UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
LARISSA VICTORINO PEREIRA
ARQUITETURA DOS SENTIDOS: CENTRO CULTURAL SENSÍVEL AO ESPECTRO AUTISTA
Trabalho de conclusão de curso como requisito ao bacharel em Arquitetura e Urbanismo
ORIENTADOR: RAFAEL MANZO
SÃO PAULO 2020/2
Talvez aquela criança esteja tendo um ataque no meio do Walmart porque se sente como se estivesse dentro de uma caixa de som num concerto de rock. Você também não teria um ataque se estivesse dentro de uma caixa de som num concerto de rock? GRANDIN, PANEK, 2015
AGRADECIMENTOS Aos meus pais, ao meu irmão e a minha família por todo o apoio sempre. Aos meus falecidos avós e bichos que sempre me acompanham como amuletos da sorte. Aos meus amigos da faculdade por sofrerem comigo e aos de fora por aturarem minhas ausências nas entregas de projeto. À minha psicológa, pelo apoio profissional e pelas conversas sobre o autismo. Aos professores que me explicaram que a arquitetura pode ser muito mais que estrutura. E às pessoas do espectro por me ensinarem a ter mais sensibilidade.
RESUMO Essa tese se propõe a mostrar como a arquitetura pode auxiliar na vivência do espaço pelas pessoas do espectro autista a partir do desenvolvimento de um centro cultural. Primeiro, se define quais são as características desse distúrbio, para em seguida debater como a construção pode englobá-las. Após isso, estuda-se como executar uma arquitetura sensorial a fim de potencializar a experiência do usuário no espaço. Analisa-se quatro projetos, como referência arquitetônica, e o bairro Santana, local onde será implantado o instrumento público. Para a defesa da tese, apresenta-se peças gráficas do objeto projetual produzido. Palavras-chave: Transtorno do Espectro Autista (TEA), arquitetura para o autismo, arquitetura sensorial, arquitetura dos sentidos.
ABSTRACT This thesis intends to show how architecture can help the autistic spectrum to experience space, by developing a cultural center. First, defines what are the characteristics of this disorder, and then, the way construction can include them. After that, it is studied how to execute a sensory architecture in order to enhance the user experience in space. Four projects are analysed, as an architectural reference, and Santana district, where the public instrument will be implemented. To defend the thesis, graphic pieces of the project object produced are presented. Keywords: Autism Spectrum Disorder (ASD), architecture for autism, sensory architecture, architecture of the senses.
CRÔNICA Você está atrasado. Havia combinado de encontrar seu amigo no ponto do 1745 às dezoito horas e já são dezoito e treze. – Licença – você pede a mulher que está parada na frente da porta do vagão com uma sacola imensa. Ela está mandando um áudio e te olha confusa, mas sai do caminho. Você se espreme e consegue chegar à plataforma. Está quente. A diferença entre o vagão refrigerado e a estação é notável. Você caminha em zigzag cortando os outros usuários do metrô e chega à escada rolante. Desce os degraus pela esquerda rapidamente e xinga em sua mente um casal de adolescentes que está parado no meio do caminho. Precisa esperar atrás deles por uns vinte segundos até que a escada acaba e você passa a frente deles mostrando irritação. Atravessa as catracas e vira à direita, subindo a escada até o terminal de ônibus Santana. É nesse momento que seu celular vibra: Estou atrasado, devo demorar uns trinta minutos, quer me encontrar no center norte direto?
Você está prestes a digitar “sim”, não quer ficar esperando no ponto de ônibus, quando algo te distraí. Seu dedo para a meio caminho do botão verde e você olha para cima. Há um organismo novo a sua frente. Grande e iluminado. Você não lembra daquele edifício, será que é uma loja de roupas? Algumas pessoas estão na frente da sua visão e você tenta desviar delas para observar melhor. Seu telefone toca: – Recebeu minha mensagem? Eu ainda estou fazendo a baldeação em Pinheiros. – Em Pinheiros? Isso vai dar mais que meia hora. – Talvez... Vai indo pro shopping, a gente se encontra na frente do cinema? – O que é essa loja imensa aqui em Santana? – você pergunta, ainda tentando ver por cima das pessoas. – Loja? Não abriu nenhuma loja. Ah, você está falando do centro cultural? – Abriu um centro cultural aqui? – Sim, não tá sabendo? – Eu ando descendo no Tucuruvi... – Abriu. Estou entrando na amarela, meu sinal vai cair. No cinema, então? – Ah, acho que vou ver esse centro cultural, te espero aqui em Santana, pode ser? – Pod... A ligação cai.
Você finalmente consegue cruzar o mar de pessoas e observa o edifício. Não poderia ser uma loja mesmo, é todo de madeira, a não ser que fosse uma daquelas lojas cults da Vila Madalena. Mas na zona norte isso não existe. As janelas são triangulares e estão iluminadas pela luz do interior do prédio. Parecem vários olhos de uma aranha. Você percebe agora que a madeira é, na verdade, uma cobertura. Tem uma pista de skate embaixo, cheia de garotos e algumas garotas. Mas também tem um pessoal sentado em arquibancadas, conversando tranquilamente. Do outro lado, tem um ponto de ônibus e alguns comércios. Algumas pessoas que estão esperando o ônibus entram ali e saem com pães de queijo e coxinhas. Outras estão sentadas em mesas, tomando cerveja e comendo batata frita. Uma galera mais alternativa está dançando. Você atravessa a rua e chega na calçada do centro cultural. Consegue ver por baixo do prédio algumas árvores iluminadas e entra por esse caminho. Vê um carrinho de comida e compra uma água, fora do ar condicionado, a noite está realmente quente. No jardim, algumas crianças pulam e comem amoras direto do pé. Um menino está sentado na grama, suas mãozinhas vão repetidamente para frente e para trás, sentindo as folhas. Quando vira a cabeça para a esquerda, vê uma escada, já quase na rua lateral, você vai até lá e chega no andar superior. Ali na varanda tem mais gente aproveitando a noite. Seus olhos se fixam em dois velhinhos sentados em uma mesa de mãos dadas em silêncio. Você anda até a porta mais próxima e o ambiente muda. De repente, todo o ruído de pessoas some. O ambiente está em silêncio. Há várias casinhas de madeira perto de um vitral. Nelas, algumas pessoas jogam baralho, outras conversam, algumas parecem distantes, balançando os braços, ou girando, mas de tempos em tempos interagem com os outros. Do outro lado, há um sofá imenso, que chega até o teto e nele estão várias pessoas que não interagem entre si. Um homem de terno está de olhos fechados, uma mulher de vestido florido balança os dedos na frente do rosto e uma garotinha lê um livro sobre pássaros. Você sente seu corpo relaxar. No metrô, não percebeu o quanto estava andando rápido e falando alto. Mas aqui, você ouve o silêncio e começa a se movimentar com mais cuidado. Olhando antes de mudar seu pé de lugar, observando as cores e tentando entender o que é aquele material branco meio poroso que está no teto e nos móveis. Quando seus sentidos se reorganizam para esse lugar calmo, a cena muda. Você andou o suficiente e percebe que a próxima sala é bastante... singular. A noite estava quente e seca, você está vendo o teto, mas, de alguma forma, está chovendo ali dentro. Continua avançando e percebe que é uma espécie de chuveiro que percorre todo aquele ambiente. Está achando interessante, mas uma vozinha em sua mente pergunta como diabos você vai entrar ali sem se molhar? Nesse momento, porém, fica claro que a água não está só em cima,
mas embaixo da também. Uma piscina rasa cobre o chão. Você se vira para dar a volta pela varanda, mas a bolha em seu calcanhar protesta. Seu sapato até é confortável, mas você passou o dia todo andando de um lado para o outro. Você se imagina tirando seus sapatos, suas meias, enrolando suas calças e entrando na água. Percebe agora que não chove no centro, e você só molharia os seus pés. Enquanto está hesitante, a mulher de vestido florido tira as sandálias do seu lado e pisa na água imediatamente: – Você não vem? – ela pergunta antes de lhe virar as costas e percorrer a água até uma segunda mulher que ri para ela. Meio em dúvida, você ajusta as suas roupas e entra na água. O alívio é imediato. A temperatura é agradável, nem quente, nem fria demais. O piso sob a piscina é bem texturizado e faz uma massagem em seus pés cansados. Há um jato caindo ao lado da sua mão esquerda e você a estica até tocá-lo. A água que cai é mais quente que a de seus pés, curioso. O ruído da água caindo é tranquilizante. O cheiro dela te lembra sua infância. Você quer ficar ali por um bom tempo. Mas está curioso, o que pode haver nas próximas salas? Você sai da piscina e entra em um caminho de paredes de madeira. Seu pé está molhado e você ainda segura seus sapatos nas mãos. Vira à direita e encontra uma das janelas triangulares que viu de fora e... não há saída. Percebe que está em um labirinto. Erra o caminho mais três vezes até chegar em uma sala que tem as paredes meio alaranjadas. Um menininho está bem próximo delas e sorri. Dessa vez, você não hesita antes de imitá-lo. Fala “oi” bem pertinho da superfície e reage igual a criança quando sua voz permanece no ambiente por mais tempo do que você espera. Se sente, de repente, na privacidade do seu banheiro e se segura para não cantar sua música favorita. Vê, então, que a sua esquerda há outra sala, com o mesmo material branco poroso da primeira. Você se aproxima daquela superfície e repete “oi”, o som desaparece. Talvez tenha falado muito baixo, repete mais uma vez, mais alto, e de novo o som some. Estranho. Você passa seu dedo para lembrar do material e sua estranha característica. Sai da sala. Vê uma arquibancada a sua frente, mas percebe um corredor lateral ao labirinto que você não passou e vai até lá primeiro. Há três vãos em semicírculo, quando olha através deles, você vê o jardim onde as crianças ainda comem amoras. Vê também que, depois dele, há uma rua gramada com várias casas e deseja morar ali. Na arquibancada, há vários assentos coloridos. Você senta em um amarelo, meio plástico, para observar o ambiente. Ao seu lado um adolescente está sentando em um azul, de algodão. E mais para frente, uma senhora senta em um roxo, de seda. Há mais janelas triangulares a direita e você vê novamente a cobertura de madeira. Sabe
que aquele ambiente é o último. A esquerda, há um vitral imenso, em azul, laranja e roxo, que dá vista ao jardim. No meio, há uma exposição da Tarsila em cavaletes que parecem aqueles do MASP... Mas há algo diferente, as pessoas ligam e desligam interruptores, jogando luzes coloridas nos quadros. Seu celular toca: – Cheguei, estou aqui na pista de skate, onde você está? – Estou indo aí. Você desce por uma escada lateral à arquibancada e sai pela porta. Seu amigo está ao lado dos skatistas, com o celular na mão e aparentando cansaço. Ele não olha para você, mas para um canteiro a seus pés. – Olá – você diz. – Isso é hortelã? Você se agacha ao lado do canteiro e cheira. – Acho que sim. – Desculpa o atraso, a Luz encrencou de novo. Fiquei uns vinte minutos para mudar de linha. – Tudo bem, você ainda quer ir no cinema? – Não é pra isso que viemos? – Sim, eu sei. Mas ninguém aguenta mais uma sequência de Vingadores, não é? – O que você sugere, então? Espera, por que seus sapatos não estão nos seus pés? – Eu tenho uma ideia – você diz, ignorando suas perguntas e o puxando para dentro do edifício.
LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Implantação The Center for Discovery FIGURA 2 – Planta The Center for Discovery FIGURA 3 – Vista aérea The Center for Discovery FIGURA 4 – Fotografia edificação The Center for Discovery FIGURA 5 – Fotografia edificação The Center for Discovery FIGURA 6 – Fotografia edificação The Center for Discovery FIGURA 7 – Fotografia edificação The Center for Discovery FIGURA 8 – Fotografia edificação The Center for Discovery FIGURA 9 – Vista aérea Shrub Oak FIGURA 10 – Imagem 3D Shrub Oak FIGURA 11 – Diagrama Shrub Oak FIGURA 12 – Diagrama Shrub Oak FIGURA 13 – Fotografia Praça das Artes FIGURA 14 – Implantação Praça das Artes FIGURA 15 – Implantação Praça das Artes FIGURA 16 – Diagrama de volumes Praça das Artes FIGURA 17 – Diagrama de volumes Praça das Artes FIGURA 18 – Corte longitudinal Praça das Artes FIGURA 19 – Fotografia Praça das Artes FIGURA 20 – Fotografia Praça das Artes FIGURA 21 – Fotografia Praça das Artes FIGURA 22 – Fotografia Praça das Artes FIGURA 23 – Fotografia Catedral de Brasília FIGURA 24 – Fotografia Catedral de Brasília FIGURA 25 – Fotografia Catedral de Brasília FIGURA 26 – Corte Catedral de Brasília FIGURA 27 – Planta Catedral de Brasília FIGURA 28 – Fotografia Catedral de Brasília FIGURA 29 – Fotografia Catedral de Brasília FIGURA 30 – Fotografia Fazenda de Santana FIGURA 31 – Fotografia Santana em 1920 FIGURA 32 – Fotografia Santana em 1920 FIGURA 33 – Fotografia Santana em 1925
57 57 58 58 58 58 59 59 59 60 60 61 62 62 62 62 62 63 63 63 63 63 64 64 64 65 65 65 65 69 71 71 72
FIGURA 34 – Quadras imediatas a Estação Santana antes de sua implantação FIGURA 35 – Metrô Santana em 1976 FIGURA 36 – Metrô Santana em 2020 FIGURA 37 – Localização e Situação do projeto FIGURA 38 – Sistema viário imediato ao projeto FIGURA 39 – Uso do solo imediato ao projeto FIGURA 40 – Ocupação do solo imediato ao projeto FIGURA 41 – Render projeto FIGURA 42 – Visão serial imediato ao projeto FIGURA 43 – Diagramas FIGURA 44 – Render entorno FIGURA 45 – Render muxarabi FIGURA 46 – Render marquise FIGURA 47 – Render noturno FIGURA 48 – Render viela FIGURA 49 – Render jardim FIGURA 50 – Implantação FIGURA 51 – Planta térreo FIGURA 52 – Planta superior e Corte AA FIGURA 53 – Planta cobertura e Corte BB FIGURA 54 – Elevações FIGURA 55 – Silêncio FIGURA 56 – Tátil FIGURA 57 – Tátil FIGURA 58 – Labirinto e Reverberação FIGURA 59 – Visão FIGURA 60 – Visão FIGURA 61 – Visão
72 73 73 74 75 76 77 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 103
SUMÁRIO INTRODUÇÃO 21
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. Transtorno do Espectro Autista (TEA) 22 1.1. O que é o autismo? 23 1.2. Por que o autismo é um espectro? 26 1.3. Causas do autismo 28 1.4. Histórico do autismo 28
2
. Arquitetura direcionada ao TEA 30 2.1. Como a arquitetura influencia no autismo? 31 2.2. Quais são as diretrizes para essa arquitetura? 32 2.3. Como aplicar na escala pública? 36
3
. Arquitetura dos sentidos 40 3.1. O que é o espaço? 41 3.2. Como o espaço é lido? 42 3.3. Sentidos 48 3.4. Relação com a arte 53 . Estudo de casos / Referências arquitetônicas 56 4.1. The Center for Discovery - Turner Brooks 57 4.2. Shrub Oak Internacional – H2M 59 4.3. Praça das Artes - Brasil Arquitetura + Marcos Cartum 62 4.4. Catedral de Brasília – Oscar Niemeyer 63 4.5. Referências arquitetônicas 65
4 5
. O bairro de Santana 68 5.1. Histórico 69 5.2. O local hoje 72 5.3. Inserção urbana 74 5.3.1. Localização e Situação 74 5.3.2. Sistema Viário, Uso e Ocupação do Solo 75
6
. O espaço cultural 78 6.1. Inserção 79 6.2. Partido 80 6.3. Programa 80 6.4. Peças Gráficas 81 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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INTRODUÇÃO A presente pesquisa tem como finalidade o projeto de um centro cultural que englobe as particularidades do espectro autista a partir da exploração sensorial. Proporcionando, assim, uma melhora direta à experiência de todos os usuários (inclusive os neurotípicos). É implantado no bairro de Santana, no lote imediatamente a frente do metrô e do terminal de ônibus. De maneira a possibilitar uma permanência qualitativa nesse centro conturbado da zona norte de São Paulo. Muito se fala a respeito da acessibilidade, mas qualquer característica humana que se diferencie do que foi pautado como “normal” ainda permanece esquecida pela maioria dos projetos. “Acessibilidade” se tornou “rampas e pisos táteis”, mais uma norma do que de fato uma maneira de incluir o outro. O autismo é reconhecido a muito menos tempo e é muito mais variável, a maioria dos arquitetos nem mesmo sabe que a arquitetura deve incluí-los. Um grande número de pessoas com deficiência ou distúrbios ainda evitam lugares públicos porque estes não os contemplam, tornando uma atividade que deveria ser aprazível, incômoda e desgastante. Até quando será aceitável que tais pessoas fiquem de fora do coletivo? Para a autora, fazer espaços públicos universais deveria ser o ponto mais importante de qualquer projeto, quase mais importante que a estrutura. De que adianta um edifício se as pessoas não conseguem utilizá-lo de maneira adequada? Quanto ao viés sensorial, já é tempo de constatar que o visual é apenas uma pequena parte da arquitetura e que, esta, poderia promover uma experiência muito maior se focasse também nos outros sentidos. O objetivo desse trabalho é entender de que maneira a arquitetura pode auxiliar o espectro autista. Seja apenas como um invólucro seguro ou como um ambiente que se propõe a esclarecer e explicar questões sensoriais e espaciais a estes indivíduos que costumam ter dificuldades em compreendê-los. Também se procura pautar como construir espaços públicos que possam incluir a todos. Até porque, mesmo dentro dos indivíduos do autismo já há um grande leque a ser compreendido, uma vez que é um espectro e cada indivíduo não é igual ao outro. Portanto, a pesquisa se firmou em grandes autores para compreender como chegar a este propósito. Primeiro, discute-se quais são, de fato, as características do autismo e qual é a sua relação com os sentidos. Depois, estuda-se de que forma vem se empregando a arquitetura ao TEA. E então, o que de fato é um espaço sensorial e como fazê-lo. Ainda se estuda alguns projetos de relevância ao tema e as particularidades do bairro de Santana. Até que, depois dessas considerações, apresenta-se o objeto projetual.
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1
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TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA)
Pergunta 29: Por que você faz coisas que nós não fazemos? Seus sentidos funcionam de forma diferente? [...] Se falam que os sentidos de alguém “funcionam de um jeito diferente”, isso significa que o sistema nervoso dessa pessoa está funcionando mal de alguma forma. Mas eu acho que não existe nada de errado com os nossos nervos. Em vez disso, na verdade são as nossas emoções que provocam essas reações anormais. É natural que quem está aprisionado num lugar ruim tente escapar, e é o meu próprio desespero que me faz interpretar de forma equivocada as mensagens que meus sentidos estão me enviando. [...] Mesmo quando estamos em pleno ataque de pânico, os outros não percebem o que está acontecendo conosco ou só nos mandam parar de chorar. Imagino que o desespero que sentimos não tem para onde ir e, por isso, preenche nosso corpo por inteiro, tornando nossos sentidos cada vez mais confusos. (HIGASHIDA*, 2007, p. 54)
* Naoki Higashida escreveu, com apenas treze anos, ensaios que foram compilados no livro “O que me faz pular”, em 2007. Ele está no espectro autista e é não verbal, mas se comunica perfeitamente através da escrita, apontando letras em uma prancha de alfabeto e no teclado do computador. Já publicou diversos livros de ficção e não ficção e ganhou prêmios literários.
No último século houve um grande avanço nas pesquisas sobre o cérebro e a mente. O Autismo passou por muitas significações e ressignificações. Longe de ter todas as respostas, agora já há informações o suficiente para entender, acolher e auxiliar o desenvolvimento desses indivíduos.
1.1.
O que é o autismo?
Para definir as características desse distúrbio, começa-se analisando a definição de psiquiatras brasileiros que tratam pessoas com essa condição, são eles Ana Beatriz Barbosa Silva, Mayra Bonifácio Gaiato e Leandro Tadeu Reveles que se uniram para escrever o livro “Mundo Singular – Entenda o autismo” em 2012, com o objetivo de desmitificar a síndrome e instruir pais com filhos que receberam o diagnóstico. Eles definem que o autismo é um Transtorno Global do Desenvolvimento e se manifesta até os três anos de idade. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), acomete 70 milhões de pessoas no mundo, ou seja, é mais comum que o câncer, a AIDS e o diabetes. Se trata de um conjunto de sintomas que afetam a socialização, a comunicação e o comportamento. “Não devemos nos deter nas suas dificuldades, mas sim viabilizar as potencialidades, sempre visando a independência, autonomia, socialização e autorrealização.” (SILVA, GAIATO, REVELES, 2012, p. 7) Frisa-se também a necessidade de acompanhar os marcos de desenvolvimento da primeira infância, para diagnóstico e correção de qualquer possível disfunção, que é quando os sinais começam a aparecer. Tais psiquiatras as subdividem em três categorias. A primeira é a disfunção social que se caracteriza por dificuldades na qualidade da interação, falta de contato visual, dificuldade em compartilhar momentos ou interesses, falha na antecipação de movimentos, maior interação com objetos ou animais do que pessoas, “usam” pessoas de convívio próximo para demonstrar o que desejam e/ou risadas fora de contexto como tentativa de interação. Eles buscam o contato social, mas não sabem como mantê-lo. “É importante frisar que, para essas crianças, ficarem isoladas não é exatamente uma opção, mas sim uma necessidade, pois o contato social lhes parece invasivo e ameaçador.” (SILVA, GAIATO, REVELES, 2012, p. 12) Já a disfunção da comunicação apresenta dificuldade no desenvolvimento da linguagem falada, ecolalia, dificuldade para criação de cenários imaginários, referem-se a si mesmos na terceira pessoa, dificuldades de compreensão de duplos sentidos, dificuldades para mentiras, autoalfabetização (hiperlexia) e/ou discurso monotônico (sem enfatizações). Por fim, nas disfunções comportamentais há interesses restritos, apego a rotina, movimentos estereotipados ou repetitivos, valorização da parte pelo todo, hipersensibilidade ao toque, movimentação contínua (hipercinesia), medo de mudança, autoagressão, estimulação vestibular 23
(que alteram o equilíbrio do corpo, como balanço ou giro), fascínio por água, aversão a barulhos altos (fonofobia), aversão a luz excessiva (fotofobia), períodos curtos de atenção, instabilidade de humor, dificuldade para dormir, habilidades específicas, gosto por música, dificuldade em atividades da vida diária, pensamento concreto, dificuldade na coordenação motora fina e coordenação motora rígida, toleram extremos de dor, fome e temperatura e/ou organização de objetos. De forma geral, os movimentos têm por objetivo a autoestimulação, porém, na grande maioria das vezes, a agitação exacerbada ou excesso de movimentos não tem função. O prazer está na agitação em si. A criança com autismo faz o movimento pelo movimento. (SILVA, GAIATO, REVELES, 2012, p. 19)
Há também uma grande divulgação da mídia para os indivíduos do espectro com grandes capacidades em áreas específicas. Essa não é, porém, uma habilidade comum a todos que possuem o transtorno. A obsessão por assuntos específicos unida a atenção voltada aos detalhes e o hiperfoco se traduz em um hiperfuncionamento em áreas específicas do cérebro em detrimento de outras. Possibilitando, assim, algumas pessoas com esse desenvolvimento serem consideradas “gênios” em certa coisa. São chamados de Savants, que significa “sábios” em francês. Muitas vezes, esse hiperfuncionamento em uma área acaba descompensando outras, que ficam sem a atenção necessária. O tratamento costuma buscar uma dedicação mais igualitária, pois é mais importante a estabilidade geral do que um grande conhecimento de carros e uma fraca capacidade de socialização, por exemplo. Como psiquiatras, os autores em questão encontram-se como os responsáveis pelo diagnóstico e, dessa forma, se detém (e devem se deter) a maneira como o distúrbio é exteriorizada. Em contrapartida a esta visão temos a opinião de Temple Grandin. Temple Grandin é norte-americana e é uma das pessoas mais influentes com autismo atualmente, o seu caso é de alto funcionamento. Ela revolucionou os abatedores de gado ao humanizá-los, entendendo as aflições dos animais*. Escreveu “O Cérebro Autista” com Richard Panek, jornalista, em 2013. No livro, ela compara sua própria vivência com o desenvolvimento das pesquisas sobre o tema, sempre sob a sua percepção de bióloga. Sua preocupação principal é que muitos desses diagnósticos são feitos a partir do relato de pais e cuidadores que testemunham a resposta da criança, mas não a sua causa. Assim, Grandin comparou sua experiência com alguns relatos de crianças com autismo não-verbais que conseguiram se expressar através de tablets e concluiu que sua causa é, na verdade, o excesso de estímulo. Isso também ajuda a compreender que essas pessoas não estão alheias ao mundo, apenas “vivem * Temple Grandin desenhou um abatedor que não fizesse os animais sofrer desnecessariamente. Sua ideia é que o espaço seja suficiente para que eles saibam o caminho que precisa ser percorrido – seja para tomar banho ou andar até a próxima ala – sem o uso de violência para empurrar os animais
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tamanha confusão de sensações que não conseguem experimentar o mundo exterior de modo produtivo, muito menos expressar sua relação com ele.” (GRANDIN, PANEK, 2013, p.342) Defendendo, então, que a forma com que os sentidos são interpretados no cérebro autista é decisiva para sua conexão com o espaço. Ela considera os cinco sentidos como as únicas maneiras que o universo pode se comunicar conosco, definindo, assim, a realidade para cada um de nós. Em um grupo de indivíduos em que essas funcionam normalmente, a realidade sensorial comum do grupo deve ser a mesma e os permitirá interpretar de forma bastante confiável todas as informações que precisam para sobreviver. O que acontece com as pessoas que tem transtornos sensoriais é que a informação é captada corretamente para os sentidos, mas não é processada e entendida adequadamente. (GRANDIN, PANEK, 2013, p.290-292): Refiro-me ao cérebro. E se você receber a mesma informação sensorial que os outros, mas seu cérebro interpretá-la de um modo diferente? Então, sua experiência do mundo ao redor será a experiência dos outros, mas talvez de um modo doloroso. Neste caso, você vive literalmente em uma realidade alternativa — uma realidade sensorialmente alternativa.
Grandin declara que nove entre dez autistas têm pelo menos um distúrbio sensorial. Além disso, esses também afetam metade das crianças neurotípicas. Dessas, uma em cada seis são afetadas em seu cotidiano pelo fenômeno e uma em cada vinte deveria ser diagnosticada com transtorno de processamento sensorial – já que o diagnóstico traria o tratamento adequado e dispensaria o sofrimento desnecessário. Ainda assim, a autora se surpreende em como essa questão é pouco abordada por neurocientistas e geneticistas que pesquisam o TEA, como defende a seguir (GRANDIN, PANEK, 2013, p.300-303): Suspeito que os pesquisadores simplesmente não entendem a urgência do problema. Eles não conseguem imaginar um mundo onde roupas que pinicam o fazem sentir-se pegando fogo, ou onde uma sirene soa “como se alguém estivesse perfurando meu crânio com uma furadeira”, como alguém descreveu. A maioria dos pesquisadores não consegue imaginar uma vida em que cada situação nova, ameaçadora ou não, vem com uma descarga de adrenalina, como um estudo indica suceder com muitas pessoas com autismo. Porque a maioria dos pesquisadores são pessoas normais, criaturas sociais, então, do ponto de vista deles, faz sentido se preocupar em socializar autistas. E faz, até certo ponto. Mas como socializar pessoas que não toleram o ambiente onde devem se mostrar sociáveis — que não têm prática de reconhecer os significados emocionais das expressões faciais em ambientes sociais porque não podem frequentar um restaurante? Como outros pesquisadores, os estudiosos do autismo querem resolver os problemas causadores de mais danos, mas acho que não percebem o quanto a sensibilidade sensorial pode ser prejudicial.
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Essa demanda de Grandin é mais uma solicitação a pesquisadores do cérebro (neurologistas) do que da mente (psiquiatras e psicólogos). Já que o que se observa com os relatos de Silva, Gaiato e Reveles é que eles entendem sim a urgência do problema, sua atenção na resposta e não na causa se deve principalmente ao tipo de terapia comportamental que aplicam. Segundo eles, tal metodologia se mostrou muito mais beneficiadora para o tratamento do autismo do que as demais. Mas por que isso acontece? A Terapia Cognitivo Comportamental, também chamada de TCC, tem um foco nas crenças disfuncionais, como afirma Silva Júnior (2019), que nada mais são do que resultado de uma atividade anterior que foi processada no seu subconsciente de maneira equivocada e com pressupostos específicos. Toda vez que esses eventos [grupo de eventos referentes a crenças básicas] são percebidos pelos nossos sentidos, os esquemas são ativados, as crenças eclodem e geram pensamentos e atribuições imediatas consoantes a elas. São esses componentes cognitivos que alteram o nosso humor, deflagram as sensações que atingem o organismo (mudam a fisiologia) e determinam o comportamento que adotamos referentes a cada estímulo situacional. (SILVA JÚNIOR, 2019, grifo nosso)
Em outras palavras, o ponto de partida para esse tratamento está em mapear a conclusão do indivíduo sobre algo – que não é a causa, mas sim a consequência – e “detectar, analisar e modificar esses pensamentos automáticos e crenças, oferecendo uma forma mais adaptativa de pensar e ver as coisas, as ocorrências cotidianas. Quando o paciente aprende a identificar e corrigir seus pensamentos disfuncionais, normalmente o seu humor melhora e as suas atitudes perante a vida ficam mais adequadas e otimistas.” (SILVA JÚNIOR, 2019, grifo nosso) Em suma, esse tipo de terapia procura entender o indivíduo e acaba tratando os desdobramentos gerados pelo transtorno do processamento sensorial. A principal diferença é conceitual. Grandin coloca o processamento sensorial como a grande causa de todos os sintomas, enquanto Silva, Gaiato e Reveles separam essa causa em Disfunção Social, da Comunicação e Comportamental e ela sim geraria as dificuldades sensoriais. Enquanto se aguarda que os neurocientistas possam bater o martelo se quem nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha, o tratamento, felizmente, permanece eficaz.
1.2.
Por que o autismo é um espectro?
Nesse momento da dissertação já foi falado de “alto funcionamento”, “autismo não-verbal”, mas o que elas significam afinal? Por que o autismo é um espectro? Quando esse termo é utilizado significa dizer que os sintomas e sua gravidade são variáveis e escalonáveis. Do mais leve ao mais severo temos: traços do autismo, Síndrome de Aspenger, autismo de alto funcionamento e autismo clássico ou grave. (SILVA, GAIATO, REVELES, 2012) Existem crianças com problemas mais severos, que praticamente se isolam em um mundo im-
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penetrável; outras que não conseguem se socializar com ninguém; e aquelas que apresentam dificuldades muito sutis, quase imperceptíveis para a maioria das pessoas, inclusive para alguns profissionais. (SILVA, GAIATO, REVELES, 2012, p. 11)
No caso mais leve, onde o diagnóstico por vezes nem pode ser fechado, o principal sintoma é a dificuldade para interpretar dicas sociais. No Aspenger, há prejuízos na socialização, rotinas e rituais. No autismo de alto funcionamento há atraso na linguagem, dificuldade de interação social e dificuldades comportamentais. A Associação Psiquiátrica Americana (APA) pretende tornar os dois últimos como autismo de alto funcionamento, devido a sua alta semelhança, caindo assim, o termo Aspenger. No autismo clássico temos dificuldades cognitivas e de independência, não tentam compartilhar momentos, apresentam bastantes movimentos repetitivos e, muitas vezes, são não verbais. Destaca-se que as pessoas com autismo têm sentimento e empatia. O estigma criado sobre serem frios deve-se apenas a dificuldade que eles têm em expressar seus sentimentos. Depois que se estabelece o grau de manifestação do transtorno, alguns profissionais costumam-se diferenciá-los pelo tipo de resposta que oferecem (GRANDIN, PANEK, 2013) em três categorias: Busca Sensorial (indivíduos que buscariam o tempo todo o estímulo sensorial de alta intensidade), Alta Responsividade Sensorial (indivíduos extrassensíveis a muitos estímulos) e Baixa Responsividade Sensorial (indivíduos que quase não respondem a estímulos comuns). Grandin porém, acredita que essa divisão não seja muito correta. Ela vê a alta e a baixa responsividade como dois resultados para uma mesma causa, que de novo é a superestimulação. Ela traz dois artigos que corroboram essa ideia, que seria a segunda forma, uma alternativa, para classificá-los. Um, da Frontiers of Neuroscience (2007), defende a “Síndrome do Mundo Intenso”, onde o excesso de processamento neural tornaria o mundo dolorosamente excessivo e eles recorreriam a rotinas comportamentais repetitivas para encontrar o familiar. O outro artigo, da Neuroscience and Behavioral Reviews (2009), defende que eles viveriam “em um mundo que muda rápido demais”, resultando nos mesmos comportamentos. De qualquer forma, a origem é a mesma: um altíssimo estímulo sensorial. Então, Grandin considera mais razoável dividir as pessoas do espectro de acordo com o sentido com que têm mais dificuldades sensoriais, já que se costuma ser bastante variável. Um indivíduo pode ter uma forte aflição a ruídos altos enquanto o outro não suporta tocar a areia, por exemplo. Assim, teríamos: Problemas de Processamento Visual (dificuldades com refração e brilho, dificultando que a pessoa consiga se concentrar em outras coisas além deste fenômeno), Problemas de Processamento Auditivo (dividido em subitens: Input de linguagem – dificuldade de encontrar sentido nas palavras; Output de linguagem – entende as palavras, mas tem dificuldade de repro27
duzi-las; Lentidão na mudança de atenção – dificuldade de se concentrar após um som repentino; Hipersensibilidade ao som – sobressalto com altos ruídos ou dificuldade de interpretar múltiplos sons*), Sensibilidade Tátil (materiais específicos que são muito estimulantes ao tato) e Sensibilidade Olfativa e Gustativa (cheiros e gostos específicos muito estimulantes).
1.3.
Causas do autismo
1.4.
Histórico do autismo
A causa do autismo permanece indefinida. Hoje, muitos estudos nessa questão já foram feitos, mas nenhum foi conclusivo. Segundo Silva, Gaiato e Reveles (2012), a genética ainda é a mais provável, mas os fatores ambientais também podem deflagar o seu surgimento. Tentou-se definir uma única parte do cérebro com qualidades irregulares que seria a responsável por todos os sintomas, mas ainda não foi possível identifica-la. Por outro lado, estudos mostram que os neurônios dessas pessoas podem ter funcionamento comprometido, assim como os neurotransmissores. Também há uma tendência para que seus cérebros sejam mais volumosos e olham mais para a boca do que para os olhos das pessoas ao redor. Ainda assim, todas essas evidências costumam oscilar bastante entre cada pessoa e não é possível nenhum tipo um diagnóstico laboratorial, apenas a análise clínica, principalmente por psiquiatras e psicólogos. (SILVA, GAIATO, REVELES, 2012) Distúrbios não visíveis costumam possuir uma longa trajetória de preconceito e tratamentos equívocos. Felizmente, nos últimos cinquenta anos essa tendência vem diminuindo à medida que as pesquisas sérias e éticas avançam. O termo “Autismo”, do grego, significa “voltar-se a si mesmo”. Essa expressão foi utilizada pela primeira vez pelo psiquiatra austríaco Eugen Bleuler, em 1911, para descrever o isolamento social das pessoas com esquizofrenia. (SILVA, GAIATO, REVELES, 2012) Em 1943, Leo Kanner, psiquiatra infantil austríaco, publica um estudo identificando pessoas com isolamento, apego a rotina, preferência por objetos, ecolalia e inversão pronominal. Erroneamente, ele culpava o comportamento das crianças a “frieza da mãe”. Em 1944, Hans Asperger, pesquisador austríaco, publica seu doutorado sobre a “psicopatia autística infantil”. Ele estudou quatrocentas crianças com: falta de empatia, baixa capacidade de fazer amizades, monólogo, hiperfoco, dificuldade de coordenação motora. Ele chamava essas crianças de “pequenos mestres”, elas possuíam um grau de autismo mais brando e depois seriam reconhecidas como “Síndrome de Aspenger”. * Mesmo nos casos de Problemas do Processamento Auditivo, a música costuma ser sempre explorada para terapia com bastante sucesso.
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Em 1960, Lorna Wing, psiquiatra inglesa, tem uma filha no espectro e produz conteúdo sobre o assunto, definindo os sintomas, e traduz os textos de Aspenger, popularizando a teoria. Ainda na mesma década, Ole Ivar obtém sucesso ao tratar crianças autistas com terapia comportamental. Apenas na década de oitenta, o autismo deixa de ser considerado uma psicose ou parte da esquizofrenia para ser considerada uma síndrome ou distúrbio do desenvolvimento. Há uma evolução notável na pesquisa do autismo, configurando que sempre as melhores informações da área serão as mais atuais. Hoje, já é possível realizar um tratamento adequado desses indivíduos e definir medidas que os ajudem a serem inseridos no coletivo de maneira eficaz. No entanto, essa área ainda possui muitos caminhos a serem percorridos e a exploração do assunto não pode ser interrompida, e sim, deve continuar progredindo.
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.
ARQUITETURA DIRECIONADA AO TEA
Pergunta 27: Por que as pessoas com autismo costumam cobrir os ouvidos? É quando há muito barulho? Existem certos ruídos que vocês não percebem, mas que nos incomodam bastante. O problema é que vocês não entendem como esses sons nos afetam. Não é bem pelo fato de que o barulho nos dá nos nervos. Tem mais a ver com o medo de que, se continuarmos a ouvir, perderemos toda a noção de onde estamos. Nesses momentos, sentimos como se o chão estivesse tremendo, como se tudo ao redor de nós estivesse vindo em nossa direção, e isso é muito apavorante. Então, para nós, cobrir os ouvidos é uma forma de nos protegermos e recuperarmos a consciência do lugar onde estamos. [...] Acho que alguns podem superar o problema se acostumando aos poucos com esses ruídos. O que importa mesmo é que precisamos nos sentir seguros quando somos atacados por esses sons. (HIGASHIDA, 2007, p. 52)
A crescente conscientização a respeito do Transtorno do Espectro Autista está começando a abrir frentes em diversas áreas de discussão. Uma delas acontece no ramo da arquitetura, já que o espaço e o entorno influenciam substancialmente nas vivências desses indivíduos.
2.1.
Como a arquitetura influencia no autismo?
O ambiente construído, ou seja, a acústica, o caráter visual, a qualidade espacial, a cor, a textura e a geometria, em ressonância com o comportamento humano geral influencia na produtividade, na eficiência e no conforto dos indivíduos, principalmente quando considerado um design sensível e específico. Isso é o que defende Magda Mostafa. Mostafa é uma arquiteta egípcia com Ph.D. em Autismo na Arquitetura. Ela já desenvolveu inúmeros artigos e projetos a partir do index que criou para essa área. Seu trabalho já foi utilizado em grande parte de cinco continentes, de acordo com seu website. Ela busca desenvolver linhas guia para uma arquitetura para o autismo, criando uma matrix de design que organizaria as características sensoriais do ambiente construído com o espectro de distúrbios encontrados no autismo. Ao entender os mecanismos desse distúrbio e as consequentes necessidades do usuário autista, esse ambiente pode ser projetado favoravelmente para alterar a entrada sensorial e talvez modificar o comportamento autista ou, pelo menos, criar um ambiente propício ao desenvolvimento e aprendizado de habilidades. (MOSTAFA, 2008, p.191, tradução nossa)
As intervenções para o autismo na arquitetura costumam lidar com a função sensorial, já que estudos mostram que o cuidado com este pode beneficiar as pessoas do espectro, que costumam ter dificuldades de interpretar os sentidos. Ela acredita que ao pensar o espaço com base em suas necessidades específicas pode melhorar o comportamento dos usuários e ajudar a desenvolver suas habilidades. A arquitetura, enquanto área geral, costuma observar padrões socioculturais de indivíduos neurotípicos para criar. Mostafa procura fazer o mesmo para o espectro, adotando padrões característicos dessas pessoas como ponto de partida. Outra forma, é estudar aspectos mais singulares do espectro para adotar medidas arquitetônicas, como faz Helena Rodi Neumann. Ela é uma arquiteta brasileira que desenvolveu em 2017 seu doutorado, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, intitulado “Projeto acústico para transtornos sensoriais”. Nele, ela disserta sobre como a arquitetura e o tratamento acústico dos edifícios podem facilitar a adaptação, principalmente, de crianças sensíveis à estímulos no ambiente escolar. Ela começa sua tese com a hipótese de que, sendo a hipersensibilidade sonora a mais recorrente entre os indivíduos do espectro autista, qualificar o espaço no que diz respeito a acústica corroboraria positivamente em seu aprendizado. Buscando, então, diminuir o impacto dos sons 31
que irritam e potencializar os sons estimulantes, melhorando a inteligibilidade da fala. [...] Em síntese, estes [as pessoas com TEA] não percebem o mundo da mesma forma que indivíduos com desenvolvimento típico. Por isso, é necessário começar a pensar em ambientes com espaços arquitetônicos mais apropriados para pessoas com deficiências sensoriais, visando permitir uma maior independência, evitar irritações gratuitas, além de ajudar no desenvolvimento e aprendizagem. (NEUMANN, 2017, p.22)
Destaca-se que a hipersensibidade ao som pode ser tão alta a ponto de impedir a independência de seus usuários na sociedade. O tratamento sonoro, se aplicado corretamente, pode evitar que isso aconteça. Ela faz um levantamento através de questionários respondidos por pais do espectro para identificar quais sons mais incomodam ou atraem seus filhos, a amostragem de crianças incluía unicamente indivíduos de alto funcionamento. Dos entrevistados, 78% possui sensibilidade sonora. Os sons votados como mais irritantes são fogos de artifício, liquidificador, gritos, choros de bebê, aspirador de pó e explosão de bexiga. Percebe-se que são sons intensos, provenientes, em sua maior parte, de máquinas ou aflições humanas. Por outro lado, os que mais agradam são músicas, palmas, água corrente e canto de pássaros. São sons moderados, onde o contato social não foi imposto, provenientes da natureza e de incentivo. Em sua maioria, sons intensos e/ou abruptos são mais desestabilizadores. Assim, quando se compreende que o ambiente circundante e a quantidade de sentidos que este absorve – ou não – influencia diretamente no bem estar das pessoas do espectro, fica muito claro entender aonde a arquitetura é relevante para aliviar suas aflições.
2.2.
Quais são as diretrizes para essa arquitetura?
Quando Mostafa começa a escrever sobre esse campo, sendo uma das pioneiras, ela decide testar ideias em uma sala de aula. Dessa maneira, suas teorias iniciais são imediatamente postas a prova. E, a partir do seu sucesso ou fracasso, ela consegue evoluir no seu index. Assim, ela testa alguns valores acústicos (uma sala para terapia falada com ruído de 52 dB e 57% de eco) e um conceito que ela chama de “sequenciamento espacial”. Para este último, o layout de uma sala de aula foi organizado para promover o sentimento de rotina. As atividades foram divididas em “estações”, sendo uma delas o “espaço de fuga”, outro conceito onde o estímulo é levado ao mínimo para aliviar os usuários da superestimulação. Além disso, ela cria um espaço previsível. Este possibilitaria que houvesse dispêndio de energia desnecessário, possibilitando que os usuários do espectro possam aprender habilidades essenciais nesse ambiente, para então depois serem capazes de reproduzi-las fora do ambiente controlado. Essas estações estão criando ambientes compartimentalizados que diminuem as distrações 32
visuais, ensinando o indivíduo a se concentrar. O resultado do teste mostrou um aumento de atenção, diminuição de tempo de resposta e melhor temperamento nas crianças. Combinados, podem aumentar as habilidades e desenvolvimento dos indivíduos do espectro. Foi observado que limitando a extensão do espaço, psicológica e visualmente, e ajustando os componentes sensoriais, por um período de tempo, permitiu que as crianças permanecessem focadas em suas atividades. Isso criou uma janela de oportunidade muito importante para o desenvolvimento de habilidades. (MOSTAFA, 2008, p.202, tradução nossa, grifo nosso)
A autora se preocupa em não gerar um “efeito estufa” na criança, isto é, mantê-las tanto tempo nesse ambiente controlado a seu favor que elas não estariam aptas para sair ao mundo externo. Dessa forma, ela sugere ambientes escalonados cada vez menos controlados para que elas aprendam, também, a desenvolver funções em ambientes convencionais. Depois desses estudos práticos, Mostafa conseguiu definir os fundamentos que nomeou como “ASPECTSS”. Uma sigla onde cada letra corresponde a um termo que seria essencial para construir para o autismo. Apresentar-se-á cada um deles (MOSTAFA, 2018): A) Acústica [Acoustics]: Deve-se controlar o ambiente para minimizar o ruído de fundo, eco e reverberação. Esse está sujeito a variações de acordo com o nível de foco requerido em cada ambiente e a severidade do autismo nos usuários em questão. Sempre pensando em utilizar ambientes com controle acústico gradualmente menos manipulado a fim de evitar o já mencionado “efeito estufa”. SP) Sequenciamento Espacial [Spatial Sequencing]: Aproveita-se a preferência dos indivíduos com autismo pela rotina e previsibilidade, organizando as áreas a partir de uma ordem lógica do programa dos espaços. Promovendo uma circulação unidirecional com o mínimo de perturbações e distrações. E) Espaço de Fuga [Escape Space]: Um espaço sensorial neutro com estímulo mínimo para proporcionar alívio ao usuário quando superestimulado. Pode ser uma pequena área segregada ou seção silenciosa de uma sala ou de um edifício, preferencialmente, personalizado pelo usuário para fornecer informações sensoriais necessárias. Foi sugerido espaços apertados que possam promover estimulação tátil, mas neutros, quanto a cor, e silenciosos. C) Compartimentalização [Compartmentalization]: Define e limita o ambiente sensorial de cada atividade, organizando o espaço a partir de compartimentos. Esses, devem possuir uma função única e claramente definida, com consequente qualidade sensorial. A separação desses ambientes pode ser definida pelo arranjo de móveis, revestimento do piso, diferença de nível ou variações de iluminação. A qualidade sensorial deve definir sua função ao fornecer pistas sensoriais sobre o que é esperado naquele espaço e diferenciá-lo do compartimento vizinho. 33
T) Transições [Transitions]: As zonas de transição devem auxiliar o usuário a recalibrar os sentidos ao passar de um nível de estímulo para o próximo. Podem ser um simples nó indistinto até uma sala sensorial completa. Podem ter tratamento com teto acústico rebaixado, cores calmantes ou estrutura rebaixada. S) Zoneamento Sensorial [Sensory Zoning]: Os espaços devem ser organizados a partir de sua qualidade sensorial, em vez de sua função, como acontece na arquitetura típica. Fazendo um escalonamento entre “alto estímulo” e “baixo estímulo”, as zonas de transição auxiliam esse processo. S) Segurança [Safety]: Assegurar espaços seguros, já que pessoas com autismo podem ter uma sensação alterada do ambiente, o que pode acarretar em um maior número de acidentes do que com os neurotípicos. Isto posto, Mostafa já dá a dica da importância da acústica para o espectro – apesar de todos os itens incluírem características sensoriais, a audição é a única que ganhou um item exclusivo. Então, como um desdobramento do index dessa arquiteta, volta-se a Neumann para mapear melhor como preservar um espaço de qualidade acústica. A acústica arquitetônica é destrinchada em absorção, reverberação e isolamento sonoro. O Conforto Ambiental, como um todo, busca possibilitar que o homem consiga permanecer na sua zona de conforto, ou seja, fazer o mínimo esforço fisiológico – uma ligação direta com o que Mostafa chama de “janela de oportunidades” ou “ambiente propício ao desenvolvimento de habilidades”. Mas mais do que isso, pode emocionar ou relaxar os usuários. (NEUMANN, 2017) A absorção é a capacidade de alguns materiais de bloquear o som que o atravessa. Seu efeito parece fazer com que as ondas mecânicas sumam, quando na verdade essas são transformadas principalmente em calor. Cada material absorvedor assimila uma frequência diferente, dessa forma, é necessário estudar os ruídos de cada espaço antes de escolher o material adequado. O ângulo de incidência das ondas também afeta na sua absorção. Quanto mais perpendicular chega à parede, mais é absorvida. Também se destaca a importância de evitar paredes paralelas e de variar o material absorvente, já que sua absorvidade decai quando é muito utilizada em um mesmo espaço. Além desses, menciona-se o difusor sonoro que espalha o som no ambiente, tornando a estimulação mais homogênea. Os cantos das salas também tendem a absorver menos, sendo mais eficazes quando transformados em chanfrados ou arredondados. Os materiais macios, porosos ou fibrosos absorvem melhor o som do que materiais de mesma espessura, mas lisos, que costumam ser bons refletores. Materiais pouco espessos costumam não ser capazes de absorver baixas frequências. Nesse caso, aconselha-se separar duas camadas do material (uma parede dupla) com um colchão de ar entre eles, em um esquema massa-mola-massa. 34
A reverberação, por sua vez, é o som que ocorre quando uma fonte sonora tem seu som bloqueado pelas paredes e ressoa até perder a sua intensidade. Apesar de ser um som revertido como o eco, se difere deste por ser ouvido enquanto o som original ainda está ocorrendo. A reverberação é imperativa para a inteligibilidade da fala. Se for longa demais irá se misturar com o som seguinte, tornando a mensagem incompreensível. Quanto maior o volume de um ambiente, maior deve ser seu tempo de reverberação. Segundo Neumann, “Não existe tempo de reverberação ruim, mas, sim, aquele que não está adequado ao tipo de sala.” (2017, p. 197) O isolamento acústico é a utilização de um material a fim de que o som não ultrapasse um ambiente para seu subsequente. Precisamos evitar dois tipos de ruídos: o aéreo que se propaga, como o nome diz, pelo ar e as vibrações que atravessam as superfícies sólidas, nesse caso, as divisórias das salas. O coeficiente de transmissão sonora é o quanto um material permite que o som passe de uma sala a outra. Mais uma vez, o uso de paredes duplas se mostra bastante eficaz para a função. Todo material que é bom absorvedor é mau refletor. Por outro lado, os mais refletores são também os mais isolantes. Então, a arquiteta nos oferece uma outra alternativa, mais acessível financeiramente. Em vez de controlar todos os ruídos, ela nos apresenta possíveis soluções para os ruídos mais incômodos ao espectro, de acordo com o questionário realizado, permitindo assim, que os sons de qualidade possam ser potencializados. Falando em geometria do som, discute-se como a forma da sala afeta, principalmente, sua reflexão. “O estudo das reflexões é o ponto central da acústica de salas. Cada superfície com uma dada inclinação e material diferente irá refletir de forma totalmente diversa, e, por isso, que se acredita que é possível “ouvir a arquitetura”*, afinal cada sala dá um retorno sonoro diferente e é possível treinar a percepção para notar as nuances da acústica de um determinado local.” (NEUMANN, 2017, p. 231) Ela pontua que a falta de uniformidade dos sons dificulta a compreensão de estímulos sonoros, embora sons muito repetitivos e sem harmonia acabem sendo irritadiços. O eco, por sua vez, acaba ocorrendo quando há duas superfícies paralelas rígidas ou quando o espaço é mais alongado que o convencional. Para conter ruídos de máquinas, Neumann traz a teoria da caixa na caixa (“box in a box”). Ao enclausurar um equipamento em uma caixa, diminui-se muito o ruído que chega à sala em questão. Mesmo uma simples caixa de acrílico, longe de ser a ideal, promove uma diminuição de * O termo “ouvir a arquitetura” se refere ao texto “Atmosferas” de Peter Zumthor que será tratado mais adiante, no capítulo 3.
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10 dB, ou seja, um ruído dez vezes menos intenso. Em máquinas que precisam de ventilação recomenda-se o uso de uma “chicana”, um caminho em zig-zag que promove a passagem do ar e diminui a saída de ruído quando comparado a uma abertura convencional. Assim, se conclui as principais alternativas para atender a generalidade de usos e funções de uma forma mais sensível ao autismo. Deixando claro que a contenção de estímulos absurdos, um espaço que demonstra a função esperada e um local de refúgio são sempre bons pedidos.
2.3.
Como aplicar na escala pública?
Sendo o autismo um espectro, cada indivíduo tem necessidades completamente diferentes e, por isso, é mais fácil construir uma casa, por exemplo, onde precisa-se atender as demandas de um único indivíduo, do que um espaço público. Mostafa aborda algumas dessas diferenças e suas aplicações. Ela considera que há sim uma limitação em aplicá-lo a edifícios públicos, onde há demanda de muitos usuários. Esse fator acaba sendo um obstáculo que dificulta incluir o autismo no código de acessibilidade. Exatamente por isso, não devemos tentar colocá-lo como um código padronizado. Quanto à aplicação do índice como uma ferramenta de design, em oposição a uma ferramenta de avaliação, ela começa com a customização. As necessidades do usuário são a premissa a partir da qual os descritores e seu nível, em cada critério, são selecionados e fornecem um conjunto de diretrizes para o design. (MOSTAFA, 2014a, p.35, tradução nossa)
Dessa maneira, ela defende que em ambientes públicos se agrupe as pessoas de acordo com suas características de percepção sensorial e sua habilidade nesses. Precisa-se adotar algum de nível de generalização no perfil sensorial do usuário, em contrapartida, deve-se oferecer flexibilidade para o aprimoramento de suas habilidades. Precisa-se aqui salientar, que quando Mostafa trata do espaço público ela está principalmente pensando em ambientes educacionais, que é um de seus focos de pesquisa. Um perfil sensorial geral, no entanto, pode ser desenvolvido, compreendendo os desafios sensoriais mais comuns enfrentados pelos usuários autistas ao lidar com um ambiente construído. (MOSTAFA, 2014b, p.146, tradução nossa)
Em certo momento, Mostafa desenvolve o projeto de uma escola, que seria um exemplo a ser replicado, e esclarece os principais pontos que os arquitetos devem considerar. Quando se fala em inclusão ainda há uma grande questão que vem do respeito (ou a falta dele) pela sociedade. A arquitetura pode ajudar nessa questão ao vincular serviços necessários a sociedade ao programa do autismo, como o comércio. Criando, assim, um vínculo, já que as pessoas do espectro podem se acostumar ao funcionamento da sociedade neurotípica e, esses, podem ver uma imagem produtiva e positiva do autismo. Deve-se, porém, tomar o cuidado de 36
manter o comércio visualmente simples, espacialmente separado e organizado, dando preferência por luz e ventilação natural. Mostafa traz a importância da localização, navegação, circulação e sequenciamento espacial ao destacar que, se estes forem projetados cuidadosamente, os indivíduos poderão transitar de forma independente, resultando em relevantes oportunidades de aprendizado de habilidades. Para isso, se deve priorizar o caminho com apenas uma direção, orientações visuais de direção e de mudança sensorial, principalmente através de imagens, que costumam ser melhor entendidas pelo espectro do que palavras. Usar diferentes cores para piso, paredes, etc., também ajuda no entendimento da circulação, sempre tomando cuidado para não promover a superestimulação, que deve ser evitada. Neumann também nos oferece em sua dissertação aplicações modelo para ser aplicadas de modo a englobar os indivíduos do espectro no projeto de uma escola. Ressaltando a importância de cuidar para potencializar o uso do espaço, permitindo que o indivíduo possa agir o mais naturalmente possível. Alguns sons de baixa frequência podem fazer a estrutura do edifício vibrar, para isso, recomenda-se o uso de manta resiliente entre piso e estrutura, fazendo a curvatura para englobar o rodapé e subir até a altura dos ombros dos usuários (1,5 m), oferecendo assim, proteção também para as paredes. Para promover os sons positivos ela defende a criação de jardins centrais com fontes de água corrente e, no caso da música, a distribuição homogênea de autofalantes, além da implantação de painéis perfurados absorvedores. São citados alguns materiais com bom custo-benefício para melhorar a acústica dos edifícios, entre eles: feltro duro de 12 mm para absorção de altas frequências; manta asfáltica estruturada de 5 mm (como Viapol) para proteger a vibração; piso vinílico com alto coeficiente de absorção (como o Talaray UNI ACE, que retém do ambiente até 17 dB). Outras medidas também foram indicadas para tratar salas internas como: implantação de varanda de descanso na parede divisa com o exterior; paredes massa-mola-massa com interior em fibra de vidro; cobogó acústico; concha acústica e placas refletoras para direcionar a voz, no caso de haver um apresentador; painel de madeira perfurado absorvedor em inclinação de 7% para quebrar o paralelismo das paredes; para espaços reduzidos, as paredes não devem chegar na laje para que o som posso ser dissipado, favorecendo também o conforto térmico. Ela conclui a tese ressaltando que “é possível beneficiar espaços para que estes sejam menos hostis do ponto de vista dos sons, considerando os usuários com transtornos sensoriais (...), tanto controlando ruídos quando qualificando através de sons de qualidade.” (NEUMANN, 2017, p. 424425) 37
Magda Mostafa, em um entrevista com Vanessa Quirk do Archdaily, diz algo similar: “É exatamente isso que esse índice de design propõe: liberar a rede sensorial da criança do tráfego desnecessário e ruído sensorial do ambiente ao redor - e tornar esses momentos fugazes em que eles podem se comunicar, responder, aprender e interagir um pouco mais duradouros.” (2013, online) Construir para o autismo é possível e, se os arquitetos conhecessem mais suas singularidades, todos os espaços poderiam contemplá-los. Até porque, são benefícios que favoreceriam também a sociedade neurotípica.
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ARQUITETURA DOS SENTIDOS
Pergunta 32: Quando você olha alguma coisa, o que vê primeiro? [...] Às vezes eu tenho pena de vocês por não poderem enxergar a beleza do que nos cerca da mesma forma que a gente. O fato é que a nossa visão do mundo pode ser incrível, simplesmente incrível... Vocês podem até dizer: “Mas os olhos, que todos nós usamos para ver, funcionam da mesma maneira, certo?”. Pois muito bem, talvez vocês estejam olhando para as mesmíssimas coisas que nós, só que a maneira como as percebemos é diferente. Sei que, quando olham um objeto, o que veem de imediato é a coisa por inteiro, e só depois vão reparando os detalhes. Para os autistas, são os detalhes que pulam em nossa frente, e depois pouco a pouco a imagem inteira vai se formando aos nossos olhos. Qual parte nossa visão capta primeiro depende de várias coisas. Quando uma cor forte ou uma forma é atraente, esse é o detalhe que cativa nossa atenção, e aí o nosso coração mergulha nele e não conseguimos nos concentrar em mais nada. (HIGASHIDA, 2007, p. 57, grifo do autor) Pergunta 58: Quais são os seus pensamentos em relação ao autismo? Acho que os autistas nasceram fora do conceito de civilização. Claro que isso é só uma teoria que inventei, mas acho que há uma profunda crise, resultado de todas as matanças que existem no mundo e da devastação egoísta a que a humanidade submeteu o planeta. E, de alguma forma, o autismo surgiu daí. Mesmo que sejamos fisicamente parecidos com os outros, somos na verdade diferentes de muitas maneiras. Como se fôssemos viajantes que vieram de um passado muito, muito distante. E, se a nossa presença servir para ajudar as outras pessoas a lembrar o que é mesmo importante para a Terra, isso nos dará satisfação interior. (HIGASHIDA, 2007, p. 90)
Como a questão sensorial é fundamental para uma arquitetura ao autismo, aqui, se desenvolve as principais ideias de renomados autores nessa área. Dessa maneira, se pode sair um pouco do que um projeto para o autismo não pode existir sem e entrar em o que não é necessário, mas torna a experiência maior.
3.1.
O que é o espaço?
Para começar é necessário entender melhor o que é, de fato, o espaço. Edward T. Hall é um antropólogo estadunidense que escreve sobre a arquitetura, tornando sua visão multidisciplinar fundamental para a compreensão mais ampla. Ele se tornou uma figura conhecida após o seu livro “A linguagem silenciosa” de 1954. Em 1966, “A dimensão oculta” é lançada e esse será o texto a ser analisado. De acordo com o autor, um texto arquitetônico pode focar em dois aspectos: conteúdo e estrutura. Sendo o primeiro responsável por transmitir um conhecimento específico e, o segundo, a forma pelo que os acontecimentos se organizam. Ele trata o espaço como conteúdo e o considera um sistema de comunicação, um meio de apresentar as pessoas a si mesmas. Para isso, ele considera o espaço um organismo biológico, com subestruturas em que se brota o comportamento, moldado pela cultura. Esta, seria uma experiência profunda e comum, que não é expressa em palavras, mas que um indivíduo sempre comunica ao outro, mesmo sem tomar conhecimento. É um pano de fundo, usado para avaliar todos os acontecimentos. As experiências espaciais são multissensoriais e “as pessoas diferem em sua capacidade de visualização - na qualidade e intensidade de seu sistema de imagens visuais.” (HALL, 1966, p. XI) Todos os acontecimentos ocorrerão em um cenário espacial que, sem dúvidas, exercerá uma influência profunda, persistente e de sustentação nas pessoas. Steen Eiler Rasmussem, por outro lado, debate como a maneira de fazer a arquitetura, ou seja, a cultura embutida no fazer a arquitetura, mudou com o passar do tempo, gerando significativas mudanças. Rasmussen é um arquiteto e escritor dinamarquês. Em 1986, ele escreve o livro “Arquitetura Vivenciada”, dizendo que a sua intenção com este era que até mesmo um adolescente aplicado pudesse compreendê-lo. Ele buscou explicar às pessoas estranhas à arquitetura com o que os arquitetos estão ocupados. Antigamente, toda a população era encarregada das construções, acarretando em um sentimento natural em relação a tal lugar, materiais e usos empregados. Resultando em uma edificação que agrade aos olhos dos que viviam nela. Hoje, por sua vez, a construção tornou-se um ramo feito por alguns e para todos. Assim, considera-se que as casas que as pessoas comuns foram condenadas a viver e contemplar sejam desprovidas de qualidade. (RASMUSSEN, 1986) É impossível continuar empregando a bela arquitetura de uma era passada, pois ela acaba 41
se tornando falsa e pretenciosa, já não é mais possível viver de acordo com ela. O arquiteto deve saber que o seu trabalho irá perdurar até um futuro distante e, assim, buscar sempre construir a frente de seu tempo, para que a obra mantenha seu sentimento por mais tempo. Não adianta a edificação ser bela se não for possível viver em seu interior. E a boa arquitetura é aquela se será utilizada como o arquiteto a planejou, sem modificações. Por outro lado, o arquiteto tem caráter anônimo e de segundo plano: os desenhos arquitetônicos não têm fim em si mesmos. Segundo Rasmussen (1986, p. 6): “O arquiteto compõe a música que os outros tocarão”. Peter Zumthor chama tal “música” de “atmosfera” e ensina como emprega-la satisfatoriamente em um projeto. Zumthor é um marceneiro, mestre de obras e arquiteto, nascido da Basileia, Suíça. O livro ‘Atmosferas’, lançado em 2006, é a transcrição de uma palestra, “Wege Durch das Land”, que ele deu em 2003 no Palácio Renascentista Wendlinghausen. Zumthor começa classificando a ‘atmosfera’ como uma qualidade arquitetônica que faça o usuário se sentir tocado pela obra. Essa, deve ser uma presença bela, natural e imediata do espaço. Trata-se da percepção emocional, que é instintiva e que o ser humano possui para sobreviver. É sobre as coisas, as pessoas, o ar, o ruído, o som, a cor, a presença material, a textura, a forma, a disposição, o sentimento e, por fim, a expectativa. Esses, seriam os sentimentos sobre o espaço. E, se os eliminar, a ‘atmosfera’ desapareceria e os sentimentos com ela. É um efeito recíproco entre pessoas e coisas. Zumthor se pergunta se, enquanto arquiteto, pode projetar essas ‘atmosferas’ (a densidade e o ambiente), se ele é capaz de transformar essa ‘magia’ em realidade. Apesar de ele se questionar, Rasmussen parece bem confiante em ser o “maestro” de sua “orquestra”. Segundo Zumthor (2006, p. 21), “existe de fato um lado artesanal nessa tarefa de criar atmosferas arquitetônicas. Tem de haver procedimentos, interesses, instrumentos e ferramentas no meu trabalho. [...] [As respostas] são muito sensíveis, individuais, provavelmente são mesmo sensibilidades, sensibilidades pessoais que me levam a fazer as coisas desta forma.” Até que ponto, enfim, os arquitetos tem em suas mãos o que tocará ou não os usuários que adentraram suas obras? Antes de se entender o que deve ser feito é preciso entender de que maneira as pessoas experienciam a arquitetura e, quando o fazem, o que percebem e o que lhes passa despercebido?
3.2.
Como o espaço é lido?
Quando as perguntas se voltam ao ser humano, é preciso voltar aos antropólogos. Hall define a ‘proxêmica’ como observações da forma com que o homem usa o espaço elaborado pela cultura. Assim, ele defende que duas pessoas que vivenciam uma mesma cena não necessariamente a leem da mesma forma: “uma triagem seletiva de dados admite alguns dados e exclui 42
outros, de tal modo que a experiência como é percebida através de um conjunto de filtros sensoriais determinado pela cultura é totalmente diferente da experiência percebida através de outro conjunto.” (HALL, 1966, p. 3) Quando duas pessoas de culturas diferentes se encontram pode ocorrer frustações na comunicação, devido a, nada mais, do que o fato de ambas viverem em mundos perceptivos diferentes que tem seu próprio conjunto de estímulos sensoriais. Conforme Hall, para criar uma cidade para mais de uma cultura, e conseguir aproximá-los, é necessário interpretar as comunicações silenciosas. O autor estabelece o conceito de ‘territorialidade’ como um importante sistema comportamental que definirá no espaço a diferença entre público e privado. Para isso, ele usa os conceitos de Hediger, se atendo nas distâncias que existem dentro de uma mesma espécie: ‘distância pessoal’ é o espaçamento normal que os animais avessos a contato mantêm entre si e ‘distância social’ é um espaço psicológico que não pode se transpor sem deixar o outro indivíduo ansioso. Fazendo aqui uma digressão para o autismo, essas distâncias são maiores nas pessoas do espectro do que nas neurotípicas. Essa, é provavelmente mais um desdobramento do já tratado (no Capítulo 1) transtorno do desenvolvimento sensorial que Grandin (2013) defende. Hall define que o controle populacional ocorre como uma reação endócrina (muitas vezes letal) quando a população e o estresse atingem níveis muito altos. Sendo esse último diretamente relacionado a diminuição das distâncias. A ‘cloaca comportamental’ é como Calhoun expõe uma consequência que ocorre durante essas situações de estresse superpopulacional. O aumento do número de indivíduos disputando o espaço resulta em uma perturbação de importantes funções sociais que acarretam em desorganização e, posteriormente, colapso populacional. (HALL, 1966) Hall retoma o conceito de territorialidade e proxêmica, para definir suas manifestações como ‘infracultural’ (comportamental, organização subjacente a cultura, ligado ao passado biológico), ‘pré-cultural’ (fisiológico, ao presente) e ‘microcultural’ (compondo as ‘características fixas, semifixas e informais’). As ‘características fixas’ são denominadas assim por serem definidas pelo território, são manifestações materiais, projetos ocultos ou internalizados. Ou seja, apesar de estarem no meio físico, muitas vezes, só serão visíveis ao observar o comportamento humano. As ‘características semifixas’ estão relacionadas à disposição do mobiliário e, como essa, pode incentivar (espaços aglutinadores) ou desestimular (espaços desagregadores) os relacionamentos. Esclarecendo aqui que nenhum deles é benéfico ou maléfico, mas que, a congruência do seu arranjo no espaço precisa ser levada em conta. O ‘espaço informal’ é uma experiência espacial, o que quer dizer que a distância acarreta 43
em mudanças sensoriais afetando os sentimentos das pessoas umas com as outras. Segundo Hall (1966, p. 143), “Se pudermos nos livrar da necessidade de uma única explicação e considerarmos que o ser humano é cercado de uma série de campos que se expandem e se contraem, fornecendo informações de muitos tipos, começaremos a vê-lo a uma luz completamente diferente.” Com auxílio dos termos de Hediger, Hall diferencia quatro distâncias que podem ocorrer entre seres humanos. Cada uma delas ele ainda subdivide entre ‘fase próxima e remota’. A ‘distância íntima’ (até 45 cm) é aquela na qual a presença do outro é inconfundível, o envolvimento está no primeiro plano da consciência, os receptores remotos e imediatos estão ativados e a visão está distorcida. A ‘distância pessoal’ (45 a 120 cm) funciona como se cada indivíduo estivesse dentro de uma bolha que o separa uns dos outros, há maior noção de tridimensionalidade e maior nitidez, os receptores imediatos ainda são usados. Já na ‘distância social’ (120 a 360 cm) estes não são mais ativados e não é mais possível ver detalhes visuais, o olho no olho é considerado obrigatório. A ‘distância pública’ (a partir de 360 cm) é para pessoas fora do círculo de envolvimento, a voz é alta e as palavras são escolhidas com cuidado, o corpo do outro parece achatado e desaparece o contato entre seres humanos. Dito isto, o autor expande seu foco de estudo para falar das diferenças culturais que, por estarem fora do plano da consciência, são tidas erroneamente como inércia, ignorância ou falta de interesse do outro. Ele conclui que “o[s] uso[s] diferentes dos sentidos leva a necessidades muito diversas relativas ao espaço.” (HALL, 1966, p. 180) Por exemplo, os japoneses se apoiam muito ao “ma”, que seria o intervalo, o espaço vazio, e tomam o corpo inteiro como um órgão sensorial. Hall também relaciona cidade e cultura. Com a implosão da população mundial acontece as cloacas comportamentais de Calhoun, que são destrutivas, podendo ser até mais letais que a bomba atômica. Ele traz como alternativa a introdução de características de projeto que se contraponham aos seus efeitos nocivos. Para exemplificar, Hall volta ao experimento de Calhoun e explica como seria feito com ratos (1966, p. 210): Para aumentar a densidade numa população de ratos e manter indivíduos saudáveis basta colocá-los em caixas para que eles não se vejam, manter as gaiolas limpas e fornecer alimento em quantidade suficiente. Isso permite montar pilhas de caixas com quantos andares foram desejados. Infelizmente, os animais engaiolados tornam-se estúpidos, o que é um preço altíssimo a pagar por um sistema de arquivamento.
Ademais, todo departamento de urbanismo deveria ter membros permanentes formados em psicologia, antropologia e etologia. Precisa-se de dois tipos de espaços nas cidades para contemplar dois tipos de pessoas: os monocrônicos (pessoas com baixo envolvimento interpessoal e tempo altamente compartimentado para realizar atividades) e os policrônicos (pessoas com alto envolvimento e tempo não compartimentado, os “malabaristas de atividades”). De novo, destaca44
-se a como tal diretriz seria útil para englobar o autismo no coletivo. O que Hall chama de cultura, Rasmussen chamará de instintos humanos. Ele considera que a compreensão da obra vem de tais instintos, de descobertas e experiências comuns que temos no início de nossas vidas – como provar, tocar, manusear, engatinhar. Estas, nos darão uma percepção entre o que é amigável ou hostil, que situações devem ser evitadas. Ao observar um objeto a geometria não é única coisa que o define, ainda captamos o peso, a solidez, a textura e a condutividade térmica. Cada coisa tem um caráter individual, um material, uma forma e uma cor. “Os detalhes nada dizem de essencial a respeito da arquitetura, simplesmente porque o objetivo de toda boa arquitetura é criar conjuntos integrados.” (RASMUSSEN, 1986, p. 24) A arquitetura deve, então, incutir ordem e relação ao seu meio circundante humano. A retina se une a consciência para trazer a impressão visual, como uma recriação. Não existe uma aparência correta sobre uma coisa, mas infinitas impressões sobre ela. Depende, portanto, da suscetibilidade do observador (na qual estão enraizadas a mentalidade, a educação e o meio ambiente) e de seu estado de espírito. Acaba-se assimilando mais fácil a parte familiar da coisa e ignorando por completo o restante. Para a concepção da arquitetura há o material de construção, que nada mais é do que a parte sólida, e o espaço vazio, que serão denominados de cavidades. Uma forma correta de criar a arquitetura é trabalhar somente com a articulação das cavidades: “suponhamos que o local seja um enorme sólido rochedo e o problema consista em escavar salas no seu interior. Nesse caso, a tarefa do arquiteto seria formar espaços mediante a eliminação de material.” (RASMUSSEN, 1986, p. 38) No entanto, ao construir buscando as cavidades, o autor acredita que ainda se verá as paredes como figura. O convexo está relacionado a figura e, o côncavo, ao fundo. Portanto, será discutido o contraste entre os sólidos e as cavidades. Para criar uma autêntica experiência deve-se empregar formas e combinações que forcem uma observação ativa. A arquitetura deve ser tida como movimento, são formas que dilatam, pressionam e empurram. Uma tentativa de fazer os espectadores recriarem as massas edificadas pelo processo visual. Os objetos distantes como planos, contornos, sem profundidade. A arquitetura pode ser construída a partir de planos, como foi feito no tempo moderno, em que renunciaram a muitas coisas tidas como supérfluas e tentou-se colocar a natureza como parte da vida cotidiana. (RASMUSSEN, 1986) Várias escalas já foram aplicadas, como a proporção áurea, o pentagrama e o le modulor. Acredita-se que em um mundo arquitetural de harmonias puras seria possível sentir a natureza em todas as suas faces. No entanto, nenhuma escala pode ser considerada a proporção correta. Já o ritmo cria métodos regulares de subdivisão que permite muitos artesãos trabalharem na mesma obra, pode-se até sentir nesta uma variação sutil dentro da regularidade estrita. O ritmo 45
mais simples e mais empregado é o sólido-vazio-sólido-vazio, que já demonstra a precisão do homem ao trazer algo que não existe na natureza. O ritmo foi tomado emprestado de outras artes e emprega o tempo e o movimento, que trazem uma sensação de energia intensificada. Pessoas que vivem no mesmo tempo e no mesmo país costumam ter o mesmo senso de ritmo. O significado vem de uma relação rítmica recíproca. Rasmussen não é o único que traz os tempos modernos, Juhani Pallasmaa questiona a época, de forma crítica. Ele é um arquiteto finlandês e escreveu “Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos” em 1996. Para Pallasmaa, a arquitetura moderna, principalmente, abriga a visão e o intelecto, infelizmente, deixando de lado os corpos, sentidos, memória, imaginação e sonhos. Nesse momento, espaço e tempo passaram significar velocidade, como dentro de um carro, sendo assim, a visão acabou por ser o único sentido capaz de acompanhar. O que deixa mais explícita sua diferença com Rasmussen, que defendeu a arquitetura como movimento. O ‘olho moderno’ atingiu o domínio da produção cultural, diminuindo os níveis de compaixão, empatia e participação. Já o ‘olho narcisista’ vê a arquitetura como sua autoexpressão, enquanto o ‘olho niilista’ acaba por gerar isolamento e alienação sensorial e mental, que não reconstrói a ordem cultural, tornando impossível uma leitura de significação coletiva. (PALLASMAA, 1996) Antigamente, o espaço sonoro liderava os sentidos, junto ao mundo oral. Com o passar do tempo o primeiro foi substituído pelo espaço visual e, o segundo, pela escrita. Por consequência destes, o pensamento situacional tornou-se abstrato. A hegemonia dos olhos culminou no desenvolvimento do ego e o afastamento entre o indivíduo e o mundo. A visão separa as pessoas do mundo, enquanto os outros sentidos as unem a ele. Na cultura contemporânea, há um distanciamento, uma perca sensual que traz mercadorias infinitas e um mundo de sonhos fabricado. Deve-se refletir sobre a diversidade de meios secretos que podemos vincular a arquitetura a realidade cultural e mental de nossa época. Para isso, propõe-se o ‘olho hegemônico’ que inclui focos suaves (permite novas esferas da visão e do pensamento, é participativo e empático), perspectivas múltiplas e limites imprecisos. É importante liberar o olho da epistemologia cartesiana. Para tirar o olho de seu pedestal e apropriar-se mais dos demais sentidos, Pallasmaa coloca o corpo no centro, já que as experiências sensoriais se tornam integradas por meio dele e destacando o tato como um tecido cuja especialização desenvolverá os demais. Exatamente o que Zumthor propõe na sua “atmosfera”. Para ele, o maior segredo da arquitetura é juntar as coisas e criar um espaço que funciona como a anatomia. As partes internas não se veem e estão envoltas por uma pele que é, nada menos, do que tudo que o rodeia, tudo que um corpo pode tocar, isso ele chama de “o corpo na arquitetura”. 46
Já em “A consonância dos materiais”, fala sobre colocar todos os materiais juntos de forma concreta e ver como eles reagem entre si. Eles soam juntos e irradiam e, desta composição, nasce algo único. A proximidade dos materiais uns com os outros depende deles próprios e de seu peso. “As coisas que me rodeiam” se detém nos objetos das pessoas quando se entra pela primeira vez no escritório ou na casa de alguém. Zumthor se pergunta se os arquitetos têm a tarefa de criar os invólucros para recebê-los. “Esta ideia, de que entrarão coisas num edifício que eu como arquiteto não concebo, mas nas quais penso, dá-me de certa forma uma visão futura dos meus edifícios, que se desenrola sem mim.” (ZUMTHOR, 2006, p.41) “Entre a serenidade e a sedução” fala sobre a relação do movimento com o espaço e o tempo. Imaginando se andando no edifício é possível perceber aonde estão os polos de tensão, junto a esses, há a sedução, ou seja, o deixar o usuário vaguear, deambular, numa viagem de descoberta, para só depois o orientar e o conduzir – de forma natural – a um lugar que não lhe dê barreiras e possa, simplesmente, existir. Em “a tensão entre interior e exterior”, trata-se o se deve ver de dentro de um edifício e, exteriormente, o que temo a revelar, qual será a referência daquela construção para o público. Como consequência desse ponto, “degraus da intimidade” não é nada mais senão diferenciar o interno do externo, de forma que possa haver massas escondidas por dentro que não sejam percebidas por fora. Sendo crucial a diferença entre proximidade e distância, focando no que existe entre a obra e o usuário, e em suas identidades. Zumthor define também características suas individuais enquanto arquiteto. Primeiramente, em “a arquitetura como espaço envolvente”, o lugar é onde as crianças podem crescer, um local que as pessoas vão recordar trinta anos à frente por ter sido o palco de algo muito importante de suas vidas pessoais. Depois, “harmonia” é como uma sensação, de como a forma irá surgir da sua utilização. Principalmente, quando esta é legível para as outras pessoas que utilizam o espaço. E por fim, “a forma bonita”. Que volta a remeter ao olho no centro que Pallasma tanto confronta. Mas Zumthor diz que essa será a última coisa que ele pensará. Ele começa o projeto trabalhando com o som, o ruído, os materiais, a construção, a anatomia, etc., e, depois destas, ele olha o resulto final formal. Ele considera que se o trabalho for feliz, a forma será agradável. Se não o for, ele joga tudo fora e recomeça o trabalho do zero. Com essa constatação, Zumthor demonstra uma crença de que a forma, ou seja, a visão, deve ser um atestado que todos os outros sentidos e funções funcionam. Mas será que é mesmo assim?
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3.3. Sentidos
Seria a visão suficiente para determinar todos os aspectos da obra arquitetônica? Esse foi o questionamento que instigou Pallasmaa a escrever “Os olhos da pele”. Inspirado nas ideias que ele desenvolveu ao escrever “Polemics” à Academy Editions em 1995. Como se refere (PALLASMAA, 1996, p. 9): Já há algum tempo vinha me preocupando com a predileção a favor da visão e em detrimento dos demais sentidos no modo como a arquitetura era concebida, ensinada e criticada, bem como o consequente desaparecimento das características sensoriais e sensuais nas artes e na arquitetura.
Todos os sentidos são extensões do tato e, ele e as membranas de revestimento põem o ser humano em contato com o mundo, na linha divisória de nossas identidades pessoais. O tato é um modo sensorial que une a experiência de mundo à individualidade. (PALLASMAA, 1996) O corpo é um local de referência, memória, imaginação e integração, que define quem é e como se localiza no mundo. Uma ‘arquitetura que intensifique a vida’ precisa de todos os sentidos ativados simultaneamente, a fim de gerar um confronto sobre a condição existencial humana, ela precisa relacionar, mediar e projetar significados. Este último precisa superar a arquitetura e trazer um sentimento corpóreo e espiritualizado. O indivíduo fornece emoções ao espaço e, em resposta, o espaço retribui com aura para o indivíduo. A importância da visão para os seres humanos começa na filosofia grega, com Platão e Aristóteles. Essa prática, como sempre, pode ser observada em nas expressões linguísticas que comparam, por exemplo, ‘visão clara’ ao conhecimento e ‘luz’ à verdade. Quando se fala em perspectiva, está-se colocando, como já foi falado, os olhos como centro do mundo perceptual. Essa negligência com o corpo e os demais sentidos acaba por trazer um grande desequilíbrio no sistema sensorial. Consequentemente, há um aumento da alienação que traz sensações de isolamento e solidão. “A arte da visão, sem dúvida, tem nos oferecido edificações imponentes e instigantes, mas ela não tem promovido a conexão humana ao mundo.” (PALLASMAA, 1996, p. 19) Nas arquiteturas autóctones, provindas normalmente da argila ou do barro, parecem verdadeiramente nascer dos sentidos musculares e táteis, mais que dos olhos. A memória tátil permite saber a textura de algo, ao avistar esse mesmo elemento de longe, sem tocar, somente enxergar, pode-se lembrar e sentir essa mesma textura, isso acontece quando se apropria desses dois sentidos ao mesmo tempo. No planejamento urbano, ainda é valorizado a higiene visual, que é desvinculada do corpo pelo movimento motorizado e rápido. Mesmo quando está criando um plano, usa-se visões extremamente idealizadas e esquematizadas de vistas por cima. 48
Essa predileção pelos olhos transformou, também, a arquitetura em imagens visuais. Adotou-se a estratégia psicológica da publicidade e da persuasão instantânea, tornando-a produtos visuais desconectados da profundidade existencial e da sinceridade. A fotografia, por sua vez, revela uma imagem bidimensional com perca de plasticidade: “A realidade cada vez mais se parece com o que a câmera de fotografia nos mostra.” (SONTAG, Susan apud PALLASMAA, 1996, p.29) Dessa forma, as edificações culminaram em elementos planos, agressivos, imateriais e irreais, ou seja, cenários teatrais para os olhos. A tecnologia instrumentalizada esconde os processos tectônicos, transformando-se em aparições fantasmagóricas. O vidro reflexivo que colocam em fachadas inteiras, por exemplo, traz uma sensação de sonho, irrealidade e alienação, uma transparência opaca e contraditória que devolve o olhar sem afetá-lo ou deslocá-lo, duplicando o mundo. É enigmático e assustador. Assim, os materiais industrializados (como vidro sem escala, metais esmaltados, plásticos sintéticos) vêm de uma superfície inflexível, uma perfeição atemporal. Os materiais naturais (pedra, tijolo e madeira), no entanto, permitem que a visão penetre a superfície e nos convença de sua veracidade ao nos fornecer uma idade e uma história. “Nada dá ao homem mais satisfação do que a participação em processos que ultrapassem o período de uma vida individual.” (BOOTH, Gotthard apud PALLASMAA, 1996, p.32) Pallasmaa afirma que está nascendo um novo imaginário da arquitetura que pode ser uma experiência positiva de espaço, lugar e significado. Essa teria reflexos com graduações de transparência, sobreposições e justaposições, trazendo uma espessura espacial, sensações sutis e dinâmicas de movimento e luz. Há, no entanto, um exagero nas dimensões intelectual e conceitual e uma diminuição na essência física, corporal e sensorial. “Esse foco redutivista resulta em uma sensação de autismo arquitetônico, um discurso internalizado e autônomo que não se baseia em nossa realidade existencial compartilhada.” (PALLASMAA, 1996, p. 32, grifo nosso) Hall trata a maneira com que os sentidos funcionam em questão de proximidade. Seria a limitação dos sentidos de reconhecer o distante a causa de a arquitetura estar se voltando para dentro dos próprios indivíduos? Ele divide os sentidos de percepção do espaço em receptores remotos e imediatos. Os primeiros incluem os olhos, ouvidos e nariz, capazes de captar a distância. O segundo, por sua vez, é o tato que se subdivide em pele, membranas e músculos, que podem captar somente de perto. A visão é o sentido mais desenvolvido e consegue discernir eventos em até 1,5 quilômetros com bastante exatidão. Enquanto a audição só chega a 30 metros e é mais ambígua e menos focalizada, mas não por isso os ouvidos devem ser desconsiderados. Hall destaca que, segundo J. W. Black, a reverberação do espaço é determinante para a experiência, uma reverberação mais lenta 49
pode, por exemplo, fazer com que a leitura também desacelere. O olfato, por sua vez, é pouco utilizado como um instrumento, resultando em uma insipidez, na qual todos os espaços tem os mesmos cheiros. O espaço térmico acontece de várias formas, entre elas, como quando uma pessoa enrubesce (temos uma emoção que foi transformada em calor) ou quando um grupo de pessoas quentes precisam de mais distância entre elas (é considerado culturalmente desconfortável sentir a temperatura do outro). O espaço tátil pode ser entendido ao observar um bebê que leva tudo às mãos e à boca, por ser uma experiência mais próxima dos objetos que os fazem entender de forma mais particular. O espaço visual é diferenciado em dois. O ‘campo visual’ consiste de diversos padrões de luz em movimento constante, enquanto o ‘mundo visual’ é o resultado construído a partir do primeiro. De acordo com Hall (1966, p. 80), “O fato de que o homem distingue (sem saber o que faz) entre as impressões sensoriais que estimulam a retina e o que ele vê sugere que os dados sensoriais de outras fontes sejam usados para corrigir o campo visual.” Essa correção implica na necessidade de aprender a ver, já que a visão pode sim ter mais que uma interpretação que será definida, de novo, pela cultura. As mensagens que são recebidas pelo corpo (cinestesia) são as responsáveis por essa estabilização do mundo visual. Assim, se estabelece que, mesmo a visão sendo o sentido que alcança o mais distante, fica claro que, ela sozinha, não consegue ser responsável mundo visual, que já é uma construção conjunta à mente que identifica diversos outros sentidos para criar a cultura. Rasmussen conceituará os sentidos já diretamente ligados a arquitetura, sendo fundamentais os efeitos texturais. Há duas formas de aplica-los: a primeira seria rudimentar e enfatizaria a estrutura, a segunda, é lisa e uniforme e esconde a estrutura. Nessa última, para ser considerada bela, é muito importante possuir uma casca homogênea, que é considerada firme e nobre, ao passo que a heterogênea é considerada medíocre e mal acabada. Ainda assim, até mesmo materiais nobres perdem seu caráter quando utilizados sem habilidade e compreensão. O efeito textural provém de uma combinação de elementos lisos e ásperos, sendo estes, consideramos materiais ‘honestos’. De acordo com Rasmussen (1986, p. 161-162), “Como regra geral, pode-se dizer que os materiais com efeitos texturais pobres melhoram muito com o relevo profundo, ao passo que os materiais de alta qualidade podem suportar uma superfície lisa e uniforme, e parecem, de fato, oferecer todas as vantagens quando empregados sem relevo nem ornamento.” O concreto, por exemplo, possui uma robusta qualidade textural que surge a partir do padrão das tábuas dos moldes. Outros materiais podem ser muito polidos, como a madeira, e assim, acabam deixando uma presença em que parece haver um vidro por cima, criando, então, um efeito duplo. 50
Os materiais são julgados por mais do que sua aparência, mas também por sua condutividade térmica. Materiais que ficam muito frios ou muito quentes são simplesmente desagradáveis, assim, a madeira costuma ser sempre muito empregada por nunca possuir uma temperatura muito diferente da nossa. (RASMUSSEN, 1986) A luz do dia, por outro lado, se altera constantemente e sua qualidade é muito mais importante do que a sua quantidade. A qualidade da luz, muitas vezes, é definida pela sua posição. A luz frontal é pobre e produz um efeito textural medíocre. A luz lateral, por outro lado, permite percebemos relevo e textura. Uma luz mais os menos concentrada – isto é, luz de uma ou mais fontes incidindo na mesma direção - é a melhor para se verem forma e textura. Ao mesmo tempo, esse tipo de iluminação enfatiza o caráter fechado de uma sala. (RASMUSSEN, 1986, p.201)
Diferentemente de uma pintura, na arquitetura, quando se perde a cor não se perde a obra de arte, pois ainda há forma, divisão e articulação de espaço. Antigamente, a estrutura era feita nas próprias cores da natureza, enquanto hoje, usa-se cores que demonstram o controle do homem em empregar materiais mais duradouros que os da natureza. (RASMUSSEN, 1986) A arquitetura pode ser ouvida a partir do fato que recintos de formatos e materiais diferentes reverberam de modos diferentes. Superfícies ásperas reverberam mais, duras e refletoras causam tons duros, longos e retumbantes. Pode-se conseguir uma boa acústica apenas cobrindo os pisos com tapetes, pendurando panejamentos nas paredes e enchendo o local de pessoas. A igreja, por exemplo, costuma ser um ambiente de alta reverberação, a qual os palestrantes e o coral agem em resposta. “Se estivermos abertos para impressões e simpaticamente propensos, ele [o espaço] irá se abrir e revelará sua verdadeira essência.” (RASMUSSEN, 1986, p. 231) Apesar do texto de Rasmussen ser um pouco mais antigo e sua defesa muito mais pautada no modernismo, no que diz respeito ao ouvir a arquitetura, Zumthor não poderia concordar mais. O mesmo se dá a temperatura e a luz do espaço. “O som do espaço” fala sobre como cada espaço funciona como um grande instrumento, sendo esse o responsável por colecionar, ampliar e transmitir sons. Destaca ainda o papel que a forma, a superfície dos materiais e a fixação tem de alterar e controlar a forma que o som se propaga. Pensar o espaço a partir do silêncio (fazê-lo calmo), também é uma linda forma de ver o ambiente. (ZUMTHOR, 2006) “A temperatura do espaço” é importantíssima, principalmente quando esta traz surpresas térmicas. Para o autor, a temperatura é tanto física quanto psíquica. O último dos pontos é “a luz sobre as coisas” e fala a respeito de como os materiais podem refletir a luz. “Pensar o edifício primeiro como uma massa de sombras e, a seguir, como um processo de escavação, colocar luzes e deixar a luminosidade infiltrar-se.” (ZUMTHOR, 2006, p. 61) 51
Voltando a Pallasmaa, ele coloca um peso ainda maior para os sentidos. Considera que um espaço de arquitetura deve enquadrar, deter, reforçar e focar nossos pensamentos, para que esses não se percam. “Os sentidos não apenas mediam as informações para o intelecto; eles também são um meio de disparar a imaginação e articular o pensamento sensorial.” (PALLASMAA, 1996, p. 43) Durante experiências emocionais muito intensas tende-se a fechar os olhos para barrar o sentido distanciador da visão (a luz forte e homogênea paralisa a imaginação). As sombras e a escuridão são essenciais pois tornam a distância e a profundidade ambíguas e convidam a visão periférica inconsciente e a fantasia tátil. Assim, Pallasmaa conclui que (1996, p. 46): Um método eficiente de tortura mental é o uso de um nível de iluminação tão alto e constante que não deixa espaço para o retraimento mental ou para a privacidade, até mesmo a interioridade escura do ego é exposta e violada.
Esse trecho foi tirado, como informa a autoria, do texto de Pallasmaa, mas poderia facilmente estar no primeiro capítulo dessa tese, tão relacionável que é com os sintomas do autismo. Já o som é muito mais interior. Ele é incorporador, onidirecional, estrutura a experiência e o entendimento do espaço (ele o mede e torna a sua escala compreensível). No mundo contemporâneo, no entanto, as ruas não devolvem os sons e, no espaço interno, são absorvidos e censurados. As músicas de fundo em shopping centers “cegam os ouvidos”, ou no caso do espectro, dessensibilizam ou ensurdecem. Talvez a experiência auditiva mais fundamental seja a tranquilidade, diz Pallasmaa, em ressonância com Neumann. Ele define a arquitetura como a ‘arte do silêncio petrificado’. Ela retira o ruído externo e foca nossa direção e nossa própria existência, nos tornando cientes de nossa solidão original. O olfato tem um poder emocional e associativo ao imaginário. “Um cheiro específico nos faz reentrar de modo inconsciente um espaço esquecido pela memória da retina; as narinas despertam uma imagem esquecida e somos convidados a sonhar acordados.” (PALLASMAA, 1996, p. 51) O paladar é a origem da nossa experiência sensorial, o sentido mais arcaico. Ao experimentar o sabor, o mundo tende a retornar ao seu limiar oral. A pele, por sua vez, é responsável por ler a textura, o peso, a densidade, a temperatura e a gravidade. Há uma forte sensação de identidade entre a pele nua e sensação de lar, sendo essas e o prazer indissociáveis. A fim de voltar a arquitetura para a mediação sensorial é preciso olhar para o primitivo, mantendo um segredo impenetrável e misterioso. Pallasmaa a considera como a comunicação do corpo arquitetônico com o corpo da pessoa que encontra a obra, talvez séculos depois. Uma obra que mantém a sua comunicação séculos depois deveria possuir alguma caracterís52
tica artística, correto? Será que, no fazer a arquitetura, a arte é uma qualidade intrínseca? E quanto a arquitetura sensorial?
3.4.
Relação com a arte
Como iniciou a fala de Pallasmaa, a arte possui um imenso significado para ele no fazer arquitetura. A expressão artística permite o relacionamento do ser humano com os significados pré-verbais, que foram incorporados e vivenciados. “A tarefa da arte e da arquitetura, em geral, é reconstruir a experiência de um mundo interior indiferenciado, no qual não somos meros espectadores, mas ao qual pertencemos de modo indissolúvel. Nas obras de arte, a compreensão existencial advém do nosso próprio encontro com o mundo e do nosso estar-no-mundo. Ela não é conceitualizada ou intelectualizada.” (PALLASMAA, 1996, p. 24-25), A arquitetura permite entender a permanência e a mudança, enquanto coloca as pessoas no continuum da cultura e do tempo, é a arte que possibilita a reconexão com o mundo por meio dos sentidos. (PALLASMAA, 1996) Nesse momento da tese, já espera-se que Rasmussen discorde de Pallasmaa. Para ele, a arquitetura é uma arte da organização. Ela não é capaz de comunicar uma mensagem íntima de uma pessoa a outra, pois falta-lhe sensibilidade emocional. Tal característica, no entanto, pode ser positiva por impor a necessidade de buscar uma forma mais explícita que propõe uma grande clareza. Ela pode ser fria e abstrata, mas está intimamente ligada a vida. A arquitetura acabou por ser julgada apenas como aparência externa. Os arquitetos, de outro modo, ocupam-se com plantas, seções e alçados, esquecendo-se que a arquitetura é indivisível e, o seu resultado, precisa ser sentido. Ele afirma, assim, que a arquitetura é uma arte funcional, ela cria um espaço para permanência e toda a estrutura em volta da vida e, justamente por essa, não é possível dissociá-la do seu caráter utilitário. Os povos primitivos costumavam dar vida a objetos inanimados, ou seja, dar as coisas características humanas. Rasmussen defende que se fizer o mesmo com a arquitetura fica mais fácil entendê-la como um todo. O arquiteto deve, primeiro, tomar uma decisão sobre as formas principais, para depois prosseguir adicionando detalhes. Rasmussen conclui seu prefácio, que foi escrito posteriormente, defendendo mais uma vez a arquitetura como música. Demonstrando, embora ele negue, que ela pode não ser apenas utilitária: “O meu objetivo é, com toda modéstia, empenhar-me em explicar qual instrumento a arquitetura toca, mostrar a grande amplitude que ela tem e, portanto, despertar os sentidos para a sua música.” (RASMUSSEN, 1986, página não numerada) Conclui-se aqui, então, essa discussão sobre a arquitetura e sobre os sentidos com a opinião de Hall. Ele observa como a arte ensina os indivíduos a entender a percepção. Uma pintura de 53
corpo inteiro de alguém resulta em uma ligação distante com a própria pessoa que contempla, pois, segundo Maurice Grosser (apud HALL, 1966), somente a solidez e a profundidade de algo ao alcance do tato, do calor pessoal, trará sentimentos de solidariedade e afinidade para com ele. O trabalho dos artistas é ajudar os leigos a organizarem seus universos culturais. Os escritores, por exemplo, indicam a proximidade a partir do espaço entre o personagem e o outro, quando estão mais próximos eles descrevem detalhes e, quando distantes, a paisagem. Assim, a literatura é uma fonte de dados de como o ser humano usa os sentidos, culturalmente, para experenciar. Por fim, ele reforça algumas ideias. Tudo o que o homem é ou faz é resultado da sua experiência para com o espaço, sendo esta, uma síntese de muitos estímulos sensoriais que foram moldados e configurados pela cultura. Então, há uma modelagem de mundos perceptivos que envolvem os relacionamentos, as atividades e a emoção. Assim, ele configura a dimensão cultural.
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4
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ESTUDOS DE CASOS / REFERÊNCIAS ARQUITETÔNICAS
Pergunta 45: Por que você gosta tanto de fazer caminhadas? [...] Acho que a nossa relação com a natureza é um pouco diferente da sua. [...] É que, quando olhamos para a natureza, recebemos uma espécie de permissão para estar aqui neste mundo e nossos corpos ficam com as baterias totalmente carregadas. Não importa o quanto sejamos ignorados ou rejeitados pelos outros, ela sempre nos dá um abraço grande e caloroso, aqui, em nossos corações. (HIGASHIDA, 2007, p. 74)
4.1.
The Center for Discovery - Turner Brooks
FIGURA 1 – Implantação The Center for Discovery
FICHA TÉCNICA Local: Harris, Nova York, Estados Unidos da América Data do início do projeto: 2007 Data da conclusão da obra: 2009 Área do terreno: 40 mil metros quadrados (10 acres) Arquitetura: Turner Brooks Architect The Center for Discovery começou em 1948 com reuniões no hospital Beth Abraham, em Nova Iorque, entre pais de crianças com dificuldades físicas. Desde então, muitas associações se incorporaram ao projeto. Sendo a primeira delas a United Cerebral Palsy Association of Sullivan County (UCPASC), em 1950. Até que, em 2010, eles abrem o campus Ridge, a primeira residência em Nova Iorque especialmente desenhada para o TEA. É um pequeno campus educacional com habitações que atende 120 jovens, de 5 a 21 anos. A associação escolheu o escritório de Turner Brooks como o responsável pela sua construção. ANÁLISE FUNCIONAL Para atender ao programa de necessidades, Brooks criou doze volumes independentes, sendo nove deles edifícios residenciais e três destinados a salas de aula e refeições. Nele, estão incluídos: uma biblioteca, uma sala de artes, uma academia, uma cafeteria, sala de jantar, sala sensorial, salas de conferências e da equipe. A implantação se segmenta em três grandes áreas, onde cada uma possui três dos edifícios residenciais e um dos educacionais. Dessa forma, ele divide o pequeno campus em três subunidades independentes. Tendo em mente a dificuldade das pessoas do espectro autista em se localizarem no espaço, os arquitetos procuram dividir o terreno de forma clara. Primeiro, há uma separação considerável entre essas três grandes áreas (FIGURA 1) para que possa facilmente visualizar esse replicamento de funções idênticas. Depois, adentrando cada uma das áreas (FIGURA 2), há uma praça central circular bem definida da qual se subdividem quatro caminhos que levam aos edifícios. Os caminhos foram definidos em cimento e se contrastam com a vegetação existente no entorno. São sinuosos e não ortogonais, sem, no entanto, deixarem de mostrar seu imediato fim. Os edifícios são rotacionados (mesmo dentro de seu raio de projeção da praça central) e, apesar de possuírem uma longitudinalidade bem definida e linhas retas, são tão volteados que transmitem uma ilusão de semicírculo quando observados em planta. Essa foi uma intenção pro-
Fonte: Adaptado de Turner Brooks Architect, [2007?]
FIGURA 2 – Planta The Center for Discovery
Fonte: Adaptado de Turner Brooks Architect, [2007?]
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FIGURA 3 – Vista aérea The Center for Discovery
Fonte: The Center for Discovery, [2009?] FIGURA 4 e 5 – Fotografia edificação The Center for Discovery
Fonte: Turner Brooks Architect, [2009?] FIGURA 6 – Fotografia edificação The Center for Discovery
Fonte: Turner Brooks Architect, [2009?]
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posital do arquiteto, para que os edifícios gravitem de forma harmônica na topografia irregular do campus (FIGURA 3). ANÁLISE TÉCNICA O contraste foi a principal diretriz para a escolha da materialidade. O terreno é abundante em vegetação (pertencente a Catskill Montains) e possui inclinações topográficas que poderiam dificultar o entendimento do percurso. Assim, adotaram cores e texturas que se destacam facilmente desse entorno verde (FIGURA 4 e 5). Todos os edifícios possuem a mesma estrutura e se diferenciam apenas na pintura e na inclinação da cobertura. Os edifícios são de steel frame pintados. Internamente, as paredes são acabadas com drywall e pintadas, o forro é modulado acústico e o revestimento do piso, madeira. As vedações acompanham a inconstância da planta. Varia-se o tamanho da janela (estreita, quadrada ou larga) e também a altura em que esta está inserida (na altura do usuário ou rente a cobertura). ANÁLISE ESTÉTICA A intenção de Turner Brooks, segundo seu website, era criar arranjos fluídos que não gerassem uma alteração repentina de ambiente, que pode influenciar as pessoas do espectro negativamente, nem um grande espaço sem diferenciação, que os deixaria sem pontos de referência para se localizar no espaço. Então, ele adotou os já mencionados volumes assimétricos e sinuosos, resultando em plantas e elevações amplamente rotacionadas. Outro ponto decisivo foi a utilização de cores (amarelo, verde e vermelho) que ajudariam na identificação dos volumes além de trazer uma estética lúdica ao projeto que se destina a lidar com jovens (FIGURA 6). Apesar da escolha de tons fortes que criassem um contraponto ao elemento natural, tomou-se o cuidado de que esses não fossem vibrantes demais para não causar ofuscamento (FIGURA 7). ANÁLISE ARQUITETURA PARA O AUTISMO Ao compararmos o projeto em análise com os projetos convencionais é possível notar algumas diferenças de critérios para produzi-lo. O cuidado na transição dos ambientes pretende também dar dicas, de forma não agressiva, de que haverá uma mudança de estímulo, dando assim, tempo para que o usuário possa se preparar. Além disso, todas as entradas de edifício (FIGURA 8) possuem um piso bem demarcado e amplo que possibilita uma espécie de antessala, onde se pode permanecer até que se esteja pronto para adentrar o ambiente.
Ainda, constataram que andar é uma atividade terapêutica comum para as pessoas com autismo e potencializaram essa prática ao estender os percursos a caminhadas direcionadas.
4.2.
FIGURA 7 – Fotografia edificação The Center for Discovery
Shrub Oak Internacional – H2M
FICHA TÉCNICA Local: Westchester County, Nova Iorque, Estados Unidos da América Data da conclusão da obra: 2018 (estimada) Área do terreno: 514 mil metros quadrados (127 acres) Área construída: 38 mil metros quadrados (400 mil pés quadrados) Arquitetura: H2M (Renee Marcus) The Shrub Oak Internacional School é uma escola privada e interna que atende jovens de 8 a 30 anos, principalmente em casos mais graves do espectro. Foram seis anos de planejamento para montar a instituição e o local foi escolhido por ser próximo da localização de múltiplos experts do assunto e por ser de fácil acesso para as famílias. ANÁLISE FUNCIONAL O programa de necessidades foi idealizado para contemplar ambientes mais especializados e terapêuticos que não costumam constar em escolas convencionais. O edifício principal (FIGURA 9) é pré-existente e foi reimaginado de maneira a abrigar tais usos. São eles: centro equestre, um apiário, hortas, trilhas para caminhadas e uma piscina coberta de uso terapêutico. As alas são bem segmentadas e facilmente identificadas por cores. Cada área está localizada em uma porção do edifício e tem pouco ou nenhum contato com as demais. Os usos que demandam mais estímulo (salas de aula, convivência, sala de música, auditório, ginásio, refeitório) foram identificados com tons de azul e os que demandam menos (dormitório e sala de artes) com tons de amarelo. ANÁLISE TÉCNICA O projeto da escola voltada ao espectro autista foi implantado em uma construção já existente e com grande caráter institucional. A sua materialidade consistia em tijolos apenas, sem grandes diferenciações de aberturas ou fechamentos. A primeira preocupação da arquiteta foi permitir que os alunos possam se sentir em casa neste local. Para tal, ela rasgou algumas paredes, transformando-as em cortinas de vidro, como no refeitório principal, aonde se pode, então, observar o exterior, trazendo mais vida ao interior. Essa alternativa também possibilita que o uso de
Fonte: Turner Brooks Architect, [2009?] FIGURA 8 – Fotografia edificação The Center for Discovery
Fonte: Turner Brooks Architect, [2009?] FIGURA 9 – Vista aérea Shrub Oak
Fonte: H2M, [2018?]
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FIGURA 10 – Imagem 3D Shrub Oak
Fonte: Shrub Oak via Architectural Digest, [2018?] FIGURA 11 – Diagrama Shrub Oak
Fonte: Adaptado de Shrub Oak, [2018?]
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luz solar seja intensificado e diminua a necessidade de luzes florescentes que podem vir a causar ruídos incômodos. Em seu interior, ainda buscando essa mesma ideia, ela adotou nas salas de permanência, carpetes macios, carpintaria e móveis que remetam a ideia de residência. Os carpetes também foram utilizados como medida acústica em corredores para absorverem os ruídos das salas de aula, por exemplo, possibilitando uma circulação sem superestimulação. ANÁLISE ESTÉTICA Nos projetos de escolas convencionais, costuma-se utilizar muitas cores vibrantes. Renee, por sua vez, neste projeto, preferiu adotar tons mais neutros – que não por isso, porém, fossem tediosos –, certificando que não haveria nenhum incomodo visual aos indivíduos mais sensíveis. Ainda falando de cores, ela percebeu que se usasse tons diferentes para piso e paredes, o entendimento espacial dos usuários do espectro aumentava significativamente. Assim, ela faz uso dessa técnica em praticamente todos os ambientes. Para a entrada principal (FIGURA 10), foi implantado uma grande marquise translúcida, que permite que os usuários tenham uma indicação visual do ponto de intersecção entre interno e externo. ANÁLISE ARQUITETURA PARA O AUTISMO Para este projeto, as estratégias utilizadas para auxiliar os indivíduos do espectro foram voltadas ao interior dos ambientes. Houve bastante cuidado com o tratamento acústico da edificação e com as dicas visuais sobre o que é esperado que se faça naquele ambiente em questão. Como grande parte dos ambientes já requer uma função específica, tomou-se muito cuidado para que o espaço em si não contribua para a estimulação intensa. Ainda assim, é preciso saber que, eventualmente, os indivíduos precisarão de um espaço mais tranquilo, isto é, mais silencioso e fisicamente mais distante de outras pessoas, e para isso, reservou-se, nos espaços mais exigentes de concentração, como as salas de aula, uma cadeira afastada das demais que funciona como refúgio sensorial. Continuando em mobiliário, no lounge dos alunos, se optou pelo uso de sofás com encosto alto (FIGURA 11) para que os usuários possam se sentir mais seguros, já que sua cabeça está mais protegida, permitindo que tal local possa atingir a função de ambiente público controlado. Estes conceitos ficam claros quando Renee Marcus defende que o indivíduo não deve se sentir muito isolado, apenas o suficiente para que possa se sentir seguro (FIGURA 12).
FIGURA 12 – Diagrama Shrub Oak
Fonte: Adaptado de Shrub Oak, [2018?]
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FIGURA 13 – Fotografia Praça das Artes
4.3.
Praça das Artes - Brasil Arquitetura + Marcos Cartum
FICHA TÉCNICA Local: Centro, São Paulo, Brasil Data do início do projeto: 2006 Data da conclusão da obra: 2012 Área do terreno: 7.210 metros quadrados Área construída: 28.500 metros quadrados Arquitetura: Brasil Arquitetura (Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz e Luciana Dornellas) + Marcos Cartum (Secretaria Municipal de Cultura) Fonte: Adaptado de Shrub Oak, [2018?] FIGURA 14 e 15 – Implantação Praça das Artes
Fonte: Brasil Arquitetura via Archdaily, [2006?] FIGURA 16 e 17 – Diagrama de volumes Praça das Artes
Fonte: Brasil Arquitetura via Archdaily, [2006?]
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Por iniciativa da Secretária da Cultura, que queria fazer uma espécie de anexo ao Teatro Municipal, o Brasil Arquitetura foi chamado para criar a Praça das Artes (FIGURA 13). É um espaço público que busca ressignificar uma área que antes se encontrava subutilizada no centro de São Paulo. O objetivo era incorporar um grande espaço de permanência voltado a cultura, ao qual foi incorporado diversas outras sedes institucionais. ANÁLISE FUNCIONAL A primeira característica notável do projeto é o seu terreno que, não muito parecido com os lotes convencionais, se esgueira pela quadra como vários braços de um polvo bastante assimétrico (FIGURA 14). Longe de ser um obstáculo, esse formato foi excelente para atravessar e unir o quarteirão inteiro, permitindo permeabilidades transversais e longitudinais (FIGURA 15) que seriam muito mais difíceis de se conquistar no habitual lote quadricular. Ao transformar terrenos pequenos e estreitos – muitos degradados ou inutilizados –, em um espaço de permanência seguro, a área passou de um local que era evitado para um que pode não só receber, mas trazer público. O programa de necessidades contempla vários usos voltados a cultura (FIGURA 16). Há salas de aula para diversas artes, bem como sedes de Orquestras Sinfônica Municipal e Experimental de Repertório, dos Corais Lírico e Paulistano, do Balé da Cidade e do Quarteto de Cordas e as Escolas Municipais de Música e de Dança, o Museu do Teatro, o Centro de Documentação Artística. Também possui restaurantes, estacionamento subterrâneo, áreas de convivência, auditório, discoteca, administração e o Antigo Conservatório Dramático Musical de São Paulo, que foi restaurado. Os volumes mudam, mas a intenção da implantação permanece a mesma (FIGURA 17). O térreo sempre possui a maior parte de sua área para o estar urbano, enquanto os andares superiores são utilizados para atender os espaços mais fechados, aonde o trânsito de pessoas é mais controlado.
ANÁLISE TÉCNICA Para se sobrepor ao lote irregular e criar uma identidade ao complexo, se utilizou em todos os volumes um único material: o concreto. Ele estrutura e veda a construção, permitindo grandes vãos livres (sem pilares). Outra estratégia foi utilizar vedações das aberturas em vidro de diversos formatos (FIGURA 18). Isso possibilitou o contato entre externo e interno, a variação de vãos de acordo com a necessidade do uso e uma certa leveza, já que contrasta com o peso que o concreto dispende aos olhos. Se por fora era importante manter uma única materialidade, por dentro foi permitido o uso de diferentes materiais para atender as demandas específicas de cada tipo de arte ou melhorar a acústica (FIGURA 19 e 20). ANÁLISE ESTÉTICA O concreto possibilitou a criação de uma estética clara. Reta, mas não totalmente ortogonal. Lisa, mas com texturas. Plana, mas com pequenos volumes. Como o projeto está espremido entre nesgas da quadra, as linhas gerais do lote já são de caráter resiliente. Assim, aproveitaram esse formato do piso para os vão livres e os grandes volumes (FIGURA 21). Possibilitando também que o edifício em si possa transparecer os grandes braços que englobam a quadra. Apesar de o concreto ser o material principal, criou-se pequenas diferenciações nele, criando maior tridimensionalidade aos volumes. Ele foi moldado in loco de maneira a revelar a fôrma de madeira. Claramente, se observa dois tratamentos. Um de pigmentação mais clara e mais puxada para o ocre e o outro avermelhado e mais escuro. O fechamento de aberturas, em alguns casos, foi utilizado como instumento para diminuir a planidade das faces de concreto. Posicionaram os caixilhos e seus vidros levemente deslocados para fora, resultando em uma fachada mais palatável (FIGURA 22).
4.4.
Catedral de Brasília – Oscar Niemeyer
FICHA TÉCNICA Local: Brasília, Brasil Data do início do projeto: 1959 Data da conclusão da obra: 1970 Área construída: 2800 m² Arquitetura: Oscar Niemeyer
FIGURA 18 – Corte longitudinal Praça das Artes
Fonte: Brasil Arquitetura via Archdaily, [2006?] FIGURA 19 – Fotografia Praça das Artes
Fonte: Nelson Kon, 2012 FIGURA 20 – Fotografia Praça das Artes
Fonte: Nelson Kon, 2012 FIGURA 21 e 22 – Fotografia Praça das Artes
Fonte: Nelson Kon, 2012
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FIGURA 23 – Fotografia Catedral de Brasília
Fonte: Gonzalo Viramonte via Archdaily, 2016 FIGURA 24 – Fotografia Catedral de Brasília
Fonte: Gonzalo Viramonte via Archdaily, 2016 FIGURA 25 – Fotografia Catedral de Brasília
Fonte: Gonzalo Viramonte via Archdaily, 2016
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A Catedral de Brasília (FIGURA 23) foi um dos primeiros edifícios a serem idealizados no Eixo Monumental que comporia a nova capital do Brasil. ANÁLISE FUNCIONAL A idealização da catedral já pretendia que o edifício fosse um objeto único, sem muitas segmentações. Como acontece em vários projetos do arquiteto, a estrutura é praticamente o próprio projeto. Nesse caso ainda, a construção é basicamente a cobertura, já que o nível da catedral em si está enterrado e não é visível quando observado de fora (FIGURA 24). Dessa maneira, o programa acontece todo no subsolo e é segmentado em três áreas: corpo principal, batistério e sacristia. O corpo principal é a área que fica imediatamente abaixo da cobertura, aonde acontece a celebração religiosa. O batistério está totalmente enterrado e possui planta em formato bumerangue. A sacristia é o pequeno volume circular que se localiza próximo a entrada, seu acesso é por um túnel subterrâneo que sai do corpo principal. Para adentrar o corpo principal, então, é preciso descer uma rampa, relativamente estreita e escura, que tem como objetivo ser um contraponto a catedral (FIGURA 25). A ideia de Niemeyer era que, no momento em que se acaba esta rampa, o usuário tivesse uma agradável surpresa ao encontrar o interior da igreja tão mais amplo e iluminado, remetendo assim, a divindade. Essa estratégia também possibilitou que a cobertura permanecesse perfeitamente radial, sem qualquer diferenciação para a entrada principal. ANÁLISE TÉCNICA A estrutura é a parte mais intrigante do projeto. São dezesseis pilares de concreto em formato de bumerangue que se unem no topo (FIGURA 26), criando um formato de planta circular (FIGURA 27). Intuitivamente, as pessoas não esperam que tal formato possa permanecer de pé, principalmente porque os pilares aparentam ser muito mais finos em sua porção mais próxima ao solo. Na base, enterrado, há um anel inferior de onde os pilares arrancam. E o anel superior é, na verdade, uma laje. Uma das maiores problemáticas na execução da obra foi o plano de vidro que faz o fechamento, já que Niemeyer o queria contínuo e, naquela época, isso ainda não era tecnologicamente possível. A resolução foi criar um caixilho metálico poligonal e fino que sustentaria o vitral, criado por Marianne Peretti. ANÁLISE ESTÉTICA Todos os elementos pretendiam alongar o volume central e apontar para o céu. O espelho d’água perimetral foi implantado para que refletisse a própria construção (FIGURA 28), criando a
ilusão de que não está firmemente presa ao chão. Os pilares em formato de bumerangue principais também têm curvatura tal que causam o olhar curioso para cima. A estética do corpo principal buscava também contrastar a materialidade do concreto com a translucidez do vitral. De fora, suas cores estão minimizadas pela luz externa e o que se vê são sombras acinzentadas e nebulosas que não revelam o interior (FIGURA 29). Uma vez adentrada a construção, a imagem se inverte. A luminosidade externa faz com que o azul e o verde do vitral se destaquem e revelem o céu, criando um local de contemplação que estimula o místico.
FIGURA 26 – Corte Catedral de Brasília
Fonte: Croquis de Niemeyer apud MULLER, 2003 FIGURA 27 – Planta Catedral de Brasília
4.5. Referências arquitetônicas
A criação de espaços voltados ao espectro autista ainda é bem limitada. Os projetos idealizados para tal costumam entrar em duas categorias: projetos acadêmicos ainda em fase de teste que não foram executados ou projetos de escolas de alto padrão. No capítulo 2 foi tratado o primeiro caso, então aqui, se analisa duas obras que se encaixam ao segundo. Quando Turner Brooks traz para The Center for Discovery o conceito dos volumes rotacionados para que haja uma sutil indicação na mudança do espaço, ele acaba empregando um conceito similar ao de Magda Mostafa, tratado anteriormente, o qual chama de Transição. A diferença entre eles está basicamente na escala. Mostafa pensa majoritariamente no ambiente interno, enquanto Brooks está aplicando tal ideologia no edifício como um todo. Assim, considera-se que o emprego de ângulos é uma forma bastante assertiva de assinalar a mudança de estímulos. Uma implantação angular pode possibilitar que este fenômeno afete tanto o volume principal quanto a diferenciação interna dos ambientes. Outro ponto relevante dessa escola de referência foi a estética majoritariamente horizontal que se faz clara através de cores fortes. Nesse caso, no volume em sua totalidade. Bem diferente da segunda escola analisada, Shrub Oak, do H2M, onde há uma indicação mais sutil de cor, nas portas, que clarificam o grau de estímulo na sala correspondente. Dessa maneira, percebe-se que o emprego de tonalidades é uma alternativa bastante intuitiva para sinalizar de forma clara a informação dos ambientes. Nessa escola também se empregou a diferenciação de tons entre parede e piso. É preciso, porém, manter sempre em mente que a pigmentação vibrante deve ser bem controlada e utilizada mais como dica sensorial do que escolha estética. Em essência, a arquitetura por ser uma área que engloba em um único projeto inúmeros fatores, por vezes, pode ter soluções compartilhadas entre construções bastante diversas em uso, mas similares em escolhas construtivas. Este é o caso das duas referências subsequentes. A Praça das Artes do Brasil Arquitetura localiza-se em meio urbano bastante conturbado e movimentado. Conseguindo, no entanto, criar um espaço cultural que também é uma resposta a
Fonte: Croquis de Niemeyer apud MULLER, 2003 FIGURA 28 e 29 – Fotografia Catedral de Brasília
Fonte: Gonzalo Viramonte via Archdaily, 2016
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falta de área de permanência estável. Esse contraponto de tranquilidade em relação a um entorno movimentado é uma característica notável. Eles criam uma espécie de fortaleza, ainda pública, ainda movimentada, ainda urbana, mas onde é possível permanecer de maneira saudável no coletivo. Esse tipo de alternativa ainda é bastante insuficiente nos meios urbanos. Muitos espaços que acabam sendo utilizados com essa função não foram idealizados para tal. E os planejados ainda são bem raros e dispersos na malha urbana. Outra característica importante é a maneira com que a materialidade se estende a mesma por todo o projeto. Se considerarmos o que Hall diz, que o ser humano só é capaz de ter afinidade com o que está tão próximo que ele pode tocar, ao trazer o mesmo material das torres mais altas à altura da mão, há, consequentemente, uma sensação de reconhecimento e familiaridade com todo o complexo (HALL, 1966). Por outro lado, no imponente projeto da Catedral de Brasília de Oscar Niemeyer se busca justamente o oposto, o inalcançável e divino que, honestamente, não tem grande aplicabilidade enquanto plasticidade ao espectro autista. Ainda assim, quando o arquiteto cria uma passagem subterrânea que tem como intuito deslumbrar o usuário, ele acaba também dando uma pista sensorial – na iluminação que diminui, na passagem que se estreita e no piso de desce – de que há uma mudança de estímulos por vir. Em seu conceito, é quase parecido com a estratégia de rotação de Brooks. Exceto que, nesse caso, a inclinação é vertical e não mais horizontal. Ademais, a utilização do vitral como uma escolha que permite a contemplação visual é bastante interessante. Principalmente porque o vitral, enquanto luz emissiva, não é um elemento ofuscador, possibilitando uma estimulação agradável. E como na Catedral, o fato de ele ser muito mais potente quando observado de seu interior também é interessante, pois não prejudica a circulação externa do edifício – como um letreiro luminoso, por exemplo, poderia fazer. Em suma, construir para o autismo é um campo bastante novo, onde ideias estão sendo testadas. Muitos projetos não foram executados ainda por falta de investimento, mas possuem enorme embasamento e devem ser considerados como a principal prerrogativa. Em alguns casos, ainda há pouca pesquisa, como no caso de espaços públicos culturais para o espectro. No entanto, se existem informações para espaços públicos e há informações para o espectro, basta uni-las com consciência e muita pesquisa.
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O BAIRRO DE SANTANA
Pergunta 49: Por que você se perde com tanta frequência? [...] Só que há uma razão diferente para ficarmos nos perdendo, e acho que é a seguinte: não sabemos muito bem aonde deveríamos estar. [...] Para simplificar: os autistas nunca se sentem à vontade, não importa onde estejam. É por isso que vagamos, ou até fugimos, em busca de um lugar onde possamos nos sentir melhor. E, durante essa busca, não paramos pra pensar como ou aonde vamos chegar. Somos engolidos pela ilusão de que, a não ser que encontremos um lugar no mundo que seja adequado para nós, ficaremos sozinhos para sempre. Daí, acabamos por nos perder e temos que ser levados de volta para onde estávamos ou para a pessoa que nos acompanhava. (HIGASHIDA, 2007, p. 79, grifo do autor)
5.1. Histórico
Ao falar do bairro de Santana, se considera a área que fica entre o Campo de Marte e Ponte Grande e o outeiro de São Paulo, aonde seria construída mais tarde, a Capela de Santa Cruz. (TORRES, 1970) No fim do século XVIII, São Paulo, como todas as outras cidades da época, possuía apenas a sua parte central como zona urbana, que foi expandindo seu raio de influência. A ocupação da zona norte, principalmente no além-Tietê, não acompanhou o ritmo de urbanização de outras áreas que foram crescendo além do centro. Algumas áreas da zona norte, porém, já eram ocupadas, como o bairro da Luz, ao qual o próprio padre Anchieta se referiria. Assim, foi ocupada pela vila jesuíta e algumas concessões foram feitas a cinco fazendeiros. Área banhada pelo rio Tietê, as enchentes inundavam as várzeas vizinhas, que eram utilizadas por toscas embarcações para abastecer a vila. “A conquista da vázea do Tietê foi lenta. A planície inundável do Tietê que, em alguns trechos, chega a 2 Kms. de largura, forma verdadeira faixa de separação entre os bairros e as áreas urbanizadas, como acontece com Casa Verde e Freguesia do Ó, na parte norte-ocidental, Santana, no norte, e Vila Maria, na direção norte-oriental.” (TORRES, 1970, p.14-15) Começar-se-á, então, a desenvolver um bairro que vai desde a colina direita do Tietê até a serra da Cantareira, envolvendo Santana, Freguesia do Ó, Casa Verde e Tucuruvi. Esses, muitas vezes ilhados pelas inundações, permanecem por mais tempo com aspecto rural e isolados. Só terão função comercial ou industrial muito mais tarde, no século XX, no auge da expansão de São Paulo. A construção da Estação da luz contribui com o desenvolvimento da região norte, mas se mantém basicamente nos arredores da estação. O Tietê continua sendo uma barreira e não é necessário cruzar essa área para chegar a nenhum outro polo importante da época. Por três séculos a área além-Tietê só era percorrida pelo transporte animal, devido a topografia de colinas. “Santana é o principal bairro da vertente direita do rio Tietê, situado no divisor das águas dos ribeirões Mandaqui e Tremembé, e cujo limite setentrional é a Serra da Cantareira. [...] Santana é o mais antigo núcleo de povoamento situado na periferia, na zona norte da Capital.” (TORRES, 1970, p. 17) A fazenda de Santana (FIGURA 30) é doada aos jesuítas pelos herdeiros de Inês Monteiro em 1673. Eles aumentam suas propriedades e organizam a fazenda até que, por volta do século XVIII, serão a mais importante do Colégio São Paulo. Possuía 300 cabeças de gado bovino e 10 cavalos, fornecendo leite, mandioca, legumes e frutas a cidade. Cento e quarenta escravos cuidavam de suas lavouras, a quem levianamente chamavam de “servos”.
FIGURA 30 – Fotografia Fazenda de Santana
Fonte: Dep. Cultura – Pref. Mun. S. Paulo apud TORRES, 1970
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Em 1727, a Igreja de Santa Ana é restaurada. Abrigando, em 1757, dois religiosos. Com a política do marquês de Pombal, a Fazenda de Santana passa a Coroa, que distribui algumas terras. “Assim, concedidas terras a moradores de São Paulo, além-Tietê, alguns bairros já serão discriminados no primeiro recenseamento importante em 1765.” (TORRES, 1970, p. 22) O bairro de Santana começa, então, a ter casas esparsas, chácaras e roças. Em 1778, tem 1139 habitantes. A profissão dominante é lavradora, a maioria das pessoas possuem mais de dez escravos que trabalham normalmente em atividades agrícolas. No fim do século, possui 136 casas e mais de duzentos e cinquenta escravos. Produzem milho, feijão, mandioca, algodão, aguardente e açúcar. Em 1806 vivem em Santana 370 brancos, 258 pretos e 285 mulatos, num total de 913 pessoas. Dessa população, 76 são agricultores, 9 negociantes, 4 artistas, 12 jornaleiros, 2 oleiros, 20 fiandeiras, 150 escravos, 115 escravas e 2 mendigos, segundo consta do resumo final apresentado pelo capitão da Companhia de Ordenanças. (TORRES, 1970, p.27)
1815.
Em 1740, a ponte do Tietê já está ameaçada de cair e assim permanecerá até seu conserto em
No século XIX, a fazenda de Santana passa de Núcleo Educacional e de assistência social, a Hospital e Cemitério de variolosos e a Colônia de Imigrantes. E no fim do século, o antigo casarão se tornará um quartel. Nos nascimentos de 1893, 48 tem pais brasileiros, 31 italianos, 9 portugueses, 2 espanhóis, 2 franceses, 2 alemães e 12 de nacionalidade ignorada. 61 mães são brasileiras, 31 italianas, 7 portugueses, 3 espanholas, 1 francesa e 2 alemãs. No século XX, várias escolas estaduais são implantadas, quatro delas na Rua Voluntários da Pátria, que é mais importante artéria de Santana, ligando a cidade de São Paulo à Cantareira. Aonde já estavam a Igreja Santa Cruz e o Colégio Santana. Nesse momento, já há meios de comunicação com a cidade e um tramway (que sai da estação Central e passa por Santana, Mandaqui, Tremembé e Cantareira) passa de quatro a seis vezes por dia. “O bairro continua a oferecer atrativos para os que desejam passar algumas horas longe da Cidade, em dias de folga. Não é ainda o tipo de trem de subúrbio, abarrotado de trabalhadores a viajar diàriamente.” (TORRES, 1970, p.86) Isso fora as linhas de bonde que servem Santana, o bairro não está mais isolado. [...] Ora, Santana, bairro semi-rural, não gozará logo de melhoramentos urbanos essenciais de modo que muitos terrenos, principalmente da parte alta do bairro, serão vendidos relativamente baratos, o que permitirá a pessoas sem muitos recursos a construção de casas modestas, sem muita beleza e confôrto. Sem meios para construções mais confortáveis e de melhor aspecto, sem recursos para embelezamento de seus lotes, os compradores de tais terrenos acabam se amontoando em ruas mal planejadas, sem praças ou áreas arborizadas. (TORRES, 1970, p.86)
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Santana deixa de ser um bairro agrícola para ser também residencial e de recreio. Uma espécie de subcentro dos outros bairros periféricos (FIGURA 31 e 32). A Voluntários da Pátria parece mais uma estrada do que uma rua, percorrida por tropas e carros de bois, com prédios baixos de pau a pique e imensos quintais com cercas de bambu ou caraguatá, há poucos lampiões. O rio Tietê se torna um dos fatores do desenvolvimento de Santana, quando às suas margens se instalam os clubes de regata: o Clube de Regatas São Paulo (1905), Clube Espéria e o Clube Tietê (1912). O serviço de água e esgoto só chegará em 1915, quando começa-se a construção de residências mais caras no alto de Santana. Em 1918, há o calçamento de várias ruas e linha de bondes é ampliada (FIGURA 33). Em 1934, Santana tem 43 mil habitantes, em 1940, 55 mil e em 1950, 90 mil. Entre 1948 e 1955, houve um aumento de 86% na quantidade de passageiros transportados de bonde, ônibus e tramway. Em 1942 é inaugurada a Ponte das Bandeiras que foi construída praticamente no mesmo local da Ponte Grande. Ela tem três vãos, cento e vinte metros de comprimento e trinta e três de largura. Seus pilares tem vinte e cinco metros de altura e tinha iluminação considerada “de luxo” para a época. É aprovado por Prestes Maia a construção da linha Norte do Sistema de Transporte Rápido Metropolitano (FIGURA 34) em 1964. Ele iria desde o final da Av. Cruzeiro do Sul até a linha da Estrada de Ferro Sorocabana. Embora a maior densidade da população fosse servida pela linha Leste-Oeste, o maior tráfego ainda era Norte-Sul, priorizando-se então, esta segunda. Ela ligaria Santana ao Jabaquara, um percurso de 21,7 Km, com vinte e três estações. “O terreno escolhido para a construção da terminal [Santana] é uma área de 40 mil ms [...], a Marginal Direita do Tietê.” (TORRES, 1970, p.125) Inicialmente, o Campo de Marte foi ocupado para exercícios da Força Pública estadual, mas ao ser criada a sua Escola de Aviação, em 1918, passou a ser usada pelos aviões e vários hangares foram construídos. Em 1932, as forças militares ocupam o campo. “A localização de um campo de aviação na várzea de Santana não favorece a construção de arranha-céus no bairro.” (TORRES, 1970, p. 132) Em 1953, Santana vira um subdistrito com 4216 hectares e 180 mil habitantes. Em 1966 já serão 34 Km² e 224 mil habitantes.
FIGURA 31 – Fotografia Santana em 1920
Fonte: Dep. Cultura – Pref. Mun. S. Paulo apud TORRES, 1970 FIGURA 32 – Fotografia Santana em 1920
Fonte: Dep. Cultura – Pref. Mun. S. Paulo apud TORRES, 1970
Tais números revelam o aspecto moderno do bairro de Santana, não mais rural, mas a um tempo residencial, comercial e industrial. Perdendo um pouco de sua poesia, perdendo seu encanto rústico, alterando-se sua paisagem pitoresca para um nôvo aspecto urbano, Santana perde, de fato,
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aquilo que fêz dêle um dos recantos mais atraentes e agradáveis do fim do século XIX e primeiras décadas do XX. Quase deixa de ser um passeio para turistas, disto conservando apenas o fato de ser passagem para o Hôrto Florestal, um dos lugares mais lindos de todo o Estado de São Paulo, e onde se situa o Palácio do Govêrno do Estado. (TORRES, 1970, p. 135-136)
FIGURA 33 – Fotografia Santana em 1925
5.2.
Santana em 1925. Fonte: Dep. Cultura – Pref. Mun. S. Paulo apud TORRES, 1970 FIGURA 34 – Quadras imediatas a Estação Santana antes de sua implantação
Fonte: VASP CRUZEIRO, 1954
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O local hoje
O texto de Maria Celestina Torres utilizado para a referência do histórico é de 1970. Aqui dissertar-se-á sobre o que aconteceu no bairro de Santana desde então. A Estação de Metrô Santana (FIGURA 35) foi inaugurada em 1975, “Na projeção da Avenida Cruzeiro do Sul, a linha reproduziu a estação elevada padrão para as estações Portuguesa-Tietê, Carandiru e Santana, distintas a cada ponto de parada, por blocos de acesso específicos [...].” (TERAZAKI, 2011, p.91) O metrô foi responsável por consolidar o polo de Santana enquanto centro da Zona Norte. O que foi intensificado por ser ao lado do Terminal de Ônibus Santana, da onde se ramifica o transporte público para toda esta área. No que diz respeito a espaços culturais ou de permanência, Santana é um pouco defasada se comparada a outros bairros de mesmo tamanho. Apesar do comércio garantir o movimento dos finais de semana não a muito mais para aproveitar o lazer. Os importantes espaços culturais na região são: o Parque da Juventude, a Biblioteca São Paulo, o SESC Santana, Biblioteca Nuto Santanna, Biblioteca Narbal Fontes, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Clube Escola Jardim São Paulo, Praça Heróis da FEB, o Museu Penitenciário, Sambódromo do Anhembi, Teatro Alfredo Mesquita, MAAU-SP e Sopa de Letras (Pça. Margarida de Albuquerque Gimenez). Mais recentemente, alguns grandes terrenos ao lado do Campo de Marte também começaram a ser alugados para algumas baladas. Esses espaços estão em Santana e compõem praticamente todas as atividades da zona norte, já que praticamente não existe locais culturais nos bairros periféricos, além do Horto Florestal. Os espaços faltam, mas também há uma crença geral que coloca os passeios fora da zona norte como mais interessantes. Os moradores tendem a sair do bairro no final de semana para irem a programas no centro, na zona sul ou oeste. Nas quadras imediatas a Estação Santana (FIGURA 36), por outro lado, há apenas comércio e algumas poucas habitações (que normalmente começam a partir do primeiro andar). Isso torna o bairro muito ativo durante o dia e, relativamente seguro. No entanto, quando a noite cai e os comércios fecham, a estação se torna o único ponto iluminado e movimentado, além de uns poucos bares. Tornando o local mais perigoso, com mais
ocasiões de assalto e violência. Um pouco mais para baixo, na Av. Braz Leme, o movimento noturno é bem maior, já que a quantidade de bares e restaurantes aumenta significativamente.
FIGURA 35 – Metrô Santana em 1976
Fonte: METRÔ apud TERAZAKI, 2011 FIGURA 36 – Metrô Santana em 2020
Fonte: VASP CRUZEIRO, 1954
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5.3.
Inserção urbana
5.3.1. Localização e Situação FIGURA 37 – Localização e Situação do projeto
Fonte: Adaptado do GeoSampa, 2020
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5.3.2. Sistema Viário, Uso e Ocupação do Solo FIGURA 38 – Sistema viário imediato ao projeto
Fonte: Adaptado do GeoSampa, 2020
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FIGURA 39 – Uso do solo imediato ao projeto
Fonte: Adaptado do GeoSampa, 2020
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FIGURA 40 – Ocupação do solo imediato ao projeto
Fonte: Adaptado do GeoSampa, 2020
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6
.
O CENTRO CULTURAL
Pergunta 37: Por que você agita os dedos e as mãos em frente ao rosto? Balançar as mãos na frente do rosto permite que a luz entre em nossos olhos de forma agradável, filtrada. Quando fazemos isso, a iluminação se torna suave e gentil, como a do luar. [...] (HIGASHIDA, 2007, p.64) Pergunta 39: Por que você gosta de ficar na água? Dentro d’água é tão calmo, e eu me sinto livre e feliz. Lá ninguém nos incomoda. É como se tivéssemos todo o tempo do mundo. Podemos só ficar parados ou nadar de um lado para o outro. Quando estamos na água, podemos de fato estar em harmonia com o compasso do tempo. Do lado de fora, sempre existe muito estímulo para os olhos e ouvidos e se torna impossível para nós distinguir entre um segundo e uma hora. (HIGASHIDA, 2007, p.66)
6.1. Inserção
O projeto se localiza em um terreno de 5280 m², onde hoje, existe uma grande loja de departamento chamada Torra e um estacionamento. Esse lote fica diretamente a frente da Estação do Metrô e do Terminal de Ônibus de Santana. Perimetrado pelas Av. Cruzeiro do Sul a oeste, a Rua Leite de Morais ao norte e a R. Ezequiel Freire a leste. Sendo um eixo estruturador do transporte público da zona norte e uma área fortemente comercial, falta um local aonde possa se permanecer em tranquilidade. Há também uma latente questão na segurança noturna, já que os comércios fecham e deixam a estação, o terminal e os pontos de ônibus isolados. O centro da quadra de intervenção é uma vila residencial fechada por um portão, devido as mesmas questões de segurança. Dessa maneira, enquanto intervenção urbana, o projeto precisa ser um polo de vida noturna. Para isso, em seu térreo foi implantado comércios e restaurantes, que funcionariam após o entardecer para atender os eventos culturais que também se desenrolariam. A permeabilidade de quadra foi primordial para incentivar o fluxo para o centro cultural e para criar camadas de adentramento do espaço, transicionando de forma suave o externo e o interno. A vila, dessa maneira, foi acoplada ao novo uso e revitalizada com vegetação. Já que a segurança está sendo restaurada, ela não precisa mais de portões. A rua fechada e concretada foi transformada em uma rua de pedestre pública arborizada, cujo quintal é um centro cultural. No lote do projeto em si, criou-se áreas de permanência diferenciadas. Na esquina da Cruzeiro do Sul com a Leite de Morais, uma grande cobertura de muxarabim amadeirado fornece uma sombra. Suas aberturas são escalonadas, sendo as mais abertas próximas a calçada e, as mais fechadas, próximas a edificação. Convidando o usuário de forma sútil na direção em que a sombra aumenta. Embaixo do muxarabim, a permanência é totalmente pública e urbana e se desenvolve em vários usos. Há grandes bancos de concreto, canteiros com plantas aromáticas, dois objetos de concreto que se desdobram em pistas de skate e arquibancadas invertidas (enterradas no solo). Na esquina da Leite de Morais com a Ezequiel Freire estão os comércios e os pontos de ônibus (pré-existentes neste local). Criou-se uma laje plana que faz sombra ao pedestre, em uma altura mais baixa do que o muxarabim, demonstrando que a permanência neste local é mais curta e mais direta. Há dois locais de entrada para a quadra e dois de entrada ao edifício. O primeiro, está na Leite de Morais, no centro da quadra. Nesse ponto, o edifício ocorre apenas no andar superior, deixando o térreo livre, como uma marquise. O piso tem um declive que insinua de forma sensorial a entrada. Neste local há também o acesso a um elevador que atinge o piso superior. Quando se 79
cruza o baixo do edifício, chega-se ao jardim central. O jardim central é todo vegetado, desde sua forração até grandes árvores. Ele também possui o acesso a viela habitacional pré-existente. Possui uma grande área de permanência com mobiliário urbano e mais uma arquibancada invertida. A segunda entrada da quadra fica na Ezequiel Freire, também por baixo do edifício e também acessa o jardim central. No mesmo ponto dessa, é possível entrar no edifício. Um elevador desemboca dentro do andar superior e uma escada acessa a varanda lateral. Para entrar no edifício pelo térreo, percorre-se o muxarabim na Cruzeiro do Sul até a porta. Nesse ambiente haverá acesso ao jardim central e ao andar superior (escada e elevador).
6.2. Partido
Para o edifício, as primeiras diretrizes foram em relação ao autismo. Para que sua disposição interna fosse fácil de ser entendida, optou-se por um sentido único e longitudinal de descolamento. Devido a esse, o prédio assumiu um formato de C que se desenvolve a partir das necessidades do térreo explicitadas anteriormente. A cobertura em muxarabim e a laje plana, que abriga o ponto de ônibus, foram implantadas seguindo as linhas já existentes das outras edificações da quadra, de modo que o projeto não destoe do entorno. A altura de dois andares foi adotada pelo mesmo motivo. A materialidade escolhida foi o concreto e a madeira, com aberturas em vidro. O concreto foi escolhido para fazer referência a arquitetura da estação Santana e por ser um material bastante textural. A madeira é similar a cor das telhas de cerâmica comuns ao bairro e é um material que tem temperatura similar a do ser humano. No projeto, adotou-se portais amarelos para as áreas que possam apresentar qualquer desafio de estimulação No que diz respeito a disposição interna, adotou-se um zoneamento sensorial, definindo assim, de forma clara um sentido primordial que seria explorado em cada espaço.
6.3. Programa
O programa foi divido em necessidades externas e internas. Nas externas estão as áreas de permanência, o ponto de ônibus e um bloco funcional que inclui comércio, administração, banheiros e salas de terapia ou acompanhamento. Estes, possuem um vão entre parede e laje, que é fechado com vidro quando encostado em outro uso e sem fechamento quando voltado ao exterior. No interno, chegou-se em quatro grandes alas, definidas por um sentido: Silêncio, Tátil, Labirinto + Reverberação e Visual. Além disso, há uma varanda lateral que funciona como um mirante a estação Santana e uma área de apoio às salas dos sentidos. A sala do Silêncio é um local de acolhimento. Adotou-se medidas para que a reverberação 80
do espaço fosse a mais baixa possível e o isolamento acústico bastante alto. Há mesas para pequenas reuniões em grupo e um sofá para permanência mais individual. Essa sala tem dois objetivos: atender as pessoas com casos mais graves de autismo, auxiliando-as a viver o ambiente público, e um espaço de fuga para qualquer pessoa que precise de mais tranquilidade. Os móveis da sala proporcionam uma experiência de casulo e há um vitral neutro. No Tátil ainda se busca o acolhimento, mas ao invés de minimizar todos os sentidos, explora-se a estimulação agradável. Uma laje alagada na sua cobertura distribui água esquentada de maneira solar em uma cachoeira para dentro do espaço, até um espelho d’água que, sem o aquecimento do sol, tende a ter água mais fria da que cai. Promovendo assim, duas temperaturas. Esse movimento também promove o ruído da água, considerado extremamente tranquilizante. O Labirinto é feito de divisórias de madeira que criam um caminho a ser percorrido, ensinando, de forma controlada, como percorrer um espaço não conhecido e de difícil visualização. Este, desembocará em duas pequenas salas caracterizadas por terem reverberações muito distintas (uma curta e outra longa) – Reverberação. Espera-se que ao experimentar ambas, possa-se entender melhor como o som funciona e temê-lo menos. Esses ambientes são mais desafiadores e, por isso, um corredor paralelo foi criado, caso haja a necessidade de evitá-los. O corredor é bem arejado e tem vista ao jardim central. Saindo das salas de reverberação e ao fim do corredor começa uma circulação vertical – composta por elevador, escada e uma grande arquibancada de permanência – que terminará no espaço Visual. Visual, por fim, é um grande espaço de exposições onde um grande vitral colorido explora as cores e cavaletes que podem ser iluminados estão dispostos no centro. Ao iluminar as obras de arte com várias cores, pode-se testar e entender como a luz funciona.
6.4.
Peças Gráficas
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FIGURA 41 – Render projeto • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 42 – Visão serial imediato ao projeto • Fonte: Adaptado do GeoSampa e do Google Maps, 2020
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FIGURA 43 – Diagramas • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 44 – Render entorno • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 45 – Render muxarabi • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 46 – Render marquise • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 47 – Render noturno • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 48 – Render viela • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 49 – Render jardim • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 50 – Implantação • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 51 – Planta térreo • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 52 – Planta superior e Corte AA • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 53 – Planta cobertura e Corte BB • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 54 – Elevações • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 55 – Silêncio • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 56 – Tátil • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 57 – Tátil • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 58 – Labirinto e Reverberação • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 59 – Visão • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 60 – Visão • Fonte: Elaborado pela autora
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FIGURA 61 – Visão • Fonte: Elaborado pela autora
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Pesquisas efetivas sobre o autismo começaram a serem feitas apenas na década de 70. Nesses últimos cinquenta anos, um tempo relativamente curto, já se descobriu o bastante para que medidas possam ser tomadas de maneira a abranger as pessoas do espectro e reabilitá-los. Costuma-se haver um distanciamento entre os pesquisadores do cérebro e da mente e essa relação deveria ser estreitada. Na opinião da autora, o processamento inadequado dos sentidos é o que dificulta a compreensão do ambiente e do desenvolvimento social, pois sua energia está sendo gasta tentando abafar ou compreender o que os rodeia. Não obstante, a terapia se mostra uma maneira eficaz e rápida de auxiliar no entendimento desses sentidos. Assim sendo, a arquitetura pode sim agir como uma terapia tridimensional, que ora acolhe, ora ensina. Já é tempo das construções serem mais do que teto para cobrir as cabeças, principalmente quando há todos os meios para que elas o sejam. O espaço pode causar experiências – e deve causá-las – e para isso, precisa começar a se firmar em mais do que nos olhos. As redes sociais, cada vez mais, instigam as pessoas nessa direção visual, onde uma foto torna-se tudo o que tal coisa é. Mas por outro lado, quanto mais tempo se gasta no audiovisual, mais as experiências imersivas e sensoriais são valorizadas quando experimentadas, pois essa possibilidade está gradativamente sendo esquecida. O projeto pretende explicitar o construir contemplando o autismo. De forma simples, deve-se permitir que o espaço seja facilmente compreendido e dê dicas sobre o uso e o estímulo de cada ambiente, de preferência, antes que ele seja adentrado. Também é bom tomar cuidado com a superestimulação, um ambiente sensorial não é um ambiente ofuscador. É preciso destacar que os espaços devem ser benéficos a todos os indivíduos. E que não se deve criar espaços apenas para o autismo, muito pelo contrário, é preciso incluir essas pessoas na sociedade, que é de todos, em vez de criar espaços exclusivos a elas, “espaços para pessoas especiais”. Chega-se mais longe quando todos podem contribuir ao mesmo fim. COVID-19 Produzindo essa dissertação no ano de 2020 é impossível não mencionar a epidemia que assolou o mundo: o covid-19. “Como o vírus muda a forma como projetamos arquitetura?” se tornou a principal pauta de conversa dentro deste meio. Todos que foram considerados “não-essenciais” à sobrevivência do coletivo foram instruídos a ficarem em casa. A internet passou a ser o único contato dos isolados com o resto do mundo. Novos locais para atender o contingente médico foram requeridos. Comércios que vendiam elementos dispensáveis foram fechados (muitos faliram). De que forma, então, “esse novo modo de vida” afetaria este projeto, de que forma essa ex105
periência poderia auxiliar (ou até beneficiar) uma construção que se propõe a atender o espectro autista. Principalmente, quando se trata de um edifício ligado ao lazer e ao autoconhecimento. Fazê-lo ser possível a distância não faz sentido, pois busca-se justamente o oposto: colocar as pessoas em contato com o ambiente que as cerca. Apesar de flexibilizar o seu uso ao adotar muitos ambientes amplos, não se acredita que ele serviria de forma satisfatória enquanto um local para atendimento de emergência, já que ele se legitima exatamente na singularidade de cada espaço e no poder dessa especificidade em favorecer a interação sensorial dos indivíduos da síndrome com o ambiente que os rodeia. Conclui-se, então, que a epidemia poderia ajudar a validar a importância do trabalho. O isolamento social parece ter manifestado uma revalorização do contato humano. Há um desejo de tocar as pessoas e vê-las de perto, em toda a sua glória tridimensional. Mas e se não fosse um vírus? E se o que mantém alguém recluso não é um vírus, mas uma intensa perturbação sensorial. E este fator não irá afetar essa pessoa por alguns meses, mas pelo resto da vida. Quando se pesquisa a comunidade autista mais a fundo, fica muito claro que muitas pessoas do espectro (especialmente os casos mais severos) ficam em casa. E isso não é devido a pais superprotetores (ou qualquer outro tipo de conclusão), é por um motivo muito mais simples, e que diz respeito aos arquitetos: não se constrói considerando as pessoas com autismo, e eles simplesmente não conseguem permanecer sem esforço nas construções. Esse momento, em que todos reconhecem a importância da vivência pública, é o ideal para exercer a empatia com pessoas que lutam para participar dela. Pesquisando sobre o autismo na arquitetura, talvez por ser uma área ainda recente, encontra-se apenas dois usos: educacional e médico. Usos essenciais. Mas já se aprendeu que uma vida agradável não se resume ao essencial, áreas de lazer que contemplem a todos são extremamente necessárias para que se possa viver e não sobreviver.
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RECONHECEU ALGUMAS PERSONALIDADES E PERSONAGENS? Ryan Lee tem autismo de alto funcionamento e é advogado. Em 2018, ele foi em “Special books by special kids”, um canal no YouTube que entrevista pessoas vivendo com todos os tipos de condições.
Temple Grandin é uma das pessoas mais influentes com autismo de alto funcionamento no mundo. Além de biológa, ela escreveu muitos livros e, em 2010, o filme “Temple Grandin” foi lançado pela HBO contando sua história.
Naoki Higashida tem autismo não-verbal e escreveu seu primeiro livro aos 13 anos. Hoje, aons 28 anos já lançou mais de vinte livros em sua língua materna. 110
Shaun Murphy é o protagonista de “The good doctor” da American Broadcasting Company. Na série, o médico com autismo de alto funcionamento e Síndrome de Savant se muda de sua cidade natal para começar a residência em um hospital.
Samuel Gardner é o protagonista de “Atypical” da Netflix. Na série, um adolescente com autismo de alto funcionamento busca encontrar uma namorada e se tornar independente.
Lotus participa do reality “Love in the spectrum” da Netflix. O programa ajuda as pessoas do espectro a se relacionarem e a trabalharem sua dificuldade de socialização. 111
Larissa Victorino Pereira • São Paulo • 2020