utopia em ocupação construção dos territórios do MTST como retomada da tradição utópica
trabalho final de graduação larissa napoli orient: helena aparecida ayoub silva
utopia em ocupação construção dos territórios do MTST como retomada da tradição utópica
trabalho final de graduação faculdade de arquitetura e urbanismo universidade de são paulo larissa napoli orientação: helena aparecida ayoub silva dezembro de 2021
agradecimentos
Já me desculpo de antemão pelo tamanho dos agradecimentos, mas sou uma pessoa muito grata à muita gente e vou usar esse espaço de eternidade para gravar o amor a quem divide a vida comigo. Primeiramente à minha mãe e ao meu pai pelo afeto com que me criaram. Pela ternura brincalhona com que vocês constroem nosso lar. Mãe, três beijos, pai, uma cosquinha na barba. Obrigada por tudo sempre. Ao Lucas, Carol e Tia Tata obrigada por serem uma sitcom melhor que Friends ou The Office. Não tem família mais estranha e mais maravilhosa que a minha. À minha velhinha. Minha maior admiração, minha maior saudade. À Camila, Bruna, Amanda, Laura, Lili e Brenda meus amores. Quanta coisa passamos juntas. Obrigada por terem iluminado cada dia dessa jornada de se fazer arquiteta e por terem feito dela muito
mais do que uma graduação. Espero acompanhar e ser acompanhada por cada uma de vocês sempre. À Mariana, está solta aqui porque tem um agradecimento especial por ser minha maior interlocutora no processo desse trabalho. Da FAU para a militância, nunca deixemos uma a outra se conformar com o mundo. Não espero menos dessa amizade. À Maria, Do ensino médio e da ZN até a FAU, você sempre foi minha casa nas terras de além-rio. Ter você sempre comigo me ajudou a nunca esquecer de onde eu vim e quem eu sou. Ao João, Sylvia e Luiza pela primeiríssima acolhida na FAU e por nunca desistirem de mim, que continuemos juntos. Aos amigos de Jarinu, sempre um respiro da rotina, sempre uma risada garantida, obrigada pelas viagens, pelos rolês, pela amizade e pelo carinho. Aprendo e me divirto muito com vocês. Em especial ao maridão, Parkinho. Ao Alexandre, tem sido um privilégio compartilhar a vida toda com você, meu amigo, obrigada pela certeza de mesmo com distâncias e silêncios, ter sempre alguém a olhar por mim. A Atlética que foi a maior diversão estressante que tive na vida. Obrigada por encabeçar minha passagem para a vida adulta e ser meu tudo por 2 anos. Agradeço a todos os amigos que você me trouxe, as migatléticas, os velhos e meus bebês, Fujii, Soff, Vit, Fru, Tap, Robs, Bila, Amorinha e todo mundo. Ao handebol pelas vitórias, jogos, rolês e o sentimento de pertencimento. As amizades importantes que fiz, Luzu, Clara, Aline e todas as meninas.
À Maria Paula pela escuta sempre gentil e amorosa e pela ética irretocável de sua prática. À Ana e Carol que em meio a solidão e caos da pandemia, me foram companhia e paz. À Letícia por me incentivar, me apoiar e ter me dado a bronca necessária para esse trabalho finalmente sair. Aos lugares que estagiei, Escola, Ignacio, Vigliecca, ATOS, Figueroa e 23 Sul. Obrigada pelas experiências e aprendizados tão diversos. À FAU, por ter sido minha casa todos esses anos. Agradeço pelas incontáveis memórias que criei, os laços que cultivei e a pessoa que me tornei durante essa jornada. À quem me ajudou na elaboração desse trabalho, seja com conversas, seja com a mão na massa. Arquitetura não é coisa que se faça só. À banca por aceitar o convite. Marina, obrigada por ensinar que a arquitetura necessita de delicadeza e humanidade. Luís, obrigada pelo acolhimento no setor e por inspirar luta. À Heleninha, pela longa jornada desde que me recebeu como monitora e falou que eu era chata com os alunos! A vida foi gentil ao cruzar seu caminho com o meu, me vejo tanto em você e isso me conforta. Obrigada pela orientação, amizade e risadas antes e durante esse trabalho. Ao MTST e meus companheiros do Setor de Arquitetura e Urbanismo. Obrigada pelo acolhimento, pela formação política, pela luta, pelo sonho, pela esperança e pela utopia.
sumário
introdução 1.
história de filhos inconformados e de pais cansados
2.
história de uma epifania
20
3.
como o trabalho está organizado
24
16
parte I o conceito de utopia 1.
conceito e contexto
28
2.
representação e meio de produção de utopias
34
3.
utopias fundamentais
42
4.
utopia no debate filosófico
58
5.
considerações sobre o conceito de utopia
74
parte II utopia, arquitetura e urbanismo 1.
utopias no século XIX
80
2.
utopias no século XX
92
3.
a era antiutópica
112
parte III utopia em ocupação 1.
o MTST
134
2.
militância como experiência arquitetônica
144
3.
os espaços das ocupações
156
parte IV ensaio de projeto 1.
estudo preliminar para ocupação esperança vermelha
186
2.
o projeto
198
resumo O presente trabalho procura estabelecer a relação entre o conceito de utopia e o campo disciplinar da arquitetura e urbanismo. Revela a importância do conceito na produção arquitetônica até o século XX, com os modelos urbanos e os preceitos do Movimento Moderno. Aponta a crise da utopia e o ostracismo do pensamento utópico quando se estabelece a aliança entre a arquitetura pósmoderna e o neoliberalismo. A cidade informal, materializada nas periferias do Terceiro Mundo apresenta-se como a distopia que os modelos utópicos modernistas não incluíram no seu ideal de universal. Entretanto é principalmente o resultado direto da lógica produtiva do espaço no contexto do capitalismo tardio. A partir da leitura do movimento da utopia na história da arquitetura e urbanismo, o trabalho procura recolocar o conceito na produção arquitetônica contemporânea. A arquitetura utópica como instrumento de reflexão e impusionamento à transformação da realidade só é possivel se ancorada em um processo social coletivo. As relações sociais e a construção de uma coletividade que se opõe as lógicas do status quo, configuram uma utopia e tem a capacidade de estabelecer novos modos de vida através da subversão desses espaços. O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto trabalha com essa lógica dentro de suas ocupações periféricas. O projeto de uma utopia de sociedade é construído coletivamente pelo movimento social nos territórios ocupados. Por conseguinte, o trabalho tem como objetivo último retratar através do projeto, a utopia que configura uma ocupação.
abstract The present work seeks to establish the relationship between the concept of utopia and the disciplinary field of architecture and urbanism. It reveals the importance of the concept in architectural production until the 20th century, with urban models and the precepts of the Modern Movement. It points to the crisis of utopia and the ostracism of utopian thought when the alliance between postmodern architecture and neoliberalism is established. The informal city, materialized on the outskirts of the Third World, presents itself as the dystopia that modernist utopian models did not include in their ideal of universality. However, it is mainly the direct result of the productive logic of space in the context of late capitalism. From the reading of the utopia movement in the history of architecture and urbanism, the work seeks to replace the concept in contemporary architectural production. Utopian architecture as an instrument of reflection and impetus to transform reality is only possible if anchored in a collective social process. Social relations and the construction of a collectivity that opposes the logics of the status quo, configure a utopia and have the capacity to establish new ways of life through the subversion of these spaces. The Movimento dos Trabalhadores Sem Teto works with this logic within its peripheral occupations. The project of a utopia of society is collectively constructed by the social movement in the occupied territories. Therefore, the work's ultimate objective is to portray, through the project, the utopia that configures an occupation.
“Não há alternativa” Margaret Thatcher
“Não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens. [...] A nova experiência de sonho se instaura, na medida mesma em que a história não se imobiliza, não morre. Pelo contrário, continua.” Paulo Freire
introdução
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introdução
história de filhos inconformados e de pais cansados
Há muito a palavra utopia faz parte do vocabulário do dia a dia, sendo usada como sinônimo de fantasia, algo inalcançável, um sonho belo, porém impossível. Imagine a cena de uma família assistindo às notícias sobre a fome na pandemia de Covid-19 e indignada a filha mais nova profere “Isso é um absurdo, poderíamos todos comer bem, produzimos mais comida do que o necessário para que ninguém passe fome, isso deveria mudar!”, mas logo é interrompida pela mãe com a seguinte e terminal sentença “Mas não vai mudar, o governo tem que querer e são todos corruptos, deixe de utopia!” Parece um diálogo simples e corriqueiro, mas na verdade é muito revelador sobre o modo de pensar na contemporaneidade. A mãe em toda sua astúcia de quem muito viu e viveu é taxativa no pragmatismo e na aposta da inércia do mundo. A fome, a guerra, a pobreza e a destruição estão aí como sempre estiveram, com mais ou menos afetados, com mais ou menos violência. Imaginar um mundo
história de filhos inconformados e de pais cansados
radicalmente diferente, em que a boa vida é desfrutada por todos? Impossível. “Com o tempo as crianças crescem, os boletos chegam e elas param de sonhar e trabalham pelo seu”, pensa ela. E provavelmente está certa, o capitalismo neoliberal, sistema político, econômico e ideológico que rege a grande maioria dos países, não só é um grande promotor do agravamento das chagas do mundo, mas também é todo montado para esse tipo de pensamento aflorar no indivíduo. Esse sistema de pensamento hegemônico altamente utilitarista, prático e realista precisa ser apoiado em um individualismo extremo, em uma falta de imaginação política e tem como imagem perfeita, o antiutopismo contemporâneo. Como a mãe pede à filha que abandone a utopia para aceitar o mundo real, precisamos entender a história desse pedido, que não é bem um pedido e sim uma imposição, uma violência ao sonho, um ataque à esperança. Precisamos entender o que pensa essa mãe, cansada, pragmática, que viveu a ditadura na infância, mas pouco entendeu do que se tratava, viu entrar e sair governo, teve a poupança bloqueada, assistiu escândalos de corrupção, guerra de juízes-heróis e ex-presidentesvilões, teve corte na aposentadoria, uma pandemia com milhares de mortes e presenciou muita coisa no cenário geral piorar. Precisamos entender também o que pensa a filha inconformada e o que é preciso fazer para que nunca se conforme. A história da utopia é também a história dos filhos inconformados que ousaram sonhar um mundo melhor e usaram a linguagem que dispunham para trazer seu sonho ao mundo. E se essa filha inconformada escolhesse a arquitetura como sua linguagem, teria ela um terreno fértil para sonhar? E se, muito
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introdução
desavisada com seu exemplar de Utopia, de Thomas More1, na bolsa, fosse parar em um lugar precário e lindo, onde mães inconformadas cozinham juntas e lutam por um teto para suas famílias. Onde a cozinha, a horta, a união e o modo de vida coletivo parecem mais com a Utopia descrita há mais de 500 anos do que qualquer coisa que ela havia presenciado até então. Teria ela sofrido uma epifania, como uma personagem de Clarice2, e visto que algo da utopia que ela buscava talvez estivesse ali, no fundão do Jardim Ângela?
1.
MORE, 1999.
2.
Clarice Lispector foi escritora e jornalista, autora de inúmeros contos, romances e ensaios, sendo considerada uma das maiores escritoras brasileiras do século XX.
história de filhos inconformados e de pais cansados
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introdução
história de uma epifania
Esse trabalho é, em primeiro lugar, resultado desse momento, dessa epifania. Uma busca que vivi por anos, para dar um só corpo à pesquisa teórica de um tema e um conceito que muito me intrigava: a utopia e sua relação com a arquitetura; a experiência — mesmo que limitada pelas restrições da pandemia — junto a militância política no MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto); e o contato com suas ocupações.
3.
LACAN, 1979, p. 104 apud GARCIA, 1997, p. 125
Uma epifania é um entendimento ou compreensão súbita da natureza de uma realidade. Como emoção, tem um aspecto de momento divino e mítico, mas carrega um longo período de maturação dessa realidade no inconsciente. Para o psicanalista Jacques Lacan, a epifania é o encontro do inconsciente com o Real que se dá por meio da falta3. Há a ausência de algo e na busca de preencher esse vazio, mesmo sem saber do que de fato se trata, temse o choque ao se ver em contato inesperado com o tal objeto da falta.
história de uma epifania
É a partir dessa experiência subjetiva que coloco meu trabalho. Meu interesse ao longo da graduação foi a prática de projeto, em especial o projeto de habitação de interesse social. Após um acúmulo prático e teórico sobre a questão da moradia, busquei entender o que seria a habitação ideal e de que forma seria possível fazê-la radicalmente fora da lógica produtiva vigente. Tal questionamento me levou a buscar quem na história havia feito as mesmas perguntas e quais respostas encontraram no caminho. Invariavelmente, me deparei com o conceito de utopia e tive contato com aqueles que,de alguma forma, tiveram uma obra escrita ou projetual significativa nesse sentido. Ao longo da pesquisa, formulei a hipótese de que a tradição do pensamento utópico foi fundamental para a história da arquitetura e do urbanismo desde o nascimento da metrópole industrial no século XIX até o momento paradigmático do fim do modernismo. A partir daí, a utopia é ostracizada dentro do campo disciplinar. A produção pós-moderna, hegemônica entre as décadas de 1970 à 1990, não propôs alternativas críticas, políticas e éticas, se ausentando de produzir utopias. Desde então vê-se tomar corpo o antiutopismo contemporâneo, intrínseco à política econômica neoliberal. Como sintoma de um arranjo estrutural, o antiutopismo se manifesta desde o modo de vida e sistema de crença dos indivíduos, até as instâncias políticas, econômicas, sociais e culturais da vida pública e do Estado. A partir desse contexto, proponho a retomada do pensamento utópico como necessário para a transformação da sociedade. E aqui se coloca o encontro teórico e empírico que culminou neste trabalho. Como propor na prática, por meio da arquitetura, uma mudança de algo que é estrutural, de um modo arraigado de viver, pensar e
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introdução
produzir espaços? Seria desenhar a minha utopia? E que diferença seria essa, do caminho dos modernos, que como veremos não foi de todo exitoso? Certamente descobri muito cedo que a utopia que eu buscava pouco tinha a ver com algo que pudesse se fazer ou pensar sozinha. A experiência em território junto ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto me mostrou que sonhar um mundo melhor é tarefa coletiva, que carece de luta, de laços de amizade, acolhimento, solidariedade e amor; e se dá através da transformação dos indivíduos e suas relações entre si e seus territórios. A utopia talvez não seja um modelo pronto e acabado de como tudo deveria ser e funcionar. Ela pode estar em espaços outros, espaços contra-hegemônicos em que a vida se apoia em outra lógica que não a neoliberal. Procuro por fim, entender a história do pensamento utópico, seu caminho junto da história da arquitetura e do urbanismo e a triste separação desses dois caminhos. E busco tentar dar corpo e substância ao inesperado vislumbre de que talvez um lugar um pouco fora dessa história toda, umas ocupações periféricas de um movimento de moradia de uma metrópole brasileira seja enfim um potencial palco para esse tão esperado reencontro.
história de uma epifania
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introdução
como o trabalho está organizado
O trabalho está divido em quatro partes. A primeira parte se dedica a explorar o conceito de utopia. Longe de querer determinar uma definição última, me dedico a contextualizar o termo utopia desde suas primeiras contribuições na cultura ocidental traçando um histórico de sua utilização e o debate na literatura, filosofia e arquitetura acerca do tema. A segunda parte se dispõe a relatar a produção utópica da arquitetura e do urbanismo e discutir qual o papel do cenceito para as reflexões no campo disciplinar desde o século XIX até os dias de hoje. A terceira parte se propõe a relatar minha experiência pessoal como militante do Movimento dos Trabalhadoes Sem Teto e através da observação e vivência nos espaços das ocupação, justificar o que de utopia, eu encontro nesses espaços. A quarte parte apresenta o projeto para a Ocupação Esperança Vermelha, procurando a partir das premissas de organização do
como o trabalho está organizado
territórios das ocupações revelar a utopia que existe nesse processo social e como ela pode ser traduzida em materialidade e espaço.
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parte 1
o conceito de utopia
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o conceito de utopia
conceito e contexto
1.
Lewis Mumford distingue as categorias de Utopias de Escape e Utopias de Reconstrução. As utopias de escape são as realidades imaginadas coletiva e individualmente para fugirem da realidade. Concebidas com o intuito de sonhar momentaneamente um mundo mais prazeroso que a vida real. Em: MUMFORD, 2007.
A palavra utopia circula como parte do discurso cotidiano e acadêmico de forma muito polêmica e variada. No que diz respeito ao discurso cotidiano, de quando em quando, é utilizada de maneira pejorativa para invalidar uma ideia, pois seu significado está diretamente atrelado à ordem do impossível. Como se uma ideia utópica fosse automaticamente indigna de um debate sério por estar no plano das ideias e fantasias sem aplicabilidade e conexão com a realidade. Às vezes, porém, o utópico pode ganhar um tratamento um pouco mais simpático. Ainda tendo em si colado a pecha de fantasia impossível, a imaginação pode vir em boa hora, sendo encarada como um devaneio de escape1. Um sonho para fugir momentaneamente de uma realidade dura, da rotina enfadonha e dos problemas da vida em geral. Posto esses dois usos, é fácil imaginar as seguintes cenas: Uma reunião corporativa em que funcionários são estimulados a alguns minutos de brainstorm (toró de palpites), e uma ideia logo
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conceito e contexto
é avaliada como utópica demais, de difícil aplicação, portanto, descartável. É importante não confundir a narrativa que envolve o significante “inovação” com utopia. A inovação tão perseguida em ambientes corporativos, nada tem a ver com sonhos de um mundo melhor e alternativas aos problemas da realidade. Ela responde a uma outra equação, mercadológica e baseada na busca de mais lucro. A outra cena poderia ser uma atividade comum e necessária a todos os seres humanos: o ato de fantasiar e sonhar acordado. Pensar na conquista do emprego perfeito, na vida ao lado do grande amor, em uma viagem muito desejada, na compra da casa própria... Ao voltar os pensamentos para o planeta Terra, podemos considerar tais devaneios uma utopia. A palavra, como coloca o dicionário, foi sendo construída como sinônimo de fantasia, mito, quimera, sonho perfeito e ideal. Entre as definições propostas, ressalto a sentença: “O que está no âmbito do irrealizável; que tende a não se realizar.”2. Outras definições determinam um lugar ideal, onde tudo funciona de maneira perfeita e harmoniosa. Já no campo acadêmico, é possível notar, após um período atento à recorrência do conceito, que existem inúmeros títulos de monografias, artigos e teses que fazem uso da palavra para demonstrar a inovação de uma proposição contida no trabalho. Dentre os trabalhos acadêmicos de ciências humanas com inclinação crítica de esquerda, aparece de forma geralmente positiva, porém sem grande rigor com sua construção conceitual, relegando seu significado à compreensão de senso comum. Também é corriqueiro, por exemplo, no campo da arquitetura, projetos muito ambiciosos serem tachados de utópicos e logo verem seus autores tentarem desvincular a obra do conceito ou então, se
2.
UTOPIA. In. DICIO, Dicionário Online de Português, 2021. Disponível em: https://www.dicio.com.br/ utopia/. Acesso em: 09 mai. 2021.
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o conceito de utopia
apropriarem dele, buscando reformular seu significado para ressaltar os aspectos práticos e viáveis de sua implementação. Fora desse conjunto de debates e trabalhos no campo crítico, a utopia ganhou, com a promoção entusiasmada de importantes filósofos liberais como Karl Popper e Hannah Arendt, uma associação direta com o autoritarismo e regimes políticos totalitários³. Para eles, Adolf Hitler, Benito Mussolini e Josef Stalin eram homens do pensamento utópico. A eugenia, a limpeza étnica e os campos de concentração eram a materialização da utopia nazista, assim como a pobreza generalizada e a privação de liberdade e individualidade eram a face vil da utopia socialista. Fato é que, desde sua criação, a palavra utopia foi incorporada pelo discurso cotidiano, carregado de significados próprios, adquiridos por meio de uma construção cultural específica. E como uma onda, vez ou outra é retomada com força na produção formal de conhecimento, inspirando obras literárias, filosóficas e urbanísticas e sendo detratada ou defendida com arrebatamento. A utopia, acima de tudo, é uma mobilizadora de afetos. Há o ódio dos cínicos e céticos, muitas vezes apegados ao conforto de uma realidade privilegiada, em que o sonho e a esperança de outrem assusta e ameaça. Ou pior, causa indiferença. E há o princípio da esperança, contida no ato de sonhar um mundo melhor, onde o inconformismo se transforma em luta, e como relembra Eduardo Galeano, a utopia está sempre dez passos à frente para que não se deixe parar de caminhar4. 3.
JACOBY, 2007.
4.
Fernando Birri citado por Eduardo Galeano, In: GALEANO, 2015.
Esse trabalho não se furta de tomar um lado. Aqui adoto a posição enfática de defesa do pensamento utópico e dos afetos positivos e negativos mobilizados por ele. De uma perspectiva
conceito e contexto
moral, por positivo coloco a esperança, a alegria, o amor e a paz, que, desde a cultura greco-romana, estavam inclusos nos sonhos de sociedade ideal e da república perfeita. Por negativos, coloco a inconformidade, a raiva e o desamparo de se estar no mundo. Assim como o desejo de afetos positivos mobiliza em direção à utopia, os negativos também são importantes para formular uma crítica à realidade e poder transformar tais afetos em luta, tendo a utopia como perspectiva para a transformação da realidade. Mas afinal o que é utopia? Qual sua relação com o imaginário e com o impossível? Como ela foi aproximada do autoritarismo e de regimes totalitários? O que o pensamento utópico pode contribuir para uma transformação da realidade? O conceito carrega uma longa história e ganha outros significados para indivíduos e sociedades em espaços e tempos diferentes. Ele está, e sempre esteve, em disputa, tendo contribuições importantes para sua conceituação, e uma grande produção em diferentes formas de representação. Chamo de tradição do pensamento utópico esse conjunto teórico e prático de debates e formulações do conceito, obras literárias, projetos urbanísticos e arquitetônicos, e outras representações discursivas. Sem a ambição de perpassar por toda a extensa produção e diálogo sobre o tema que já dura milhares de anos, busco aqui colocar as questões que me são caras dentro do debate sobre o conceito, a fim de fundamentar o que é utopia dentro do escopo e hipótese deste trabalho. Antes de buscar elementos para uma definição e adentrar algumas das obras fundamentais, é importante entender de que lado da história está a utopia e os utópicos. Por lado da história, não me refiro a uma visão maniqueísta de bem ou mal, e apesar de podermos
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o conceito de utopia
buscar alguma relação, não me refiro necessariamente a uma visão marxista de luta de classes. Russell Jacoby coloca em sua obra, “Imagem Imperfeita: Pensamento Utópico para uma Época Antiutópica”, que “em uma época de emergências permanentes, mais do que nunca nos tornamos utilitaristas estritos, dedicados a consertar, e não a reinventar, o aqui e o agora.”5 Essa é a oposição que coloca a perspectiva utópica em confronto com a realidade. É preciso acreditar que o mundo pode ser reinventado, as relações podem ser reestruturadas, o espaço pode ser utilizado e produzido de outra forma. Há uma radicalidade intrínseca ao pensamento. Um utópico é um radical em sua essência, sem vergonha e sem recuo quanto a isso. Sonhar uma realidade diferente não é ato de maquiar as faces vis e grotescas do mundo como ele é, e nem medicar suas doenças ou fazer curativos em suas feridas. O utópico não se conforma com as injustiças, as desigualdades e o modo de vida que levamos hoje. Ele leva a cabo a esperança e o sonho de que as coisas podem se transformar profundamente. Como afirma David Harvey, “a sociedade é construída e imaginada, podemos crer que pode ser reconstruída e reimaginada”.6
5.
JACOBY, 2007, p. 6.
6.
HARVEY, 2014. p. 211.
7.
MUMFORD, 2007.
Seguindo um idealismo hegeliano, Mumford aponta a dualidade da história da humanidade7. O ser humano vive em um mundo material e das ideias, e a história contada corresponde a apenas metade do todo. A história das ideias é tão importante para entender o mundo quanto a história dos eventos, das condições materiais e transformações físicas do meio ambiente. A utopia faz parte do mundo das ideias e possui sua própria história: a história dos mundos imaginados, dos sonhos e projetos ideais, das propostas
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conceito e contexto
de soluções aos problemas universais e atemporais e como elas intervieram na realidade. O termo utopia surgiu com o livro de Thomas More, publicado em 1516. A origem etimológica da palavra que dá título à obra, vem da composição das palavras gregas “ou” que significa “não” e “topos”, “lugar”. Sendo assim, teria o significado de não-lugar ou lugar nenhum. Porém, como aponta Mumford8, é possível traçar uma etimologia alternativa que comporia “eu” que significa bom e “topos”, lugar. Temos então o primeiro significado de lugar nenhum e o segundo de lugar bom. Da criação da palavra até hoje muitas contribuições foram feitas, termos derivados como distopia, heterotopia (de Michel Foucault), retrotopia (de Zygmunt Bauman) e atopia (de Byung-Chul Han), foram acrescentados à conversa. A certa altura, boa parte dos grandes pensadores refletiram sobre o tema. Afinal, estamos falando da busca por alternativas de estar no mundo, da possibilidade de uma vida harmoniosa e prazerosa para todos. Estranho e inútil seria se toda a produção intelectual e material da humanidade se desviasse da rota que caracteriza essa busca. Cercada de polêmicas, amada e odiada, a utopia segue presente como perspectiva de construção de futuro para uns, e para outros aparece como um fantasma9 autoritário que não cessa de se inscrever no imaginário, apesar de todas as tentativas de eliminar a alma utópica do mundo. Ouso dizer que, apesar das contradições e variabilidade de estado e força ao longo da história, o pensamento utópico não só é central para atividade humana, mas o desejo de utopia é o que move mulheres e homens dispostos a transformar o mundo desde a primavera dos tempos.
8.
Ibid.
9.
Sobre a Utopia como fantasma, iremos adentrar essa questão na Parte II do presente trabalho a partir de uma abordagem dentro da arquitetura. Ver: MARTIN, 2010.
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o conceito de utopia
representação e meio de produção de utopias
As reflexões utópicas, como veremos, são necessariamente expressas por algum sistema de representação, ou seja, possuem uma linguagem. As primeiras utopias eram obras literárias que traziam reflexões filosóficas por meio da prosa, poesia ou diálogo. Eram lugares ideais descritos com riqueza de detalhes quanto a sua estrutura política, econômica e social, e quanto a sua organização espacial. Com o advento da modernidade as produções utópicas deixam de ser apenas obras literárias e se tornam um sistema de pensamento importante para propor mudanças reais na construção das metrópoles industriais. Além disso, a utopia passa a ser explorada como categoria conceitual por filósofos e cientistas sociais, não necessariamente estando atrelada a alguma produção literária. Coloco aqui gênero literário utópico, o debate teórico sobre o conceito filosófico, a produção arquitetônica e o cinema como distinções do sistema de representação. De certa forma, todos autores
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represetação e meio de produção de utopias
estão juntos no panteão da tradição do pensamento utópico, tendo muitos exemplos dos que se utilizam de mais de uma linguagem, provando que o coração de sua obra é a utopia e não necessariamente o meio de expressá-la. Portanto, me debruço de maneira mais aprofundada nas duas principais linguagens em que utopias foram expressas ao longo da história: a literatura e a arquitetura. No que diz respeito à literatura, é inclusive reconhecida como gênero literário, tendo a distopia como gênero derivado importante para a cultura popular contemporânea Sobre as distopias há de se ressaltar seu extraordinário desenvolvimento como linguagem fílmica. Desde as primeiras grandes distopias cinematográficas como Alphaville de Jean-Luc Goddard (1965) e Fahrenheit 451 de François Truffaut (1966) , até os mais recentes filmes infanto-juvenis como Jogos Vorazes, baseado na trilogia de livros de Suzanne Collins.1 Quanto à forma de representação arquitetônica, é ela que mais nos interessa no escopo deste trabalho. A percepção da arquitetura como linguagem e um sistema que representa uma sociedade, uma formação cultural e uma maneira de organização da política e do modo de vida, tem um lastro histórico para além da vinda do estruturalismo e pós-estruturalismo no século XX. Victor Hugo em uma passagem muito bonita de Notre Dame em Paris, publicado em 1831, afirma que a cidade é um livro, enfatizando sua capacidade de comunicar e contar a história do mundo: Com efeito, desde a origem do mundo até o século XV da era cristã, inclusive, a arquitetura é o grande livro da humanidade, a expressão principal do
1.
A distopia como principal linguagem especulativa da contemporaneidade é facilmente percebida pela intensa presença na cultura popular. Podemos argumentar que a diferença entre utopia e distopia é o caminho tomado pós-crítica. Enquanto a utopia propõe o negativo da realidade, ou seja, a partir dos problemas vai jogando com seus oposto, a distopia extrapola a intensidade das questões. Ao invés de, “a partir disso, como poderia ser melhor”, a distopia propõe “a partir disso, como poderia ser pior”.
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o conceito de utopia
homem em seus diversos estados de desenvolvimento, seja como força, seja como inteligência.2
Por inteligência, ele se refere à capacidade de imaginar mundos e colocá-los na realidade, papel fundamental da profissão do arquiteto, e elogia a força da capacidade humana no trabalho de construir com suas próprias mãos monumentos e cidades. Se a arquitetura, literatura e cinema são exemplos de meios de representação, o meio de produção da utopia é a imaginação humana. A imaginação sustenta a utopia, e se é possível traçar um declínio do pensamento utópico na vida contemporânea, esse se deve a um notável empobrecimento geral da capacidade de imaginar. Russell Jacoby atribui esse empobrecimento à mudança do modo de se viver a infância nos dias de hoje3. Crianças pouco imaginativas crescem e se tornam adultos pouco imaginativos. Como um dos fatores principais ele cita a mudança das brincadeiras desestruturadas e espontâneas das ruas para os jogos predeterminados e atividades e esportes cheios de regras. “Os brinquedos e os videogames, feitos por adultos, substituem as brincadeiras e jogos de rua, feitos por crianças.”4
2.
CHOAY, 1979. p. 324.
3.
JACOBY, 2007.
4.
Ibid, p. 61.
Apesar de generalista e um pouco caricatural de uma geração saudosista de seus próprios tempos de brincadeira, é sem dúvida um ponto interessante. O autor traz para primeiro plano a relação da infância com a imaginação. Todos temos a experiência de sentir ao longo do nosso próprio crescimento e passagem para a vida adulta uma perda proporcional da vida lúdica e imaginativa. Uma das atribuições pejorativas mais comuns designadas a pensadores utópicos é a infantilidade. Como se abrir espaço para
represetação e meio de produção de utopias
especulações lúdicas, imaginativas e esperançosas fosse uma regressão de maturidade, uma incapacidade de analisar fria e calculadamente a realidade e suas limitações. Trata-se de uma falácia. O pensamento utópico nada tem de imaturo e descolado da realidade, porque se baseia em uma crítica sistemática a ela. Como criticar sistematicamente o que não se conhece? Há que se defender a relação infância, imaginação e utopia, e não trabalhar para sua dissociação. O imaginário infantil deve ser preservado e estimulado assim como o imaginário do adulto que tem os meios para colocar alternativas em prática. Quanto ao possível empobrecimento da imaginação por conta dos vídeo games e brincadeiras automatizadas, esse argumento faz parte de uma tese mais abrangente tratada por Jacoby em sua obra. O empobrecimento geral da capacidade de imaginar diz respeito ao frenesi imagético em que vivemos. Além de estarmos constantemente imersos em telas, e não disponibilizarmos de tempo para o ócio e para o tédio, imprescindível para uma boa viagem nas terras da imaginação, somos bombardeados diariamente com imagens prontas que condicionam nosso desejo e fantasia. Nosso sexo é cada vez mais pobre em função de uma imagem pornográfica artificial e repetitiva que vigora no lugar do nosso desejo e das nossas fantasias mais profundas. Nossos sonhos são cada vez mais mercadológicos e genéricos, impulsionados pela cultura de consumo. Nosso ideal de Eu é cada vez mais um produto estético e discursivo espelhado em pessoas e vidas de simulação, transmitidas em redes sociais às quais dedicamos horas dos nossos dias compulsivamente. As imagens pré-fabricadas produzem o sentido de banalização de uma possível utopia contemporânea.
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o conceito de utopia
Em uma era de triunfalismo e autopromoção, anunciar o futuro apenas aumenta o tumulto. Um outro projeto utópico parece apenas um outro outdoor ou vídeo. O futuro, talvez, possa ser escutado, mas não visto.5
Logo, fica claro que para uma retomada do pensamento utópico, empreitada que esse trabalho procura contribuir, é imprescindível se pensar sobre o imaginar e resgatar o princípio da fantasia como fundamental para a atividade humana. Em contrapartida, David Harvey assinala que não há falta de imaginação na contemporaneidade, inclusive afirma que nunca houve tanta exploração imaginativa como hoje6. Nas ciências exatas e biológicas, há abundante desenvolvimento de novas tecnologias e descobertas sobre o universo, o planeta e os seres que o habitam. Nas ciências humanas, que se valem de abstrações para entender, criticar e produzir o mundo material, há uma profícua produção e debates. O problema seria então a falta de esperança e a condenação do pensamento utópico7. Toda essa inventividade humana não seria direcionada para a procura de alternativas radicais à realidade, que visassem a igualdade e justiça universal. A capacidade imaginativa existe, só não é direcionada a elaborações utópicas. 5.
Ibid., p. 70.
6.
HARVEY, 2014.
7.
Ibid.
8.
Ibid.
Há diferenças no entendimento de imaginação para ambos os autores, sem dúvida Harvey expande sua compreensão para qualquer tipo de abstração, sendo a formulação de uma expressão matemática ou uma campanha de marketing, exemplos efetivos da imaginação humana. Mas ambos concordam que a consolidação de uma espécie de rejeição a utopia tem papel fundamental na interrupção do livre fluxo de imaginação em busca de alternativas.8
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represetação e meio de produção de utopias
A imaginação se coloca como um traço distintivo do que é ser humano, ou seja, em todas as épocas e lugares, todos os seres humanos que passaram pela Terra, imaginavam. A questão é o que, e como se imaginava e o que, e como imaginamos hoje. O empobrecimento não se dá em quantidade, (fazíamos mais e fazemos menos), mas sim em qualidade, (imaginávamos melhor antes do que hoje). Há de certa forma pouca variedade, o capitalismo neoliberal tratou de fazer-nos querer as mesmas coisas, consumir (ou querer consumir) os mesmos produtos, ser bombardeados por imagens publicitárias que no fundo condicionam profundamente nossa experiência à uma alienação radical do nosso desejo e da nossa imaginação. Até as cidades não escapam do clima de monotonia frenética. Como coloca Rem Khoolhaas: a produção espacial contemporânea pode ser vista através do fenômeno denominado por ele como “cidades genéricas”9. A cidade genérica não tem história e nem identidade, pode-se ver exemplares em todos os lugares do mundo, como se a globalização fosse proporcional ao processo de homogeneização das cidades. Com um tom jocoso e uma escrita estilizada, fica difícil afirmar se Khoolhaas critica ou enaltece a cidade genérica (da qual ele, enquanto arquiteto de atuação internacional, é um ativo produtor). Ele ironiza, no entanto, a massa de arquitetos anônimos que fabricam incessantemente as cidades genéricas ao redor do mundo. Sem aspirações políticas e éticas, essa massa elege o pós-modernismo como estética e produz um tipo viciado e pouco reflexivo de arquitetura. A contribuição do texto de Khoolhaas dentro da discussão do presente capítulo revela duas considerações sobre essa que é por essência a profissão do imaginar. A primeira diz respeito à própria crítica contida em Khoolhaas. Como o arquiteto contribuiu para 9.
KOOLHAAS, 2006.
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o conceito de utopia
a formação de cidades genéricas e pouco imaginativas? A produção da cidade genérica se mostra desprovida de política, ética e crítica, portanto se revela antiutópica. Sendo assim, suscita a questão: quando, como e porque a arquitetura rompeu com a utopia? E a segunda crítica vai em direção a Khoolhaas e seus colegas do star system10, e aponta para a hipótese defendida neste trabalho. A cidade é genérica mesmo ou o arquiteto perdeu a capacidade de se sensibilizar e enxergar a diferença de outros espaços? Será possível ver para além do último aeroporto e hotel visitado? Para além dos muitos centros degradados ou prédios espelhados de centros financeiros? Será possível ver uma massa de barracos de cidades genéricas do terceiro mundo como mais que uma massa qualquer de pobres pretos, amarelos ou árabes? O arquiteto ainda quer, não só reconhecer esses espaços, mas também ser um produtor ativo de novos mundos, levando a cabo essa sentença como a base ética de sua prática?
10. Para uma crítica mais sistemática sobre o conceito de cidade genérica e a própria figura midiática de Rem Koolhaas, ver: RIBEIRO, 2010.
represetação e meio de produção de utopias
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o conceito de utopia
utopias fundamentais
A distinção das formas de representação de utopias entre literárias, filosóficas e arquitetônicas atende a propósitos didáticos e não categóricos objetivos. Em outras palavras, todas fazem parte do mesmo sistema de pensamento e possuem uma relação orgânica e muitas vezes de difícil corte entre uma disciplina e outra. Não é possível destacar completamente uma forma da outra, sendo as obras aqui colocadas em uma espécie de categoria representativa majoritária. As primeiras utopias podem ser classificadas como literárias, sendo A República de Platão e a Utopia de Thomas More as maiores representantes. Podemos apontar ambas as obras, apesar do intervalo milenar entre elas, como as utopias fundamentais. Não que não houvesse produções relevantes durante e entre a publicação delas, mas certamente elas configuram um marco não somente para a tradição do pensamento utópico, mas também para toda a constituição da cultura e da política ocidental.
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utopias fundamentais
A República de Platão
A República é um diálogo escrito por Platão, cujo personagem principal é Sócrates, que ao longo de dez livros vai debater com diversos interlocutores grandes questões filosóficas. O primeiro livro busca apresentar a definição de justiça para os personagens. Sem uma conclusão satisfatória, Sócrates propõe discutir a questão na escala da cidade e não do indivíduo. A proposição vem da ideia de que a justiça se revela sempre em uma relação, então não é possível definir um indivíduo justo sem que se considere sua relação com seus pares. A cidade é a instância da relação e da reunião dos indivíduos a fim de satisfazerem juntos, e de maneira mútua, suas necessidades básicas de sobrevivência e de vida plena. Começa assim a primeira grande tentativa no ocidente de colocar em linguagem escrita o modelo de cidade ideal. O livro II, III e IV procuram estabelecer o que seria as bases materiais e organizativas de uma utopia cuja inspiração vem das cidades de Esparta e Atenas, sendo possível entender a descrição da República como uma Esparta ideal e uma Atenas ideal.1 Para Platão a vida boa proporcionada pela cidade perfeita deveria ser simples. Uma cidade baseada na produção agrícola onde as trocas seriam efetuadas principalmente por escambo, e os indivíduos não buscariam o acúmulo de posses e terras, apenas os prazeres do corpo e da alma. O limite da cidade circularia por volta de 5040 pessoas, um número que permitiria aos indivíduos cultivarem laços comunitários. A cidade seria altamente funcional através do trabalho desempenhado pelos indivíduos de acordo com suas aptidões. Haveria divisão de classes entre guerreiros, guardiões e artesãos 1.
MUMFORD, 2007.
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2.
3.
4.
o conceito de utopia
A Alegoria da Caverna está presente no livro VII de A República e narra a história de homens acorrentados em uma caverna que apenas viam sombras projetadas na parede, e a mudança de percepção que um indivíduo sentiria se fosse libertado para o mundo e visse o que de fato são as sombras. A passagem fala sobre o poder do conhecimento, educação e alienação. Ver: PLATÃO, 2005, p. 315-360. O Mito do Anel de Giges é citado no livro II e discorre sobre esse artefato mágico que daria o poder da invisibilidade a quem o possuísse. A passagem fala sobre a moral. Um homem continuaria sendo correto e justo se tivesse a oportunidade de se esconder da condenação de seus pares? O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien é uma releitura do mito. Ver: PLATÃO, 2000, p. 53-100. PEREIRA, 2005, p. XXXIV.
conforme as virtudes mais desenvolvidas em cada indivíduo, sendo o sábio, por exemplo, designado para a função de governar, ou seja, de guardião. Os filhos e as mulheres seriam compartilhados para que a hereditariedade não se sobrepusesse a aptidão, e as mulheres seriam cidadãs da república, podendo desempenhar funções iguais aos homens. Claro, um tratado filosófico da magnitude de A República não se resume à descrição da cidade utópica. Ela traz passagens famosas como a Alegoria da Caverna2 e o Mito do Anel de Giges3. Mas o que permeia a obra toda é a busca pela definição do conceito de justiça, o qual a imagem de tal cidade é elucidativa. Sócrates por fim, define no diálogo que a cidade justa é aquela que mantém a harmonia entre suas partes e suas funções. Não existe, portanto, a valorização ou desvalorização de ofícios dos cidadãos, desigualdade entre pobres e ricos, e destruição da natureza. A harmonia da República é completa e deve ser um modelo a ser seguido. Maria Helena da Rocha Pereira aponta na introdução de sua tradução da obra que: Ao terminar o Livro IX, Gláucon reconhece que a cidade que acabou de delinear é utópica. Mas objeta Sócrates, “fica o paradigma no céu, para quem quiser contemplá-lo e estabelecer por ele o seu teor de vida. Quer a cidade exista, quer não, é só a esse modelo que o filósofo seguirá.”4
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utopias fundamentais
Aqui podemos notar algumas coisas interessantes para nosso estudo sobre as utopias. Primeiro é a necessidade de ter a cidade como objeto de discussão sobre as virtudes, a política e a própria filosofia. Não é o indivíduo isolado que permite reflexões sobre a melhor maneira de viver, governar e pensar, e sim um conjunto de indivíduos e suas relações entre si e o meio em que vivem. Apesar da diferença de escala dos agrupamentos do século VI a.C. e os de hoje, a cidade é a escala essencial da utopia. Mumford assinala a importância da questão da escala para a República afirmando que: “As pessoas não são membros de uma comunidade por viverem sob o mesmo sistema governativo ou no mesmo país. Tornam-se cidadãos genuínos na medida que partilham certas instituições e modos de vida com pessoas de formação semelhante.”5 Sendo assim, é possível reforçar também um ponto que vai aparecer na maioria das utopias: o forte senso de comunidade. Nenhuma utopia é pensada em unidade individual e nem familiar, mesmo que se considere um núcleo de família estendida. Inclusive, como aqui em A República, muitas utopias questionam por completo a estrutura familiar da sociedade vigente, geralmente coletivizando o cuidado das crianças e propondo flexibilizações nas relações estritamente monogâmicas. Entretanto, essa cidade perfeita esconde a escravidão como a fundação que a sustenta. A escravidão, geralmente de derrotados em guerra, não era uma questão ética na Grécia Antiga. A República possuía um regime democrático que prezava pela liberdade de seus cidadãos. No entanto, os escravos não eram considerados cidadãos, sequer eram considerados seres humanos. Todo o trabalho dito indigno e penoso, e as funções mais pesadas eram atribuídas aos
5.
MUMFORD, 2007, p. 42.
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escravos, tirados da equação de igualdade entre os cidadãos. A escravidão ainda está presente na Utopia de Thomas More e só será encarado como problema ético pelos modernos.
A Utopia de Thomas More
Thomas More foi um grande humanista, filósofo, religioso e político, exercendo o cargo de chanceler do Rei Henrique VIII na Inglaterra renascentista. É um santo canonizado pela Igreja Católica e considerado padroeiro dos políticos e governadores. Sua maior obra, Utopia, foi publicada em 1516 e é dividida em dois livros: o primeiro discute questões de relevância para a sociedade inglesa da época, e o segundo, descreve a ilha de Utopia, uma sociedade fictícia ideal, encontrada nas terras do Novo Mundo. Ambos os livros retratam um diálogo do próprio More, portanto, um personagem em sua obra, com Rafael Hitlodeu, uma figura fictícia que pode ser entendida como um alter ego do autor. De acordo com levantamentos biográficos6, o livro dois foi escrito antes do livro um, o que suscita a hipótese de que por si só, poderia ser uma obra acabada. Mas então, por que após escrever um livro de ficção sobre uma ilha onde a sociedade funciona de maneira ideal, More volta a debater problemas da sua sociedade como uma introdução de Utopia? De certa forma, a descrição da ilha fictícia é marcada pela oposição com a ilha real, a Inglaterra, discutida no primeiro livro. Assim, More expõe que a principal razão de existência de sua ficção, é a crítica à realidade. As questões levantadas como o roubo, a forma de governo e a natureza humana são sistematicamente resolvidas 6.
ADAMS; LOGAN, 1999.
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utopias fundamentais
em sua ficção, apontando as soluções que seriam cabíveis para transformar o mundo real. O livro I propõe uma série de debates colocados em uma conversa entre Thomas More, Rafael Hitlodeu e Peter Giles7. O primeiro debate é sobre o cargo de conselheiro do rei, o qual quando questionado por More, Hitlodeu diz não considerar nunca ocupar, visto que reis se preocupam mais com a arte da guerra e a conquista, do que em governar seu povo em tempos de paz.8 Além disso, Rafael adentra um argumento moral sobre o egocentrismo e vaidade da realeza e sua corte. O segundo debate gira entorno da justiça e do roubo. Os ladrões eram punidos com a morte na Inglaterra do século XVI, entretanto o número de crimes não diminuía. Rafael vai argumentar que se as pessoas tivessem como subsistir não roubariam. esse modo de lidar com os ladrões é tão injusto quanto socialmente indesejável. Enquanto punição é severo demais, e, enquanto meio de intimidação , ineficaz. O pequeno furto não é crime tão grave que mereça a pena de morte, e não há no mundo nenhum castigo que faça as pessoas pararem de roubar quando é esta a única forma de que dispõem de conseguir alimento.9
Em uma sagaz artimanha retórica, Hitlodeu parte para o terceiro debate sobre a propriedade privada. Ele liga o problema do roubo ao crescimento do oligopólio agropecuarista. As terras férteis se concentram nas mãos de poucos latifundiários em busca de
7.
Peter Giles viaja com Thomas More para Flandres, onde Utopia é escrita. Tanto Giles quanto a própria viagem são incluídas na obra ficcional.
8.
MORE, 1999.
9.
Ibid., p. 26.
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o conceito de utopia
lucro, expulsando pequenos agricultores e deixando-os sem meios de subsistir. Hitlodeu defende o dever do monarca de garantir o bemestar coletivo e não de usar a disseminação da pobreza do povo como forma de controle. Para além de protecionismo e eficiência do governo, o personagem faz uma defesa contumaz da distribuição igualitária de bens como única forma de atingir uma sociedade justa. Pois, quando todos têm o direito de obter para si o máximo que desejam, toda a propriedade disponível, por mais vasta que seja, estará condenada a ficar nas mãos de uma escassa minoria, o que significa que todos os demais viverão na pobreza. [...] Em outras palavras, estou perfeitamente convencido de que nunca chegaremos a uma justa distribuição dos bens, ou a uma satisfatória organização da vida humana, enquanto não se acabar por completo com a propriedade privada. 10
10. Ibid., p. 66.
O livro II contém uma descrição meticulosa da organização social, política e espacial de Utopia. A ilha possui 54 cidades que, salvo particularidades quanto ao terreno de implantação, são extremamente parecidas. A que somos apresentados mais particularmente é a capital Amaurota. A cidade é murada e rodeada por áreas agrícolas afastadas por um fosso e uma muralha com ligações feitas por pontes. Há um regime de rotação na agricultura, os utopianos passam um tempo na cidade exercendo sua profissão de livre escolha e um tempo no campo.
utopias fundamentais
O regime de trabalho é de 6 horas por dia e há o incentivo de usar as outras horas do dia para o cultivo de prazeres do espírito e do corpo. Não há dinheiro ou trocas, tudo o que é necessário pode ser retirado no mercado central do bairro. As cidades possuem um número limite de habitantes. Caso ultrapasse esse número, outra cidade é fundada. O excedente da produção é trocados entre cidades, nunca faltando ou sobrando nada ao final da divisão. Não há ladrões ou mendigos porque todos podem subsistir e não existe o desejo de enriquecer, porque tal fetichismo não é estimulado. A felicidade coletiva é parte da realização da felicidade individual, uma não se opõe à outra. O prazer, tanto mental como corporal, é o fim último da existência. Quanto às relações exteriores, é possível viajar com autorização e há uma moeda própria somente para interações comerciais externas. Os utopianos são contrários a guerra, evitando sempre confrontos, porém não têm pudores de colonizar outras terras se a expansão for necessária. Há escravização de povos colonizados e de habitantes que praticaram crimes. O serviço pesado da cidade fica relegado a eles. A organização social e espacial está representada nas próximas páginas com uma certa liberdade interpretativa a partir do texto. Um ponto de atenção é o formato de diálogo em que o livro todo é escrito. O diálogo como forma de discussão filosófica remonta a produção da Antiga Grécia, e o movimento de retomada clássica é característica determinante da linguagem renascentista. Entretanto, diferente de Platão que retrata discussões através de personagens terceiros, geralmente tendo Sócrates como protagonista, More se insere em sua narrativa e coloca um personagem fictício que representa o seu oposto.
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A cisão do espírito do autor é revelada tanto nas discussões do primeiro livro, em que Hitlodeu e More nunca chegam a um consenso, como na personalidade de ambos enquanto personagens. Hitlodeu é cheio de vida, esperançoso, crítico e arguto, enquanto More se revela um homem prático, desconfiado e realista.11 A descrição da ilha feita por Hitlodeu é repleta de jocosidade e ironia, levantando a dúvida do quão a sério More levava sua própria sociedade ideal. Com todos esses fatores, as intenções do autor ao escrever Utopia permanecem um enigma intrigante. Até mesmo sua posição como utópico é questionada. Jacoby aponta que há uma virada depois da escrita de Utopia na vida de More12. Ele se mostra extremamente intolerante com o protestantismo crescente na época e passa a perseguir e exterminar fiéis. Atitude muito contraditória com a exaltação feita por Hitlodeu do Estado laico de Utopia e incompatível com a liberdade e harmonia entre os diferentes presentes na ilha.
11. ADAMS; LOGAN, 1999. 12. JACOBY, 2007. 13. Ibid., p. 87. 14. Hitlodeu, palavra composta de origem grega, significa “Especialista em Disparates” (ADAMS; LOGAN, 1999, p. XIV).
“O utopismo e o antiutopismo moderno convergem em More.”13 Seu espírito cindido, revelado em sua obra e posto a prova em sua vida é demonstração de uma fratura muito mais social do que individual ou psicológica. As contraposições entre realismo e idealismo, pragmatismo e crítica, esperança e conformidade, utopismo e antiutopismo caminharam 500 anos até os dias de hoje. Será que Thomas More ao longo da vida abandonou o Rafael que existia dentro dele junto com sua crença em Utopia? Ou o livro foi concebido como uma sátira, assim como o próprio nome de seu alter ego14? Muito provavelmente não teremos essas respostas. Entretanto, entre Thomas More e Rafael Hitlodeu, fiquemos com a jocosidade dócil, esperança e entusiasmo de Rafael ao embarcar na maravilhosa ilha de Utopia.
democracia representativa
6000 famílias distribuidas por 200 unidades de quadra, cada uma com 30 casas
200 filarcas, cada um representante de 1 unidade de quadra
20 protofilarcas representantes de um conjunto de 10 unidades de quadras
1 príncipe representante da cidade
unidade de quadra
casa do filarca refeitório coletivo jardim compartilhado
unidade familiar de 3 andares para 10 à 16 pessoas
diagrama esquemático de amaurota
área agrícola e de preservação fosso hospital do bairro muralha unidade de quadra mercado do bairro
unidade de bairro
área agrícola e de preservação
mar
utopias fundamentais
É importante apontar que aqui se consolidam as principais formas e críticas que estarão presentes na produção utópica posterior. Vamos listar os principais pontos dignos de nota: 1. Os apontamentos de A República de Platão estão presentes em Utopia: A cidade como escala fundamental da utopia; a limitação populacional como forma de manter a ordem e o senso de comunidade; e a manutenção da escravidão como solução para a produção julgada inferior. 2. Os espaços são descritos com uma incrível minúcia de detalhes. Desde a largura da rua, o número de pavimentos das casas e os materiais das quais elas são feitas. Há um funcionalismo e racionalidade na determinação dos espaços. As refeições são feitas no refeitório coletivo que tem um papel fundamental para a comunidade de 30 famílias. Durante o jantar as pessoas conversam, desenvolvem atividades culturais e criam laços comunitários. Todos cuidam e aproveitam o jardim interno para atividades de lazer e esporte. O mercado é um grande ponto de encontro do bairro que agrega 200 famílias, lá é possível retirar tudo que é necessário para a casa e seus habitantes. 3. Utopia reúne paz, ordem, igualdade, justiça e liberdade. Sobre tais conceitos, Marilena Chauí aponta em suas notas sobre a Utopia, que More reúne a base da república e da monarquia em sua cidade ideal: Os republicanos afirmam que o valor político fundamental não se encontra nas qualidades pessoais do governante e sim na liberdade. Se esta é o valor político
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o conceito de utopia
supremo, que riscos podem ameaçá-la? Aqueles trazidos pela desigualdade. A liberdade só pode ser conservada por meio da igualdade, isto é, da justiça. Os monarquistas afirmam que o valor político fundamental é a paz. Que riscos podem ameaçá-la? A existência de facções, que acendem conflitos e rebeliões. A paz só pode ser conservada por meio da ordem, isto é, da lei.15
4. More insinua uma espécie de comunismo ao evidenciar, tanto no livro I como no livro II que a única forma viável de se ter uma sociedade pacífica, igualitária, justa e livre é através da abolição da propriedade privada. Ele constrói seu mundo a partir da propriedade coletiva, em que o trabalho não configura uma mercadoria e o dinheiro não é fetichizado. 5. Há instâncias fortes de controle social, como a limitação para se viajar sem autorização, o limite do número de membros por família (caso uma casa ultrapasse o limite, um membro é mandado para outra casa, numa visão um pouco insensível dos laços parentais); e o rigor em relação a horários e atividades. Há pouco espaço para escolhas independentes de formas de vida.
15. CHAUÍ, 2008. p. 9.
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utopias fundamentais
O que veio depois de More?
Entre A República de Platão e Utopia de Thomas More há quase 2 mil anos de hiato na produção de utopias literárias. Mumford vai argumentar que a utopia sobrevive no espírito dos homens através da consolidação da ideia cristã de Reino de Deus e vida eterna16. O cristianismo promove uma utopia de escape em que o lugar-nenhum ou bom-lugar está além da possibilidade da vida terrena. Com o renascimento e o humanismo pós-Utopia essa imagem cai por terra, a construção da ideia do homem como umbigo do mundo requer um mundo ideal a altura do homem ideal. Até o século XVIII outras utopias humanistas serão escritas no encalço de Thomas More. Teremos Cristianópolis de Johann Valentin Andreae, a Cidade do Sol de Tommaso Campanella e a Nova Atlântida de Francis Bacon. Todas vão revelar os mesmos preceitos apresentados nas utopias fundamentais, com algumas particularidades. Dessas, Francis Bacon é quem melhor indica o caminho para a utopia moderna. Sua utopia é cientificista, apresentando as inovações e a tecnologia como meios para construir a cidade perfeita e igualitária. Chauí aponta que entre o século XVI e o século XVIII a “utopia é um jogo intelectual no qual o possível é imaginário, combinando a nostalgia de um mundo perfeito perdido e a imaginação de um mundo novo instituído pela razão.”17 Com a industrialização e o nascimento da metrópole no séc. XVIII, a utopia ganha contornos de projeto político onde se busca aproximar o imaginário do real com alguma intervenção concreta a partir da abstração. há uma cientifização da utopia, que se torna um projeto de reforma global como ciência aplicada, e o futuro é arrastado
16. MUMFORD, 2007. 17. CHAUÍ, 2008, p. 11.
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para as fronteiras do presente, ou seja, a utopia surge como possibilidade objetiva, inscrita na marcha progressiva da história18
A partir daí a utopia tomará o caminho em direção ao real. Esse caminho está inscrito sobre duas formas de representação, a saber, a economia política e a arquitetura. O debate político toma corpo por meio do socialismo utópico e do socialismo científico. O socialismo utópico é desenvolvido principalmente na França e Inglaterra por Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen. Na Alemanha, Friedrich Engels e Karl Marx vão criticar os socialistas utópicos e posteriormente criar o socialismo científico. Ironicamente, apesar de rejeitar a utopia, sem dúvida Karl Marx é a principal fonte de inspiração para utópicos até os dias de hoje.19 A arquitetura e o urbanismo vão ser debatidos primeiramente pelos socialistas utópicos no século XIX e adentrar o século XX com uma intensa produção. Importante reforçar que, nesse momento, a política e a arquitetura são duas dimensões de um mesmo caminho, em que se busca intervir na realidade a partir da especulação utópica, compartilhando inclusive os mesmos pensadores.
18. Ibid., p. 11. 19. CHAUÍ, 2008.
utopias fundamentais
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o conceito de utopia
utopia no debate filosófico
A partir do século XX, mais precisamente com a publicação de The Spirit of Utopia de Ernest Bloch, em 1918, o conceito ganha protagonismo no debate filosófico. Cercado de grandes polêmicas, a ideia de utopia está no plano de fundo de disputas narrativas sobre o turbilhão de acontecimentos que tomaram o mundo do entre Guerras a ascensão do neoliberalismo. Muitos autores se confrontaram com o conceito em suas obras. Ora utilizando-o como guia para suas formulações teóricas e reconceituando a partir de seu ponto de vista e suas próprias categorias, ora se opondo a ele, associando-o com conceitos como totalitarismo, genocídio e violência. A disputa sobre o conceito tem grande produção no pós-Guerra e acaba por se tornar um consenso com a queda definitiva da perspectiva comunista da URSS e a hegemonia neoliberal. No começo do século XXI alguns autores, principalmente marxistas, vêm resgatando o conceito, fazendo uma análise crítica de sua história e propondo novas visões para a retomada do pensamento utópico.
utopia no debate filosófico
A Utopia Concreta de Herbert Marcuse
Herbert Marcuse foi um filósofo alemão filiado à Escola de Frankfurt e um dos mais importantes nomes da Teoria Crítica. Na década de 1960 e 1970 foi muito reivindicado pela contracultura, pela luta de grupos minoritários que emergiam, e pela juventude rebelde de maio de 1968. Foi um dos primeiros teóricos revolucionários europeus a dar grande importância as lutas feministas, ao movimento negro e a outras formas de sexualidade, deslocando a figura de sujeito histórico do tradicional trabalhador operário para outros grupos também oprimidos. Marcuse ajudou a construir e desenvolver o “materialismo interdisciplinar” que buscava um marxismo heterodoxo que dialogasse com outros campos do saber e autores de outras filiações teóricas, especialmente a psicanálise. A partir do difícil caminho entre Marx e Freud, o autor vai tentar ao longo de sua obra propor uma teoria revolucionária que vise a emancipação humana rumo ao conceito herdado de Ernst Bloch de “utopia concreta”. Para desenvolver sua crítica à realidade e sua alternativa radical, ele vai se concentrar em dois temas principais: a questão do desenvolvimento da tecnologia e sua inserção na vida contemporânea; e a formação da racionalidade, do inconsciente dos indivíduos e as possibilidades de emancipação subjetiva e material. O autor critica o que chama de razão instrumental e o desenvolvimento destrutivo da tecnologia, da técnica e da produção capitalista. Na contramão do discurso corrente de neutralidade da ciência, para o filósofo, seu desenvolvimento sempre atende demandas de coerção da classe dominante e cria uma postura conformista e compensatória das classes oprimidas.
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o conceito de utopia
Ao contrário de sociedades autoritárias onde a manutenção do regime funciona a partir de uma força repressiva explícita, sob a democracia, o que mantém a estrutura em funcionamento é a introjeção. Ao transformar indivíduos em meros consumidores, desejos em produtos, e trabalho em alienação, se obtém relativo controle sobre a oferta e demanda desses desejos sem dar ensejo a emancipação. Ele cita por exemplo, países de capitalismo avançado que mantém um alto padrão de vida baseado no poder de compra e uma moral sexual relativamente frouxa.1 Países subdesenvolvidos como o Brasil, têm como senso comum esse tipo ideal de sociedade, baseado em poder de compra, desenvolvimento tecnológico, pretensa liberdade e democracia consolidada. Entretanto, a noção de que é desejável e possível que esse padrão de vida se universalize, e finalmente chegue para nós, é falsa, porque se baseia numa relação histórica de exploração com a natureza e outros povos. Ter uma economia robusta e uma sociedade de consumo um pouco menos desigual como parâmetro de sociedade ideal é sem dúvida um encurtamento do horizonte de expectativas. A consciência conformista fornece não somente uma compensação imaginária, mas também uma real. Isto milita contra a ascensão de uma estrutura de caráter radical. Na tão chamada sociedade de consumo, entretanto, a satisfação contemporânea aparece como vicária e repressiva quando é contrastada com a possibilidade real da 1.
MARCUSE, 1975.
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libertação aqui e agora. Aparece como repressiva quando contraposta com o que Ernst Bloch chamou uma vez de utopia concreta.2
Além da introjeção que pode fazer o mundo um lugar cômodo dentro de uma perspectiva muito limitada de potencialidades e alternativas, para se obter esse cenário a produção capitalista possui um caráter destrutivo intrínseco que se evidencia pelo impacto no meio ambiente, o imperialismo, a desigualdade e o controle e manipulação da vida pelas novas tecnologias. Longe de ser anti-tecnológico como alguns de seus críticos apontam, Marcuse atenta para a capacidade de desenvolvimento técnico e científico que a humanidade alcançou e coloca isso como condicionante para afirmar que é possível alcançar a utopia concreta. A questão não é a existência e o aperfeiçoamento da tecnologia, mas sim como ela é empregada,desenvolvida, e a que demandas ela responde. O nível tecnológico aplicado à distribuição igualitária da produção de comida, construção de moradia, oferta de saúde, educação, cultura e lazer de forma verdadeiramente sustentável é plenamente possível, portanto, a utopia não é um sonho impossível e inalcançável, só não existe pela atual estrutura social, política e econômica. Essa destrutividade não se apresenta exclusivamente na organização dos modos de produção e reprodução da vida, ela está presente também no interior dos indivíduos. O filósofo se apoia na teoria das pulsões de Freud3 para demonstrar como o inconsciente individual constrói e é construído também pela racionalidade instrumental e como a partir da transformação dos caminhos das pulsões é possível construir alternativas à realidade.
2.
Ibid., p. 195.
3.
Ibid.
62
4.
5.
o conceito de utopia
Freud, no texto Além do Princípio do Prazer, descreve o funcionamento da economia psíquica e apresenta sua teoria pulsional, os principais conceitos utilizados aqui são: - O “princípio do prazer” que rege a variação da quantidade de excitação no indivíduo, isto é, a busca por prazer e fuga do desprazer. - “princípio de realidade” em que a fim de se autopreservar, ocorre o adiamento do prazer e a repressão dos instintos libidinais. - A pulsão de vida provém dos instintos sexuais, num sentido psicanalítico de sexualidade, onde ela não se direciona apenas a reprodução e/ou ato sexual, e sim representa a vontade de vida com um objetivo último em si mesma. - A pulsão de morte é a tendência de se voltar à um estado anterior de existência onde o Eu desconhecia o desprazer. Esse estado anterior da matéria é inorgânico, portanto, Freud afirma que o objetivo de toda vida é a morte (FREUD, 2010). MARCUSE, 1975, p. 174
Uma estrutura de caráter radical é definida, em uma base freudiana, como uma preponderância no indivíduo dos instintos de vida sobre os instintos de morte, uma preponderância da energia erótica sobre as pulsões destrutivas.4
Marcuse vai apontar o papel da pulsão de morte dos indivíduos no progresso da história. A única forma de se alcançar a utopia seria transformar o princípio de realidade repressivo em um princípio de realidade não-repressivo onde os instintos sexuais fossem liberados e os indivíduos fossem regidos pela pulsão de vida. A visão de uma cultura não-repressiva, [...] visa ao estabelecimento de uma nova relação entre os instintos e a razão. A moralidade civilizada é invertida pela harmonização da liberdade instintiva e da ordem: libertos da tirania da razão repressiva, os instintos tendem para relações existenciais livres e duradouras, isto é, geram um novo princípio de realidade.5
Mudar uma cultura repressiva requer um processo gradual de transformação de necessidades e desejos dos indivíduos. Ao invés da busca incessante pela compensação material, os indivíduos dariam voz a necessidades emancipatórias reprimidas. Essas necessidades são a base da utopia concreta:
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Em primeiro lugar, a necessidade de reduzir drasticamente o trabalho alienado socialmente necessário e substituí-lo por trabalho criativo. Em segundo lugar, a necessidade de tempo livre autônomo em vez de lazer direcionado. Em terceiro lugar, a necessidade de acabar com a interpretação de papéis. Em quarto lugar, a necessidade de receptividade, tranquilidade e alegria abundante em vez do barulho constante da produção. 6
Entre os críticos da ideia de utopia é comum o argumento da natureza humana que impossibilita o debate de mudanças radicais. Com pouca ou nenhuma base científica e conhecimentos da psicologia, afirma-se que as tentativas de se construir física, política e economicamente uma sociedade diferente esbarram na impossibilidade de mudanças da natureza humana. A inação política e imaginativa, a conformidade com as desigualdades e injustiças, a competição a qualquer custo, fetichismos consumistas, e o desejo de acumulação de capital como objetivo último de vida, apontariam para padrões intrínsecos da condição humana como o egoísmo, o comodismo e a ambição. Na verdade, são pulsões estimuladas pelo modo de vida capitalista, assim como poderíamos estimular outras pulsões. Sendo assim, as contribuições do autor são importantes por munir teoricamente a defesa da busca por um mundo radicalmente melhor, pois aponta caminhos que desmontam a ideia monolítica de natureza humana. 6.
Ibid., p. 198
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o conceito de utopia
É possível construir maneiras diferentes de viver que produzam indivíduos diferentes, e que tenham outro tipo de relação com suas pulsões e seus desejos, que busquem a emancipação do corpo e espírito na relação com outros indivíduos e com o meio em que vivem.
A Heterotopia de Michel Foucault
Michel Foucault, assim como Marcuse, foi um teórico comprometido em desmontar a imagem do protagonista da história. Sua obra revela a importância dos que foram deixados à margem, dos desviantes, dos loucos, dos encarcerados, e como esse movimento de marginalização é um mecanismo de controle e poder de uma classe dominante. No centro de sua discussão, temos sempre a matéria do espaço. Espaço-lugar desse isolamento, as cadeias, os manicômios, espaço-corpo que abriga a manifestação da subjetividade e da sexualidade. Esses espaços são entendidos como parte de redes de relações com outros espaços, o que ele chama de alocação.
7.
FOUCAULT, 2013, p.114.
o problema de saber quais relações de vizinhança, qual tipo de armazenamento, de circulação, de identificação, de classificação dos elementos humanos devem ser adotados preferencialmente, nesta ou naquela situação, para atingir este ou aquele fim. Estamos em uma época em que o espaço se apresenta a nós sob a forma de relações entre alocações. 7
utopia no debate filosófico
Nessa rede de alocações a utopia ocupa um lugar de deslocamento. Para o autor trata-se de uma alocação que está em relação de inversão e contraposição a todas as outras. Novamente a ideia da utopia como negativo da realidade. Ela existe como uma ideia que paira sobre a sociedade, que diz sempre sobre o que ela não é, e, portanto, por essência a utopia é irreal. Para trazê-la à realidade o autor concebe o conceito de heterotopia, em uma relação de espelhamento. A heterotopia é o espaço invertido inscrito no real, o que por definição é impossível para a utopia. As heterotopias são todos os outros espaços que funcionam por uma lógica própria no seu interior e em sua relação com os espaços ordinários. São lugares que reúnem uma massa de desviantes como as clínicas psiquiátricas e as prisões, espaços que afastam e sacralizam o medo contemporâneo da morte e da doença como os asilos e os cemitérios. Espaços que contém simbolicamente outros espaços e outros tempos, como museus e bibliotecas. Espaços que possuem uma função de ilusão ou de idealização, como as colônias eram para as Metrópoles. Seguindo essa lógica, talvez se conclua que uma ocupação periférica, objeto último de estudo desse trabalho, corresponderia melhor a definição Foucaultiana de heterotopia do que uma proposição de resgate do conceito de utopia. Trata-se de um espaço que reúne excluídos pelo sistema, relegados a uma organização própria de suas relações impostas pela necessidade de sobrevivência. Cumprem uma função de depósito de excedente improdutivo humano, assim como as prisões e os manicômios. Foucault, como teórico das margens, descreve ao longo de sua obra o funcionamento e o papel desses espaços nos mecanismos de
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poder e dominação. Com sua crítica aos projetos de transformação radical e as narrativas totalizantes, o autor é descrente de uma possibilidade revolucionária. Seu conceito de heterotopia é fundamental na construção desse discurso. Ao colocar enfaticamente a utopia no campo do irreal, evita adentrar no debate do conceito propondo o seu próprio, despido de proposta revolucionária. Porque sim, as heterotopias são lugares de resistência, mas desprovidos, em sua descrição pelo autor, de potência transformativa com capacidade de irradiação para outros espaços. A ideia de utopia se diferencia da heterotopia na sua relação de função com o sistema de poder e dominação e no seu movimento sobre o tempo e o espaço. Primeiro, a utopia não tem função instrumental passível de ser apropriada pelos sistemas de controle, porque ela é sempre o seu extremo oposto e sua crítica. Segundo, não há um sentido de enclausuramento, nem de estabilidade, como na heterotopia. A utopia é, ou deveria ser, a vontade de se pôr em movimento, ideias de transformação que podem tomar forma no espaço através do tempo. Por isso, ao ascender a Terra de seu posto de irrealizável, a utopia não se posta como outro espaço, passível de resistir, mas não de transformar. Seu contato com o real sempre busca sua alteração profunda.
Utopia Projetista e Utopia Iconoclasta de Russell Jacoby
Outro conjunto de reflexões importantes para o debate vem da obra do filósofo americano Russell Jacoby. O autor busca traçar a origem do antiutopismo contemporâneo e delinear caminhos
utopia no debate filosófico
para sua superação a partir de duas categorias distintas de utopia: a projetista e a iconoclasta. O antiutopismo é caracterizado por uma aversão à ideia de utopia e a alternativas radicais ao modo de vida vigente. Os problemas sociais, políticos e econômicos não podem ser contrapostos com algum projeto alternativo, mas somente podem ser melhorados e reformados dentro de uma estrutura preestabelecida. A origem dessa aversão está na associação direta do pensamento utópico com o autoritarismo e o totalitarismo que marcaram o século XX. Ao identificar o nazismo, o fascismo e o stalinismo como projetos utópicos por excelência, se interdita a possibilidade de pensar em projetos de sociedade diferente. Todo projeto que busca reestruturar a sociedade prescinde de mecanismos de controle que tolhem as liberdades individuais, buscando adequar a natureza humana a tal projeto por meio da repressão e violência. Trata-se de uma lógica capenga, mas que se torna consenso no pós-Guerra. Como se toda utopia guardasse no fundo um projeto autoritário que visasse a dominação da sociedade e não sua emancipação. O apoio científico dessa tese vem da obra de importantes pensadores liberais do século XX como Karl Popper, Hannah Arendt e Isaiah Berlin. Todos guardam em comum um encantamento e posterior decepção com o marxismo e o sonho comunista. De fato, o que se buscava entender nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial era a origem do totalitarismo que varreu a Europa e tirou milhões de vidas. Esses pensadores não diferenciavam o socialismo da URSS, do nazismo de Hitler, e ao colocar todos juntos no mesmo saco de projetos utópicos totalitários, ficava claro que a crítica se tratava mais de antimarxismo ressentido do que qualquer outra coisa.
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As principais obras que escrutinam o totalitarismo como A sociedade aberta e seus inimigos (1945), de Popper, e As origens do totalitarismo (1951), de Arendt, veem como seu cerne a ideia de um outro projeto de sociedade, a qual o marxismo se destaca como o mais articulado. Ao estabelecer pontes falsas entre nazismo, fascismo, socialismo, violência, genocídio, ideologia e utopia os autores liberais promovem uma bagunça conceitual que embaralha uma interpretação objetiva da história. Perturbação essa, muito conivente para se continuar o projeto liberal em curso e defender o status quo. Criou-se assim, paulatinamente, um embargo à ideia de projeto alternativo de sociedade que sobrevive até hoje. O discurso reformista ascendeu com as políticas do “Estado de Bem-Estar Social” e a utopia foi varrida para debaixo do tapete da história como a grande ideologia por trás dos horrores que o mundo experienciou no século XX. Parte dessas associações se dá através de um grupo majoritário de utopias as quais Jacoby chama de projetistas. Essas são as utopias que se dedicam a descrever minuciosamente como a sociedade deveria funcionar. Os projetistas utópicos apresentam o tamanho dos cômodos, o número de lugares às mesas, a hora exata em que despertar ou dormir. Entretanto, a força dos projetistas também é a sua fraqueza. Os planejamentos revelam, e por vezes celebram, um certo autoritarismo. 8
8.
JACOBY, 2007, p. 64.
As utopias fundamentais já descritas assim como as arquitetônicas, que serão ainda aprofundadas neste trabalho,
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utopia no debate filosófico
pertencem a esse grupo. A rigidez da descrição e o controle do espaço conferem às aventuras utópicas o aspecto autoritário que foi aproveitado discursivamente pelos autores citados. Entretanto Jacoby é um ferrenho defensor do utopismo, e vai identificar na tradição judaica a possibilidade do renascimento do pensamento utópico a partir do que ele chama de “utopia iconoclasta”. Como os judeus se recusam a nomear Deus e a descrevê-lo, os utopistas iconoclastas se recusam a descrever a utopia. Há uma insuficiência da linguagem, ao se buscar caracterizar anseios utópicos, a utopía deve ser descrita pelo seu negativo, ou seja, pelo que ela não é. A questão não é a ausência de esperança ou de anseios utópicos, mas a ausência de descrições detalhadas ou planos sobre o futuro entre os judeus. A tradição judaica deu origem ao que pode ser chamado de utopismo iconoclasta – um utopismo antiutópico que resiste aos projetos.9
Os iconoclastas se concentram no espírito da utopia, assim como o título da obra de seu maior representante, Ernest Bloch. A esperança e os anseios por um mundo melhor devem ser mobilizados. Há uma concentração de esforços maior em renovar as relações humanas do que propriamente a criação de um novo estado ou organização política. Jacoby reconhece no final de sua obra que “o problema hoje é como ligar o pensamento utópico com a política cotidiana”.10 Não oferece respostas, mas insiste na afirmação que antes de mais nada é preciso voltar a sonhar. “Ligar uma paixão utópica a uma política
9.
Ibid., p. 135.
10. Ibid., p. 214.
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prática é uma arte e uma necessidade. {...} Sem um impulso utópico, a política se torna pálida, mecânica e frequentemente sisifista.”11
A Utopia Espaço-Temporal ou Utopia Dialética de David Harvey
O geógrafo marxista David Harvey se insere no debate sobre o conceito buscando uma proposição teórica a partir de sua leitura das utopias que tentaram se viabilizar ao longo da história. Dentro dos autores aqui analisados, trata-se da leitura menos abstrata e conceitual, porque se apropria das utopias produzidas para identificar seus erros e formular alternativas para o renascimento do pensamento utópico. Há aqui um distanciamento histórico entre Harvey, Marcuse e Foucault. Não escreve como o primeiro, numa época de efervescência do sonho utópico (década de 1960), e vê, já de longe, as consequências trágicas do neoliberalismo e a falta de potência que uma narrativa como as heterotopias, e sua aposta em apenas enxergar a resistência pelas margens, possuem para dar conta do projeto antiutópico. Quanto a Jacoby, possui um distanciamento de caráter mais disciplinar, fazem análises de certa forma congruentes sobre os fracassos utópicos, apesar das conclusões propositivas a partir desses fracassos tomarem rumos diferentes, um discute o conceito de um ponto de vista filosófico e até teológico, o outro de um ponto de vista geopolítico.
11. Ibid., p. 217.
Harvey vai utilizar duas categorias para descrever as utopias concebidas até hoje: as utopias espaciais e as utopias de processos. As utopias espaciais, as quais vamos nos deter mais minuciosamente na parte II desse trabalho, podem ser relacionada com o conceito de Jacoby de utopia projetista. São as descrições literárias que fortalecem
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utopia no debate filosófico
a importância da espacialidade para a construção de uma sociedade ideal, como fazem Thomas More e Francis Bacon, por exemplo. E as utopias concebidas por arquitetos e urbanistas como Le Corbusier, Frank Lloyd Wright e Ebenezer Howard. Para o autor a descrição minuciosa do espaço promove uma concepção estática do tempo: “A forma espacial controla a temporalidade, uma geografia imaginada controla a possibilidade de mudança social e da história”.12 A dialética do processo social é excluída em prol de um arranjo espacial fechado e imutável. Não à toa, projetos utópicos são constantemente acusados de autoritários. Quando o espaço controla o tempo, o curso da história e a possibilidade da ação humana são aniquilados. Mas como não é possível interromper o curso da história, as utopias espaciais acabam por fracassar quando postas na realidade. As utopias da forma espacial pretendem tipicamente estabilizar e controlar os processos que têm de ser mobilizados para virem a se concretizar. Logo, no próprio ato de realização dessas utopias, o processo social toma as rédeas da forma espacial com que se pretende controlá-lo13
Em contraposição temos as utopias do processo social que desconsideram a materialização espacial de seus projetos. Apesar de pouco associado com a palavra utopia, por justamente não se tratar da projeção de um lugar (topos), Marx e Hegel, assim como Adam Smith, constroem uma utopia do processo social. Porém, todas apresentam o mesmo problema: “as utopias do processo social têm o
12. HARVEY, 2014, p. 211. 13. Ibid., p. 228.
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hábito de se perder no romantismo dos projetos interminavelmente abertos que nunca têm de chegar a um ponto conclusivo.”14 Tanto o comunismo de Marx, quanto o capitalismo de livremercado de Adam Smith, configuram para Harvey um projeto utópico. São ideias de condução do processo social, que não consideram as questões de implementação espacial. Descrevem como deveria funcionar a economia, a política e as relações sociais, mas não detalham como isso se desenrola na materialidade do mundo. O autor vai dar especial atenção ao utopismo de livre-mercado ao destacar a inevitável destruição do espaço para a perpetuação da acumulação do capital, algo inviável a longo prazo, como podemos ver a partir das questões climáticas e do desenvolvimento geográfico desigual dos países e das cidades, onde se materializam favelas no sul global e subúrbios de classe média nos Estados Unidos, ambos espaços produzidos pelo mesmo projeto. Assim, “as materializações das utopias espaciais se veem às voltas com as particularidades dos processos temporais mobilizados para produzi-las, o utopismo do processo tem de enfrentar as molduras espaciais e as particularidades da construção de lugares necessárias à sua materialização”.15 Parece claro que o caminho se faz através de uma conciliação, a que Harvey chama de “Utopia Espaço-Temporal”. Trata-se da possibilidade de uma relação dialética entre os processos e suas materializações. O autor faz algumas considerações sobre a viabilidade de sua formulação teórica16: 14. Ibid., p. 229. 15. Ibid., p. 235. 16. Ibid.
1. Nenhum espaço seria projetado sem lastro de relações sociais e modos de vida preexistentes.
utopia no debate filosófico
2.
A produção do espaço tem de permanecer uma possibilidade interminavelmente aberta.
3. Não se pode fugir da questão do fechamento de um projeto espacial e institucional, mesmo que momentâneo. Os utopista do processo se recusam a esse movimento evitando a associação com algum tipo de autoritarismo. 4. Há que se considerar o espaço já produzido pelo capitalismo num processo de transformação. David Harvey se mostra um defensor do conceito de utopia, tentando ao longo de sua obra Espaços de Esperança, catalogar os problemas que impedem a formulação mais entusiasmada de uma alternativa anticapitalista e radical. Talvez mesmo sem grande repercussão como outras de suas obras e concepções teóricas, o enfrentamento das dicotomias temporalidade/espacialidade e localidade/universalidade, contidas na obra, sejam das contribuições mais importantes para reviver o debate sobre a utopia e a busca de alternativas de realidades emancipatórias.
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considerações sobre o conceito de utopia
Longe de buscar uma definição fechada do conceito, é possível a partir do levantamento apresentado fazer algumas considerações que serão importantes na proposição da prática projetual. A utopia sempre parte de uma crítica à realidade. Não é um desejo, um projeto, ou um sonho desvinculado do real. A utopia se estrutura pela oposição às grandes questões sociais de uma época, sendo sempre o seu negativo. A negatividade contida no centro do conceito é tão fundamental que o filósofo Russell Jacoby, inclusive, propõe que seu papel de transformação da sociedade para por aí. Podemos considerá-lo um essencialista, e aí dirijo minha crítica a sua utopia iconoclasta. Não é suficiente falar da utopia a partir do que ela não é. Ela promove a desigualdade? Não. Coloca o lucro acima da vida? Não. Oprime a população das piores formas materiais e psíquicas? Não. Mas a questão que fica sempre é: Como? No entanto, a essência é um consenso. O que a utopia não é, suas diferenças para com a realidade necessitam sempre ser o ponto de partida.
considerações sobre o conceito de utopia
Jacob de antemão renega todos os projetos. Já Harvey os divide a partir de sua relação com o espaço e o tempo. Ambos os autores, contemporâneos, estão em busca da crítica da tradição do pensamento utópico. A crítica parte sempre da tentativa de afastar o fantasma do autoritarismo, que assombra qualquer um que queira discutir o conceito. Marcuse escreve no mesmo momento que essa relação está sendo construída, porém, aponta o autoritarismo e o regime de controle no capitalismo, e a utopia concreta como seu oposto, a emancipação. Não é possível discutir utopia sem responder a relação dela com o autoritarismo. Por mais que a lógica seja de fato muito mal construída é uma discussão que precisa ser feita a partir da crítica das características que deram ensejo a essa relação, como faz Harvey. Não é possível falar de utopia sem projeto, sem modelo. Do contrário, o espírito não pode se materializar. Ao renegar todas as possibilidades de projetos, a vontade e o sonho ficam soltos e se desmancham no ar, da mesma forma que colocar o conceito como irreal de saída pouco contribui para o debate. Harvey aponta para a dualidade utopia espacial/utopia de processo, categorias de fato muito úteis para formulações de alternativas, pois sua síntese é necessária. Há de se considerar uma utopia que seja materializável, e nisso arquitetos têm total responsabilidade de envolvimento. Esse espaço tem que ser maleável ao tempo, aos processos e, principalmente, às relações humanas. Mas não devemos desconsiderar o que foi pensado nesses projetos. Há ideias belíssimas em A República de Platão, na Utopia de Thomas More, e em todas as utopias arquitetônicas que seremos apresentados. A pergunta a ser respondida depois do como é: Quem produziu essas utopias? É mais do que um problema da forma-projeto.
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Considerar o ato de projetar um fracasso nos leva a negar o projeto. A questão na verdade é a dialética entre processo e projeto. É uma diferença entre quem pensou a utopia e para quem ela se destinava. Se a crítica a uma realidade vem de um certo lugar e um certo corpo, a realidade na qual essa utopia será construída pelo seu negativo diz respeito somente a experiência daquele corpo com o real. A partir daí as teorias feministas nos ajudam muito a desvelar o porquê muitas dessas utopias tinham um contato fraco com o real. Elas abarcavam uma experiência, claro, do homem branco, cis, heterossexual e europeu. A utopia proposta será uma utopia para esse homem. Um projeto que se proponha a transformação da realidade não pode partir da experiência de um só corpo, portanto a crítica talvez sempre tenha sido incompleta. A verdadeira dialética processo/projeto não se dá apenas nas considerações de Harvey sobre o tempo e o espaço. Fato é, processo e projeto talvez tenham que ser a mesma coisa e não pode haver diferença entre quem projeta a utopia e para quem ela se destina. E aqui entra uma questão chave para todas as utopias. A cidade é o espaço da utopia porque diz respeito a um agrupamento humano. Todas as utopias refletem sobre mudanças acerca do espaço e das relações de um determinado agrupamento humano e reforçam o sentido da palavra comunidade, seja buscando seu resgate, seja buscando seu fortalecimento. O tema da comunidade perpassa todas as utopias. Busca-se sempre criar vínculos mais ricos e relações mais solidárias, porque a relação com o outro é a essência da experiência humana. Mas aí que a questão “de quem” revela o problema. O coletivo não pode ser apenas um projeto pensado por alguém “de fora”. O projeto é um processo e o processo é coletivo.
considerações sobre o conceito de utopia
Nesse processo há ainda que se considerar as colocações de Marcuse sobre as transformações da formação do inconsciente dos indivíduos. A relação espaço/indivíduo atravessa o tempo sempre juntos, se transformando continuamente. O objetivo talvez não seja de fato o espaço mais utópico como quiseram os arquitetos modernos, mas o que quer que possa sair de uma sociedade formada por indivíduos em constante emancipação. O processo e o espaço servem a esse propósito, a emancipação humana. A emancipação humana só é possível num processo coletivo, construindo o projeto dessa própria emancipação. A utopia não possui começo, meio e fim. Ela é cíclica. Por último, há uma palavra que se faz presente pela falta em todo o debate acerca do tema. A luta. A luta é o processo, é o projeto e é a emancipação. Há de se sonhar o mundo que queremos, há de esperançar, mas acima de tudo há de se lutar. Existe sempre a questão da transição do mundo como é hoje e do mundo como virá a ser. O mundo hoje é passível de crítica, o mundo que virá a ser é uma utopia, o que temos entre eles é processo, é projeto, é luta.
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parte 2
utopia, arquitetura e urbanismo
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utopias no século XIX
As utopias costumam emergir em tempos de aguda crise social, catástrofes e grandes transformações no mundo. Platão escreveu A República às vias de ver suas cidades-modelo, Atenas e Esparta, entrarem em guerra. O mundo que conhecia estava em ruínas, e de fato a Guerra do Peloponeso ajudou a por fim na grandiosa Grécia em que o filósofo viveu. Thomas More, e outros autores do Renascimento, estavam encantados com os relatos de um Novo Mundo. Não obstante, Utopia é a ilha descoberta por Hitlodeu durante uma missão exploratória com Américo Vespúcio. As navegações aguçaram a imaginação e fizeram homens brancos especularem o que poderia existir nessas novas terras e o que de novo poderia ser criado nelas. Logo, é durante, e depois da Revolução Industrial, uma época de grandes transformações no mundo onde podemos identificar a geração mais profícua de utopias. As produções utópicas do século XIX e XX são uma crítica a essa nova metrópole gestada a partir
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de profundas mudanças nos meios de produção que impactaram o modo de vida no ocidente e a escala dos agrupamentos urbanos a partir do século XIX. Há um crescimento demográfico expressivo nas urbes que logo se impõe fisicamente às velhas cidades medievais e barrocas. O que é produzido passa da escala artesanal para linhas de produção que garantem cada vez mais volume, eficiência e lucro. A nova produção e o crescente número de habitantes precisam de meios de transportes que deem conta da demanda de fluxos constantes. A grande massa de população trabalhadora carece de habitação, comércio e serviços. Ao longo do século todas as esferas da vida pública e privada foram impactadas. Tudo parece crescer, se intensificar e ganhar velocidade. As alterações no processo de produção de mercadorias e do modo de reprodução da vida acarretam uma urbanização descontrolada. Tamanho crescimento desenfreado, absorção de grande volume de mão de obra operária e falta de planejamento, desencadearam uma situação urbana calamitosa e nunca antes vista. A massa de novos trabalhadores urbanos vindos do campo passa a se aglomerar em cortiços, em uma situação de extrema pobreza e vulnerabilidade. Amplamente documentada, como na obra A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels, publicada em 1845, as circunstâncias dos pobres urbanos demandavam uma solução urgente. A ideia de que as cidades encortiçadas degradavam a moral do indivíduo, e o medo da ameaça constante de uma revolta popular, foram difundidos entre a burguesia, da qual não se exclui o Estado e a medicina, em uma época que a eugenia era considerada científica.
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Peter Hall destaca como a urbanização pôs em vista a pobreza que já era constituinte na formação social: O problema era a própria cidade-gigante. A percepção dele era o início de múltiplos males sociais, possível declínio biológico e insurreição política em potencial. [...] Mas a realidade subjacente era suficientemente horripilante e derivava da pobreza. [...] Essa pobreza fora endêmica desde os primórdios da sociedade, mas, no campo, pudera permanecer mais ou menos oculta; uma vez concentrada na cidade, revelou-se por inteiro. 1
Diante do caos social e da velha estrutura da cidade medieval, era preciso impor alguma ordem ao crescimento urbano. A burguesia procura fazer a cidade mais eficiente para a produção, daí a grande importância para a racionalização das vias de comunicação como fez Haussmann em Paris.
1.
HALL,20016, p. 70.
2.
CHOAY, 1979, p. 04.
Uma nova ordem é criada, segundo o processo tradicional da adaptação da cidade à sociedade que habita nela. Nesse sentido, Haussmann, no desejo de adaptar Paris às exigências econômicas e sociais do Segundo Império, faz uma obra realista. E o trabalho que realiza, se prejudica a classe operária, choca os estetas passadistas, incomoda os pequenos burgueses expropriados, contraria hábitos, é, em compensação, a solução imediatamente favorável aos capitães de indústria e aos financistas que constituem então um dos elementos mais ativos da sociedade.2
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Entretanto, a resposta de ordenamento que visava o benefício da burguesia, promovendo a eficiência das conexões e a higienização dos espaços públicos não era adequada para dar conta do problema das cidades. Com isso, crescia o antagonismo de classes e a crítica ao desenvolvimento urbano da cidade capitalista. Nesse contexto, as primeiras utopias nasceram das reflexões de homens socialistas3, que enxergaram o antagonismo de classe e vão pensar em caminhos para dar ordem ao tumulto da sociedade industrial. Sem meios de materializar as reflexões, as utopias do século XIX se desenrolaram ainda no espectro imaginativo, mas buscando de toda forma uma viabilidade de realização. Pretendia-se tirar da cabeça a solução dos problemas sociais, latentes ainda nas condições econômicas pouco desenvolvidas da época. A sociedade não encerrava senão males, que a razão pensante era chamada a remediar. Tratava-se, por isso, de descobrir um sistema novo e mais perfeito de ordem social, para implantá-lo na sociedade vindo de fora, por meio da propaganda e, sendo possível, com o exemplo, mediante experiências que servissem de modelo. Esses novos sistemas sociais nasciam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos fossem, mais tinham que degenerar em puras fantasias.4
3.
O socialismo aqui indicado é o descrito por Engels como socialismo-utópico que difere de seu socialismo científico. Ver: ENGELS, 2001.
4.
ENGELS, 2001, p. 04-05.
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As utopias oitocentistas usam a forma de modelo replicável para aproximar as ideias às soluções implantáveis. A utopia se coloca como possibilidade de futuro a ser discutida e formulada no presente através da aplicação do conhecimento científico e social na elaboração de tal modelo. Como aponta Chauí Agora, a utopia é deduzida de teorias sociais e científicas, sua chegada é tida como inevitável porque a marcha da história e o conhecimento de suas leis universais garantem que ela se realizará. Deixa de ser obra literária para tornar-se prática organizada, passando a ser encarada pelos poderes vigentes como perigo real e a ser censurada como loucura.5
As teorias científicas e sociais, bem como as máquinas e as novas tecnologias vão embasar as soluções utópicas. Ocorre uma mudança de vocação da crítica pura e negativa que impulsiona uma abstração construída no imaginário e desprovida de lugar, como nas utopias fundamentais, para uma vocação instrumental da imaginação rumo ao real e ao progresso para uma sociedade mais ordenada, justa e ideal. Até o século XVIII existia alguma uniformidade nos preceitos das utopias. Todas promoviam algum tipo de abolição da propriedade privada, uma coletivização nas relações de produção e reprodução da vida, trabalho não alienado, tempo de lazer e ócio para cultivar os prazeres da mente e do corpo, e uma abstração do lugar. 5.
CHAUÍ, 2008, p. 11
A partir do século XIX essa uniformidade se desfaz. A introdução da tecnologia, a escala das aglomerações urbanas, as
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utopias no século XIX
novas relações de produção e novas perspectivas sobre o sujeito complexificam o debate. Daí surgem diferentes perspectivas na produção das utopias. Autores adotam preceitos diversos a partir da posição em relação a essas questões. Os principais utópicos do século XIX podem ser divididos a partir de como fazem a crítica à cidade industrial para seguir um certo conjunto de preceitos. O primeiro grupo é formado principalmente por socialistas utópicos como Robert Owen, Charles Fourier, Etienne Cabet e Pierre-Joseph Proudhon. São engajados na ideia de novo mundo, amantes das máquinas e esperançosos com o futuro das metrópoles. Teceriam assim uma crítica aos sintomas da grande cidade, e não a sua existência. Os problemas da pobreza, dos cortiços, da precarização da vida em seus mais diversos aspectos poderiam ser resolvidos com organização e racionalidade. O segundo grupo teceria a crítica a partir da rejeição radical a essa metrópole superpopulosa e fabril. Enxergaria uma saída na retomada de valores comunitários e tradicionais; veria a cultura e a natureza como elementos centrais de uma construção utópica. Os principais representantes desse pensamento são John Ruskin e William Morris. Françoise Choay em sua obra O Urbanismo distinguirá esses grupos, a que chama de pré-urbanistas, pela direção do tempo à que suas obras se dirigem. O primeiro grupo, os progressistas, tomam o futuro como tempo ideal. Ele resguarda inúmeras possibilidades e o caminho a ser seguido é o progresso. Em contraponto, os culturalistas enxergam no passado as virtudes culturais e comunitárias que deveriam ser retomadas para recompor a sociedade a partir de suas tradições perdidas. 6
6.
Choay explica com mais profundidade suas categorias no capítulo Urbanismo em Questão de sua obra O Urbanismo. Ver: CHOAY, 1979, p. 01-60.
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Sendo assim, vamos tomar emprestado as categorias de Choay para exemplificar algumas das utopias oitocentistas. Há ainda na divisão da autora a categoria de crítica sem modelo, a qual atribui a Marx e Engels e seu socialismo científico. Os autores se recusam a propor modelos de futuro porque acreditam ser inútil e impossível ter qualquer vislumbre da sociedade ideal sem antes abolir a divisão de classes e tomar os meios de produção, portanto deixam o futuro em aberto, a ser desenhado durante o processo revolucionário.
Utopia Progressista
Três preceitos principais permeiam as utopias progressistas. São eles a higiene, a funcionalidade e a reprodutibilidade de modelos-tipo. Os espaços são em geral abertos, pouco adensados e com muitas áreas verdes, em contraste com a insalubridade e a fumaça das metrópoles. Os jardins são extremamente valorizados, sendo considerados espaços de lazer e educação, permitindo uma possibilidade maior de contato próximo com a natureza. Há a tentativa de imprimir lógica ao funcionamento da cidade através da setorização dos espaços. Distingue-se e categoriza-se rigorosamente as funções urbanas. Há o lugar de lazer, de trabalho, de habitação, de indústria. Cada setor perfeitamente separado e conectado aos outros por espaços livres, generosos e higiênicos, em contraposição às vielas medievais nas cidades existentes.
7.
CHOAY, 1979, p. 08.
Por fim, há uma nova concepção do indivíduo como um tipo7. A perspectiva reducionista de sujeito a um modelo, a saber, o homem branco, permite a construção de padrões definidos e fechados que correspondem à demanda desse homem modelo. Aqui se exclui, de certa forma, a variedade da experiência humana para se especular
utopias no século XIX
qual é a cidade ideal que corresponde ao homem ideal. A habitação, o edifício e a estrutura urbana ideal é um modelo rígido e definitivo que atende o sujeito universal. Podemos citar dois exemplos de utopias desse tipo, a de Robert Owen e Charles Fourier, ambos importantes nomes do socialismo utópico. Robert Owen teve a experiência de compor a classe operária, trabalhava em uma fábrica de algodão quando jovem, e após um casamento proveitoso se tornou patrão de uma indústria. Aplicou em sua fábrica em New Lanark, Escócia, seus ideais, e fez uma fábricamodelo, com organização racionalizada e eficiente no modo de produção, promovendo melhores condições de trabalho. Construiu vilas operárias, creche e a primeira escola primária da Inglaterra. Dessa experiência concreta surge seu pensamento utópico. Em diversos escritos, Owen propõe uma cidade pequena e auto suficiente de não mais que 2000 habitantes. Os indivíduos trabalhariam tanto no campo, quanto na indústria, acabando com a divisão campo-cidade. Divide o território, de 800 a 1500 acres, em bairros compostos por prédios de habitação familiar, um refeitório coletivo, biblioteca, escola, edifício para culto e espaço de lazer. As atividades industriais ficariam isoladas dos prédios e separadas por áreas verdes. Owen dá grande importância para educação, acredita que a natureza humana é maleável e naturalmente boa e em apropriadas condições de vida pode se desenvolver adequadamente. Ele descreve minuciosamente os edifícios, que possuem uma organização racional e funcional, até o sistema de refrigeração e aquecimento são detalhados em seus textos. Owen passou a vida tentando realizar sua cidade-modelo, fez modelos econômicos para provar a viabilidade de sua implantação e comprou um terreno nos EUA para fundar a comunidade New
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Harmony. Ela não corresponde à arquitetura retangular dos escritos do autor e fracassa como comunidade auto suficiente, tornando-se um centro comercial na região.
Imagem 1 - New Harmony de Robert Owen.
Charles Fourier possui a obra mais descritiva dentre seus contemporâneos. Não somente detalha sua falange, descita a seguir, como possui uma crítica filosófica à sociedade bastante sistemática. Em primeiro lugar ele faz considerações sobre a natureza humana que devem ser contempladas na sua utopia. O homem é regido por paixões classificadas em doze tipos, que devem conduzir suas ações, essas não devem ser condicionadas à economia e à busca pelo dinheiro. Em segundo lugar, ele classifica (sua obsessão é a classificação) a evolução humana em períodos: estaríamos entre a barbárie (quarto período) e a civilização (quinto período). O próximo estágio seria o garantismo, onde a propriedade é coletivizada, promovendo um aperfeiçoamento social.
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Ele vai descrever a cidade do sexto período (garantismo) com uma estrutura concêntrica, setorizando as funções da cidade em três raios: a cidade central de equipamentos, a cidade industrial, e a cidade suburbana de moradias, todas divididas por grandes áreas verdes e plantações. Mas é na proposta da falange, seus edifícios de habitação coletiva, que está a maior contribuição para o pensamento arquitetônico. As falanges são edifícios para 1200 pessoas onde a propriedade e a vida é coletivizada. O centro da edificação deve ser destinado aos usos coletivos, como refeitório, biblioteca, templo, salas de convívio e jardins. Uma ala atrás deve servir às oficinas, já os apartamentos se distribuem ao longo de ruas-galerias no edifício. Uma das propostas mais radicais é desestruturar o núcleo familiar e coletivizar o cuidado das crianças e idosos através da ocupação individual das unidades. A vida será desenvolvida como em um grande hotel, com os velhos alojados no térreo, as crianças no mezanino e os adultos nos andares superiores.8 A ideia é que a vida se dê sobretudo nos espaços coletivos e não nas unidades.
Imagem 2 - Falanstério de Charles Fourier. 8.
BENEVOLO, 2001.
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Utopia Culturalista
Os utopistas culturalistas tinham como principais preceitos a nostalgia, o tradicionalismo e um apego à diversidade estética. Seu modelo não parte de uma concepção de indivíduo tipo e sim uma valorização da ideia de comunidade, que permite a singularidade de seus habitantes. A cidade industrial desintegra o senso comunitário que a vida no campo e as cidades medievais antes permitiam. Aqui o espaço não é concebido para admitir eficiência, produção e progresso. O tema que interessa aos culturalistas é a cultura. Daí uma admiração aos modos de produção artesanais, as pequenas vielas medievais e uma integração orgânica com a natureza. São modelos, em geral, mais humanistas e menos estéreis, mas ainda carregam concepções racionais de espaço, porém de forma mais orgânica e menos detalhada, buscando fazer aflorar a individualidade e a manutenção de uma vida cultural e espiritual mais diversa. Seus dois principais representantes são John Ruskin e William Morris, um conservador e um socialista. John Ruskin, primeiramente, é crítico de arte, e suas análises da cidade industrial partem principalmente de um olhar estético. Critica a repetição e a monotonia das edificações, a busca por uma racionalidade simétrica e a degeneração da arquitetura, e vê na natureza a inspiração para a construção de espaços mais orgânicos e únicos. É saudoso das construções artesanais e reprova a efemeridade e falta de personalidade nas habitações contemporâneas. Ele não propõe um modelo, faz na verdade um conjunto de críticas e elenca valores que considera importantes para uma cidade mais bela e culturalmente rica. Leonardo Benevolo explicita a gênese do pensamento de Ruskin:
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utopias no século XIX
Ruskin individua as causas desses males [degradação cultural] não em alguns defeitos contingentes do sistema industrial, mas no próprio sistema, e torna-se adversário de todas as novas formas de vida introduzidas pela Revolução Industrial. Por um erro comum à cultura da época, ele transforma um juízo histórico em um juízo universal e passa a combater não as condições concretas e circunstanciadas da indústria de seu tempo, mas o conceito abstrato de indústria.9
William Morris foi muito inspirado por Ruskin. Assim como ele, idealiza os processos artesanais e medievais, e destila desprezo pelas máquinas e novos modos de produção, por degradarem e alienarem a vida humana. Morris imagina pequenas cidades auto suficientes em que o trabalho é como brincar, a vida é simplificada, o objetivo da labuta é principalmente a satisfação e o prazer, e para isso, as máquinas são em geral abandonadas, dando espaço para a volta dos trabalhos manuais. As pessoas trocariam seus produtos e ao invés de canalizarem suas forças para a produção, investiriam no prazer e na construção de relações entre a comunidade. Novamente, temos a figura do refeitório coletivo e salas de convívio comunitário. As construções são de materiais simples e a plena integração com a natureza. A cultura harmoniosa daria conta dos conflitos humanos e políticos sendo mais forte do que a necessidade lei. 9.
Ibid., p. 194.
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utopias no século XX
As discrepâncias entre progressistas e culturalistas são muitas. Divergem em relação à crítica da cidade industrial: os primeiros problematizam os efeitos colaterais, os últimos, sua própria existência. O tempo a ser idealizado e tomado como modelo: progressistas se voltam para o futuro, culturalistas retomam o passado. Os preceitos a serem seguidos: racionalidade, funcionalidade e reprodutibilidade em oposição à nostalgia, tradicionalismo e diversidade. No entanto, todos tentam responder a um mesmo sentimento crescente, uma “sensação avassaladora de fragmentação, efemeridade e mudança caótica.”1. Diante desse sentimento, a resposta que vai prevalecer é a instrumentalização da razão para dar conta das questões humanas. Desde o século XVIII, com as ideias iluministas, busca-se explicar objetivamente e cientificamente o mundo físico e as relações políticas, sociais e econômicas. Há uma supervalorização da razão e uma busca de leis e teorias universais. 1.
HARVEY, 2006, p. 21.
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utopias no século XX
A instrumentalização da razão e as narrativas totalizantes compõem o ethos moderno frente a velocidade das mudanças do mundo pós-Revolução Industrial. Marx, por exemplo, vai se dedicar à crítica do sistema capitalista a partir de leis universais que regem o ciclo de produção. Partindo de experiências clínicas, Freud vai propor um processo que se aplica a todos os seres humanos socializados, a saber, o complexo de Édipo, e categorias clínicas estabelecidas (psicose, neurose e perversão) que dão certa racionalidade à complexidade da subjetividade. Assim se estabelece a era das metanarrativas na ciência e na cultura. Daí a importância de conceitos como igualdade, liberdade e emancipação universal, mas também a ascensão de doutrinas totalitárias, que não aceitam a diversidade da experiência humana. Há uma vontade destrutiva na modernidade: “A transitoriedade das coisas dificulta a preservação de todo um sentido de continuidade histórica”2. É preciso reimaginar e recriar o mundo a partir de preceitos universais que garantam liberdade e igualdade para todos. Uma nova realidade deve emergir dos escombros de um mundo arcaico. Esse sentimento de potência, de urgência para agir sobre a realidade em ebulição vai ser a essência do que move cientistas, economistas, políticos das mais variadas filiações ideológicas, e claro vai ser determinante para a produção de uma nova arquitetura. A ideia de utopia vai permear as discussões em diversos campos, e vai ser um fio condutor para o campo disciplinar da arquitetura e, principalmente, para a disciplina incipiente do urbanismo. De fato, o que distingue as utopias do século XIX para as do século XX de acordo com Choay, é a criação do urbanismo como campo do saber independente.3 Se antes as ideias utópicas que discutiam o espaço eram majoritariamente pensadas por economistas, políticos, donos
2.
Ibid., p. 22.
3.
CHOAY, 1979.
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de fábricas e críticos de arte, agora elas serão pensadas e desenhadas invariavelmente por arquitetos. As obras de Le Corbusier, Tony Garnier, Frank Lloyd Wright, entre outros, vão ser espelhos da essência de sua época. A busca teórica será pelos modelos universais e definitivos, desde a escala da unidade habitacional até a metrópole. Para isso há necessidade de redução da experiência humana a homem-tipo, e um aprofundamento das estratégias de racionalização e reprodutibilidade, já vistas nos utopistas progressistas, permitidas pelo desenvolvimento das teorias sobre o espaço, novos materiais construtivos e alargamento da escala de produção. Esses arquitetos do século XX são herdeiros dos utopistas do século XIX. Ainda possuem diferenças fundamentais entre os que buscam progresso e os que buscam valores das culturas pré-Revolução. No entanto, até Ebenezer Howard, que poderíamos descrever como herdeiro culturalista, adota um sistema de pensamento racionalizado, reprodutível e uma resposta universal ao problema das cidades em seu célebre desenho da cidade-jardim. Agora que as utopias estão na cabeça e nas mãos de arquitetos, ocorre um fenômeno de especialização na produção dessas ideias. Se antes as utopias discutiam mais profundamente um novo modo de organização social e cultura que seriam estimulados a partir de uma nova estrutura espacial, com os arquitetos, a estética, a produção e a construção material dos espaços ganham igual importância.
4.
HARVEY, 2006.
Preocupados com a definição de um modelo universal e eterno, anula-se de certa forma a ação do tempo e do processo histórico.4 A casa, a cidade e o homem serão tomados como máquinas a serem otimizados por meio de soluções científicas e racionais, que só seriam possíveis com o avanço tecnológico. De tal modo, a concepção de
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máquina que produz a máquina, vai ser importante para a elaboração dessas utopias. O positivismo lógico, no qual a arquitetura moderna se alia, tem uma forte motivação política e ética. A busca por um modelo que resolva os conflitos urbanos, a desigualdade e pobreza em prol da emancipação é a ética que conduz os planos para as cidades que veremos adiante. O arquiteto é tomado pela responsabilidade de, através do seu meio de representação, o desenho, se colocar como agente ativo na transformação da realidade. Podemos questionar, e o faremos, acerca das formas e dos discursos que essas propostas têm como ponto de partida, entretanto, a crítica à realidade, ao modelo e à vontade de transformação, configuram um pensamento utópico presente na elaboração desses modelos.
A Cidade Industrial de Tony Garnier
O arquiteto francês Tony Garnier foi um dos primeiros a apresentar uma proposta de cidade seguindo os preceitos modernos. Ele concebe a Cidade Industrial, projeto revolucionário que foi concluído em 1901, tendo seus desenhos apresentados em 1904, em uma exposição individual, e publicados em 1917, com uma parte teórica adicional. A Cidade Industrial é um plano urbano de uma cidade para 35 mil pessoas, pensado para ser implantado no sudeste da França, em um terreno ideal que contenha um rio cortando uma planície rodeada por montanhas. A cidade seria setorizada e teria duas fábricas principais localizadas na planície, um pouco afastada do setor residencial e ligada à cidade por linhas férreas. As habitações iriam se dispor em lotes 15m X 15m, onde Garnier descreve com minúcia as regras de
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suas construções. É proibido a construção de pátios internos, todas as janelas devem obrigatoriamente receber luz e sol do exterior. A higiene é uma preocupação central para a definição da morfologia e das tipologias urbanas. As casas ficariam no fundo do lote tendo áreas verdes abertas na frente que dariam para ruas largas que se distribuiriam em um traçado ortogonal. A rua principal ligaria a estação ferroviária ao centro da aglomeração urbana, onde ficariam os edifícios públicos. Estes, corresponderiam à três grupos: Administrativos e de reuniões: onde teriam salas para assembleias entre grupos, como sindicatos e organizações, edifícios do governo e de funções burocráticas. Coleções: reuniriam o acervo cultural e científico em museus, salas de exposições, biblioteca, acervo histórico e uma estufa. Desportivo e espetáculos: edifícios de ginásios, salas de espetáculos, anfiteatros, piscinas e quadras para jogos. As escolas estariam espalhadas pelos bairros e se destinariam a meninos e meninas. Os hospitais, clínicas psiquiátricas e “setor de inválidos” ficariam perto das montanhas, afastados da cidade, mais uma vez demonstrando uma motivação higienista para exclusão de certos grupos sociais. O bairro da estação concentraria comércios, serviços e hotéis, afastados das residências. Além da categorização das atividades humanas, um preceito que permeia a obra de Garnier é a utilização de materiais industrializados e inovadores para a construção civil de sua época. O arquiteto detalha com minúcia e precisão construtiva todos os edifícios a que nos referimos. Em sua apresentação de 1904, expõe inúmeras pranchas com desenhos de plantas, fachadas e detalhamentos. As construções são todas de concreto armado, ferro e vidro.
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utopias no século XX
A inspiração classicista de ordem, pureza e simetria, e a aplicação de materiais industriais que permitem uma maior racionalização e modulação das construções, vão dar o tom estético do projeto de Garnier. Assim como a setorização, a centralidade da fábrica para a organização da vida na cidade, os espaços verdes e o senso de higienização e harmonia vão formar o conjunto de respostas de Garnier acerca do futuro da cidade industrial. Leonardo Benevolo sintetiza a obra de Garnier com as seguintes palavras: [...] a idéia de que existe uma espécie de arquitetura perene, a ser adaptada às exigências dos tempos, mas baseada em fundamentos formais imutáveis; donde as referências - tênues mas nunca esquecidas - ao classicismo; a idéia de uma harmonia preestabelecida entre uma tal herança arquitetônica e a técnica construtiva, e portanto a confiança de poder enfrentar, com estes meios, todos os problemas postos pela vida moderna e pelo progresso científico e social. Aplicando estes conceitos à urbanística, ele concebe a cidade como um grande edifício que pode ser projetado e representado como um conjunto.5
Garnier compreendia a gênese moderna em seus desenhos. Como concebe sua obra ainda na consolidação do ethos moderno na arquitetura, pode-se considerar um precursor do que viria a ser idealizado anos mais tarde com os CIAMs e a Carta de Atenas. De fato, é inspiração para importantes arquitetos como Le Corbusier
5.
BENEVOLO, 2001, p. 338.
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que tentará mais tarde propor sua própria utopia de cidade industrial. Para concluir sua obra, Garnier transparece com otimismo o quanto acredita na transformação que ela poderia proporcionar: Este é o resumo do programa de estabelecimento de uma cidade onde todos são conscientes de que o trabalho é a lei humana e de que há ideal bastante no culto da beleza e da bondade para tornar a vida esplêndida.6
Imagem 3 - Cidade Industrial de Tony Garnier.
6.
GARNIER, 1917, p. 170.
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A Cidade Jardim de Ebenezer Howard
Ebenezer Howard tem o mérito de ser o mais realista, e ao mesmo tempo, o mais sensível sonhador de nossa lista. Apesar de propor uma cidade setorizada, eficiente e racionalizada, podemos colocá-lo como herdeiro do utopismo culturalista. Sua motivação é desenvolver o espírito comunitário, encerrar a dicotomia cidadecampo e proporcionar uma integração harmônica de seres humanos com seus pares e com a natureza. Mais do que descrever o espaço, Howard se dedica intensivamente a fazer sua ideia se tornar viável econômica e politicamente. Sua proposta, explicitada na obra de 1898, Tomorrow: A Peaceful Path to Social Reform, se baseia na propriedade comunal da terra. Um terreno de aproximadamente 2400 hectares seria comprado por uma companhia limitada por meio de empréstimo para ser representante dos interesses de uma comunidade autossuficiente de 32 mil habitantes. Um valor de aluguel das parcelas de moradia e comércio seriam requisitados e esse dinheiro seria investido em melhorias públicas, na previdência e no que a comunidade achasse melhor. “Howard estava muito menos interessado em formas físicas do que em processos sociais.”7 Seus objetivos eram promover uma cidade-campo comunitária que se autogovernasse, gerenciasse seus próprios espaços, e tomassem suas próprias decisões. Para isso, Howard fez diagramas de como essas cidades seriam implantadas. Diferente de Le Corbusier e Tony Garnier, Howard encara seu desenho como um esquema, entende que deve ser adaptado às particularidades do meio físico, a fim de respeitar a natureza preexistente. A cidade-jardim deve possuir um formato concêntrico. Seis avenidas radiais partiriam do centro, que contaria 7.
HALL, 2016, p. 128.
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com um belo jardim e edifícios públicos: hospital, museu, biblioteca, sede da câmara municipal, sala de concertos e teatro. Seguindo essas avenidas de 3,6km de comprimento em direção a periferia, encontra-se o Palácio de Cristal, rodeado por grandes áreas verdes que serviriam como parques públicos para lazer e contemplação. No palácio de Cristal seria possível alugar espaços para comércio e serviços. A decisão sobre quais comércios ocupariam tais lugares seria tomada coletivamente a depender da necessidade da população em relação àquele determinado estabelecimento. Atrás da área do palácio de Cristal, encontra-se uma rua perimetral que delimita a área das casas. As casas unifamiliares se dispõem em lotes generosos que permitem o cultivo de áreas verdes. As construções são financiadas pela municipalidade e construídas pelos próprios moradores, permitindo a expressão da identidade individual. Seguindo pelas avenidas radiais encontramos a Grande Avenida que circunda toda a área. Com largura de 125m, ela possui grandes áreas verdes em que estão dispostas as escolas públicas, quadras de jogos e igrejas. Na parte mais exterior da cidade estão as grandes lojas, as fábricas, depósitos e oficinas, todos facilmente conectados com a linha férrea que faria a comunicação com outras cidades. O resto da área ficaria reservado a atividades agrícolas, pecuária e reservas ambientais. O plano de Howard não era implantar uma cidade-jardim perfeita, mas sim reorganizar a sociedade a partir desse modelo. Caso uma cidade alcançasse o limite populacional de 32 mil habitantes, procurar-se-ia fundar outra cidade nas imediações, ligadas por transportes rápidos como o trem e assim sucessivamente, sendo
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possível abrigar populações de milhares ou até milhões a partir desse modelo de auto governança. A questão da escala é crucial para o funcionamento do sistema. Não estamos falando de cidades grandes conectadas por transportes de massa. Se assim fosse, nada diferiria das contemporâneas regiões metropolitanas. A cidade-jardim é facilmente caminhável a pé. O automóvel mal é citado pelo autor. Sendo assim, para nossa referência contemporânea, a cidade-jardim teria a escala de um bairro. A alma do projeto é de fato misturar cidade e campo. Um bairro ficaria perto do outro para uma viagem de trem, mas rodeado por áreas agrícolas. Ebenezer Howard, sendo um homem de ação e não apenas de palavras, funda, em 1902, a primeira sociedade e compra um terreno em Letchworth, nos arredores de Londres. Os arquitetos Barry Parker e Raymond Unwin ficam responsáveis pelo projeto. Ao transpor a utopia para a realidade, vários fatores se modificaram e coisas invariavelmente fracassaram. Primeiro: a área agrícola foi reduzida e se transformou em apenas um cinturão verde circundante. Segundo: a propriedade da terra nunca foi gerida pela comunidade e ficou na mão de capitalistas investidores. Terceiro: a cidade não foi ocupada como o previsto, anos depois, apenas metade do número almejado de habitantes havia buscado morar na nova cidade. Quarto: não houve o princípio de autossuficiência, com a proximidade de Londres a cidade-jardim muitas vezes foi usada pelos seus habitantes como subúrbio dormitório. Benevolo conclui o seguinte sobre a empreitada das cidades-jardim: Dessa maneira, a cidade-jardim demonstra ter condições de viabilidade, diversamente das utopias precedentes,
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porém, afinal, reduz-se a uma cidade como as outras, sujeita à atração da metrópole, de tamanho não estável e com uma ordenação fundiária não dessemelhante a normal. Resta a marca agradável da concepção originária na elegância dos traçados das ruas, na uniformidade das construções, na distribuição do verde.8
Sobre o engajamento da população que deveria ser estimulada à vivência politicamente coletiva, ressalta: Estes têm consciência de que constituem uma comunidade sui generis, uma vez que, por exemplo, a assembleia dos primeiros habitantes de Letchworth decide vetar a abertura de lojas de bebidas alcoólicas e impõe outras limitações não comuns à vida pública, e privada. Todavia, com o passar do tempo e com o aumento da população, as duas comunidades terminam por assemelhar-se cada vez mais às dos subúrbios comuns de Londres, tanto que hoje são formadas principalmente por operários das indústrias que, no ínterim, se estabelecem nas proximidades.9
8.
BENEVOLO, 2001, p. 358.
9.
Ibid., p. 360.
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Imagens 4 e 5 - Cidade Jardim de Ebenezer Howard.
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A Cidade Contemporânea e a Cidade Radiosa de Le Corbusier
O arquiteto franco-suiço é sem dúvida o mais radical e influente arquiteto progressista do século XX. Se o progressismo se apoia na racionalização e setorização dos espaços para organizar a cidade em busca de igualdade e emancipação humana, nos planos de Le Corbusier, os meios se tornam o fim e a racionalidade dos modelo-tipo são levadas à última consequência, se despindo por completo de qualquer resquício de humanidade ou qualquer conflito entre o sujeito subjetivo e a máquina. Em outras palavras, ainda que propondo modelos estéreis, os progressistas do século XIX e Tony Garnier buscavam, mesmo que discursivamente, dar conta das questões humanas, da pobreza e da desigualdade da sociedade industrial. Le Corbusier reduz radicalmente a existência humana à máquina, é como se se desconectasse do problema original em que sua tradição de pensamento surge, a saber, a crítica dos males da cidade industrial, a serem resolvidos por meio de uma organização setorial, racional e reprodutível, se deixando levar pelo fetiche do instrumento (a tecnologia) para solucionar tal questão. Daí, o problema formulado em sua obra é: como reduzir todas as matérias das quais a arquitetura e o urbanismo são responsáveis por refletir a um único e perfeito modelo-tipo? Sendo assim, sua obra não é antissistema, não visa a transformação das estruturas sociais, mas sim o seu pleno funcionamento, seja ele qual for. Estando inserido num sistema capitalista fordista, ele acaba por servir a uma ideologia técnico-burocrática que resulta em uma organização da segregação humana.
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O arquiteto vai ser um autor profícuo, deixando suas ideias não somente nos desenhos que produziu, mas em sua obra escrita. Era sistemático, não somente na arquitetura, mas também na forma de registrar suas ideias. Estudar seus projetos e planos ao lado de suas publicações torna seu sistema de pensamento muito claro. No período do entre guerras, Le Corbusier, vai se dedicar a desenhar sua cidade ideal através de dois planos: a “Cidade Contemporânea”, para 3 milhões de habitantes, em 1922; e a “Cidade Radiosa”, em 1935. Subsequentemente vai propor planos não executados para algumas cidades do mundo como Argel, Buenos Aires, Barcelona, Rio de Janeiro e São Paulo, todos aplicando de forma sistemática os preceitos modernos formulados pelo autor. A “Cidade Contemporânea” é setorizada e segregada a partir da atividade que o indivíduo exercia. No centro encontravamse os arranha-céus corporativos; em uma zona circundante por áreas verdes estariam as habitações de até 6 andares para as elites, onde os prédios eram de mais qualidade espacial e construtiva; e mais afastado estariam as habitações para a classe trabalhadora. O que prevalece é a uniformidade das construções, desde a unidade habitacional até a fachada dos edifícios e o desenho das ruas. Tudo segue a mais perfeita geometria que corresponde à eficiência máxima da construção e da organização da vida em sociedade. Jamais devemos, em nossos estudos, perder de vista a perfeita célula humana, a célula que mais perfeitamente corresponde às nossas necessidades fisiológicas e sentimentais. Precisamos chegar à “casa-máquina”, que deve ser tão prática quanto emocionalmente
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satisfatória. Bem como projetada para uma sucessão de moradores. A ideia do “velho lar” desaparecerá e com ela a arquitetura local etc. pois já que o trabalho muda de lugar segundo a demanda, também os moradores terão que estar prontos para mudar, com armas e bagagens.10
A “Cidade Radiosa” segue fundamentalmente os mesmos preceitos arquitetônicos e urbanísticos da “Cidade Contemporânea”, a diferença se dá na segregação explícita das moradias por classe social. Peter Hall atribui a mudança ideológica à decepção do arquiteto com os capitalistas que o financiavam.11 Entretanto o autoritarismo tecnocrata ainda regia sua nova cidade ideal:
10. LE CORBUSIER, 1929, p. 215. apud HALL, 2016, p. 222-223. 11. HALL, 2016. 12. LE CORBUSIER, 1929, p. 296 apud HALL, 2016, p. 239. 13. LE CORBUSIER, 1925 apud CHOAY, 1979.
A cidade harmoniosa precisa primeiramente ser planejada por peritos que compreendam a ciência do urbanismo. Uma vez formulados, dentro de um ambiente de total liberdade em relação a pressões partidárias e interesses privados, tais planos devem ser implementados sem oposição.12
O terreno de ambos os planos é a planície, sem rios ou interferências da variedade da natureza. Assim ele explicita a forma da tabula-rasa, algo que ronda as utopias em geral, mas nunca antes colocada como uma condição. O rio que, porventura, existisse nas proximidades, seria nada além de uma linha férrea de transporte e comunicação com outras cidades.13
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As quadras teriam 400m por 400m para evitar cruzamentos que desacelerariam os deslocamentos de carros. As unidades habitacionais para 1600 pessoas ficariam no meio das quadras rodeadas por áreas verdes, os acessos às unidades se dariam por longos corredores. As torres centrais contariam com 60 andares, feitas de concreto armado e aço para liberar o chão o máximo possível. Os edifícios públicos, museus e comércios se localizariam também no centro. Tudo seria planejado para a máxima eficiência dos fluxos e da produção. A cidade seria uma máquina e seus habitantes componentes teriam a única função de fazê-la funcionar. Procurar a escala humana, a função humana, é definir as necessidades humanas. Elas são pouco numerosas; são bastante idênticas entre todos os homens, pois os homens foram feitos com o mesmo molde desde as épocas mais longínquas que conhecemos. O Larousse, ao fornecernos a definição de homem, dá-nos três imagens que o desmontam sob nossos olhos; a máquina toda está ali, carcaça, sistema nervoso, sistema sanguíneo; e é assim com cada um de nós, exatamente e sem exceção. Essas necessidades são típicas, quer dizer, nós todos temos as mesmas; todos nós temos necessidade de completar nossas capacidades naturais por meio de elementos de reforço. Os objetos-membros humanos são objetotipo, que respondem à necessidade-
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tipo: cadeiras para sentar, mesas para trabalhar, aparelhos para iluminar, máquinas para escrever, estantes para classificar.14
Imagem 6 - Cidade Contemporânea de Le Corbusier. Imagem 7 - Cidade Radiosa de Le Corbusier 14. Ibid., p. 185.
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Broadacre City, Frank Lloyd Wright
O arquiteto Frank Lloyd Wright é o idealizador da utopia anti-urbana americana. Difícil de se categorizar, muito pelas diferenças políticas, sociais e urbanas entre os Estados Unidos e as cidades francesas e inglesas que formaram a visão de cidade ideal dos arquitetos citados. Wright, assim como os progressistas, acredita nas transformações positivas através da utilização das máquinas, da tecnologia e do desenvolvimento de novos materiais para a construção civil. Também assim como Howard, acredita no fim da dicotomia campo-cidade e na harmonia entre a vida humana e a natureza. Entretanto, o que planeja em sua proposta Broadacre City, é completamente diferente de qualquer tradição utópica ocidental. Ele parte de uma crítica radical à existência da metrópole, mas não pela perda idílica do senso de comunidade como pregava Ruskin, ou pelas condições materiais a que estavam submetidas as classes mais subalternizadas. O que o autor rechaça é a perda da liberdade do indivíduo. Depois de ter trazido sua contribuição à humanidade, a forma de centralização que chamamos de grande cidade se tornou uma força centrípeta incontrolável, animada pelo espírito do lucro e assim submissa a poderes sempre mutáveis e sempre crescentes. O “sistema” faz com que cresça regularmente no homem o medo animal de ver-se expulso do covil do qual se acostumou a sair arrastando-se
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toda manhã. A horizontalidade natural – a direção da liberdade humana sobre a terra – desaparece ou desapareceu. O cidadão condena-se a um empilhamento artificial e aspira a uma estéril verticalidade.15
Sendo assim, vai buscar uma forma de ocupação urbana que faça aflorar ao máximo o princípio de individualidade tão presente na cultura urbana americana. Para isso o transporte rápido e individual, ou seja, o carro, é indispensável, e na verdade a cidade toda intencionalmente se organiza por ele. A proposta consiste em pulverizar a ocupação urbana ao máximo, fragmentando o território em unidades particulares conectadas por rápidas rodovias. Essas rodovias estariam abastecidas por tudo que é necessário para seus habitantes. Haveria mercados de estrada, restaurantes de estrada, lojas de estrada. As casas seriam construídas seguindo a livre vontade de seus ocupantes e não existiria uma igual a outra, entretanto teriam um cuidado estético com a paisagem e a topografia. Modelos préfabricados estariam disponíveis para que a classe trabalhadora pudesse montar as próprias casas, essas sim teriam um senso de reprodutibilidade que Wright rejeita para a classe média.
15. WRIGHT, 1958 apud CHOAY, 1979, p. 237.
Os centros comunitários, na verdade, seriam como clubes ao modo mais liberal americano. As escolas e centros estariam também em porções verdes de território isoladas das habitações. A cidade basicamente não existiria como um corpo que possui relações urbanas entre suas partes. O arquiteto sonha com a falta de urbanidade como modo de atingir um certo isolamento social a que chama de liberdade individual. Aqui a propriedade privada da terra
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e a utilização do automóvel ganham sua versão mais radical para o autor, assim, seria possível desenvolver um bom capitalismo. Otimista, não política, não urbana, camponesa: nossa imagem da cidade é efetivamente tudo isso. Esta é a ideia realizável de uma cidade orgânica, social e democrática, resultante de uma sociedade criadora – em resumo, da cidade viva. Assim, abole-se não só o “apartamento alugado” e a escravidão do salário, mas cria-se o verdadeiro capitalismo. O único capitalismo possível, se a democracia tem o menor futuro.16
Imagem 8 - Broadacre City de Frank Lloyd Wright. 16. Ibid., p. 244.
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a era antiutópica
O fracasso da utopia moderna e sua crítica
Ao sermos apresentados a história da utopia na arquitetura e no urbanismo não deixamos de ser tomados por um sentimento geral de fracasso. Essa história constitui a essência da arquitetura moderna, formulada a partir dos planos dos autores que aqui estão e de muitos outros que não caberiam no escopo desse trabalho. Formulada também com os mesmos preceitos nos “Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna” e pela Carta de Atenas, de 1933. Durante a primeira metade do século XX, o conceito de utopia se embrenha tanto na produção teórica, quanto na prática da arquitetura moderna, em que, invariavelmente, a derrocada de um seria também a derrocada do outro. Muitos desses planos vão passar para a realidade principalmente no pós-Segunda Guerra Mundial. Com o espírito de reconstrução, vê-se a oportunidade de enfim saírem da teoria para a prática. Na Inglaterra surge o Movimento Cidade-jardim, cujo objetivo era
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implantar as cidades pensadas por Howard. Inúmeros conjuntos habitacionais serão construídos ao redor do mundo seguindo os preceitos modernos apresentados por Le Corbusier, inclusive sua própria Unité, presente na Cidade Radiosa, será implantada em Marselha. A ideia de zoneamento das cidades segue sendo política indispensável em todo mundo até hoje. No Brasil, teremos a construção de Brasília, o mais perto que Le Corbusier veria de seus ideais modernos para uma cidade toda saírem, enfim, do papel. Entretanto todas essas propostas terão sua essência alterada de alguma forma, ou serão implantadas de maneira incompleta. As cidades jardim nunca foram de propriedade comunal e autossuficiente, acabaram por virarem cidades satélites ligadas à uma metrópole onde o emprego estava localizado. O subúrbio americano continuou se desenvolvendo, mas sem uma integração pacífica entre cidade e campo. Talvez Frank Lloyd Wright não estivesse avisado na época, mas o componente principal de sua utopia era na verdade uma máquina muito eficiente de poluição e destruição da natureza. Muitos dos conjuntos habitacionais modernos careciam dos espaços verdes e de urbanidade que eram indispensáveis a Le Corbusier. Não devemos, no entanto, atribuir o fracasso da utopia moderna à má tradução de seus preceitos para a realidade. As formas de racionalidade iluminista e os projetos universais que visam a emancipação humana começam a ser fortemente questionados. A virada do sistema de pensamento da época é marcada pela aversão às metanarrativas. Não cabia mais planos urbanos totalizantes e funcionais, e construções monótonas e reprodutíveis que não tinham lastros sociais e nem continuidade histórica. A queda da utopia modernista já estava sendo anunciada, como escreve Colin Rowe:
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A cidade da arquitetura moderna (que também pode ser chamada de cidade moderna) ainda não foi construída. Apesar de toda boa vontade de seus protagonistas, ela tem permanecido apenas um projeto ou um aborto; e, mais e mais, não parece restar qualquer razão convincente para supor que tal situação virá a mudar. Pois a constelação de atitudes e emoções que estão reunidas ao redor da noção de arquitetura moderna, e que então transbordam, de uma maneira ou de outra, para o campo inseparável do planejamento, começam enfim a transparecer serem contraditórias demais, confusas demais e debilmente simplórias demais para permitir senão apenas o menor dos resultados produtivos.1
1.
ROWE, 1978, p. 02. apud GONÇALVES, 2014, p. 114.
A noção de modelo-tipo, a redução da experiência humana, e as expressões unidimensionais no espaço construído, resultantes dessa redução, também serão objeto de crítica. O modulor, molde básico das dimensões humanas a ser tomado como ponto de partida para a concepção da arquitetura, soa absurdo ao se considerar outros corpos que não o homem branco europeu. Há um sentido de autoritarismo em se conceber uma cidade ideal a partir de um ponto de vista único e dominante. Com que respaldo na realidade um arquiteto branco e europeu é capaz de determinar o que seria a cidade ideal para 3 milhões de corpos e subjetividades diferentes coexistirem? E ainda, desenhar planos para cidades latino-
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americanas, africanas e orientais seguindo seus preceitos e visão de mundo?
O que Russell Jacoby critica como forma de utopia projetista diz muito respeito ao que foi elaborado nesse período pela arquitetura e não somente aos regimes totalitários do século XX. De certa forma, os liberais da década de 1950, citados na primeira parte desse trabalho, que foram os primeiros formadores de uma racionalidade antiutópica, tiveram um material sólido para tecer suas críticas e aproximar todo o ethos modernista e toda a ética de emancipação universal ao totalitarismo. Quanto ao sistema político e econômico, as utopias são construídas a partir de um contexto histórico específico. Às vezes a crítica à realidade vai buscar um aperfeiçoamento do sistema da
Imagem 9 - Modulor de Le Corbusier.
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época em que foi produzida. Podemos citar A República de Platão que busca resolver o sistema republicano escravagista perfeito. Às vezes, porém, vai buscar propor outro sistema político e econômico, sendo exemplo mais radical Utopia de Thomas More, que pretende abolir a propriedade privada e o dinheiro. As utopias do século XX em geral, buscavam aperfeiçoar o sistema político e econômico. Mesmo Howard com sua proposta de propriedade comunal, buscava tornar o investimento lucrativo a quem investisse em sua ideia. Tanto a produção no capitalismo ocidental quanto no socialismo de Stalin na União Soviética tinham esse objetivo. A arquitetura moderna serviu a ambos porque era em sua essência produtivista. Peter Hall, ao falar sobre a Broadacre City de Frank Lloyd Wright, compara com os anti urbanistas soviéticos, que salvo diferenças discursivas e ideológicas estavam pensando mais ou menos o mesmo espaço.2 As utopias ocidentais seguiam o capitalismo fordista e o paternalismo do Estado de Bem-Estar Social do pós-Guerra. Havia uma crítica à produção do espaço, as consequências endêmicas da exploração da classe operária e com exceção de Le Corbusier, um espírito de reforma social e aprimoramento constituía ainda a alma dessas produções. Infelizmente o utopismo anti-capitalista ficou no século XIX e como nos mostra Choay, da obra marxiana nunca surgiu um modelo espacial verdadeiro.3
2.
HALL, 2016.
3.
CHOAY, 1979.
No ocidente, a mudança do modernismo para o pósmodernismo não se dá unicamente por uma percepção do fracasso do primeiro, ou uma iluminação divina que apontou novos meios de se enxergar o mundo. A ruptura, se é que podemos chamar assim, se dá por uma mudança do capitalismo fordista para o que, num primeiro
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momento, Harvey chama de acumulação flexível do capital que mais tarde ganhará a denominação de neoliberalismo.
Pós-modernismo
A partir da década de 1960, e com mais força na década de 1970 vão começar a surgir inúmeras críticas ao sistema de pensamento da modernidade. Não somente no campo da arquitetura e do urbanismo, mas também em todas as ciências sociais. Como explicita Harvey, “há uma notável mutação na sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas que distingue um conjunto pós-moderno de pressupostos, experiências e proposições do de um período precedente.”4 Em 1972, o conjunto habitacional de Pruitt- Igoe em St. Louis, que segue à risca os preceitos modernos, é demolido e com ele, cai a utopia modernista. Como afirma Charles Jencks é decretada a morte simbólica do movimento moderno.5 Com isso outros olhares para a arquitetura ganham força. Importante citar a obra de Jane Jacobs, Morte e Vida das Grandes Cidades (1961), como sintetiza Gonçalves: Em sua apologia da rua, Jacobs celebra a vitalidade urbana que ocorre por meio do encontro no espaço coletivo, diagnosticando a qualidade do mesmo por meio de sua capacidade de potencializar a diversidade social e as atividades corriqueiras que nele se realizam. Jacobs devolve à rua a sua categoria de entidade urbana máxima, recuperando sua função
4.
HARVEY, 2006, p. 45.
5.
Ibid.,
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sociológica que havia sido tomada pelos modernistas da via expressa. Ocorre uma revalorização da comunidade, dos valores ordinários e cotidianos, do mundano, do popular.6
Na mesma chave de afirmação da cultura popular, Denise Scott-Brown, Robert Venturi e Steven Izenour escrevem Aprendendo com Las Vegas (1972), onde exaltam o simbolismo dos letreiros, dos comércios e da cultura de Las Vegas, buscando validar a arquitetura popular que foi desprezada pelos modernistas. O que se buscava agora era a pluralidade, as diferenças culturais, o vernáculo. Aqui fica claro a relação do conceito de heterotopia de Michel Foucault e o momento histórico em que ele foi idealizado. Foucault é um dos autores fundamentais para a racionalidade pós-moderna, mesmo que, se ele era pós-moderno de fato ou não, ainda seja motivo de disputas acadêmicas exaltadas. Foucault era antiutópico porque era anti-universalista. Sua entrada no debate é a partir de um conceito pouco propositivo, mas sim que tivesse a função de colocar um significante autoral para denominar a fragmentação espacial já existente no mundo. De fato, o que ocorre é que visto que a resistência ao caos fragmentário das mudanças na vida pós-Revolução Industrial não foi possível, isto é, não se pode criar uma narrativa totalizante, nem entender o caos a partir de leis universais, há uma aceitação da efemeridade, da irracionalidade, do acaso, e das particularidades. A racionalidade pós-moderna se preocupa com a alteridade, com as dinâmicas de micropoder e com os modos de representação. 6.
GONÇALVES, 2014, p. 115.
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A linguagem é um dos grandes temas do período. Como afirma Harvey, a heterogeneidade e a efemeridade tornam impossível uma significação estável, os sistemas de representação fixos vão ser questionados7. O significante, isto é a forma, torna-se mais importante do que o significado, o conteúdo. “Dessa forma, Derrida considera a colagem/montagem a modalidade primária de discurso pós-moderno.”8 A mudança de postura em relação à linguagem e a negação de metanarrativas tem implicações éticas e filosóficas. Se é impossível dar conta de representações unificadas do mundo, se não é possível nem o representar em sua totalidade de forma coerente, como transformá-lo? As pretensas representações e projetos universais vão ser consideradas ilusórias e repressivas. Diante disso o pragmatismo vai ser a única resposta filosófica possível.9 De fato, o pós-modernismo não propõe quebra de paradigmas sociais e culturais, mas é uma readequação estrutural necessária para servir ao propósito da nova ordem econômica, o neoliberalismo. A produção arquitetônica pós-moderna é a face cultural do capitalismo tardio como afirma Fredric Jameson.10 Com isso, o que Scott Brown e Venturi admiram em Las Vegas é o simbolismo berrante da sociedade de consumo. Em uma cultura de símbolos, imagens e espetáculos perde-se por completo o senso de profundidade. Não há compromisso com objetivos sociais abrangentes11, e a estética tornase mais importante que a ética. O conceito de utopia, ou melhor sua exclusão vai ser uma ruptura determinante entre o modernismo e o pós-modernismo como afirma Reinhold Martin: Na arquitetura como em outros lugares, o inimaginado ativo da Utopia está entre as práticas que distinguem o
7.
HARVEY, 2006.
8.
Ibid., p. 55.
9.
Ibid.
10. JAMESON, 1998. 11. HARVEY, 2006.
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pós-modernismo do modernismo. Essa atividade não pode ser explicada meramente como uma reação aos excessos modernistas do período anterior. Ao contrário, sob o pós-modernismo, a produção cultural foi reposicionada como um laboratório de autorregulação, em que o poder é redefinido como controle, e especialmente autocontrole. Para um discurso atado a uma rede de ligações duplas, a transformação estrutural do status quo se tornou cada vez mais inimaginável, e não somente irrealista. Portanto parece outra marca do pósmodernismo: a sombria retirada de enga jamento, ou a preventiva, exuberante aliança com o status quo.12
A produção do espaço contemporâneo
A partir da década de 1970, os princípios do “Estado de bem estar social” e os ideais de universalidade e equidade são radicalmente abandonados em prol do domínio da economia de mercado. Os principais agentes produtores do espaço urbano voltam seus esforços para assegurar a lucratividade da terra e a especulação imobiliária com ajuda do poder estatal e da política monetária internacional.
12. MARTIN, 2010. p. xiv.
O crescimento urbano rápido no contexto do a juste estrutural, da desvalorização
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da moeda e da redução do Estado foi a receita inevitável da produção em massa de favelas [...] o mercado habitacional formal do Terceiro Mundo raramente absorve 20% do estoque de residências e assim, por necessidade, as pessoas recorrem a barracos construídos por elas mesmas, a locações informais, a loteamentos clandestinos ou às calçadas.13
Com a economia neoliberal se tem um crescimento vertiginoso do processo de favelização, onde o crescimento das favelas ultrapassa o da urbanização.14 Por outro lado, os ricos se enclausuram cada vez mais em condomínios, clubes e shopping, aterrorizados e cegos com sua obsessão pela segurança. A arquitetura e o urbanismo são utilizados como instrumentos de linguagem que operam sistematicamente para determinar o que é reconhecido como “cidade”, ou seja, opera e serve a lógica do capital e o que não é cidade, mas sim territórios de exceção. Os espaços excluídos da circulação de valor são, claro, terrenos da pior qualidade dos quais não se é possível lucrar. São lugares afastados dos empregos, em encostas, morros e próximos a córregos fétidos. São esses terrenos que a população excluída ocupa e constrói sua morada. Estamos falando de bairros inteiros imersos em um estado de exceção e de ambiguidade em que as categorias legal/ ilegal, legítimo/ilegítimo, autorizado/ não autorizado são permanentemente cambiantes e postas em questão, inclusive
13. DAVIS, 2006. p. 27. 14. Ibid.
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através da ação dos próprios habitantes. Trata-se de gray spaces, nas palavras de Yiftachel, espaços de sombra, esferas urbanas, que se situam a todo momento entre a iluminação da legalidade, da segurança e da inserção plena nas cidades e a escuridão da remoção, destruição e morte 15
A insegurança da propriedade da terra e a ameaça constante de despejo convivem com a falta de saneamento básico, pouco ou nenhum acesso a equipamentos públicos e uma lastimável infraestrutura de transporte. A favela é a expressão espacial da necropolítica, onde o Estado a serviço do mercado escolhe deixar morrer parte da população pela omissão e abandono. A constituição da periferia urbana mostra-se como uma face da era antiutópica institucionalizada. O Estado aos poucos deixa suas responsabilidades de garantir o mínimo para a sobrevivência da população na mão da iniciativa privada, que ao visar o lucro sempre em primeiro lugar, precariza cada vez mais o trabalho, os serviços e a dignidade dos indivíduos. Não há um projeto institucional de melhoria da condição humana. Não há perspectiva de alternativa.
15. ROLNIK, 2019, p. 05.
No Brasil, a política de construção de moradia popular dos governos do PT visava controlar a produção desenfreada de favelas, mas eram em sua essência um remédio para os sintomas da produção da cidade neoliberal, que diga-se de passagem, atendia a demanda de lucros de empreiteiras, e os conjuntos eram em sua maioria afastados e com muita pouca urbanidade. Entretanto, nem isso temos mais, o “Minha Casa Minha Vida” foi substituído por um programa de financiamento, que em sua essência joga a questão da solução da
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periferização e da pobreza urbana ainda mais fora da responsabilidade do poder público. A situação é tão crítica que um certo pragmatismo e senso de urgência são requisitados de quem de fato procura mudar alguma coisa. Nesse cenário de rebaixamento do horizonte de expectativas, como falar de utopia, como falar de projeto de igualdade, liberdade e emancipação quando o básico é imperativo?
Racionalidade neoliberal e anti utopismo
Mais do que um sistema político-econômico, o neoliberalismo contemporâneo é uma racionalidade dominante no mundo todo desde a década de 1980. A agenda de poder e de acumulação infinita de capital é imposta com o fim das políticas de bem estar social por meio da transformação das subjetividades e das possibilidades de existência. Isso é, o neoliberalismo é o sistema que gere a forma como trabalhamos, nos relacionamos, pensamos, sentimos, gozamos, sofremos, enfim existimos. Há larga literatura sobre como a racionalidade neoliberal organiza a política (para citar o caso brasileiro, Sintomas Mórbidos (2019), de Sabina Fernandes) o mundo do trabalho (para citar o caso latino-americano, A razão neoliberal: Economias barrocas e pragmática popular (2014), de Veronica Gago) a psique humana e as formas de sofrimento (Neoliberalismo como Gestão do Sofrimento Psíquico (2021), de Vladimir Safatle, Christian Dunker e Nelson da Silva Junior), só para levantar algumas temáticas. Aqui vamos nos concentrar em como no interior de seu funcionamento está o anti utopismo.
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Margaret Thatcher profetizou o futuro do mundo ao lançar seu slogan de governo: Não há alternativa, ou TINA (There is no alternative). Ali se evidenciava um projeto político que após a queda do muro de Berlim e da União Soviética se consolidou como o fim da história, como argumenta Francis Fukuyama. Acabou a possibilidade de sonho, de busca de alternativas, de esperança de um mundo melhor. O processo histórico levado adiante pela luta de classes foi interrompido pela apatia, pela derrota e pelo triunfo do capitalismo. Como nos lembra a famosa frase de Slavoj Zizek, “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Mark Fischer descreve essa estrutura de sentimento, que chama de realismo capitalista: O capitalismo é o que sobra quando as crenças colapsam ao nível da elaboração ritual e simbólica, e tudo o que resta é o consumidor-espectador, cambaleando trôpego entre ruínas e relíquias. Ainda assim, a guinada da crença para a estética, do enga jamento para o voyeurismo, é tida como uma das virtudes do realismo capitalista. Ao vangloriarse de ter - como coloca Badiou- “nos libertado das abstrações fatais” inspiradas pelas “ideologias do passado”, o realismo capitalista apresenta a si mesmo como um escudo que nos protege dos perigos resultantes de acreditar demais. [...] Rebaixar nossas expectativas – somos ensinados – é só um pequeno preço a
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pagar para estarmos a salvo do terror e do totalitarismo.16
É preciso esvaziar o mundo de esperança e enterrar a utopia. Hoje somos mais do que nunca pragmáticos, engessados por uma disciplina burocrática, trabalhamos incansáveis pelo mínimo. Nenhum espectro ronda mais a Europa (nem o mundo), a única coisa que ronda por lá é a massa de refugiados. Nenhuma alternativa se projeta no horizonte. Os que sofrem pela condição do mundo se resignam a comemorar as resistências, as insurgências à espera de que dali sai algo realmente novo. De fato, o horizonte de expectativas foi encurtado. No Brasil de 2021, uma população plenamente empregada, com a barriga cheia e livre de um governo fascista já seria querer demais. A demanda para o século XXI é impedir a extinção do homo sapiens, vide a destruição que continuamos a espalhar pelo mundo, a luta por mudança climática por si só não é tarefa fácil. Estamos em posição de exigir apenas o mínimo, lutamos com todo o fôlego pelas urgências, nadamos a favor da maré acreditando que nadamos contra, vendo o neoliberalismo fagocitar e degenerar cada espaço e cada discurso. Como esperar gastar as energias elaborando um futuro realmente ideal?
Retomada do pensamento utópico a partir da experiência subjetiva
Após percorrer este caminho, sinto que abordei uma questão da qual não sou capaz de oferecer respostas. Muitas das obras que li terminam concluindo que há necessidade da retomada
16. FISHER, 2020, p. 13.
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do pensamento utópico. Cito aqui Imagem imperfeita, de Russell Jacoby, Utopia 's Ghost, de Reinhold Martin e Espaços de Esperança, de David Harvey. Todas delineiam, de certa forma, caminhos a serem tomados. Jacoby aposta na sua iconoclastia, Harvey acredita em uma conciliação de concepção espacial e processo social, Martin acrescenta a importância de lidarmos com o fantasma da utopia moderna e fazer algo a partir desse confronto. Em uma tentativa de contribuir com esse debate, coloco primeiramente uma postura de responsabilidade política individual e coletiva de agir sobre o fragmento de realidade desconjuntada que te toca. Sem as militâncias e as lutas políticas em todas as frentes de terra arrasada que o capitalismo deixou, sem as discussões coletivas e a mão na massa, nenhum pensamento utópico ou esperança vale de nada, seria hipocrisia sofrer pelo fim do mundo e pela Amazônia em chamas do sofá de casa. Não desconsidero, no entanto, que somos uma geração apática e depressiva, entretanto, a luta ajuda a enfrentar tais sintomas, como apontou Guilherme Boulos em sua dissertação de mestrado sobre a refração dos sintomas depressivos em acampados do MTST17. Levantar-se é o passo mais difícil. Mas longe de querer concluir com uma cartilha militante, quero adentrar a discussão ética da arquitetura e do urbanismo. O que quero argumentar é que apesar de todas as críticas aqui reunidas, os arquitetos do século XX não se furtaram de um compromisso ético de sua profissão para com o mundo, e isso deve ser exaltado. A arquitetura e o urbanismo são disciplinas cujo objetivo é construir o meio físico do homem por meio da imaginação humana aliada aos conhecimentos técnico-científicos dos quais dispomos. Essa tarefa não exige apenas um compromisso com a capacidade técnica, mas também um compromisso ético com os propósitos a qual esses 17. BOULOS, 2016.
a era antiutópica
espaços são destinados. Isso envolve uma participação ativa na construção imaginária e material de uma sociedade. O compromisso com a utopia é, senão, o compromisso ético do campo disciplinar, e a isso, mesmo que por caminhos questionáveis, os modernistas não se negaram. O que acontece ao se romper o ímpeto de se planejar e projetar um mundo melhor e relegar à utopia o papel de fantasma de um tempo muito mal superado, (e em termos psicanalíticos, não é difícil concluir que o modernismo foi recalcado pelos seus sucessores) é trocar o dever ético da arquitetura por uma produção estética, superficial e vazia de significado. É esse cenário cultural que o pós-modernismo montou e que persiste como padrão do campo disciplinar. Não digo que não existam resistências, insurgências, mas a maior parte das nossas trincheiras hoje, devemos admitir, não são formadas majoritariamente por projetistas do mainstream. Há ainda um problema clássico de distância entre quem produz arquitetura e quem vive com ela depois. Não é preciso dizer que o típico arquiteto moderno era muito apegado à sua prancheta. Pensar em um plano urbano utópico a partir de uma experiência muito particular é normatizar corpos e exercer um poder autoritário, isso os pós-modernos estavam certos ao criticar os modernistas. Nesse sentido, nossas trincheiras da profissão, os arquitetos que trabalham com assessoria técnica têm muito a ensinar aos arquitetos de prancheta. Entretanto, não é somente de melhorias habitacionais que devemos nos resguardar. Não defendo que seja dever do arquiteto pensar sozinho num mundo ideal, entretanto, dominamos uma linguagem e essa linguagem é extremamente necessária para viabilizar espacialmente utopias elaboradas coletivamente a muitas mãos e por muitas cabeças.
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Aqui o que Harvey nos diz sobre a importância de conciliar o projeto do espaço e o processo social são definitivos para essa reflexão18. O dever ético do arquiteto é fazer parte desse processo social oferecendo seu saber técnico e sua capacidade de representação e utilização da linguagem espacial. Não somos protagonistas, devemos construir uma alternativa em coletivo. Devemos nos perguntar: no que acreditamos? Qual horizonte de transformação da realidade podemos ajudar a construir? Qual projeto utópico destinaremos nosso conhecimento, nosso sonho, nossa ação? O trabalho carrega um encaminhamento subjetivo e particular, uma vez que só pude fazer essas perguntas quando conheci Vila Nova Palestina, no Jardim ngela, minha primeira ocupação como militante do MTST. Lá, ainda queria saber como era possível produzir A habitação utópica e resolver o problema da falta de moradia, considerando isso, uma questão de desenho. Mas a pergunta se transformou em outra, e em outra, e em outra... a partir sempre de uma mesma resposta: Há algo utópico nesse espaço. O que é utopia então? O que utopia tem a ver com arquitetura? O que arquitetura tem a ver com esses barracos construídos por gente que não tem casa? Enxergava ali, e isso só se consolidou com a minha experiência militante, uma construção espacial única, que permitia formas de relações que eu desconhecia e outros afetos com o outro e com o espaço. Um forte senso de cooperação, solidariedade e coletividade. Há uma transformação subjetiva nas pessoas que ali estão e com certeza uma transformação em mim e em quem milita. Há também uma construção programática dotada de memória, significado e propósito. O barracão, a horta, a cozinha coletiva, a ciranda etc., são 18. HARVEY, 2006.
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espaços produzidos pelos próprios sem-teto e que produzem novas formas de viver. O que se constrói nesses espaços é um projeto de sociedade, baseado em outros preceitos que não os neoliberais. Não são heterotopias e nem espaços de exceção onde a lógica de solidariedade é determinada pela contingência. Nas ocupações do MTST existe um horizonte político, um projeto de transformação social, uma utopia. Sempre pensei como seriam esses espaços e essas habitações se fossem construídos com uma consideração genuína sobre os processos sociais dos quais eles fizeram parte durante o período de ocupação. Fato é, quando a luta em terreno é conquistada, o projeto deve se adequar ao programa estatal. Às vezes, a qualidade perde para a quantidade, e como a história da habitação social do Brasil nos ensina, a prioridade de construção nunca é a urbanidade e os espaços públicos. Talvez esse trabalho seja uma desculpa para projetar essa utopia num mundo que fosse possível levar adiante esse processo social, sem a burocracia estatal e as limitações orçamentárias que condicionam o desenho. Mas acredito que seja possível esticar a corda nesse sentido, lutar pela manutenção desse processo no projeto das próximas ocupações. Por último, não defendo que a única arquitetura ética seja a militante. Há ótimos projetos e ótimos arquitetos em atividade hoje que não produzem habitação de interesse social. A discussão é mais acerca da participação ativa do arquiteto na construção de uma transformação da realidade. Se na modernidade essa participação era importante, hoje temos poucas perspectivas sequer de transformar alguma coisa, o que dirá ter o arquiteto como agente transformador. Isso precisa mudar, é preciso desassociar o fantasma do modernismo
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do conceito de utopia, é preciso retomar o pensamento utópico, é preciso voltar a sonhar, esperançar e projetar um futuro melhor. Portanto, para dar minha contribuição ética ao mundo através da profissão que escolhi exercer, estando entre o fantasma da utopia modernista, a falta de ética da arquitetura contemporânea, e a esperança e vontade de utopia que me soca o estômago toda vez que entro em uma ocupação, eu escolho projetar.
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parte 3
utopia em ocupação
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o MTST
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) é um movimento social formado em 1997 que luta pela reforma urbana através da ação em territórios periféricos das grandes cidades do Brasil. Surgiu como um braço de lutas na cidade a partir do MST (Movimento Sem Terra), num contexto em que a reforma urbana se mostrava tão importante quanto a agrária para o enfrentamento da formação neoliberal do território brasileiro. Movido pelo horizonte político de fim das desigualdades sociais e urbanas e pautado no direito à cidade, o MTST busca mais do que o acesso à moradia para os sem-teto. Ocupa hoje uma das posições mais importantes na conjuntura nacional de oposição à política e a economia neoliberal e seu Estado instrumental. Apoiado pela práxis política, forma e engaja a base dos territórios periféricos para que sejam agentes políticos em busca de seus direitos e da emancipação das condições materiais precárias a que, como povo oprimido, são historicamente submetidos. Portanto, o Movimento não é formado apenas por uma elite intelectual,
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mas sim pela base, pelo próprio povo que luta através dos espaços institucionais e, principalmente, fora deles. O lugar eleito para a luta é a cidade, produzida pelo neoliberalismo, a qual o MTST busca transformar. Essa cidade é a periferia, onde o povo está, lugar onde milhões de pessoas precarizadas são impelidas a viverem em condições extremas, morando de favor, vivendo em áreas de risco ou pagando altos aluguéis que não permitem proporcionar o mínimo de subsistência para a família com o salário que sobra. O sem-teto não é apenas a pessoa em situação de rua, mas é todo indivíduo que é afetado pelo problema de moradia, seja pela falta dela ou pelas condições precárias.1 A partir da ação radical de ocupar um terreno particular fruto de especulação imobiliária, geralmente atolado em dívidas ou terras públicas inativas, o Movimento denuncia o descumprimento do Artigo 5º da Constituição Federal2 e proporciona um chão onde o sonho e a esperança possam renascer em forma de luta e de construção coletiva. “Ocupar não é crime, é um direito. Os trabalhadores semteto que ocupam estão exigindo o cumprimento da função social da propriedade e reivindicando legitimamente o direito à moradia digna, também previsto na Constituição”.3 A ocupação periférica é a principal tática política do Movimento, mas é muito mais que isso. O MTST também promove a politização de sua base do ponto de vista da esquerda radical (do anticapitalista para o socialista dependendo do contexto)4 por meio da construção de uma vida comunitária e do engajamento político. Como afirma Guilherme Boulos: A vivência em uma ocupação organizada, as formas novas de apropriação do
1.
BOULOS, 2012.
2.
Artigo 5º - Inciso XXIII – a propriedade atenderá a sua função social. (BRASIL, [2016])
3.
BOULOS, 2012, p. 46.
4.
FERNANDES, 2019.
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território e o enga jamento nas decisões e mobilizações necessárias à conquista da moradia fazem das ocupação um lugar de enfrentamento à lógica da cidade do capital. E constroem uma referência de organização coletiva e poder popular.5
A mudança de subjetividade é um princípio do Movimento onde os espaços possuem importante função transformativa, “As ocupações devem representar a primazia das soluções coletivas sobre as individuais, tanto através da mobilização como via para conquistas, quanto na construção de espaços coletivos, tais como cozinhas, saraus, biblioteca, dentre outros.”6 Na descrição de suas linhas políticas, o Movimento afirma que o MTST não é um movimento de moradia. Lutamos por moradia, mas entendemos que esta luta é parte de uma luta maior por condições de vida dignas. É aqui que entra nossa proposta de uma Reforma Urbana. Defendemos uma transformação profunda no modo como as cidades estão organizadas.7
5.
BOULOS, 2012, p. 59.
6.
MTST, 2013, p. 11.
7.
MTST, 2013, p. 4.
Portanto, o MTST possui um horizonte político de transformação radical do espaço urbano. Através das ocupações periféricas busca-se criar novas formas de vida em comum, baseada no estreitamento de laços de solidariedade e companheirismo. Uma das motivações que levam o Movimento a eleger a periferia como lugar privilegiado para a construção da cidade ideal (anticapitalista e comunitária), é a possibilidade de espraiamento dessas novas formas
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o MTST
de viver, aliada ao impacto no tecido urbano que uma ocupação organizada promove na região onde ela está localizada. A pressão das reivindicações dos sem-teto ao poder público não visa apenas a obtenção de moradia para cada indivíduo. É uma luta coletiva pelo direito às condições básicas de infraestrutura, equipamentos e qualidade de vida em territórios abandonados pelo Estado. Ao ocupar um terreno, o bairro todo é impactado. Não se trata de uma ação isolada buscando reproduzir a utopia degenerada dos condomínios de luxo murados, e obter apenas um terreno com moradia digna em um mar de precariedade. O MTST se envolve na luta por equipamentos, transporte e infraestrutura nas regiões em que atua. Os princípios de organização das ocupações incluem ser uma referência para a região em que estão inseridas.8 A maior parte dos acampados vêm de loteamentos irregulares, favelas e ocupações espontâneas no entorno próximo, e com a consolidação da ocupação a notícia da luta vai se espalhando pela região, acampados trazem amigos e famílias, e a comunidade como um todo entra em contato com a ação. Para fazer um movimento multiescalar que age sobre os rumos da política nacional, e ao mesmo tempo, possui um forte enraizamento nos territórios das comunidades, o Movimento possui uma estrutura organizativa complexa, com certa hierarquia, mas baseada em uma construção democrática e princípios bem definidos, que precisam ser valores em comum entre todos os militantes. Há os coletivos responsáveis por tomar decisões políticas, divididos entre coordenações estaduais e nacionais, e os coletivos territoriais que têm a função de organizar as ocupações e as ações no território, como atos, protestos e bloqueio de avenidas. Os
8.
MTST, 2013.
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militantes também se dividem em setores responsáveis por cumprir e propor tarefas relacionadas a sua área, como por exemplo, o setor de formação, comunicação, negociação, saúde, e arquitetura e urbanismo.9 Os militantes que compõem esses setores e essas coordenações podem vir do que chamamos de base, que são acampados que se tornam coordenadores de acampamento, podendo ingressar em outras instâncias organizativas. Outra forma, é por meio das brigadas — como eu — formadas por pessoas que não têm luta, isso é, não pleiteiam, a princípio, uma moradia, mas compartilham do mesmo horizonte político, passando por um processo de formação de um ano antes de entrar em algum setor. Todas essas instâncias organizativas são regidas pelos mesmo princípios, que determinam a livre discussão nos espaços de debate; as decisões coletivas, a partir de consenso ou votação; a participação em tarefas e ações propostas; a base de valores socialistas; a transparência nas relações e a conduta ética.10 A ética imposta pelo Movimento em seus espaços é rigorosa e passível de expulsão. Não são permitidas condutas machistas, racistas, lgbtfóbicas, discriminatórias ou individualistas que desrespeitem o coletivo. Entretanto, essa conduta ética não é posta como lei, e sim introduzida através de formações e rodas de conversa sobre esses assuntos, de forma que o entendimento da importância dessas pautas seja parte da experiência comum dentro dos espaços do Movimento e das ocupações.
9.
MTST, 2013.
10. MTST, 2013.
Conduzir um projeto político onde as decisões são tomadas coletivamente, onde estão implicadas escalas tão diversas de atuação, onde o principal meio de ação é fora da institucionalidade, e onde estão abarcadas subjetividades e histórias de vida e formação tão
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diversas, não deixaria de resultar em algumas contradições. Como em todo agrupamento humano, há afetos que mobilizam positiva e negativamente a construção da luta e as relações. Há por exemplo, disputas egóicas de liderança, rixas internas, discussões acaloradas e discordâncias de estratégia e tática política. Também é possível notar a reprodução de comportamentos estruturais como o machismo e o racismo, e mesmo com as formações, algo tão enraizado é difícil de extirpar por completo em todos nós. Além das questões relacionais, também existem críticas externas e contradições a partir do enfrentamento da realidade concreta. Uma crítica muito comum vinda do campo disciplinar da arquitetura e do urbanismo é em relação à qualidade das moradias após a conquista da luta. Como critica Camila Moreno Camargo, em seu relato da construção do Condomínio João Cândido, a prioridade do Movimento seria massificar para atender uma demanda urgente de sua base, deixando de lado discussões sobre processos alternativos de construção, como por exemplo, o mutirão, e abrindo mão de certa qualidade urbanística em prol da quantidade de unidades.11 Essa é uma crítica da qual me aproprio e a partir dela vou desenvolver meu projeto para a “Ocupação Esperança Vermelha”. Entretanto, ressalto que a qualidade das construções são resultado de uma operação de negociação complicada, pois precisam atender à demanda de unidades, e às propostas e limitações impostas pelos programas, orçamentos e órgãos governamentais. Essa discussão leva a outro ponto importante de contradição que o MTST enfrenta. O maior motivo da impossibilidade da construção real da utopia das ocupações, que engloba os espaços coletivos e sua construção simbólica e relacional, é a falta de amparo das políticas
11. CAMARGO, 2016.
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Imagem 10 - Projeto final do João Cândido após propostas e revisões do corpo técnico da CDHU e da Usina CTAH. Imagem 11 - Condomínio João Cândido em Taboão da Serra.
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públicas habitacionais e da orientação mercadológica e burocrática do Estado. Não é possível construir fora das regras institucionais, isso quando a luta é conquistada. Por isso, figuras importantes do Movimento buscam entrar na institucionalidade por meio de cargos políticos, para que a luta ocorra de dentro e de fora, sendo o coordenador nacional, Guilherme Boulos, o caso mais emblemático. Há também a própria contradição interna de demanda do povo sem-teto em relação à habitação. Claro, eles têm urgência, e é difícil discutir qualidade da habitação, e principalmente dos espaços públicos, com quem precisa acima de tudo de um teto. Há uma pressão interna pelo andamento da negociação, do processo e do atendimento da demanda. As referências de qualidade arquitetônica do povo, muitas vezes são os condomínios de propaganda, de novela, onde muitos deles trabalham. O arquiteto transita entre, fetichizar e romantizar os espaços precários por sua formação coletiva, e lidar com a fetichização do não arquiteto aos espaços símbolos de uma vida digna, que geralmente são condomínios murados desprovidos de coletividade. O caminho de formação própria de uma leitura real desses espaços, da relação do povo com eles, e da participação no processo de formação de um outro olhar espacial, não é tarefa fácil. Por isso, é importante também entender e se apropriar das contradições que um projeto de transformação radical da sociedade acarreta. Ter um horizonte político, e uma utopia, não permite apenas uma idealização do resultado. É preciso muita luta, ação prática e construção coletiva de conhecimento, sabendo que pelo caminho haverá erros, derrotas e contradições. A construção da utopia é um processo entre sonho e enfrentamento da realidade.
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Muitas das utopias espaciais discutidas anteriormente, de certa forma propunham um programa semelhante ao espaços do MTST, como as cozinhas coletivas, centros comunitários, lugares de encontro e espaços voltados para a coletividade. Um dos motivos que impossibilitava sua implantação, como aponta Harvey12, era a falta de um processo social que construísse dialeticamente a utopia espacial de forma que fossem realmente apropriados por quem participou de sua criação e iria usufruir dela. Essa relação dialética existe no movimento enquanto construção da ocupação, mas a realidade da produção neoliberal da cidade e seu Estado instrumental não permitem sua concretude. O horizonte político, ou como cabe no escopo deste trabalho, a utopia, é transformar a lógica da constituição da cidade neoliberal através da luta, de organização política, da mobilização e da formação de novas subjetividades. Através de relações mais solidárias, de um comum que se forma no espaço das ocupações, é possível construir uma nova maneira de se viver baseada em outra lógica que não a do capital. As relações espaciais das ocupações devem ser preservadas, como a construção da utopia espacial resultante desse processo social de ocupação. A busca da consolidação desse espaço na conquista da luta visa preservar a memória da ocupação, da esperança e do sonho que nela foram fomentados.
12. HARVEY, 2014.
Essas formas de subjetividade, de relações e de engajamento político, são intrínsecas ao espaço. Não é possível preservar o ethos de uma ocupação em um condomínio padrão da CDHU, por exemplo, onde a moradia individualizada e o atendimento à demanda pelo menor preço possível são sempre os principais partidos arquitetônicos. A demanda por essa arquitetura deve ser motivo de tensionamento institucional e luta por um espaço onde a utopia em ocupação seja possível de ser construída.
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O Setor de Arquitetura e Urbanismo
Entrei no MTST pelo processo de brigada entre 2019 e 2020. O processo de brigada dura um ano, onde os novos militantes fazem uma formação política e desenvolvem juntos uma ou mais atividades relacionadas ao seu setor com o acompanhamento de dois coordenadores. Durante esse período, os novos militantes vão conhecendo os espaços do movimento e se engajando em atividades também no território. Infelizmente, meu processo de brigada aconteceu longe dos territórios, por conta da pandemia de COVID-19, e as atividades e a formação se deram online. Ficamos responsáveis por desenvolver um protótipo de casinha de caráter mais permanente para ser aplicado nas ocupações que estão há muito tempo em terreno. A casinha deveria ter 4m x 6m, feita de estrutura de pinus e vedação de OSB a partir de um orçamento limitado. Desenvolvemos em grupo um projeto da concepção, ao executivo, além do orçamento. Com a flexibilização das medidas
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de distanciamento social, a brigada de 2021 continuou o projeto adaptando o uso para abrigar a coordenação das novas ocupações, e pudemos construir um modelo na Ocupação Nova Canudos. Ao tentarmos construir, percebemos o quão pouco sabíamos sobre colocar a mão na massa. Comparado ao barracão e a cozinha feito por gente habilitada, nosso barraco tão bem projetado demorava para sair e estava todo torto. Precisamos constantemente de ajuda de construtores mais experientes. Após duas semanas, o pessoal da infraestrutura terminou o trabalho em um dia, usando pouco do que foi deixado por nós.
Imagens 12 e 13 - Projeto da casinha desenvolvido pela Brigada de Arquitetura e Urbanismo.
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Imagens 14 e 15 Multirão de construção do barraco da coordenação na Ocupação Nova Canudos em Taipas.
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Experiências como essa, além de certa graça, provocam muitas reflexões sobre a prática da nossa profissão. De fato, não me formo arquiteta apenas na universidade, me formo também nesse espaço que vivencio, onde aprendo tanto de arquitetura quanto nas aulas. Ao entrar no setor em 2021, participei de atividades como a construção das cozinhas solidária; da oficina “O Bairro que Queremos”; do grupo de estudos sobre Habitação de Interesse Social; da formação sobre o Plano Diretor para coordenadores e lideranças; e na elaboração de um curso de formação de construção para mulheres, etc. O Setor de arquitetura e urbanismo é muito jovem, foi criado em 2018 e está sendo estruturado pelos militantes que o compõem hoje. Tem o objetivo de preencher uma lacuna importante nas discussões que o movimento se propõe a fazer na sociedade. Podemos contribuir com as discussões políticas que envolvem o direito à cidade e as políticas públicas de habitação, trazendo um olhar mais técnico e propositivo sobre a formação do espaço urbano e os instrumentos que o regulam, como o plano diretor e os programas de habitação. Também é um objetivo, trazer outro olhar para dentro do movimento, sobre a qualidade arquitetônica da construção dos terrenos que conquistamos. Os conjuntos são em geral projetados por assessorias técnicas em conjunto com o corpo técnico do Estado. O movimento tem participação ativa nesse processo e procura envolver os acampados nas decisões de projeto. Mas, como já mencionado, o formato do programa, a própria resolução de negociação, questões de orçamento e demanda, acabam condicionando a arquitetura. Alguns dos exemplos construídos não se diferenciam de conjuntos habitacionais padrões produzidos pela COHAB ou CDHU. Claro, certas características são preservadas, como por exemplo, a muito
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famosa horta do Condomínio Dandara que garante renda para seus moradores. Entretanto, um processo tão rico, que constrói relações espaciais e simbólicas tão importantes, merece estar presente como programa e transparecer na arquitetura. Há uma dificuldade de transposição óbvia de uma situação de precariedade para uma de estabilidade. Em um conjunto habitacional construído com os moldes de uma ocupação, os usos certamente mudariam. A cozinha poderia se tornar um salão de festa e o barracão um espaço multiuso. Entretanto, insisto na preservação da memória que se inscreve na linguagem e na representação. Com isso, quero dizer que o nome quando acompanhado de uma história importa muito. Uma posição de não ceder à lógica dos espaços neoliberais é uma posição marcada pela manutenção dos espaços e suas nomeações, e não pela adoção dos símbolos do status quo.
Imagem 16 - Horta comunitária no Condomínio Dandara, Zona Leste de São Paulo.
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Outros usos podem surgir, mas é importante que o espaço permita que os usos da ocupação permaneçam. Por isso, em meu projeto, a cozinha coletiva é cozinha e não salão de festa, o barracão é barracão e não espaço multiuso, e a ciranda é ciranda e não creche. Ter essa proposição articulada dentro do movimento pode consolidar uma visão própria do MTST sobre a produção da habitação no Brasil. E sobre a formação dessa visão, o setor de arquitetura e urbanismo tem grande papel de desenvolvimento. É nesse contexto também, enquanto militante do setor de arquitetura e urbanismo, que meu projeto se insere como uma intervenção propositiva na discussão. Acredito que temos uma utopia, um horizonte político, e aqui faço o exercício de desenhar essa proposta a partir da realidade de uma de nossas ocupações, a Esperança Vermelha.
Construção das cozinhas solidárias
As cozinhas solidárias fazem parte de um projeto do MTST em 2021 que criou 26 cozinhas nas periferias de todo o país. Movido pelo agravamento da crise sanitária e da insegurança alimentar, cozinhas aos moldes das ocupações foram situadas em diversos bairros periféricos para distribuir comida gratuita para a população. Em sua maioria são terrenos ou construções cedidas por pessoas físicas ou instituições parceiras; ou em terrenos de ocupações e condomínios consolidados do MTST. O setor de arquitetura ficou responsável por fazer um projeto basíco e acompanhar as obras de melhoria ou construção dessas novas cozinhas. Pude me envolver nas obras de melhoria da cozinha da Brasilândia, instalada no salão de festas religiosas de um Pai de Santo parceiro de membros do movimento. Pude participar também
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da construção das cozinhas de Santo André, no terreno abaixo do Condomínio Novo Pinheirinho e de São Bernardo, terreno do Montanhão onde o Movimento ocupou previamente. Essas experiências, além do acompanhamento regular da cozinha da Brasilândia, foram referências determinantes para o desenho da cozinha coletiva em meu projeto. Ao longo do processo vimos o que funcionava ou não nos projetos, e agora podemos nos dedicar a melhorar esses espaços. As cozinhas acabaram se tornando centros comunitários e um lugar de encontro nas regiões em que estão implantadas.. Lá ocorrem atividades culturais, oficinas com as crianças, festas em datas comemorativas como a festa junina e festa do dia das crianças, atendimentos de saúde, aconselhamento jurídico e psicológico oferecido pelos setores do MTST. As cozinhas também possuem hortas, são pontos de distribuição de cesta básica e doações, e a cozinha de Santo André tem até uma biblioteca comunitária!
Imagem 17 - Cozinha Solidária do Montanhão em um terreno com ocupação consolidada do MTST em São Bernardo.
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Imagens 18 e 19 Cozinha Solidária do Jardim Estádio no terreno do Condomínio Novo Pinheirinho em Santo André.
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Oficina “O Bairro que Queremos”
Imagem 20 - Cozinha Solidária do Jardim Iguatemi na Zona Leste de São Paulo
Uma das atividades mais importantes que o Setor de Arquitetura realizou foi a oficina “O Bairro que Queremos” nas novas ocupações do MTST. Buscamos achar saídas para as contradições que citamos por meio da escuta e da formação política. Durante o ano, quatro novas ocupações nasceram e a ideia é discutir o bairro que construiremos após a conquista da luta nessas novas ocupações, instigando o povo a pensar nas possibilidades que podemos pôr em prática em forma de projeto. Para isso, começamos nos apresentando e abrindo espaço para que as pessoas contem como era o bairro em que elas nasceram para que possamos compartilhar referências. Depois questionamos o que
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acham que falta na região da ocupação. Instigamos o pensamento para além da unidade habitacional, fazendo uma reflexão sobre as coisas que impactam na qualidade de vida, como equipamentos públicos, áreas verdes e transportes, que devemos incluir na demanda da luta. Aos poucos eles começam a colocar os equipamentos necessários, como creche, UBS e escolas melhores. A depender de cada grupo a conversa toma rumos diferentes e bem interessantes. Na Ocupação Carolina Maria de Jesus, uma companheira levantou a necessidade de espaços para juventude, outros companheiros continuaram a discussão e juntos quase montamos um programa de equipamento cultural para o jovem. Na Ocupação Nova Canudos, um companheiro se preocupou com o saneamento e o córrego sujo que passa na extremidade do terreno. Começamos a levantar possibilidades para revitalizar o córrego e implantar um parque na sua margem. A oficina tem essa função, de despertar uma especulação imaginativa, despertar uma primeira curiosidade sobre um entendimento espacial do terreno que, com muita luta, vai abrigar a casa deles, será seu bairro e sua comunidade. Procuramos fazê-los imaginar como seus sonhos podem morar ali. Durante a oficina mostramos uma maquete em 1:1000 com escalas de uma quadra de 32 lotes 5mx25m, e uma escola padrão para que possam sentir as dimensões do seu território. Geralmente se empolgam bastante com a maquete e após a oficina sempre vem gente dar mais ideias e procurar entender melhor o terreno. Por exemplo, na Nova Canudos, uma senhora me puxou de canto perguntando se eu como arquiteta podia fazer um pedacinho de terra para comércio, porque uma das coisas mais difíceis da vida era trabalhar longe, e o sonho da vida dela era ter uma lojinha perto de casa para vender seus panos de prato bordados e material de limpeza.
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Imagens 21 e 22 - Oficina O Bairro que Queremos na Ocupação Maria Carolina de Jesus na Cidade Tiradentes.
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Imagem 23 - Maquete da Ocupação Maria Carolina de Jesus. Imagem 24 - Oficina O Bairro que Queremos na Ocupação Nova Canudos.
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A ocupação
Antes de ocuparmos um terreno, é preciso fazer um trabalho de base, isso é, ir aos territórios e fazer conversas com o povo para chamá-los para a luta. Debater as condições em que vivem e explicar o que é o movimento e o que é uma ocupação organizada do MTST. Após a entrada num final de semana, os espaços de assembleia e equipamentos são demarcados e começa a organização dos barracos dos acampados por grupos de cerca de 200 famílias. Quando o G1 fica lotado, começa-se a criar o G2 e assim por diante. Hoje a Nova Canudos tem 12 Gs após 3 meses em terreno e a Maria Carolina de Jesus tem 16 Gs após 5 meses de luta. A coordenação fica responsável por instruir onde o acampado vai instalar seu barraco simbólico e demarcar os caminhos de passagem. As ocupações tomam formas diferentes a depender da topografia e tamanho do terreno. A Nova Canudos tem um platô superior de equipamentos e um platô inferior de barracos divididos
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por um alto talude. A Esperança Vermelha ocupou o platô alto com a praça e os equipamentos, e os barracos se distribuíram em fileiras seguindo a topografia do terreno íngreme. A Maria Carolina de Jesus e a Vila Nova Palestina são cortadas por uma grande avenida, que na Maria Carolina é carinhosamente chamada de Avenida Brasil. Christiane Falchetti descreve esse momento de chegada na Vila Nova Palestina: Dias depois, o imenso terreno foi sendo preenchido por lonas coloridas, formando um grande mosaico nas bordas da cidade, que se põe em movimento, diluindo fronteiras, entre o rural e o urbano, o meio ambiente e os seres humanos, as divisões territoriais e administrativas, o legal e o ilegal. E os pioneiros reconhecem seu feito heroico: “quando nós começamos aqui não tinha nada, só barro e água, e para puxar água foi uma luta, conta Jonas, que apresenta a ocupação. “Aqui é a Paulista”, a via central, “ali a Brigadeiro”, aponta à esquerda, “lá a Faria Lima”. Ele ri e se diverte com a cidade (re)inventada. Dona Maria indica o espaço coletivo onde ocorrem as reuniões e confraternizações, “ali é o MASP”.13
Nas semanas que se seguem à entrada no terreno, há uma grande movimentação para construir a ocupação. Além de cada acampado montar o seu barraco é preciso erguer os espaços públicos, demarcar os Gs, providenciar energia, água e esgoto e receber os
13. FALCHETTI, 2019, p. 243.
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acampados novos. Para conseguir gerir esse caos, há assembleias todos os dias para definir regras, dar informes e instruções sobre a organização da ocupação. Cada ocupação enfrenta seus desafios particulares que incluem ameaça de despejo, enchentes e problemas com o crime organizado. É sempre um perrengue, mas com o passar do tempo, todo mundo vai se situando, entendendo como as coisas funcionam e qual é o seu papel dentro do coletivo. As assembleias continuam com uma frequência de uma a duas vezes por semana, e a participação é critério de manutenção na luta. Se o acampado monta seu barraco e some, ele não será contabilizado como demanda. Os primeiros atos são convocados para a subprefeitura em busca de melhores condições para a manutenção da ocupação como saneamento básico. Assim, os acampados vão se engajando e aprendendo a exigir seus direitos por meio da mobilização. Muitos vêm sem nenhuma experiência política e aprendem a lutar no Movimento. As ocupações têm características diferentes a depender do Estado onde estão inseridas. Em São Paulo, a estratégia de ocupação adotada é a do barraco simbólico. Por questões jurídicas não se pode construir de uma forma que caracterize ocupação permanente sem se assegurar antes a propriedade da terra. Sendo assim, em contraste com o entorno de alvenaria aparente das favelas, as ocupações têm uma estética muito particular, formando um mar de barracos de 2m x 2m ou 3m x 3m feitos de madeira e lona. Boa parte dos acampados não mora na ocupação, os que conseguem ainda morar de favor ou enfrentar um aluguel constroem seu barraco simbólico e passam a frequentar as atividades e assembleias da ocupação. Mas quando a família não tem pra onde ir, são bem acolhidos ao morar na ocupação.
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Depois de uma certa consolidação da ocupação, os Gs escolhem algumas lideranças para desempenhar funções organizativas, esses viram coordenadores de Gs e participam de um processo de formação, é um sistema de democracia representativa direta. Cada G vai construir sua cozinha e autogerir seu espaço na ocupação. Aos coordenadores cabe também um controle burocrático das famílias, fazendo cadastro e listas de presença em participação em assembleias e atividades. Essa forma de organização do espaço produz uma morfologia urbana muito característica. Das fotos de satélite das ocupações é possível distinguir a praça dos equipamentos como um grande vazio organizador, e os canais de circulação que chegam dos acessos até esse vazio são rodeados de barracos que seguem o traçado dos caminhos. Sinteticamente a formação espacial é de uma cidade, muito parecido com as distribuições espaciais que se veem nas utopias estudadas.
Imagem 25 - Ocupação Maria Carolina de Jesus, 2021.
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Imagem 26 - Ocupação Esperança Vermelha, 2016. Imagem 27 - Ocupação Vila Nova Palestina no Jardim Ângela, 2013.
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Imagem 28 - Avenida Brasil na Maria Carolina de Jesus. Imagem 29 - Vista do platô superior na Ocupação Nova Canudos.
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Imagem 30 - Casal e seu barraco simbólico na ocupação Maria da Penha em Guarulhos.
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b. Barracão
O barracão é uma das primeiras construções a serem feitas e tem uma função de centralidade coletiva e organizacional. Poderíamos descrevê-lo como um espaço multiuso, mas não faz jus a sua importância simbólica. É no barracão onde boa parte das atividades coletivas da ocupação se desenrolam. É um espaço de formação, de debate, de construção coletiva, oficinas de leitura, rodas de conversa sobre diversos assuntos como violência doméstica, saúde da mulher etc. Também é onde geralmente ocorrem os cines sem-teto, saraus, místicas, atividades culturais, atendimentos de saúde e aconselhamento jurídico. Boa parte das atividades propostas pelos diversos setores se dão nesse espaço. São pavilhões grandes de estrutura de madeira, vedação de madeirite ou placas OSB. As aberturas são improvisadas com as próprias placas e a cobertura é de telhas de fibrocimento. Há uma racionalização do espaço que possui uma modulação estrutural e das aberturas reproduzidas quase como um módulo em todas as ocupações. Um conhecimento de arquitetura adquirido a partir da experiência prática dos companheiros da infraestrutura. Como o espaço tem grande importância simbólica, geralmente fica perto da cozinha e de frente para a praça central das assembleias, sendo sempre um ponto de destaque na paisagem da ocupação. Há sempre intervenções artísticas e decorações coloridas nas fachadas de madeirite, e com o tempo de ocupação o barracão vai ganhando decoração interna, com bandeiras e símbolos importantes da esquerda brasileira e internacional. As ocupações de longa data têm rearranjos espaciais ao longo do tempo. Às vezes o barracão é desmontado e remontado em outro lugar a depender das demandas da ocupação no momento.
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Por exemplo, a liderança Luciana, da Esperança Vermelha, relatou que desde 2016 o barracão já esteve em três lugares diferentes. No começo ocupava o topo do terreno, depois foi deslocado para o platô inferior e depois foi deslocado novamente.
Imagem 31 - Barracão na Ocupação Nova Canudos.
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Imagem 32 - Formação sobre O Plano Diretor no barracão da Nova Canudos. Imagem 33 - Atividade no barracão da Vila Nova Palestina.
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Imagem 34 - Atendimento de Saúde no barracão da Maria Carolina de Jesus. Imagem 35 - Formação de coordenadores de Gs na Ocupação Luisa Mahin no Jardim Novo Horizonte, Zona Sul de São Paulo.
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c. Cozinha coletiva
Como se diz em todo canto do movimento, a cozinha é o coração da ocupação. Na madrugada de entrada é uma das tarefas mais importantes montar o que é necessário para se fazer o café da manhã. Até a construção do barraco permanente, uma estrutura externa é improvisada, e desde o primeiro dia de ocupação não faltam refeições. Após a construção do barraco a cozinha é montada com equipamentos doados e serve as três refeições principais também com doação de alimentos. Raramente se vê a cozinha principal desocupada, sempre tem alguma tia por lá arrumando algo, preparando alimentos, e é raro também, não encontrar um cafezinho quando se quer. A cozinha coletiva é um espaço que bagunça a estrutura patriarcal. Os homens ajudam nas tarefas, e o trabalho reprodutivo e de cuidado são compartilhados, tornando menos penoso para a mulher do que quando essa responsabilidade é individualizada. É um lugar de encontro e que une a ocupação toda pelo estômago. As refeições são servidas sempre no mesmo horário e cada um é responsável por manter um kit de alimentação composto por um pote, um talher e um copo. O barraco da cozinha principal fica também na praça central, em geral do lado do barracão, ocupando por volta de 40m². São espaços grandes onde é permitido muitas pessoas trabalharem juntas, as cozinhas além de darem conta da refeição diária de muita gente também servem de espaço para fazer as comidas das festas que acontecem na ocupação, tendo que atender altas demandas. Depois que os Gs são divididos e os coordenadores de G escolhidos, cada G tem a tarefa de montar a sua própria cozinha,
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promovendo a autogestão do espaço entre os acampados. A cozinha principal continua funcionando principalmente para atender às atividades que sempre ocorrem nos espaços coletivos e os militantes que frequentam o espaço.
Imagens 36 e 37 - Cozinha Coletiva da Nova Canudos.
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Imagem 38 - Cozinha do
G1 na Ocupação Luisa Mahin.
Imagem 39 - Almoço de camarão na Maria Carolina de Jesus.
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d. Horta
O MTST possui um setor de horta, responsável por montar e difundir o conhecimento de plantio. A horta abastece as cozinhas com temperos, hortaliças e vegetais, e assegura a segurança alimentar saudável, sustentável e orgânica para os acampados. Sua localização varia conforme a ocupação, mas sempre está próxima à cozinha. Na Vila Nova Palestina, por exemplo, ela fica atrás da cozinha, na Esperança Vermelha está hoje, logo na entrada da vila dos barracos remanescentes. Também é comum cada cozinha de G plantar sua própria horta, e nas cozinhas solidárias também tem presença garantida.
Imagem 40 - Atividade de plantio na Carolina Maria de Jesus.
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Imagem 41 - Horta Chico Mendes na Esperança Vermelha.
Imagem 42 - Atividade de horta com as crianças na Vila Nova Palestina.
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e. Ciranda
A ciranda divide algumas funções e atividades culturais com o barracão, mas se destina principalmente às crianças. Assim como a cozinha tem a função de coletivizar o trabalho de cuidado e reprodução da vida. Os sem tetinhos tem várias atividades de educação e recreação que acontecem nesse espaço e geralmente as mães se sentem muito seguras para deixarem seus filhos brincarem pela ocupação. Sempre tem crianças empinando pipa nas praças de assembleia, e ao chegar na Maria Carolina de Jesus sempre vemos um bando de crianças correndo pra lá e pra cá. Há muitos animais de estimação nas ocupações que também ficam soltos e as crianças brincam muito entre si e com os bichos.
Imagem 43 - Atividade de pintura facial no Dia das Crianças na ciranda da Nova Canudos.
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Imagem 44 - Ciranda Luciana Ferreira na Ocupação Luisa Mahin. Imagem 45 - Ciranda na Ocupação Carolina Maria de Jesus.
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f. Biblioteca
Toda ocupação monta sua biblioteca comunitária com doações de livros, a Vila Nova Palestina por exemplo, tem um barraco de biblioteca e estudos que é apropriada para as atividades do setor de alfabetização e pelo cursinho popular do MTST. Às vezes, sem um barraco específico, as estantes são montadas no barracão ou na ciranda.
g. A Praça
A praça principal é onde as assembleias gerais acontecem e é o espaço que organiza espacialmente a ocupação, nela chegam as circulações principais entre os barracos e é onde as festas ocorrem. É um descampado com equipamentos em volta e um palco para que as lideranças façam as falas da assembleia. As crianças brincam muito por ali, é um lugar de recepção, de estadia e de acolhimento. Como as ocupações são em geral em terrenos íngremes, as praças são demarcadas nos platôs mais altos permitindo uma visão privilegiada da ocupação e do entorno. Não se pode construir barracos no espaço da praça, ela precisa ser grande e livre para receber as centenas de pessoas de uma assembleia.
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Imagem 46 - Assembleia na Nova Canudos. Imagem 47 - Exibição do filme Marighella na Maria Carolina de Jesus.
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Imagem 48 - Começo de festa das crianças na Vila Nova Palestina. Imagem 49 - Crianças na praça na Carolina Maria de Jesus.
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Ocupação Esperança Vermelha
A ocupação escolhida para o desenvolvimento do projeto é a Esperança Vermelha, no distrito de Cidade Tiradentes, na Zona Leste de São Paulo. O terreno privado abandonado por anos, e com dívidas públicas, foi ocupado em 19 de março de 2016, e recebeu o nome de Esperança Vermelha como forma de marcar a posição de esquerda no contexto do golpe que destituiu Dilma Rousseff da presidência. Na minha primeira visita à ocupação fui recebida pela companheira Luciana e pelo companheiro Adriano. Eles me contaram um pouco da história da ocupação e da atual situação do terreno. Hoje a área de 100 hectares está marcada na Lei de Zoneamento em parte como uma ZEPAM, e em parte como uma
Imagem 50 - Placa de construção no fim do terreno.
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ZEIS 2. O proprietário tinha interesse em construir habitação popular como forma de vender o terreno para o poder público com um bom abatimento da dívida. Para isso, ele registrou um projeto de conjunto de prédios antes do Zoneamento determinar parte da área como ZEPAM, portanto, o projeto ainda pode ser construído na área atendendo a demanda de 1410 unidades. A área possui uma reserva de Mata Atlântica com espécies de fauna e flora nativas, e possui uma nascente que divide o terreno em dois. Assim como segui no meu projeto, a intenção é construir os conjuntos nas bordas do terreno, reservando o meio com a nascente para um parque de preservação. Desde que foi ocupado, os acampados sempre tiveram boa relação com a mata nativa. Adriano conta que não poluiam e desmatavam o ambiente, e muitos frequentavam a nascente e aproveitavam o lago limpo que se formava abaixo.
Imagem 51 - Miolo da reserva.
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Imagem 52 - Descampado no terreno no extremo oposto à ocupação de hoje. Imagem 53 - Vista do platô principal do terreno onde está a vila atualmente.
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Luciana destacou também a quantidade de mulheres que compunham a ocupação, muitas vinham de lares em que sofreram violência doméstica e a ocupação foi um lugar de acolhimento para elas. Portanto, é uma demanda para a construção do conjunto, incluir um equipamento de acolhimento às mulheres, programa que segui no meu projeto. Após mais de 5 anos em território, a Esperança passou por alguns processos que conferem particularidades à ocupação. Com a garantia da negociação, a ocupação é desmontada à espera do projeto enfim começar a ser erguido. Mas, mesmo esse processo, ainda pode levar anos e algumas famílias continuam sem ter para onde ir. Em dezembro de 2018 o coletivo TETO fez uma parceria com o MTST para a construção de 19 casas de madeira para abrigar essas famílias que estariam na rua. Hoje a ocupação é composta por essa vila e a horta Chico Mendes. Ainda ocorrem as assembleias mensais com todos que possuem luta pelo terreno e fizeram parte da ocupação original, mas Luciana relata a dificuldade em manter o povo engajado sem um território e após tantos anos de espera. Entretanto, entre os moradores da vila, as relações das ocupações se mantiveram. Eles possuem uma vida bastante coletiva e compartilhada. A casinha modular da TETO ganhou em todas as casas uma varanda, onde os moradores se sentam juntos para prosear. O almoço frequentemente é dividido, alguém oferece arroz, outro feijão, alguém cozinha, e o café pode ser servido na casa de outra pessoa. Eles entram na casa uns dos outros com livre trânsito, o que faz com que as pessoas acostumadas à frieza das relações em um prédio convencional, estranharem tal intimidade. O trabalho doméstico também é feito em conjunto, os tanques e até algumas
organização espacial das ocupações
181
pias são para fora da casa, e as mulheres frequentemente lavam roupa e louça juntas. Há muitos animais, gatos, cachorros e galinhas, que são cuidados por todos. Ao questionar o que seria a moradia dos sonhos para eles, geralmente ouvia que não muito mais do que aquilo, só uma casa mais digna que pudesse acolher a família toda. Dona Tonha, por exemplo, tem três filhos que moram em condições precárias também na Zona Leste. Uma das casas é ocupada por um haitiano que veio ao Brasil em busca de trabalho e seu sonho é trazer a mulher e seus 10 filhos do Haiti. O foco sempre é a unidade, e é difícil estabelecer um diálogo sobre a importância de outros fatores frente à urgência de um teto.
Imagem 54 - Vila das casas da TETO.
182
Imagem 55 - Vista das casinhas na subida de entrada. Imagem 56 - Casinha de moradora.
utopia em ocupação
organização espacial das ocupações
Como o terreno fica em Cidade Tiradentes, distrito repleto de conjuntos habitacionais, os moradores da vila têm uma referência próxima do tipo de habitação que irão receber, isso claro, limita a imaginação e o questionamento de outras possibilidades quando colocado em perspectiva com a identidade da produção de Habitação de Interesse Social nos bairros periféricos. Adriano, Dona Tonha e Sueli, revelaram uma preocupação com o tamanho do apartamento, visto que já entraram em conjuntos pela região e reconhecem a insuficiência de conforto e ergonomia dessas habitações. Adriano comenta que o sonho geral seria ter um lote e uma casinha, mas todos tem consciência que é preciso adensar, e isso só é possível através da verticalização. Boa parte do povo cresceu em casas, seja em favelas ou no campo, e o apartamento pequeno traz uma sensação de enclausuramento. Ele dá bastante importância à figura do quintal, que proporciona um respiro e permite atividades fora de casa. Na visita levei uma maquete do terreno com bloquinhos para que pudessem me mostrar como era a ocupação no início e como gostariam que o projeto fosse construído, ao ver o campo de futebol, Adriano logo me disse que não deveria ter campo porque ocupava espaço demais e isso tiraria a oportunidade de mais pessoas conseguirem um teto. Ao invés de campo, ele achava importante pensar em sistemas bem feitos, tinha visto em um condomínio uma casa de bombas no térreo, e se tivessem um bom sistema hidráulico seria o suficiente. Em outra visita, Adriano me levou, juntamente com outras duas colegas, para vermos o terreno todo, fizemos uma trilha difícil pela mata e achei impressionante o quanto ele conhecia cada árvore que estava ali. Ao chegarmos à nascente, ele ficou profundamente
183
184
utopia em ocupação
triste porque o que um dia foi água limpa agora tinha virado curso do esgoto das casas construídas ao lado do terreno. Os moradores têm um grande apego ao território, e ao verem a maquete na primeira visita pediram que eu fizesse outra para eles. Fiz uma de madeira que hoje está pendurada na casinha que funciona como escritório, receberam o presente encantados por poder ter em mãos a representação do pedaço de terra por qual tanto lutam. Para quem construiu a ocupação e luta por tantos anos, o terreno pintado é o símbolo do seu sonho, da sua utopia, símbolo da esperança vermelha.
Imagem 57 - Maquete de estudos de parte do terreno.
organização espacial das ocupações
185
Imagem 58 - Adriano e a maquete de MDF.
parte IV
estudo preliminar para a esperança vermelha
premissas de projeto
da motivação
do lugar
do terreno
O projeto busca desenhar com um caráter permanente, os espaços que são construídos durante uma ocupação do MTST, valorizando o processo social que forma novas subjetividades e novos modos de se viver. Impulsionado pelo conceito de utopia, o projeto visa acima de tudo ser objeto de reflexão das possibilidades que podemos vislumbrar ao aliar a arquitetura e experiências coletivas preexistentes que buscam a transformação radical da realidade.
O local escolhido, a Ocupação Esperança Vermelha, possui como características principais: a baixa densidade no entorno imediato, falta de equipamentos públicos e serviços na região. O projeto busca adensar o terreno atingindo a demanda de 1410 habitações de forma a suprir as carências urbanas e se tornar uma centralidade para região estimulando o desenvolvimento do entorno e o engajamento nas formas coletivas de habitar o espaço.
O terreno da ocupação é extremamente íngrime tendo uma diferença de altura de 25 metros entre o platô superior e inferiorao longo de 200 metros de extensão. O projeto toma partido do terreno buscando usufruir dos platôs existentes para implantar os equipamentos públicos e assentar os prédios de habitação conforme as transposições, alterando o mínimo possível da declividade original. Com passarelas, ao longo dos prédios e ruas elevadas cortando os prédios a circulação se torna fluida e variavél. è possivel acessar cada apartamento de diversas cotas do terreno .
189
do programa coletivo
da habitação
da construção
O mote principal do projeto é a manutenção dos espaços coletivos da ocupação e demandas que surgiram em decorrência da experiência dos acampados em terrenos. Os equipamentos são: Barracão, cozinha coletiva, horta, biblioteca, ciranda, casa de acolhimento para mulheres, escola profissionalizante para mulheres. Há ainda amplo espaço de comércio e feira livre nos térreos dos edifícios e principalmente nas ruas elevadas.
O projeto busca atender a demanda já existente de unidades para a ocupação. Com o objetivo de adensar o máximo possível com qualidade urbanísica os edifícios possuem dois corpos separados por um nível (rua elevada) de cota pública que preserva vistas, insolação, ventilação e a fruição dos moradores. Exitem habitações de 1 a 3 dormitórios e studios. O desenho das unidades proporciona a vivência já consolidada na ocupação de proximidade e coletividade entre a vizinhança através de quintais abertos que também dão uma qualidade casa aos apartamentos.
O corpo inferior dos edifícios habitacionais é de estrutura metálica com vedações em CLT (madeira laminada cruzada) e o corpo superior é de CLT estrutural. Os equipamentos coletivos são de MLC (madeira laminada colada) e vedação de CLT. Busca-se uma construção racionalizada, sustentável e que preserva a relação afetiva dos moradores com a madeira.
lugar
mapa da cidade de são paulo
0
10
20km
distrito cidade tiradentes ocupação esperança vermelha
191
distrito cidade tiradentes ocupação esperança vermelha equipamento de saúde equipamento de educação equipamento de esporte equipamento de cultura linha 11 Coral da CPTM
cidade tiradentes: equipamentos e transporte
0
1
2km
192
ocupação esperança vermelha cobertura vegetal favelas, núcleos e loteamentos
cidade tiradentes: cobertura vegetal e ocupação informal
0
1
2km
193
cidade tiradentes: foto de satélite em 2020
0
1
2km
194
esperança vermelha em 2016
esperança vermelha em 2020
195
196
1
4
2
3
5
197
6
7
1 2
3 5 4 9
8
9
8
6 7
198
projeto
199
adequação viária
planta de situação
esc 1: 5.000
0
50
100m
APP (área de proteção permanente) nascente
201
conexões diretas não se a justam a topografia e invadem a APP
conexões que condizem com a topografia e criam uma área de preservação
202
planta de proposta viária
esc 1: 5.000
0
50
100m
203
gleba A - área de projeto área: 30.348m2 uso: habitação de interesse social 639 unidades habitacionais
gleba B área: 105.565m2 uso: parque de proteção ambiental
gleba C área: 29.635m2 uso: habitação de interesse social 771 unidades habitacionais
204
205
partido arquitetônico
• platô superior e inferior como cotas públicas • rua de pedestre na cota intermediária que corta o terreno longitudinalmente • transposições transversais vencendo a topografia acentuada
• vazio em frente ao platô superior para preservação da vista e uso público do anfiteatro e horta • arrimo do terreno seguindo as transposições onde os edifícios pousam seguindo a topografia • nivelamento do topo dos edifícios proporcionando uma cota livre de uso público. As la jes ligadas funcionam como ruas elevadas com comércio, feira livre e outros usos. • A estratégia das ruas elevadas também funcionam como rota de fuga e permitem fluidez e variados acessos às habitações
207
• a partir dos edificios implantados de estrutura metálica e vedações em CLT e a definição das ruas elevadas, um segundo corpo de edifícios de CLT esrutural pousa nos existentes para atingir a demanda de unidades preservando o vazio da cota das ruas elevadas
208
planta nível 791.5
209
5
5 791.5
5 791.5 5
5
5 4
791.5
3 791.5
2
1
1 2 3 4 5
quadra poliesportiva parquinho ciranda escola profissionalizante para mulheres comércio
esc 1: 1.000
0
10
20m
211
planta nível 799.9
799.9 1 799.9
1
799.9
2 1
7
799.9 5 799.9
6
2 2
1
1
799.9
799.9 4
791.5 3
6 5
1
791.5
3
3 2
1
791.5
1 2 3 4 5 6 7
unidade habitacional quintal circulação casa de acolhimento para mulheres escadaria horta rua de pedestres
esc 1: 1.000
0
10
20m
215
808.3
1 808.3 802.7 5
7
planta nível 808.3
802.7
799.9
4
4
3
808.3
2
1
6
808.3
808.3
808.3 1
799.9
4
1
4
808.3
799.9
1
3
1
2
791.5
1 3
791.5 808.3 1
791.5
1 2 3 4 5 6 7
rua elevada depósito para feirinha sanitários comércio anfiteatro para assembleia sala de estudos unidade habitacional
esc 1: 1.000
0
10
20m
219
1
8
5
4
3
808.3 813.9
6
811.1 7
1
802.7
813.9 1
planta nível 813.9
802.7
799.9
799.9
791.5 1
2
813.9 811.1
808.3
808.3
799.9
813.9
1
1 1
1
791.5 799.9
1
791.5
1 791.5
1 2 3 4 5 6 7 8
unidade habitacional sala de atividades barracão refeitório cozinha coletiva praça de equipamentos horta principal comércio
esc 1: 1.000
0
10
20m
223
3
2
808.3 813.9 7
1
802.7
3
planta de cobertura
802.7
799.9
799.9
791.5 3
811.1
808.3
808.3
799.9
3
1 3
1
791.5 799.9
1
791.5
1 791.5
1 2 3
cobertura edifício habitacionai cobertura equipamento painéis solares
esc 1: 1.000
0
10
20m
corte AA
A
827.9 825.1 822.3 819.5 816.7 813.9 811.1 808.3 805.5 802.7 799.9 797.1 794.3 791.5
esc 1: 500
0
5
10m
corte BB
A
827.9 825.1 822.3 819.5 816.7 813.9 811.1 808.3 805.5 802.7 799.9 797.1 794.3 791.5
esc 1: 500
0
5
10m
230
corte CC
231
A
827.9 825.1 822.3 819.5 816.7 813.9 811.1 808.3 805.5 802.7 799.9 797.1 794.3 791.5
esc 1: 500
0
5
10m
corte DD
A
827.9 825.1 822.3 819.5 816.7 813.9 811.1 808.3 805.5 802.7 799.9 797.1 794.3 791.5
esc 1: 500
0
5
10m
235
edifícios habitacionais • A circulação se dá por passarelas externas que conectam todos os edifícios e proporcionam uma relação de rua com os quintais. • A transposição vertical se dá por meio de escadas abertas e elevadores. A variedade de possibilidades de saída para cada apartamento e a cota pública que corta todos os edifícios garantem as rotas de fuga necessárias.
diagrama de circulação
studio 90 unidades 1 dormitório 80 unidades
G8 G10
G9
2 dormitório 401 unidades G4 G3
G6
G1
3 dormitório 69 unidades
G7 G2 G5
comércio • 31 unidades • 2 depósitos para apoio à feira livre equipamento • ciranda (G5) • escola profissionalizante para mulheres (G5) • casa de apoio para mulheres com 20 unidades e espaço comunal (G7)
esquema de distribuição das unidades pelos edifícios
237 G3
G2
G7
G1 G6
G5
G4
G10 G9
G8
G3
ac ess o
G6
acesso
3
1
2
7.00
7.00
7.00
7.00
7.00
7.00
planta G2 - rua elevada
1
planta G2 - 1º e 3º pavimento
2
3
4
3
5
5
11.00
2.50 7.00
1
0
5
239
G1
1.50
so es ac
7.00
7.00
7.00
7.00
7.00
7.00
84.00
1 acesso à sala de jogos | 2 stand de feira | 3 brechó
5
5
5
5
3
1
2
1 1 dorm | 2 duplex 2 dorm | 3 quitinete | 4 3 dorm | 5 2 dorm
esc 1: 250
0
2.5
5m
sistema construtivo placas solares cobertura de painél de CLT(madeira cruzada colada) com capa de concreto e impermeabilização caixa d’água de alumínio sobre apoio de concreto estrutura da cobertura em vigas e pilares de MLC (madeira laminada colada) calha metálica sobre arremate de sarrafo de madeira
unidades em CLT estrutural com varandas e quintais em estrutura metálica
la je de CLT com contrapiso de concreto guarda-corpo de CLT a judando no contraventamento dos pilares metálicos viga metálica de borda
unidades em estrutura metálica e vedação de CLT que funcionam como contraventamento da estrutura
isométrica de 1 módulo de habitação 7x7m
esquadrias de alumínio, vidro transparente em cima e vidro leitoso embaixo painel de CLT externo. E= 14cm ripas de fixação do revestimento externo placa cimentícia e impermeabilização
viga metálica. H=40cm pilar metálico. 20 x 30cm revestimento interno de placa de gesso painel de CLT interno. E= 10cm Lã de vidro para isolamento entre vizinhos la je em CLT com viga lateral de borda. contrapiso de concreto passarela em tela metálica la je de painel de CLT. E= 20cm guarda-corpo em tela metálica
esquadrias de alumínio, vidro transparente em cima e vidro leitoso embaixo painel de CLT externo. E= 14cm ripas de fixação do revestimento externo madeira ripada tratada e impermeabilização viga metálica para sustentar quintais e passarelas. A viga é engastada com parafusos na la je e parede externa de CLT e apoiada no pilar metálico. H=40cm pilar metálico. 20 x 30cm revestimento interno de placa de gesso painel de CLT interno. E= 10cm Lã de vidro para isolamento entre vizinhos passarela em tela metálica contrapiso de concreto la je de painel de CLT. E= 20cm guarda-corpo em tela metálica
explodida dos dois tipos de módulo estrutural
241
unidades
studio 27,5m2 90 unidades
1 dormitório 39m2 80 unidades
2 dormitórios 48,5m2 363 unidades
s
s
243
3 dormitórios 69,5m2 10 unidades
esc 1: 100
0
1
2m
244
duplex 2 dormitórios 62m2 38 unidades
245
duplex 3 dormitórios 97m2 59 unidades
esc 1: 100
0
1
2m
247
acesso G6
equipamentos
11
12
7.00
7.00
planta 1o e 2o pavimento casa de acolhimento para mulheres
799.9
11 799.9 1
4
5
2 3
planta térreo casa de acolhimento para mulheres
7
2.50
G4
1.50
so es ac
249
7.00
1
7.00
7.00
7.00
799.9
11
5
6
8
8
9
10
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
sala de dança/ioga/pilates espaço comum lavanderia sanitário clínica geral aconselhamento jurídico ginecologia psicologia refeitório cozinha coletiva estar externo quarto familiar
esc 1: 250
0
2.5
5m
7.00
7.00
7.00
7.00
7.00
813.9
2.00
813.9
7.00
6
5
11.00
2 4
7 6
1
2
3
3.00
11
813.9
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
despensa depósito sala das cozinheiras cozinha balcão de entrega de refeições sanitários refeitório barracão sala de estudos horta churrasqueira
planta praça de equipamentos
7.
251
.00
7.00
7.00
7.00
7.00
7.00
808.3
813.9
8
2
9
811.1 808.3
813.9
10
808.3
esc 1: 250
0
2.5
5m
252
2
808.3
808.3 3
3
4
808.3 1 808.3 811.1 811.1
808.3 808.3
planta biblioteca nível 808.3
planta biblioteca nível 811.1
1 2 3 4
sala de estudo/recreação pátio sanitário biblioteca
esc 1: 250
0
2.5
5m
253
corte EE
esc 1: 250
0
2.5
5m
254
isométrica praça de equipamentos
255
pergolado de ripas de madeira e vedação em vidro transparente cobertura de chapa de CLT (madeira laminada cruzada) com capa de concreto e impermeabilização
estrutura da cobertura de vigas de MLC (madeira laminada colada) calha metálica sobre arremate de sarrafo de madeira painéis móveis que dividem o ambiente pilares de MLC (madeira laminada colada) painéis de CLT pivotantes vedação superior de ripas de madeira arrimo de concreto la je de CLT com contrapiso de concreto parede de CLT revestida com madeira ripada escada de concreto
257
259
260
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