Política e déficit habitacional A influência da política na produção de habitação de interesse social no Brasil
Larissa Alves Lacerda
Larissa Alves Lacerda
Política e déficit habitacional A influência da política na produção de habitação de interesse social no Brasil
Ensaio teórico à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília Orientador: Benny Schvarsberg
Brasília, 2017
Resumo O presente estudo visa analisar a questão do déficit habitacional no Brasil nas últimas décadas. Apresenta a trajetória das principais políticas públicas na área de habitação de interesse social e quais seus resultados urbanísticos, arquitetônicos e sociais. A análise é feita com foco nos programas do Banco Nacional de Habitação (BNH) e no Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) devido ao caráter centralizado de abrangência nacional. A análise é dividia nas seguintes partes: primeiro faz-se uma análise do processo de urbanização brasileiro e as primeiras construções de habitações populares. Em seguida, as construções descentralizadas dos institutos de pensionistas, da Fundação Casa Popular e das secretarias de habitação. Depois, é analisado o programa habitacional do BNH, os programas municipais na década de 1990, as autoconstruções por mutirões e, por fim, o PMCMV, que teve início em 2009 e ainda encontra-se ativo. O método para este trabalho foi a análise dos trabalhos de Nabil Bonduki, João Sette Whitaker, Pedro Fiori e Mariana Fix, Sergio de Azevedo, Luis Andrade, Denise Morado, Raquel Rolnik, Caio Amore, Maria B. Rufino, Lúcia Shimbo, entre outros. Conclui-se que os programas foram amadurecendo ao longo dos anos, com avanços e recuos. Porém o acesso à terra urbanizada ainda é o maior problema e a especulação imobiliária seu gerador. Como alternativa, é necessário que seja aplicado o Estatuto da Cidade e que haja maior participação popular.
Palavras-chave: política habitacional; déficit habitacional; habitação de interesse social; BNH; Minha Casa Minha Vida.
Sumário Introdução
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As origens da habitação de interesse social no Brasil
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Da Fundação Casa Popular ao fim do Banco Nacional de Habitação
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Banco Nacional de Habitação: a experiência em habitação social no Brasil de 1964 a 1986
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Políticas habitacionais na era Vargas Criação das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria e Previdência
Fundação Casa Popular Do final dos anos 1940 ao Golpe Militar de 1964
A criação do banco e sua área de atuação
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8 10
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1986-2002: O fim do BNH, a ausência de outro programa a nível nacional e as novas experiências que “pipocaram” pelo Brasil
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Fim da ditadura militar Final dos anos 1980 e anos 1990
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Os anos 2000 e o Programa Minha Casa Minha Vida até os dias atuais
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Estatuto da Cidade, programas iniciais do governo Lula e criação do Ministério das Cidades Crise do governo Lula e mudança do Ministério das Cidades O Programa Minha Casa Minha Vida Principais ponderações sobre o PMCMV A Arquitetura do PMCMV
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Conclusões sobre os programas
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Alternativas para pensar sobre o programa no futuro
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Considerações finais
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Referências bibliográficas
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Introdução O problema do déficit habitacional nos centros urbanos do mundo é normalmente explicado como a defasagem entre o crescimento populacional e a produção de habitação. Essa é uma explicação se não equivocada, no mínimo incompleta. O fato real que configura a violação do direito constitucional de acesso à moradia é que grande parte da população brasileira e mundial não tem acesso à moradia, gerado pelo baixo nível de renda. Entende-se como déficit habitacional a “necessidade de construção de novas moradias para a solução de problemas sociais e específicos de habitação”, sendo esses problemas configurados por: habitação precária, coabitação familiar, ônus excessivo com aluguel urbano (famílias com ganhos de até 3 salários mínimos que gastem 30% ou mais com aluguel) e adensamento excessivo de domicílios alugados. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2016) Ao iniciar este trabalho, ainda não se apresentava de forma clara para mim, qual resposta procurava com este estudo. Havia apenas a sensação incomoda e inquietante toda vez que me encontrava na presença ou me deparava com imagens de tipologias típicas do meu imaginário do que foi a produção de habitação de interesse social (HIS) ou conjunto habitacional popular no Brasil. Quais foram os caminhos tomados na história da política habitacional e urbana brasileira que nos trouxeram até o atual cenário? Por que continuam a se reproduzir soluções desagregadoras, de baixa qualidade arquitetônica e urbanística? Qual o papel da produção de moradia popular na sociedade contemporânea? A questão da habitação é uma das principais reivindicações na luta pela ampliação da cidadania. Como então responder à seguinte questão: qual o papel das mais expressivas políticas habitacionais como estratégia do desenvolvimento urbano? E onde encaixaria o papel de uma futura arquiteta e urbanista nesse cenário, em que mais de 6 milhões de pessoas no Brasil ainda encontram-se em situação de déficit habitacional? É nesse sentido que esse ensaio teórico toma forma. Como uma maneira de entender quais foram os caminhos tomados pelas políticas públicas no Brasil que desenharam a produção de habitações de interesse social em resposta ao déficit habitacional em nossas cidades. 4
As origens da habitação de interesse social no Brasil
representativos são, no exterior e no Brasil, respectivamente, o plano de Haussmann em Paris nos anos de 1853 a 1869 e o de Pereira Passos no Rio de Janeiro de 1902 a 1906. As ações do Estado no setor No início do Brasil republicano, ou durante a de habitações resumiam-se portanto na derrubada chamada República Velha (1889 a 1930), as cidades de moradias que fossem altamente insalubres e que possuíam seu movimento marcado pelo comércio, iam contra os preceitos de higienismo em voga. exportação da produção agrícola e importação de Com a constante derrubada de cortiços, o cresbens. Antes de 1930, a indústria ainda desempenhava um papel secundário. O Estado, expressamente cimento das produções industriais e consequenteliberal, não intervinha no mercado de moradias, mente da população nas cidades, inclusive devido à fosse na sua produção – salvo algumas poucas exce- chegada de imigrantes, desencadeou-se um forte ções de pequenos empreendimentos construídos processo de valorização fundiária nas grandes cidacom recursos públicos – ou nos valores dos alugu- des, em especial São Paulo e Rio de Janeiro. Esse processo era acentuado devido à segurança do éis. retorno financeiro nos investimentos no mercado Os trabalhadores das cidades, devido ao baixo imobiliário, numa época em que crescia o déficit salário que recebiam, encontravam-se no impasse habitacional e não haviam muitas opções de aplicaentre “comer ou pagar aluguel”. Assim, aglomera- ção de crédito. A única solução aceita à época em vam-se em cortiços no centros urbanos; estimava-se que somente o setor privado poderia produzir habique em 1904, um terço das habitações de São Paulo tações, fora a construção de vila operárias feitas por eram cortiços. Essa habitações mínimas, sem níveis empresários, com incentivos fiscais. de insolação e ventilação adequados, favoreciam o As vilas operárias representavam vantagens em surgimento e proliferação de doenças e pragas. vários aspectos: disponibilidade do funcionário a (BONDUKI, 2012) qualquer hora do dia e fidelidade do trabalhador ao A ameaça de disseminação das epidemias em emprego (uma vez que ao ser despedido, ele também todas as classes sociais e sua instalação nos portos seria despejado). Algumas vilas possuíam aparatos trazem à tona discussões sobre o higienismo. Os públicos como locais de lazer, escolas e igrejas. distúrbios de saúde da população provocados pela Assim, as vilas operárias eram vistas como um aglomeração nas habitações coletivas passa a ser modelo ideal, por proporcionarem ambientes saluobjeto de estudo e preocupação de autoridades com- bres e ordenados e ainda assegurarem o controle petentes, traduzidas pela procura da construção de político (o trabalho atrelado à moradia evitava insurreições), moral e social (ao estipular que tipo espaços físicos salubres e “higiênicos”. de local o trabalhador e sua família frequentariam A alta concentração de trabalhadores urbanos nas horas vagas) e de saúde pública (ao garantir em condições precárias propicia solo fértil também construções que seguiam as recomendações higienistas) da classe operária. para a disseminação de ideais revolucionários. A partir de 1930, o Estado sai do papel de Portanto, além da preocupação higienista, uma organização político-revolucionária por parte dos expectador das dinâmicas agroexportadoras do trabalhadores representava uma ameaça ao poder setor privado e passa a estabelecer as regras afim de colocar as atividades urbano-industriais à frente da dominante. economia nacional. Ao mesmo tempo, o governo Ademais, tal forma de organização habitacional busca uma relação de apoio com as bases populares. se torna um agravante ao impor dificuldades às É nesse cenário que a produção de habitação para as tropas policiais e militares para se locomoverem e se classes de baixa renda começa a ser vista como uma localizarem nos assentamentos e nas ruas estreitas questão social de responsabilidade do poder público. e tortuosas. As preocupações higienistas somadas às político-militares, guiaram as diretrizes estético-funcionais que marcaram a urbanização do século XIX e início do século XX. Seus exemplos mais
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Políticas habitacionais na era Vargas Em 1942, o presidente Getúlio Vargas regulamenta as relações proprietário-inquilino com o congelamento dos aluguéis. Tal medida pode ser justificada por três motivações. A primeira como uma busca na ampliação do apoio popular e a segunda por uma redução do custo da força de trabalho. Por último, Vargas procurava assim desestimular o investimento no setor imobiliário e rentista para que houvesse o direcionamento dos investimentos em setores mais estratégicos ao plano desenvolvimentista. Essa era uma forma de controle do Estado da economia, de modo a fazê-la funcionar de modo não automático.
vel que os IAP’s fossem autorizados a destinar até metade de suas reservas para investimento imobiliário. Com condi- ções mais favoráveis de financiamento (juros mais baixos e maiores prazos), tornou-se possível dar maior rentabilidade às reservas dos institutos, que até então possuíam suas aplicações em títulos de dívida pública, com baixo rendimento.
As habitações produzidas pelos IAP’s visavam o atendimento social completo, com clínicas, escolas, recreação, etc. Os institutos e caixas de aposentadorias e pensões atuaram de forma descentralizada e esparsa, e não atendiam às faixas da população de baixo poder aquisitivo, já que atendiam somente os associados por meio das carteira prediais. “Nos IAPs, a função de edificação é secundária (seu objetivo primeiro é garantir aposentadoria e pensões aos associados), servindo também como forma de garantir rentabilidade para as reservas dos Essa prática, porém, gerou a diminuição de institutos [...]”. (BONDUKI, 1994)
produção de casas, aumentando ainda mais o déficit habitacional nas grandes cidades brasileiras que recebiam um enorme contingente populacional à procura de trabalho nos centros urbanos. Com seus “rendimentos reais declinantes, sendo fortemente penalizados numa economia crescentemente inflacionada” e sem instrumentos legais para aumentar os aluguéis, os proprietários viam no despejo uma alternativa para aumentar o aluguel em uma nova locação. Sobretudo, por uma crescente demanda por moradia na capital paulista que não era acompanhada pela sua produção. Conforme ressalta Bonduki, esse fato desencadeou uma forte crise de despejos nos anos 1940. (BONDUKI, 1994)
É difícil estimar o total de famílias despejadas durante o período mais agudo da crise de habitação, entre 1945 e 1948. Uma estimativa aproximada calcula que cerca de 10% da população paulistana foi despejada neste período. Esta imensa dimensão dos despejos é explicada pelos mecanismos formais e informais que passaram a reger o mercado de locação. (BONDUKI, 1994)
As produções dos IAP’s tiveram importante papel na construção de tipologias residenciais, em especial em Brasília, já que os vários conceitos da arquitetura modernista estabelecidos pelo plano de Lúcio Costa já estavam sendo testados pelas produções habitacionais destes órgãos em todo o país. Alguns desses conceitos que merecem destaque: - ampla utilização de blocos multifamiliares de apartamentos padronizados (indo de 3 à 18 pavimentos), uma vez que a produção de habitação para a população urbana no Brasil ainda se baseava em tipologias unifamiliares; - introdução de soluções do repertório da arquitetura moderna, como o uso de pilotis, ausência de ornamentação, implantação cartesiana e uso de áreas de convívio social para lazer; - alta qualidade projetual e construtiva, em grande parte devido à participação de arquitetos nos empreendimentos.
Criação das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria e Previdência Em 1937 é regulamentada a atuação dos Institutos Conjunto Residencial Realengo (RJ) – construído pelo IAP
de Aposentadoria e Previdência (IAP’s) em habitação. dos Industriários em 1942, introduziu propostas pioneiras Este foi o marco inicial da produção em larga escala do como a utilização de elementos construtivos feitos in loco. poder público em HIS. A regulamentação tornou possí- (créditos imagem: internet) 6
As formas de acesso às produções habitacionais dos IAP’s se deram de duas formas. A primeira, o imóvel permanecia como propriedade do instituto e era alugado ao beneficiário. O instituto mantinha o empreendimento sob sua tutela com o propósito de impedir o esfacelamento do investimento e das reservas da previdência – o que em parte explica a alta qualidade das construções. A segunda forma de acesso se dava por meio de financiamento a prestações fixas para obtenção da casa própria. Entretanto, devido à inflação crescente em junção com uma lei que congelava os valores dos aluguéis, os retornos financeiros tornavam-se cada vez mais irrisórios, tanto nas prestações de aluguel como de financiamento. Nesse cenário, as produções de habitação popular extinguiram-se, como ressalta Bonduki:
mostrando, de modo propagandístico, um governo preocupado em contribuir para atenuar a crise de habitação e, ao mesmo tempo, estabelecendo padrões de qualidade exemplar. (BONDUKI, 1994)
Nestas condições, conseguir uma unidade ou um financiamento habitacional dos institutos num período de crise de moradia passava a ser um privilégio que favoreceu uma política clientelista desenvolvida a partir do Ministério do Trabalho, a quem se Quadra SQS 106 em Brasília construída pelo IAPC (Crédisubordinavam os IAP’s [...]. Sem tos imagem: BONDUKI, 2012) conseguirem reaver os investimentos realizados, em poucos anos os institutos foram deixando de construir habitações populares. Perdeu-se, assim, um dos mais interessantes processos de produção de habitação social do país. (BONDUKI, 1994) A produção e o financiamento de unidades habitacionais promovidas pelo Estado alcançaram quase 175 mil unidades entre 1930 e 1964. Esse valor aparenta ser irrelevante se comparado ao número de expansão da população urbana à época, que foi de 8 milhões em 1930, para 32 milhões em 1960 e 52 milhões em 1970. Porém é preciso lembrar que anteriormente à isso a produção de habitação de interesse social (HIS) para trabalhadores encabeçada pelo Estado era praticamente nula. Dessas 175 mil unidades, a produção dos IAP’s somam o número de 127 mil (mais de 70%). Além da relevância urbanística e arquitetônica dos empreendimentos viabilizados pelos IAP’s, a importân- Maquete do edifício dos bancários contruído pelo IAPB nos cia da ação pública esteve no fato de anos 1950 em João Pessoa. (Créditos imagem: BONDUKI, iniciar um processo de produção de 2012) moradias patrocinado pelo Estado, 7
também tiveram influência na criação da fundação: em um momento de crescente mobilização e adesão popular às pautas comunistas, principalmente por parte dos operários urbanos, a criação da Fundação Casa Popular buscava também alcançar a simpatia das camadas sociais mais baixas ao assumir políticas de cunho social. (BONDUKI, 2012) Pensada inicialmente para atuar de forma a produzir habitações e reduzir o déficit habitacional no país, com o decreto-lei nº 9.777 de setembro de 1946, a Fundação Conjunto habitacional IAPI (Instituto de Aposentadorias e Casa Popular se propunha a operar frentes que a confiPensões dos Industriais) na Vila Guiomar de 1953 (crédito gurariam como um verdadeiro agente de política urbana. O projeto da FCP tinha como propósitos uma série de imagem: internet) medidas que se integravam para se implantar uma efetiva política habitacional para um país que se urbanizava e via suas capitais se tornarem em manchas urbanas com elevadas deficiências no atendimento de suas populações. Tais medidas eram as seguintes: - centralizar todas as carteiras prediais e os fundos das IAP’s; - financiar obras de infraestrutura urbana, atuar no serviço social no que tangia a área de habitação; - abrir linhas de financiamento para indústrias do setor de materiais para construção civil; - financiar construções de iniciativas municipais, industriais, institucionais ou comerciais voltadas à venda ou locação de habitação popular de baixo custo e; - apoiar pesquisas sobre processos construtivos e tendências regionais das moradias (focadas no estudo e Conjunto residencial do IAPI de Salvador construído na na produção de arquiteturas que melhor representassem as condições climáticas, os hábitos de vida, os materiais e década de 1950 (crédito imagem: internet) o uso de mão de obra de cada tipologia tipicamente regional do país). (BONDUKI, 1994) O programa permitiu a experimentação com mateDa Fundação Casa Popular ao fim do riais não convencionais para este tipo de arquitetura, como a construção de casas de madeira e blocos de Banco Nacional de Habitação concreto em conjunto com outras casas de alvenaria. Os projetos arquitetônicos e sua execução sempre ficavam à cargo da Fundação, enquanto que os terrenos e a realizaFundação Casa Popular ção de obras de infraestrutura eram de responsabilidade municipal, conforme o termo de compromisso que estes Criada em 1946, a Fundação Casa Popular (FCP) foi firmavam com a referida entidade FCP, o que nem o primeiro órgão de âmbito nacional voltado exclusiva- sempre acontecia, criando situações de precariedade nas mente a produzir moradias populares. Juntamente à sua habitações. (AZEVEDO, ANDRADE. 1982) criação se deu também a fusão dos institutos de previdência em um só órgão, o Instituto de Seguridade Social Com relação ao direito ao acesso às moradias consBrasileiro. Tal medida foi acompanhada de uma forte truídas pela FCP, não havia uma determinação de renda resistência e crítica de vários setores da sociedade, inclu- mínima, o que configura seu cunho social. Porém, o sive daqueles que compunham os Institutos de Aposen- programa também permitia a participação de famílias tadoria e Pensões – temerosas que a fusão dos institutos com renda líquida de até 12,8 salários mínimos (referene a criação da fundação fossem descapitalizar os IAP’s. te aos dias de hoje). Esse fator permitia que a população Assim, a FCP nasceu sem apoio político. O momento de renda mais elevadas disputasse as tão almejadas histórico do pós-guerra, de embates ideológicos, “casas populares”. (AZEVEDO, ANDRADE. 1982) 8
Matéria sobre produção de casas populares em Brasília construídas pela FCP, com projeto de Oscar Niemeyer: “... reflete a efetivação de uma política administrativa realmente útil ao trabalhador brasileiro, vindo libertá-lo gradativamente dos encargos de locações, sempre onerosas, e da intranqüilidade da luta pela conquista de um lar próprio.” (crédito imagem: http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/04_revistas/04rev_1950.htm)
Nesses termos, a renda deixou de ser um critério para a seleção. O número de dependentes tornava-se, pelo menos em teoria, o fator determinante na classificação e escolha dos candidatos. Em casos de empate tinham preferência os de ordem de inscrição mais baixa. Entretanto, a escolha nem sempre teve o caráter impessoal sugerido pela legislação. (AZEVEDO, ANDRADE. 1982, p. 10) A Fundação Casa Popular possuía um bom projeto de atuação, tendo várias frentes que visavam uma operação de combate à problemática da moradia de forma coesa e universal – diferente dos IAP’s que beneficiavam somente os membros dos institutos – inclusive à pessoas da zona rural. Esta proposta era muito mais abrangente daquelas até então conduzida pelos IAP’s, que beneficiavam somente os membros dos institutos. Porém as propostas se mostraram desproporcionais à realidade, devido à falta de comprometimento político dos gover-
nos federal e estaduais e ao direcionamento insuficiente e inconstante de capital para o projeto, frente a um crescimento constante da inflação. As classes sociais que seriam beneficiadas encontravam-se desorganizadas1, enquanto que a oposição, coesa e atuante para o desmantelamento da FCP (devido à interesses econômicos, corporativos e políticos). (BONDUKI, 2012) O período pós guerra exigia seletividade nos investimentos estatais, como aplicá-los na implantação no projeto industrial siderúrgico (CSN), e não em frentes dispersas de habitação como era a FCP. Temia-se também, por parte dos empreendimentos privados, a escassez de materiais básicos à construção civil (como o cimento) caso eles fossem usados para projetos de habitação social. Pouco se construiu do que se pretendeu construir com a Fundação e os recursos financeiros tornaram-se cada vez menores até cessarem por completo. (BONDUKI, 2012) 1
Setores de esquerda também foram contra o projeto por fazerem oposição ao conservador governo Dutra, como pelo Partido Comunista Brasileiro, que via a forma de “casa própria” como uma forma reacionária de se obter moradia. (BONDUKI, 2012)
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Conjunto residencial da FCP em Deodoro (RJ) construído na década de 1950 (Créditos imagem: internet)
Do final dos anos 1940 ao Golpe Militar de 1964 Os anos 50 foram marcados por uma crescente crise social, causada por uma estrutura agrária arcaica em declínio que continuava a expulsar seus trabalhadores para os centros urbanos e uma tardia e incompleta revolução industrial incapaz de absorver os migrantes rurais. Não havia uma frente coesa de enfrentamento da5 questão de habitação social no período e portanto não havia fontes de recursos permanentes e estáveis para a produção ou melhoramento de moradias. Entretanto, isto permitiu um amplo cenário de experimentação de projetos e de processos construtivos, tanto arquitetônicos como urbanísticos – lembrando que as expressões foram heterogêneas entre o que cada órgão promotor realizou – como, por exemplo, o Residencial Prefeito Mendes de Moraes, o “Pedregulho”2 de Affonso Reidy.
convívio harmonioso, - que a isto se reduz a arquitetura -, por cuja graça o programa estritamente utilitário e funcional da habitação popular se transmuda em beleza, adquirindo sentido urbanístico e monumental. Monumentalidade prenunciadora de uma nova era, de maior equilíbrio, mais senso comum e lucidez. O Pedregulho é pois simbólico – o seu próprio nome agreste atesta a vitória do amor e do engenho num meio hostil, e a sua existência mesma é uma interpelação e um desafio, pois o dinheiro do povo não foi gasto em vão: em vez de se diluir ao deus-dará, sem plano, foi concentrado, foi objetivado, foi humanizado ali para mostrar-nos como poderia morar a população trabalhadora. Se tal não ocorre, nem parece tão cedo tornar-se possível, cabe-nos então perguntar – por quê? Sim, por quê?” (Lúcio Costa)
Em 1952 o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio criou a Comissão de Bem Estar Social, na qual uma das subcomissões tratava de temas como déficit habitacional e favelização das periferias. Logo foi lançado um relatório em que pontuava quais ações deviam ser tomadas para enfrentar o problema: a ocupação do interior para conter êxodo rural, um teto para o valor máximo de financiamento, concessão de um crédito de baixo valor para compra de material de construção, orientação técniConstruído em espaço restrito, de topo- ca e a criação de um Banco Hipotecário de Investigrafia ingrata e numa vizinhança mento e Financiamento de habitação Popular. arquitetônica desvalida, ele surge de Já no final dos anos 50 com a era JK, havia uma repente à vista como uma revelação. Dominados pela linha sinuosa do euforia desenvolvimentista, marcada pela forte corpo principal que se estende à feição industrialização e intensificação da migração camda encosta, vazado a meia altura, [...] po-cidade. As atenções e os investimentos, porém, os demais elementos do conjunto foram estavam voltados para a construção de Brasília e sabiamente dispostos no espaço arbori- pouco foi feito no âmbito de habitação social, zado, entabolando-se assim entre as incluindo os IAP’s e a FCP, que tiveram investimenvárias formas desiguais que o consti- tos e esforços voltados à viabilizar a implantação tuem, o diálogo plástico necessário ao das áreas residenciais na nova capital. Consequente da acelerada industrialização e urbanização, a crise 2 Um dos exemplares mais icônicos da arquitetura moderna urbana e habitacional se agravou no país na década brasileira, que foi construído em 1947 pela ação do Departa- de 60. mento de Habitação Popular do Distrito Federal (à época no Rio de Janeiro), sob a direção da engenheira Carmen Portinho.
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No curto governo de Jânio Quadros, um projeto de lei estabelecia, de início, o revigoramento da Fundação Casa Popular e, posteriormente, a criação do Instituto Brasileiro de Habitação, que porém não foi adiante com a troca de Presidente que se seguiu. (BONDUKI, 2012)
Os fortes conflitos ideológicos marcaram o período do governo de Jango: a guerra fria, a revolução cubana e a reação americana contra a força do comunismo no mundo, o confronto nacional entre forças progressistas que visavam reformas de base e as forças conservadoras temerosas diante da possível perda de privilégios. Ações como as da Aliança para o Progresso3 apoiaram e financiaram programas habitacionais de grande dimensão quantitativa e qualidade discutíveis de projeto, que foram implementados por governos estaduais conservadores. Os modelos aqui propostos já anunciavam a política habitacional a ser implantada no período da ditadura. Um dos casos mais conhecidos é a remoção de favelas na Zona Sul do Rio e a transferências dos moradores para conjuntos na Cidade de Deus e Vila Kennedy durante o governo estadual de Carlos Lacerda – 1961 a 1965. (BONDUKI, 2012)
Um exemplo contrário aos demais da época é a ação do então governador de Pernambuco Miguel Arraes que encabeçou o projeto Cajueiro Seco. De baixo custo, o programa buscou a produção de moradias com o desenvolvimento comunitário e incentivo à produção local, integrando técnicas de pré-fabricação a sistemas construtivos vernaculares (arquitetura em que se emprega materiais e modos construtivos próprios da cultura e do ambiente), indo no sentido contrário às produções modernistas ou à importação de modelos exógenos em troca de apoio por financiamento estrangeiro.
Desenhos técnicos e perspectivas das construções de Cajueiro Seco (PE) (Créditos imagem: Diego Souza)
Autoconstrução com assessoria técnica em Cajueiro Seco (PE) (Créditos imagem: Diego Souza)
Em 1963 houve o Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRU), que procurou incorporar a questão urbana nas reformas de base. Porém foram sufocadas pelo golpe militar de 64. As recomendações do seminário que não entravam em Imagem aérea da Cidade de Deus (RJ) na década de 1960 conflito com o regime militar foram utilizadas para (Créditos imagem: Rosalina Brito) a criação do BNH, já as referentes a reforma urbana por exemplo, foram abandonadas e suas discussões 3 Executada pela agência americana U.S. Agency for International Development (USAID), criada para deter o avanço do retomadas somente após o fim do regime. comunismo no continente.
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O seminário chegou às seguintes premissas para que o problema de habitação social no país fosse enfrentado: a habitação é um direito constitucional e portanto é responsabilidade do Estado em provê-la; deve haver uma delimitação quanto ao direito à propriedade e ao uso do solo; há a necessidade de um avanço nas técnicas construtivas e na racionalização dos métodos de produção, com pesquisas na área fomentadas pelo Estado. O Seminário pontuou a importância da participação popular em programas de desenvolvimento da comunidade, assim como a participação da iniciativa privada na oferta de habitação. A necessidade de planos de ordenamento territorial e de habitação para orientar políticas públicas, de um sistema de levantamento de dados e estatísticas pelo IBGE levando em conta aspectos quantitativos e qualitativos sobre o déficit habitacional e por fim, do planejamento urbano aliado às restrições de uso do solo para que houvesse um controle sobre a especulação imobiliária. Segundo o relatório final do seminário, esses objetivos seriam alcançados com a criação de uma estrutura institucional como órgão central e a determinação de fontes específicas de recurso de um fundo de habitação, provenientes de um imposto de habitação (incidente sobre transações imobiliárias), taxa sobre ociosidade de imóvel urbano, arrecadação de operações imobiliárias de pessoa jurídica e do orçamento da união. Entretanto, os estudos para uma reforma urbana com a execução dos encaminhamentos do seminário foram abruptamente interrompidos devido ao golpe militar de 64. (BONDUKI, 2012)
O documento final do SHRU apresenta um projeto de lei que criaria um Banco Nacional de Habitação, um Plano Nacional de Habitação e um Plano Emergencial para habitações “subnormais”. O material é de impressionante atualidade, e é possível relacionar fortes semelhanças com as agendas que orientaram a criação de vários projetos que se seguiram muitos anos depois como o Projeto Moradia (1999), o Estatuto das Cidades (2001), o Ministério das Cidades (2003), o Conselho Nacional de Cidades (2004) e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (2005), mais de quarenta anos depois. (BONDUKI, 2012) No Comício da Central em 1964, Jango listou o tabelamento dos aluguéis e dos materiais de construção dentre as propostas da reforma de base, com forte apoio popular. Seu governo aparentemente
havia acordado para o problema da habitação no Brasil, porém demorou a se mobilizar e assim fora atropelado pelas mudanças impostas pelo golpe de 64. Pouco após o golpe militar, a Fundação Casa Popular foi transformada no Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU) voltada para a formulação da política urbana e habitacional e para difundir uma mentalidade de planejamento urbano nas administrações municipais e, em agosto de 64, é fundado o BNH, que já estava sendo estudado desde o segundo governo Vargas. Dado o novo arranjo de poder, foram afastadas todas as ideias sobre reforma urbana e fortalecida a difusão do ideário de propriedade privada.
Banco Nacional de Habitação:
A experiência em habitação social no Brasil de 1964 a 1986 A criação do banco e sua área de atuação O período da ditadura militar teve seu início em 1964 e durou até o ano de 1985 e foi marcado pelo autoritarismo, nacionalismo, supressão dos direitos e da democracia, dissolução do congresso, repressão policial, uso das forças militares na justificativa de defesa da segurança nacional, desenvolvimentismo econômico, crescimento populacional e urbano, aumento da pobreza e consequentemente da desigualdade de renda, da violência e dos assentamentos informais nas cidades. Foi também durante este período que pela primeira vez o país teve de fato uma política habitacional a nível nacional com estruturas financeiras federais específicas para a construção de habitações em qualquer região do país. O Banco Nacional de Habitação nasce da lei nº 4.380, de 21 de agosto de 19644 , destinado a financiar empreendimentos oriundos das propostas e programas para fins habitacionais e de saneamento básico, gerados pelo Sistema Financeiro Habitacional (SFH), criado pela mesma lei. O sistema tinha como objetivo criar uma fonte estável de financiamento para os investimentos habitacionais, que Formulada pela deputada Sandra Cavalcanti, que depois viria a ser a primeira presidente do banco.
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funcionariam como uma poupança, tendo o quadro institucional para dar suporte, gerir, captar e operacionalizar os recursos e os parceiros. Suas principais funções eram as operações de crédito, sobretudo o imobiliário, e a gestão do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS). O SFH elaborava a política habitacional em âmbito nacional e o BNH financiava os empreendimentos oriundos das propostas e programas habitacionais geradas pelo SFH. Em 1971 o BNH é instituído como um banco de segunda linha, ou seja, atuava por intermédio de bancos de primeira linha, públicos ou privados, e por agentes promotores, como companhias de prestação de serviço público. O fato de o BNH possuir fontes de recursos permanentes e introduzir a correção monetária é devido às experiências com os IAP’s e a FCP, que tiveram seus fundos rapidamente esgotados frente à não captação de recursos e à inflação crescente. Num momento em que o Brasil vivenciava o “boom” da expansão dos grandes centros urbanos e econômicos de forma desigual e desorganizada, o programa surge como uma tentativa de reestruturação da economia por meio de aquecimento do setor da construção civil. Na área de habitação, a atuação do BNH priorizou apenas a produção e o financiamento de unidades novas, sem subsídios adicionais para atender a população de baixa renda, com priorização de financiamentos habitacionais para os setores de renda média e sem uma política fundiária que facilitasse o acesso à terra urbanizada e combatesse a especulação imobiliária. Foi marcada também pela centralização da gestão e ausência de participação do usuário e da sociedade, enquanto o mito da modernidade e do desenvolvimentismo se sobrepunha ao patrimônio cultural e ambiental, com priorização do transporte individual, predileção por grandes obras e canalização de recursos às grandes empreiteiras. As críticas às concepções urbanísticas e arquitetônicas da produção do banco são extensas e se misturam às críticas ao modelo político de habitação, uma vez que houve uma forte associação entre o BNH e a ditadura militar. Parafraseando Bonduki (2002), a partir de 1964 houve um divórcio entre arquitetura e moradia popular com a produção de habitação do BNH devido à padronização dos proje-
tos, que significavam custos baixos de produção e rapidez na aprovação, deixando graves repercussões na qualidade do espaço urbano. Com o BNH o poder público financiou uma quantidade extremamente expressiva do espaço urbano brasileiro. Infelizmente as características principais do que prevaleceu das produções de moradia do BNH não herdaram a qualidade arquitetônica vivenciada em grande parte dos projetos dos IAP’s e eram marcadas pelas soluções medíocres e padronizadas, que não faziam parte de uma concepção urbanística mais consistente, em que a habitabilidade e a qualidade arquitetônica ficaram condicionadas ao processo de produção do setor da construção civil e aos limites de custo, salvo exceções. Essas produções, porém, ainda assim superam o nível de qualidade dos assentamentos informais, como explicita Ermínia Maricato em sua obra “Política habitacional no regime militar” de 1987, que expõe a crueldade do problema habitacional urbano brasileiro: Na periferia da cidade é praticamente impossível encontrar um bairro ou loteamento que conte com todos os benefícios e complementos com que conta qualquer um desses conjuntos. Aos olhos dos arquitetos eles são muito pouco interessantes, com suas malhas ortogonais, com suas formas repetitivas e monótonas, mas aos olhos da população, acostumada à disputa pela habitação no far west que caracteriza a comercialização de terras e imóveis em nossas cidades, eles estão no centro de um sonho a ser atingido. O alto nível de carência habitacional praticamente joga por terra os critérios arquitetônicos de qualidade dos espaços habitados, e muitas vezes, até mesmo os critérios para um nível mínimo de conforto ambiental [...]. (MARICATO, 1987) As produções de moradias típicas do BNH ficaram estigmatizadas como conjuntos habitacionais marcados pela repetição de blocos de soluções sem valor arquitetônico (em sua maioria soluções em forma H) de pouca ou nenhuma relação com o espaço no qual estava inserido; o uso do terreno era marcado pela intencionalidade de aproveitar ao máximo o lote e os blocos possuíam pouco espaço entre si, sendo em sua maioria áreas residuais, sem 13
utilização, normalmente transformados em estacionamentos. Como também não havia a previsão de construção de estabelecimentos para comércio e serviço, surgiram posteriormente as ocupações edificações informais para atividades comerciais locais.
Conjunto habitacional Castelo Branco, em São Paulo, construído pelo BNH na década de na década de 1970. (Créditos imagem: Google Earth)
Conjunto Cidade 2000, construído em Fortaleza pelo Banco Nacional de Habitação na década de 1970. (Créditos imagem: internet)
Conjunto habitacional no Rio de Janeiro, construído pelo BNH na década de na década de 1970. (Créditos imagem: internet)
Conjunto habitacional do BNH na zona leste de São Paulo, década de 1970. (Créditos imagem: internet)
Conjunto habitacional em Parque Cecap em Guarulhos (SP), construído pelo BNH na década de na década de 1960. (Créditos imagem: internet)
Conjunto habitacional do BNH em Florianópolis, década de 1970. (Créditos imagem: internet) 14
Em 1969 a política de habitação tinha se revelado o mais completo fracasso, devido ao total descompasso entre os rendimentos da clientela popular (e sua lenta velocidade de correção) e as dívidas relativas ao financiamento da casa própria (e sua acelerada velocidade de correção). [...] Recursos não faltavam ao BNH. Faltavam clientes com estrutura financeira para responder às regras do jogo [...]. (MARICATO, 1987) A produção de habitação urbana em massa durante o período do regime militar no Brasil pode ser dividida entre [...] a política habitacional autoritária do Banco Nacional da Habitação (BNH) – que beneficiou amplamente as classes médias e que construiu conjuntos habitacionais populares de baixa qualidade em áreas periféricas –; e a política habitacional “real” que relegou as populações de menor renda a favelas e loteamentos precários [...]. (AMORE et al., 2015) Dos 4,5 milhões de moradias erguidas com financiamentos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) entre 1964 e 1986, apenas 33% se destinaram à população de baixa renda, sempre em conjuntos localizados nas periferias urbanas [...]. (ROLNIK, 2009) Os financiamentos de construções daquele período podem ser divididos em populares, oriundos de recursos do FGTS, representando 2,4 milhões de unidades e 1,9 milhões de unidades, de financiamentos de construções de renda média de recursos oriundos do SBPE. Mesmo representando um número expressivo de quase 5 milhões de moradias, a produção de novas moradias ainda assim ficou aquém das necessidades geradas. Os números de novas unidades foram expressivos, mas poderiam ter sido maiores dado o volume de recursos aplicados, em um período de grande expansão econômica. (BONDUKI, 2012)
às diretrizes do programa, a inexistência de participação dos usuários e da sociedade como um todo na concepção de projetos e programas, a falta de controle social para que houvesse um monitoramento dos avanços do programa e levantamento e análise dos setores em que fossem necessárias reformulações, a opção exclusiva de casa própria como forma de acesso à moradia e uma forte resistência a incorporação de processos alternativos, assimilando novos materiais e novas formas de construir de construções populares e informais. A partir de 1975 o governo tomou consciência da necessidade de mudanças, mas os processos adotados já estavam muito arraigados, principalmente com o forte apoio do setor de construção civil – estruturado pelo próprio banco – e as ações tomadas não foram incisivas o suficiente para que houvesse mudanças significativas que reestruturassem o banco. (BONDUKI, 2012) A inexistência de frentes que apoiassem e orientassem o autoempreendimento da moradia e o crescimento da cidade real ajudava a consolidar o padrão periférico de crescimento urbano, que se intensificou de forma a consolidar o padrão de crescimento desordenado de nossas cidades. Caso o banco tivesse investido em estratégias que garantissem diversidade e descentralização das produções, uma articulação com a política urbana, a participação dos usuários na gestão e produção da moradia, autonomia para os estados, municípios e cooperativas e apoio a processos populares de obtenção de moradia, a atuação do BNH talvez tivesse sido tanto quantitativa quanto qualitativamente mais expressiva e com um maior atendimento às classes mais baixas. Os objetivos do BNH eram incompatíveis, contraditórios: as metas sociais perderam terreno, muito devido à falta de apoio e mobilização política, para as metas de dinamização da economia, capitalização das empresas do setor de construção, solidificação do sistema financeiro e geração de emprego. (BONDUKI, 2012)
O programa excluía parcelas consideráveis da população que simplesmente não dispunham de renda mínima para ter acesso ao financiamento ou tampouco comprovante de renda. Assim, na intenA atuação do banco foi marcada pela sua centra- ção de baixar os custos das moradias, o banco lização, com a subordinação de estados e municípios passou a optar por loteamentos cada vez mais afas15
tados dos centros, com qualidades projetuais e arquitetônicas cada vez mais baixas e com unidades cada vez menores, ao invés de tentar apoiar e aprimorar as iniciativas que a população já vinha promovendo de forma autônoma. (BONDUKI, 2012)
a população de baixa renda. Segundo, é a de que o elemento quantitativo é parte significativa para se enfrentar o problema do déficit habitacional, porém não é exclusivo. Ademais, um programa de política habitacional de tal magnitude não pode ser priorizado como política econômica de estabilização financeira nacional pois é inegável sua influência e Vale lembrar, mais uma vez, que o responsabilidade sobre as políticas públicas de habiBNH foi criado para construir, prio- tação e sobre o desenho e a ocupação urbana. ritariamente, habitações para famílias de renda mensal entre um e três salários mínimos. Entretanto, o elevado 1986-2002 índice de inadimplência dos mutuários de baixa renda nos seus primeiros anos O fim do BNH, a ausência de outro programa a de atuação (1964-1969) fez com que, nível nacional e as novas experiências que a partir de 1970, diminuíssem consi- “pipocaram” pelo Brasil deravelmente os investimentos nesse setor. Fim da ditadura militar (AZEVEDO, ANDRADE. 1982 p. 109) O final dos anos 1980, a década de 1990 e o início dos anos 2000 é um período que se caracteriMas o programa habitacional do Banco Nacio- zou pela extinção do BNH, crise do SFH e ausência nal de Habitação também deixou seu legado positi- de uma política a nível nacional para tratar do vo, como a criação de fontes de recursos financeiros problema de habitação no país, mas também pelo permanentes para financiar a política habitacional, surgimento de programas alternativos promovidos além de alguns casos de notória qualidade arquite- em geral por administrações estaduais e municipais tônica e o financiamento em pesquisas e iniciativas democráticas. para a utilização de novas tecnologias nas construCom o fim do regime militar, esperava-se que a ções, tendo inclusive criado o Departamento de política habitacional e o BNH fossem reestruturaEstudos e Pesquisas Aplicadas para esse fim. Outra dos. Tancredo Neves antes de adoecer e morrer área de atuação positiva fora a ação expressiva no havia proposto a criação do Ministério do DesenPlano Nacional de Saneamento, com recursos volvimento Urbano e Meio Ambiente e o governo provenientes do BNH, que expandiu a rede de água de José Sarney iniciou o processo de reformulação nas principais cidades brasileiras entre os anos 1970 do BNH e da política habitacional herdada do e 1980. regime militar.5 Devido à visão negativa criada pelo BNH na população, sua extinção não encontrou Toma-se a experiência do BNH como uma nenhuma resistência por parte da opinião pública oportunidade perdida de imprimir uma dinâmica de nem da sociedade civil. Tampouco fora discutida planejamento e crescimento urbano diferente nas uma política alternativa. Essa decisão nada tinha a cidades brasileira: os grandes conjuntos habitacio- ver com uma intenção de reforma urbana ou habitanais nas franjas urbanas, em sua grande maioria cional, mas de gestão política, uma vez que o presimarcados pela baixa qualidade projetual e com dente Sarney não possuía força política para mudar pouca ou nenhuma integração ao meio, identificação a direção do BNH.6 cultural e participação popular. Apesar de a produção habitacional do BNH ter As lições que podemos tirar da atuação do BNH trazido resultados longe do ideal, com a sua extindurante seus 22 anos de existência são várias. ção perdeu-se a estrutura que havia sido criada pela Primeiro, é de notável importância que haja uma 5 No entanto o que se sucedeu no governo Sarney fora a extinestrutura financeira específica para a política de ção do BNH e a simples transferência da gestão do SFH à habitação social – já que os recursos encontrarão Caixa Econômica Federal, que até então não tinha experiência outros caminhos mais interessantes à geração de no assunto habitacional. 6 lucro do mercado que a construção de moradia para Que já estava nas mãos de governantes da gestão do Presidente Tancredo.
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experiência, seus técnicos e profissionais e o apoio a pesquisas e técnicas na maior produção habitacional da história do país. Ao invés de uma profunda transformação, o que se viu foi um esvaziamento nas propostas e ações para o combate ao déficit habitacional no país. (BONDUKI, 2012) Final dos anos 1980 e anos 1990 A população moradora de favelas cresceram mais do que a população urbana como mostraram os Censos do IBGE para 1980 e 1991. Nos anos 1980, Construção por autogestão do Mutirão 26 de Julho em SP, 1,89% da população brasileira morava em favelas. década de 1990. (Créditos imagem: Archdaily) Em 1991 já era 3,28%. De acordo com esses dados o crescimento foi de 70% em uma década [...]. O Brasil passou nas últimas décadas por um intenso processo de urbanização. Em 1940, 73,7% da população do país estava no campo. Em 1996, 78,3% estava nas cidades. Esse processo de urbanização concomitante à industrialização assumiu determinadas características. Uma delas é a concentração de terra, renda e poder. Ele combinou modernidade com exclusão mantendo, no Brasil urbano do século XX, características do Brasil arcaico e colonial. (Maricato, 2011) Nesse período de transição deixou de existir uma estratégia nacional, que deu lugar a tímidas, porém criativas iniciativas estaduais e municipais.7 A democratização e a ampliação de movimentos sociais, aumentaram a pressão por uma maior participação do poder local na questão.
Construção por autogestão do Mutirão União da Juta em SP, década de 1990. (Créditos imagem: Archdaily)
Em São Paulo no ano de 1989 foi realizado o Concurso Nacional de Projetos de Habitação Popular, que selecionou e premiou propostas inovadoras que juntassem qualidade arquitetônica e adequada inserção urbana com custos compatíveis à habitação social. Assegurada por uma política de desapropriação de vazios urbanos situados em áreas dotadas de infraestrutura urbana, foi possível quebrar a Vila da Barca, construído por autogestão em 2008 em Belém tradição da construção de habitação popular nas do Pará. (Créditos imagem: internet) franjas urbanas. As construções foram feitas por mutirões autogeridos e a mobilização de arquitetos experientes e da nova geração. Havia a preferência por empreendimentos de menores dimensões, com a participação dos futuros moradores por meio de fóruns regionais de habitação. Uma vez que a constituição de 88 competiu a questão da habitação aos 3 níveis de governo
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Antes e depois da obra de canalização do córrego em favela da Freguesia do Ó (SP), década 1990. (Créditos imagem: Bonduki, 2012)
Os projetos desenvolvidos nesse período como
Construção por autogestão do Mutirão Paulo Freire em SP, os mutirões autogeridos em São Paulo, os orçamenanos 2000 - 2010 (Créditos imagem: Archdaily)
tos participativos em Porto Alegre, a reestruturação de cortiços no centro do Rio de Janeiro e de casarões no centro de Salvador (algumas inclusive com o apoio da Caixa Econômica Federal) mostraram que era possível a compatibilidade entre baixo custo, qualidade arquitetônica e integração com a malha urbana, que traziam vantagens como a utilização racional das redes de infraestrutura, redução do tempo e da distância percorridos em meios de transporte, melhor aproveitamento do tecido urbano e mistura de classes sociais.
Construção de escadaria na favela Nossa Senhora Aparecida (SP) na década de 1990 (Créditos imagem: Bonduki, 2012) 18
Dentre as tímidas práticas na área estava a concessão de crédito habitacional pelo FGTS para que o indivíduo financiasse sua moradia. Porém a concessão de crédito se dava depois de análises rígidas que excluía grande parte da população, em especial os de renda mais baixa e, portanto, de maior necessidade. Em 1999 há a criação do Programa de Arrendamento Residencial (PAR) e do Programa de Subsídio Habitacional (PSH), com a criação de fundos ou o uso de parte do Tesouro Nacional para subsidiar a produção de habitações para a população de baixa renda, iniciativas que foram apontadas em Casarão na zona portuária do Rio de Janeiro reformado pela 1991 por movimentos sociais de moradias que, com prefeitura em 1999 para servir de habitação popular (Créditos mais de 1 milhão de assinaturas colhidas, propuseimagem: internet) ram ao congresso a criação do Fundo Nacional da Moradia. (BONDUKI, 2012) Em São Paulo, a paralisação das intervenções que vinham sendo feitas devido à troca de gestão do governo estadual impulsionou os movimentos sociais a reivindicarem ações na área de política habitacional e motivou as ocupações de edifícios ociosos no centro da cidade, que ocorreram também
Conjunto no bairro Saúde na zona portuária do Rio de Janeiro. Encomendado pela prefeitura, no final da década de 1990 e início dos anos 2000 (Créditos imagem: internet)
Durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso não houve uma política nacional para a habitação e houve um significativo agravamento do problema habitacional. Mas com a estabilização da economia, tanto o FGTS quanto a CEF puderam se recuperar e lentamente retomarem os financiamentos e investimentos nas áreas de habitação e sanea- Manifestação de movimento por moradia nos anos 1990 mento, que haviam cessado devido à debilidade (Créditos imagem: Archdaily) econômica causada nos anos anteriores. A Secretaria de Política Urbana8, lançou um documento para o Habitat II das Nações Unidas em que preconizava princípios como flexibilidade, descentralização, diversidade e reconhecimento da cidade real como preceitos para a política habitacional, demonstrando que ao menos em tese, assimilava os conceitos dos programas mais progressistas e refutava o modelo tradicional de produção de moradia popular. 8
Naquela época vinculada ao Ministério do Planejamento
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Os anos 2000 e o Programa Minha Casa Minha Vida até os dias atuais
caráter social Urbanização de Assentamentos Precários, que visava a construção de redes de infraestrutura, obras de revitalização urbana para favelas e bairros desprivilegiados e previa recursos para a área de habitação. O programa era um reflexo das Estatuto da Cidade, programas iniciais do práticas das prefeituras e governos estaduais governo Lula e criação do Ministério das progressistas nos anos 80 e 90, porém agora com Cidades recursos e alcances a níveis nacionais. Os recursos para habitação haviam crescido de 8 bilhões em O embrião do MCMV começou a se formar em 2003 para 42 bilhões em 2008. 1999 quando o Instituto Cidadania, à época coordenado por Lula, propôs a elaboração de um plano que equacionasse diretrizes para estipular um prazo para o enfrentamento do problema habitacional no Brasil9 . Em 2000 foi lançado pelo instituto o Projeto Moradia, que combinando gestão e controle social, estruturação financeira, aspectos urbano-fundiários e lançando a responsabilidade ao governo federal, aos setores públicos e à esfera privada, propunha a criação do Sistema Nacional de Habitação (SNH). O SNH atuaria sob comando de um novo ministério, o Ministério das Cidades, e o projeto Revitalização na Rocinha (RJ) por programa da SedHab, ressaltava a necessidade de aprovação do Estatuto pelo PAC. (Créditos imagem: internet) da Cidade10 e aplicá-los nos municípios por meio dos planos diretores, para universalizar o acesso à terra. (BONDUKI, 2012) A criação do Ministério das Cidades (MCidades) em 2003 representa, ao menos numa intenção inicial, o reconhecimento do governo Lula de que os desafios urbanos devem ser encarados como questões de política pública. E até 2006 o MCidades fomentou a elaboração de planos diretores nos municípios, que até essa data alcançaram números próximos a dois mil (BONDUKI, 2012). Os instrumentos urbanísticos para a aplicação do Estatuto das Cidades foram previstos, mas não chegaram a Conjunto habitacional em Manguinhos (RJ) feito com recurser de fato implementados, não gerando o esperado sos do PAC, de 2010. (Créditos imagem: internet) impacto de cumprimento da função social da terra ou do imóvel. Enquanto isso, a Política Nacional de Habitação dos primeiros anos do governo Lula basicamente incorporaram o que vinha sendo feito com o Projeto Moradia da gestão de FHC. Em 2007 é lançado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e dele sai o programa de A proposta fazia parte de iniciativas elaboradas para as eleições presidenciais de 2002. 10 Lei que regulamenta o capítulo de política urbana Conjunto habitacional em Osasco (SP), 2014 (Créditos na constituição que foi aprovada no ano seguinte, imagem: internet) em 2001, resultado do surgimento de dos movimentos pela reforma urbana no Brasil. 9
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para suprir necessidades futuras até 2023 (BONDUKI, 2012). Para tratar a questão foram definidos eixos que deveria atuar de forma articulada: financiamento e subsídio, arranjos institucionais – em especial que garantissem uma maior autonomia dos municípios na implantação de programas voltados para habitação –, produção da construção civil e política urbana, fundiária e ambiental. Porém, com a crise que se instalou em 2008, as prioridades governamentais mudaram. O Programa Minha Casa Minha Vida A retomada da presença de um programa a em
Pavimentação em bairro na cidade de Valença (BA), 2013. nível nacional (Créditos imagem: internet)
O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) foi concebido pelos ministérios da Fazenda e da Casa Civil, em diálogo com o setor da construção civil e lançado como medida provisória e depois lei no ano de 2009, viabilizando a concessão de crédito voltado à população de renda média-baixa e baixa para o financiamento de moradias a baixo custo que seriam construídas em parceria com o setor privado.
Os “Redondinhos”: conjunto habitacional na favela de Heliópolis (SP), 2010 (Créditos imagem: internet)
Crise do governo Lula e mudança do Ministério das Cidades A crise política em 2005 conhecida como “mensalão” desestabilizou o apoio da base política do governo e, para garantir a governabilidade, Lula afastou o então ministro Olívio Dutra e concedeu o cargo ao conservador Partido Progressista (PP). 11
Foi um ato declarado de combate à crise hipotecária que se iniciara um ano antes nos EUA e reverberava suas consequências por todo o mundo ocidental. O PMCMV tinha caráter de aplicação de política econômica anticíclica para o enfrentamento da crise que se desenhava. Justificou-se o uso do setor de construção civil como forma de enfrentar a crise econômica pelo fato de o mercado de habitação possuir grande potencialidade de gerar empregos e movimentar a economia em vários setores e em diversas fases: da indústria de base, extrativista, à de materiais básicos para a construção civil e à moveleira e de eletrodomésticos – e neste ponto se assemelha com a mesma estratégia de aquecimento da economia que deu origem ao BNH. Porém é preciso separar o que seja “política habitacional com política de geração de empregos na indústria da construção”. (ROLNIK, NAKANO, 2009)
Entre 2007 e 2008 foi elaborado e lançado o Plano Nacional de Habitação (PlanHab), pela Secretaria Nacional de Habitação do MCidades, que quantificava as necessidades imediatas e futuras de construção de moradias para enfrentar o problema Nem o MCidades, que pela primeira vez colocade déficit habitacional: 7,9 milhões de moradias para va a questão de política urbana no centro das decio déficit existente e mais 27 milhões de unidades sões políticas, articulando habitação, questão fundi11 Que substituiu parte do secretariado, mantendo ária, saneamento, crescimento e desenvolvimento as secretarias de Habitação e de Programas Urba- urbano, nem o PlanHab da Secretaria de Habitação nem a aplicação do Estatuto das Cidades foram nos.
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considerados na concepção do programa Minha Casa Minha Vida. Tampouco foram consultados o Conselho das Cidades (MCidades) e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), que fora criado em 2005 para concentrar a arrecadação de recursos para o setor. Uma intervenção da Secretaria Nacional de Habitação incluiu o caráter social ao programa, ao volta-lo também para a população de baixa renda, posto que o PMCMV inicialmente visava o atendimento somente à população de renda média.
de calçadas e espaços públicos como praças e quadras nas periferias e favelas, etc. Ainda com relação à geração de empregos, é discutível a qualidade do mesmo, uma vez que na tentativa de tornar o empreendimento de menor custo possível por se tratar de empreendimentos para a população de baixa renda, há a probabilidade de precarização da mão-de-obra nos canteiros. O programa apresenta-se como de caráter social ao produzir habitações para diminuir o déficit habitacional no Brasil, e até certo ponto ele de fato o é, tendo em vista os valores dos imóveis e a porcentagem subsidiada, podendo chegar em até 90% (atualmente) do financiamento. Porém como observa Fix e Fiori (2009) a terceira faixa de renda atendida, que contempla de 3 a 10 salários mínimos (SM), representa 15% do déficit habitacional no Brasil. No entanto, esta faixa recebe 53% do subsídio público e a ela é destinada 60% da produção de moradias14 que é então atendida em 70% do déficit. Já a primeira faixa de renda atendida, de 0 a 3 SM, compõem 82% do déficit, mas é destinada a esta faixa o total de 35% da produção, atendendo a 8% do déficit da mesma.
Apesar da semelhança entre o BNH e o PMCMV como políticas econômicas anticíclicas por aquecimento do setor de construção civil voltado à moradias, a primeira fase do Minha Casa Minha Vida apresentava algumas particularidades que, mesmo com um olhar superficial, já o diferenciava da empreitada do BNH durante os seus 22 anos de existência. A primeira seria a determinação de uma porcentagem de 40% de toda produção de habitação direcionada exclusivamente para as classes sociais de renda mais baixa12. Outra característica era a concentração de produção de habitações nas regiões Nordeste e Sudeste, com preferência por municípios com mais de 100 mil habitantes e o impedimento de implementação do programa em Esse quadro pode ser justificado pelo fato de 13 municípios com menos de 50 mil habitantes . que a produção de moradia para a faixa de 3 a 10 SM – o chamado “setor econômico” – é mais lucrativa Um forte fator que também caracteriza o para as construtoras. A distribuição de unidades por programa é a sua independência de agentes promo- faixa de renda está longe de ser proporcional ao real tores públicos, como as COHAB’s, associações e problema de déficit habitacional. “Tais dados cooperativas. Este espaço vago é preenchido então evidenciam que o atendimento aos que mais necessino PMCMV pela Caixa Econômica Federal (CEF), tam se restringirá, sobretudo, ao marketing e à que recebe e aloca os recursos da União, e pelo setor mobilização do imaginário popular.” (FIORI e FIX, privado de construção civil. As construtoras apre- 2009) Após alcançar a meta de 1 milhão de habitasentam os projetos à Caixa Econômica Federal, que ções entregues nos dois primeiros anos do prograos analisa e contrata, fazendo o papel de agente ma, de 2009 a 2011, a segunda fase que teve início financeiro e fiscalizador. em 2011 sofreu algumas modificações. Com a meta era de entregar 2 milhões de moradias, a segunda fase teve sua lógica percentual invertida: destinaria Principais ponderações sobre o PMCMV 60% da sua produção às classes mais baixas de até 3 salários mínimos (ainda assim não proporcional ao Em contraponto à justificativa do programa déficit habitacional no Brasil). quanto ao seu caráter anticíclico como forma de enfrentamento da crise econômica que se alastrava Composição do déficit habitacional brasileiro - 2007 Renda familiar % de forma mundial, outras práticas poderiam ter sido 0 -3 SM 89,4 adotadas, como por exemplo obras de saneamento, 3 - 10 SM 9,6 reformas em escolas e postos de saúde, construção > 10 SM 1 Famílias com renda de até 3 salários mínimos. Este impedimento foi revogado na atual fase que se encontra o programa.
Fonte: Fundação João Pinheiro, 2009
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Dados referentes à primeira fase do programa.
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À exceção do estado do Rio de Janeiro, as principais produções de habitação nos estados se deram em áreas de municípios periféricos, de características de menor importância que os municípios polos, fator que vai contra a lógica nacional, em que os maiores números de déficit habitacional se encontram nos municípios sede dos estados (RUFINO, 2015) – fator que poderá se agravar com a nova regra de implementação do programa em cidades com menos de 50 mil habitantes. E essa contradição se agrava na faixa de atendimento às populações de renda mais baixa e ainda mais naqueles que passaram a ocupar as unidades de maneira involuntária15. Por focar somente na produção de habitação e não contemplar tópicos relacionados à democratização da terra e aplicação do Estatuto da Cidade, os problemas de segregação socioespacial, a encruzilhada da reforma urbana e a questão da terra, continuariam sem soluções a partir das ações do Programa Minha Casa Minha Vida. Devido à configuração do programa se confirma a instalação de uma lógica financeira16, uma vez que os proponentes do empreendimento passam a ser um banco juntamente com as construtoras, como aponta Maria Beatriz Rufino no trabalho de 2015 “Minha Casa... e a cidade?”. Logo, a escolha do terreno e as soluções de projeto ficam a critério desses agentes, seguindo a lógica do melhor cenário possível de viabilização econômica dos empreendimentos. Esta lógica financeira se repete mesmo nas diferentes regiões e modalidades em que o programa foi implementado. O que se observa é que os empreendimentos com uma qualidade mais elevada, seja urbanística, seja arquitetônica, se deram devido à faixa de financiamento (as mais altas podem arcar com parcelas de financiamento mais elevadas), doação de terreno por parte do poder público ou devido à um maior esforço por parte da associação à frente do projeto na modalidade Minha Casa Minha Vida - Entidades.
franjas urbanas e sem atendimento de infraestruturas e serviços, “gerando mais necessidade de deslocamento e um custo financeiro e pessoal perdido em mobilidade” (BONDUKI, 2012), por isso o seu valor reduzido. Este fator também desencadeia um crescimento desordenado e um inchaço das cidades. Excluídos do processo de elaboração de projetos e possíveis modalidades de implantação do programa devido à sua forte centralidade e total dependência das construtoras e da CEF, os municípios tiveram sua atividade reduzida a aprovar os projetos, muitas vezes flexibilizando sua legislação para abrigar o empreendimento em seu território, como por exemplo tornando “urbana” uma zona rural (por meio de alteração do perímetro urbano). Observa-se também uma desmobilização de programas locais mais adequados aos municípios para “fazer rodar o PMCMV”, como afirma João Sette Whitaker. (WHITAKER, 2012) Com a reduzida disponibilidade de terras a baixo custo, a forte disponibilidade de recursos representada pelo PMCMV promoveu dramático processo especulativo, que multiplicou sensivelmente O preço dos lotes bem localizados. Com tal aumento do preço da terra e a falta de efetivação dos instrumentos do Estatuto da Cidade, é inevitável a dificuldade em implementar a política habitacional para baixa renda, mesmo no âmbito do PMCMV, nos grandes centros urbanos, como São Paulo, justamente onde se concentra, paradoxalmente, o maior déficit habitacional. Assim, uma consequência negativa do programa é que os subsídios oferecidos tendem a não mais beneficiar a população alvo da política habitacional, pois são drenados para cobrir o aumento especulativo da terra, favorecendo assim os proprietários fundiários. (João Sette Whitaker Ferreira, “Produzir casas ou construir cidades?”)
Os municípios são chamados a doar terrenos públicos e, numa corrida para atrair investimentos do setor de construções, começam uma disputa de isenções fiscais para hospedar o maior número de terrenos voltados ao programa possível, terrenos estes que em sua grande maioria encontram-se nas A Arquitetura do PMCMV
Devido à remoções das suas habitações anteriores É importante lembra que o PMCMV é antes de por motivos ambientais ou de ordem jurídica. 16 Motivador do acesso à moradia como um bem e mais nada uma política urbana que comporta-se como uma “marca”, pois suas manifestações em não como um direito. 15
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todas as regiões do país possuem tipologias, formas de aquisição, público alvo, impacto e relação com a malha urbana similares. (AMORE, 2015) As especificações das unidades habitacionais são gerais e mudam somente de acordo com a faixa de financiamento. Na faixa 1 por exemplo, que atende as famílias de até 3 salários mínimos, todos os projetos devem dispor de dois quartos, um com cama de casal e outro com duas camas de solteiro. Os espaços construídos são em sua maioria insufi- MCMV de 2014 em Quixadá (CE). (imagem: internet) cientes, não possuem iluminação e ventilação a níveis suficientes ao conforto bioclimático e não possuem áreas de convivência ou de estudo e lazer para crianças. (WHITAKER, 2012)
MCMV Vila Maranhão em São Luís (MA). (imagem: internet)
MCMV de 2009 no Rio de Janeiro. (imagem: internet)
MCMV Res. Itaberaba III de 2016 em Juazeiro (BA). (imagem: internet)
MCMV de 2012 no Rio de Janeiro. (imagem: internet)
MCMV de 2015 em São Luís (MA). (imagem: internet)
MCMV Res. Ribeira, São Luís (MA) de 2015. (imagem: internet) 24
A definição de áreas e mobiliários mínimos – e como bem observa Denise Morado e Simone Parrela no texto Programa Minha Casa Minha Vida: a (mesma) política habitacional no Brasil, “no PMCMV os parâmetros mínimos tornam-se o limite máximo das unidades, uma vez que estas são entregues prontas e já acabadas” – não se adapta às diferentes características sociais, culturais e regionais que possam existir em diferentes realidades brasileiras. Isso também se repete quando analisada a definição de núcleo familiar (pais com dois filhos). Além, é claro, das definições de mobiliário, espaços mínimos e suas funções, que desconsideram tipos de morar diferentes, numa revisitação à preceitos modernistas eurocêntricos do início do século XX: o ser humano universal e o espaço mínimo de moradia, porém sem a qualidade arquitetônica e as inovações construtivas e tecnológicas destes. A predefinição da configuração dos espaços de moradia, tiram o morador do centro do processo de criação e da construção do “habitar” e o colocam na periferia do processo, na ponta final, reduzindo seu papel a um papel de mero consumidor de um bem já pronto, como colocado por Denise Morado e Simone Parrela: O processo de morar, que deveria pressupor escolhas, participação e tomadas de decisão em diversos níveis e ao longo do tempo, se vê empobrecido e resumido à mera relação de compra de um produto como outro qualquer, com o esvaziamento e empobrecimento de sua dimensão política. (MORADO, PARRELA. 2011) Completa Pedro Fiori e Mariana Fix no texto “‘Minha Casa, Minha Vida', o pacote habitacional de Lula”: Uma produção "por oferta" significa que a construtora define o terreno e o projeto, aprova junto aos órgãos competentes e vende integralmente o que produzir para a Caixa Econômica Federal, sem gastos de incorporação imobiliária e comercialização, sem risco de inadimplência dos compradores ou vacância das unidades. A Caixa define o acesso às unidades a partir de listas de demanda, cadastradas pelas prefeituras. Assim, os projetos não são formulados a partir do poder público
ou da demanda organizada, não são licitados, não são definidos como parte da estratégia municipal de desenvolvimento urbano e podem inclusive contrariá-la. São estritamente concebidos como mercadorias, rentáveis a seus proponentes. (FIORI, FIX. 2009) Muitos empreendimentos verticais, em especial nos maiores centros urbanos, adotaram a estigmatizada planta em H, tão utilizada nas habitações do BNH. Essa tipologia pode onerar menor custo de construção por otimizar circulação vertical, mas os apartamentos de pequenas dimensões ficam prejudicados com relação à iluminação natural e ventilação, além de ser uma solução que não considera a implantação. “A boa arquitetura é aquela que consegue variar as tipologias em função do terreno, do clima, da vista, da acessibilidade, do ruído. Assim, boas soluções não são aquelas que adotam uma tipologia única, [...] mas promovem a junção de várias alternativas, em harmonia com o local e seus condicionantes.” (João Ferreira Sette Whitaker, em Produzir casas ou construir cidades? pág. 95) Uma regra simples da boa arquitetura parece ter sido esquecida: cada projeto deve respeitar as características climáticas locais, na escolha dos materiais, no desenho das plantas, no uso de aberturas etc. (João Sette Whitaker Ferreira, “Produzir casas ou construir cidades?”)
Prédios do MCMV em Boa Vista (RO): tipologia em H.(imagem: internet)
Num país de dimensões, climas e culturas continentais, essa prática torna-se quase um pecado capital. O arquiteto e urbanista foi posto de lado, não estão inseridos nas tomadas de decisões. É de responsabilidade das construtoras que seja disponibilizado espaço para esses profissionais e é de
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cos e à incapacidade de se inserirem em responsabilidade do Estado assegurar que tal um planejamento de expansão equiliconduta seja exercida. Por se utilizar de incentivos e brada das cidades. (BONDUKI, subsídios públicos, o setor privado é obrigado a 2012) apresentar um retorno de responsabilidade social com relação à cidade, ao espaço público, à arquitetuNão se pode ignorar porém que o Programa ra e aos impactos ambientais que produzem. (Sobre)viver nas cidades também tem a ver com o Minha Casa Minha Vida representa um marco na acesso à terra bem localizada, onde há oferta de incorporação do subsídio como ferramenta indispensável e produção massiva voltada para a baixa trabalho, estudo e serviços públicos. renda. Representa um momento em que a questão da habitação social fora tratada como política pública e tornou-se um dos pilares da agenda nacional – Conclusões sobre os programas e nisso compartilha uma forte semelhança com o Uma das principais críticas, tanto ao PMCMV BNH. A coesão político-institucional fizeram com quanto ao BNH, é o papel central das grandes que os programas puderam representar verdadeiros empresas construtoras como agentes promotoras marcos na história da política habitacional no Brasil. O que, entretanto, não aconteceu com a Funda nova forma de se fazer moradia e cidade. Numa tentativa de mudança dessa regra - dação Casa Popular (FCP), em que a “fragmentação dando continuidade às boas práticas de autocons- institucional e a falta de uma verdadeira política trução que tomaram forma a partir da década de habitacional impediam que se desenvolvesse o 1990 - o PMCMV prevê uma seção de apoio a cons- impulso renovador verificado nos primeiros anos de truções por autogestão, o Minha Casa Minha Vida – implantação dos institutos. A FCP não atendeu Entidades. Esta seção representa uma conquista da minimamente à exigências de um país que se urbapressão de movimentos sociais. Entretanto somente nizava intensamente.” (BONDUKI, 2012, p. 55) O Programa Minha Casa Minha Vida se desta3% dos recursos são direcionados a essa modalidade, enquanto que 97% dos recursos são direciona- ca dos empreendimentos passados pelo seu cunho dos à produção por construtoras. Ou seja, o social, ao proporcionar uma concessão de subsídio PMCMV aposta na iniciativa privada, e não em de até 96% para as camadas de 0 a 3 SM. Tal medida pequenas empresas, movimentos sociais ou a auto- é inédita e é certo que essa faixa da população não construção (já amplamente praticado com o cresci- teria acesso à habitação formal dado à conjuntura mento da cidade “informal”) como a coluna verte- real do mercado imobiliário. Também por isso, o bral do programa: “[...] o governo federal ao invés programa desempenhe tamanha importância na de atuar para reverter esse quadro de entraves à opinião pública, tanto daqueles que o defendem gestão pública e de fragilidade do associativismo como daqueles que o rebatem: sua escala é audácia popular, reconhece que a eficiência, enfim, está são inegáveis. Para o capital imobiliário, que ganha mesmo do lado das empresas privadas” (FIORI e a parcela substantiva dos dividendos FIX, 2009). econômicos da operação, a mobilização do imaginário e da expectativa popuHá de se repensar também a modalidade tradilar é um excelente negócio, pois ela cional empregada pelo BNH e depois repetida pelo colabora ativamente para garantir a PMCMV, de grandes conjuntos habitacionais afascontinuidade do pacote, independente tados dos centros urbanos. Porém, o principal erro é de quem esteja no governo, e dos valoque estes conjuntos são em sua esmagadora maioria res que reafirma, entre eles o da desarticulados da malhas urbana. Com relação aos propriedade privada individual. empreendimentos do BNH, Bonduki resume as Como ressalva o dono de uma incorpodesvantagens de tal escolha: radora: “impossível acabar com um pacote como o ‘Minha Casa, Minha O problema não era a dimensão e a Vida’. Tal como o ‘Bolsa-Família’, localização dos novos núcleos habitaum presidente que fizer isso será cionais, mas sua desarticulação em derrubado”. relação à política urbana, à qualidade (Fiori e Fix, 2009) dos projetos arquitetônicos e urbanísti-
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Tal preceito pode explicar por que no início do ano o governo do PMDB de Michel Temer confirmou a meta de construção de mais 610 mil unidades para o programa. Porém agora com uma mudança na regra: houve uma ampliação no limite de renda familiar daqueles que poderiam participar do programa, de R$ 6,5 mil para R$ 9 mil. Juntamente com essa medida, os limites de rendas mensais das outras faixas de famílias atendidas pelo programa sofreram reajustes: a faixa 1,5 passa de R$ 2.350,00 para R$ 2,6 mil e a faixa 2 passa de R$ 3,6 mil para R$ 4 mil (a faixa 1 permaneceu sem reajuste, com seu limite de até R$ 1,8 mil). O mesmo se deu para as taxas de juros, que sofreram em média um reajuste de 1% a 2% ao ano, assim como o teto do valor dos imóveis para financiamento, que subiram em torno de 10 a 15 mil reais. O ministro das cidades Bruno Araújo, declarou que essas medidas aumentariam a geração de empregos e fariam com que mais famílias fossem beneficiadas. Quando questionado se os ajustes não desvirtuariam o programa da sua intenção original o ministro afirmou que não havia desvirtuamento já que ainda havia subsídio paras as classes mais baixas e que “as faixas 2 e 3 sempre foram destinadas para pessoas com capacidade financeira de arcar com o financiamento”.
finitude devido aos interesses comerciais e políticos que o envolvem. Para vencer um problema histórico e de raízes tão profundas como o déficit habitacional, é preciso mais do que um programa que atua de forma unilateral, com a produção massiva de casas e conjuntos residenciais monofuncionais. Deve haver também a ocupação e a reforma de imóveis ociosos, regularização fundiária e urbanização de assentamentos precários, além de programa de locação social em alternativa ao financiamento da casa própria. Se faz necessária uma maior fiscalização e uma legislação mais pontual e incisiva para garantir níveis de qualidade dos empreendimentos, de insolação, ventilação, uso de material, etc, além da garantia de aplicação do Estatuto da Cidade. O Brasil tem, desde 2001, uma das leis urbanísticas mais avançadas do mundo: o Estatuto da Cidade que regula a aplicação da função social da propriedade por meio do Plano Diretor, entretanto Estado e sociedade resistem à sua aplicação. Até existem prefeitos que gostariam de aplica-lo mas quando esse fato raro ocorre a dominação patrimonialista sobre as Câmaras Municipais e o judiciário impedem que tal ocorra. (Ermínia Maricato, 2009)
Equivalente aos programas de habitação social no Brasil, tanto o da FCP, quanto os do BNH e do PMCMV, é a possibilidade de participação de várias classes sociais. A não separação em frentes de programas diferentes para cada faixa de renda, abre Falta também ao programa uma conciliação possibilidades para que o propósito social seja com o atendimento de serviços públicos como água, desvirtuado. luz, gás, etc, além das taxas condominiais. A não aplicação de uma tarifa social (PAZ et al., 2015) para estes serviços podem tornar estes gastos maiores Alternativas para pensar sobre o que o valor pago na prestação do financiamento, fator incompatível ao propósito social do programa. programa no futuro Para conter a especulação fundiária e imobiliária, o pacote deve incentivar a ocupação e reforma O programa Minha Casa Minha Vida mostroude imóveis vagos, inclusive colaborando para o -se eficiente no atendimento da necessidade real de cumprimento da função social da propriedade: “A construção de novas unidades voltadas à população existência desse imenso estoque de edificações de baixa renda para combater o déficit habitacional vazias é mais um peso para toda a sociedade, pois nas cidades brasileiras. Mas suas consequências são em sua maioria unidades habitacionais providas ambientais comprometem o desenho de áreas urbade infraestrutura urbana completa, sendo muitos nas de forma profundamente negativa, reforçam a inadimplentes em relação ao IPTU, [...]ao mesmo segregação socioespacial e afastam mais ainda um tempo em que permite o atendimento imediato de ideal de cidade funcional, sustentável e igualitária. famílias em situação de risco e colabora com certa Isso se torna um sério problema se considerarmos mistura social, inserindo-as em áreas já urbanizaque se trata de um programa que já ganhou espaço das” (FIORI e FIX, 2009). no imaginário popular e que não demostra sinais de
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A justificativa de que as produções em larga escala em terrenos periféricos feitas pelas grandes construtoras assim o são pois representam menores custos, não se sustenta quando comparada às produções autogeridas em menor escala, por movimentos sociais ou pelos futuros moradores, ainda que inseridos na malha urbana: Mesmo que o desenho da transferência de renda seja positivo, é preciso compreender quais as intermediações sobre o recurso e seu resultado qualitativo, pois não se trata de uma transferência direta, como no caso do cartão do Bolsa-Família. Enquanto o trabalhador recebe uma casa com apenas 32 m² de área útil, [...] provavelmente em um condomínio nas periferias extremas, a empreiteira pode receber por essa casa-mercadoria até 48 mil reais17, um valor cujo preço do m² (1,4 mil reais) chega a ser 2 a 3 vezes superior ao custo do m² dos mutirões autogeridos dos movimentos populares de São Paulo, que obtém ganhos não apenas graças ao trabalho gratuito dos futuros moradores, mas sobretudo graças à gestão direta e sem lucro dos projetos e obras e à participação de assessorias técnicas, pequenas empreiteiras e cooperativas de trabalho.[...] Vale lembrar que, em geral, os projetos realizados pelos movimentos populares, por não serem comandados por uma perspectiva mercantil, obtém áreas construídas em cada habitação significativamente maiores, tipologias diferenciadas, novas qualidades arquitetônicas e construtivas, além de diversos espaços coletivos e equipamentos comunitários – sinais da prevalência do valor de uso em relação ao valor de troca (FIORI e FIX, 2009)
poderia facilitar sua aplicação e gestão. O fato de um mesmo programa contemplar várias faixas econômicas “confunde” a política pública; as faixas tornam-se competidoras, e as de menor renda, caso não possuam leis que modifiquem as regras a depender do público a ser atendido, inevitavelmente perderá a competição, sendo renegadas à elas os piores resultados. Ou seja, serão destinados à classes mais baixas os terrenos menos assistidos de infraestrutura, mais longes dos centros urbanos e de projeto arquitetônicos e urbanísticos de pior qualidade. Ao serem separados em programas distintos, as regras podem ser melhor delineadas e focadas nos reais problemas de cada faixa com soluções pontuais.
Considerações finais A trajetória das políticas de habitação social no Brasil se desenvolve com avanços e recuos na história. É necessária a reflexão para que haja amadurecimento sobre o que foi feito e o que há de ser feito. É preciso que haja um rearranjo de papéis e de prioridades. A aplicação do Estatuto da Cidade para conter a especulação imobiliária e garantir o direito à cidade a todos, o reaproveitamento de imóveis públicos ociosos nos centros e a preferência por construções em lotes menores em áreas urbanizadas, com participação popular e assistência técnica de profissionais de arquitetura e urbanismo, pode ser uma saída para um déficit habitacional que hoje alcança a marca de mais de 6 milhões de brasileiros.
É urgente que haja um diálogo com a academia para a formação de uma nova classe profissional que saiba e possa atender às reais demandas da sociedade e do país em que vive, gerando novas propostas arquitetônicas, urbanísticas, tecnológicas e que dê assistência técnica às construções autogeridas. Construções que prevejam a variação das tipologias para atender a diferentes perfis familiares e grupos sociais, além de diferentes regiões, climas e culturas. A produção arquitetônica não deve restringir-se à algumas faixas de renda e proibir-se para outras. Uma separação de faixas por tipo de programa 17
Valores referentes ao ano de 2009.
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