narrativas de uma transeunte

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narrativas de uma transeunte


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laura berbert

narrativas de uma transeunte transeunte tran.se.un.te (zé-ún) adj m+f (lat transeunte) 1 Que passa, que não é permanente; transitório. 2 Que vai andando ou passando. 3 Filos Que da causa passa ou se comunica ao efeito. s m+f Pessoa que passa ou vai passando; passageiro.


zona escorregadia ou luminosa zona opaca zonas lentas


território delimitado: avenida Afonso Pena, espinha dorsal do centro de Belo Horizonte. por lá caminhei o meu corpo, sujeito ao erro, mais devagar; mais corpo todo. me certifiquei de que a minha capacidade de atravessar e ser atravessada não atrofiasse. minha experiência se fez no olho da rua. agora vive aqui enquanto narrativa.


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sobre o espaço experimentado 10 sobre o corpo errante 11

[1° incursão

eu-corpo-doméstico

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notas atravessantes

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[1ª incursão fotográfica] 15 [domingo na avenida] 22 [caminhar] 26

micronarrativas errantes

[NARRATIVA I] [NARRATIVA II] [descansar] [NARRATIVA III-IV]

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corpografias 72 por fim 76 apresentação 78 referências bibliográficas 79


sobre o espaço experimentado: Av. Afonso Pena 115 anos 4,3km região central Belo Horizonte


sobre o corpo errante: Laura Berbert 22 anos 1,64m 52kg uberlandense residente em BH hรก 3 anos e 6 meses


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eu-corpo-doméstico, não estava habituada à rua. Ela era, para mim, meio de sair de um teto e chegar a outro. Levar o meu corpo a percorrer um território não-familiar (apesar de cotidiano), no início, não foi tarefa fácil. Minha intenção primeira era estudar a rua, analisá-la e arbitrar se ela era, ou não, lugar favorável à vivência do homem. Para isso, eu não precisava nem mesmo ter saído de casa; podia como tantos olhá-la apenas de cima. Desde o início errei. Falo agora do meu corpo, mas no começo me sentia expropriada dele. Propunha-me a falar da cidade, mas não sabia ao certo como eu me localizava nela. Tentava definir idéias, estratégias, modos de estar na rua; e ela sempre me respondia imperativa com o fracasso. Insisti. Aos poucos fui me permitindo entrar no ritmo dos outros passantes. Depois de algumas idas à Afonso Pena, passei a entender o meu percurso lá, não mais de forma linear e horizontal - como quem deixa algum lugar para alcançar outro. Eu agora mergulhava em espiral, indo cada vez mais fundo - infinito. Algumas caminhadas duraram horas, outras minutos. Todas são parte do meu processo como errante. Cada passo do meu caminhar modificou a minha relação corpo-cidade-corpo. Estas narrativas são memória da minha experiência no espaço urbano. E elas só se justificam pelo meu desejo de transmitir ao outro, em qualquer grau, como foi o meu andar mais lenta, sujeita ao erro e mais corporificada. 13


notas atravessantes


[1° incursão fotográfica: a descoberta de inúmeras paisagens] [17 de abril, terça-feira]

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Munida de uma máquina analógica descartável desci do ônibus (linha 2004) no ponto da Praça Sete, quando voltava da faculdade. Meu objetivo era caminhar até a Praça Rio Branco e depois voltar a Praça Sete onde pegaria o ônibus para ir para casa. Meu ponto de partida naquele dia: uma máquina que passava despercebida, vinte e quatro poses e um trecho da avenida a ser visitado. As coisas a serem fotografadas eram infinitas, as poses limitadas. Eu deveria escolher, mas não sabia bem o que. Iniciei minha caminhada meio tímida frente ao turbilhão de coisas passíveis de serem congeladas pela minha câmera, também tímida. Me restava apenas começar. O céu estava particularmente azul naquele dia, minha primeira foto foi um recorte: um pedaço de céu e nuvens, um edifício e um pouco de verde das copas de duas árvores. Agradou olhar o céu tão azul pelo visor de plástico embaçado, fiz mais duas ou três fotos com a mesma idéia. Acho que isso foi no primeiro quarteirão percorrido. Quando parei para esperar minha vez de atravessar a rua, atentei o meu olhar para outras coisas. Coincidências como uma mulher de vermelho parada ao lado de um sinaleiro de pedestre também vermelho, ou um homem de verde ao lado de um sinaleiro indicando passagem, me encantaram e convenceram que eram merecedoras de uma foto. 16


Caminhando um pouco mais me atentei para placas de sinalização do trânsito e também para as placas dos pontos de ônibus. Penso que esse desvio do meu olhar para imagens referentes ao fluxo aconteceu devido ao trânsito caótico nas proximidades da Praça da Rodoviária. Como da outra vez, não consegui passar muito tempo por ali. O sol já estava ficando mais baixo quando parei em uma esquina por causa do fluxo confuso de pessoas, no meio dos passantes estava um carrinho de pipoqueiro que teria passado despercebido (não são raros ao longo deste trecho da avenida) se não fosse a luz que passava exatamente entre eu e o carrinho. Tive que parar para uma foto. Sentindo fome não deixei de notar a vendedora de biscoitos que estava logo no quarteirão da frente; por estar parada em uma calçada repleta de toldos e árvores, o ambiente estava meio escuro e os seus biscoitos brilhavam extremamente amarelos. Nesse ponto minha timidez já tinha dado lugar ao cansaço, que acompanhado por uma dose de coragem fez com que eu fotografasse a vendedora quase que de frente. 17


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Depois daí comecei a pensar nos outros personagens tão caros a avenida. Chegando a Praça Sete, avistei um comprador de ouro. Covardia a minha, dessa vez o fotografado estava de costas. Logo me encaminhei para o ponto de ônibus de costume, mais uma vez eu chegaria exausta em casa. Dois ou três dias depois, pude encarar as fotos disparadas naquela incursão. Elas justificaram o cansaço que senti ao chegar em casa naquele dia. A caminhada pelo trecho da avenida me levou a visitar inúmeras paisagens. 20


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[domingo na avenida]

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Vencida a inércia típica de domingo, olhei o horário do ônibus e fui para o centro da cidade. Na madrugada anterior, passando pela Afonso Pena, o tilintar das estruturas de ferro das barracas da Feira Hippie foi um lembrete: eu não podia deixar de experenciá-la. Eu gostaria de ter acordado a tempo de passar a manhã toda na rua. Mas por ser domingo, a dificuldade de iniciar o dia foi maior. Para tornar a saída de casa mais atraente, chamei um amigo para a caminhada e prometi que terminaríamos a tarde em alguma padaria da região. Chegando a Avenida Augusto de Lima, encontrei meu amigo e então nós descemos até a Afonso Pena pela Bahia, que é uma das ruas que delimitam o espaço da feira.

Minha esperança era de ao menos encontrar o caminhão-pipa que, religiosamente, todos os domingos se presta ao serviço de lavar a avenida e torná-la apta a receber novamente o seu fluxo normal de passantes. Pois bem, cheguei tarde mas a avenida ainda não estava liberada, o que foi um privilégio para a caminhada; já que nos dias normais a caminhada de todos os pedestres se limita ao passeio e em alguns casos ao canteiro central. No domingo ainda que por pouco tempo pude caminhar no meio da rua. Quando cheguei o caminhão-pipa já tinha feito chover na avenida. Deparei-me com imagens lindas, os prédios estavam trêmulos refletidos nas poças de água no asfalto. Por alguns minutos observei as imagens molhadas e os números marcados em azul no chão. Já quase não havia vestígios da feira, só algumas lonas dobradas e canos de ferro encostados no canteiro central.

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Depois de algum tempo fotografando os poucos rastros que haviam da feira ali, comecei a ouvir um chiado crescente...Aos poucos um grupo de garis caminhavam da outra ponta da área interditada para a ponta onde eu estava. Eles caminhavam quase que lado a lado varrendo as últimas latinhas deixadas para trás, pareciam coreografados. De repente senti o domingo como uma quarta-feira de cinzas. Os garis não só limpavam os restos da 'festa' que havia ocorrido ali mais cedo, mas fechavam o desfile. Senti aquela situação tão bonita que não hesitei em filmar, eles estavam cada vez mais próximos. Uma das mulheres que varria, ao passar por mim e se perceber sendo filmada...brincou e acenou pra mim. Me senti um pouco como no fim do carnaval. Quando eles alcançaram a outra ponta da feira, um caminhão recolheu o lixo que eles tinham varrido. Alguns guardas de trânsito trabalhavam para que o trânsito fosse restabelecido ali. Caminhei até a esquina da rua João Pinheiro, que já tinha seu fluxo normal, e acompanhada de meu amigo fomos para uma padaria ao lado do Edifício Maleta. Depois de um misto quente e um café com leite, voltei até o ponto de ônibus. Tal como a avenida, eu me preparava para uma nova semana. O domingo acabou.

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[caminhar]

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caminhar ca.mi.nhar (caminho+ar2) vint 1 Percorrer caminho a pé: Esta é a estrada; agora, caminhemos. vint 2 Pôr-se em movimento; rodar, seguir: O jipe caminhava, rumo à fazenda. vint 3 Navegar, velejar: Ao longe, caminha um iate. vint 4 Campear: Nesse ambiente caminhava a corrupção. vint 5 Progredir: Assim caminha a humanidade. vti 6 Ir, dirigir-se: Caminhou ao jardim. vti 7 Marchar, seguir: Caminhai para o alvo que vos foi proposto. vtd 8 Andar, percorrer: Caminhei toda aquela distância. Caminharam dois quilômetros.

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Quinta-feira. Final de tarde. Coloquei-me a caminhar. O desejo era um só: um pé, depois o outro; e assim seguir, com o olhar sempre navegando abaixo da linha do horizonte. Parti da porta do Palácio das Artes. (Confesso, hoje sou afeiçoada ao passeio do parque, que foi sempre generoso com a minha caminhada por lá). O meu andar olhando para o chão causou estranhamento nos outros, e isso transformou a ambiência que me circundava. Passei por um grupo de pés que aguardavam a chegada do ônibus, depois pés-executivos (acho que corriam para alguma reunião de trabalho)... mudei o meu tempo de caminhada ao encontrar um andante que seguia sobre 3 apoios: dois pés tão cansados e um bastão que os auxiliavam. O seu andar imprimia um ritmo que nenhum outro fazia, andar-experiente. Ao atravessar a Bahia meus pés alcançavam a velocidade de todos os outros. Asfalto, calçamento, guimba de cigarro, sandália de salto alto, chinelo, tênis, plantinha nascendo entre o concreto. Parei para atravessar para o outro lado da avenida. Com os olhos já cansados de estarem submersos, olhei para o céu para respirar. Oposto à organicidade ordinária do chão, o céu estava austero, geométrico: placapreta, prédio-cinza, céu-azul-mais-cerúleo-possível. Eu me aproximava do olho-do-furacão Afonso Pena, e a caminhada tornava-se mais lenta. Passava por tantos pés que olhá-los assim de cima começou a me deixar tonta. Acelerei o passo. Já não conseguia manter o propósito de andar olhando para baixo. O mergulho me deixara ofegante. [Praça 7], voltei a respirar.

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almoรงo na [praรงa 7]

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Há alguns dias eu não vinha visitar a Avenida. Precisando ir até a rua da Bahia comprar máquinas fotográficas descartáveis para uma idéia em mente, aproveitei a ocasião e marquei o almoço. Segui para o centro por volta de meio-dia. Desci a Bahia... com as máquinas compradas, fui em busca da minha refeição. O estômago já reclamava, pois o efeito do queijo-quente no café já havia passado. Subi para a praça 7, mas não lembro exatamente por onde. Passei em frente aos fast-food’s próximos à praça, mas não entrei. Queria comer na rua. Do outro lado da avenida, segui até a São Paulo procurando alguma lanchonete. Pastéis por setenta centavos eram uma opção (prato típico da região). Nenhuma pastelaria na calçada onde eu estava. Virei na São Paulo e caminhei em direção a parte de trás da praça. No 1/4 da praça, a da rua dos Carijós, as opções de lanchonete são inúmeras. A mais interessante: Ponto da Empada. Entrei na fila e chegando minha vez não hesitei: “Uma de bacalhau e azeitona, por favor”. Meio tímida sentei em um daqueles bancos, junto de todos que eu não entendo muito bem o que fazem por lá. Uma mordida e a empadinha correspondeu às minhas expectativas. Prestes a dar a segunda mordida, senti algo atingir a minha cabeça... alguns segundos de hesitação e então levei a mão no cabelo para ver o que era. Eu acabara de ser alvo de um pombo. Sozinha não sabia o que fazer. Em uma mão, a empada, e na outra, cocô de pombo. Olhei para os lados e os que estavam sentados próximos à mim fingiram não ter acontecido nada. Voltei a olhar pra frente, e a compradora (ou vendedora) de ouro parecia estar compadecida da minha situação... - É moça, no dia que cagaram em mim eu ganhei foi muito dinheiro nessa praça... é sorte! Eu esperava mesmo que fosse... levantei e fui até ela, não precisei nem mesmo pedir, ela solícita pegou alguns guardanapos e me ajudou a limpar o cabelo e a nuca, por onde escorria a caca do pássaro. Eu arrepiava de nojo, só de olhar para o meu almoço embrulhava o estômago. Agradeci a Nábila pela ajuda, abandonei minha empada no primeiro lixo que encontrei e fui pro ponto de ônibus, do outro lado da Amazonas. Da praça até em casa eu mal me mexia, também não tinha coragem de passar a mão no cabelo que eu sentia pregado na cabeça. Se o cocô de passarinho me trouxe sorte, não sei, mas ainda estou pesarosa pela segunda mordida na empada. 35


micronarrativas errantes


[NARRATIVA I]

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SETE LAGOAS! SETE LAGOAS! SAINDO AGORA...VALADARES. Escrevo agora-aqui-agora. Sentada em uma das cadeiras vermelhas-desgastadas-escorregadias da rodoviária. mais uma vez peguei o 2103 desci na Amazonas caminhei até a ponta da Av. Afonso Pena Começo minha caminhada por essa ponta que considero mais difícil de experimentar. exige mais do meu corpo. Entendo o que dizem quando dizem: para experimentar a cidade é preciso EMBRIAGUEZ sinto que o estado de embriaguez maior é não favorecer ou confiar mais em um sentido do que outro. Todas as minhas incursões na Afonso Pena foram proposições de ir mais adentro, andar mais LENTA. Eu que confiava tanto na visão ao caminhar, compreendo e estou agora ATRAVESSADA pelo ambiente em todos os sentidos* Não preciso mais olhar para sentir os que estão sentados ao meu redor. Homens e mulheres que esperam. 38


Hoje sai sem relógio Vou ficar aqui o quanto eu tiver que ficar. E esse tempo não será contado em minutos. Algum orelhão não para de tocar TRIM TRIIIM TRIIIM...ninguém atende. Confesso que me motivou sentar aqui o TETO e as PAREDES em volta.

- A Central de Informações da Rodoviária informa: são quatorze horas e quarenta e cinco minutos. a prefeitura de belo horizonte me deseja uma boa tarde.

VOU VOLTAR PRA RUA.

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[NARRATIVA II]

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Acabo de me sentar na calçada. Estou no Parque Municipal, sentada próximo aos brinquedos do parquinho. O caminho da rodoviária até aqui parece ter demorado algo na escala de hora. Senti vontade de voltar pra casa ao passar pela [PRAÇA 7] [ponto da linha de ônibus que vai até o meu bairro] Ao passar por lá me sentei um pouco em uma estrutura montada para o FIT*. Queria ficar lá um pouco. No ¼ da praça onde eu estava sentada, havia um homem pregando AOS BERROS; sua voz era o som mais alto que eu podia ouvir. senti aquela ambiência ----> repulsiva me levantei antes que a vontade de voltar para casa me tomasse por completo. para passar a ansiedade, comprei um pacote de amendoim DOCE. Funcionou. ACALME SUA CABEÇA COM AMENDOIM AÇUCARADO POR APENAS UM REAL! eu passaria desapercebida pelo caminho da praça da rodoviária até a rua da Bahia, não fossem 3 homens consertando uma dessas portas que enrolam (porta de loja) no meio do passeio. ALICATE, MARTELO, FERRO. barulho e s t r i d e n t e Quando cheguei ao passeio do parque, tirei minha máquina da bolsa para fotografar um pouco. Haviam alguns pombos na calçada e eu desejei retratá-los em homenagem ao pombo que me fez de alvo ontem na praça 7. Estava prestes a disparar a foto quando passaram dois homens com um cachorro que os assustou.

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Ao meu lado, uma gari varria um pacote lindo o

vazio-branco-rosa de pipoca. verde-da-grade-verde do parque.

OLHA A ÁGUA MINERAL | olhando para o chão vejo pés cansados donos de um isopor cheio de garrafas d’água. Com o nariz ardido devido ao tempo seco, o barulho dos irrigadores ligados do lado de dentro foi um convite para que eu adentrasse no parque. Incrível a diferença da luz aqui dentro. Logo na entrada avistei um homem regando parte do jardim. O BARULHO, O MOLHADO E O VERMELHO do macacão me soaram CONFORTÁVEIS. Desci logo pela primeira rampa que leva até a parte central do parque. para ir MAIS FUNDO é preciso passar pelo ESCURO. MAIS ADENTRO MAIS CLARO As copas das árvores tão generosas deixam passar alguns feixes de luz que atravessam o jorro de água das mangueiras, e assim criam arco-íris. Agora posso ficar mais um pouco. Passo por algumas pessoas deitadas na grama, mas sigo em busca do barulho, MAIS EMBAIXO.

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Aqui sentada em frente à roda gigante. A pipoca no chão traz alguns companheiros: outro grupo de pombos me faz companhia. O barulho do freio de um dos brinquedos não me incomoda. Passam guardas, pessoas... ninguém se incomoda com a minha presença AQUI. Só o moço do cachorro quente me olha. é hora de levantar, meu corpo já se incomoda com o cimento DURO E ÚMIDO caminho e uma placa me chama a atenção. vou voltando para o portão do parque. Alcanço o portão do parque e por pouco não pego um ônibus para casa. Continuo

SUBO MAIS UM POUCO INSISTO MAIS UM POUCO

compro uma pipoca

– é quanto a pipoca? – quero uma pequena. – pode misturar DOCE E SAL?

passo a passo e a Av. Brasil não chega nunca. desejava percorrer mais um quarto da avenida. Me sinto um pouco abatida. Ao cruzar a Brasil, entro em uma loja de conveniência a procura de um energético. R$10,50| o dinheiro que eu trouxe no bolso não daria para isso e ainda voltar pra casa...escolho o primeiro refrigerante à mão. Sento-me na porta da loja, ao lado de uma senhora que espera seu carro ser lavado. o BARULHO da água me conforta, mas dessa vez não me convence. decido voltar pra casa. Entrego os R$2,90 – moço, eu desço na praça da Bandeira. 57


[descansar]

Após duas ou três horas de experiências na cidade, senti que precisava parar. decantar. Voltando para casa eu só pensava na sobra do macarrão do jantar de ontem e na minha cama ainda desarrumada. Para percorrer a outra metade da Avenida, meu corpo precisou repousar. Faço dessa página em branco uma pausa para passar o cansaço. Descansar. 58


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[NARRATIVA III-IV]

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De casa até a praça da Bandeira

ladeira ACIMA. Grande rotatória também é praça. Lá o sol é tão forte que pra ficar um pouco, só de testa franzida e olhos-apertados. Os motoristas intrigados: o que faz essa moça no meio da praça? Quando o sol começou a queimar demais iniciei a descida. De lá, tem que descer freiando os passos. Talvez se tivesse subido, o tempo para observar seria maior. Não sei definir ao certo se é o relevo acidentado, o passeio liso demais ou as vitrines (quase todas) tão espelhadas, que fazem daquela descida um tobogã. Difícil evitar o escorregamento para baixo. De repente me agarro à uma superfície rugosa. [ESCADA] Comendador Honório Carneiro aqui tem sombra e degrau para sentar. Com a nuca de novo fresca, retomo a DESCIDA. Atravesso para o outro lado para visitar a frente de algumas casas que parecem estar na Avenida por engano. aqui outra [ESCADA] me pede pra ficar um pouco. Mais prédios espelhados, aumento a velocidade dos passos.

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Eu que antes achava diferentes as áreas |Praça da Bandeira-Getúlio Vargas/Getúlio Vargas-Avenida Brasil| sinto-as agora iguais: ambas escorregadias. Depois da praça Tiradentes, poucas coisas me fizeram desacelerar o passo corrido da descida. Além do que habitualmente atrai o meu olhar (textura de bueiros, grades ornamentadas, árvores-esquisitas...), uma das poucas coisas que chamou minha atenção por destoar na paisagem harmônica deste trajeto, foi a estrutura de andaimes e a rede de plástico alaranjado que estava em volta; em uma reforma que acontecia atravessando o passeio. Ao perceberem a máquina em minhas mãos, os pedreiros lá do alto, gritavam para eu fotografá-los também, rompendo assim o tédio que eu sentia até ali... Desde a praça da Bandeira até a av. Brasil, tudo é muito luminoso e liso...meu olhar não conseguiu se amparar em quase nada. Palácio das Artes - final do tobogã da Afonso Pena. Mergulhei de novo na rua.

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corpografias corpo-forma, espaรงo-contra-forma. eu-inscrita, a cidade-circunscrita.


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por fim


Durante esta experiência a rua me engoliu. Agora regurgitada, Sou uma andarilha lenta. Desaprendi o andar certo. O meu caminhar hoje é torto, passo com os sentidos todos aflorados. Agradeço aos pés que caminham lentos, que me ensinaram um novo ritmo; às copas das árvores, e degraus para sentar. (Estes fizeram as pausas para o descanço mais agradáveis). Aos pipoqueiros que me abasteceram de ânimo para continuar andando. À Nábila, compradora de ouro tão solícita. Incorporei o meu corpo na cidade. Daqui pra frente sou também estas memórias-urbanas. 77


narrativas de uma transeunte é o registro do processo de experiência do meu corpo na cidade. Ele surgiu a partir do desejo de entender de quais formas a experiência se dá no espaço urbano. Para isso delimitei um território no qual me coloquei em deriva semanalmente durante 3 meses. Caminhando pela avenida Afonso Pena, situada na região central de Belo Horizonte, me certifiquei da minha capacidade de experenciar o espaço e entendê-lo como território de transformação dos sujeitos que por ele passam. Este trabalho foi realizado entre os meses de julho de 2011 e julho de 2012, em Belo Horizonte, com apoio da bolsa PIBIC/CNPq - Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Orientação: Professora Brígida Campbell

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referências bibliográficas Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade / Internacional Situacionista; Paola Berenstein Jacques, organização; Estela dos Santos Abreu, tradução. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. 160 p. BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência*. Disponível em: <http://www. anped.org.br/rbe/rbedigital/rbde19/rbde19_04_ jorge_larrosa_bondia.pdf> Acesso em 8 de outubro de 2012. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo / Guy Debord; tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 238 p. JACQUES, P. B. Corpografias urbanas. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/ arq093/arq093_02.asp> Acesso em 8 de outubro de 2012. JACQUES, P. B. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012. 331 p.

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agradecimentos aos amigos sempre pacientes ao escutar os meus casos de rua, à Brígida pela confiança, aos professores parceiros desta caminhada. Aos transeuntes da avenida Afonso Pena, que fizeram a minha experiência menos solitária.


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