredito que o rei não vai ficar feliz, mas você dúvida de que esses atos se repetirão? Mas não vai importar. Os mortos estão mortos. Mas você deveria sentir orgulho e gratidão. Foram mortes boas. Isso é o que importa. E importava, claro, mas a realidade de tudo aquilo revirou o estômago de Jacob. Ele não queria saber como Mors tomara conhecimento de todos aqueles detalhes, mas sabia que eles eram todos verdadeiros, cada pedacinho. Mors o soltou e Jacob percebeu que ele olhava para ele enquanto ele seguia em direção ao castelo para ver tudo com os próprios olhos. Sentiu Brigantia por perto também, mas ele só queria se despedir mais uma vez. 158
Uma forte fumaça preta saía das ruínas. Ela fez seus olhos arderem e ele aceitou o desconforto, sentindo o peso de como merecia aquilo. Eu deveria estar lá. Deveria ter feito alguma coisa. Deveria ter sido eu mesmo. Ao empurrar as portas quebradas e queimadas e se dirigir aos restos mortais de sua comunidade de seres humanos, os odores fizeram com que ele sufocasse. Jacob procurou entre as cinzas, sabendo que não encontraria as de sua família, mas não parava de procurar. A cena se repetia em sua mente, como se ele estivesse presente quando ela se deu. Seu tio não teria aceitado fazer aquilo, teria recusado, e provavelmente tinha sido um dos homens esperançosos que ficaram na multidão pedindo misericórdia. Mas alma teria negociado com quem tivesse a arma protegendo Abram do horror de tudo aquilo. “Acerte-o pelas costas, seja rápido e firme, poupe-o do pior”, ela teria dito. E apesar de ter menos de doze anos, pequena para sua idade, havia algo em seu rosto e voz que fizera o indisposto assassino obedecer. E ela sorriu para o irmãozinho, segurou suas mãos e cantou a canção da família, a música boba que Jacob havia inventado quando era criança, e com a qual irritava Alma e Abram desde que eram pequeninos. Abram não percebeu o golpe por trás que acertara seu coração, foi rápido demais, e sua última lembrança foi o rosto amoroso e sorridente da irmã e da música alegre que fazia todos eles felizes. Após fechar cuidadosamente os olhos de Abram, com o restante de sua disposição, Alma ficou em pé e enfrentou o deplorável homem com a faca, por meio da qual o sangue do irmão escorria entre as rachaduras do piso. — Jacob sempre dizia que se tivéssemos de morrer antes da hora, que fosse em pé. Faça direito. Jacob viu Alma como se estivesse dentro do corpo do homem, viu que a menininha repentinamente havia se transformada em uma mulher forte e poderosa, que podia passar pelo mundo incendiando a tudo com sua energia e luz. O momento ficou suspenso no ar, carregado de beleza e de um vazio trágico. Segundos lentos se passaram enquanto ela endireitava os ombros e sorria com orgulho, pronta para o golpe. Quando aconteceu, a luz fugiu de seus olhos, de seu sorriso, e ela caiu sobre o corpo ainda morno do irmão, envolvendo-o em seu último e eterno abraço. 159
Jacob esticou o braço sobre as cinzas quentes, depois a levou a seu rosto, concentrando-se na sensação e no cheiro. Com ambas as mãos, pegou mais cinzas e cobriu o rosto, passando as mãos pelos cabelos. Queria que as cinzas entrassem em sua pele, para estar tão presente quanto para sempre estariam aquele momento e as lembranças. Gostaria de saber se a culpa sai quando nos lavamos. Ele não conseguia ver o que poderia ter feito; como, sendo um vampiro, ele poderia entrar ali e tirar as crianças – e depois? Para onde eles poderiam ir? Ele não poderia transformá-los em mortos-vivos, então que tipo de vida teriam? Mas não importava. Jacob queria ter feito alguma coisa, e sabia que demoraria anos para conseguir levantar a cabeça de novo sem o peso da culpa em suas costas. Quando finalmente saiu do castelo, viu Brigantia próxima, sem olhar para ele. Conseguiu sentir a tristeza que ela sentia por ele, até mesmo sua penitência, mas soube que existia uma razão do desejo dela por amor, e por mais próximo dela que se sentira antes de ser transformado, não conseguia vêla como nada além da criatura que o tirara de sua obrigação. Uma parte dele sentia que isso não fazia sentido, que ele não mais era um ser humano e, assim, nem as alegrias nem os pesares da humanidade deveriam pesar sobre ele, mas ainda restava a culpa. Ele tinha sido um homem muito apegado à família, e isso fazia muita diferença para o tipo de vampiro que era agora, e sempre faria. Brigantia foi até ele naquela noite e ficou em pé sem saber o que fazer na porta de sua câmara, torcendo as mãos e gaguejando antes de finalmente conseguir dizer uma frase. — Eu não queria que você morresse. Senti quem você era, o que existia dentro de você, o que poderia ser, e não quis que tudo aquilo deixasse o universo. Não ainda. Tudo aquilo precisa ficar. Você precisa ficar. Assim, você pode crescer, pode ser muito do que desejou. Nosso mundo pode ser maravilhoso, pode ser melhor de certos modos. De muitos modos. Por favor, acredite em mim. Eu não queria que você morresse. — Mas eu estou morto. — Não é bem assim. Sei que é o que parece, mas... — E você está morta. Você acha que existe alguma coisa dentro de mim para amar, e quer que eu a ame, mas você está morta. Você é uma coisa morta. — Ele deixou rolar as lágrimas que se acumulavam nos olhos dela, a dor 160
desesperada tomando conta de seus belos traços. — Uma coisa morta. Uma coisa morta, fria e bonita que sobrevive do sangue quente dos seres humanos de verdade. Ele sentiu o próprio coração parado, a verdade daquelas palavras fazendo com que ele percebesse que ele também era tudo aquilo. Uma criatura morta que nunca se sentaria sob o sol de novo e, se continuasse com seu corpo, comeria milhares de garotas como aquela que comera na noite anterior. O nojo e o ódio fizeram com que ele sentisse o próprio sangue morno ao se aproximar de Brigantia. — Uma coisa morta, morta, morta! Ele a atacou como uma criança fazendo birra, batendo os punhos contra o peito dela e chorando enquanto ela permanecia parada. — Morta! Morta! Morta! Ele caiu em prantos aos pés dela, batendo no chão sem parar, dizendo a palavra “morta” de vez em quando. Gostaria de realmente estar morto, queria ser um cidadão daquele mundo desconhecido além do precipício, não queira estar preso dolorosamente àquela meia vida. Ou, se tivesse de estar preso, queria não se importar, não sentir, ser tão frio e morto como seus órgãos. Aquele lugar de humanidade parcial, mesmo sabendo que um demônio nascia dentro dele, era uma tortura incompreensível, sem fim. Ele não tinha senso de tempo, apenas percebeu que, horas depois, um novo odor chegou até ele e o fez sentir um toque quente. Um olho se abriu e viu uma mistura de alecrim e lavanda, com uma vinha ao lado dele. Ele pegou aquilo e levou ao nariz, inspirando profundamente. Uma sensação agradável percorreu seu corpo. A dor continuava ali, mas ele acreditava que podia imaginá-la suportável. Cansado demais para ir para a cama, ele rolou com o buquê na mão e dormiu. ****
Eamon pegou uma pequena caixa de cerejeira de baixo da cama. Havia diversas bandejas, todas com pequenos tesouros. Tirou todas as bandejas até chegar na última, onde o buquê antigo estava em um forro de tecido egípcio. Estava seco para ser preservado, mas, exceto por isso, não havia mudado. Seguindo o que seria normal, ele deveria ter se decomposto a séculos antes. Mas, pensando bem, a mesma coisa deveria ter acontecido a todos eles. 161
As coisas existem se você quiser, creio eu. O amor também. Ele sorriu para aquele primeiro presente, sem se esquecer de que aquela vida era, de fato, a primeira, mas preferindo as ervas. Cheguei até você, finalmente. E permaneci. Quando cheguei, nunca mais quis estar em nenhum outro lugar. Continuo não querendo. Independentemente do que acontecer, sei que é verdade. Sei que você não vai esquecer. Eles nunca esqueciam nada. Alguns deles consideravam isso uma maldição, outros, uma benção, mas no fundo era a mesma coisa. Eamon apoiou a rabeca na coxa e tocou uma canção antiga, a canção tola que ele, Alma e Abram adoravam. Havia séculos que não pensava nela, mas não se esquecera de nenhuma nota.
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Capítulo 13 Berlim. Agosto de 1940.
Eles estavam atrasados. Os passageiros haviam desembarcado, outros tinham embarcado e se acomodado, mas o trem ainda estava na estação Freiburg. Os funcionários e os guardas foram surpreendentemente pouco prestativos. As pessoas reclamavam dos horários, conexões e destinos aos quais deveriam chegar, e a única resposta que conseguiam era um sorriso forçado e a pergunta: “O senhor não sabe que há uma guerra acontecendo?” Brigit forçou-se a economizar energia e ficou parada, contando o tempo. Cada minuto que passava sem que o trem partisse significava que diminuíam as chances de eles conseguirem trocar de trem a luz do dia. Mesmo que esse infortúnio pudesse ser resolvido de alguma forma, havia os horários do barco que partiria para a Irlanda a serem levados em conta, isso se ainda estivesse em funcionamento. Quanto mais eles demorassem a chegar em Bilbao, mais perigosa ficava a situação. Brigit sabia que eles não podiam se considerar totalmente seguros antes de chegar a Grã-Bretanha. A Grã-Bretanha que estava em guerra. A Grã-Bretanha que estava sendo bombardeada sem piedade e lutando para impedir a invasão. Mas ainda assim era seguro, e chegar lá significaria estar em casa, livre. A Espanha a deixava preocupada. Ela sabia que Franco estava a favor do Eixo18, e faria o que fosse preciso para ajudá-los. Poderia ser mais fácil tentar navegar a partir de Portugal, mas isso significava mais tempo no continente, e com tanta atenção para eles, parecia melhor manter o plano original e torcer para que desse certo. E havia a Irlanda. A velha e maldita Irlanda. A Irlanda, onde a caça aos vampiros havia sido refinada de modo 18
Força militar (composta por Alemanha, Japão e Itália) que lutou contra os países aliados (França, Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética) durante a Segunda Guerra Mundial. (N.T.)
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terrível. A Irlanda, onde Raleigh19 tinha sido provocado e torturado no seu caminho até a morte. Brigit, Eamon e Mors tinham procurado se vingar por ele e por Cleland, garantindo que a localização de qualquer um deles na Irlanda causasse a perseguição a eles realizada pelos maiores caçadores, dentro de uma hora. Os vampiros ainda estavam na Irlanda por raiva, e pareciam estar sobrevivendo. Mas aquele não era um lugar do qual Brigit pretendesse se aproximar, nem mesmo durante um breve período em que eles teriam que descer do barco para pegar o outro em direção ao país de Gales. Ela não se sentiria tão apreensiva se não estivesse cuidando das crianças, mas não fazia pensar naquilo. As crianças estavam ali, e ela também, e se eles quisessem chegar a Grã-Bretanha, teriam de ir pela Irlanda. Por fim partiram de novo, em direção a fronteira suíça. Brigit viu que a demora faria com que fosse quase meio dia quando eles tivessem de trocar o transporte. E ela não poderia usar sua velocidade, pois papéis tinham de ser conferidos. Era demais esperar que pudesse sussurrar ideias para todos e pular os procedimentos. Não havia previsão de chuva; na verdade, Alma dissera que o céu estava bonito, bem azul. Brigit pensou e repensou o problema. Um milenar era capaz de suportar a força do sol por cerca de um minuto antes de sua pele começar a enfumaçar e rachar, ela sabia disso. Qualquer sombra que fosse a ajudaria. O segredo era impedir que sua pele ficasse exposta. Isso não a protegeria por muito tempo, mas ela conseguiria mais alguns minutos. O que podia ser tudo de que precisava. Tenho luvas, guarda-chuva e um chapéu com véu feio que sempre detestei. Vou parecer uma idosa, mas talvez dê certo. Talvez. Ela estava muito cansada para pensar em possibilidades. Pouco tempo antes, tudo era comandado pela certeza. Era o privilégio dos imortais. Eles conheciam o próprio mundo, conseguiam sobreviver bem dentro dele, desde que se limitassem a parâmetros facilmente compreensíveis. Sempre existia a possibilidade de desastre, é claro, e as emoções humanas que nunca morriam dentro deles indicavam que eles eram sujeitos a alegrias e tristezas, mas ainda existia a certeza do mundo e do lugar que eles ocupavam. Eles só precisavam decidir como passar as noites e como crescer. Até mesmo saber que os caçadores existiam não era algo que os preocupava muito. Compreendiam que alguns deles morreriam, como as coisas costumavam ser, 19
Explorador, escritor e poeta britânico. (N.T.)
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mas um vampiro esperto não permitia que o medo comandasse sua vida. A não morte liberava os seres para que fossem fatalistas de modo alegre, sem medo. Os objetivos eram maiores. Brigit gostava de livros, Eamon gostava de música, juntos eles reuniam toda cultura que o mundo dos seres humanos oferecia, e isso, juntamente com o crescimento constante do amor deles, tornava a vida totalmente feliz. Em nenhum momento eram tomados por dúvidas, nem mesmo preocupações. Aquelas coisas não importavam nem um pouco, pois tudo que tinham era para ser aproveitado para sempre. Mas naquele momento ela estava presa naquele ciclo de adivinhações e preocupações, alem do medo que havia se estabelecido e não se afastava. Não podia ser dado como certo, cada minuto era totalmente diferente. Seria bom respirar. — Por que está sorrindo? Alma estava carrancuda. — Lembrei de uma piada. — Isso não é muito apropriado. — Na verdade, é a única coisa apropriada. Já ouviu falar em humor negro? Alma deu de ombros, o fez Brigit concluir que ela não conhecia o termo, mas não tinha intenção de admitir sua ignorância. — Significa fazer piada com uma situação ruim, mas fazer isso quando você mesmo é a vitima. Mais que isso, algumas coisas são tão absurdas que é melhor rir. Ou rir ou morrer. — Não diga isso. — Alma virou a cabeça na direção de Lukas, que naquele momento estava brincando com um avião de papel que Brigit fizera para ele, murmurando para si. Alguma coisa no tom pareceu familiar para Brigit, mas uma batida na porta interrompeu o tom e o pensamento. Era Maurer. Havia ainda mais má intenção em seu sorriso e seus olhos estavam marejados. Para Brigit, ele lembrava um monstro de contos de fada que ficava mais feio a cada dia que passava. — Acredito que vocês mudaram de transporte para Biarritz, certo? Ou seria Bordeaux? A pergunta poderia ter parecido inocente, não fosse pela piscadela. Ele não esperou pela resposta mais continuou: — Pensei que você ficaria feliz em saber que recebi ordens para ir para o sul da França também. Belo território, segundo me contaram, uma pena que o 165
Reich não o esta ocupando. Mas não importa. De qualquer modo, nossos caminhos continuarão se cruzando por enquanto, pelo menos. — Que ótimo. Ele a observou, tentando avaliar seu olhar e sorriso constante. Ele sabia que Brigit tinha muitas perguntas, a começar com o porquê de a viagem estar demorando mais do que deveria, mas ela manteve-se calada. Ele olhou as crianças, sem demonstrar sutileza alguma. Ela detestou o fato de ele olhar para elas. Para resolver a questão, ela se mexeu para que ele voltasse a olhar para ela. — Sim, precisamos ficar de olho um nos outros, não é? — Ele levou a ponta da língua nos dentes e piscou de novo. Se as crianças não estivessem ali, Brigit teria perdido a paciência, enfiado os dedos nos olhos dele e o jogado pela janela de trás. — Obrigada, sargento Maurer, está de olho em mim, já disse isso, e eu não me esqueci. Tenho uma memória excelente. Agora, se me dá licença... Ele a puxou para o corredor e fechou a porta com força. — Escute aqui, mocinha, estou oferecendo um pouco de proteção a você, correndo muito risco. Você poderia começar a aprender a ser grata. Ela afastou o braço com força, pensando que ele deveria ser grato pelas pessoas localizadas no fundo do vagão. Caso contrário, estaria morto com certeza. — Vou fazer uma coisa: comece a merecer e eu começarei a aprender. — Não me ouviu? — Ouvi. Mas tenho responsabilidades. Posso brincar de desvendar charadas com crianças, mas não tenho tempo nem paciência para fazer essa brincadeira com adultos. Ela colocou a mão na porta, mas ele não tinha terminado. — De quem são essas crianças? Por que elas estão com você? Havia algo indefinido em seu tom de voz. Ele queria saber a verdade, é claro, mas ela percebeu que era por outro motivo. Ou algo que não tivesse que ver co os interesses comuns do partido nazista. Ela sentiu um arrepio na base da espinha, mesmo enquanto olhava para ele com a cabeça aberta. — O que é isto: treino para a travessia da fronteira? Nossos documentos estão em ordem. Foram carimbados. Devo mostrá-los ao senhor? — A impertinência não vai levá-la a lugar nenhum. 166
— Essa não foi a minha experiência, mas sempre agradeço por conselhos. — Melhor assim. Brigit sorriu com falsidade, e tentou entrar, mas ele a segurou de novo. Dessa vez, ela se livrou dele com mais força do que pretendia, e o brilho de seus olhos foi apenas azul, nenhum vestígio de vermelho. Mas ele se assustou o suficiente para se afastar. — O senhor não deveria cuidar de suas tarefas, sargento? Ele hesitou, e então murmurou algo ininteligível e se afastou. Vou matar esse homem. Ele é irritante demais para continuar vivo. ****
Ainda não era uma da tarde quando anunciaram que finalmente haviam chegado à estação de Basileia. As crianças estavam comportadas, o que não era comum, com seus chapéus de palha e casacos de gabardine que Brigit havia deixado impecáveis. Eles eram quase tão pálidos quanto ela, e observaram quando ela colocou o chapéu grande e feio sobre as madeixas e certificou-se de que as luvas estavam esticadas por baixo das mangas de seu casaco. Alma havia tentado falar diversas vezes, mas o olhar de Brigit a calava. Por fim, Brigit remexeu em todos os documentos de novo, não conseguiu evitar. — Como exatamente...? — Força de vontade. — Mas e se...? A carranca de Brigit fez a menina ficar quieta. Já bastava saber que todos eles estavam pensando a mesma coisa. No ridículo da situação, uma vampira levando duas crianças em plena luz do dia, todos eles disfarçados para escapar dos nazistas que estavam determinados a encontrar e mandar de volta a Berlim quem pudesse servir de exemplo do grande poder do Reich. A morta guiando aqueles marcados para morrer. Brigit sorriu, mas conteve o riso. Ela queria animar as crianças, mas era mais seguro não se mostrar feliz por ter deixado o território alemão. Um jovem e loiro carregador de malas se aproximou para pegar sua bagagem e Brigit deu a ele uma gorda gorjeta. Ele sorriu para ela, gostando da bela moça irlandesa que devia ter sua idade, que era estranhamente sedutora e inacessível. Ele olhou para ela, carregando a bolsa, os documentos, um guarda167
chuva e as crianças e as coisas dela, e pensou que ela parecia ser uma moça que precisava da proteção de um homem. Claramente ela não era professora, e ele se questionou como uma moça de família rica havia acabado com uma tarefa tão problemática. As crianças não podiam ser seus parentes, apesar de serem esses os rumores, e diziam que uma família rica não gostava de divulgar aquele fato abertamente. Mas a família era bondosa e queria que as crianças recebessem boa educação e ficassem fora de perigo; e assim tinha se dado a situação daquela moça, que teve de interromper sua aventura pelo continente e voltar para casa logo agora que a guerra havia começado, para pegar as crianças e levá-las de volta a Dublin, onde, presumia-se, elas seriam trancafia em um colégio interno e ali seriam esquecidas até se tornarem adultas. O carregador julgava curiosas as manias dos ricos, e também estranhas, mas não deixou de se sentir atraído pela loira. — Precisa de ajuda para sair do trem, Fräulein? Posso segurar o guardachuva para a senhorita, para que possa cuidar melhor das crianças. Seu sorriso atraente fez com que ele se sentisse um pouco tonto. — Quanta gentileza! Muito obrigada, eu ficaria muito agradecida. Como você pode ver, não estou acostumada a pegar sol. Ele não me faz muito bem, infelizmente. Se as crianças não estivessem ali, ele poderia ter encontrado a coragem de dizer que sua pele muito clara em contraste com aqueles olhos azuis e lábios pintados com batom vermelho era muito vívida, uma beleza sem igual. Ele pensou na pele dela, desde seu rosto ate por baixo das roupas caras. Grandes áreas de maravilhosa pele alva, esperando para ser exploradas. Se ao menos houvesse uma maneira de trocar de trem com ela. Entretanto, ele faria o que pudesse para ser gentil. Pelo menos dessa maneira ele poderia se orgulhar de seu desinteresse e comportamento gentil. Todos os passageiros tinham de preencher um formulário de inspeção de documentos, e isso era realizado com uma grande eficiência que não surpreendia, levando em conta que os nazistas e os suíços estavam cuidando das atividades. Brigit pensou se os dois sistemas podiam ter problemas e divergências, ou se cada lado se esforçava para ser mais eficiente que o outro, mas na verdade parecia haver um tipo frio de cooperação a respeito os procedimentos, com todos os membros respeitando uns aos outros.
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Brigit esperou, imaginando quanto seu coração estaria acelerado se batesse, o que acabaria por entregá-la. Não, estou protegida de meu coração. É a fumaça que pode sair de minha pele que poderia revelar minha condição. Dessa vez, ela não sentiu vontade de rir. Não conseguia pensar em Eamon. Seu foco estava nos dez passos até o pequeno prédio de inspeção, e a curta caminhada de lá ao próximo trem, perto dali. Um caminho curto, possível, porém muito difícil. — Veja, Fräulein, já tem um pouco de sombra. Isso será agradável para a senhorita, tenho certeza. — O carregador disse de modo solícito. Não era sombra suficiente, mas Brigit aceitaria o que conseguisse. Ela abaixou o véu, sentindo-se como um cavaleiro se preparando para uma batalha. Mas enquanto estavam descendo, o médico seguiu na direção deles, parecendo determinado. Alma conseguiu sentir a sensação fria da mão de Brigit mesmo através da luva, mas procurou não olhar para ela. Brigit se virou ao carregador. — Estou achando aquele homem muito persistente, e não quero me atrasar para colocar as crianças no trem, não será bom para elas, pois são delicadas como você pode ver. Teria como você encontrar uma maneira de, bem, segurá-lo, ou talvez pode reservar um minuto para nos ajudar a entrar em nosso compartimento? Ela não soube como conseguiu colocar mais cinco marcos na mão do carregador e roçar o seio no cotovelo dele, mas, ainda segurando o guardachuva, ele partiu na direção do médico e insistiu para ajudar o homem grande, conseguindo atrapalhar outros passageiros que esperavam. Brigit pegou as crianças, sussurrando para que Alma fosse na frente e seguiu rangendo os dentes na direção da sala de inspeção. A dor tomava conta de seu corpo todo, ate seus cabelos doíam. Raios fortes incidiam em sua roupa, chapéu, tentavam entrar em seus olhos bem fechados, tentando entrar em sua pele. Mais rápido, mais rápido! O prédio recém-construído não passava de um barracão, mas entrar nele foi como tomar um banho de água fria, e Brigit teve de se controlar para não suspirar aliviada. Precisava se sentar desesperadamente, gostaria de poder deitar no chão, mas forçou os músculos trêmulos a deixá-la em pé e sorridente.
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Havia dois inspetores na pequena sala e ambos pareciam não estar muito interessados no trabalho, mas olharam rapidamente para Brigit quando ela ergueu o véu. Ao inspecionar os três maços impecáveis de papéis, um deles franziu o cenho e virou-se para uma pilha de anotações em um arquivo no qual se lia "A Questionar". — Que coisa mais engraçada! — Brigit gritou da maneira mais aguda. — Todos aqui não devem ser questionados. Afinal, para que estamos aqui? O inspetor olhou para ela, surpreso com os olhos brilhantes e a ingenuidade de seu comportamento. Ele tinha ouvido falar que os irlandeses sabiam ser meio estranhos, mas aquilo parecia demais. — Não sabe que está ocorrendo uma guerra? — Ele perguntou com condescendência. Aquela pergunta de novo! Aquelas pessoas tinham de aprender a variar. — Mas é exatamente isso o que quero dizer! Está acontecendo uma guerra e, assim, todos tem de ser questionados. Quem sabe que podemos ser? Nossa! Eu gostaria de ficar sabendo que vocês encontraram um espião. Os ingleses pensam que são muito espertos, mas nunca vi nada que mostrasse isso, e eu gostaria de ver a esperteza se voltando contra eles. Não sinto nada por Londres estar sendo bombardeada, nenhum de nós... Ela parou, mostrando-se levemente arrependida, como se tentasse descobrir se dissera coisa demais, apesar de saber que os suíços eram neutros, como a Irlanda tinha de ser, apesar de não ser segredo que a Irlanda era simpática a Alemanha. Mas vocês suíços são da mesma maneira? Ou apenas estão tentando fugir de problemas, manter as coisas nos eixos? Seus comentários pareciam ter funcionado. O inspetor mais jovem, encantado com a jovem bela, percebeu que as pessoas do lado de fora estavam ficando impacientes. Era pouco provável que houvesse algum problema com aquela moça, ou com as crianças sob sua guarda. Na verdade, parecia que ela só tinha de ser detida para que fosse determinado por que ela, com aquela aparência de quem precisava de cuidados, estava com duas crianças para cuidar. O outro inspetor olhou para os documentos. Eram como tantos outros, dizendo que havia a suspeita de que as crianças eram judias e que a loira... ele olhou para a anotação de novo. Parecia estar escrita em código. Devia estar. Ou 170
então os nazistas de fato eram malucos como algumas pessoas diziam, e ele não entendia como alguém na Suíça poderia estar do lado deles. Ele olhou para a menininha sorridente, observou quando ela se inclinou para o menino e cuidadosamente limpou o nariz dele com o lenço de renda e apertou seu queixo. Ele acreditava que a jovem apertava a mão da menininha para tranquilizá-la. Mesmo que as crianças fossem judias, ele não conseguia entender qual era o problema dos nazistas em relação a eles. Pessoalmente, ele não tinha nada contra nem a favor deles. Eles mantinham os bancos em funcionamento, o que mantinha a economia em ordem, e ele gostava de ordem. Os papéis apresentados pela loira certamente estavam em ordem, o que já lhe bastava. Ele carimbou cada um deles, e então escreveu que eles tinham sido adequadamente questionados e não havia qualquer problema. Aquilo reduzia a papelada, o que era bom para todo o mundo. Com um aceno, pediu a eles que seguissem em frente. Brigit estava aguentando firme, mas a dor causada pelo sol parecia ainda maior enquanto eles caminhavam ate o trem, e foi com a mão trêmula e quente que ela segurou no corrimão e se arrastou para dentro. Alguém segurou seu cotovelo e a ajudou a atravessar o corredor. Ela levantou o véu e sem querer soltou um pouco de fumaça. O alemão de cabelos loiros olhou para ela, assustado, e percebeu que seu rosto estava rosado. Concluiu que ela estava corada e que a fumaça, bem, devia ter sido de sua imaginação. E se convenceu disso quando os olhos dela brilharam. — Puxa! Você conseguiu se juntar a nós! — Não é comum, mas eu não consegui resistir a um convite tão simpático. O carregador do novo trem se virou, enfiando uma nota no bolso e sorrindo enquanto o interessado homem guiava Brigit e as crianças a seu compartimento. Ele fez questão de mostrar a eles todas as instalações do trem, apesar de não conhecer aquele veículo, e não parava de olhar para Brigit, esperando que ela mandasse as crianças para o vagão panorâmico. Brigit apenas sorriu tranquilamente, apesar de estar sufocada por dentro. O demônio ainda estava sentindo dor por causa do sol e ela queria muito poder se refrescar e dormir. O estresse indicava que ela teria de se alimentar logo de novo, mas ela esperava poder evitar aquilo pelo máximo de tempo possível. E sentiu vontade de rir, até 171
dançar - eles tinham conseguido! Estavam em um território muito mais seguro, tinha certeza disso, mesmo que Maurer os estivesse seguindo e se houvesse rumores sobre quem eles eram de fato. Não estavam longe da Espanha e tinha de ser mais fácil a partir de então, precisava ser. Cuidado. Não fique feliz demais. Mantenha-me sob controle. A voz tinha razão, mas Brigit estava abalada demais para seguir seu bom senso. Ela precisava da mão firme de Eamon para se acalmar. Era Mors a quem ela sentia naquele momento, Mors estaria comemorando o triunfo de ela ter saído ao sol – ao sol! – e ter saído salva. Devia olhar nos olhos de todos os inimigos e piscar. Como eu sempre digo, não existe o que não possamos fazer se tivermos determinação. Ela sorriu ao escutar o eco da voz mandona de Mors, e o carregado retribuiu. — Possa conversar em particular com a senhorita? Ela concordou, pediu as crianças que esperassem um pouco e foi até o corredor com ele. Ele se mostrou contrariado. — Preferiria que eu e a senhorita entrássemos em seu compartimento. Temos apenas dez minutos, no máximo. — Não estou entendendo. Ele olhou para ela sem acreditar, mas ela manteve a expressão perfeitamente simpática. — A senhorita sugeriu que... eu fiz um favor! — Sim, pelo qual você foi bem-pago. — Eu estava esperando um pagamento de outro tipo. — Compreendo. Ela o puxou para dentro de um lavatório e o beijou intensamente. — Esse tipo de pagamento? — Ela perguntou com meiguice. — Esse e talvez algo mais. — ele sussurrou. — Acredite: eu faria isso se pudesse, mas tenho responsabilidades, como sabe. E você também. Agora não é hora para o prazer. — Ela desceu a mão pelo peito ele e apertou sua genitália por cima da calça. — Não sabe que uma guerra está acontecendo?
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Ele olhou para ela, boquiaberto. Ela ficou com pena, apesar de estar se sentindo mal. — Bem, aqui esta. — Ela pegou a mão dele e a levou atrás de seu corpo, permitindo que ele apertasse seu traseiro. — Seu pagamento extra, aproveite, e da próxima vez tente ter mais sorte para que fiquemos no mesmo trem. Ela voltou para seu compartimento para se juntar as crianças, mas carregador teve de esperar um pouco até poder aparecer na frente das pessoas. O homem a quem ele havia subornado estava ajudando os passageiros a entrar no trem. Ele sorriu para ele de novo, chacoalhou a cabeça murmurou: — Alemães idiotas. — O quê? — perguntou o homem bem-vestido cuja bagagem ele estava carregando. — Nada, senhor. — Espero que não. — O médico sorriu.
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Capítulo 14 Berlim. Fevereiro de 1940.
— Você acha que é minha culpa? — Não seja tola. Mors havia encontrado Brigit enquanto ela voltava de mais uma noite exaustiva e infrutífera com Gerhard. Ela não havia percebido sua aproximação. Desde o massacre no teatro, semana antes, sua força e capacidade de raciocínio tinham piorado muito. O assunto não era debatido, mas ela podia ver que os outros também estavam sofrendo. Até mesmo Mors parecia cansado e abatido, ela percebeu surpresa. Os olhos dele ainda brilhavam no entanto, e seu sorriso continuava maldoso. Ele se virou em direção a ela com uma urgência estranha, e Brigit sentiu uma onda de força. E foi o que bastou para sorrir, com uma dúvida no olhar. — A máquina de guerra deles está sendo preparada de novo. Ela parou de sorrir no mesmo instante. — Onde, o quê? — Você deve ter sabido. Gerhard... — Sim, mas não tenho como descobrir muita coisa. Ele só tem parte das informações. Eles sabem manter sigilo. — Sabem como esconder as coisas de nós, você quer dizer. — De nós? Mors hesitou e então balançou a cabeça com impaciência. — Descobri algo, mas representa uma nova missão. Brigit ficou tensa e ele sorriu. — Não faça essa cara. Vai ser divertido. Só eu e você, uma viagenzinha de aventura. Ele tentou animá-la, e ela se afastou sem paciência. — Diga-me o que sabe.
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— Que podemos dizer au revoir à França. — ele forçou um sorriso, piscando sem entusiasmo. — Nossos amigos estão aqui de olhos nos franceses e têm uma boa chance de realizar o trabalho com facilidade. — Mas e a Linha Maginot20? Ele resmungou. — É com o que me preocupo. Os franceses confiam nela, ao alemães a conhecem e vão passar por ela. Uma pequena mudança de direção, quase não percebida. — Por que eles devem atacar a França? — Você precisa me explicar o processo de pensamento que comanda a dominação? Onde esteve no último milênio? — A França não é fraca. E a Inglaterra vai se unir a nós. Mors franziu o cenho. — Vai entrar em uma briga que pode tornar as coisas muito piores. Eles nunca aprenderam a trabalhar juntos, você sabe disso. Os generais ingleses e franceses tentarão vencer uns aos outros, não se concentrarão na estratégia. Vai começar uma guerra mundial nova, mas pior, creio eu. Mors se calou e Brigit olhou para ele com curiosidade. Os olhos dele percorreram o cômodo escuro e silencioso e parecia ficar em algum ponto além, e Brigit sentiu-se tonta observando a cena, enquanto Mors em séculos de combates humanos. Por fim, ele voltou a prestar atenção nela. Sorriu, mas não o sorriso de sempre, e Brigit estremeceu. — Acredito que teremos nossa última oportunidade, minha menina. Espero estar errado, claro, mas quantas vezes já errei? — Desde que eu o conheço? Mas não era um momento para brincadeiras. Mors estava falando com seriedade e Brigit sabia que ele tinha razão, claro. Aquilo era o pior, um demônio dirigido por um homem girando com total exatidão para alcançar extremos. A guerra tinha dado uma pausa apenas para que os nazistas pudessem relaxar, respirar, sorrir uns aos outros e começar novamente. E a França era a próxima, e quem se surpreenderia? — Tudo bem. — ela disse. — Tudo bem. Então, o que podemos fazer? — Já pensei em tudo. Bem fácil. Serei o major Werner, traidor, e contarei ao general Michaud, oh, sim, já fiz a pesquisa certinha! E vou 20
Linha de proteção construída pela França ao longo das fronteiras com a Alemanha e a Itália após a Primeira Guerra Mundial. (N.T.)
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informá-lo sobre os planos de guerra que desaprovo totalmente. Terei provas, documentos que eles não poderão ignorar. E contarei com você para aumentar a credibilidade. Sabemos que os franceses têm uma queda por moças belas e sensatas. Acreditarão em mim e voilà: os alemães ficarão bem surpresos semanas depois. Brigit balançou a cabeça em negativa. — Por que acreditarão em nós? — Pare, não coloque desesperança nos procedimentos. Conhecemos esse jogo. Um oficial acredita em outro oficial, mesmo que ele seja alemão e um traidor. Honra entre bandidos, se quiser chamar assim. Principalmente se o traidor percebe uma chance de conseguir uma recompensa. — Devemos nos aproximar como britânicos, como espiões que trabalham aqui por um tempo e aprenderam alguma coisa. — Agora você está sendo ridícula. Não estava com medo de que eles não acreditassem em nós? — Sim. E independentemente da situação, os franceses sempre acreditam em um alemão antes de acreditar em um inglês. Brigit não disse mais nada naquela noite e Mors assoviou de modo alegre no caminho de volta ao refúgio. Mas quando lapidavam o plano nas noites seguintes, com Cleland e Swefred oferecendo conselhos e Meaghan cada vez mais reclamona e lenta, a apreensão de Brigit aumentou. Aquela missão demoraria horas apenas, no máximo um dia e uma noite. E havia um alvo claro e boas informações, e ainda assim tudo parecia impetuoso demais, precipitado demais, sem detalhes suficientes para que não fosse um desastre. Uma noite antes de partirem, Brigit aproveitou que estava sozinha com Mors e o confrontou. — Não estamos prontos e precisamos de mais provas concretas para ele, precisamos conversar mais, precisamos... — Você acha que os nazistas gastam muito tempo conversando? São homens de atitude. — Homens de atitude... e que planejam! Eles planejam tudo, meticulosamente, ou será que você não percebeu? De que outra maneira conseguimos descobrir alguma coisa útil?
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— Claro, mas estou dizendo que temos de ir, e que temos de ir agora. Quanto antes chegarmos aos franceses, mais cedo eles poderão elaborar uma nova estratégia. Eles podem derrotar os alemães se souberem agir. — Mas e nós? Por que estamos aqui, senão como sujeitos que sabem agir, mas estamos seguindo em frente com alguns papéis para nos guiar! Quem é esse general? Não deveremos encontrar mais de um? E os franceses sempre tiveram noção de vampiros, da mesma maneira com que conhecem bons vinhos. Como sabemos que ele não saberá sobre nós, sobre o que somos de fato? Por que não encontramos algum general inglês? Isso vai demorar muito mais tempo, e certamente poderemos fazer mais assim. E se... — Brigantia! — ele rosnou. O uso do nome antigo fez os dois se assustarem. Brigit sentou-se como se tivesse sido empurrada, as sílabas girando em sua cabeça de modo dolorido. Mors acariciou a cabeça de Brigit, parecendo saber exatamente onde doía. — Brigantia. — ele sussurrou, com a voz mais suave. — Eu sei, eu sei, mas precisamos partir agora. Esperar é perder tempo. Vamos fazer o homem escutar. Temos nossas maneiras, e você sabe disso. Então, eu serei o major e você será minha esposa com bons contatos cujas informações complementares reforçam minha história. — Pareço jovem demais para ser sua esposa; é melhor dizer que sou sua amante. Uma amante sedenta. Ela disse as palavras rapidamente e sentiu um breve momento de prazer na sensação causada antes de se arrepender. — Uma jovem sedenta com uma queda por homens belos e poderosos. Ele sorriu, preferindo receber aquele comentário como uma piada. Segurando a mão dela, com a outra em sua cintura, eles dançaram pelo cômodo. — Oh, minha amante, aonde vai? Oh, fique e escute, seu amor verdadeiro está vindo... Se ele não estivesse de modo engraçado e nada parecesse com sua atitude de sempre, as palavras teriam feito com que Brigit ficasse chateada de novo. Mas ele não causou nenhum desconforto. Quando finalmente foram dormir, ele levou a mão ao queixo dela e sorriu de modo encorajador. — Não precisa se preocupar nem ter medo. Somos o que somos, certo? Os milenares não sentem medo! 177
Mas durante aquele dia em que passou acordada, e ao longo da viagem silenciosa e tensa de trem a Paris, Brigit não conseguia pensar em quase nada além de medo. As palmas das mãos suavam, manchando as luvas brancas de lã. Medo. Ela certamente ela conhecia tudo sobre aquele conceito, mas havia passado grande parte de sua vida como imortal causando medo, criando medo, divertindo-se com ele às vezes. Conhecia o medo muito bem, mas aquela apreensão estranha que tomava conta de seus músculos, pressionava seu corpo, era desconhecida e desagradável, e parecia uma teia de aranha na qual Brigit tinha entrado e da qual não saía. Eles podiam fazer aquilo, podiam passar por Berlim, causando mortes para entrar no círculo interno, como pensavam, e podiam ir a Paris pra tentar causar um banho de sangue, mas mesmo assim ela não parava de se sentir como um rato em um labirinto, correndo de um lado a outro, mas sendo controlada por fim. Ou pelo menos observada. Independentemente do que fosse, ela detestava aquilo. E não podia dizer nada a Mors. E não diria. Não queria estragar a felicidade dele. Brigit afastou os pensamentos e concentrou-se em Mors. Havia algo estranho, emocionante e desconcertante em estar sozinha, verdadeiramente sozinha, com ele de novo. Já fazia muito tempo. O rosto de Mors com aquele quepe de oficial alemão parecia de alguém desconhecido, mas continuava alegremente familiar. Apesar de não ser belo, Mors com certeza era atraente. E quando ele conversava com você, a hipnose se tornava completa. A voz era incrivelmente melódica, sensual, interessante. Ao olhar nos olhos azul-esverdeados, a voz de Mors criava círculos ao seu redor, fazendo carícias, aproximando-se, um abraço de um deus hindu. Aconchegado em tantos braços, não existia a vontade de ir a nenhum outro lugar mesmo que fosse possível. Não apenas o rosto era tão fascinante. Quando ele não estava fazendo brincadeiras ou contando piadas engraçadas, contava histórias encantadoras, atacando-as com exuberância. Mas ele também conseguia ficar calado, e esses momentos eram quase mais sedutores em sua frustração. Ele estava pensando, não tinha como não estar pensando, mas sua retirada do centro das coisas, seu silêncio, faziam com que ele se tornasse mais presente e chamava mais atenção do que suas travessuras. Aqueles que mais o conheciam, e ninguém o conheciam tanto assim, tinham certeza de que não era algo calculado. Mors
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simplesmente tinha pontos em sua mente aos quais precisava ir, e ninguém podia segui-lo. Mas Mors era sexy, mais do que todos os outros. Os outros homens eram bonitos, claro, carregavam um ar de perigo e mistério que era a marca da não-morte, e a profunda paixão e violência de outro mundo que existia dentro da capa de ser humano. No entanto, Mors era mais. Ele costumava enfeitar a cabeça careca com brincos prateados de formas complexas, e usava muitos anéis que podia até pertencer à época dos romanos. Ele havia feito para si botas estranhas de couro preto que pareciam pele de dragão. Quando perguntavam como ele havia criado aquilo, ou quando queriam saber o que eram aquelas peças, ele apenas sorria de modo estranho e provocante. Com os lábios unidos, esboçando um sorriso em conjunto com o entortar de sobrancelha. Quantas meninas tinham saído de suas noites de oração, de épocas pagãs em diante, e se assustaram, surpreendidas pela vida do homem de cabeça careca com olhos brilhantes? E ele sorria para elas, que eram atraídas para aquele sorriso. Apesar de ele não ser alto, ninguém percebia, pois sua postura era imponente. Poder, era o que ele emitia. O poder havia atraído muitas delas a ele também, e ele nunca havia se importado. Nunca parecia se importar com nada. A vida era boa demais. Brigit sorriu. Devia ser adorável ser Mors. Na noite seguinte, eles telefonaram para a casa nouveau riche do general Michaud o mais cedo que tiveram coragem. Uma tempestade no fim da tarde permitiu que eles saíssem muito antes do que teriam feito em outros dias, e Mors comentou sobre o bom sinal e sobre a óbvia sorte deles. Brigit apenas concordou, segurando o guarda-chuva e concentrando-se no som de seus saltos batendo na calçada molhada. O ar estava levemente úmido e pesado, e um cheiro meio ácido podia ser sentido entre as árvores bem-podadas. A beleza de Paris não encantou Brigit naquela noite, e ela se recusou a se lembrar dos passeios noturnos pelo Sena ou pela Champs-Elysées com Eamon. Paris tinha sido um prazer primaveril, um lugar de grandes desabrochares e salões movimentados repletos de arte nova. Os Folies, a Comédie Française e Divina Sarah, juntamente com a música alegre e melancólica ao mesmo tempo, provocando e espetando a pele mesmo sob muitas camadas de tecidos pesados e casacos. E, claro, a comida. A comida francesa tinha um sabor especialmente célebre no mundo dos vampiros. Havia uma distinção, um tipo peculiar de ferocidade nela. Uma 179
individualidade que impedia os pratos de serem iguais e cada um se tornava inesquecível, seu sabor persistia como o de um bom vinho. A je ne sais quoi. Brigit não sorriu. Cada jovem que passava, olhando para ela com sorriso carregado de desejo, até notando a presença ameaçadora de Mors, exalava o cheiro da hipocrisia. Ou da cumplicidade. Brigit suspeitava de que havia passado tempo demais na Alemanha para perceber a diferença. Ou talvez meus sentidos não são com o eram. Nada era como antes. Ela sabia disso. Todos sabiam. Não discutiam em razão de uma mistura absurda de educação e superstição, mas era verdade. A armadura estava caindo. Duas garotas encolhidas embaixo de um guarda-chuva estavam dando pulos pelo caminho, porém caminharam mais lentamente para observar Mors. Aquelas meninas que tinham acabado de sair da escola, estavam descendo a rua à procura de sexo, e perceberam o poder no homem sorridente, ainda que ele estivesse com uma bela loira a seu lado. Mors lançou-lhes uma breve olhadela, sem interromper o ritmo em que cainhava. Brigit virou-se para olhálas, sem se impressionar com a expressão de afronta e de posse em seu rosto. Estava apenas interessada. As meninas olharam para ela, curiosas. Por fim, a mais velha desviou o olhar e levou a amiga para longe. — Chegamos! Brigit se surpreendeu com a casa e com o sorriso aberto de Mors. — Sim, chegamos. Ela não tivera a intenção de falar alto, e tentou se controlar. Esticou as mãos e ajeitou a gravata de Mors, lançando a ele seu sorriso mais brilhante, divertindo-se com o brilho nos olhos do vampiro. — Mas uma vez numa situação difícil, meu amigo. Ele pousou a mão sobre a dela. — Mais uma vez. Deixando os pensamentos para trás, eles se apressaram e bateram à porta. Uma empregada abriu a porta, uma moça simples e rude, um tanto jovem demais para já estar trabalhando, e Brigit suspeitou de que ela seguramente era filha de alguém que devia um favor. Ela fixou o olhar em Mors, com o queixo caído de modo muito engraçado, e Brigit teve certeza de 180
que não escutou nem uma palavra de seu cumprimento. Por fim, percebendo que Mors havia parado de falar e esperava que ela os anunciasse, ela moveu-se e correu pelo corredor. Infelizmente, a menina não havia convidado a entrar, então eles ficaram na escada, fingindo distração. Alguns minutos depois, o general Michaud saiu pelo corredor e se aproximou da porta. Ele era pequeno, tinha bigode e sobrancelhas grossas. Lançou aos visitantes um sorriso antipático. — Boa noite, receio que Berthe não tenha deixado claro para mim quem vocês são, nem o propósito do telefonema. Mors inclinou-se. — General, não tenho liberdade para falar tão francamente como eu gostaria, não estando aqui fora, mas tenho certeza de que meu assunto é extremamente sério, urgente e de grande importância para o senhor e para toda a França. Mors murmurou baixo, com o murmúrio forte muito diferente do de Eamon, mas muito eficiente e mortal. Mas pareceu ter pouco efeito no general, e então Brigit sorriu e sussurrou de modo sedutor. Por favor, por favor, por favor, por favor. Convide - nos. Estamos aqui para oferecer vida, não morte. Por favor, perceba isso. Convide-nos a entrar. O general olhou para o oficial alemão e sua amante de modo desconfiado. Por fim, concordou. — Major, entre. Mors entrou e sorriu sem ressalva ao general. — Esse convite se estende à minha simpática companhia? O general olhou para Brigit, e ela percebeu que Mors estava esperando tanto quanto ela que aquele homem de nariz protuberante, apesar de ser francês, estivesse apenas irritado com a imoralidade clara do relacionamento e que não estivesse pensando em outras possibilidades. — Entre. Dando ordem a Berthe para que se retirasse com a bandeja de refrescos da pequena sala, o general Michaud sentou-se diante de Mors e Brigit e franziu o cenho. — Digam o que querem, sejam rápidos, por favor. Tenho um jantar marcado.
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Mors inclinou-se para frente e começou a contar sua história com seriedade. Os olhos suplicantes de Brigit não se desviavam do rosto do general, apesar de ele evitar olhar para ela. Brigit o observou com atenção, desesperada para saber se ele estava mesmo escutando, prestando atenção, se importando. Acreditando. Acredite em nós. Tem de acreditar em nós. O general aproveitou uma pausa para acender um charuto. Depois de muito tempo, ofereceu um a Mors. — Agradeço por ter vindo aqui, major. Compreendo que deve estar correndo grande risco. Confesso que estou surpreso. Não pensei que pudesse haver pessoas no Reich que não fossem aliados completos. — Eu era um deles. Mas os planos atuais me deixam desconcertado. Com as terras na Polônia e a reunificação com a Áustria, parece que não existem motivos para continuar em guerra. Não consigo pensar em outra coisa que não seja o fato de que vai acabar causando mais dano ao povo alemão do que coisas boas. Acho que a Europa está mais forte com as nações claramente divididas onde estão, se me entende. Além disso, se posso dizer, grande parte da política atual a respeito daqueles na coletividade que não seguem a linha correta está crescendo demais para meu gosto. Parece, talvez, inadequado. Michaud sorriu, mas pareceu perplexo. Ele se virou novamente para os documentos que Mors mostrara a ele. — Admito que estes documentos me preocupam. Claro, não seria a primeira vez que os alemães subestimam a França. Sim, não raro parece que a maior parte da Europa subestima a França. Os ingleses fizeram isso mais de uma vez. E pelo que percebi parece que eles nunca aprendem. Mors tragou o charuto e sorriu. — Com certeza eu não subestimo a França. Tenho grande respeito pela história. Mas meu país está passando dos limites, talvez como a Inglaterra na Batalha de Agincourt, por mais que acreditasse estar certa. Essas coisas não importam agora. Estou preocupado com o futuro. Expressei minhas opiniões a meus superiores e elas são impopulares a ponto de minha companheira e eu não mais sermos bem-vindos na Alemanha. Ou, pelo menos, não sem sinais fortes de mudança. Não posso, em sã consciência, lutar contra a Alemanha. Não agora. O senhor entende. Estamos indo para a Suíça, ao menos pelo futuro próximo, até esses problemas serem acertados. Senhor os documentos são seus. 182
Imploro que os mostre a seus colegas. Conte a eles o que eu contei. Não é seguro que permaneçamos na França por muito tempo, caso contrário eu o acompanharia, mas, por favor, acredite em minhas informações. Eles pretendem ver suásticas por toda a Paris. A máquina se tornou muito poderosa. Mas ela ainda pode ser parada. O senhor pode fazer isso. Os olhos do general passaram de Mors a Brigit, e voltaram para Mors. Ela percebeu que Mors estava apreensivo e procurou se controlar. Não se lembrava de ter visto Mors totalmente intranquilo a respeito de qualquer coisa que fosse, mas ele não tinha poder sobre aquele homem e sabia. Mesmo assim, Michaud continuou analisando os documentos e os dois vampiros sussurraram o alerta ao redor dele, unindo os sons em uma cadeia de modo a envolver a cabeça do general, entrando em sua mente, pesando sobre ele a favor deles. Aparentemente após tomar uma decisão, ele colocou o charuto em um cinzeiro e sorriu para Mors. — Com licença um minuto. Ele foi à sala ao lado, deixando a porta entreaberta. Mors mexeu em pequenos ornamentos sobre uma mesa no canto da porta, empurrando-os para mais longe. Os vampiros observaram o general enquanto falavam sobre a bela decoração francesa mais alto que conseguiam. Michaud tirou diversos livros de uma grande pasta antes de pegar uma que deixou aberta. Ele passou os olhos por ela, olhando para os convidados de vez em quando. — É um livro sobre vampiros. — Brigit murmurou disfarçadamente, apesar de Mors saber. Ele lhe deu um cutucão. Michaud levou a mão ao telefone, mas olhou mais uma vez para as criaturas sentadas em seu sofá e mudou de ideia. Ele voltou e ficou em pé perto deles, com as mãos nas costas como se os dois fossem de uma tropa sob sua supervisão. — Se acham que estão me enganando, escolheram a pessoa errada. Não sou tolo. Se vieram me matar, agradeceria se não enrolassem e simplesmente fossem direto ao assunto para acabar com tudo de uma vez. Não vou gritar para não dar esse prazer a ninguém. Mors sorriu para Brigit e ficou em pé. O movimento foi muito rápido, ele nem parecia ter se movido, mas duas cruzes e uma estaca tinham caído das
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mãos tensas de Michaud, que agora estava sendo pressionado contra o papel de parede florido pelos dedos de Mors. — Se o senhor decidir ignorar tudo o que dissemos, general, receio que de fato será um tolo. — Mors informou ao homem, que estava trêmulo. — Pense o que quiser de nós, mas saiba que estes documentos são verdadeiros. Fique com eles. Mostre-os a seus colegas. Não sei quando os alemães virão, mas estão vindo. Que senhor é um homem raro, general. É um homem a quem minha companheira e eu trouxemos a chance de viver. Aceite-a. E reconheça. Se escolher manter a linha Maginot, bem, fica a seu critério. Não vai poder dizer que não foi avisado. Ele soltou o general, que endireitou o casaco e ergueu a cabeça. — Acho que os mais altos escalões do comando militar são muito capazes de tomar essas decisões. Posso acompanhá-los até a porta? — Não, obrigado. Mors pegou Brigit pelo braço e a levou de volta ao corredor. Ela se sentiu grata pela orientação, porque o fogo dentro dela estava ficando mais forte, e ela só conseguia se concentrar em caminhar. Queria matar e rir ao mesmo tempo. Quando chegaram a porta, Mors moveu a mão atrás de seu corpo, pegando a estaca da mão de Michaud e jogando-a no chão, fazendo-a se despedaçar. Ele virou-se ao assustado Michaud e sorriu. — Peça desculpas a Berthe por mim, por ter feito uma bagunça que ela terá de arrumar. A fumaça estava surgindo dos olhos de Brigit. Mors viu a tempo e a levou para fora, para a chuva forte que caía naquele momento. Ela jogou a cabeça para trás, abriu a boca e sentiu o alivio que a água trazia. Mors foi atrás dela, mas não resistiu e gritou para o general. — Aquele livro pode estar precisando de uma atualização, Michaud. Estamos velhos demais para essa arma. A porta foi batida. Mors abraçou Brigit e soprou o vento frio e pensamentos ao redor dela. Pegou mais chuva com as mãos e passou pelos cabelos dela. Ficaram ali por muito tempo, sem serem notados, esperando que a chuva espantasse os demônios. Quando Brigit estava fria, até gelada, Mors ofereceu o braço e eles caminharam de volta para a cidade. 184
— Se corrermos, poderemos pegar o último trem. ****
Foi o silêncio de Mors no caminho da volta que deixou Brigit tão inquieta. O silêncio dele era diferente de qualquer outro com que ela estava acostumada. Hostil. Saber que a hostilidade não era direcionada a ela era estranhamente não consolador. Brigit detestava estar tão chateada e detestava não ter nada que pudesse fazer. Ele a havia protegido e acalmado, mas ela, o que havia feito? Não entrei em histeria, o que acho que já é alguma coisa. Não tentei dizer nada que não tivesse sentido. O que poderia se dito? Os seres humanos estavam à beira da loucura, descendo bruscamente, e qualquer obstáculo que os vampiros tentassem armar seria derrubado. Brigit queria deixar tudo claro. Por azar Michaud percebera o que eles eram, mas certamente ele tinha consciência de que se eles o procurassem como pessoas, explicassem as coisas de modo razoável, tivessem provas da calamidade guardada para sua nação, não seriam levados a sério. Ele temia e os desprezava, mas por que não os respeitaria também? Mesmo assim, Brigit sabia que ele iria dormir aquela noite acreditando ter imaginado coisas, e nunca perguntaria a Berthe se eles eram reais. Plus ça change. Enquanto atravessavam a fronteira de volta para a Alemanha, Brigit acreditou que já podia ver os tanques passando pela região das Ardenas, as defesas Aliadas sendo derrubadas. Assustados, franceses, belgas e ingleses demonstravam surpresa com o poderio da máquina de guerra alemã e perguntavam-se como tinham sido totalmente vencidos. Brigit tentou imaginar o que Michaud diria então. Se ele for um homem de verdade, vai atacar com sua espada. Estava tarde quando eles chegaram em Berlim, e Brigit se lembrou de quando haviam chegado ali, e quanta energia e excitação sentia, especialmente Mors. Ela detestava o fato de ele estar se sentindo tão derrotado, tão apagado. Ela percebeu, chocada, que já fazia meses que ele não tocava sua música. Mors se satisfazia com a música, assim como Eamon, mas a dele era muito diferente. Quente. Quase irritada. Um véu excitante que atravessava os corpos. Era o que
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definia grande parte de seu jeito de ser. Brigit esticou o braço e apertou a mão dele delicadamente, esperando que aquilo representasse alguma coisa. Ele olhou para a mão, quase assustado, e então observou as ruas silenciosas, com uma expressão indefinida. — Certa vez, comi um louco. Eu queria ver o que aconteceria. Você nunca comeu? Brigit negou. — Foi como se o mundo estivesse todo virado, mas eu via tudo com perfeita clareza. Clareza, mas também aquela névoa, aquela confusão quando acordamos cedo demais, quando ainda estamos sonolentos. Você lava o rosto, espreguiça-se e até começa a se vestir, mas não tem certeza se foi um sonho. — Você é um mentiroso, Mors. — Brigit sorriu de modo desconfortável, pensando que aquilo parecia interessante demais para ser verdade. — Você une palavras porque gosta do som que elas formam. Não é à toa que sempre teve cães. Eles gostam de escutar você falando, e não importa se não significa nada. Ele prosseguiu. — Eu me senti sumindo, como se meu mundo estivesse descendo pelo ralo. Partes dele se soltaram e eu corri atrás delas, quase conseguia pegá-las, mas logo elas me escapavam. Eu conseguia ver tudo, mas pelo vidro escurecido, creio. Shakespeare entendia disso apenas um pouco, com Ofélia, porque não chegou ao medo. O grande terror de ver a si mesmo pelo vidro mas sem conseguir voltar para onde já se esteve e para onde deveria estar. Nunca antes eu havia compreendido como somos feitos de modo claro, mas separados... Mors hesitou e Brigit sentiu que ele estremecia. — Eu vi o demônio. Ela não quis olhar em seus olhos. — Vi a face dele. Era a minha face. Da qual eu pensava não me lembrar. Minha face. Mas invertida, despedaçada, como um espelho quebrado. A visão que uma criança teria de um rosto em um pesadelo. Ele não conseguia entender porque estava ali, como havia se transformado por dentro. A voz de Mors ficou mais baixa, mas manteve-se forte e insistente. — Ele é tão completo e ainda tão carente, o demônio que levamos dentro de nós, o amigo e inimigo que nos dá nossa razão de seguir em frente. 186
Mas eu não tinha razão. O demônio não sabia se voltaria, e o que teria feito então? Ele não pode se livrar e morrer conosco quando partimos, então ele correu desesperadamente dentro de mim, procurando onde eu estava. Eu quase senti vontade de confortá-lo. Mas a parte de mim que podia fazer isso estava presa do outro lado. Demorei horas para me restabelecer. Acho que o demônio nunca vai me perdoar. Brigit concentrou-se em caminhar, quase sem saber o que estava fazendo. Ela sentia como se Mors estivesse nu à sua frente, mas em vez de ficar vulnerável, ele havia esticado os braços e a segurado pela garganta, sorrindo de modo charmoso e sensual, aquele meio sorriso enquanto seus dedos apertavam o suficiente para alertá-la sobre a rapidez com que podia arrancar a sua cabeça se quisesse. Por um momento, ela não soube quem ou o que ele era. — Não vamos contar a história toda aos outros, ainda não. — ele disse, a voz voltando ao normal, apesar de a derrota e a frustração nela parecerem insuportáveis. — Talvez o tolo retome o bom senso. Ou se não acontecer, apareceremos nas próximas semanas. Estamos chegando perto, não é? Você tem se saído muito bem. Ambos sabiam que aquilo não era verdade, mas não estava na hora de apontar a verdade. Nada havia saído como eles haviam planejado. Aqueles arquitetos do novo Reich conduziam os negócios de um modo diferente, que tornava os sabotadores mais ineficientes do que poderiam imaginar. Até as portas que pareciam abertas estavam fechadas. As coisas eram realizadas de modo muito ruim, com as janelas abertas. As festas e reuniões noturnas, sempre poucas e raras, tinham se tornado ainda mais raras. As esposas, que eram tão dóceis, dedicavam-se totalmente à fórmula filhos/igreja/cozinha, e estavam tão presas no sonho quanto seus maridos. Não contamos com a determinação. Eles haviam esperado um castelo de cartas. Bem-construído, mas alguns indícios de discórdia aqui e ali e a coisa toda cairia. Parecia tão lógico. Todos tinham visto impérios ascender e cair, e sabiam como eram frágeis. Sabiam que era fácil usar tudo que sabiam, todas aquelas lições de história, e entrar, matar a fera enquanto ela ainda estivesse se erguendo. Mas a fera era maior do que eles. Ninguém queria admitir, mas era dolorosamente verdade. Brigit se questionava cada vez mais. O castelo de cartas era apenas um jogo de azar, o 187
que não deveria ter sido. Apesar de todo o poder, eles não passavam de jogadores em um cassino. E não importa quantos truques saibamos. A mesa sempre vai ganhar. — Brigit? Está bem? Ela não estava, e ele sabia, mas os dois fingiram que estava tudo certo. — Só estou cansada. O que era verdade. Tão cansada que por um breve momento teve uma alucinação em que viu a sombra de um ser humano por perto, observando, reconhecendo. Mas ela não sentiu nenhum cheiro e Mors havia voltado ao normal. — Sabe o que eu acho? — Os olhos dele brilharam. — Acredito que as próximas semanas vão nos mudar. Pense bem: eles estarão muito ocupados, muito concentrados no que estiver acontecendo com a França, que não vão prestar atenção a outros detalhes. Isso nos dará uma grande oportunidade. No mínimo, podemos invadir e causar uma matança. Você não está massacrada, não é? O sorriso malvado foi contagiante como sempre, e Brigit quis acreditar nele. Talvez tivessem mais uma chance. Qualquer coisa era possível. Talvez conseguissem levar uma mensagem sobre a inútil Linha Maginot para o Alto Comando Britânico. Ou, de fato, usar a energia concentrada em outros pontos a seu favor. Eles não sabem o que sabemos. Mais uma chance. Brigit esperava que eles conseguissem usá-la bem.
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Capítulo 15 Londres. Março de 1940.
A energia no West End estava alta naquela noite, e Eamon a absorvia com nervosismo. Ele quase não estava conseguindo se controlar, desejando ir para Folkestone, atravessar até Calais e de lá ir para Berlim. A situação estava ficando mais difícil, ele sabia, e queria tirar Brigit dali. Otonia concordara que eles deviam se preparar para voltar para casa. A decepção em seu rosto era clara, mas ela conseguia disfarçar bem. Afinal, eles sempre souberam que existia a possibilidade de aquilo não funcionar. Só porque ninguém havia dito não significava que era um fato desconhecido. Aceitá-lo era outra história. — Pelo menos eles podem tentar mais uma vez. Seria alguma coisa. Como Mors diz, se esse ataque à França ocorrer, eles podem ter uma chance. Ruim, mas precisamos aceitar o que vier. — Otonia disse, otimista e pragmática. Eamon sentiu vontade de entrar em contato com alguém ligado aos militares e passar a eles as informações cruciais, mas sabia que com aquela certeza familiar e terrível, não era possível. Todos no tribunal olhavam para ele de modo apreensivo desde o último telegrama de Mors, imaginando o quanto ele entendera e esperando que ele contasse o que estava ocorrendo, mas ele não podia. Estava concentrado em Brigit, no retorno dela. Não queria sentir mais nada. Mesmo assim, certamente, olhando para as luzes da rua e as marquises de teatro, conseguia ver tudo escurecendo, como se cada passo que desse fosse um passo atrás na própria história, em direção a uma época mais obscura e tranquila. Uma Londres no passado, uma cidade de possibilidade, e às vezes ameaçadas. Ele se afligia ao passar por homens de uniforme, alguns deles tão
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jovens, bonitos e cheios de vida. Eles estavam entrando na escuridão também e não sabiam. Um jovem soldado, jovem demais, um garoto que havia mentido a idade para escapar de uma vida tediosa no campo para se tomar parte do ambiente glamouroso que ele acreditava cercar os soldados, tentava acender um cigarro. Sua pose bem controlada ficava mais desanimada cada vez que não conseguia acionar o isqueiro. Eamon ficou com pena e ofereceu o próprio isqueiro, sentindo uma ponta de culpa por dentro, pois aquele era o isqueiro que ele usava para seduzir presas que gostavam de fumar. — Obrigado. — o soldado sorriu. — Quer um? Ele ofereceu o maço com generosidade. — Não, obrigado. — Eamon assentiu e estava seguindo em frente, mas o menino estava sozinho e desolado, e queria conversar desesperadamente. — Por que não está no exército? — Ah, eles não me aceitaram. — Eamon sorriu, balançando a cabeça em sinal de pesar. Mas isso poderia ser verificado no escritório de recrutamento. — Inteligência, não é? — O questionador de Eamon estava interessado, procurando algo intrigante a respeito do belo jovem quase com a mesma idade que ele, porém demonstrando mais firmeza e muito mais idade. Talvez houvesse um amigo sob todos aqueles bons modos, apesar de o homem parecer rico e estudado. Eamon cometeu o erro de olhar diretamente nos olhos alegres, verdes e esperançosos do garoto. Viu que eles eram frios, pálidos, abertos, olhando fixamente sem ver para um céu nebuloso por entre árvores escuras. Desperdício, desperdício, desperdício. Tantos infelizes na beira do abismo. Ele pressionou o isqueiro na mão magra do menino e sorriu de modo simpático. — No modo de falar. Agora, siga meu conselho e vá procurar uma menina bonita e se divirta. Divirta-se bastante, na verdade, — Eamon entregou ao menino surpreso duas notas de dez libras — divirta-se com nunca pensou que fosse possível. E ele saiu correndo, desesperado para não escutar nenhum agradecimento que pudesse ecoar em sua mente por mais tempo que 190
conseguiria suportar. Esperava que o menino encontrasse uma menina, esperava que ele sentisse a pele de uma mulher, que se prendesse à ideia do amor, que tivesse lembranças que o mantivessem contente enquanto sua vida estava se esvaindo naquela floresta congelada. Até mesmo a vida mais curta é comprida sem o amor. E a vida comprida só valia a pena apenas com amor, e por isso era que Eamon sempre se questionava como Mors conseguia viver, porque estava sempre sozinho, exceto pela companhia dos cães. Aparentemente, ele preferia que fosse daquele jeito. Quanto a si próprio, no entanto, Eamon sabia agradecer ao universo pelo que havia podido aproveitar todos aqueles séculos. Brigit podia ter parado seu coração, mas também o havia aberto. Se a música é o alimento do amor, não pare de tocar. E era o que eles faziam. Depois que a música começava, nada podia ****
Ter todo o tempo do mundo significa que a pessoa nem sempre o vê passar. Os anos se passavam, e mesmo assim Jacob mantinha um muro a seu redor. Brigantia tinha certeza de que ele sabia o que ela poderia ser para ele, que ela era um porto seguro, que era calor e felicidade. Mas ele hesitava em procurá-la. A distância era mais segura. Em alguns momentos ela sentia que ele estava com medo, receoso de derrubar as barreiras e entrar no amor. Havia um conforto, por mais frio que fosse, no mundo havia construído para si, e havia algo na ideia de abandonar aquele que o deixava irritado. Todos os anos em que ele tinha de ter sido selvagem tinham se perdido em uma névoa de contemplação, de culpa, de incerteza, mas haviam dado a ele um poder incomum. Otonia acreditava que Brigantia havia escolhido melhor do que imaginava, que aquele vampiro era a parte que faltava a ela, e ela, a parte que faltava a ele, e quando finalmente se deram as mãos descobriram que eram mais fortes juntos, até mesmo invencíveis. Os livros de histórias não saberiam o que dizer sobre eles, porque aquele não seria o tipo de amor que poderia ser expresso em palavras. Otonia, como grande respeitadora e crente nas palavras, considerava aquilo desconcertante, e ela nunca se sentia assim. Mas ela não disfarçava seu sentimento, e na verdade aproveitava a novidade.
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Tampouco sentia impaciente. O muro cairia, mais cedo ou mais tarde, e a dança seria algo incrível de ver. Enquanto isso, ela esperava com ansiedade. Jacob, no entanto, acreditava estar estagnado. Tanto Otonia quanto Brigantia poderiam ter dito a ele que estava enganado, mas ambas sentiam que seria melhor se ele descobrisse por conta própria. Assim como acabaria descobrindo quem era, e quem seria com Brigantia. Alguns caminhos são mais satisfatórios quando os percorremos sozinhos por mais frustrante que pareça aos outros. Era isso o que Brigantia pensava, mas Cleland, Raleigh e Mor não conseguiam compreendê-la e se calavam a respeito do assunto como ela preferiria que fizessem. Todos pensavam que Jacob — "Ele nunca vai decidir se por um nome?", Mors reclamava — era um melhor amigo para os calados e retraídos Swefred e Meaghan. — Vocês estão bem errados. — Brigantia dizia a eles. — Ele não é calado nem retraído. Deem um tempo a ele e verão. Ela viu Cleland e Raleigh entreolhando-se, aquele olhar de compreensão mútua, a falta de paciência e a vontade de rir abertamente de uma amiga que havia se envolvido completamente em uma ilusão, mas que um dia acordaria. Brigantia sentia vontade de explicar que o amor era uma criatura mais especial do que elas sabiam, e escolhia seu caminho maluco, fosse por natureza, por capricho ou simplesmente porque tinha de ser assim. Ela não podia a contar a ninguém o que havia acontecido antes da mordida, o que havia sentido dentro do homem e o que ele tinha vista em seus olhos. Aquilo não era algo que pudesse ser compartilhado. Havia acontecido, no entanto, e ela se prendeu ao fato. Nada mais poderia ensinála a ter paciência, exceto a lembrança daquele momento. Jacob queria dar a si mesmo um novo nome, queria assumir seu papel de modo adequado, mas a névoa persistia, e seu corpo estava dividido. Havia muitas coisas que estranhamente ele adorava sobre a vida de vampiro, o poder, a habilidade, a maneira com que sua mente se abria e absorvia tudo a seu redor. Caçar era uma aventura, e não seguia uma fórmula, cada vez era diferente. Nunca havia assistido a uma peça, mas ainda assim sabia que tudo aquilo eram elementos de drama, e que estava entrando em um papel, incorporando um tipo diferente de ser humano para cada garota, improvisando um novo roteiro, entretendo e chamando a atenção em uma plateia. A mordida era o clímax; o 192
sangue, o aplauso. Mas quando a cortina descia e ele voltava a ser ele mesmo, àquela meia vida na qual ficava preso, seu corpo era tornado pela culpa. Não havia nada a ser feito, mas às vezes ele pensava nos pais ou irmãos que encontrariam o corpo da moça que eles amavam, e ficariam arrasados no pesar, e desejava que as coisas pudessem ser diferentes. Os coelhos não podiam chorar quando as raposas levavam embora suas crias, e os cervos não podiam sofrer por muito tempo quando seus companheiros eram abatidos por lobos. Era um predador, não matava por diversão, mas, sim, para permanecer vivo. Era assim, todos eles eram, mas não significava que ele aceitava sua condição totalmente. Ainda não conseguia aceitar Brigantia e a maneira com que ela o havia arrancado de sua família. Havia guardado o buquê de ervas, mas ainda não queria olhar em seus olhos. Uma tarde, sem sono e tomado pela fúria, ele entrou na câmara de Brigantia. Ela dormia, e ele ficou ali, preparando-se para quebrar seu pescoço. Olhando para ela, sentiu nojo. Brigantia já estava morta, deitada ali sem respirar. Uma coisa pálida, sem cor, irreal. Uma imagem triste. Um acidente da natureza. Quando esticou os braços para segurar o pescoço da vampira, ela mexeu os olhos. Ele hesitou, mas ela não acordou. Ele viu que os olhos dela se moviam rapidamente sob as pálpebras. Suas faces estavam coradas e seus lábios começaram a se mover, esboçando um sorriso. Nós sonhamos. Seu sono desde aquela noite tinha sido agitado, e não se lembrava de ter sonhado. Mas Brigantia sem dúvidas estava sonhando, e talvez fosse um sonho feliz. Suas faces estavam quase coradas, rosadas e vivas. Ou talvez fosse o efeito da luz. Um dos braços estava dobrado em cima da cabeça, a palma da mão aberta. Sem saber por que, ele pousou um dedo na palma e ela fechou a mão, envolvendoo. Ele a observou por vários minutos, e então afastou a mão e voltou a dormir. Naquela noite, seu sono foi profundo e tranquilo. Na noite em que seria o aniversário de dezessete anos de Alma, Jacob vagou pela floresta por muito tempo, tentando não pensar. Quando voltou para as cavernas, viu Brigantia no jardim, que era pontuado por delicadas lanternas entalhadas que ela mesma havia feito. Seus dedos hesitaram em uma planta,
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apenas o suficiente para mostrara a ele que ela percebia sua aproximação, mas Brigantia não se virou. Ele pretendia passar pelo jardim e entrar, mas se viu parando, sentandose ao pé de uma árvore e observando Brigantia. Havia algo interessante na maneira com que ela criava vida na terra. Parecia impossível que as plantas se desenvolvessem tão bem com mãos que só as tocavam no escuro. Seus dedos eram ágeis, seu toque delicado, e ele viu quanto amor ela sentia por aquelas plantas, quanta paixão canalizava para elas, apesar de não serem necessárias para a vida dos vampiros, exceto pelo perfume doce que preenchia o ar. Mors, Cleland, Raleigh e Otonia a amavam, e Jacob tinha certeza de que ela os amava também. Mas havia algo nela e ele que ria saber o que mais existia sob sua pele. — A quem você deixou? — Ele perguntou. Ela inclinou a cabeça na direção dele com curiosidade. — Quando se transformou. — ele explicou. — A quem você deixou para trás, quem ficou sem você? — Ninguém. — Sua voz foi suave. — Os vikings assassinaram meu povo... Mas mesmo antes não havia ninguém. Nenhum deles me amava. Acredito que eu também não os amava. Jacob ficou dividido entre a raiva e a pena, mas então ela olhou para ele. Era a primeira vez que ele olhava nos olhos dela desde aquela noite, e havia se esquecido de como eles eram profundos, de como lembravam o céu de Yorkshire em um dia frio de outono. A honestidade deles tocou seu coração. Jacob olhou para ela, tentando pensar no que dizer. Ela sorriu com timidez, e apesar de ser um sorriso breve e triste, ainda assim tinha uma força que o aqueceu e causou um sorriso como resposta que ele tentou esconder virando a cabeça. Ele murmurou alguma coisa e caminhou em direção a caverna, mas parou e olhou para trás. Ela estava trabalhando de novo, com a cabeça abaixada, e ele se perguntou se Brigantia podia estar chorando. Sentiu algo que lhe atraia a ela, lembrou-se de que havia olhado para ela em seus últimos momentos de vida como ser humano e percebido que ela era o amor. Significara algo. E ainda significava, por mais que ele tentasse fugir. E por mais ressentimento que sentisse por ter sido tirado de sua obrigação, não podia deixar de perceber que tivera mais do que ela em sua vida. Tivera amor 194
humano, uma família que amava, que o amava também. Naquele momento ela podia ter mais força e conhecimento, mas ele tinha uma vantagem. Prometeu a si mesmo que não se esqueceria daquilo. Nas noites de verão, os vampiros vagavam ainda mais do que o normal, como se aproveitando ao máximo a escuridão que chegava tão tarde e desaparecia tão cedo. O pouco tempo não impedia que eles fiassem ao ar livre. Comiam os cheiros mais fortes, a sensualidade que surgia nos seres humanos, se não comessem os próprios seres humanos. Um vampiro podia se embriagar em uma noite de verão, uma tontura que durava dias. Jacob nunca tinha aproveitado uma noite de verão, havia algo nela que fazia com que ele se sentisse distante, solitário, e caminhar livremente pelo chão todo tomado por encanto e envolvimento parecia indecente. Mas naquela noite, ele se sentiu revigorado. A chegada do velho Jacob deixou sua pele mais bonita e seus olhos brilhantes. Ele passou por entre a floresta, dançou sob a luz da lua, encontrou-se na beira dos vales, não teve outra opção senão cantar. Não eram canções novas, canções que ele não sabia que tinha escrito, algumas sem palavras, e todas uma mistura dos dois mundos pelos quais ele havia passado com muita ansiedade e desconforto, mas quando unidos em melodia, eles eram maiores do que ele, maiores do que uma alma humana, maiores do que o ar. O eco se espalhou pela terra, entrando em qualquer pessoa e qualquer coisa que parasse para escutar. Desde mariposas e ratos, passando por homens mulheres e mais. Isso puxou Brigantia para perto, a ponto de ela sentir como se estivesse alojada mais profundamente nele do que o próprio demônio. Aquilo era música para se deixar levar, música que a deixava tonta, com sons tão sublimes, era como se todos os sons belos da Terra se unissem em um refrão idílico. Ela estava voando, rolando na grama e no urze, girando sob uma queda-d'agua. Ela pulava acima da copa das árvores, pulava nas nuvens, fazia piruetas nos rios. Estava se equilibrando em um céu azul e brilhante, flutuando em meio à luz do dia. A música de que ela tanto gostava em Mors era escura, excitante e volátil, mas aquela era evocativa em um plano totalmente diferente. Era o que os poetas esperavam definir, ou definiriam se soubesse que existia. A música de Mors emocionava o demônio e incitava o fogo, mas aquela música a preenchia com calor irradiante, com uma alegria tão pura e completa, e sabia 195
que mesmo que nunca mais tivesse um momento de felicidade na vida, ainda assim teria aquele som para acalmá-la, para fazê-la sorrir. Ele a viu, viu como ela era mais bonita com o rosto tomado por felicidade, viu o brilho de lágrimas mornas presas a seus cílios. Os tijolos da parede ao redor dele, brilhando com os olhos de Alma e Abram, começaram a ruir. Um dos olhos de Alma sorriu para ele. Sorriu e até piscou. Pelo buraco na parede, ele esticou o braço em direção a Brigantia. Ela o segurou, e quando eles entrelaçaram os dedos, uma nova canção foi adicionada ao repertório. — Sou Eamon. — ele sussurrou. — Jacob de Emmanuel morreu há muito tempo, e eu o deixei ir. Eamon é tirado de Emmanuel, como se fosse um vestígio, mas Eamon e um ser próprio. Eu entrei nele e não tem como voltar atrás. — Sim. — Brigantia assentiu. — Eamon. Acredito que sempre soube que você era ele, ou quem seria. Bem-vindo, Eamon. — É bom estar aqui. Ela ofereceu a mão e ele a pegou, enterrando o rosto na palma, beijando-a com uma paixão que não sabia que tinha. Ele se emocionou com a sensação do sangue subindo, enquanto ambos se lembravam de que aquela era a mão que ela havia levado a seus lábios em sua transformação. Ele a beijou, e ela, por sua vez, recebeu o beijo com gratidão, sentindo o perdão e o início de algo ao qual ela não ousava dar um nome, para o caso de ainda estar enganada. Nos olhos dele, ela viu os tijolos espalhados ao redor, uma sombra que se prendia com muita vontade. Os olhos dele se voltaram para os dedos dela, desejando seu toque, mas concordando que ele ainda não estava completo ali, ainda não muito preparado para dar o passo final. Mas estava chegando mais perto. De mãos dadas, eles voltaram ao refúgio ao longo do azul-escuro que antecedia o amanhecer e não trocaram nem uma palavra nem um olhar quando se afastaram. ****
Algumas semanas depois, em uma noite aprazível, Eamon se sentiu inquieto e irritado, sentindo que precisava seguir em uma direção, mas não
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conseguia encontrá-la. Ele se deteve na Rua Micklegate, desejando se mover, mas, ao mesmo tempo, sentindo-se insuportavelmente impotente. Brigantia se aproximou e pegou sua mão. — Acho que é por aqui. — ela disse, e ele seguiu, certo de que Brigantia tinha razão. Na curva da estrada, ela o deixou e ele seguiu sozinho. O músico se sentou em um tronco, a cabeça curvada sobre os joelhos magros. A rabeca ficou apoiada entre os pés, o brilho do instrumento contrastando com os sapatos velhos e as roupas puídas. Até mesmo um ser humano teria sido capaz de sentir o cheiro do desespero e da tristeza que ganhava os ares de modo tão forte. Ele olhou para cima quando Eamon se aproximou, com cabelos desgrenhados cobrindo olhos que estavam muito tristes, seu rosto magro aparentando muito mais idade do que ele tinha. Eamon não o surpreendeu, porque depois do choque de descobrir que a rotina era tão árdua e impossível, nada podia lhe surpreender. Mesmo quando Eamon ajoelhou-se ao lado dele e tocou seu braço, ele não se moveu. As poucas palavras saíram com facilidade, respondendo à pergunta que Eamon não havia feito. — A música não estava em mim, afinal. Eu a queria. Eu que persegui. Meu pai a tinha, mas eu só tinha o sonho. Pensei que bastasse. Bastou por um período. Um curto período. Tudo e todos a quem eu amava morreram, e eu ainda estou aqui. Mas não estou. Eu a devia ter vendido, eu sei. — seus olhos se voltaram aos contornos lustrosos da rabeca e demonstraram animação antes de se entristecerem de novo. — Mas eu não podia, não é? — É claro que não. — Eamon disse. Os olhos do músico se fixaram nos de Eamon, e aumentaram em compreensão e até prazer. Aquele belo jovem tinha a música. Ele tinha aquele brilho, a qualidade indescritível que não se ensina, que vai além do talento e da habilidade, e simplesmente é natural e sempre cativara. Ela existia em abundância dentro dele, transbordava, era o dom que ele dividiria com o mundo. Fosse para uma plateia de uma pessoa ou de centenas, ou de ninguém, aquele homem faria música que se espalharia pela Terra e permaneceria. O músico sorriu lentamente e parecia que fazia um grande esforço doloroso para sorrir, mas aceitava bem a dor. Entregou a rabeca a Eamon, que a pegou com adequada reverência. Apesar de seus dedos trêmulos, aquele 197
momento foi como ele havia imaginado exatamente. Ele a apoiou na coxa, levou o arco às cordas e tocou uma melodia que guardava desespero e contava uma história curiosa e interessante. Quando parou de tocar, Eamon olhou para o instrumento, tentando imaginar como tinha ficado tanto tempo sem ele. — Você é um vampiro. — o músico disse. Eamon olhou para ele surpreso. O músico deu de ombros. — Com uma música como essa, expressada dessa maneira, você deveria estar ofegante, com o coração palpitante. Você não respirou nem uma vez. Eamon sorriu. Não conseguiu evitar. — A rabeca é sua. — O músico sorriu em resposta, e com muito prazer. — Como tinha de ser. Ela o ama totalmente. Ganha vida em suas mãos. Quanto a mim, não quero um presente. Só peço duas coisas em retribuição. Que você encontre uma maneira de tocar o mundo além do seu e que me mande embora com tranquilidade e com uma música. Eamon compreendeu, e tocou uma melodia que envolveu o músico, fez com que ele fosse aconchegado em uma cama e o mandou para dentro de um sonho bom de infância. As mãos em seu rosto eram de sua mãe, macias e amorosas, e a volta foi tranquila e certa, de modo que o sorriso manteve-se em seu rosto, acima do pescoço quebrado. Brigantia ajudou Eamon a enterrar o músico, sentindo seu prazer na ausência de culpa pela morte e na completude de uma parte de sua jornada. Naquela madrugada, ele entrou na câmara dela. Eles não disseram nada, sabiam que haveria anos de conversas infinitas. Ele olhou para os tijolos de sua parede, que agora estavam quase transparentes. O som da rachadura e, finalmente, da ruína foi um som que ele nunca trocaria por uma outra canção. O rosto de Alma surgiu brevemente, suspenso em sua mente. Ela sorriu e assentiu, desaparecendo rapidamente, voando para dentro da pele dele para descansar em seu ponto especial dentro da alma parcial de Eamon. Ele esticou os braços para a criatura que o havia tocado mais profundamente, muito antes de chegar a tocá-lo. — Brigantia. — ele disse, saboreando cada sílaba com cuidado. Mas ela balançou a cabeça, sorrindo de modo estranho. Ele esperou. — Não mais, — ela disse — o nome de uma deusa não e mais adequado. Eu acredito que com você, conosco, eu tenho de... eu tenho de ser... 198
— seus olhos estavam marejados e ela se ajeitou para retomar o controle. Tocou sua palma e apertou as mãos deles nas suas e olhou em seus olhos com intensidade. — O seu nome é de um ser humano, e ainda existe vestígio de humanidade em você, e sempre existirá. E para estar com você adequadamente, da maneira que devemos ficar, quero ser mais e menos do que uma deusa. Quero ser algo mais próximo de um ser humano. O nome de deusa foi uma presunção, talvez, mas era adequado antes. Mas não mais. Agora eu sou Brigit, tenho de ser, não existe mais ninguém que eu poderia ser. Você e eu somos semelhantes, completamos um ao outro. Então, eu me afasto da deusa e entro em Brigit, e assim como você e eu conheceremos Eamon, também conheceremos Brigit. Ele afastou uma lágrima do rosto dela com um beijo, escorregou a mão por seu pescoço e olhou dentro de seus olhos. — Sim. — ele murmurou. — O aprendizado de uma vida toda. E eles finalmente se beijaram, um beijo que parecia não ter começo nem fim, porque era para ser. Ele soltou os cabelos dela, correu os dedos e depois o rosto por eles. Os lábios dela contornaram a orelha, o pescoço e o ombro que ela delicadamente desnudou. Eles foram muito delicados despindo um ao outro, deixando que horas transcorressem enquanto tecidos escorregavam e revelavam partes do corpo, grandes extensões de terra a ser exploradas ao longo dos séculos. A inexperiência deles foi um guia paciente, orientando-os a pontos sensíveis nos pulsos, dobras dos cotovelos, depressões do pescoço. Sentiram arrepios quando dedos e línguas descobriam a sensibilidade deliciosa em mamilos, a parte interna das coxas e de tudo que havia entre todas as partes. A impossibilidade da fisiologia, de corpos que eram cascos predominantemente, mas mesmo assim causavam calor e umidade, uma impossibilidade que permitia a ele deslizar profundamente para dentro dela e levá-los a uma longa jornada a essência do êxtase, era uma benevolência não expressa do dom obscuro. O demônio sentia prazer quando o corpo se banhava no desejo sexual, e era generoso o suficiente para permitir que os vestígios do ser humano interno entrasse em um banho mais quente e mais doce de amor. Ao longo daquele dia comprido e arrebatador, eles percorreram cada centímetro do corpo um do outro, descobrindo a si mesmos em todas as partes misturadas. Cada suspiro, grito e gota de suor era precioso, cada gemido era registrado na psique e se alojava nos corações silenciosos, porém dispostos. 199
Conforme as línguas se entrelaçavam, as entidades distintas acabaram e uma nova criatura surgiu. Eles estavam ligados de um modo único e tinham mais poder do que sozinhos, por mais que vivessem. Quando finalmente as palavras ganharam espaço, Eamon pegou mão dela e a pressionou contra seu coração. — Você agora é meu sangue. — E você é o meu. — ela prometeu. Algumas horas depois, ela riu de repente. — Diga-me. — ele sorriu, segurando uma mecha de cabelo e beijandoa. — Tínhamos de ter recebido uma maldição do Inferno, mas aqui estamos nós, tocando o Paraíso. Eles se aconchegaram abraçados, preparando-se para dormir. — Sim. — ela repetiu. — Paraíso. Devemos valorizar isto. Honrá-la e protege-la. Amá-la. Assim como vamos valorizar, honrar, proteger e amar um ao outro. E eu amo você, Eamon. Eu amo você. — E eu amo você. Minha Brigantia. Eu a amo. Você é a música. Você é tudo. Eles enxugaram os olhos marejados e dormiram o sono dos abençoados. ****
Foi exatamente como Otonia havia imaginado. A verdadeira união, em barreiras, daqueles a quem todos chamavam agora de Eamon e Brigit, era uma força a ser reconhecida. Era um fenômeno que Mors, Cleland e Raleigh observaram com interesse e surpresa. E de fato não havia nada escrito sobre ele nas lendas, porque poucos seres humanos acreditavam que isso existisse em qualquer lugar, até, ou talvez especialmente, no mundo obscuro e sub-humano dos vampiros. Certa vez, quando Eamon estava caçando, Mors se aproximou de Brigit em seu jardim. Ela entregou a ele um ramo de levístico. — Explique para mim, minha querida Brigatine, — ela percebeu que ele ainda não havia usado o nome Brigit — meu cérebro brilhante e poderoso não consegue entender essa confusão. Cleland e Raleigh têm um grande amor, e por mais que possamos dizer sobre Swefred e Meaghan, menos é melhor,
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geralmente, não se pode negar o amor dele. Leonara e Benedict, Althius e Allisoune... — Ele citou os nomes de alguns dos casais. — Mas você e seu Eamon são especialmente diferentes. Por que, velha moça? Brigit pegou um ramo de salsa e mexeu nele enquanto pensava. — Esta me fazendo uma pergunta que não tem resposta. — Não é isso que você mais gosta em mim? Ela riu, tirando o cão dele de seu canteiro. — Ah, Mors, e há alguma coisa que não se possa gostar em você? — Bem, essa é uma boa pergunta. Uma pergunta talvez para a qual não haja resposta. Ou, se formos totalmente honestos, uma para a qual não teremos tempo suficiente para responder. Ela esticou o braço e apertou a mão dele. — É verdade, meu amigo. Brigit e Eamon não questionavam o que havia surgido entre eles. Cuidavam daquele sentimento com cuidado, como se fosse uma planta delicada no jardim de Brigit. Conversavam sobre tudo: livros e poesias, as manias engraçadas dos seres humanos, traços do passado. Mas Brigit se calava sobre sua história. Mantinha-se segura na certeza do amor de Eamon. Mas não estava pronta para que ele soubesse sobre Aelric ou sobre o fogo. Por sua parte, Eamon não mencionava a culpa que o assolava, o caminho que sua mente às vezes tomava em direção a Alma e Abram. Ambos já seriam adultos naquela época, ele percebia assustado. Maduros, casado, com filhos. Como Alma seria? Uma beleza, sem dúvida, assim como a mãe deles, com cachos escuros indomados e olhos brilhantes. Mas o casamento e a maternidade não teriam sido perfeitos para Alma, não para a menina que se escondia atrás daquele sorriso meigo. Alma desejaria o que Brigit tinha: a chance de ler, de correr, de explorar. Mas se ela não soubesse que tal chance existia, teria importado? Eamon não conseguia parar de pensar nele, desejando poder voltar no tempo e trazê-la para perto. Ele também queria saber sobre o nascimento de Brigit como Brigantia, e como ela passara os 274 anos antes de encontrá-lo. Ela contava a ele algumas histórias, coisas engraçadas que geralmente envolviam Mors e quase sempre Cleland e Raleigh, mas ele a observava se afastar de detalhes e de perguntas, o olhar escapava, mas nunca tão rapidamente a ponto de ele não ver as nuvens que o cobria, e pensar se as coisas tinham sido de fato tão terríveis. Ele sabia 201
que ela confiava nele, e suspeitava que sua recusa em falar sobre o passado tinha de ver com a falta de confiança em si mesma. Mas a verdade chegou finalmente e foi revelada de um modo que ninguém desejaria. Teria sido contada em algum momento, mas foi apressada pela morte. ****
No aniversário de quinhentos anos de relacionamento, Raleigh queria visitar a Irlanda e o lugar onde ele havia criado Cleland. Cleland foi mais cauteloso. Raleigh o havia encontrado em uma cela de prisão, esperando ser torturado e morto depois de ter sido obrigado a testemunhar a morte de seu amor naquele dia. Foi engraçado quando a tribo encontrou a cela vazia, e mais engraçado ainda quando o casal voltou a tribo naquela noite, depois da transformação de Cleland, mas este não tinha sentimentos pela Irlanda e não sentiria nada se ela viesse a ser coberta pelo mar. Raleigh sentia saudade da música, e do movimento que era encontrado ali, e acreditava que agora, como um vampiro velho e poderoso, Cleland poderia encontrar algo para aproveitar e assim apagar um pouco as lembranças ruins do passado. Raleigh era um vampiro vibrante e bem-humorado, e era difícil negar qualquer coisa a ele. Quando Mors, Brigit e Eamon decidiram que gostariam de ir para a Irlanda também, Cleland cedeu. Eamon ficou encantado pela música na Irlanda. Ela era muito agradável, lastimosa, evocativa. Parecia chamar amantes há muito perdidos, prometendo fidelidade eterna. — Uma música assim poderia chegar à pessoa que se foi e puxá-la de volta aos braços de seu amado. — Brigit suspirou, e Eamon concordou, abraçando-a. Mors gostava das meninas irlandesas e de seu modo animado. Raleigh gostava dos lugares antigos e das histórias divertidas que ele podia contar de diversas explorações, das quais eles só acreditavam em metade. Até mesmo Cleland começou a relaxar e a pensar em momentos que lhe traziam lembranças felizes. Havia algo no ar que deixava todos incomodados, tornavam os demônios inquietos, mas o frio do vento despertava demais seus sentidos para que se importassem. Eles haviam sabido que os caçadores da
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Irlanda eram especialmente refinados, mas não eram jovens, fáceis de enganar. Deviam ser imunes. Era um absurdo o fato de nunca terem pensado naquilo, porque até mesmo Mors corria mais perigo do que imaginava. Alguns caçadores irlandeses sabiam como matar um milenar. Eles estavam indo a um lugar antigo que, acreditava-se, dava sorte a todos que ali entravam. Raleigh havia estado ali uma vez antes e foi correndo na frente, pedindo a Cleland que se apressasse. A voz dele mudou enquanto falava, e Mors chamou os outros três e usou seus poderes especiais para levá-los à floresta, mantendo-os em silêncio, mesmo com apenas duas mãos. Eles não perguntaram como Mors encontrara uma caverna, mas ele simplesmente os colocou ali e deixou que Brigit e Eamon cuidassem de Cleland enquanto ele buscava Raleigh. Voltou sozinho, com o rosto pesaroso, os olhos parecidos com o de um ancião. Abraçou Cleland, colocou as mãos sobre as orelhas dele e o ninou durante toda a noite e o dia seguinte. Ele, Brigit e Eamon ficaram sentados ali, horrorizados, escutando os gritos tenebrosos que eram emitidos, o longo e lento fim de Raleigh. Não sabiam que um vampiro ser torturado, e apenas muitos anos depois, lendo um relato sobre caçador, ficaram sabendo que ele tinha sido preso dentro de uma jaula e submetido a períodos curtos de sol ao longo do dia, tendo partes do corpo queimadas aos poucos. Apenas quando ele implorou que os caçadores o matassem, eles o fizeram, mas não rapidamente. Queriam que a diversão demorasse a acabar. Brigit não acreditou que Raleigh havia implorado. Aquilo tinha sido apenas algo para enfeitar a situação. Mas só comentou aquilo com Eamon. Entre ela, Cleland e Mors, o nome de Raleigh não voltou a ser mencionado. Os caçadores haviam procurado por eles, mas Mors sabia como levá-los para casa. Não era medo o que sentiam, tratava-se apenas de fúria. O fato de Raleigh ter sido morto era muito ruim, mas a tortura indicava algo mais, algo mais profundo. Os vampiros viam os caçadores com respeito, e naturalmente se mantinham distantes, mas aqueles homens se pareciam mais com feras do que com homens, e Mors e Brigit estavam determinados a vingar a marte do amigo. Otonia havia convocado uma reunião perto do rio. Eamon sabia que era um tipo de celebração, mas Otonia não queria chamá-la assim. Cleland não havia dito nem uma palavra desde que eles haviam retornado e estava sendo 203
observado. Otonia esperava que o fato de se lembrar de que existia amor e amizade ali, que muitos deles já haviam sofrido uma perda mas se recuperaram e encontraram o amor de novo, pudesse ajudar Cleland a aceitar. Brigit fez um buquê especial a ele para a cura e o consolo, e Mors e Eamon mostraram novas canções. Foi Meaghan quem lançou a discórdia entre eles. — Pelo menos você tentou fazer alguma coisa. — ela parabenizou Mors e Cleland. — Todos conhecemos alguém que não ergueu um dedo para ajudar quando seu criador foi atacado por uma estaca. Até mesmo Otonia ficou chocada. Meaghan raramente falava com qualquer um além de Swefred, e raramente alto o suficiente para ser ouvida. Por que desejaria fazer um insulto tão grande a Brigit? Swefred apenas olhou para ela embasbacado, e ninguém tentou intervir quando Brigit virou-se com olhos irados para a acusadora. — Se não se lembra, você não estava lá, por isso não sabe. — Brigit disse com os dentes cerrados. — Como se fosse preciso alguém estar lá! — Meaghan respondeu. — Você desprezava Aelric, isso não era segredo, e ficou aliviada ao vê-lo morrer. Você rompeu o código, devia ter sido castigada, expulsa, mas mesmo assim está apaixonada, como se merecesse esse amor! Vou dizer o que penso: acho que o vampiro errado morreu na Irlanda e se... O fogo explodiu. O círculo também. Mors estava mais próximo de Cleland e o segurou quando ele caminhou na direção de Meaghan com muito ódio. Leonora, a única vampira entre eles que já tinha visto o que podia acontecer com Brigit quando provocada, manteve sua atenção voltada a Swefred, que estava prestes a atacar Cleland. Eamon percebeu que algo de muito ruim podia acontecer, vendo as grandes chamas saindo dos olhos, ouvidos e boca de sua amada. Nem mesmo o grito de medo de Otonia, que silenciou os outros, não impediu Brigit de segurar os pulsos de Meaghan, mas as chamas a deixaram mal. Quase sem pensar, Eamon abraçou Brigit, ignorando a dor, e caiu com ela dentro de um rio. Eles foram levados pela correnteza por muito tempo, com Eamon segurando Brigit embaixo da água até sua pele ficar fria. Os olhos dela estavam fechados, e ele percebeu que aquilo estava ocorrendo, pois ela sentiu medo de
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olhar nos olhos dele, e não porque estava exausta. Ele pousou a mão em sua barriga. Estava fria e rígida. O fogo havia desaparecido. Era quase de manhã quando Eamon a levou de volta ao abrigo e ficou contente por poder entrar na caverna sem encontrar ninguém. Ela ainda estava molhada e ele pegou algumas toalhas e começou a secar seus cabelos. — Meu nome era Hilda. — ela começou, e apenas a rouquidão em sua voz mostrou que ela tinha quase se sufocado sozinha naquela noite. Lentamente, com muito cuidado, ela contou a ele sobre sua vida como ser humano, sobre Aelric e sobre o que havia ocorrido. Durante todo o tempo, Eamon ficou sentado em silêncio, secando os cabelos de Brigit. Já havia escurecido de novo quando ela contou a ele sobre os segundos dos quais se lembrava com terror, e daqueles primeiros anos tristes. Ela parou, percebendo quão cansada e sedenta estava, e finalmente olhou nos olhos dele. Eamon percebeu a dúvida neles, e ele a beijou muitas vezes, antes de dizer que, claro, era óbvio que aquilo não havia mudado nada. — Ou se mudou, foi apenas o fato de agora eu amá-la mais, agora que estou começando a conhecê-la de fato. E era verdade. Aelric e o fogo, tudo aquilo fazia parte de quem Brigit era. Eram parte de sua formação, desenvolveram-se na vampira que havia percebido as possibilidades nele. Amá-la significava amar seus traços negativos também, além dos elementos do passado dos quais ela se envergonhava. Eamon não se importava com nada daquilo, mas, sim, apenas com o fato de ela ser dele, e ele desejá-la cada vez mais. Cada detalhe era uma nota de uma canção que ele decidira que nunca terminaria. Então, assim como Sherazade, ela passou todas as noites dos meses seguintes contando sobre sua vida até chegar a ele, lembrando detalhes que não sabia estarem guardados dentro de si. As histórias abriram a vida dela, e ela se viu fascinada e gostando daquela criatura curiosa que agora se chamava Brigit. Eamon também estava se abrindo, e eles o estudaram com igual fascínio. A música sempre fluía dele, mais, agora que havia mais sobre o que cantar. Ele criava as canções a partir das histórias de Brigit, de seu riso, de seu choro, do vento. Brigit adorava cada uma delas, e todas eram mais satisfatórias do que o sangue conseguia ser, e quando ele cantava, ela se aconchegava perto dele, repousava a cabeça em seu ombro, pousava as mãos sobre seu coração, permitindo que a melodia transportasse a ambos. 205
Meaghan sentiu vergonha demais para pedir desculpas, por isso Swefred fez as honras. Foi quando eles voltaram de uma viagem de vingança para a Irlanda. Cleland havia voltado a se expressar, e às vezes era flagrado sorrindo. Brigit acreditava que ele havia gostado do encontro próximo com a morte, a consciência de que agora eles eram vampiros procurados. Talvez os caçadores irlandeses os tivessem seguido até a Inglaterra, mas a peste negra fez com que eles voltassem a se concentrar nos assuntos dos seres humanos. Eamon percebeu que a peste se aproximava e sugeriu que eles compartilhassem sangue de animais para se manter alimentados, e Mors e Brigit passaram a roubar porcos e carneiros; com isso, Meaghan se sentiu culpada. — Foi o fogo também. — Swefred explicou. — Ela não tinha a intenção de causar aquilo. Nós não acreditávamos naquela história. Ela sabe que você não permitiu que Aelric morresse de propósito. Ela só estava chateada naquela noite, assustada. Tivera um pesadelo no qual eu morria, e não Raleigh, e ela sabe que não pode viver sem mim. Não devia ter descontado tudo em você, e está arrependida. Brigit não se importava mais com aquilo havia muito tempo, mas ficou satisfeita. A comunidade estava em paz, como devia ser. ****
Uma noite, um pouco antes do início da Guerra das Rosas, Brigit e Eamon se sentaram no topo do Bootham Bar, um dos portões da muralha que protegia York, e observavam a cidade e sua vida noturna. — Vamos deixar York, eu acho. Todos nós. Em uma década aproximadamente. Ir para um lugar maior, mais rico. Brigit estava acostumada com aqueles comentários. — Vamos sentir saudade? Ele hesitou. Os vestígios das casas nas quais ele e os outros judeus haviam vivido não existiam mais, e a torre onde os judeus tinham morrido ainda era um lugar que trazia lembranças quando ele percorria a cidade. Mas a zona rural era bela, a nova arquitetura da cidade era agradável e havia lembranças felizes ali. O monte onde ele havia olhado dentro dos olhos de Brigit pela primeira vez, e tantos outros lugares, sim, eles sentiriam falta deles.
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Mas valorizavam a aventura mais do que a nostalgia, e ele sentia que boas aventuras estavam por vir. — Talvez não. Estaremos muito ocupados. — Mas você manterá tudo isso para nós. Afinal, "Eamon" não quer dizer "rico guardião"? — E certamente sou rico. Ele beijou a orelha de Brigit. — E eu sou um guardião. Seu, nosso, de... Brigit tocou o rosto de Eamon, sentindo que ele entrava em território perigoso. — De nossas almas. — ele concluiu. — Almas antigas, muito antigas. — Parece muito a ser protegido. Uma tarefa para dois, na verdade. — Sim. Sim, tenho sorte por ter uma parceira. Ficaram em silêncio por muito tempo. Quando Brigit voltou a falar foi com um leve arrependimento. — Não tenho uma alma. — Acredito que você tem mais e menos do que uma alma. — Como assim? — Não sei. Teremos de passar os próximos séculos descobrindo. Eles riram. Eamon acariciou a nuca, os ombros, mordiscou seu seio pressionou os lábios nas palmas das mãos dela de modo intenso, enquanto seus dedos se apressavam em despi-la, procurando pontos mais quentes e úmidos. Os gemidos que logo surgiram no topo do portão fizeram os seres humanos estremecerem em seus lares. Os mortos estavam vivos e fazendo barulho. Eles não disseram que Brigit dividia a mesma alma que Eamon. Aquele pedaço de alma era algo grande e poderoso o suficiente para abranger os dois.
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Capítulo 16 Trem de Basileia a Bilbao. Agosto de 1940.
— Você estava cantando de novo. Brigit esfregou os olhos e fitou Alma. — Eu o quê? — Às vezes você canta dormindo. Estava fazendo isso de novo, agora. — Estava? Alguma coisa em especial? — Nada que eu tivesse ouvido antes. Costumam ser... bonitas. As canções. Não consigo entender as palavras na maioria das vezes. Brigit suspeitava de que isso acontecia por que algumas das canções eram cantadas em inglês medieval ou com inflexões que não eram mais usadas. As crianças falavam inglês muito bem, mas não se podia esperar que os seres humanos compreendesse, as letras de Eamon. “Bonitas”. Sim, imagino que as canções pelo menos são bonitas. O que eu canto enquanto durmo provavelmente é totalmente suave. Ela ainda continuava conseguindo dormir apenas alguns minutos de vez em quando e teria preferido não dormir nem um pouco. Dormir era perigoso. O problema da alimentação estava se fazendo presente de novo, e ela estava determinada a esperar até a chegada a Bilbao para resolver a questão. Nada de refeições no trem, e deveria resistir a tentação de comer o que estivesse à disposição na plataforma francesa. Mas as crianças precisavam se alimentar. Brigit pensou que seria bastante seguro levá-las ao vagão do restaurante, o que seria menos estranho do que mantê-los dentro do compartimento e pedir sopas e sanduíches, como fizera no trem alemão. Ela não confiava nos suíços nem nos franceses, mas ali eles deviam estar pelo menos um pouco mais seguros e dispostos a deixá-la interpretar seu papel de babá. Lukas ficou muito contente em poder ir ao vagão-restaurante e disse à irmã que pediria um ensopado e comeria três pãezinhos amanteigados. Alma 208
disse que sua ideia era ótima. Ela também disse a ele, para alívio de Brigit, que o vagãorestaurante era um local onde as conversas tinham de ser feitas em voz muito baixa, e seria melhor que um menino grande como ele se concentrasse na refeição e só falasse quando a protetora deles ou ela mesma, Alma, conversassem com ele. Lukas concordou totalmente, ansioso pela experiência. As toalhas brancas das mesas e os conjuntos de talheres não o decepcionaram. Brigit percebeu que até Alma ficou contente. Seus pais não a considerariam grande o bastante para levá-la a um restaurante fino até aquele próximo ano provavelmente, e até mesmo os restaurantes judeus mais formais de Berlim já não existiam mais. Brigit sentiu uma sensação de alegria repentina por aquelas crianças, imaginando a vida que elas teriam em Londres, sem o perigo de serem consideradas indesejáveis, podendo ir ao teatro, apresentações, cinemas e restaurantes. A alegria logo foi substituída por um pesar. Elas fariam tudo aquilo com seus tios, e não com seu pai. Pelo menos não por enquanto, e provavelmente nunca. Bem, nunca ninguém disse que a vida era justa. Nem gentil. Eles estavam sentados em um canto e Brigit percebeu que gostava de supervisionar as crianças enquanto elas lidavam com os talheres e ensinava-as a ter cuidado ao pegar a manteiga. Afinal, uma guerra estava ocorrendo e, independentemente de onde estivessem, nada podia ser desperdiçado. As crianças se alimentaram de modo lento e prazeroso. Brigit não teve força para comer, a carne estava sendo engolida, mas dando a ela apenas mais vontade de se alimentar de verdade. O demônio estava faminto, mas simplesmente tinha de esperar. Alma arregalou os olhos ao olhar acima da cabeça de Brigit, que se virou para ver o que estava acontecendo. Ela não soube o que mais a incomodou: o sorriso malicioso do médico que olhava para eles ou a reação de apreensão demonstrada por ela e por Alma. — Bem, Fräulein, que prazer seguir viagem com você. — Doutor Schultze. — E você trouxe suas cargas para almoçar, que ótimo. Brigit detestava o tom da voz. Só servia para mostrar a ela que ele sabia sobre os três. Devia ter certeza de quem eram as crianças, e parecia desagradavelmente certo sobre ela também. Pela milésima vez, Brigit
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amaldiçoou o azar de uma situação em que não podia simplesmente matá-lo como o demônio implorava. As crianças terminaram de comer e repousaram os talheres atravessados sobre o prato. Brigit limpou os lábios com o guardanapo e sorriu para o médico. — Parece que as crianças acabaram de comer, então vou levá-los de volta para o pequeno possa dormir um pouco. — Que bobagem, eles ainda não comeram o pudim. Tenho certeza de que o mocinho ali gostaria de comer um. Os olhos de Lukas brilharam e ele estava prestes a dizer que queria a sobremesa, mas Brigit o interrompeu. — Já tenho um pouco de chocolate para eles, obrigada. Schultze quase contra-argumentou, mas Alma já estava em pé ajudando Lukas a dobrar seu guardanapo. O garçom que se aproximou pigarreou de propósito; havia outra família esperando pela mesa. Brigit forçou o sorriso para parecer um pedido de desculpas, e não uma vitória. — Aproveite seu café, doutor. Ele hesitou e a segurou assim que ela pisou no corredor. As crianças pararam um pouco à frente, nervosas. — Sinto muito, Fräulein, mas estou vendo que o menininho está meio pálido. — Primeiro eu e agora o garoto. Sinceramente, doutor, sei que é sua profissão, mas o senhor parece um tanto obcecado com a cor da face. Brigit riu, mas Schultze manteve-se sério. Apenas um brilho em seus olhos indicou que ele não estava satisfeito. — Posso atrasar meu café por meia hora para examiná-lo brevemente. O cochilo dele pode esperar? — Acredito que ele só está pálido porque está cansado demais. Viajar é algo exaustivo. Posso cuidar muito bem dele, obrigada, mas aprecio sua preocupação. Lukas bocejou. — O senhor está vendo? — Brigit perguntou ao médico. — Agora, com licença, preciso que me deixe ir. Ela aumentou a voz o suficiente para que duas senhoras distraídas que se dirigiam à cafeteria vissem a cena. 210
— Afinal, — Brigit continuou, aumentando a interpretação para sua plateia — a mãe do garoto confiou em mim para cuidar dele. Ela foi muito clara quanto aos horários de descanso dele. O coitadinho está com calor e muito cansado, e um exame agora só o assustaria. Por favor, senhor, deixe-me levar o garoto para dormir. As mulheres ficaram chocadas. — Impedir o menino de dormir! Que vergonha, o que significa isto? O médico levantou as mãos, acalmando as mulheres. — Sou médico! Percebi que o menininho estava pálido e ofereci-me para examiná-lo gratuitamente. Brigit ergueu a cabeça, ofendida. — Está insinuando que eu não seria capaz de pagar por serviços médicos? Ou talvez que eu pediria algum tipo de desconto? Apesar de as mulheres reconhecerem a autoridade de Schultze como profissional da saúde, sua atitude provocou críticas que ele ficou escutando. Ele se sentou novamente no vagão-restaurante e as mulheres se voltaram para Brigit com excesso de atenção. Elas a elogiaram, incentivaram-na e a guiaram de volta a seu compartimento, falando o tempo todo com rapidez e vigor, e Brigit mal entendia uma palavra. Ficou contente ao ver Lukas bocejar de novo, apesar de isso ter aumentado a preocupação de suas defensoras. Ainda que tenham partido logo, antes deram muitos conselhos sobre as melhores maneiras de colocar uma criança para dormir à tarde. As senhoras foram embora na hora certa. Brigit percebeu que tinha se distraído tanto com o médico que não prestara atenção nos raios de sol, que já entravam pelas janelas no lado em que eles estavam no corredor. — Puxa, quanta coisa. — Brigit disse com mais sarcasmo do que pretendia, acreditou que deveria se sentir agradecida por não ter sido abordada por Maurer também. Ele não estava trabalhando com o médico, e ela já sabia disso. — Estamos quase chegando, não é? — Alma perguntou. — Quase. — E vamos pegar uma balsa? — Por favor, não se preocupe. — Brigit.
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Brigit estava analisando os documentos de novo, assegurando-se obsessivamente de que eles não teriam problemas em Bilbao, que de fato embarcariam na balsa para Cork. O som de seu nome chamou sua atenção. Alma já tinha conseguido deixar de dizê-lo. Ela olhou para a menininha e viu a hesitação em seu rosto. Alma olhou para baixo para Lukas. — Ele está pálido. Era verdade, Brigit percebeu com uma pontada de medo. Havia percebido a indisposição da criança, mas pensou se tratar do cansaço e do tempo que passaram no trem. Mas ele de fato estava pálido. Quando olhou para ele, um tom esverdeado espalhou-se por seu rosto. Ela o levou ao banheiro na hora certa. Alma ficou em pé atrás deles, com os braços envolvendo o próprio corpo, lábios fechados e tensos. Quando Lukas finalmente terminou de vomitar e aceitou um pouco de água oferecida por Brigit, ele começou a chorar. — Eu tinha gostado tanto do almoço! — Ele gritou. Brigit esfregou as costas dele de um modo desajeitado e sem prática. — Tudo bem, não há problema. Vamos fazer você se sentir melhor e então você vai ter um jantar delicioso, eu prometo. Ele continuou a chorar, parecendo estar com dor, e Brigit percebeu que o corpinho dele parecia quente demais. Colocou a mão na testa dele, que gemeu. Mesmo com a mão fria, ela conseguiu perceber que ele estava com febre. A primeira coisa que pensou foi que o médico havia feito alguma coisa para deixar o menino doente. Não podia isentar de culpa nenhum dos homens que a estavam perseguindo, mas ao mesmo tempo não achava que tal atitude tivesse sido possível. Era apenas uma agradável coincidência a Schultze, que não devia de fato saber – assim como ninguém – que Lukas estava mesmo doente. Um exame completo detectaria a circuncisão, e seria o fim de todos eles. Brigit defenderia a criança, mas como já tinha sido avisada, seu fim seria espetacular, no entanto ela tinha um outro fim em mente para aquela viagem. Temporariamente perdi o interesse por coisas espetaculares. — Você acha que foi alguma coisa que ele comeu? Alma estava com as mãos unidas. Seu rosto estava quase tão pálido quanto o de Lukas. — Espero que sim.
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O sol continuaria alto e impiedoso na parada seguinte. Mesmo que pudesse se arriscar comprando remédios na loja de estação, simplesmente não podia sair. Possivelmente poderia fingir estar com dor de cabeça e pedir um favor às mulheres, para que buscassem uma aspirina, mas não tinha ideia de como ajudaria Lukas e do que dar a ele. Os únicos remédios que conhecia para indisposições eram ervas, e há mais de mil anos não tomava remédios de farmácia. Não sei com o que estou lidando. Ela manteve a palma fria pressionada contra a testa de Lukas, esperando que ele sentisse um pouco de alívio. Com sorte, seu mal-estar passaria logo e ninguém perceberia nada. Ou, se ele continuasse se sentindo mal quando saíssem do trem, ela podia fingir que ele estava dormindo. Quando estivessem acomodados na balsa, não importaria. Mas havia muitos passos a dar antes de entrarem na embarcação. Brigit tentou vencer sua preocupação. Alma já estava insatisfeita, e se percebesse como Brigit se sentia, poderia se descontrolar. Assim, Brigit sorriu. — Vamos dar um jeito. Você vai ver. Reúna sua coragem e fique perto de mim. Lukas vai ficar bem, assim como todos nós. Eu prometo. — E se você estiver enganada? E se eles nos pegarem? — Bem, não vamos facilitar as coisas para eles, certo? Pela primeira vez desde que eles haviam concordado com aquela viagem, um breve sorriso surgiu no rosto de Alma. Meia hora depois de deixarem Bilbao, Lukas estava pior. Havia vomitado diversas vezes e sua pele estava pálida. Mesmo sem um termômetro, Brigit sabia que a febre estava muito alta. Ele estava deitado no chão do banheiro, zonzo e delirando, e Brigit e Alma estavam colocando esponjas de água morna sobre sua testa, e Brigit desejava desesperadamente que a água estivesse mais fria. Ele mal se mexeu quando as duas deram um pulo e se assustaram com uma batida forte na porta. — Fique aqui. — Brigit sussurrou, fechando a porta do banheiro com firmeza, grata por terem conseguido um compartimento particular com banheiro. O dinheiro não resolvia tudo, mas certamente era útil. Ela soube, antes de perguntar, que era Maurer do outro lado da porta. O demônio despertou, e ela não o culpava.
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— Ah, sargento Maurer. — Ela sorriu, recostando-se no batente da porta. Sua voz estava simpática e casual, mas ficou surpresa com a presença dele. Ele parecia estar com calor e seu lábio superior estava tomado pelo suor. Ela percebeu, pelo odor, que ele não havia tomado banho. Foi com um olhar estranhamente assustado que ele olhou para ela. — Tudo bem, tudo bem, onde estão os pestinhas? — Como? — Ela ergueu as sobrancelhas. — Deixe-me entrar. — ele disse, empurrando-a. Ela o segurou pelo pulso com o máximo de força que conseguiu. — Eles estão tomando banho agora. — Tão perto de chegar? — Vamos pegar a primeira balsa que pudermos, e eu não sabia se teríamos outra chance. Agora, se me dá licença... — Ótimo, mantenha-os lá dentro. Não vai demorar muito. E ele entrou, batendo a porta do compartimento. Pareceu relaxar e sorriu. — Você poderia ter me deixado do lado de fora. Poderia ter me lançado longe se quisesse. Não é? — Não tenho a menor ideia sobre o que o senhor está dizendo. Só sei que não pedi para o senhor entrar, mas está aqui dentro mesmo assim. — Não tem ideia do que estou falando... Pensa que sou bobo? Sim, mas não pense que eu sou boba, homenzinho. — Sargento Maurer, por favor... — Nós dois temos algo de que o outro precisa. — Duvido disso. — Pare com isso! — Ele bateu na parede com mais força do que pretendia, e ela achou graça da cara de dor que ele fez. — Sargento Maurer, o senhor não me parece bem. Ele olhou para ela com ódio e desejo. — Não temos muito tempo. Mas acredite que posso ganhar mais tempo, se necessário. Existe uma certa flexibilidade. Acredito que seria melhor para você, para vocês todos, no entanto, se me ajudar agora. Faça isso e então poderei ajuda-la. — Infelizmente não entendo o que o senhor está dizendo. Ele partiu para cima dela, ofegante. Ela escapou. 214
— Sei quem você é, entendeu? Sei quem e o quê você é. O desespero em sua voz a deixou interessada, e ela resolveu escutar com paciência, o que ele interpretou como sendo um acordo. — Eu estudei sobre vocês, seu povo. Sei o que podem fazer. — Não muito, aparentemente. O que os irlandeses fazem além de tentar derrotar os ingleses, beber e dançar? — Pare, pare, pare! — Ele estava quase arrancando os cabelos e ela o observou com preocupação. — Vocês têm poder. — ele sussurrou, e a súplica em sua voz foi quase agradável. — Você tem um dom que pode me dar. Divida-o comigo. Eu quero ser mais forte, preciso ser mais forte, é a minha única chance. Faça isso para mim, e eu posso me livrar deles, posso garantir que sua viagem seja tranquila. Eu terei mais força, entende? E você, precisa de mim. Não sabe com o que está lidando, e está envolvida. Dê para mim o que você tem. Ela olhou abismada para ele. Era inconcebível que ele estivesse pedindo para ser transformado em vampiro. — Eu... não existe dom algum. Ele a segurou pelos ombros. — Tem, sim! Tem, sim! Já li tudo sobre isso, e todas as pessoas antigas contam como é. Vocês podem nos dar um poço de seu poder sem precisar nos transformar. Está em todos os livros. Brigit jurou que podia sentir o demônio se mexendo dentro dela, rindo sem parar. Os seres humanos frequentemente conseguiam se enganar com detalhes importantes. — Meu caro sargento, não pode acreditar em tudo o que lê. — Mas minha avó sempre disse... — Ou escuta. Ele olhou fixamente para ela, parecendo um adolescente mimado. Seu movimento foi rápido, porém demonstrava estar fora de forma. Brigit viu apenas uma estaca, e ele não tinha intenção de atacar, queria apenas assustá-la. Ela olhou para a estaca e depois para ele, curiosa. O apito do condutor ecoou por todo corredor. Todos aqueles que desembarcariam em Bilbao foram avisados para se preparar. Chegariam à estação em dez minutos.
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— Bem, sargento Maurer, foi uma ótima conversa, mas preciso arrumar as crianças. Com uma civilidade repentina que a deixou surpresa, ele guardou a estaca no bolso e assentiu. — Faça o que tiver que fazer. Mas saiba, Fräulein, que eu farei a mesma coisa. — Ótimo. Ele saiu do compartimento sem voltar a olhar para ela. Alma abriu a porta do banheiro, com o rosto pálido. — Lukas está melhor? — Brigit perguntou, mais por educação do que por esperança. — Não. Mas o que você fará com ele? — Ela mexeu a cabeça na direção tomada por Maurer. — Vou cuidar dele. Isso é o que eu tenho de fazer, lembra? Alma parecia insegura, mas assentiu, e elas se apressaram para vestir Lukas. Brigit mordeu o lábio ao ver a palidez dele, pegou um pouco de pó de sua bolsa e o maquiou com cuidado. Mesmo que não parecesse muito bem, pelo menos não parecia tão mal. O rosto de Alma também estava pálido e assustado, e Brigit passou um pouco de pó em suas faces também. Alma não resistiu e quis olhar no espelho, e Brigit se perguntou se ela estava imaginando como seria dali a alguns anos, quando se maquiaria todos os dias. Naquele momento, ela se mostrou desapontada, porque o toque leve de maquiagem de Brigit não mudara sua aparência. — E eu? Preciso de um pouco de cor? Alma esboçou um sorriso. — Não, você está ótima. ****
A estação era coberta e estava tarde o suficiente, de modo que Brigit, depois de vestir o chapéu e as luvas, não sentiu medo quando eles desembarcaram e seguiram em direção à balsa. Ela carregou Lukas, mantendo a cabeça dele repousada em seu pescoço, e não pareceria estranho que o menininho estivesse dormindo sob aquele calor com o qual não estava acostumado, e depois de uma viagem tão longa.
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A princípio Brigit tinha certeza de que eles ficariam bem. A baía era de um azul lindo, e ela apertou os olhos, certa de que poderia ver a costa da Irlanda a quilômetros dali. Poderia esperar pra se alimentar estando eles tão perto do destino. Um funcionário do porto parou diante dela sorrindo. — Sinto muito, señorita, mas a última balsa acabou de sair. — Pensei que havia uma balsa à noite! — Ela exclamou contrariada. — Não, señorita, esta noite, não. Mas há uma pensão à beira da estrada. Posso pedir a alguém que a ajude com a bagagem? — Eu... — Brigit estava irritada. — Sim, tudo bem. Mas diga-me, por favor: a que horas sai a primeira balsa pela manhã? — Amanhã de manhã? — Sim, amanhã de manhã. — Seus dentes estavam cerrados e Lukas gemeu quando ela o segurou com mais força. — Tem as passagens? — Claro. Nós as compramos em Berlim. O homem balançou a cabeça, sorrindo de novo. — Receio que essas passagens não possam ser usadas. A senhorita terá de comprar os bilhetes espanhóis. Deveriam ter mencionado isso. Sem dúvida, a guerra deixa eles todos distraídos. Brigit olhou para ele. Estava tomada de fúria, mas não era de se surpreender. — Muito bem. Onde posso comprar os bilhetes certos? — No escritório de expedição. Estão fechados agora, mas abrem às nove. Desanimada, ela perguntou a que horas partia a balsa. — Às nove em ponto. — Mas tem outra? — Ah, sim, os horários mudam um pouco, como pode entender. Os alemães e suas maneiras, não é? Temos de nos adaptar a eles. O escritório de expedição pode lhe dar todas as informações necessárias. Ele sorriu quando um carregador chegou com a bagagem. — Precisa de mais alguma coisa, señorita? — Não... sim, onde fica o escritório de expedição? — Ah! É aquela construção pequena ali. — Ele apontou, e Brigit viu com facilidade que não havia proteção ao redor do escritório, e não havia outra 217
maneira de chegar ali. Sentiu vontade de perguntar se a previsão do tempo era de que os dias continuassem ensolarados nos dias seguintes, mas não teve coragem. — Ótimo. Muito obrigada. — De nada, señorita. Ele fez uma reverência e acenou em direção à pensão. Ela e Alma caminharam lentamente, pensando as mesmas perguntas. Brigit só conseguia se concentrar na necessidade de estar protegida atrás de uma porta, para se esconder de todos os olhos hostis que deviam estar sobre ela.
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Capítulo 17 Berlim. Abril de 1940
Uma semana depois do retorno de Paris, Mors estava diferente, e não havia como culpá-lo. Os nazistas de fato se tornaram mais flexíveis com a distração. Eles estavam tão concentrados na derrota da França que se tornaram descuidados e, assim, muito mais planos foram descobertos e diversas outras mortes "encomendadas". Graças a Swefred, os vampiros puderam criar planos conflituosos e criar confusão, mas, para sua surpresa, a desordem logo foi resolvida. Mors escolheu não se preocupar. Ele estava ocupado demais tentando enviar cópias dos planos para alertar os oficiais na Grã-Bretanha e na Escandinávia. — Conhecimento é poder. — disse a seus companheiros. — Quando eles souberem para o que devem estar preparados, poderão planejar de maneira apropriada. Eles também estavam planejando a própria partida. Não queriam a atenção dos franceses e dos ingleses a respeito de seu alerta sobre a Linha Maginot, e concluíram que viajar pela França seria praticamente impossível. — Não tem problema, vamos dar a volta. — Mors afastou todas as preocupações com um movimento de mão. — Não acho que precisamos ir tão longe. — Cleland opinou. — Nossos documentos nos ajudarão a passar pela França se os trens estiverem funcionando. Eu me preocupo mais com a travessia do Canal da Mancha. Todos eles estavam preocupados com aquilo, menos por eles mesmos e mais pela Grã-Bretanha. Haviam descoberto os planos da Operação Leão Marinho21 e sabiam que se a França caísse, a amada Grã-Bretanha seria a próxima. Era inconcebível que os ingleses fossem atacados e que eles não 21
Plano nazista malsucedido de invadir o Reino Unido em 1940. (N.T.)
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estivessem ali para defendê-los. Mors passara a ser conhecido por sua esperteza no mundo vampiro quando Napoleão pensara que a Grã-Bretanha podia ser envolvida, e ele estava louco por uma chance de afirmar de novo. — Não seja muito ansioso. — Brigit alertou. — Queremos evitar tudo isso, lembra? Ninguém havia esquecido, mas conforme as semanas passavam, a ansiedade aumentava. Cada vez menos as coisas estavam saindo de acordo com o planejado. Nada que eles tentavam fazer parecia surtir efeito. Todos eles, exceto Mors, reclamavam de que estavam cansados, fracos. Como se estivessem carregando um peso maior do que conseguiam aguentar. — Vamos, vamos! — Mors dizia a eles. — A ambição deveria ser mais forte do que isso! É tudo uma questão de acreditar. Acreditar vai tornar tudo realidade. Brigit acreditava, mas sabia que aquele não era o problema. Estava ansiosa para compreender o que de fato estava acontecendo no partido e com ela, mas apenas não avançar estava tomando toda a sua energia. Gerhard estava sendo bastante maleável, até amigável, e ela havia descoberto muitos planos úteis por meio dos carinhos. Se ao menos eu tivesse a certeza de que eles serão usados de modo adequado. O problema era este. ****
Dinamarca. Noruega. Países valentes que se mantinham fortes, sabendo que não tinham chance. E então a grande batalha, começada e terminada rapidamente. No dia em que a França caiu, os vampiros se reuniram ao redor do rádio com os rostos abatidos. Muito antes de fotos e gravações serem apresentadas ao povo alemão, eles conseguiram ver tudo com muita clareza. A suástica adornando o Arco do Triunfo com soberania, os franceses dominados erguendo as armas diante de um sorridente Hitler. Brigit queria que um deles, um só, entrasse no comboio e perdesse a vida diante da liberdade e na esperança de vencer o opressor. Alguém para jogar uma pedra ou um ovo. Ou outra coisa. Qualquer coisa, menos aquela aceitação. Aquelas eram as pessoas que haviam demonstrado veemência e
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decisão de ver o sangue da família real derramado, das crianças ao próprio rei. E haviam dançado e comemorado ao redar das cabeças cortadas como se fossem mastros enfeitados para celebrações. Como podiam, menos de duzentos anos depois, concordar em ser governados por um rei novo, rude e desconhecido? Os ingleses a quem eles desprezavam tanto haviam permitido que um rei alemão governasse seu país. Desde quando os franceses queriam imitar os ingleses? Mas ali estavam eles, deixando que as coisas fossem daquele jeito. Os vampiros decidiram não pensar mais na França, país pelo qual nutriam apenas o mais amargo desprezo. Como Churchill, um homem a quem estavam começando a amar, dissera, a Batalha da França estava terminada. A Batalha da Grã-Bretanha logo começaria. A evacuação de Dunkirk agradou a todos, mas eles sabiam que não bastava. Todos redobraram seus esforços, esperando que ainda pudesse existir uma chance. — Aposto que poderíamos derrotar parte da Luftwaffe22. — Mors sugeriu. — Não deve ser muito difícil. — Teríamos de matar os guardas, invadir e então descobrir exatamente como danificar centenas de aviões. Conhecemos a localização dos hangares? — Brigit não era contra a ideia, mas a julgava impraticável. — Acredito que estou perto de descobrir. — Mors garantiu a ela. Então aquele era o plano, e eles sabiam que tinham poucas semanas para concluí-lo. Não teriam escolha além de ser bem-sucedidos, tanto para salvar o país como para evitar tentar ir para casa para defendê-la por meio da Irlanda, o que era perigoso para todos eles, especialmente Brigit, Cleland e Mors - ou teriam de encontrar um barco que os levassem às ilhas escocesas e subir em direção ao sul a partir de lá. Tudo aquilo envolvia a grande chance de serem expostos ao sol. Mas chegariam em casa. Sem dúvida. — Estou desesperado para beber uma Pimm's Cup — Mors reclamou. — E este pode ser o último ano que eles tenham o Torneio de Wimbledon, então eu me recuso a perder as finais. — Os outros imploraram a ele para não fazer tais piadas. Ele desprezou os comentários com desdém. — Por favor! É como se implorassem para uma raposa não roubar galinhas. — ele respondia. 22
Força Aérea Alemã. (N.T.)
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Brigit e Mors estavam atuando com seus contatos para descobrir a localização dos hangares. A necessidade por velocidade estava fazendo com que eles fossem muito devagar, e estavam sem vigor. Não conseguiam evitar. A Luftwaffe já tinha começado a envolver a Força Aérea Britânica pelo mar e havia pouco tempo antes de a batalha por terra começar. A maioria dos hangares ficava muito distante de Berlim, e os riscos envolvidos em chegar até eles eram grandes demais, especialmente com as noites sendo tão curtas. Swefred estava tentando encontrar um carro para eles, mas Brigit tinha certeza, por um comentário que Gerhard deixara escapar, que não havia apenas um hangar nos limites da cidade, mas uma fábrica de bombas. Dois alvos tão bons não podiam ser ignorados, e assim Brigit estava tentando descobrir os segredos de Gerhard com vigor renovado. Porém, cada vez mais com sua força diminuída, foi ficando impossível enganá-lo para acreditar que eles haviam feito sexo. Ela contou isso a Cleland. Era diferente para ele, uma vez que suas presas eram diversas mulheres. Ele não se sentiria sujo da mesma maneira, mas entenderia. — Eu teria mais energia se chegássemos a fazer isso, tenho certeza, pois sei que estou me desgastando sem necessidade, tentando provocá-lo com visões, mas não consigo suportar. Eu detesto quando ele me toca, mesmo por cima das roupas. — É claro que sim. Mantenha-se firme, Brigit. Não vai durar muito mais tempo. — Mas todas as noites são uma tortura! — Ela sabia que estava resmungando e se detestava por aquilo. Cleland apertou sua mão. — Pode perguntar a Meaghan como ela está se virando. — ele sugeriu. — Eu poderia fazer isso — ela admitiu. — Mas não tem comparação. Ela se revigora com Swefred toda manhã. Ele deve estar mantendo-a mais forte. Eles parecem melhor que nós, não é? Ela falou com pouca certeza, mas sabia ao olhar para o rosto dele que tinha razão. Os dois estavam bem abatidos. Não era algo que uma pessoa de fora do convívio deles perceberia se não olhasse com atenção ou se não soubesse onde e como analisar, mas eles podiam perceber isso olhando um para o outro.
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Cleland abriu a boca para responder, mas a fechou e puxou Brigit para um abraço apertado. Ela ficou surpresa, mas grata. Eles se abraçaram por muito tempo. Por fim, ele murmurou: — Não vai demorar muito agora. ****
A decisão de Brigit em acreditar em Cleland tornou a noite com Gerhard muito agradável. Ela havia roubado uma garrafa excelente de bebida da tia inválida e cerca de metade foi ingerida pelo jovem alegre que, por finalmente ter recebido uma promoção, também havia tomado a grande decisão de comprar uma garrafa de champanhe e estava feliz demais para perceber que não estava dividindo grande parte da bebida com sua querida amante. — Estamos chegando, estamos chegando! — Ele cantarolou, dançando com ela pelo escritório de seu superior. Aquele era um território totalmente proibido, mas era uma noite para se esquecer dos cuidados. — E para onde vamos? — Brigit perguntou. — Aonde seu coração quiser. Paris, depois Londres e talvez Nova York. Em breve o mundo será o fantoche da Alemanha. Não é maravilhoso? — Estou muito animada! Ele sorriu e pediu um beijo, acabando com a boca cheia de cabelos. Ela riu sem parar. Ele fez uma careta, mas então decidiu rir também. — Você é uma menininha cruel, e deve ser castigada de acordo. — Ooooh, castigada, não é? Bem, não tenho muita certeza disso. — Mas eu tenho. Muita, muita certeza. Ele tentou beijá-la de novo, com desejo. Ela manteve os olhos abertos e analisou a sala, percebendo um arquivo de carvalho e uma mesa em estilo rococó que, para sua agradável surpresa, não estava trancada. Com mais um longo gole de champanhe, Gerhard saiu para ir ao banheiro, dizendo que Brigit devia se comportar enquanto ele estivesse ausente. Ela agiu rapidamente, analisando os diversos arquivos com olhos treinados. Munições guardadas ali, munições fabricadas lá, detalhes das extensões do bombardeio inglês, que ela analisou, mas nada que servisse para os propósitos imediatos que eles tinham. Grandes carregamentos de armas
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preparados para a Polônia e outros... Brigit parou e analisou os papéis com mais atenção. Leu diversas vezes, ainda sem entender exatamente o que lia. — O que está fazendo? A voz de Gerhard soou fria de medo e raiva, mas ela não se importou. — Para que vocês precisam de tantas armas para países que já foram dominados? Um traço de poder em sua voz fez com que ele se esquecesse da espionagem. Ele respondeu sorrindo. — Para a purificação, claro. — Purificação? — Você é uma moça ingênua. Sim, purificação. Não basta tirar um povo de um país ao qual ele não pertence. Ele continua existindo, não é? A Terra deve ser adequadamente limpa. Já disse isso muitas vezes. Você não tem memória boa. — Judeus. Vocês vão matar os judeus. — Aquela não foi uma pergunta, mas ainda assim ela não estava acreditando, sentindo nojo por isso. — Está tudo planejado. Muito limpo e silencioso. Envolvê-los, afastálos, fazer com que cavem suas covas, e acabar com eles. Eles entrarão no solo e vão fertilizá-lo. Algum propósito para eles, afinal. Se quer saber, acho insuficiente. Acho muito insuficiente. Existem muitos deles... Ele continuou falando, mas Brigit se desligou. Já sentia o fogo crescendo. Não, não, não. O demônio controlou o fogo. Ele sentiu uma mudança interessante nos acontecimentos e queria estar mais do que pronto. — Por que estão fazendo isso? — Um gosto nada familiar surgiu na garganta de Brigit. Ela acreditava ser bile. — Não quer viver em um mundo limpo? — Ele ergueu as sobrancelhas. — Acho que você não entende o sentido dessa palavra. Gerhard tomou um longo gole de champanhe, olhando para Brigit. Uma risada lenta se formou enquanto ele caminhava na direção dela, ameaçadoramente. — Você não tem como saber tudo o que sabemos. Acho que você pensa que é esperta, mas é uma menininha participando de um jogo. O Terceiro
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Reich, não estamos para brincadeiras. Talvez fosse o momento de você aprender isso. Ela tentou imaginar a quanto tempo ele sabia que ela era uma espiã, e o que sabia sobre ela. — Você tem uma dívida comigo, creio eu. — ele disse a ela ao beber o restante do champanhe. — Que dívida? — O que você não me deu como eu quero. Ele enrolou os cabelos dela e os pressionou contra a parede. Ela e o demônio estavam muito impacientes para truques verbais. Ela escapou dele e estava prestes a atacar quando ele bateu a lateral de sua pistola na parte mais macia da cabeça dela. Aquilo teria tirado a consciência de um ser humano, mas não a dela. Entretanto, ela ficou abalada e isso a fez rosnar de raiva no carpete, e ele teve oportunidade de virá-la e arrancar suas roupas. Botões voaram para todos os lados. Ela olhou fixamente para o rosto dele, abismada demais para revidar quando ele rasgou a alça de sua blusa e esforçou-se para tirar seu sutiã. O que havia de errado, onde estava seu poder? Oh. Oh, Eamon. É a comida. É claro, tão simples. A comida. É suja demais. Faz c om que percamos a força. Um ódio gelado mais forte do que o sangue pulsava por seu corpo. Ódio pelos nazistas, pela Alemanha e por todos os alemães que gostavam do mundo que estavam criando à custa do sangue de outras pessoas. E ódio por Gerhard, por aquele homem sedento e nojento, desesperado por uma transa. Se ela fosse uma mulher ser humano, ele não se casaria com ela, nem mesma se estivesse grávida. Ela não tinha contatos, não tinha dinheiro. Ele estava idealizando um novo império, um mundo de príncipes, duques e barões alemães. Ele seria um nobre e sentiria a adulação dos pobres. Ela não passava de uma cartilha a ser estudada, e uma diversão. Seus olhos estavam vermelhos de raiva, mas ele não viu. Estava em uma viagem diferente. Apertou seus seios com força, causando dor, e Brigit, horrorizada, sentiu que algo parecido com lava saía de seus mamilos. Tentou pensar em uma canção calmante, mas tudo nela havia parado de funcionar. Eamon! Eamon! Mas sua mente podia estar chamando o demônio, pois foi ele quem respondeu. Ele tinha esperado muito tempo perto daquele ser humano 225
mesquinho e estava faminto. A língua dele passou pelas costelas delas, suas garras arranhavam sua pele por dentro. O grito de Gerhard chamou sua atenção. Ele havia queimado a mão em seu seio. Ela não conseguia mais dominar o demônio. Isso ou Gerhard venceria, e ela confiava mais no demônio. As presas nunca tinham surgido de modo tão lento, cada músculo parecia rachar enquanto seu rosto se transfigurava e o demônio surgia. Gargalhou ao ver os olhos arregalados, os gritos e os tremores de Gerhard. O demônio segurou o jovem, querendo tocar o terror, querendo sentir o coração aos pulos do rapaz. Mas assim que as garras atingiram seu peito, o corpo dele parecia ter se tornado líquido e escapado de Brigit. Ela olhou fixamente para Gerhard por muitos minutos, perdendo o ânimo. Era impossível, não era justo, simplesmente não havia como aceitar que ele tivesse morrido de ataque cardíaco. É verdade que ele bebia, mas os alemães costumavam tolerar bem o álcool. E era verdade que ele não esperava que aquela moça fosse uma vampira, mas os nazistas costumavam ser durões. O demônio bateu no peito de Brigit, mas não havia nada a ser feito. Ele havia morrido. Mas nós o matamos. Nós assustamos até a morte. O demônio não estava calmo, mas não havia tempo. Ela vasculharia o escritório a procura de papéis, deixando tudo parecer que Gerhard estivera trabalhando com uma espiã que o traíra. Ela não sabia exatamente como aquilo seria feito, mas estava determinada a tirar a confiança daqueles monstros disfarçados de homens. Meia hora depois, encontrou o que estava procurando. A localização de um hangar, pequeno, mas que compensava pela grande fábrica de bombas próxima, com muitas bombas. Ela guardou tudo na memória e percorreu o escritório como uma louca, espalhando todos os papéis. Eles levariam horas para arrumar tudo e dias antes de terem a certeza de que tudo estava ali. Mesmo assim, não ficariam tranquilos, porque se nada havia sido levado, significava que todas as informações estavam seguras? E se não, o que deveriam fazer? Era tarde, e ela deveria ir embora, mas não conseguia parar de olhar o corpo de Gerhard. Aquele homem terrível fizera parte de sua vida por muito tempo. Houve seres humanos que ela conhecera rapidamente ao longo dos 226
séculos e dos quais gostava, geralmente no teatro, mas era diferente. Ela chegou a uma conclusão. Sabia que ele não era um bom representante da raça humana, mas enquanto dava diversos chutes em seu corpo, sentiu com absoluta certeza que os vampiros eram os seres superiores. ****
A morte de Gerhard e todas as perguntas que levantou chamaram a atenção no círculo interno, e Mors recebeu tudo aquilo com alegria. Também ficou feliz em saber que as noites de Brigit estavam livres para que eles pudessem arquitetar melhor o plano. Ele soubera que dentro de poucos dias ocorreria um forte bombardeio, e eles queriam atacar o mais próximo que pudessem para criar o maior susto e caos que pudessem. Swefred também estava de prontidão. Havia preparado documentos impecáveis para a viagem de volta para casa, cobrindo todas as circunstâncias possíveis, e gastara todos os marcos de que dispunham. Ofereceu-se para ajudar Brigit em seu planejamento, reunindo todas as informações que conseguia sobre os melhores meios de sabotar máquinas e bombas. Eles agiram com rapidez e discrição. Até mesmo a hora da alimentação era rápida. Brigit estava com pouco apetite, mas concentrou-se em encontrar oficiais da SS, pensando que se não se sustentaria, pelo menos derrubaria as forças de Hitler. Certa noite, na primeira semana de agosto, quando a escuridão chegou finalmente, os cinco vampiros partiram na tentativa final de abalar as estruturas dos pianos nazistas. Apenas Mors estava animado e ansioso, enquanto os outros se sentiam desanimados pela sensação de fracasso e ficaram apreensivos com a viagem de volta para casa. Mas ao se aproximarem do alvo, a emoção do caos iminente que eles estavam prestes a causar tomou conta de todos. O plano era duplo. Os aviões do pequeno hangar demoravam mais tempo para ser construídos do que uma bomba. A fábrica tinha apenas trezentos metros a oeste, mas em um espaço totalmente aberto. E eles se preocuparam com o fogo que criariam na explosão. No entanto, Brigit e Swefred haviam descoberto que havia a rede de esgoto e uma entrada para o metrô perto do pátio da fábrica nos dois lados. Assim, podiam escapar com rapidez e sem problemas.
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O hangar não estava sendo protegido, e seria fácil abrir os portões, mas mesmo uma abertura pequena, apenas o espaço necessário para que entrassem, fazia um barulhão terrível. — Deixem os portões abertos — Mors ordenou. — Vai ser mais fácil escutar se alguém se aproximar. Havia cerca de cinquenta aviões pequenos no hangar. Saber que a Luftwaffe tinha mais de quatro mil aviões à sua disposição, muitos dos quais estavam partindo para a Grã-Bretanha naquele momento, não era muito animador, mas um pouco era melhor do que nada, e eles continuaram trabalhando em silêncio. Brigit gostou da simplicidade da tarefa, do ato de abrir os motores, tirar e reconectar fios que causariam a explosão. Eles não se apressaram, procurando se concentrar em realizar a tarefa adequadamente. Eram quase três da manhã quando terminaram, o que deu a eles muito tempo para cuidar da fábrica, mas Brigit ainda amaldiçoava o horário, pois eles só haviam conseguido sair para a missão depois das nove. Era muito injusto que os nazistas pudessem aproveitar a conveniência de dias longos de verão enquanto planejavam seus ataques. Se ela não conhecesse a realidade, diria que eles haviam planejado aquilo de propósito. Mors fez sinal de alerta quando eles se aproximaram da porta, mas não foi preciso - todos sentiam o cheiro de seres humanos por perto tão bem quanto ele. Mors sinalizou que havia nove homens longe da entrada. Aquilo não parecia motivo para preocupação - à velocidade que estavam, eles entrariam na fábrica antes que os homens percebessem. Mas todos perceberam a aproximação de mais homens, sentiam que eles estavam no telhado da fábrica. Nachtspeere. As criaturas ignorantes que eles desprezavam, vistas como muito impotentes diante da superioridade deles, quase todas aparentemente estavam do lado de fora esperando. E elas haviam abandonado suas balestras e estavam usando outras muito maiores, com flechas com óleo na ponta, prontas para incendiar. Tinham até machados. Os vampiros estavam ali, tentando entender como os Nachtspeere haviam localizado todos eles com tanta eficiência. E sentiram o cheiro inconfundível de caçadores irlandeses. Cleland e Brigit se tocaram e Meaghan encostou em Swefred. Eles sabem. Já sabiam. Talvez não há muito tempo, mas por tempo suficiente. 228
Não houve tempo para reflexão. Eles voltaram para o centro do hangar, onde tinham certeza absoluta de que não seriam ouvidos. — Não me importo em saber como eles descobriram e, nenhum de vocês deve perguntar — Mors começou. — O que podemos usar como arma? — Poderíamos reprogramar um dos aviões e partir com ele. — sugeriu Swefred. — Nós os danificamos demais. — Brigit respondeu, tentando imaginar se os homens do lado de fora também sabiam daquilo. — Não tivemos tempo de preparar a fuga, e eles cercaram a área. — Mors murmurou mais para si mesmo do que para os outros, que já sabiam daquilo. — Não sinto o cheiro de um homem que poderia matar um milenar — Cleland disse. — Não gosto daqueles machados, mas se estivermos em velocidade máxima, correndo em zigue-zague, nem mesmo um grande caçador terá uma mira tão boa. — E ainda está escuro. — Meaghan disse de modo confiante, surpreendendo a todos. Mors olhou para as janelas altas viradas para o leste, nas quais mais homens com tochas estavam posicionados. — Mas não por muito tempo. O ponto fraco é a entrada. Não tem como sair sem que eles nos vejam ou escutem. Mesmo com o máximo de rapidez, vamos ter problemas com aquele maldito portão. — Ele tamborilou os dedos na cabeça. Brigit percebeu que ele estava entrando em pânico. Nunca tinha visto Mors em pânico, e o demônio dentro dela ficou gelado. Cleland e Swefred estavam esperando que Mors prosseguisse. Apenas quando olhou para Meaghan, Brigit viu alguém que conhecia a única chance deles e que estava resignada. As duas mulheres assentiram e Brigit anunciou. — Temos de esperar. Até um pouco antes do amanhecer. Deixá-los cansados e tensos. Criaremos confusão em pontos separados, deve bastar. Como Cleland disse, vamos em zigue-zague. Sabemos como chegar lá, não é muito longe, daremos dois minutos a nós mesmos. Eles não estarão esperando. Podemos até criar uma ideia de armadilhas. Mors, você ainda tem poder para isso. Eles estão prontos há muito tempo, estão cansados. Não é uma grande oportunidade, mas é tudo o que temos. — E a obstrução? — Swefred perguntou. 229
Meaghan sorriu e mostrou a eles o trunfo. A bomba que usariam para destruir a fábrica de bombas. — Se estourarmos a porta, eles terão mais dificuldades para nos ver saindo. Mors acariciou o queixo de Meaghan. — Perfeito. Não podemos desperdiçar nosso esforço. — Então saímos... — Cleland disse. — E corremos com muita velocidade. — Meaghan completou, e não houve comentários. Alguns minutos antes do amanhecer, tudo estava muito parado e silencioso. Os vampiros conseguiam sentir o cansaço de seus candidatos a predadores e ficaram satisfeitos. Eles estavam muito ansiosos. Brigit teve de admitir que ação prestes a ocorrer e perigo provocavam excitação. Eles haviam passado muitos meses sendo cuidadosos e estáveis. Agora, tinham de usar toda a força e poder. Os demônios estavam exaltados. Brigit gostaria apenas de não se sentir tão esgotada. Mas não estava com medo. Não tinha medo de caçadores, fossem eles Nachtspeere ou irlandeses; não daria a eles seu medo, e estava se concentrando muito no que ia fazer para sentir qualquer coisa que lembrasse o medo. A coragem é minha companheira. E tenho Eamon me dando apoio. A energia dele vai me fazer ser mais rápida do que nunca. Mors olhou para seus compatriotas de modo satisfeito e amoroso e acionou a bomba. A explosão levantou uma cortina de fumaça e fogo que, juntamente com sussurros hipnóticos, deu a eles um escudo inicial. Eles deixaram o hangar e correram. O vento soprava nos ouvidos de Brigit e de repente ela se sentiu animada, a proximidade do ar ao seu redar a convencendo de que de fato ela correria para o futuro aquela alta velocidade. Conseguia escutar os gritos dos homens, conseguia ver flechas e machados passando por ela, mas era rápida e esperta demais para eles. Passaram pelo pátio da fábrica e avistaram a entrada da rede de esgoto. Oh, não. Oh, Eamon. Somos as raposinhas. A entrada estava bloqueada com cimento e tábuas muito bem-pregadas. Olhando para as flechas afiadas e para os machados que os caçadores continuavam lançando, ela estourou as barreiras. Soube, sem olhar, que 230
Cleland estava do outro lado do pátio fazendo a mesma coisa. A luz era de um tom roxopálido, quase rosa, mas Brigit começou a sorrir. Claramente, nem mesmo os caçadores irlandeses que estavam ali especialmente para aquilo não conheciam a força de um milenar. A barreira ruiu quando Meaghan passou correndo ao lado dela, um machado não necessariamente apropriado para colocá-los em segurança. Cleland havia rompido a barreira para a entrada do metro com facilidade. Ele acenou para Brigit e Meaghan, em seguida pegou um machado caído e o lançou à confusão. — Vocês terão de tentar mais com seus estilingues e flechas! Surpresa, Brigit viu a cabeça de um homem apontar no corredor. Mors estava correndo tranquilamente, confiante no escudo de sua longevidade, em sua proximidade com a segurança, e em sua habilidade de escapar do inimigo. Pegava os machados que eram jogados em sua direção e os lançava de volta formando um arco gracioso que não errava nem um alvo. Os caçadores ficaram malucos de raiva. Um homem morto soltou seu arco e flechas, que Swefred pegou. Ele estava no pátio a poucos metros deles e fez uma tentativa. Lançou flechas contra uma fila de homens e todos caíram como pinos. Meaghan riu e aplaudiu, e Brigit gritou de alegria. Outra série de flechas voou na direção de Swefred, e ele correu de costas para pegá-las e repetir o triunfo, apesar de o sol estar surgindo no horizonte. Mors passou por ele e Meaghan havia acabado de abrir a boca para chamar Swefred de volta quando um machado lançado com força fora do comum para um ser humano o acertou abaixo do joelho, cortando a parte inferior da perna. Os seres humanos comemoraram e mantiveram o entusiasmo, esperando para ver o que o grande vampiro faria. Os gritos de Meaghan apenas fizeram com que eles sentissem ainda mais prazer com a cena. Mors estava segurando Meaghan e Brigit para trás, o sol estava vindo e era tarde demais. Swefred também sabia disso, porque nem sequer tentou buscar proteção. — Meaghan! Pare de gritar! Não dê esse prazer a eles! — Ele exclamou. Meaghan calou-se no mesmo instante, olhando fixamente nos olhos de Swefred. A pele dele estava enrugando e ficando preta, e a fumaça saía de seus cabelos e de baixo de suas unhas, mas ele sorria. — Amo você, minha princesa. Mais uma para eles, certo? 231
Dizendo isso, ele pegou a perna ferida e virou-se para lançar a lâmina em um grupo de caçadores e derrubou todos eles. O fogo final surgiu com uma velocidade muito alta, as chamas o consumiram com intensidade, e então, quando não restava mais nada para alimentá-las, desapareceram em uma explosão de fumaça laranja. Brigit e Cleland se entreolharam. Ela percebeu que ele queria correr até eles, para ajudar a controlar a histérica Meaghan, mas não conseguia se mover. Uma flecha em chamas foi lançada na direção do olho de Brigit e Mors agarrou o braço dela e a levou para trás dele. Isso deu a Meaghan a oportunidade de que precisava. Com uma virada repentina, ela escapou de Mors e correu para o pátio. Mors abraçou Brigit e eles olharam, impassíveis e fascinados. Um grito estranho e longo emanou de algum ponto profundo de Meaghan, algo que certa vez foi ouvida nas Terras Altas da Escócia, penetrando na névoa. Foi um som agudo e que assustou o grupo de caçadores de modo que eles observaram quando Meaghan pegou um barril de combustível, abriu e começou a rodar, molhando com gasolina a fábrica, as construções e todos os caçadores dentro delas e ao redor. Mesmo assim eles não se mexeram. Ela girou com mais força, os braços esticados, os olhos encarando um céu azul que ela não via há séculos. Então, Brigit compreendeu o segredo da vida demoníaca e a longevidade de Meaghan, o imã que ela usava para atrair as presas. Seus olhos verde-esmeralda, sempre arregalados e límpidos, inchavam e se tornavam líquidos, de modo que um homem sabia que se caminhasse na direção deles, eles os envolveriam como um claro lago em uma tarde quente de verão. Nem mesmo Brigit estava imune. Ela teria avançado para se banhar naqueles olhos se não fosse por Mors, que a segurou. As chamas aumentaram, mas os olhos assumiram vida própria, subindo muito acima do fogo, recusando-se a ser engolido. Com mais um último e forte giro, Meaghan explodiu, e as chamas se lançaram em um círculo perfeito, atingindo os caçadores e as construções encharcadas de gasolina. Bolas de fogo foram lançadas para fora da fábrica e em todas as construções ao redor em uma explosão ensurdecedora. As bombas do lado de dentro explodiram, mandando ainda mais fogo em direção ao céu e pelas ruas ao redor. Bolas e mais bolas de fogo pulavam na direção da cidade, e as cinzas 232
dos homens mortos eram todas destruídas pelas cinzas dos dois vampiros milenares. Mors levou Brigit para dentro da rede de esgoto, correndo mais que as chamas e os destroços. Brigit não percebeu que eles se moviam. Os olhos de Meaghan haviam finalmente estourado e enviaram bolas verdes de líquido em uma explosão líquida quente que atingiu Brigit. Sentir os olhos de Meaghan em sua pele superou qualquer outra sensação. Demorou muito para que os dois conseguissem se mexer ou falar. Um som, um eco das explosões bem acima deles, acordou Brigit de repente, que lembrou que eles não estavam sozinhos. — Cleland! — Ela exclamou. — Ele está bem. Teve de correr pelos tuneis do metrô, só isso. Ele está bem. — Como você sabe? — Porque eu sei. Ele é Cleland. — Mors, por favor. Não tente me proteger. — É verdade. Ele é meu amigo há 1500 anos. Eu saberia. — Como? Nem mesmo você é tão bom assim. — Mas Cleland é. Ele tem vida demais para morrer. Não aqui, não agora, não sozinho. Brigit assentiu acreditando. Mors sorriu para ela. — Não sei se os covardes morrem muitas vezes antes de suas mortes, mas certamente parece que os valentes só passam pela morte uma vez. Você imaginaria que diríamos isso sobre Swefred e Meaghan? Ela negou com a cabeça, desejando poder afastar as gotas de lágrimas de sua pele. Estava orgulhosa do casal morto, orgulhosa por eles terem criado uma nova lenda para surpreender os seres humanos, mas era em Cleland que ela estava pensando naquele momento, detestando o fato de ele estar sozinho, afastando de sua mente qualquer outra possibilidade, desejando com todas as forças que pudesse procurar na escuridão e puxá-los para dentro do círculo formado por ela e Mors. Pela primeira vez desde sua saída da Inglaterra, afastou Eamon completamente de sua mente e concentrou toda a energia em Cleland. Cleland. Amigo querido, forte e maravilhoso. Não esteja morto. Não tenha morrido, uma pilha de cinzas entre os restos de todos aqueles nazistas 233
horríveis. Não tenha explodido pelos ares tornando-se parte da fumaça. Uma sombra, um problema deles resolvido. Esteja vivo, meu caro amigo. Seja a dor de cabeça deles, o desastre, o azar. Caus e sofrimento a eles. Seja o pesadelo e depois volte. Para Padraic, Otonia, Eamon, Mors e eu. Sua família. Seja forte, seja corajoso, Cleland, a quem eu tanto amo ... seja. Mors estava cantarolando uma canção de ninar que lhe ocorrera e mandou para longe a tensão. Minutos antes, ela pensou que nunca conseguiria ter paz de novo, mas já estava caindo no sono. Mors deitou-se aconchegado com ela e eles dormiram por horas. ****
Brigit acordou e tentou acostumar os olhos a pouca iluminação da rede de esgoto. Mors já estava acordado e em pé, espreguiçando-se como um iogue, alongando os músculos e até inspirando para concentrar sua força e energia. — O que está fazendo? — Estou me preparando. — Aonde vamos agora? — Não, minha querida amiga. Nós, não. Pensei muito e só há um caminho certo para cada um de nós. Ela se sentou. — Do que está falando? Ele respondeu com grande seriedade. — Deixou de ser uma questão de vingança há muito tempo, ou mesmo nossa fonte de alimentos. Você sabia disso. Todos sabíamos. Quero ver o fim desses nazistas. Eles comerão o mundo se não forem impedidos. Não vou voltar para a Grã-Bretanha com o rabo entre as pernas, e não temos tempo a perder. Será mais rápido se você seguir sozinha, e será também menos perigoso. Sozinha, será mais fácil. — Mas... mas e você? — Nada do que Mors dizia fazia sentido. — Dizem que os nazistas estão de olho na Rússia. Idiotas. Acho que eles não sabem como é o inverno russo. Vou telefonar para Moscou e reunir alguns camaradas. O problema deles é que estão contando um pouco demais com a neve para atrapalhar os invasores. Eu gostaria de ter mais recursos do
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que isso. — Ele riu, balançando a cabeça. — Sim, gostaria de ver os nazistas saindo, perseguidos por um urso. Brigit não estava com bom humor para aquelas piadinhas. — Não ouse dizer, não ouse nem pensar, não... Ela se jogou sobre ele, dando chutes e socos com a pouca força que lhe restava. Mors a controlou rapidamente, deitando-se sobre ela. — É a minha maneira, Brigit, o meu jeito. Você me conhece. Não quero abandonar você, por que eu desejaria abandoná-la? — Mas você disse... — É o que eu tenho de fazer. Você não vai viajar em segurança se estiver comigo. Eles conhecem bem o meu rosto. Você, moça maravilhosa, vai viver. Preciso que você viva e lute. Vai para a nossa Londres e... e para Eamon. O falhar de sua voz fez com que ela olhasse diretamente em seus olhos. Ali estava o amor que ele havia mantido com tanto cuidado dentro de si mesmo, escondido. Ele não tinha mais forças para escondê-lo, e não precisava mais, já que estava partindo. A força daquele amor não correspondido tocou o coração de Brigit. Ele desviou o olhar, sem querer dizer o que ela já sabia, por mais que não compreendesse. — Por que? Você teve tantos anos depois de Aelric e antes de Eamon. Por que não disse nada? — Ela perguntou com o peso da hipocrisia, sabendo que se tivesse se tornado companheira de Mors, Eamon não existiria, mas pensar que Mors a amara todo aquele tempo e, talvez, tivesse desistido de qualquer outro amor em sua vida por causa dela, fez com que ela ficasse abalada, e precisava saber o motivo. Ele encostou o rosto na parede. Ela se moveu para acariciar o braço dele, que se afastou. Ele amassou um tijolo solto, transformando-o em pó. — Mors, eu... eu... — Oh, Brigit — ele disse e esticou os braços em sua direção. Ela virouse para olhar para ele, dando-lhe as mãos. Os olhos dele estavam marejados e ele sussurrou: — Você não percebe? Sempre foi perfeita para mim, mas eu nunca fui perfeito para você. A verdade daquela afirmação a afetou. Quando ela era Brigantia, a energia dos dois era muito grande e forte. O fogo de um podia consumir o do outro. Eles poderiam ter sido a maior lenda de todas, mas não durariam. Ou ela 235
não teria durado. Mors não tinha sido feito para morrer, mas ela, sem o temperamento mais equilibrado que recebeu primeiro pelos segundos que antecederam a morte de Aelric e depois por Eamon, não teria alcançado a possibilidade de infinidade. Mors poderia dar muitas coisas a ela, mas não conseguiria acalmá-la, dar a ela a calma para pensar. A energia dela era tão poderosa porque ela permitia que essa energia respirasse. Sua busca por conhecimento, sua paixão pelas artes, seu elo com as plantas — por mais que Mors encorajasse tudo isso, e ele se dedicava às artes e adorava o conhecimento — teriam feito com que eles se esgotassem. Com Eamon, ela alcançava as estrelas, mas com Mors ela poderia ter tentado alcançar o sol e se queimado. Ao pensar no sol, ela foi levada de volta ao esgoto escuro e a nova intenção de Mors. — Por favor, Mors, meu querido amigo. Não vá para a Rússia. Se tivermos de viajar separados, tudo bem, faremos isso, mas eu preciso saber que você vai para casa comigo, que vai voltar para onde temos de estar e onde agora podemos fazer melhor. Não pode ir para a Rússia. Não vai aguentar as noites repletas de neve. — Oh, Brigit, será que você está me subestimando? Ela conseguiu sorrir. — Mas, Mors, por favor. A Inglaterra precisa de você. Eu preciso de você. Ele olhou para os joelhos e perguntou: — E quanto ao que eu preciso? Brigit ficou chocada. Ela amara Mors como um irmão, dera a ele muita coisa, considerando-o a segunda pessoa mais importante depois de Eamon, mas ele nunca havia sugerido que pudesse haver algo no mundo de que ele de fato precisasse. Ela tentou imaginar se aquele plano descuidado era a resposta, de que ele precisava sempre estar perto da própria morte para se sentir vivo, se não podia ter amor. Seus olhos, aqueles belos olhos verdes, tão diferentes dos de Meaghan e tão magnéticos, cruzaram com os dela de novo. Ela não percebeu que eles se aproximavam, entreabertos, os cílios dele nas sobrancelhas dela até os dois pares de lábios se unirem. Eles se abraçaram tão forte que não havia como saber onde um terminava e o outro começava. Enquanto se beijavam, Brigit 236
sentiu como se voltasse séculos antes, passando por todos os sonhos felizes de Mors, sonhos que envolviam a ela e as felizes aventuras que eles tiveram atrás dos olhos fechados dele. No fundo de seu pensamento, ele era o criador dela, quem a havia envolvido no beijo sombrio e depois, na noite seguinte, quem havia aberto o corpo dela para o dele e canalizado aquele fogo em ondas e ondas de luxúria interminável. De repente ela estava sorvendo um líquido doce e brilhante que correu por ela, preenchendo-a, lançando-a pelo ar com uma potência até então desconhecida. Era melhor do que estar embriagada, porque estava em total controle. Ele se afastou levemente e, pressionando a testa contra a dela, olhou em seus olhos e acariciou seu rosto. Ela se assustou, percebendo o que ele havia feito, e se perguntou se era daquilo que os contos de fada tiravam as histórias dos beijos que ressuscitavam. Ele havia lhe dado uma nova força, um poder que apenas um vampiro de dois milênios podia ter, e com essa arma e o eco da música de Eamon, ela conseguiria ir para casa. — Mas, Mors, você precisa dela! Tem de precisar dela mais do que eu. — Por enquanto, tenho tudo de que preciso. Tenho mesmo. E tenho muita força em reserva. Eu a cultivo da mesma maneira com que você cultiva suas ervas. Vou ficar bem, pode acreditar. — Estou implorando. Não me deixe sozinha. — Brigit. Se tem uma coisa que sabemos há séculos, e que enquanto Eamon existir, você nunca estará sozinha. Eles começaram a atacar nossa Inglaterra. Eu posso escutar. Uma missão falhou, agora cada um de nós tem uma nova missão. Queríamos interferir nos seres humanos, então é onde estamos. E você e eu somos vampiros de honra, veremos tudo até o fim. Não depende de nossas estrelas comandar nosso destino, mas, sim, de nós mesmos. Não está certo? Agora, olhe para mim. Ele dobrou os braços dela contra seu peito e olhou com atenção em seus olhos. Ela sentiu uma leve pulsação na palma de sua mão, que parou novamente. — Pronto. Olhe para mim e prometa-me uma coisa só. Você não vai esquecer deste bobão aqui, certo? Os olhos dela percorreram aquele rosto intrigante e interminavelmente atraente. Aquele meio sorriso, a sobrancelha arqueada, os olhos alegres. Ela 237
colocou a mão no rosto dele, abraçou-o, recostando a cabeça dela em seu pescoço. Ele a abraçou com força de novo, e ela sentiu a respiração fria nas costas. Ela acariciou a nuca dele, desejando ter o dom de Eamon de sentir o que estava para acontecer, ou mesmo a confiança de Mors no futuro, mas não tinha nenhuma das duas coisas. Não havia escolha além de esperar que em alguma noite clara, na pacífica Inglaterra, Mors voltasse cantando pela escuridão com um cão ao seu lado, pronto para voltar a comunidade e com novas histórias para contar. Quando as lágrimas de Brigit começaram a escorrer pelo pescoço de Mors, ele se afastou lentamente dela. Os olhos dele também estavam marejados, mas ele piscou e pegou uma mecha de cabelo dela. Ele a colocou dentro de suas roupas, fez um carinho no queixo dela e partiu pelo túnel assoviando uma canção antiga, que ecoou por muito tempo. Os soluços fizeram com que ela caísse de joelhos e em seguida encostasse o rosto no chão sujo. Chorou até quase a ponto de engasgar com a lama causada por suas lágrimas surpreendentemente quentes. Desejou estar perto de Otonia, alguém que fosse como uma mãe, por uma lembrança que ela não tinha de um colo incondicionalmente amoroso, para o qual ela pudesse ir para chorar e gritar até cansar. Alguém que a ninasse, que tentasse convencê-la de que o mundo todo não havia ruído, por mais mentirosa que fosse tal afirmação. Não é tarefa de um pai contar uma história bonita ao filho para que ele possa dormir? Esse é o contrato entre pais e filhos: os pais contam a mentira, fingindo ser verdade, e os filhos fingem acreditar. Por fim, não havia mais nada dentro dela, e Brigit se deitou quieta. Tentou imaginar por quanto tempo mais poderia ficar deitada antes de seu corpo se transformar em poeira. Quis saber o que estava acontecendo no mundo lá em cima enquanto seu precioso mundo ruía, e amaldiçoou todos os desejos que eles haviam demonstrado de tentar fazer a diferença naquele mundo de seres humanos. — Eamon, oh, Eamon. Eamon, estou perdida. Estou perdida e nada restou, e não sei voltar para casa. Não houve resposta. Ela não sentiu nada além de frio, o maior frio que já havia sentido. Quase escutou passos, mas o frio, a tristeza e a exaustão
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haviam vencido suas forças. Não conseguiu se concentrar na sensação. Estava vazia. Foi apenas a ponta da estaca, uma estaca com o poder da morte, pressionando seu ombro esquerdo, logo atrás do coração, que a despertou. — Olá, Brigit. Ou deveria dizer Brigantia?
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Capítulo 18 Londres. Agosto de 1940
Eamon acordou assustado, aos pulos. O suor frio se acumulava embaixo de seus braços e seu cabelo estava úmido. Sabia que não se tratara de um pesadelo; nem se quer sonhara. Algo terrível acontecia em Berlim. Ainda estava acontecendo. Brigit estava sozinha. Totalmente sozinha. Mais do que sozinha: estava correndo perigo. Tentou chegar até ela por meio de sua mente, compreendendo, afirmando a ela que estava presente em espírito, mas não conseguiu encontrar o caminho. Tocou o desenho dos dois, olhando dentro dos olhos dela. Quanto mais olhava, mais percebia que ela implorava para que ele estendesse a mão para ajudá-la a voltar para casa. Pegou o violino Amati quase sem perceber, e a música praticamente tocou sozinha. Canções após canções, mas Eamon não ouviu nenhuma delas. Sua mente estava passeando por um túnel escuro em Berlim, envolvendo-se com sua amada que precisava de sua proteção, voltando no tempo em séculos, mantendo as músicas nas pontas dos dedos. ****
Os outros cuidaram de preparar os documentos falsos, reunir roupas alemãs, escrever listas de oficiais importantes. Dos cinco vampiros escolhidos para a missão, apenas Mors se dedicou totalmente aos cuidados necessários. Os outros ficaram livres para fazer o que queriam nos dias que antecederam sua partida. Brigit e Eamon não haviam discutido o assunto, não fizeram planos, mas se pegaram viajando em silêncio. Não havia itinerário nem ordem. Também não houve qualquer acordo de que o primeiro passeio seria à região do Bankside.
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Eram momentos como aqueles que faziam com que eles pensassem nas curiosidades de sua existência. Atravessar a área onde haviam existido os velhos teatros: o Rose, o Swan, o Hope, que não durou muito tempo e, é claro, o Globe – era como caminhar em sonhos. Eles mesmos estavam ali, com seus chapéus de seda e plumas, as barras incrustadas de jóias da saia de Brigit arrastando-se levemente pelo caminho. Eles tinham sido olhados de soslaio com certa inveja, talvez às vezes com suspeita, mas a atenção deles voltou-se apenas ao que ocorria no palco. Havia perigo em ir ao teatro, com os shows a céu aberto e vespertinos, mas não foi impedimento. A neblina constante de Londres não saiu de cima deles, permitindo que vissem uma nova claridade. Sim, eles tinham descoberto Shakespeare nas visitas regulares e discretas ao castelo em Whithall, mas foi ali, naqueles teatros bem-construídos, diante de uma mistura dos moradores de Londres, que as palavras levantavam voo de verdade. Os vampiros se divertiam com a linguagem que começava a tocar o que eles pensavam que nenhum ser humano podia ver, a menos que vivessem centenas de vidas, e entraram em locais que eles não podiam acessar. Aqueles teatros eram o local de milhares de horas de alegria imensurável. Mas não havia restado nada. Moradas onde antes ficava o Globe, um beco onde era o Rose. E eles, com suas lembranças. Brigit se ajoelhou e tocou o cimento frio. — Os fantasmas dormem aqui embaixo. Eles podem surgir de novo. Eamon esticou a mão para ajudá-la a se levantar. — Iremos ao cinema na primeira noite em que você estiver de volta? Seus lábios estavam pressionados contra a palma da mão dela, seus olhos estavam intensos e provocantes. Ela sorriu. — Talvez na segunda noite. Eles passaram pelo Queen’s Hall, pensando em concertos, tantos concertos. A música permeava quase todos os cantos da Londres deles. E houve vezes, mais de uma, que eles detectaram o som das melodias de Eamon no trabalho de outras pessoas. Isso os deixava satisfeitos. O que outros músicos podiam considerar plágio, eles consideravam uma promessa cumprida. Esperavam que isso nunca acabasse. ****
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Brigit precisava explorar a zona rural, por mais úmida e escura que fosse. Eles viajaram por Hampshire, por Chawton, até a casa de Jane Austen, onde o livro mais perfeito, na opinião de Brigit, tinha sido escrito. A tarde estava chuvosa e fria, mas eles gostaram de ficar sozinhos na casa, exceto pela senhora que recebera o dinheiro da hospedagem e se desculpou diversas vezes pelo frio. Eles haviam estado ali duas vezes antes, a primeira logo depois da publicação do livro. Após descobrirem, por meio de uma investigação, quem era a autora anônima, eles tentaram garantir um convite para o jantar do qual as irmãs Austen participariam no vilarejo. Não conseguiram, mas Brigit ficou feliz simplesmente por ver as irmãs saírem da casa. Gostou do modo de caminhar de Jane Austen – uma mulher à vontade consigo mesma. Eles visitaram de novo quando a casa foi transformada em museu. Não havia mudado, e eles ficaram contentes. Enquanto passeavam pelos cômodos, absorvendo a boa energia, Eamon observou Brigit. Ela parecia muito tranquila com o casaco de lã azul-marinho por baixo. O chapéu era azul-escuro com um laço cor-de-rosa, e ela levava uma bolsa pendurada no pulso. Não muito mais que cem anos antes, ela havia caminhado por aqueles cômodos com um vestido longo, o cabelo preso, um manto sobre os ombros. Muito e ao mesmo tempo pouco havia mudado, e eles próprios haviam apenas mudado de roupas. Eles adoraram a fidelidade de tudo, mas estavam se preparando para uma mudança no padrão. Sabiam, mesmo sem dizer, que a ruptura poderia ser irreparável. Que visitar mais uma vez locais que tinham tanto valor para eles era solidificar cada lembrança, pelo menos o que restasse com cada um. ****
De volta a Londres, no Claridge’s, eles dançaram. Haviam estado ali muitas vezes, mas a lembrança favorita deles era de Eamon aprendendo a dançar charleston. Ele sorriu, pensando nos cachos recém-feitos de Brigit movendo-se ao redor de sua cabeça e sua saia curta e coberta por lantejoulas dançando em suas pernas. Ela se movia de modo tão gracioso que uma bailarina invejaria, as pernas em movimento. Enquanto Eamon observava, pensou que não tinha apreciado aquelas pernas suficientemente, e ele ficou contente com as mudanças radicais da moda.
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Mas aquela noite, nem vinte anos depois, havia muito menos exuberância na maneira deles de dançar. Londrinos felizes rodavam ao redor, mas Brigit e Eamon se movimentavam lentamente, marcando cada passo, tomando o cuidado de guardar cada movimento daquela nova lembrança. ****
A balsa de Folkestone sairia na noite seguinte. Tinham mais um dia para ficar juntos. Foi como a primeira vez em que eles fizeram amor, tantos séculos antes. Brigit concentrou-se em memorizar o corpo que ela conhecia tão intimamente, mas o qual redescobria todas as madrugadas. A protuberância do lábio inferior dele, o comprimento do dedo que percorria a coxa dela, a firmeza do abdome. Cada parte do corpo dele, tão familiar, foi um novo terreno, e ela o explorou com muito cuidado e vontade. Ela adorou o tremor que ele não conseguia controlar ao ser tocado, primeiro com as mãos, depois com a língua. Ela beliscou e provocou os mamilos, registrando os gemidos para todas as noites de solidão que enfrentaria. Os pelos dele espetando seus seios enquanto ele acariciava os mamilos dela com a boca, a pressa da língua entre suas pernas, tudo isso representando cem anos de amor no período de doze curtas horas. Eamon também estava memorizando a parceira que penetrara seu corpo com a mesma intensidade com que ele penetrava o dela. O ritmo mágico do quadril dela, subindo e descendo sobre ele. A maneira com que as costas se arqueavam, fazendo os seios dela ficarem ainda mais apertados contra o peito dele enquanto ele a penetrava, a principio de modo lento, provocante, e depois com cada vez mais urgência. A pressão dos dedos dela nas costas dele, em suas nádegas, cabelos, e entrelaçados aos delas. Os lábios dos dois juntos, abertos, quase respirando, gemendo de êxtase ao chegarem juntos ao clímax. Conforme as sombras do lado de fora ficavam mais compridas, Eamon cuidadosamente correu as mãos em cada parte do seu corpo, descansado-as por fim entre suas pernas, acariciando lenta e delicadamente sua área preferida ali; e adorando escutar os suspiros e murmúrios dela, e a maneira com que seu corpo se mexia em resposta aos toques. Ele parou, mantendo a mão imóvel enquanto ela cedia às contrações fortes do orgasmo, sentindo sua genitália quente e úmida pulsando em sua mão.
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Ela o puxou para si, desejando sentir cada centímetro de sua pele em seu corpo, desejando que os poros se fundissem. Ela mergulhou profundamente nos olhos que a haviam tocado tantos anos antes, antes mesmo de ela os virem de verdade. — Aonde quer que eu vá, por mais tempo que fique, estarei sempre aqui. — ela prometeu. — Você está em meu coração. Nenhuma estaca poderia ser forte o suficiente para tirá-lo de lá. Os olhos grandes e bonitos ficaram marejados. — Não. E você não vai se afastar de mim porque me carrega dentro de você. Vou protegê-la assim como você vai me proteger. Eles queriam dizer muito mais, descobrir novas palavras para expressar tudo que nunca havia sido dito adequadamente todo aquele tempo, mas Otonia os chamou. Era hora de partir. ****
Pouco foi dito antes de o grupo ir para Folkestone. Apenas os cinco vampiros que viajariam, além de Eamon e Padraic, iam até lá, pois caso contrário seria muito perigoso. Otonia beijou todos eles na testa, inclusive Mors, que parecia mais sério do que Brigit já tinha visto em muitos séculos. Ninguém disse nenhuma palavra no trem, nem no caminho até o porto. Meaghan e Swefred embarcaram primeiro, antes de Mors. Brigit virou-se para Eamon, com o coração transbordando, mas os olhos secos, triste por perceber que aquilo estava acontecendo, que ela estava deixando o que não poderia deixar, sem retorno marcado. Sentiu-se como se estivesse sendo dividida em duas partes e pensou que não teria utilidade em Berlim, pois apenas uma pequena parte de si estaria lá. O apito de aviso soou. Cleland estava no meio da prancha e chamou Brigit com um sussurro. Eamon assentiu, e direcionou sua amada ao barco. — Você está partindo para uma grande conquista. O mundo todo terá novas canções para entoar quando você terminar. E logo estará em casa comigo. — ele disse. Ela tocou o rosto dele, a pele de sua face um carinho frio sob seus dedos. Não tinha mais palavras, não havia maneira de dizer o que havia dentro
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dela. Por um momento de quase diversão, ela tentou imaginar como eles teriam conseguido sem a poesia. — Minha dádiva é tão ilimitada quanto o mar, meu amor é igualmente fundo; quanto mais ofereço a ti, mais tenho, pois ambos são infinitos. Ela se virou rapidamente e correu para dentro do barco, sabendo que se olhasse dentro daqueles olhos por mais de um segundo nunca seria capaz de deixá-los. No meio da travessia, ela olhou para as estrelas que estavam baixas no céu e sorriu, esperando que Eamon pudesse sentir aquilo. Sim, infinitos. Como nós mesmos. ****
Eamon não parava de tocar. Ele sabia que ela podia ouvir, ou pelo menos sentir. Se sua música estivesse ali, não apenas dentro dela, mas a seu redor, ela não estaria sozinha, não sentiria medo, não estaria em perigo. Havia centenas de anos de canções para tocar e ele saberia o momento de parar.
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Capítulo 19 Bilbao. Agosto de 1940
O atendente da pensão deu a eles o que, de forma otimista, chamou de suíte de dois quartos, e Brigit sabia que ele estava cobrando duas vezes mais do que seria o preço normal, mas não se importou. Era repleto de coisas, velho e mal limpo, mas tampouco se importou com isso. Lukas estava piorando cada vez mais, e Brigit estava sendo consumida de medo por ele. Eles haviam entrado e se fechado no quarto sem que alguém percebesse que o menino estava passando mais, ou pelo menos foi o que Brigit escolheu pensar, mas não foi algo muito confortante. Lukas estava ainda mais quente do que estivera no trem e quase inconsciente. Possivelmente já era tarde demais para chamar um médico, mesmo que pudessem correr esse risco. Não era preciso ser muito esperto para saber que as crianças podem adoecer e morrer dentro de poucas horas, e Brigit, tão íntima da morte, sentiu a sombra fria se aproximando do menino. Outra inimiga contra a qual ela não podia lutar, apesar de querer. Perder Lukas seria perder tudo e mais. O menino ia viver. — O que vamos fazer? — Alma perguntou com o rosto tomado pelo medo. Brigit viu um demônio diferente na expressão de Alma, vendo a morte de Lukas, a captura delas, a execução publica de Brigit e sua grande viagem para a Alemanha e o terror que a esperava ali. Brigit colocou as mãos no rosto de Alma e olhou dentro dos olhos da menina com intensidade. — Vamos cuidar de Lukas até ele melhorar e amanhã pegamos a balsa para a Irlanda, como planejamos. — A determinação na voz de Brigit assustou Alma, que pareceu confiar nas palavras. — Mas como? Como podemos cuidar dele? Não temos nada. Nem ao menos sabemos o que há de errado, além da febre. — Alma tinha razão e Brigit detestava saber disso. 246
— Vou encontrar uma maneira. Ela não conseguiu pensar em nada que pudesse dar certo. Eles estavam sendo observados, e enquanto dentro do trem tinha sido difícil para que seus inimigos tentassem prejudicar as crianças nos momentos breves que Brigit passava fora do compartimento, ali era bem mais fácil para que eles atacassem. Não havia como deixar as crianças sozinhas nem por um momento. Ela também não podia mandar Alma ir buscar as ervas que poderiam ajudar. A única opção, que era pedir a alguém da pensão que buscasse as ervas, geraria perguntas, na melhor das hipóteses – podendo levar a resultados bem piores. Eles estavam de mãos atadas. Brigit detestava ver Lukas passando mal, suando. Ela secava o suor de sua testa sem paciência, quase sentindo raiva por ele colocá-los naquela situação ruim. Conforme as horas passavam, no entanto, sua compaixão foi crescendo. Ele era apenas um menino assustado em um local desconhecido, sem sequer um ser humano para cuidar dele. Ele conhecia as próprias fraquezas, sabia que era apenas uma criança, não tão rápido e resistente como sua irmã se precisasse correr ou suportar alguma coisa. Nada daquilo era sua culpa, não tinha como deixar de ter apenas seis anos. Não teria seis anos para sempre. Ou assim Brigit esperava. A respiração de Lukas ficou mais difícil, e Brigit se sentia cada vez mais fria. Aquele medo familiar fazia seu caminho dentro dela. Ele não podia... ela não podia perde-lo. Mas podia acontecer. Ali, naquele quarto velho, tarde, ele podia desaparecer como muitos bilhões de crianças haviam desaparecido desde o início da humanidade. E ela estava impotente, sem força, quase sem recursos para mantê-lo na escuridão humana. Como muitos bilhões de mães, ela estava fadada a não dormir para cuidar de um filho doente, cuidando para que ele acordasse de manhã. As mães pelo menos tinham Deus a quem recorrer e dele tirar um pouco de consolo. Brigit tinha seu Eamon distante, o fogo queimando por dentro e seu relacionamento intenso e furioso com a morte. Está em mim? Estou passando tanto tempo com a morte a ponto de ela esgotar a vida deste pequeno corpo? A morte é contagiosa? Para alguém tão jovem, há tão pouco tempo na vida, ele esta tão perto do precipício como eu? E se está, o que posso fazer para puxá-lo de volta?
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Devia ser aterrorizante ser mãe. Brigit pensou que devia ser uma das situações mais assustadoras do mundo. As terríveis noites em claro implorando para que o filho se mantivesse dentro do corpo formado dentro do ventre, combinadas com dias de orientação e preocupação, misturados com todas as outras tarefas que uma mulher deve realizar. E então aquela sensação até certo ponto de alívio ao ver o filho entrar na adolescência, possivelmente protegido de alguns perigos, mas agora correndo risco entre Brigit, Eamon e seres de seu tipo. Parecia improvável que a preocupação desse trégua. Brigit nem sequer podia pensar em Lukas como alimento, pois sabia muito bem que nunca mais conseguiria aproveitar uma refeição. Seria a mesma coisa que um fazendeiro, que ama seu gado e seus porcos, mas come bife e bacon mesmo assim. Assim eram as coisas. Era como tinham de ser. Ela colocou um dedo no pescoço de Lukas. A pulsação estava forte. A fúria tomou conta dela, dando-lhe vontade de pegar as duas crianças e simplesmente nadar até a Inglaterra. Um soluço contido fez com que ela percebesse que Alma estava encolhida no canto. — Não chore. Não vai adiantar. — Você precisa chamar um médico! — Isso seria dar a vitória ao doutor Schultze. — O que? Por que... ele? Como sabe que ele está em Bilbao? Brigit sabia que tinha falado demais, mas percebeu que era mais inteligente dizer a verdade à menina. — Ele está nos seguindo, Alma. E não é o único. Eles querem nos manter no continente, e você sabe disso. Tivemos sorte por termos chegado tão longe. — Então eu devo ficar a noite toda sentada aqui vendo meu irmão morrer? Foi para isso que meu pai confiou em você? — Alma, por favor. Não vê que eu faria mais se pudesse? — Você não pode hipnotizar um dos homens e fazer com que eles façam isso? — Isso não é exatamente o que posso fazer. E, além disso, não estou totalmente forte. — Bem, alguma coisa. Faça alguma coisa! Faça alguma coisa! Alma gritou e lançou-se contra Brigit, agredindo-a com socos decididos. Brigit segurou as mãos de Alma e tapou a boca da menina. 248
— Não chame atenção! Ela conseguiu ver os olhos de Alma expressando que ela não se importava com quanta atenção chamasse. — Você vai perturbar seu irmão. Alma se acalmou de uma vez, mas ainda manteve a intensidade do olhar. — Não posso lançar feitiços, não como você espera, não como nos contos de fada, mas posso tentar algo. É um risco. Você deve se preparar. Talvez não funcione. — Preparar? Ela compreendeu quando Brigit não respondeu. — Vá se sentar com Lukas. Feche a porta e nem pense em abri-la. Não importa o que aconteça. Elas olharam fixamente uma para a outra e Alma obedeceu em silêncio. Brigit não quis mais saber de perguntas. Chamou um carregador. O jovem que respondeu ao chamado tinha o mesmo sorriso orgulhoso e prepotente que deixava Brigit com vontade de destruir a cidade toda. Mas ele olhou para ela com muito interesse, e quando Brigit sorriu, sentiu que ele estremecera. Ela ficou animada. — Eu gostaria de saber se você pode me fazer um favor? Não é seguro para mim sair sozinha tão tarde, e não posso confiar em ninguém. — Ela disse aquilo de modo caloroso e melódico, um ronronado que fez com que ele lambesse os lábios com interesse. — Não posso deixar meu posto, senõrita. — É muito urgente. Não acho que vai demorar muito. Cuidadosamente, ela tirou diversas notas de sua carteira de couro, certificando-se de que ele visse os valores. O carregador se surpreendeu, e ela sabia que ele estava imaginando todas as coisas estúpidas que poderia comprar com tanto dinheiro. — Com sinceridade, senõrita, não será possível. — ele protestou, mas estava claro que sua reação era apenas para disfarçar. — Só preciso de alecrim, sálvia e um limão. Serve morango. Com certeza você vai conseguir essas coisas facilmente. — Sinto muitíssimo...
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Brigit tentou imaginar se cuidados adequados, combinados com o presente de Mors, seriam o bastante para convencê-lo, sussurrar uma ideia, qualquer coisa que a impedisse de recorrer ao óbvio. Mas não fazia sentido pensar. O sangue dele estava quente e aquilo não demoraria muito. Seria melhor guardar a força para quando precisasse. Ela ficou de joelhos diante dele, com os olhos arregalados e suplicantes. — Meu senhor, eu imploro. E implorou. Demorou menos tempo do que pensara, e resolveu o caso com facilidade. Ele voltou com as ervas em dez minutos. Além delas, um limão muito cheiroso. ****
No meio da manhã, Lukas estava recuperando a cor. Ainda tinha um pouco de febre, mas Brigit esperava que as pessoas pudessem pensar que ele se sentia mal por causa do sol da Espanha. O que mais posso dizer? Alma finalmente havia caído em um sono profundo, e Brigit não quis acordá-la. O dia estava quente e nem mesmo os panos grossos que tinha seriam suficientes para cobri-la, não pelo tempo de que precisaria de proteção. Ela queria usar a rede de esgoto se conseguisse encontrar a entrada, mas para isso teria de levar as crianças ali embaixo, e o sentimento de mãe que começava a fluir dentro dela não permitia que ela fizesse aquilo. Não havia outra opção senão esperar ate o fim da tarde na esperança de que não fosse muito tarde. Ela pediu ovos e paelha à garçonete de mau humor. Se ao menos a cozinha pudesse mandar algo que me alimentasse. Naquela tarde, eles foram ao escritório de expedição, com Brigit carregando Lukas como antes, tranquilizada pelo fato de sua sonolência o deixar calado, segurando Alma pela mão. Ela não conseguia segurar o guardachuva, mas o chapéu e o véu horrendos, com as luvas e o cachecol, protegiam a pele dos raios de sol. Havia menos de 30 centímetros de sombra na qual caminhavam, e o calor a queimava por dentro, mas ela não se importou. Conseguiram chegar. O atendente de expedição sorriu quando eles entraram, e Brigit acreditou tê-lo visto quase piscar até se corrigir. 250
— A senhorita deve ser a moça irlandesa à procura de passagem para Cork. — ele comentou. — As coisas parecem ser lentas aqui em Bilbao. Ele riu de modo condescendente. — Não, não, mas é que existem poucas loiras bonitas que entram aqui, e com duas crianças sob seus cuidados, bem, todo mundo vai se lembrar de sua pessoa. — Ótimo, isso deve facilitar as coisas. — Brigit sorriu, sabendo que ele encontraria uma maneira de negar a passagem. — Sim, mas sinto muito a respeito da questão da conveniência. Aparentemente, houve uma confusão com seus documentos na fronteira suíça. Os oficiais da Alemanha estão tentando resolver tudo. Rotina, é claro. Alma apertou a mão de Brigit, mas esta ergueu a cabeça e olhou fixamente para o homem. — Que bobagem! Se existe algum problema, certamente seriam os oficiais os irlandeses que deveriam estar cuidando da questão, não os alemães! — Só estou passando o recado, senõrita. — Entendo. Então passe a mensagem de que desejo enviar um telegrama à Irlanda a respeito do tratamento absurdo que estou recebendo aqui. — Por favor, senõrita. Só queremos ajudar. É apenas uma questão de selos corretos. Não existe motivo para a senõrita não estar em uma balsa amanhã à noite, o mais tardar depois de amanhã, se cooperar. — Como ousa falar comigo dessa maneira? Os alemães não tem autoridade sobre mim. O suor se acumulava na sobrancelha do atendente. Ele ficou em pé, mas por ter cerca de dez centímetros a menos que Brigit, não causou qualquer reação. Mas ela não se importou muito com o olhar fixo dele. — Não, senõrita, eles não tem qualquer autoridade sobre sua pessoa, mas essas crianças que você está levando para a Irlanda são alemãs, certo? Ela olhou primeiramente para Alma, depois para Lukas e, de modo claro, para a estátua de gesso da Virgem Maria em um canto de sua mesa. Brigit pensou que ele devia ser grato à estátua pelo fato de ela estar guiando duas crianças, porque caso contrário ela o partiria no meio.
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— Entendo. Bem, espero que esta confusão absurda se resolva para minha satisfação, ou registrarei diversas reclamações, e garanto a você que, eu sei causar problemas. — Não duvido disso. — Ele sorriu. Havia um pouco mais de sombra no caminho de volta a pensão, uma coisa boa para a qual Brigit não deu importância. — Pensei que a Espanha fosse neutra. — Alma disse com a voz embargada, e Brigit viu que ela estava prestes a chorar. — Essas coisas costumam ser mais complicadas que isso. — Brigit disse. — Eles estão vindo atrás de nós. — Alma parecia muito mais jovem do que era. Brigit percebeu que tinha sido a ansiedade da menina com Lukas que a impedira de temer por todos eles antes. — Não se esqueça: para pegar você, eles precisam passar por mim. Alma assentiu e Brigit ficou feliz ao vê-la erguer levemente os ombros. Ela estava tão preocupada que quase não havia percebido o cheiro, mas conseguiu perceber o odor familiar de uma rede de esgoto que podia ser acessada a poucos metros do escritório de expedição. Era um caminho um pouco mais sinuoso de volta à pensão, mas ela viu outra entrada ali, bem próxima. Ainda não gostava da ideia de descer com as crianças por ali, mas sabia que uma mãe faria o que tinha de ser feito. Daquele modo, eles poderiam chegar bem cedo ao escritório. O atendente ficou chocado ao vê-los ás nove da manhã. Brigit sabia que os espanhóis não acreditavam muito em vampiros, o que era razoável, uma vez que nenhum vampiro desejaria viver em um país tão ensolarado. Provavelmente ele havia recebido a informação de que ela era uma daquelas pessoas ricas e sem ocupação que nunca acordavam antes do meio-dia. Mas se ela pensava que a surpresa a favoreceria, rapidamente veria que estava enganada. — A senõrita tem de voltar esta tarde — ele insistiu. — As autoridades estarão aqui e você poderá discutir o problema com eles. Brigit hesitou e em seguida pegou sua carteira. Colocou diversas notas sobre o balcão, olhando fixamente nos olhos do atendente. — Prefiro discutir esse assunto com você agora, para estar na balsa antes de eles chegarem. 252
Ele olhou para o dinheiro por cerca de trinta segundos, com a boca levemente aberta. Para garantir, ela tirou o relógio de diamantes e o colocou em cima das notas. A mão dele se moveu poucos centímetros na direção do objeto. Brigit sussurrou, incentivando-o, mas talvez ela estivesse ansiosa demais ou o medo da repercussão que ele sentiu foi grande demais, e ele afastou a mão como se a tivesse queimado e disse: — Não é possível em hipótese alguma. Tenho orientações restritas. O dinheiro e o relógio foram retirados e as palavras que entraram em seus ouvidos deixaram seu sangue frio. — Você pode se arrepender por ter sido tão servil. Ele sabia que um homem de verdade não permitiria que ela se safasse com aquilo, diria ou faria alguma coisa para lembrá-la de sua inferioridade, mas na verdade ele sentiu tanto medo que só conseguiu respirar quando o trio saiu e fechou a porta. — Eu disse, eu disse. — Alma estava quase histérica. Eles estavam na rede de esgoto e a luz fraca e o ambiente sombrio não ajudaram em nada para diminuir o desespero da garota. Brigit não podia culpá-la. Ela não fazia ideia do que os aguardava ou de como conseguiriam sair daquela cidade quente e abominável. Ela sentia tanta fome que estava prestes a se descontrolar, uma percepção que a deixou ainda mais assustada do que a reunião que teriam de enfrentar aquela noite. Eamon! Eamon! Ajude-nos. Ela sabia que ele sentiria a chamado, que começaria a música de novo. Detestava ter de colocá-lo naquela tarefa, mas não parecia haver qualquer outra solução. — Meu pai fez tudo certo, estava tudo organizado. Por que está dando errado? — Não sei. — Ele sabia que tínhamos de nos apressar. E foi o que fizemos! Mas não adiantou, não é mesmo? Corremos muito e agora podemos perder por termos corrido demais. Ela apenas apertou a mão de Alma, desejando poder passar um pouco de conforto à garota. — O que acha que eles farão conosco? — A voz de Alma estava baixa e trêmula. 253
Foi outra voz mais fria que respondeu, congelando-os onde estavam. — Eu me preocuparia mais com a que eu vou fazer com vocês. Maurer. O fato de Brigit não ter sentido a aproximação do homem pelo cheiro era uma prova de como ela estava fraca. Ela amaldiçoou a si mesma, amaldiçoou o estresse que fazia com que ela precisasse de mais alimentos do que o necessário, amaldiçoou os nazistas e todos as homens e mulheres que se curvavam diante deles, felizes por ficarem felizes submetendo-se em vez de ficarem em pé e morrer com a cabeça erguida. Ela não permitiria que ele percebesse sua fraqueza. Ele não tinha armas com as quais pudesse vencê-la, Brigit percebeu, mas ele carregava uma arma e ela sabia que estava disposto a usá-la. Pior ainda era aquela vontade estranha e sedenta dele, aquela determinação que o tirara do caminho, que o levaram a buscálos na rede de esgoto. Aquele não era um homem que se deixava abater. Era um homem que havia tornado seu caminho, cuja imprevisibilidade representava um perigo por si só. Com os olhos fixos nele, ela entregou Lukas a Alma. — Segure-o com força e fique atrás de mim. — ela exigiu. Maurer riu, um latido frio e alto. — É tarde demais para eles. E para você também. Mas gosto disso. Gosto de saber que ratinhos escapando como ratinhos morrerão como tais. Ele atirou sem mirar. Alma estava assustada demais para gritar e foi o gemido de Brigit que mostrou que todos estavam bem, que Brigit havia segurado a bala. Ela a tirou da mão e a jogou no chão de paralelepípedos. Alma torceu para que Maurer não percebesse como Brigit tremia. Ele sorriu, aparentemente satisfeito com a mudança dos acontecimentos. — Você é mesmo poderosa, como eu sempre soube. O que está fazendo, gastando todo o seu poder com essas baratas? — Decida-se, Maurer. Eles são ratos ou baratas? Será que você precisa de um momento para colocar as ideias no lugar, ou será que você precisa voltar para a escola? Ele atirou de novo — e mais uma vez Brigit pegou a bala, mas suas mãos ficaram sujas de sangue e de aço derretido, com resíduos escuros. — Se eu não as conhecesse bem, Brigit, diria que você está parecendo meio pálida. 254
— Já que você diz... — Talvez precise de um pouco de sol. Ele segurou uma corrente e a puxou, abrindo as grades de um portão acima de sua cabeça. O sol forte da manha acertou a mão sangrando de Brigit, e ela gemeu e caiu no chão. Maurer atirou de novo, mas Brigit pulou por cima da bala, sendo acertada abaixo do estômago, e resmungou de dor. — Não pode atacá-lo e matá-lo? — Alma perguntou sussurrando. — Estou fraca. Preciso de alimento. — Brigit resmungou, ficando em pé. — Sua devoção a esses vermes é tocante. — Maurer sorriu. — Mas meus superiores não se importarão se eu devolvê-los mortos. — Não minta, Maurer. Não teríamos chegado tão longe se isso fosse verdade. Maurer ignorou o comentário, procurando concentrar-se no ponto principal. — Você, minha cara, vale muito mais. Você e eu podemos fechar um preço. Ela caminhou com dificuldade na direção dele, mantendo os olhos na arma. — Só por cima do meu cadáver. — Pense bem, Brigit. — ele sorriu abrindo mais uma grade. O sol escaldou sua carne, e ela gritou, caindo de joelhos. Por que acreditava que aquele caminho era seguro? Por que não estava vestindo as luvas? Talvez em razão de sua grande confiança. Maurer fez um movimento para atirar de novo, mas ela bateu com a bolsa no pulso dele, de modo que a bala bateu na parede e ecoou no sistema de esgoto. — Desista, Maurer. Você deve perceber que isto não vai acabar bem. — Oh, mas eu acho que vai. Eu tenho o direito ao meu lado, e está é a diferença, entendeu? Sou ariano e ser humano. Eles são judeus e você é uma vampira. Todas as leis da natureza estão ao meu lado. Ele se agachou para poder olhar nos olhos dela, e piscou. A piscadela foi algo odiado. Brigit pensou que não era apenas a luz fraca que deixava os olhos deles verdes. Havia algo não humano fermentando dentro dele. Ele sofria de inveja e ressentimento pelo poder que ela tinha e por todos a quem ela defendia. 255
A inveja de fato é um monstro de olhos verdes. Brigit manteve o olhar parado, reunindo suas forças. — É o mesmo acordo que você quer? O impossível? O brilho de esperança nos olhos dele fez com que Maurer parecesse ainda menos humano. — Não é impossível. Você mentiu para mim. Mas conte-me a verdade agora e talvez tenha minha proteção. — Serei protegida de quem? Ele riu, sem acreditar. — Não é hora de brincadeira, minha garota. Mas ela percebeu alguma coisa e se aproximou um pouco mais dele. — Eles sabem que você está aqui? Não sabem, não é? Você saiu do caminho. — E com o que você pode me dar, posso voltar e avançar. Ir muito mais além. E então? Faremos um acordo ou não? — Mas como que você acha que posso dar a você, até onde chegará? Não seria demitido? Eles têm uma política estrita contra vampiros na SS. Não acredito que eles permitiriam uma exceção por alguém que colabora apenas parcialmente. — Isso não é o que eu... — Mas já estava sem paciência. Ele mexeu os braços e mirou nas crianças. O grito que ricocheteou em sua mente foi de Brigit, porque apesar de ela ter saltado sobre ele e virado seu braço, a bala havia aberto outra grade, fazendo mais raios de sol incidirem sobre sua pele. Ela o afastou dos pontos banhados pelo sol, rolando no chão, escorregando as mãos no corpo dele. O demônio estava feroz dentro dela, um cavaleiro indo em seu auxílio. Ela tirou a arma da mão de Maurer, girando-a, e só parou de girar quando arrancou a mão dele. — Não! — Ele urrou. — As leis da natureza... — ...são um pouco mais complexas do que a dos homens. — Brigit terminou a frase mostrando as presas brilhantes. Maurer gritou, um uivo comprido e baixo, batendo contra ela com o braço ensanguentado, negando com a cabeça. — Não! Não, não, não. Eles são judeus! E você é uma vampira! Vocês devem morrer, não eu. Eles são judeus! Você é uma vampira!
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— Sim, tem razão, mas eu diria que esta é uma vitória muito suada. Diga-me, Maurer: alguém vai sentir sua falta? Saber a resposta não faria com que ela se condoesse. Brigit afundou os dentes no pescoço dele e bebeu lentamente, saboreando a refeição por pior que fosse o gosto. Os gritos de Maurer ressoaram pela rede de esgoto, e apenas quando Brigit escutou os gritos das crianças, que colocou a mão sobre a boca. Ela continuou sugando, começando a chorar ao mesmo tempo, detestando o fato de as crianças estarem presenciando aquilo, porém sem poder fazer nada a respeito. Tinha de comer. Quando ele estava vazio, ela lançou seu corpo com força contra a parede, gritando, e então se curvou, ainda aos prantos, com o rosto coberto pelas mãos manchadas de sangue. O toque de Alma a assustou. A menina colocou um lenço umedecido entre os dedos de Brigit. — Você não pode voltar ao nosso quarto deste jeito. — A voz da menina estava baixa, porém constante. ****
Brigit de repente percebeu que podia sentir Eamon, sentir a música dentro dela. Respirou e se sentiu completa de novo. Estou bem, meu amado. Obrigada. Estou bem. Alma e Lukas olhavam para ela com olhos surpresos. O rosto do menino estava marcado por lágrimas e até mesmo as bordas dos olhos de Alma estavam vermelhas. Mas estavam calmos, e Brigit ficou contente. Levantou-se. Um barulho repentino fez com que eles pulassem. Foi apenas uma parte da grade que estava solta e finalmente caiu, porém iluminou mais o corpo de Maurer. Ela olhou para ele. Os gritos tinham sido altos – pesadelos em plena luz do dia – e era de se surpreender que a polícia não tivesse chegado até eles. Ela segurou o pé de Maurer e o moveu para um local mais escuro. Mas ainda não estava satisfeita. — Brigit? — Alma interrompeu. — Comecem a andar — ela ordenou em resposta. — Alcançarei vocês. Enquanto as crianças atravessavam a rede de esgoto, Brigit procurou no uniforme de Maurer, pegando seu cartão de identificação. Ela o molhou com sangue, quebrou em pedaços e os jogou dentro da boca aberta do oficial. Em
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seguida, pisou no rosto dele, mandando o cartão e todos os dentes para o estômago. Girou os pés sobre os dedos da mão que havia restado e também da que havia sido arrancada, sentindo as pontas se desintegrando sob a pressão. Brigit já não se importava com a possibilidade de as autoridades concluírem que a causa da morte tinha sido algo sobrenatural. Simplesmente queria que a investigação fosse muito difícil de ser feita. Satisfeita, ela seguiu em direção as crianças. ****
Seguros dentro do quarto, Brigit tomou um banho e se vestiu, tomando cuidados extras com o cabelo e a maquiagem. — Aquele homem terrível não foi nada, certo? — Alma perguntou, escovando os cabelos de modo obsessivo, até brilharem. — Eles têm algo pior planejado para nós esta noite. — Talvez. — Brigit disse. — Mas eu me sinto mais preparada para o que houver. Ao entrar no escritório novamente naquela noite, no entanto, apenas duas horas antes da partida da balsa, Brigit estava com receio. Maurer havia se afastado da doutrina do partido para dentro de um mundo totalmente próprio, maluco, mas mesmo assim ele a conhecia, sabia quem e o quê ela era. Assim como outras pessoas. Ela acreditava que eram apenas as histórias, os rumores, a intensidade da obsessão nazista com todas as coisas ocultas e sobrenaturais, a paranoia - era isso o que tinha recaído sobre os milenares. Mas sua intenção tinha de ser mantida. E ela teria de se fazer passar por ser humano com ainda mais afinco, e teria de acreditar que seu talento faria com que ela passasse por tudo. Alma garantira antes da partida que ela estava impecável, alva, clara e reluzente. Uma moça bela, jovem e tranquila, com olhos brilhantes e um sorriso provocador. Confiante de que tudo sairia bem, ela havia pedido que sua bagagem fosse levada para o cais. Com suas belas roupas e aparência ótima, eles não tinham como imaginar o dano que havia causado a um deles poucas horas antes.
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Talvez, se eles souberem, não se importem. Não tem muito espaço para transgressores no partido nazista. Que pena. Isso poderia ter trabalhado para o nosso beneficio. Não houve sinal de normalidade no escritório de expedição. Na verdade, os oficiais claramente esperavam acuá-la com sua demonstração de pompa e força. Ela e as crianças foram direcionadas a um escritório particular, onde foram convidadas a se sentar. Dois minutos depois, o doutor Schultze entrou sorrindo. Que ótimo. — Fraülein! Como é que senhorita pode estar aqui na adorável Bilbao e ainda não estar se expondo ao sol? Ela não pode responder. Os seguidores sempre presentes, Weber e Lange, estavam com ele, e ela conseguiu sentir o cheiro das machadinhas escondidas em seus casacos. Também havia dois oficiais espanhóis, homens fortes e sérios cujos olhos se voltaram para as crianças. Os dois últimos deixaram Brigit muito interessada. Um deles, também espanhol, era baixo, mas com um ar de intimidação, um tipo social. O outro era alto, loiro e sorria de modo irônico. Um caçador. Um bom caçador. Irlandês. Ela percebeu que eles tinham muitos trunfos nas mangas e percebeu a espada que ele trazia ao redor da cintura. Brigit se lembrou do espadachim francês chamado especificamente para decapitar Ana Bolena. Ela podia lutar facilmente contra aqueles homens sozinha, mas com as crianças ali... olhou fixamente para o médico. — Bem, a senhorita pode ficar contente sabendo que já acertamos o pequeno problema com seus documentos. Não é a burocracia que a está mantendo neste local tão belo. — Imagine meu alívio. — Brigit disse a ele, com ironia. — O que é então? — Ordens médicas. — Ele sorriu. Brigit instintivamente abraçou Lukas. Ele estava bem melhor, parecia quase bom. Seria possível que alguém o proibiria de viajar? — Estamos todos com excelente saúde. Nossos documentos provam isso. O oficial mais baixo disse com a voz baixa.
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— As crianças talvez sim — e ela ficou com medo ao vê-lo olhar para as duas crianças de modo desdenhoso —, mas é a senhorita a quem nos referimos. — A mim! — Ela gritou, olhando assustada para os homens. — Sim! — O médico disse, em êxtase. — Suspeitamos de que a senhorita tenha uma doença de sangue muito perigosa e contagiosa. Alertei as autoridades irlandesas e eles concordam que devemos realizar um exame completo antes de permitirmos que a senhorita entre na Irlanda. Eles mandaram Owen para cá. — Ele apontou para o caçador irlandês, que franziu o cenho. — Ele deve cuidar para que nada de anormal entre naquela balsa. Brigit olhou para os homens. Seria muito agradável matar todos eles se tivesse a certeza de que as crianças não seriam prejudicadas. Mas e depois? Ela pegaria as crianças, iria para a balsa e depois de lá... para onde? Não podia embarcar sem as passagens, que ela não sabia falsificar. Pensou no fim que seus perseguidores pretendiam ver. Eles deviam saber que ela não permitiria ser capturada, mas eles não tinham intenção de deixá-la sair viva, tampouco sem as crianças. O médico abriu sua maleta e retirou diversos instrumentos. Ele deixou o estetoscópio por último, remexendo nele como se brincasse, com um olhar malicioso. Ele caminhou na direção de Brigit de modo irritante. — Agora, minha querida, por favor, retire algumas peças de roupa... — Exijo a presença de uma enfermeira! — Brigit disse. O médico fez uma careta, mas os outros pareciam não saber o que fazer. — Eu me recuso a me submeter a qualquer tipo de exame, sobre o qual meu governo recebera uma longa reclamação, sem outra mulher presente para proteger minha intimidade. — Brigit foi veemente e se mostrou indignada, mas também assustada, como uma moça de criação católica. Os espanhóis e Owen ficaram surpresos. Todos eram católicos fervorosos, e a percepção do que estavam prestes a fazer fez com que eles ficassem envergonhados. Nenhum dos espanhóis acreditava na maluca acusação de que aquela moça não era um ser humano. Estavam dispostos a aceitar a possibilidade, concordando com aquele plano bizarro, mas se de fato ela fosse apenas uma moça comum como parecia ser, o tempo que passariam no confessionário seria desagradável. Quanto a Owen, ele tinha certeza de que aquela era a vampira Brigantia, mas alguma coisa nela, talvez as crianças, fazia 260
com que ele hesitasse. Não, era preciso que uma enfermeira estivesse presente, e era chocante o fato de o médico não ter insistido nisso. — Oh, muito bem, muito bem, chamem uma enfermeira então. — O doutor Schultze disse. — Não que vá fazer muita diferença. Brigit não tinha certeza do que estava fazendo, mas sabia que precisava de mais tempo. Fechou os olhos e alcançou Eamon. Eamon, meu coração. Escute-me, ajude-me. Não fomos nós quem sempre dissemos que sua música faz a pele respirar, tem o poder de fazer um coração bater? Eamon, sei que você está ai, sei que está tocando para me confortar, mas há algo de que preciso mais neste momento. Por favor, por favor, entenda o que eu preciso e encontre o poder para salvar a todos nós. Durante os dezessete minutos aterrorizantes até a enfermeira chegar, Brigit repetiu seu apelo, mandando toda a sua energia pela água e para dentro do castelo. Sentiu grande gratidão pelo presente de Mors, sabendo que ele tornava a mensagem muito mais forte e clara. Eamon escutaria, e saberia o que fazer. Mas será que funcionaria? A sala ficou totalmente silenciosa, e Brigit ficou contente. No fundo, Eamon sussurrou: “Estou aqui. Escute”. Ela abriu todos os seus poros e escutou como se tivesse passado o último milênio surda. A música derreteu dentro dela, que conseguiu senti-la passando por sua carne, percorrendo um caminho silencioso pelas veias. O coração parado começou a ganhar movimento, um urso saindo da hibernação, farejando o ar. Brigit tentou não demonstrar a alegria que sentia quando seu coração bateu uma vez, mais uma e mais outra. Ela sentiu a música em seus dedos, e sem jeito com o brinquedo novo, de repente comandou com maestria suas veias, que ali serviam de marionete. Uma barragem se desfez e o sangue vazou aos poucos, e depois com mais rapidez, como um rio correndo livre sob o poder da música que sabia criar sangue. O coração, as artérias - Brigit se perguntou quais dos outros órgãos podiam reviver com o sistema circulatório em funcionamento. Sou uma organista, de fato. Ela gostaria de ver um maestro que tivesse mais poder do que ela naquele momento. Desejou contar a Alma o que estava acontecendo, como Eamon ia resgatá-los, mas apenas sorriu para a menina e tirou o sobretudo, o casaco e subiu a manga quando a enfermeira chegou e assentiu para ela. 261
O doutor Schultze estava tremendo de ansiedade quando finalmente se aproximou da presa. Ele manteve os olhos fixos nos de Brigit e pousou os dedos grandes e gordos em seu pulso. — Bem, bem — ele disse com grande sarcasmo. — O que não temos aqui não é... — ele parou, franzindo o cenho. Alma virou-se para Brigit, a tempo de ver suas narinas se moverem levemente enquanto ela tentava segurar uma gargalhada. Ela estava calma, educadamente interessada nos resultados dos exames do médico. O homem manteve a mão pesada no pulso dela. Os outros homens se entreolharam e o oficial tossiu. — Isto vai demorar muito, doutor? — Eu... eu... — O doutor Schultze disse. A enfermeira, que havia sido retirada a contragosto do hospital, segurou o outro pulso de Brigit sem paciência. Depois de um minuto, olhou para o médico. — Não compreendo, señor — ela começou, e os outros homens, principalmente os caçadores, inclinaram-se para a frente com interesse. — É uma pulsação boa e regular. Pelo que mais está procurando? O médico levou a mão ao pescoço de Brigit. Os homens se movimentaram como se fossem impedi-lo e a enfermeira exclamou, mas ele queria sentir a pulsação. Arregalou os olhos para ela, com os dedos apertando seu pescoço. — Isto não é possível. — disse. — Como? — Brigit perguntou com educação. — Isto não é possível! Ele abriu a blusa dela com força, movendo o estetoscópio como se fosse uma estaca, mas a enfermeira e os oficiais espanhóis o afastaram aos gritos e reprimendas. — Escute você mesma! Examine a coração dela! Por mais que possa fazer mágicas, não pode fazer um coração morto voltar a bater, não pode! O oficial baixo assentiu, e a enfermeira que resmungou irritada pegou o estetoscópio e o segurou sobre o coração de Brigit. — Respire, señorita. — ela pediu com delicadeza. As mulheres se entreolharam, um olhar de compreensão a respeito da estupidez dos homens e
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sua incapacidade de mudar a situação. Brigit inspirou profunda e lentamente. E repetiu para garantir. A enfermeira entregou a estetoscópio ao doutor Schultze e disse com profundo desdém. — Uma moça perfeitamente forte e saudável. Posso retomar ao meu trabalho agora? O oficial, com o rosto vermelho e furioso, estava prestes a dispensá-la quando o médico gritou, apontando para as crianças. — Eles são judeus! São judeus tentando escapar da Alemanha! O pai deles é um criminoso conhecido, a família toda será presa! Vocês ousam se considerar bons católicos permitindo que ratinhos judeus espalhem suas sementes pelo mundo? Brigit ficou em pé, fechando a roupa. Ainda estava concentrando a energia em seu corpo e achou mais sensato permanecer em silêncio e permitir que o médico se complicasse sozinho. — Mas, doutor, — o oficial disse — os documentos deles foram conferidos duas vezes, e está tudo em ordem. Ou será que o senhor acha que os suíços e os espanhóis não são tão bons em conferir documentos como vocês, alemães? — Não importam os documentos! Há provas melhores! Tirem a calça do menino e verão que ele é circuncidado! O coração de Brigit disparou, batendo com muita força, a ponto de ela pensar que poderia desmaiar. A enfermeira olhou para ela de novo, analisandoa longamente. Olhou para as crianças. — E então? Faça isso, mulher! — o doutor Schultze parecia estar prestes a atacá-la. A enfermeira olhou para ele com a expressão séria e mentiu descaradamente. — E se ele for circuncidado, qual é o problema? Meu filho teve de ser circuncidado aos três anos em razão de uma infecção de urina; essas coisas acontecem. Estas pessoas saudáveis têm assuntos a tratar na Irlanda, e eu tenho pessoas doentes de quem cuidar em meu hospital. Bom dia a todos, cavalheiros. Ela meneou a cabeça para Brigit e saiu da sala.
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Brigit sabia que não deveria sentir alívio quando embarcaram à noite. Assim que se acomodaram, ela escutou os gritos do médico do lado de fora. Levou as crianças à amurada e viu que, infelizmente, o doutor e seus homens estavam embarcando, apesar de o oficial baixo estar contrariado, detestando ter de providenciar mais documentos para os passageiros. — Vamos demorar uma noite e um dia inteiros para chegar. — Alma resmungou. E estaremos na Irlanda. Brigit balançou a cabeça. — Vou cuidar dele. Ele conhece muito pouco sobre mim. Oh, Eamon. Espero que seja verdade. Não dormia havia dias e sabia que não devia ousar piscar pelas próximas doze horas. O médico, Weber e Lange, além do observador Owen se encontraram com Brigit e as crianças no deque. Os dois grupos se entreolharam sob a luz fraca. — Bem, Fräulein — O médico começou, quase sem conseguir disfarçar a raiva. — Parece que nossos caminhos continuarão juntos por mais um tempo. — Sim — Brigit disse com a voz baixa e melódica. — Não será uma noite agradável para todos nós?
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Capítulo 20 Berlim. Agosto de 1940
— Vire-se. — O homem pediu, espetando-a com a estaca. Brigit obedeceu, piscando para expulsar a terra de seus olhos. A estaca, presa a um velho arco, tinha um cheiro que fez com que ela se sentisse nauseada. No centro havia duas mechas de cabelo entrelaçadas de um casal de vampiros que tinham morrido juntos na mão do caçador. O único tipo de estaca que mataria um milenar. Ela desviou o olhar da estaca e o colocou no rosto do homem. Um rosto abatido, mais velho do que aparentava. Os olhos castanhos pareciam cansados, porém eram intensos. A energia que ele radiava era suave, algo não esperado em um caçador forte. Brigit ficou confusa. Para sua surpresa, ele sorriu e estendeu a mão para ajudá-la a se levantar. Após um momento de hesitação, ela aceitou. Não estava conseguindo ficar em pé e distraidamente tentou bater a terra do rosto e das roupas, estranhamente desconfortável. — Deixa pra lá — ele disse. — Você pode tomar um banho e trocar de roupas depois. Por um breve momento, ela pensou que ele estivesse a preparando para uma execução pública, apesar de caçadores verdadeiros não fazerem isso, como aquele homem devia ser um caçador. Ele tinha algum outro plano que ela não conseguia entender. A estaca era apenas para chamar sua atenção e evitar que ela lutasse. Ou talvez ele pensou que ela não estaria sozinha. Mors não tinha como ter percebido a aproximação daquele homem, mas ela ficou feliz por ele não estar mais ali. O comportamento do caçador era quase amigável, mas ainda assim muito sério. Ele fez um gesto com o arco para que ela caminhasse na frente.
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Sabia muito bem como agir. Ela não ia correr. Nenhum milenar morreria em decorrência de um golpe nas costas. Eles caminharam por muito tempo em silêncio. Brigit estava cansada e faminta demais para falar, e o caçador parecia perdido em seus pensamentos. Por fim, chegaram a uma escada que levava a uma adega, que por sua vez levava a uma casa pequena e quente. O caçador mandou Brigit se sentar e sentou-se diante dela, deixando o arco apoiado no joelho. — Sou Leon Arunfeld. Minha família foi uma das grandes caçadoras. — Foi? — Brigit perguntou. — Na Alemanha. Na Prússia, antes. Os registros serão apagados, creio eu. Ele pediu licença e foi para a cozinha. Brigit olhou ao redor da sala, surpresa demais para perguntar por que estava ali. Um odor irresistível chamou sua atenção e o demônio se manifestou. Leon voltou, com uma bandeja de chá. Ele sorriu para Brigit e serviu uma xícara quente de sangue. Ela se surpreendeu, mas aceitou e bebeu. Delicioso. O melhor alimento que experimentava em meses. — Eu estava guardando. Precisei esquentá-lo, mas ainda está forte, creio eu. É meu sangue. Ela ficou boquiaberta e ele sorriu. — Eu trabalho com farmacologia. Trabalhei. Entendo de perda lenta de força. Planejei este momento há bastante tempo. Brigit pousou sua xícara. — Você sabe quem e o que eu sou, e eu sei a mesma coisa sobre você. Este não é apenas um chá comum. Com certeza. Leon sorriu, abriu a porta e acenou. Duas crianças entraram na sala. O menininho manteve a cabeça abaixada, mas a menina mantinha o queixo erguido de modo prepotente e olhou para Brigit de igual para igual. — Esperei tempo demais. — Leon disse a ela, como se eles estivessem conversando sobre amenidades. — Fui muito tolo. Eles convenceram a mim e a minha esposa para ajudarmos a treinar os Nachtspeere, e prometeram nos proteger... Ele continuou e se afastou, com o rosto corado. Brigit procurou não deixá-lo ainda mais desconfortável.
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— Nós sabemos. Os vampiros que conseguiram fugir nos contaram. Vocês foram colocados em uma impossível... Leon levantou a mão para interromper. — Não tente me inocentar. — Ele olhou para as crianças e pediu a elas que saíssem da sala, esperando que fechassem a porta para continuar. — Eles não permitiram que eu os mandasse para longe no Kindertransport. As crianças são o maior trunfo que o governo tem sobre mim e sabem que eu sei que nada vai detê-los. — Ele tomou um gole de chá e olhou intensamente nos olhos de Brigit. — Eles disseram que um vampiro matou minha esposa, minha Lena. Não é verdade. Sei porque vi os ferimentos. Eles a mataram e provavelmente sabiam que eu sabia. Eu não disse nada, claro, porque foi então que percebi como tinha sido tolo por ficar. Malvado até. Fiz grande parte do trabalho sujo para eles e perdi meu grande amor. — Mas não compreendo. O que eles tinham a ganhar matando sua esposa? — Eles sabiam na época que eu estava hesitando. Eu havia aberto caminho para alguns de meus vizinhos fugirem. Com o disfarce de caçador de vampiros, alertei mais judeus. Os nazistas quiseram mostrar que estavam falando sério. E Lena estava grávida. Se eles souberam disso, bem, um judeu a menos no mundo provavelmente seria bom. Brigit se arrependeu por ter perguntado. Ela olhou ao redor, analisando as prateleiras de livros de capa de couro. No topo estavam os livros de lendas, dezenas deles, de muitos séculos antes. — E como tomou conhecimento sobre nós? Leon esboçou um sorriso parecido com o de Mors. — Fiquei desconfiado ao tomar conhecimento do general Von Kasell e o trem. Aquela confusão no teatro. Milenares, é claro. Eu sabia que ainda haveria alguns no lado leste russo, mas aquilo era muito enfeitado para não ser o trabalho do tribunal inglês. Eu não consegui entender por isso me recusei a acreditar até ter provas. Brigit tomou o sangue, escutando com atenção. — Vocês souberam que os nazistas recrutaram diversos caçadores de vampiros. Um era mais dedicado do que eu teria esperado. Gosta da linha do partido. Conhecia sua essência irlandesa e foi Cleland, entre todos os vampiros, que ele reconheceu. Azar para ele. E uma vez que outros deviam estar com ele, 267
quem mais além de Brigit e Mors? Swefred e Meaghan nos surpreenderam um pouco. Bem, então eu me ofereci para encontrar todos vocês, criar um bom plano que acabaria com mortes em público, bons exemplos. Não foi fácil. Mas eu sou o melhor, então eles confiaram em mim. — Mortes em público. Como o que ocorreu ontem? — Você se saiu bem, mas eles viram você e Mors voltarem de Paris. Sabiam que vocês deveriam estar planejando algo grande. Demorou um pouco, mas eles acabaram adivinhando. Os nazistas são espertos. Eu tive de fazer parte daquilo. Não queria, mas não tive opção. — Como os irlandeses chegaram ali? — Oh, eles gostam dos nazistas. Meu colega comentou e eles vieram ajudar. Sabiam que os Nachtspeere não teriam sucesso com apenas dois caçadores de verdade para ajudar. Leon se inclinou e sorriu. — Posso dizer que Meaghan deu um golpe mortal. Talvez existam apenas quatro Nachtspeere vivos no esquadrão todo, e o grupo da Irlanda sofreu muitas baixas. Ela merece ser reverenciada em seu mundo. Brigit sorriu e torceu para que Meaghan, onde quer que estivesse, soubesse o que havia feito. — Como conseguiu escapar? — Brigit quis saber. O homem não estava nem um pouco ferido. — Eu me afastei no meio da confusão assim que Swefred foi atingido. Percebi o que estava prestes a acontecer e soube o que devia fazer. Tomada por outra ideia, Brigit segurou a mão dele. — Cleland! Você viu o que... Mas ele já estava assentindo. — Eu precisava seguir você. Sinto muito. Não sei o que aconteceu a Cleland. Brigit sentou-se em sua cadeira de novo, apertando a mão contra a boca. Não vou chorar por ele antes de ter certeza. Então percebeu o que havia dito. — Você precisava de mim? Leon olhou para o chão por vários minutos, com os ombros caídos. Uma amargura emanava dele. Por fim, olhou para cima e disse:
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— Preciso que você leve meus filhos para a Inglaterra. Minha irmã esta lá. Eu estou perdido, até um cego poderia ver isso, mas eles podem sair se você ajuda-los. Brigit se assustou. — Você... você quer... você quer que uma vampira cuide de seus filhos? — Não apenas uma vampira. A grande Brigantia, que depois se tornou Brigit. Um milenar do tribunal britânico. Se tem alguém que pode fazer com que eles ganhem liberdade, esse alguém é você. Estou com todos os documentos prontos. Tenho roupas e dinheiro, e as crianças estão prontas. O principal é conseguir entrar no trem sem ser visto. A casa é vigiada, mas existem bons caminhos pela rede de esgoto que eles não conhecem. — Mas eu... — Pode protegê-los. Brigit sentiu vontade de rir. O absurdo daquilo era muito grande. Ela admirou a maneira de ele pensar, sua sinceridade, mas a situação era ridícula. — Sinto muito. Não posso. — Você veio aqui para ajudar. Caçador e vampiro se entreolharam. — Viemos vingar outros vampiros. — Brigit corrigiu. — Ah, sim. Destruir aqueles que os destroem de modo tão sistemático e cruel. Mas isso mudou. Vocês quiseram acabar com os nazistas pelo bem da humanidade. — E daí? Qual é a diferença? Fracassamos. — Brigit terminou sua xícara e olhou para a bela sala. Leon ficou calado por muito tempo. — Então. Você precisa ir para casa, e eu facilitarei. — Facilitar! — Brigit explodiu. — Uma vampira guiando filhos judeus e marcados para morrer de um caçador? Ilógico! E eu não poderia protegê-los com todas as minhas habilidades, porque estou fingindo ser um ser humano. Esse tem sido nosso problema. Ou um problema para eles. Tivemos muitos problemas. Mas, não, se paramos, paramos, e eu voltarei para casa de modo furtivo, não à vista e sem bagagem. Sinto muito, mas tenho coisas demais a perder. — Sim. Um motivo para chegar em casa. — Leon examinou o arco, uma boa peça de feita a mão. — Eamon, é claro, não é milenar, caso contrário 269
também estaria aqui. Sua força é grande, com certeza, mas ele é mais fácil de destruir do que você, se for caçado. Ele olhou com intensidade para Brigit, para se assegurar de que ela estava prestando atenção. — Você sabe que temos menos preocupação com os vampiros mais velhos, pois eles não costumam causar tantos danos como os novos. Trabalho demais, pouca recompensa. E, claro, estamos passando por tempos difíceis. Mesmo assim, poderíamos fazer ajustes se necessário. Brigit correu o dedo pela borda da xícara, imaginando-a se dissolvendo em moléculas invisíveis. — Então isso é chantagem. — Peço que perdoe meu mau jeito. Eles são meus queridos, meu sangue. Preciso protegê-los. Eles precisam crescer e evoluir. Mesmo que eu não consiga. Brigit pensou muito. Eamon. Ela protegeria Eamon com tudo o que tinha e mais. E ele era muito forte e cuidadoso. Podia ser uma ameaça vazia. Ela e Eamon poderiam destruir centenas de caçadores se fosse preciso. Ela não poderia ser a guardiã das crianças humanas. — Conheça-os de modo adequado. — Leon disse, pedindo as crianças que voltasse. Ela não queria. Nunca interagira com crianças e não estava interessada em começar agora. Mas não havia escolha. Ela olhou para eles. Coisinhas lindas. Inocentes e repletas de possibilidades. Ela ficou confusa. Leon pousou as mãos nos ombros dos dois filhos e disse seus nomes, evitando tentativas estranhas de cumprimentos que ninguém desejava. — Esta é Alma e este é Lukas. Brigit ficou olhando para a menina de olhos brilhantes e espertos. Eram olhos enormes, escuros como chocolate. A menina estava no limiar entre infância e fase adulta, com uma energia brilhante dentro dela começando a tomar forma. — Olá, Alma. — Brigit disse. Ao dizer aquele nome, sentiu calor, frio e se segurou na beira da cadeira. Alma. Um nome que ela nunca havia dito, e que não era escutado em séculos, mas que conhecia muito bem. Alma e um irmão pequeno. Judeus marcados para morrer. Quanto mais Brigit olhava para Alma, mais via Eamon. Olhou 270
mais profundamente naqueles olhos, sentindo-os se abrir, sentindo-se ser sugada de volta a sua própria história, para cima da torre em chamas de York. As feridas cicatrizam em partes. Ela desviou os olhos de Alma e voltou a olhar para Leon. Era impossível que ele soubesse, mas não importava. Ela era sua escolhida. — Quando partimos? ****
O banho foi glorioso. Brigit fechou os olhos para aproveitar melhor a água e para pensar. Eles nos encontraram. Nós fracassamos. Os nazistas estavam avançando cada vez mais. Swefred e Meaghan estavam mortos, Cleland havia desaparecido e Mors caminhava em direção ao suicídio. Os nazistas podem ter sabido o tempo todo, levando em consideração quão pouco os vampiros haviam conquistado. Brigit acreditava que a certeza inicial tinha sido apenas excesso de confiança, e a expectativa de que eram superiores aqueles tolos também era excesso de confiança. Precisamos dos seres humanos, mas eles não precisam de nós. A natureza humana sempre será mais forte do que tudo que pudermos pensar. Os seres humanos comandam a Terra. Nós simplesmente vagamos por ela. Se eles não soubessem sobre Leon, podiam ter unido forças com eles. Os aliados humanos poderiam fazer grande diferença. Mas era algo que eles nunca pensaram, nem por um momento. Brigit passou as mãos pelos olhos e secou o corpo, vestindo o pijama e um roupão. Eles só partiriam no pôr do sol do dia seguinte, e ela queria muito se alimentar e descansar. Leon passou o tempo todo, na hora do jantar, revisando os detalhes da operação, mostrando a ela os documentos que havia preparado com cuidado, os mapas, os itinerários. Ele se desculpou pela necessidade de eles passarem pela Irlanda, mas esperava que ficassem no país apenas por uma hora, o que não seria tempo suficiente para alertar os caçadores, muito menos um que pudesse lidar com um vampiro milenar. Brigit escutou a tudo de modo passivo, tentando absorver as informações. Depois do jantar, Leon colocou Lukas para dormir, e Brigit e Alma se entreolharam sentadas a mesa. 271
— É verdade que os vampiros não atacam crianças? — Sim. — Por que não? Brigit sorriu. — Porque elas estão dormindo quando saímos para caçar. Ela percebeu que a menina controlava um sorriso e suspeitou de que ela não queria ficar em desvantagem. Brigit estudou o rosto da menina, gostando do fato de ela não querer ser obediente. Alma certamente sabia o que tinha de fazer, sabia que a família estava sem opções, mas aquilo não significava que ela tinha de ser simpática. A menina era indisciplinada, e Brigit gostava dela por isso, apesar de sentir o clima de certa animosidade. De qualquer modo, era verdade, os vampiros não comiam crianças. O sangue de uma criança não tinha cheiro para eles. Era como um ingrediente cru. Um ser humano começava a ter sabor a partir dos dezesseis anos. Comer uma criança não era apenas sem gosto, mas também uma violação, uma interferência no processo de desenvolvimento. Havia algo de sagrado no passar do tempo, e alimentar-se de uma criatura não formada seria tão impróprio quanto comer animais ainda não nascidos. Quando Leon retornou, mostrou a Brigit sua obra de arte, um sistema de telégrafo que ele montara quando as coisas começaram a ficar ruins e a comunicação complicada. Ela detestava o fato de Eamon e Otonia terem de receber a informação que ela estava prestes a enviar, mas era um alívio saber que eles pensariam nela, e que Eamon por sua vez enviaria a ela tudo de que precisasse para concluir mais uma missão. Durante todo aquele dia estranho, naquela casa desconhecida, Brigit dormiu de modo intranquilo, vendo em sua mente os rostos de Mors, Cleland, Meaghan, Swefred e Eamon. — Está tudo bem, tudo bem — eles diziam. — Você vai para casa. Casa. Sim. Por favor, Eamon. Permita que eu chegue lá. Com estas crianças. As despedidas foram rápidas; não seria adequado demorar e muito menos chorar. Mas Brigit segurou as duas mãos de Leon e olhou nos olhos dele.
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— Eles serão minha família, muito além do que você falsificou naqueles documentos. Vou protegê-los e cuidar de sua segurança. Prometo. Ele beijou a mão de Brigit. Ela segurou as duas crianças pelas mãos e, com a cabeça erguida e os olhos brilhando, entrou no trem.
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Capítulo 21 Balsa para Irlanda. Agosto de 1940
Os dedos de Eamon sangravam, mas ele não percebeu. Eles permaneciam ágeis, dançando pelas cordas, colocando para fora toda a melodia que ele tinha dentro de si. Um grande número de canções para confortar, satisfazer e proteger. Conseguiu sentir que estava dando certo. A única pergunta era quando teria de parar para poder viajar. Teria de receber Brigit e as crianças na Irlanda por mais arriscado que fosse. Ela precisaria da presença física dele ali, e ele estaria lá. Ele ainda tinha algumas horas antes de pegar o trem para o País de Gales. O suor se misturou a seu sangue e formou uma poça a seus pés. Ele manteve os olhos fechados, concentrando-se apenas na música, ignorando as cãibras em seus braços, a pele esfolada pelo apoio de queixo. Otonia chegou em silêncio, colocou uma bolsa de gelo no pescoço dele e um canudo em sua boca, de modo que ele pudesse beber de uma caneca cheia de sangue aquecido. Ele mal notou. Apenas mais tarde, quando ele estava correndo para pegar o trem, que percebeu que ela o ajudara a economizar tempo. Dois dias tocando violino sem parar teria forçado Eamon a sair para caçar, e não havia tempo a perder. ****
Brigit decidiu que o único caminho segura era manter-se no convés para que eles ficassem à vista de qualquer pessoa ao longo da viagem. Seria meio estranho, uma guardiã mantendo as crianças acordadas e ao ar livre a noite toda, mas mesmo em mar aberro o clima estava abafado e úmido, e ela podia dizer que as crianças preferiam dormir do lado de fora.
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Ela ficou com Lukas nos braços. Ele ainda estava frágil, um pouco febril, e ela não deixaria que alguém percebesse. Esperava que ele se sentisse mais a vontade do lado de fora. Pelo menos ele conseguia dormir, o que não podia ser dito a respeito dela ou de Alma. — Procure ao menos fechar os olhos. — Brigit disse a Alma, aconchegando-a em uma cadeira no convés, mas a menina não quis ceder. — Você vai ficar acordada e eu também. Brigit ficou contente ao perceber que eles não eram os únicos passando a noite no convés. Aquele trecho do mar não tinha sido ocupado pelos submarinos, mas isso não significava que as pessoas não estavam apreensivas. Seria uma longa viagem até o dia amanhecer, e muitos deles queriam se manter acordados, como se de alguma maneira isso garantisse a travessia tranquila. O médico e seu bando se estabeleceram em outras cadeiras na frente de Brigit e das crianças. Fingiam jogar cartas e fumar, mas mantinham a atenção voltada para o grupo. No entanto Brigit e Alma só olhavam uma para a outra, para o mar e para as estrelas. Um pouco antes da meia-noite, Owen deixou o grupo e foi para dentro. Dez minutos depois, ele voltou, tomando o cuidado de olhar nos olhos de Brigit e piscar ao passar. — Estou ansioso para chegar em casa, e você? — Ele perguntou, sem esperar por uma resposta. Voltou para perto dos outros homens e logo todos estavam rindo. Alma estremeceu. Brigit deu-lhe um tapinha no braço. — Coragem. Talvez eu de um jeito de fazer com que ele não chegue em casa. Alma concordou, olhando para a água escura, com os braços dobrados. Olhou para Lukas, que dormia tranquilamente, hesitou, e então se sentou na cadeira com Brigit e inclinou-se levemente contra ela. Brigit pensou em abraçar a menina, mas mudou de ideia e decidiu apontar para as estrelas. — Veja, veja aquela. É Leão. Ele foi um leão muito poderoso, mas Hércules o matou. Mas precisava ser homenageado, por isso foi colocado no céu. Ele é corajoso, por isso domina as noites mais quentes de verão. Um sinal de fogo é muito corajoso. — Fogo? — Alma perguntou. — E isso é ruim para você, não é?
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— Se fosse apenas o fogo, sim, mas Leão rege o coração e a coluna, por isso não temo Leão. Alma pensou um pouco naquilo. — E quanto a Órion? — Oh, Órion tem um universo todo para proteger. Acho que ele aprendeu a me aceitar. Não, existe um firmamento forte lá em cima. Ele tem sido meu amigo há muito, muito tempo. Seu murmúrio se transformou em um gemido baixo e os olhos de Alma foram se fechando aos poucos. Um vento frio soprou e a balsa balançou. O mar estava ficando agitado. Owen abriu uma garrafa de uísque e deu um longo gole, e a ofereceu aos outros. O médico franziu o cenho, mas Brigit acreditou tê-lo escutado dizer que uma bebida fazia bem à noite. Ela sorriu, lembrando-se de canções antigas sobre bebidas, tentando imaginar por que os homens no início de sua existência gostavam tanto de incluir comentários sobre bebidas e seus poderes nas canções. Ela murmurou uma das velhas canções e observou quando muitos dos homens cansados e ansiosos esperando pegaram garrafas e começaram a Festa. Duas horas depois, o vento ficou mais frio, o mar mais agitado e todos os homens do cais, exceto o médico, estavam embriagados. Os ruídos que faziam acordaram Alma, mas Lukas continuava adormecido. Os três estavam em um canto escuro e Brigit orientara Alma a manter-se calada e em alerta. Brigit estava contente. Com os sentidos tão comprometidos, seus inimigos começavam a se tomar ótimos alvos. O demônio estava alegre dentro dela. O médico, irritado, também estava ficando enjoado, para diversão de Brigit. Um espanhol muito embriagado ofereceu ajuda. O médico tentou afastá-lo, mas não conseguiu. Recebeu um grande leito e ficou ali por muito tempo, com o espanhol tentando consolá-lo e falando sem parar. — Vamos, cavalheiros, vamos entrar para acordar algumas moças! — outro irlandês gritou, e os outros o seguiram. Brigit sorriu. Os homens não mudam. Os três caçadores não notaram o médico indisposto nem a ausência dos outros. Estavam abraçados cantando uma música de caça em alemão e em galês. Brigit já havia escutado a canção. O mundo dorme, mas nós nos mantemos acordados 276
Seguindo o cheiro dos vampiros Nós o atraímos, mostramos a estaca afiada E reduzimos o monstro a pó. Brigit ficou em pé lentamente e pediu a Alma que fechasse os olhos e procurasse não escutar. Um forte vento e uma onda batendo contra a balsa cobriram o barulho de Lange caindo na água com o pescoço quebrado. Weber, acreditando que o amigo havia apenas caído, começou a gritar virado para a água, enquanto Owen procurava uma boia. Mas quando o irlandês retornou, Weber não estava mais ali e uma gota de sangue escorria pelo dedo de Brigit e pingava no convés molhado. Sem nada dizer, Owen pegou sua espada. Brigit se preparou para a luta, mas sentiu a derrota antes mesmo de escutar a voz de triunfo. — Deixe-a, Owen. Deixe-a por enquanto. O doutor Schultze, ainda muito enjoado, mantinha uma faca apontada para o pescoço de Alma. Ele sorriu. Por mais aterrorizada que Brigit estivesse, ainda conseguiu se orgulhar do fato de Alma demonstrar menos medo e mais desdém pelo agressor. Ela manteve a cabeça de Lukas pressionada contra seu peito. — Agora, vampira, finalmente podemos conversar livremente. — o médico disse, fazendo um gesto para que ela se aproximasse. Ela obedeceu com relutância e o frustrado Owen se aproximou dela. — Vocês certamente são uma espécie impressionante. — O médico assentiu para Brigit com interesse profissional. — Apesar de sempre saber que nós venceríamos, eu admito que pensei que o último recurso teria de vir depois, quando descêssemos, mas prefiro muito mais assim. Parecerei mais corajoso. — Espere — Owen começou, mas o médico o interrompeu. — Mas vocês podem dividir os aplausos, é claro. A Alemanha valoriza seus amigos irlandeses. A vampira pode ser morta na Irlanda. Só peço que possa estudar a criatura. — Estudar a mim? — Brigit estava assustada e perplexa. — Eles querem promover Mengele em meu lugar. — O médico disse e Brigit percebeu uma certa raiva. — Se eu levar a eles fatos detalhados da 277
fisiologia vampira, pode ser que mudem de ideia. Eles respeitam muito a pesquisa científica. Brigit não fazia ideia de quem era Mengele, ou de que cargo Schultze estava perseguindo, apenas queria distraí-lo. — Posso livrá-lo do passo da dissecação. — Brigit disse. — Exceto por minhas presas, garras e por meu sangue viscoso, sou como qualquer outro ser humano morto por dentro. — Verei com meus olhos — O médico disse. — Talvez eu não toque seu coração, mas simplesmente explorarei até estar satisfeito. Acredita-se que você consegue suportar dor. — Uma dissecação viva. Claro. Que interessante. Mas estou mais preocupada com seus planos para as crianças. Schultze e Owen a avaliaram. — Claro que sim. — O médico disse por fim. — Por que uma vampira se importaria com ratinhos? Pretende mantê-los como animais de estimação? — Obviamente, quaisquer que fossem minhas intenções, elas foram frustradas. Quais são as suas? Schultze deu de ombros. — Elas voltarão à Alemanha para servirem de exemplo. O pai delas foi um causador de problemas, mesmo depois de o Reich tentar ser gentil com ele. Que desperdício. E tentou mandar suas sementes sujas para a Grã-Bretanha sob cuidados de uma vampira, desgraçado. Talvez ele tenha feito coisas boas em sua época, mas uma Alemanha livre de vampiros não mais precisa de caçadores de vampiros. — Mas Leon Arunfeld é um grande caçador. Brigit não ousou virar-se. Havia sarcasmo na voz de Owen, e ela percebeu que era pela atitude alemã, e não por Leon. Schultze deu de ombros de novo. — Mas um rato consegue caçar vermes, muito bem, mas isso não é motivo para recompensá-lo. — Você fala com pouco respeito sobre a arte de caçar vampiros. Brigit moveu-se um centímetro para trás, percebendo o espaço de que precisaria.
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— Grande respeito, grande respeito. — Schultze disse, apesar do tom condescendente. Estava entediado. — Agora, pode ser que eu tenha de trancar os ratos em nossa cabine e notificar... — A menina é a primogênita. Será uma caçadora. Não desperdice caçadores de boa qualidade. — Você pode conversar com o Führer se quiser, mas eu tenho ordens a obedecer. Brigit riu, uma melodia animada que surpreendeu os dois homens. — Nunca pensei que fosse escutar algo assim, o irlandês tão desesperado para envolver o caçador alemão. — Ela olhou para Owen de modo meigo e simpático. — Então é verdade o que dizem. Os irlandeses estão perdendo o vigor na caça de vampiros. Que vergonha. Sem dúvida foi a bebida que fez isso... A bebida e a fúria certamente haviam transformado Owen. Ele se lançou sobre ela, mas o grito ensurdecedor de luta que ele pretendia dar não foi ouvido. Sua própria espada cortou sua cabeça e a jogou no mar. A ponta da espada estava sob o queixo do médico antes que este percebesse. — Solte a faca, doutor. Ele não pretendia soltá-la, entregaria seu prêmio, mas a espada escorregou por baixo da faca e a lançou ao ar quando ele ameaçou começar a cortar o pescoço da menina. A pele de Alma ficou apenas um pouco marcada, mas o demônio despertou completamente. Pressionado contra a amurada, com fios de sangue escorrendo pelo pescoço de ferimentos causados pelas garras de Brigit, o médico ainda tentou ganhar o controle. — O que acha que vai acontecer quando chegarmos? Acredita mesmo que poderá continuar sua viagem? — Você caiu da balsa. Os marinheiros que normalmente estariam atentos a tais incidentes agora estão à procura de possíveis submarinos — Brigit disse, piscando o olho vermelho. — Esses são os inconvenientes de se viajar em época de guerra. Seu tom confiante o deixou mais agitado. Ele segurou a garra que o segurava com firmeza quase sem esforço. — Estamos sendo aguardados em Cork. Quando eles virem que não desembarcamos, você terá assinado todas as suas sentenças de morte. 279
— E eu pensando que o senhor já tivesse providenciado tudo isso. Não é pela eficiência que os nazistas são conhecidos? Ele estava suando, sofrendo. Brigit lembrou-se de um lobo que roia a própria perna para se livrar de uma daquelas terríveis armadilhas que os seres humanos costumavam montar. Ela não queria mantê-lo vivo, mas desejava saber o que exatamente esperava por eles em Cork. Sorriu para pedir que ele continuasse. — Certo, vampira, talvez possamos chegar a um acordo. — Ele se apressou, percebendo a presas brilhantes dela. — Posso dispensar os oficiais do cais, você poderá ir embora, mas deve permitir que eu leve as crianças de volta a Alemanha. — Você quase matou Alma. — Não, eu ia apenas feri-la. Só queria ameaçar você. E então, podemos fechar esse acordo? — Quantos oficiais estarão lá? Ele não respondeu. Ela espetou uma garra embaixo da orelha dele. Ele suspirou longamente e demonstrando dor. — O que vai ganhar me matando? — Ele pretendia parecer desafiador, mas o demônio se aproveitou de seu medo. — Provavelmente coisa nenhuma, — ela admitiu — exceto a vida destas crianças. O que você vai ganhar levando-as de volta para que morram? — Recompensa. E a certeza de manter a raça pura. Aquela palavra de novo. O médico era baixo, gorducho, cabelo castanho e olhos cobiçosos. Mas tinha convicção. Brigit tinha de admitir. Schultze estava sorrindo, pensando em um futuro brilhante, como se Brigit estivesse disposta a soltá-lo. — Em um mundo sem judeus nem vampiros, sem qualquer um dos invejáveis, haverá muitas coisas boas. E vamos vencer. Você viu como tentou nos impedir e não conseguiu? O bem vence o mal. É assim que o mundo funciona. Sua Inglaterra não deve nos impedir de invadir. Vocês, britânicos, logo verão seu rei de joelhos reverenciado nosso Hitler. É apenas uma questão de tempo. Ela balançou a cabeça sorrindo. — Não, não, você está bem enganado. Aquela pedra preciosa, no meio do mar prateado? Você acha que ela é pequena e fraca e pode ser domada, 280
como Napoleão fez antes de vocês? Mas não. Minha Inglaterra nunca se rendeu e nunca se renderá a um conquistador prepotente. O médico se mostrou perplexo, porem relaxado. O fato de estar vivo significava que Brigit certamente estava brincando com ele, e que aceitaria sua oferta. Ela tinha muito pelo que viver. Não comprometeria nada daquilo. — Deixe-me ficar com as crianças, Brigit. Elas não deviam ter nascido. Estaremos apenas encobrindo erros. — Acha que é isso o que estamos fazendo? — Eu me vejo curando um câncer. — Quanta benevolência. Mas não o compreendo. Você quer que eles morram, eles, que têm almas, e acreditaria ser um herói por isso. É uma história que você contaria a seus netos, com eles em seu colo. Você poderia usar a luz dessas crianças e se sentir forte, mas, ainda assim, eu sou aquela considerada sem alma, a malvada. Não, não compreendo. A manhã se aproximava, e a costa irlandesa podia ser vista. Era uma manhã nublada e melancólica, e Brigit ficou feliz por isso, apesar de a segurança ainda estar muito distante. A morte podia estar esperando-a em terra, para puxá-la a seu lado de novo, e dessa vez para sempre, ou talvez para pegar as crianças dela. A morte aceitaria o médico, mas levaria eles três também; a morte não tinha critérios nem metas, apenas passava de modo constante pelo mundo, levando pessoas consigo. Matar o médico, de fato, não resolveria nada. Eles queriam desestruturar uma fera, mas quase não a atingiram. A luta se tornou apenas fragmentada. Era a luta humana que passaria a importar, a única que havia importado. Ainda olhando para o litoral que se aproximava, Brigit lentamente passou as garras pelo pescoço do médico e o jogou na água. Estava garoando. Ela esticou as mãos, observando o sangue pingar delas. O vento ficou mais forte conforme eles se aproximavam da Irlanda. Eu, o vento e a chuva. Alma se aproximou dela na amurada. — E agora? — Pegamos o barco para Holyhead e então pegamos o trem para Londres. — Brigit estava calma e controlada. — Eles vão nos seguir? — Não deixarei rastros. 281
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Eamon surgiu do local onde estava escondido no barco. Achava que era velho demais para ser um clandestino, mas não teve escolha. Ele sabia que seria melhor se os ajudasse a entrar no barco de onde ele estava e não podia arriscar que o céu se abrisse. Mesmo assim, estava ansioso para ir ao cair. Percebeu que os caçadores esperavam, sentiu suas armas e o sangue quente. Dois estavam atrás das crianças, o que não fazia sentido, mas os outros eram ainda mais assustadores. Não se importavam com o que matavam no caminho para acabar com Brigantia. Brigit identificou a bagagem com calma e a organizou para ser transferida ao barco. Ela estava tranquila e agia de forma normal, sem se incomodar com os comentários de que havia quatro homens desaparecidos. Os guardas de fronteira, envolvidos demais nos rumores, carimbaram os documentos deles de modo tão distraído que Brigit quase julgou decepcionante. Não estava interessada em mais problemas. Ela e as crianças seguiram em silêncio para a sala de espera. A chuva havia parado, mas as nuvens continuavam pesadas. Pela primeira vez Brigit não se preocupou com o sol. Estava vendo uma repetição do caos da semana anterior. Homens indo para a parte superior das construções do porto. Estavam armados com arcos e flechas e fogo. Brigit e as crianças eram os únicos passageiros que iriam para o País de Gales, por isso não havia a esperança de passarem despercebidos entre outras pessoas. Ela não acreditava que eles atacariam as crianças usando aqueles recursos, até ver dois homens do lado de fora da sala de espera. Nazistas. Eles usavam ternos, não uniformes, mas ela os conhecia pelo odor. Nazistas. Estavam ali para levar as crianças de volta a Alemanha. Ela ficou surpresa, e então se lembrou de que o IRA havia agradado aos nazistas que se ofereceram para ser espiões, tentando ajudá-los com planos para a invasão da Grã-Bretanha. O inimigo do inimigo deles parecia ser um amigo, e muitos irlandeses não gostavam nem um pouco de judeus, por isso não se importavam com o que acontecesse a eles. Agora Brigit compreendia o que o doutor Schultze disse que estaria esperando por eles ali. É claro que todos aqueles escravos ambiciosos estavam trabalhando juntos. Parecia uma loucura
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completa para Brigit, como se os irlandeses estivessem convidando galos de fora para controlar o galinheiro, mas a loucura reinava naqueles tempos. Ou talvez seja apenas pouca visão ou apenas burrice. Ou eles simplesmente não se importam. Com devoção e atitude obcecada de homens de atitude, o demônio vai sendo alimentado. A ininterrupção da violência, a possibilidade de derramar ainda mais sangue, aquela necessidade por armas, muito mais armas. Brigit controlou o choro ao pensar em centenas de milhares e mortos, montes de mortos, milhões de seres humanos que haviam morrido sob o fogo desde que ela surgira na Terra, mortes repletas de horror, do tipo que apenas os homens podiam infligir. A obsessão, a necessidade de destruir, a marca na terra. Ela só podia esperar para que aquele excesso de energia e de recursos que eles estavam desperdiçando em um esforço para abater a ela e as crianças permanecesse como um paradigma, que a obsessão deles com a morte acabasse causando a destruição de todos eles. Mas não acontecerá logo. Oh, Eamon, fracassamos totalmente. A resposta sussurrada em sua mente fez com que ela se assustasse. Não, de jeito nenhum. Você está quase conseguindo. Vou ajudar. Ela sabia que Eamon estaria ali, mas senti-lo tão perto, tão verdadeiramente perto por tanto tempo e tomou de terror e também de saudade. Ele seria visto? Os homens o atacariam? Ela teria de lutar pelas crianças e também por Eamon, como ela poderia...? Todos eles sobreviverão. Não existe outra opção. Com isso, ela pegou seu lenço e secou o rosto de Lukas primeiramente e depois de Alma. — Está quase na hora de ir. Os olhos de Alma estavam muito assustados. — Eles continuam atrás de nós. — Sim. Temos muito valor para eles. — Por que não nos deixam em paz? — A natureza humana é um tanto engraçada. Alma fez uma careta. Ela pareceu muito pequena, um bebê assustado por um pesadelo. — Meu pai diz que os milenares conseguem correr muito quando necessário. Um quilômetro em questão de instantes. 283
— Não tão rapidamente, mas essa é a ideia, de modo geral. — Isso quer dizer que você pode escapar. Poderia fugir e nos deixar aqui. Brigit sentiu vontade de erguer a mão e dar um tapa na boca de Alma, mas se lembrou no mesmo instante de que a menina estava exausta, assustada e que ainda era apenas uma criança. Então, ela segurou o rosto de Alma para que esta olhasse diretamente dentro de seus olhos. — Sou uma criatura de honra. Fiz um juramento a seu pai e juro agora a você por tudo que é mais sagrado em sua consideração, pelo amor que me prende a Eamon, pela força de todos os irmãos que já tive e ainda tenho, que vocês são minha responsabilidade como se fizessem parte de meu corpo, e eu cuidarei de sua segurança. Lágrimas surgiram nos olhos de Alma e Brigit se apressou em secá-las, pedindo a menina que se controlasse, que eles precisavam parecer calmos e sem problemas, mesmo que tivessem de passar por arcos e flechas. Mas como? Como faremos isso? Brigit estava exausta, fraca, esgotada e assustada. Estava em grande desvantagem. Se houvesse tempo para pensar, para planejar, se ao menos ela e Eamon pudessem conversar... mas o barco partiria dentro de sete minutos. Não havia o que fazer. Eles tinham de ir. Mais uma vez, ela pegou Lukas no colo, apesar de ele agora estar quieto e calado de medo, e não de cansaço e mal-estar. Gostaria de poder carregar Alma também, para ter certeza de que protegeria a menina, mas eles não podiam levantar suspeitas até o fim. Ela começou a ter uma ideia, a pensar em uma possibilidade, a possibilidade da velocidade que Alma mencionara... e algo mais. Um modo de mandar as crianças para o barco enquanto ela permaneceria no cais para ver tudo terminar com sangue. Queria combinar a própria força com a de Eamon e Mors e usá-la em um gesto rápido e benevolente para a raça humana. Ela sabia se tratar de um desafio a natureza, cujas regras ela respeitava. Aquele poder era apenas para os vampiros. Mas talvez, apenas uma vez, ela pudesse desobedecer as leis que a protegiam. A natureza certamente estava ao lado deles, pelo menos no que dizia respeito ao céu nublado. Eles caminharam sem problemas, fingindo estar tudo bem, tremendo sob a fachada, mas orgulhosos demais para demonstrar.
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Os nazistas esperaram até que eles estivessem prestes a entrar no píer que levava ao barco parado. Ela conseguiu identificar a sombra de Eamon, perto da amurada. Os dois homens a abordaram. — Entregue as crianças agora e talvez você seja poupada de muita dor. Os diversos caçadores e homens, ali apenas pela diversão de ver uma vampira ser morta, e em plena luz do dia ainda por cima, tremiam de ansiedade. Não conseguiam escutar a conversa no piso inferior, mas sabiam o que estava sendo dito. A maioria deles não se importava com a ideia de matar as crianças também, uma vez que elas não passavam de judias e seria por uma boa causa, mas preferiam que elas não morressem. Brigit olhou para um homem e depois para o outro. Eles perceberam sua hesitação, tiraram pistolas de dentro de seus casacos e as prepararam. Para surpresa de Brigit, caçadores próximos lançaram espadas aos homens. Brigit sentiu a mão de Alma suar. Eamon. Precisamos de música de novo. Não para acalmar a fera selvagem, mas, sim, para acordá-la. Ele olhou nos olhos dela. Eles estavam exatamente a mesma distância em que haviam estado naquela noite, 750 anos antes. Ele piscou, e ela retribuiu. E então começaram. Um sussurro baixo, um murmúrio, uma canção de justaposição e contradição. Onda após onda de ritmo para intoxicar e acalmar. Um calor para esfriar. Para criar uma névoa invisível. Era uma canção composta por melodia tão antiga e poderosa que o planeta quase havia esquecido. Remexendo uma lembrança com pó embaixo das feias construções do porto, a terra suspirou e se esticou com esplendor. A terra revolta balançou os homens e eles olharam ao redor, nervosos. Cada nota vibrava por Brigit e Eamon aparentemente entrelaçadas para formarem um túnel, por meio do qual uma mão quase transparente se estendia a eles. A corda pelo labirinto. Ela assentiu para os nazistas e se inclinou para Alma, como se fosse dar um beijo de despedida, e levou a mão ao coração da menina, sussurrando em seu ouvido. — Leve Lukas por uma mão e segure a mão grande. Pode parecer uma ilusão, mas eu juro que é sólida. Segure firma nela e vocês chegarão ao barco. Eamon vai cuidar de vocês. 285
— O que você vai fazer? — Alma perguntou, tentando esconder o pânico que sentia. — Vá! E Alma obedeceu. Para todas as outras pessoas, eles desapareceram em um piscar de olhos, mas Brigit viu que eles estavam sendo seguros pela mão, viu que eles foram levados em segurança em uma onda de música antiga, viu Eamon recebê-los, assustados, tossindo e chorando pela dor de passar por um caminho que não deveriam ter de atravessar. Ela teve um breve momento de satisfação antes de voltar sua atenção aos homens que a cercavam. Certo, meu demônio. Vamos criar o tipo de caos que poderia despertar os mortos. O demônio sorriu para ela. Ele colocou o fogo em sua boca, onde o manteria sob controle. Se Mors pudesse ver isto. Os nazistas ficaram surpresos ao terem seus narizes quebrados pela criatura entre eles. Um deles ainda segurou a espada e a balançou na direção de Brigit, atingindo sua coxa. Ela ignorou a dor e amassou o pulso dele com o pé ao pegar a espada e enfiá-la no coração do homem. O outro nazista gritou para que os caçadores cumprissem sua obrigação. Flechas voaram na direção de Brigit. Ela se remexeu desesperadamente, afastando-os com a espada enquanto implorava a Eamon que permanecesse onde estava. Era a sua vez de lutar. — Qual de vocês vai se aproximar para lutar como um homem? — Ela perguntou aos gritos. Os homens hesitaram, desejando e precisando daquela luta, mas sabendo também o que poderia acontecer. Do barco, Eamon, Alma e Lukas observaram abismados. Eamon manteve as mãos nos ombros das crianças, que receberam o toque como se fosse familiar. Ele murmurou de modo constante, um ritmo alegre que fez com que eles pensassem que talvez não estivessem vendo sua guardiã travar uma luta com dezenas de caçadores, enquanto o céu ameaçava abrir. Com gritos guturais de luta, os caçadores pularam para o cais para enfrentar a vampira de frente. Afinal, era o que eles tinham de fazer, destruir o grande mal de perto. O lixo podia ser jogado fora a distância, mas para o mal daquele tamanho eles tinham de olhar de frente e sorrir antes de fazê-lo
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desaparecer. Nenhum deles já havia tentado derrubar um milenar, mas eles eram muitos, ela era uma, e eles sabiam como lutar. Brigit não estudara a arte da batalha, mas tinha Mors dentro dela naquele momento, e um homem não se tornava um general na Republica Romana por acaso. Ela não pensou em mais nada, apenas se concentrou na música quente dentro dela, um ritmo que a levava de um lado a outro, despachando os homens em um balé frenético. Ela escutou gritos, sentiu lâminas cortando seus membros, até seu peito, mas estava possuída demais para permitir que a dor a detivesse. O calor estava aumentando, por dentro e por fora. O sol e o fogo estavam se aproximando. — Agora, Brigit! Vamos! O barco está partindo! — Eamon gritou. Os restos da neblina que Brigit e Eamon haviam criado fazia com que ninguém dentro do barco, apenas os três mais envolvidos, pudessem ver o que estava acontecendo no cais, e os marinheiros continuaram realizando suas tarefas de modo metódico, colocando as correspondências dentro do barco. Brigit parou. Podia escapar naquele momento. Nenhum caçador irlandês de respeito entraria na província dos caçadores britânicos para matar um vampiro, mas apenas o fato de ela ser Brigantia e de ter ousado atravessar a fronteira deles e fazia com que lutassem com tanta intensidade. Mas então ela sentiu o cheiro dos Nachtspeere. Weber e Lange não tinham sido os últimos; havia alguns ali em treinamento, e outros que tinham sido enviados para o caso de todo o resto ter dado errado e aquilo se fazer necessário. Caçadores irlandeses aliados a Alemanha e aos Nachtspeere. Acabar com eles naquele momento significava que os nazistas caçadores de vampiros estavam presos ao continente e, assim, seriam exterminados. Ela havia ido a Alemanha para se vingar pela morte de seres de sua espécie. Passara a se importar com o destino da humanidade em si, mas aquele era o fim do círculo. Se fracassara em impedi-los de matar seres humanos, podia fazer mais um ataque pelos vampiros e ver mais alguns dos homens fortes mortos, diminuindo a esperança que eles mantinham pelo grande futuro ariano. Com um rosnado profundo, Brigit virou-se empunhando a espada, sentindo prazer ao sentir cabeças sendo decepadas como cordões de prender linguiça, sentindo apenas que era um ato de finalização acontecendo tarde demais.
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Um caçador pulou por trás dela e a derrubou de joelhos com o impacto e o peso. Ela se virou e sentiu o cheiro do empenho e o poder da estaca, não aquela que Leon havia usado para mostrar suas intenções, mas uma feita centenas de anos antes e guardada para a chance de atacar com grande certeza e precisão. No barco, Eamon virou as crianças para ele, pressionando o rosto delas contra seu peito. Elas não conseguiriam tolerar ver aquilo, nem a raiva surgindo nos olhos de Eamon. Sua Brigit estava correndo o risco de perder sua imortalidade, e não havia nada que ele pudesse fazer. A ponta da estaca espetou o seio de Brigit, ela sentiu a carne cedendo, como se abrisse caminho para a arma que era feita para acabar com aquele corpo não natural. Mas Eamon estava dentro do coração que aquela estaca pretendia penetrar e despedaçar, e Mors estava vivo em algum lugar, pulsando sob os ossos dela. Ela envolveu a estaca com as mãos e a apertou com tanta força a ponto de fazê-la virar pó. Sua mão golpeou entre os olhos assustados do caçador, espalhando massa encefálica pelo cais. Raios de sol surgiam entre as nuvens. O barco estava começando lentamente a partir em direção ao País de Gales. Os outros dois caçadores que restaram, sentindo a desvantagem na qual se encontravam, correram na direção de Brigit enquanto ela se esforçava para ficar em pé. O sangue de muitos de seus ferimentos escorreria por sua pele, que estava começando a rachar ao sol. Não. Ela se virou na direção do cais, com os olhos marejados em lágrimas furiosas. Não podia estar prestes a morrer. Um caçador lançou uma estaca nela com o arco. O objeto acertou seu quadril e ela a arrancou, ignorando a dor, desejando que a mão translúcida se mostrasse a ela. — Não, Eamon, não... — sua voz estava fraca, apenas um eco do que seria a voz normal. Ela deu alguns passos e escorregou em massa encefálica, caindo de costas. Os caçadores gritavam de alegria, com as armas em punho. Eles se aproximaram dela, pulando. Ela viu os olhos deles, viu que estavam saboreando o triunfo, que ela não passava de uma derrotada. — Nããããããooo! — ela gritou, olhando para os homens que se aproximavam, reunindo força na maldade e certeza que eles demonstravam. 288
Com outro grito estridente, ela arrancou os corações deles e os apertou nas mãos. Limpou a sujeira de seus dedos e correu para a prancha. O barco havia partido, o sol brilhava e Eamon estava agachado, segurando as crianças e gritando por ela em um apelo silencioso. Ela não havia salvado aquelas crianças, chegado tão perto para ser interrompida naquele momento. Com um grito de desafio ao sol, mergulhou na água. Chutou com força, indo quase para o fundo, usando suas forças sem precisar de oxigênio. O sal fazia arder suas feridas abertas, mas ela não se importava, e nadou como uma criatura possuída. Foi a voz de Alma que ela escutou quando tirou a cabeça da água, e a menina gritava que sua tia havia caído na água. E apesar de nenhum dos barqueiros se lembrar dos passageiros que haviam embarcado, dois deles correram e puxaram Brigit para cima. Um dos homens a cobriu com um cobertor pesado; o outro a levou a uma pequena sala onde havia um kit de primeiros socorros, e com ele cuidou dos cortes e hematomas, sem experiência, mas com atenção. Brigit não se importava nem um pouco com as marcas em seu corpo, pois elas seriam curadas em horas. Virou a cabeça, ansiosa para ver Alma. Ao avistar a menina, perguntou de maneira quase descontrolada: — Você está bem? — Sim. — Alma respondeu, ainda abalada pela viagem pela passagem subterrânea e pelos intermináveis últimos cinco minutos. — Sim, estamos bem. Todos nós. Os barqueiros não entenderam o que a menina disse, mas ficaram felizes ao ver a bela loira mais tranquila. — As águas aqui podem ser um pouco bravas. — um deles comentou. — A senhora teve sorte de conseguir voltar ao barco. De modo geral, Brigit concordou.
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Capítulo 22 Trem para Londres. Agosto de 1940
O Céu estava aberto em Holyhead, mas havia sombra no cais, a estação era protegida e o trem pararia na Kings Cross aquela noite. As roupas de Brigit ainda estavam úmidas, mas não mais havia marcas do que ela enfrentara, e o pequeno grupo não chamou atenção. Eamon esperou até que Brigit e as crianças comprassem as passagens antes de se unir a elas na plataforma. Finalmente, ele e Brigit puderam olhar um para o outro e trocar um abraço. Lukas olhou fixamente para os vampiros abraçados, mas Alma, depois de observar por um momento, virou-se e olhou para os trilhos, ansiosa pela chegada do trem. O trem estava repleto de soldados e tomado pela fumaça de cigarro e pelas conversas descompromissadas. Por fim, eles encontraram um compartimento com menos ruídos e Eamon colocou ali suas malas. Ele sorriu para as crianças e ofereceu a elas duas barras de chocolate. Brigit não aprovou. — Eles não tomaram o café da manhã direito, vão se sentir mal comendo isso agora. — Vamos chegar daqui a pouco, não tem problema. — Por favor? — Lukas pediu. — Não, espere até tomar um pouco de leite e comer um sanduíche primeiro. Não quer ficar doente de novo, não é? Lukas resmungou e abriu um pouco a cortina que Brigit havia aberto para poder olhar para fora. Ela e Eamon se entreolharam e sorriram levemente. A única coisa que nunca poderiam ter. Uma vampira raramente pensava em filhos, mas todos eles sabiam que seus demônios se alojavam no ventre, no espaço mais confortável e razoável dentro do corpo.
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Depois que as crianças comeram, Brigit as levou ao pequeno lavatório para que pudessem se lavar, e todos se acomodaram nas poltronas. Lukas dormiu. Alma esforçou-se para se manter acordada, observando Brigit e Eamon. Brigit parecia uma criatura muito diferente. Ainda estava em alerta, ciente da luz do dia lá fora, porém estava mais preocupada em entregar Alma e Lukas com segurança a seus parentes. Alma sabia que eles ficariam bem, que a Inglaterra os receberia. Mas Brigit não descansaria até ver a tarefa totalmente cumprida. No entanto estava mais relaxada do que Alma já tinha visto. Sua cabeça se encaixava perfeitamente no pescoço de Eamon, com a mão apoiada contra o coração dele. Ele acariciava a mão dela, envolvendo-a com o outro braço, dedos em seu cotovelo, com o rosto encostado na cabeça dela. Os olhos de ambos estavam entreabertos, olhando para o nada. Alma se lembrava de ter visto os pais naquela posição certa vez, flagrados em um momento de conversa sem palavras, a imagem de um amor profundo, quase doloroso de ver. Quando eles atravessaram a fronteira para a Inglaterra, Eamon tocou Brigit e sorriu para as crianças. — Bem-vindos ao lar. Lar. Era o lar de Brigit e de Eamon, mas Alma de repente entendeu o que não havia se permitido pensar desde o dia em que o pai lhe contara seus planos. Ela provavelmente nunca mais colocaria os pés na Alemanha de novo. Sua terra natal era desconhecida, um território hostil, que não a queria ali. Se quisesse viver, sua vida seria ali. Teria uma boa vida. Deixaria o pai orgulhoso. Seu olhar se cruzou com o de Brigit. Livre de medo, preocupações e fingimento, Alma conseguia ver como aqueles olhos jovens e brilhantes eram surpreendentemente velhos. Havia um mundo perdido dentro deles, locais selvagens, grandes mistérios, ar puro e um céu estrelado que tomava conta de um mundo fascinante. Havia riso, amor e algo que tinha de ser chamado de humanidade naqueles olhos. Alma sentiu um arrepio e desviou o olhar. Ao fazer isso, sem querer olhou para Eamon e viu lágrimas em seus olhos enquanto ele observava Alma e Lukas. Ele irradiava um calor peculiar e seu sorriso suave despertou nela a vontade de devolver o sorriso. Ela sentiu que ele queria dizer algo, até mesmo tocá-la, mas não se atrevia. Ela percebeu que gostava dele por isso.
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Brigit desejou saber o que Alma estava pensando. Não perguntaria, pois respeitava a privacidade da menina, mas queria saber. Tentou imaginar se Alma olhava para Eamon e via uma relação com sua própria história, se compreendia que ele havia feito tanto quanto ela para ver Alma e Lukas chegarem àquele lugar. O que Owen dissera era verdade: os primogênitos se tornam caçadores. Alma tinha grande poder e força, mas Brigit via um brilho forte atrás dos olhos escuros, luz demais para ficar apenas na escuridão. Será que vou vê-la de novo? E se eu a vir, será antes de morrer em suas mãos? Ou eu a verei quando você matar Eamon? Ele e eu salvamos vocês, mas isso não nos toma seres humanos. Continuamos sendo seu inimigo natural. Ou será que eu e você agora temos um elo? Sua vida esta prestes a se abrir diante de seus olhos. Qual caminho vai tomar? O condutor passou para checar se as cortinas estavam fechadas. Não havia bombardeio aquela noite, ainda não, mas aquela era a nova ordem. As canções dos soldados estavam mais altas, ensurdecendo os bombardeadores e a probabilidade de morte iminente. Logo eles estariam no meio da batalha. E cantariam enquanto pudessem. Alma e Lukas vestiram roupas limpas e Brigit os levou para que se lavassem mais uma vez. Todos estavam em silêncio ao entrarem na estação mal-iluminada, com os soldados passando por eles, gritando e rindo. Brigit ajudou as crianças a descerem as escadas e elas se mantiveram perto dela, procurando o casal que devia os estar procurando. Brigit só percebeu que tremia quando Eamon pousou a mão de modo tranquilizador em seu ombro. Uma mulher que Brigit viu que devia ser a irmã de Leon se aproximou deles. Ela se virou e chamou o marido, que estava mais distante na plataforma. Ele se apressou para acompanhar a esposa. Eles evitaram olhar para os vampiros, abaixando-se para cumprimentar as crianças. — Alma, Lukas, estamos muito felizes por ver vocês. — A tia disse com um leve sotaque inglês. Lukas se prendeu timidamente a Brigit e a tia mordiscou o lábio. Brigit ajoelhou-se e colocou as mãos nos ombros do garoto. — Estes são sua tia e seu tio, Lukas. Eles cuidarão muito bem de vocês e vocês serão muito felizes. Agora, vá. Deixe-os levar para casa. Ele abraçou Brigit e ela o abraçou, mais forte e por mais tempo que pretender a, sentindo o coraçãozinho dele bater contra ela, forte e saudável. 292
A tia prendeu a respiração, e quando Brigit entregou Lukas a seus novos guardiões, ela viu que a mulher olhou para ela rapidamente. Brigit assentiu, ficando sem jeito e aproximando-se de Eamon. Alma ficou em pé entre os dois casais, hesitante. Sua tia estendeu a mão a ela e disse: — Vamos, querida, precisamos pegar um táxi ainda e é difícil fazer isso se escurecer. Alma deu um passo na direção da tia, e então voltou correndo para Brigit e segurou sua mão, puxando para que ela se ajoelhasse e elas ficassem frente a frente. — Obrigada. Brigit sorriu e tocou a face arredondada da menina. Temia vê-la de novo, mas sofreu ao se dar conta de que não veria a mulher surgir da criança. Ela sabia que a mulher que Alma se tornaria seria incrível de ver. Alma não se moveu e Brigit se aproximou e sussurrou a ela. — Existem três coisas neste mundo que tornam a vida completa. Talvez elas sejam a mesma coisa. Felicidade, paz e amor. Se você as tiver, terá tudo. Desejo essas coisas a vocês, em grande quantidade. Elas e uma longa vida para poder aproveitá-las. Viva bem, Alma. Viva bem. Os lábios de Alma tremiam. Ela assentiu, encostou seus lábios rapidamente no rosto de Brigit, então se virou e correu para se unir a sua família. Nenhum deles olhou para trás. Brigit e Eamon observaram até a família dobrar a esquina para pegar um táxi. Eamon segurou a mão de Brigit e a guiou para fora. Londres sitiada era assustadora, e Brigit ficou mais perto de Eamon, sem sentir que de fato estava em casa. A cidade estava assustada, tremendo sob a capa de escuridão que não trazia proteção. A escuridão fez com que Brigit se lembrasse do mundo que amara centenas de anos antes. Mas ela tinha perdido o gosto por aquela lembrança. Ela gostava de um mundo no qual as luzes brilhavam nas ruas. Endireitou os ombros, pronta para outra briga. Veria aquele mundo voltar. Eamon virou-se para ela. Ela havia visto muita coisa, ele percebeu com um certo incômodo, notando a dor e a tristeza que tomavam conta de seus traços. Ela sabia sem ter de perguntar que não havia qualquer notícia de Mors ou Cleland. Seus medos e decepções pesavam em seus ombros. Mas ela
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continuava sendo a Brigit dele. Eamon tocou a face dela e viu um brilho antigo. Havia uma nova beleza em seu rosto, novo terreno a explorar. — Em todos os anos que estão por vir, acho que nunca poderei dizer como estou feliz por você estar de volta. Brigit não conseguiu responder. Seu coração estava cheio demais. Ela desejou que eles pudessem avançar 250 anos, para a segurança de Eamon como milenar, mas assim como tantas outras coisas, aquilo era impossível. Não havia escolha a não ser valorizar o presente. Eles se beijaram e Brigit se concentrou no beijo. Um beijo sem começo ou fim, um elixir doce transformando-se em alegria sem fim. Ainda temos isto. E isto é tudo. — Venha, moça, o dia acabou e vamos para a escuridão. Ela sorriu. No dia seguinte, ela tomaria conhecimento de todas as notícias tristes da guerra e do que estava acontecendo na Inglaterra e no mundo. No dia seguinte, ela contaria a todos os detalhes decepcionantes da semana anterior, do mês anterior, do ano anterior. No dia seguinte, ela se uniria a vigília de esperança por Mors e Cleland. Mas, naquela noite, ela e Eamon se abraçaram e caminharam pelo escuro para casa.
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