Olhar em Volta: Bela Vista

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caderno de registros



O cotidiano das grandes cidades exige que seus habitantes tenham com ela uma relação cada vez mais objetiva e direta. Em geral, as pessoas deslocam-se de maneira funcional, assumindo a posição de passantes, sem tempo de apreender e refletir sobre o que acontece a seu redor. A oficina Bela Vista: Olhar em Volta ocorreu no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em novembro e dezembro de 2014 sob orientação da artista Laura Andreato. Os encontros tinham como objetivo promover a vivência e a reflexão sobre o cotidiano da cidade em seus mais diversos aspectos, proporcionando uma outra aproximação com o espaço urbano. A proposta era que os participantes experimentassem o caminhar como prática reflexiva, e não somente como meio de chegar a algum lugar. Diferentes meios e procedimentos como o desenho, a escrita, a fotografia, o vídeo forram utilizados para registrar observações durante os percursos. Por meio da combinação entre a experiência perceptiva dos percursos, leituras e referências, vivenciamos a cidade como um enorme campo possível para construções simbólicas, poéticas e metafóricas.



Percurso 1

Avenida nove de julho

Avenida Paulista Parque

do Trianon

Conjunto Nacional

MASP


Delírios de uma tarde sem chuva Texto: Cristina Oka Fotos: Eva Bella

Saímos de um buraco no Saracura, em direção ao Caaguaçu. O riacho Saracura encontrava-se repleto de movimento, gentes e botes. A subida íngreme do Caaguaçu merecia uma parada. Do outro lado do vale, pradaria ofuscante. Subitamente, algumas de nós foram atacadas por membros de uma tribo inimiga. Felizmente não cortaram as cabeças, apenas levaram seus adornos. Continuamos subindo, mais rápidas, em direção ao ponto mais alto. A pedra que marcava a chegada ao topo nos acolheu, cálida. Não resistimos a olhar pelas bordas do espigão, quem sabe o inimigo não estaria ainda à espreita...


Foi quando notamos outras cara pálidas, com coisas engraçadas coloridas cobrindo suas partes de baixo e de cima, e umas faixas atravessadas com caracteres ininteligíveis sobre os peitos. Elas não notaram nossa presença na selva, e continuaram seu caminho. Logo macacos as cercaram. Cheiravam, apalpavam, esfregavam bananas sobre elas. Resolvemos seguir caminho. Macacos sabem ser malcriados quando querem.


Entramos no bosque, e além das borboletas e pássaros, logo um casal de preguiças se fez notar no alto de um cedro. Nossa tribo não crê em espíritos de pedra, mas rendemos breves homenagens ao fauno na entrada do bosque.

Encontramos vestígios de moradias antigas, de antigos povos que este pedaço de chão abandonaram. Eram trabalhadas, mas encontravam-se estragadas, pela ação talvez de índios mal-educados. Chegamos a um ponto que nos desafiou a subir em caracol.

A trilha do espigão ziguezagueava pedras moldadas, quartzos que brilhavam como pontinhos estelares nas altas rochas. A fauna e flora do caminho era diversificada e interessante.

Lá em cima, paragem agradável, mas um bugre nos observava de longe para saber se não íamos roubar a alma dele. Fizemos uma dança circular e nos despedimos.

Mas tínhamos que seguir caminho, logo iria anoitecer, e nós, índias paulistanas, não gostamos de sermos pegas de surpresa pelos animais noturnos.

Cada uma de nós seguiu por uma trilha diferente, despistando a noite que caía.



Haikais para a Bela Vista Texto e fotos Cristina Oka





Pensando com mapas LuĂ­sa Estanislau











Sobre nosso primeiro encontro Por Telma Castilho

Duas idosas na mesa do bar, uma cerveja, muitas risadas.

a mais paulista das avenidas.

A esquerda um paredão de prédios esconde o céu.

Abordagem filantrópica.

Um casal brigando.

Alguém passa falando: corte na seção.

Sirene de ambulância.

Associo um som. Um som particular.

Corredor de ônibus.

Sol das 17 mas são 16, ninguém engana a natureza,

O porteiro varre a calçada.

mas é horário de verão.

A moça fuma ansiosa na portaria do prédio.

Um olhar desconfiado no meu bloco e lápis na mão.

A senhora me pergunta onde é o Masp.

Se soubesse desenhar o faria então,

Informação.

olhar de paulista, coração suspeito.

Prédio de Alto Padrão.

Transito então.

No muro: 3,20, Não!

Todos os caminhos dão nele, sem solução.

Grafite ou Pichação.

Imagem em transição, entro no busão.

Ideologia e Poluição.

Recebo uma ligação.

Nas vias engravatadas, cheguei a Paulista

Alguém me desconecta desse caminhar vadio, realidade conectada, esperança errante adiada para o próximo flanar.


Ruas Cansadas Por Telma Castilho

Essas ruas estão cansadas. Cansadas de procurar caminhos, trajetos e motivos para encontrar. As vezes tudo termina em um beco. Mas para o gato não. O gato escala muros e ganha os telhados. Telhas mornas de sol recebem os gatos e os pássaros, por sorte dos gatos. As ruas estão cansadas de mim talvez, pois insisto em transitar por elas, as vezes sem destino,

cansada também daquele que me foi imposto. Se tiro os sapatos sinto em meus pés o cansaço da rua e ela o meu. Pequenos pedregulhos magoam meus pés. Olho a extensão da rua cansada e prossigo andando. Andar é como viver. As vezes não se sabe o porque, o pra onde, o pra quem, mas se segue: andando. Compreendo o cansaço das ruas, dos pés e do meu coração.


Voo Solo texto e fotos Aracy Machado Campos

Foi Estranho

A impressão não foi das melhores.

Olhei ao redor e não havia muito a escolher Somente depois de uma caminhada pelo local. percebemos como nos acostumamos com padrões estabelecidos, às vezes até por nós mesmos


Trianon Refúgio No Trianon, que ainda conserva vegetação original, temos duas quadras de verde e sombras: 48.624m2 O som do trânsito entra amortecido. Bicas de água em pedra, ponte de madeira, playgrounds, caminhos para se andar a pé.

texto e fotos Aracy Machado Campos


Bela Vista Voltei! Fiquei sabendo que o nome não era por acaso Área mais alta de São Paulo Conhecida pelas paisagens espetaculares de quem vê de cima Ah! Pensei: tudo acontece no andar de cima!


“...Ver é reto, olhar é sinuoso. Ver é sintético, olhar é analítico. Ver é imediato, olhar é mediado. A imediaticidade do ver torna-o um evento objetivo... A lentidão é do olhar, a rapidez é própria ao ver. O olhar é feito de mediações próprias à temporalidade. Ele sempre se dá no tempo, mesmo que nos remeta a um além do tempo. Ver, todavia, não nos dá a medida de nenhuma temporalidade, tal o modo instantâneo com que o realizamos...É como se depois de ver fosse necessário olhar, para então, novamente ver... Ver e olhar se complementam, são dois movimentos do mesmo gesto que envolve sensibilidade e atenção.” Aprender a pensar é descobrir o olhar, Márcia Tiburi


Imagem Aracy Machado Campos


“Para o perfeito flâneur ... é um imenso regozijo eleger domicílio no número, no ondulante... Estar fora de casa e, no entanto, sentir-se em casa em qualquer lugar; ver o mundo, estar no centro do mundo, e ficar escondido do mundo... O observador é um príncipe que, em toda parte, usufrui do seu incógnito... O apaixonado pela vida universal entra na multidão como num imenso reservatório de eletricidade. Pode ser comparado também a um espelho..., a um caleidoscópio dotado de consciência que, a cada movimento, representa a vida múltipla e a graça movente de todos os elementos da vida” Charles Baudelaire, O Pintor da Vida Moderna



Percurso I I

Teatro Oficina

vila Itororo


h Lina projetou o Oficina como uma rua faixa de terra coberta por pranchas de madeira palco-passarela rua passagem

parede norte com esquadrias envidraçadas abertas sobre a cidade

h

abóbada de aço deslizante que permite ver o céu





Fotos Laura Andreato


Aracy Campos Machado



Percurso III

rua Treze de Maio

Igreja Nossa Senhora da Achiropitta Praca dom Orione



Fotos Laura Andreato


Fotos Laura Andreato


j

Walter Taverna


Fotos Eva Bella

Fotos Eva Bella

Bela Vista ao vivo e sem cores



Fotos Eva Bella





“O armazém do Natale era célebre em todo o Bexiga por causa deste anúncio: AVISO ÀS EXCELENTISSIMAS MÃES DE FAMÍLIA! O ARMAZÉM PROGRESSO DE SÃO PAULO DE NATALE PIENOTTO TEM ARTIGOS DE TODAS AS QUALIDADES DÁ-SE UM CONTO DE RÉIS A QUEM PROVAR O CONTRÁRIO N. B. - JOGO DE BOCCE COM SERVIÇO DE RESTAURANTE NOS FUNDOS.

Isso em letras formidáveis na fachada e em prospectos entregues a domicílio. O filho do doutor da esquina, que era muito pândego e comprava cigarros no armazém mandando-os debitar na conta do pai com outro nome bulia todos os santos dias com o Natale: - Seu Natale, o senhor tem pneumáticos-balão aí? - Que negócio é esse? - Ah, não tem? Então passe já para cá um conto de réis. - Você não vê logo, Zêzinho, que isso é só para tapear os trouxas? Que é que você quer? Um maço de Sudan Ovais? E como é na caderneta? - Bote hoje uma Si-Si que é também pra tapear o trouxa. O Natale achava uma graça imensa e escrevia: Duas Si-Si pro Sr. Zézinho - 1$200.”

Trecho de Armazém Progresso de São Paulo in Brás, Bexiga e Barra Funda Antônio de Alcântara Machado


“Eu amo a rua... Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhes as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes: a arte de flanar.” João do Rio (1881-1921)



As Caminhantes Aracy Machado de Campos Carmem Sílvia Félix Cristina Oka Eva Bella Luísa Estanislau Telma Castilho

Agradecimentos Centro de Pesquisa e Formação do Sesc-SP ( Ieda, Marcos e Rosana) As Caminhantes Marília Gallmeister Associação Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona Alessandro Buzo Walter Taverna

as Imagens e textos que integram esta publicação foram produzidas e coletadas pelas Participantes do Curso Olhar em Volta, realizado em novembro e dezembro de 2014 no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc-SP



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