Antropolítica No 21
2o - semestre 2006
ISSN 1414-7378 Antropolítica
Niterói
n. 21
p. 1-260 2. sem. 2006
© 2008 Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política UFF Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 24220-900 - Niterói, RJ - Brasil Tel.: (21) 2629-5287 - Telefax: (21) 2629-5288 - http:///www.editora.uff.br -E-mail: eduff@vm.uff.br É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. Normalização: Caroline Brito de Oliveira Edição de texto: Maria das Graças C. L. L. de Carvalho Revisão: Rozely Campello Barrôco Projeto gráfico e capa: José Luiz Stalleiken Martins Editoração eletrônica e diagramação: Vívian Macedo de Souza Supervisão gráfica: Kathia M. P. Macedo
Catalogação-na-Fonte (CIP) A636
Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política. — n. 1 (2. sem. 95). — Niterói: EdUFF, 1995. v. : il. ; 23 cm. Semestral. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense. ISSN 1414-7378 1. Antropologia Social. 2. Ciência Política. I. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política. CDD 300
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Reitor Roberto de Souza Salles Vice-Reitor Emmanuel Paiva de Andrade Pró-Reitor/PROPP Humberto Fernandes Machado Diretor da EdUFF Mauro Romero Leal Passos Diretor da Divisão de Editoração e Produção: Ricardo Borges Diretora da Divisão de Desenvolvimento e Mercado: Luciene Pereira de Moraes Assessoria de Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos
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Sumário Nota dos editores, 7 Dossiê: Antropologia, mídia e construção social da realidade, 11 Apresentação: Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes, “Cantando espalharei por toda a parte, se a tanto me ajudar engenho e arte”: propaganda, técnicas de vendas e consumo no Rio de Janeiro (1850-1870), 13 Almir El Kareh Identidades flexíveis como dispositivo disciplinar: algumas hipóteses sobre publicidade e ideologia em sociedades
“pós-ideológicas”, 51 Vladimir Safatle Remediação e linguagens publicitárias nos meios digitais, 67 Vinícius Andrade Pereira Artigos O sorriso da lua, 83 Eli Bartra Alimentos transgênicos, incerteza científica e percepções de risco: leigos com a palavra, 109 Renata Menasche Técnicos e usuários em programas de assistência social: encontros e desencontros, 127 Heloísa Helena Salvatti Paim A economia moral do extrativismo no Médio Rio Negro: aviamento, alteridade e relações interétnicas na Amazônia, 151 Sidnei Peres Educação e ruralidades: por um olhar pesquisante plural, 171 Jadir de Morais Pessoa
Resenhas Livro: Buenos Vecinos, Malos Políticos: moralidad y política en el Gran Buenos Aires, 191 Sabina Frederic Autora da resenha: Fernanda Maidana Resenhando o conceito de “Double Bind” de Gregory Bateson em seis autores das ciências humanas contemporâneas, 197 Autora da resenha: Mônica Cavalcanti Lepri
Notícias do PPGA Jornada de Antropologia do PPGA, 209 Encontro da Rede Rural, 213 Relação de dissertações defendidas no PPGA, 219 Revista antropolítica: números e artigos publicados, 241 Coleção antropologia e ciência política (livros publicados), 255 Normas de apresentação de trabalhos, 259
Contents Editors note, 7 Dossier: Anthropology, media and social construction of the reality Foreword: Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes, 11 “Singing I will spread for all the part, If in such a way to help to device and art me”: Propaganda, techniques of sales and consumption in Rio De Janeiro (1850-1870), 13 Almir El Kareh Flexible identities as device to discipline: Some hypotheses on advertising and ideology in “after-ideological” societies, 51 Vladimir Safatle Remediation and advertising languages in digital media, 67 Vínicius Andrade Pereira Articles The smile of the moon, 83 Eli Bartra Transgênicos foods, scientific uncertainty and perceptions of risk: laypeople with the word, 109 Renata Menaschi Technical staff and the users of public programs of social assistance: encounters and divergences, 127 Heloísa Helena Salvatti Paim The moral economy of the extractives activities in the Médio Rio Negro: aviamento, otherness and interethnic relations in the Amazônia, 151 Sidnei Peres Education and rural things: for a plural researching look, 171 Jadir de Morais Pessoa
Reviews Book: Buenos vecinos, malos políticos: moralidad y política en el gran Buenos Ayres, 191 Reviewed by: Fernanda Maidana Resenhando
o conceito de “double bind”, de
ciências humanas contemporâneas,
197
Gregory Bateson,
Reviewed by: Mônica Cavalcanti Lepri
PPGA News Jornada de Antropologia do PPGA, 209 Encontro da Rede Rural, 213 Thesis defended at PPGA, 219 Revista antropolítica: Numbers and published articles, 241 Published Books and Series – Coleção antropologia (livros publicados), 255 Norms for Article Submission, 259
em seis autores das
NOTA DOS EDITORES Neste número 21, iniciamos uma nova etapa de Antropolítica: novo Conselho Editorial e nova Comissão Editorial, numa forma mais expressiva da vinculação da revista ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia. A estruturação editorial permanece, entretanto, inalterada, na medida em que a conjugação de dossiês temáticos, abrangendo as linhas de pesquisa do PPGA/UFF e os artigos de interesse da comunidade acadêmica, mostrou-se muito produtiva. Na oportunidade, agradecemos, mais uma vez, a todos que colaboraram conosco até aqui: parceiros institucionais, antigo conselho e comissões editoriais, articulistas, pareceristas, resenhistas e esperamos continuar contando com esta colaboração. Comunicamos, ainda, que, a partir de agora, Antropolítica terá versão digital, que poderá ser acessada através da página do PPGA (www.uff.br/ppga). Inicialmente divulgaremos os artigos e resenhas dos últimos números mas, paulatinamente, outros números serão incorporados à página. Comissão Editorial
Dossiê: Antropologia, mídia e construção social da realidade
Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes
Apresentação
Os artigos que constituem o presente dossiê foram reunidos a partir de uma perspectiva multidisciplinar da Mídia, com ênfase especial sobre o discurso publicitário. Diante da importância que ela possui para a compreensão de nossa época, é nossa intenção dar continuidade a este tema, apresentando outros volumes nos quais destacaremos outros domínios da Mídia. Salvo exceções, o fenômeno publicitário, apesar de estar presente em todos os momentos e situações da vida cotidiana contemporânea, continua relegado a um plano secundário nas ciências sociais. Desse modo, os conteúdos sociológicos e antropológicos presentes nas narrativas publicitárias permanecem pouco explorados, constituindo-se antes um objeto de estranhamento do que propriamente algo que, como sugeriu Mc Luhan (1964), possa ser tomado como uma crônica da sociedade contemporânea, em relação aos seus diferentes dilemas e setores de atividade. Foi com essa idéia em mente que convidamos três pesquisadores de áreas diferentes para propor algumas reflexões, de modo a criar em Antropolítica um espaço de interlocução. O primeiro deles é o historiador Almir El Kareh, cujo artigo mostra como o material publicitário, no caso, o anúncio, pode ser tomado como uma fonte histórica importante, capaz de revelar diferentes aspectos acerca dos processos de transformação que ocorreram no Rio de Janeiro, capital do Império, a partir do final do século XIX. Através da citação de anúncios publicados nos jornais da época, El Kareh não apenas nos apresenta as mudanças relativas ao consumo propriamente dito (o que se produzia, o que se consumia, formas de aquisição, quem fazia e quem vendia, etc), mas especialmente coloca-nos a par de todo o processo de rompimento dos hábitos coloniais de autosuficiência das famílias que deu
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lugar a uma produção mercantil e às condições de formação de um mercado livre de trabalho paralelo àquele formado pelo regime escravista às vésperas de extinção. O segundo artigo é de autoria de um filósofo com experiência também na área de Comunicação & Marketing, Vladimir Safatle. Em seu artigo, o autor explora como a publicidade contemporânea, mais exatamente através da formação de um imaginário global de consumo e de socialização em relação a algumas marcas, somando-se à questão da flexibilização das identidades, entendida como um importante regime retórico, tornou-se um eficiente dispositivo disciplinar. As implicações políticas ou mesmo ideológicas do artigo que apresenta também uma interlocução com o pensamento lacaniano presta-se a muitas reflexões sobre os limites ou mesmo o esgotamento das instituições e mecanismos disciplinares. Finalmente, temos o terceiro artigo, de autoria de Vinicius Andrade Pereira. Mestre em Psicologia e Doutor em Comunicação e Cultura, o autor parte justamente da afirmação e da sugestão de Mc Luhan para retomar a discussão sobre o modo como as subjetividades contemporâneas são constituídas em suas relações com os meios, com os espaços de comunicação, e, desse modo, avançar sobre o que está ocorrendo neste momento, muito especialmente com a introdução dos meios digitais que começam a ser largamente difundidos. Partindo da analogia entre memória e narrativa fílmica, já desenvolvida por outros autores, o autor procura refletir como a introdução das novas linguagens digitais, particularmente através da publicidade, afeta não somente os padrões de consumo em si, mas sobretudo os próprios conceitos de narrativa, borrando definitivamente as fronteiras entre representações da realidade e processos de ficcionalização da realidade. Temos certeza de que longe de tentar responder às questões propostas, este dossiê vem reafirmar a necessidade de continuarmos a desenvolver esta linha de investigação, bem como darmos continuidade a esta interlocução profícua com as demais áreas de conhecimento sobre o tema da mídia na sociedade contemporânea. Laura Graziela Gomes (UFF/GAP/PPGA)
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Almir El Chaiban Kareh*
“Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto Propaganda, técnicas de vendas e consumo no Rio de Janeiro (1850-1870)
me ajudar engenho e arte”:
Hoje em dia, quem lê os anúncios dos jornais do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, fica, de estalo, intrigado com a relativa incipiência, para não dizer pobreza, da propaganda da época. Assim, a função da propaganda era romper com a carcaça dos hábitos coloniais de auto-suficiência das famílias, que constituíam um mercado em potencial para a produção mercantil; a concorrência entre as empresas congêneres vinha em segundo lugar. Daí, provavelmente, a sua falta de criatividade. A grande inovação publicitária surgiu no ramo dos alimentos preparados, com José de Sousa e Silva Braga, “o Braguinha”, proprietário da Fama do Café com Leite. Rapidamente, ele compreendeu que, para melhorar a qualidade de seu estabelecimento e selecionar o seu público, teria de fazer uso da publicidade nos jornais, principal meio de comunicação da época. Afinado com o seu tempo e sensível às suas transformações, procurou captar os ritmos da mudança e as novas formas de sociabilidade urbanas, cada vez mais sintonizadas com o mundo capitalista e os novos padrões de consumo burgueses, aderindo a elas. E, como ninguém, soube fazer uso da publicidade, quando as técnicas tipográficas eram ainda muito precárias, tirando partido das palavras e até mesmo da gravura.
* Doutor. UERJ. História Social do corpo e dos saberes e Práticas Médicas e Assistenciais.
Palavras-chave: propaganda e técnicas de venda; anúncios; açougues “monstros”; cafés; Fama do Café com Leite.
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Hoje em dia, quem lê os anúncios dos jornais do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, fica, de estalo, intrigado com a relativa incipiência, para não dizer pobreza, da propaganda da época. Mas, apenas à guisa de reconforto, adverte-se que na primeira metade daquele século era ainda muito pior! Provavelmente, esse raquitismo devia-se em parte, ao preço cobrado pelas folhas periódicas que não devia ensejar a publicação de anúncios muito grandes – no Correio Mercantil, propriedade de J. F. Alves Branco Muniz Barreto, cujo escritório situava-se à rua da Quitanda, 55, a impressão de cada linha de aproximadamente 40 letras, custava 80 réis1 – e, à incipiente tecnologia gráfica. Porém, mais que tudo, era certamente resultado do baixo nível de desenvolvimento e de acumulação de capitais de nosso comércio, especialmente o varejista, imediatamente voltado para o consumo da população carioca. Conseqüentemente, é preciso admitir: essa debilidade tinha a ver diretamente com a auto-suficiência da produção doméstica, escravista, que inibia a produção mercantil de alimentos e o pleno desenvolvimento das profissões artesanais livres. E mais, não esqueçamos que a produção fabril, em escala mundial, debutava. Estávamos longe ainda da produção industrial em série, surgida nos Estados Unidos no final do século XIX e expandida principalmente nas duas primeiras décadas do século XX, que exigiria um consumo de massa e, portanto, o recurso à propaganda como forma de criar e alargar o consumo aos níveis da produção.2 A inexistência de firmas de propaganda e de profissionais publicitários não era senão seu corolário. Um exemplo muito evidente deste fato é a relação da produção de cigarros, ainda feita artesanalmente, até o final do Império, em pequenos ateliês domésticos – “Um oficial cigarreiro toma cigarros para fazer com perfeição; na rua Nova do Alcântara n. 13, informa-se”3 – e a sua propaganda, em 1857, quando era anunciada por um armazém de drogas juntamente com desinfetantes para vasos sanitários: Líquido Desinfetante. Para águas servidas, os vasos sanitários e os lugares insalubres, vende-se no armazém de drogas de Aleixo Gary e C., na rua dos Ourives 109. Na mesma loja vende-se água de Labarraque, pastilhas de cheiro, clorureto de cal, cloro líquido, cigarros de Raspail, etc., etc.4
Ora, num mercado basicamente local, com frágeis laços regionais, a quase total ausência de concorrência entre os pequenos comerciantes só podia desestimular a publicidade. Para termos uma noção mais exata do tamanho do mercado consumidor carioca, basta lembrar que o local Antropolítica
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escolhido para abrigar o cemitério público de São João Batista, para além do perímetro urbano, como exigia a lei funerária de 1851, fora o bairro de Botafogo, cuja parte habitada não ultrapassava a rua São Clemente. Por isso mesmo, num espaço territorial tão restrito, onde os habitantes de bairros distantes, como o Russel e a Glória, podiam ir caminhando até o centro da cidade, apesar de terem de cruzar o morro do Castelo, e onde era possível percorrer a pé todo o centro comercial da cidade, que também era residencial, onde estavam localizadas as suas principais freguesias urbanas, o anúncio não tinha propriamente finalidade de atrair consumidores mas transformar a população auto-suficiente em consumidora de produtos produzidos em escala comercial, principalmente estrangeiros. A casa continuava sendo espaço produtor e consumidor por excelência. E tudo o que não era produzido em seus ateliês domésticos, era adquirido dos vendedores ambulantes que, gritando os seus pregões, iam de porta em porta anunciando suas mercadorias. Ou então, os escravos faziam as compras cotidianas de produtos alimentícios no comércio de seu bairro – açougue, padaria ou armazém mais próximos. Não seria a propaganda que o influenciaria neste tipo de decisão. A publicidade, no entanto, poderia atuar sobre sua escolha no ato da compra de produtos de confecção mais elaborada, sofisticados, como artigos de limpeza, beleza e medicamentos, ou mesmo cigarros, bebidas alcoólicas, sorvetes e doces finos; ou ainda, na aquisição de serviços médicos, hospitalares, de alimentação (restaurantes e cafés), que serviam a população ocupada nas atividades comerciais do centro da cidade, formada majoritariamente de pessoas do sexo masculino, celibatárias . Portanto, num mercado caracterizado pela produção em pequena escala, do tamanho do consumo local, no mais das vezes artesanal e basicamente realizada por escravos, em que o número destes e de pessoas pobres era muito elevado, retraindo o consumo e desestimulando o aumento da produção, o anúncio tinha a finalidade de primordialmente informar o consumidor da existência do anunciante, sua especialidade e qualidade de seu produto. Sua função principal era romper com a carcaça dos hábitos coloniais de auto-suficiência das famílias, que constituía um mercado em potencial; a concorrência com suas congêneres vinha em segundo plano. As tentativas da produção mercantil de romper com a auto-suficiência da produção doméstica podem ser avaliadas claramente pelo aumento do comércio de importação de gêneros alimentícios, na abertura de nuAntropolítica
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merosas casas comerciais estrangeiras na cidade do Rio de Janeiro e na instalação de artesãos livres como alfaiates, costureiras, cabeleireiros, e outros mais. Tratava-se, sem dúvida alguma, de um fenômeno de ordem econômica, mas que tinha evidentemente a ver com certas transformações sociais e demográficas (qualitativas e quantitativas), como o aumento do poder aquisitivo da população carioca e do número de imigrantes consumidores de artigos estrangeiros, que justificavam a abertura de uma casa comercial, filial ou sucursal. Mas que, antes de tudo, passava por uma mudança nos hábitos de vida do carioca e pelos aniquilamento dos saberes tradicionais domésticos – a arte de vestir, pregar e pentear uma senhora, de coser roupas masculinas e femininas, de cozinhar, de fazer pães e doces, e outros mais saberes que forneciam as subsistências das famílias, que aos poucos passavam a ser abastecidas pelo comércio e por artesãos independentes. Estas mudanças concerniam às questões de ordem ideológica e cultural. No primeiro caso, o “aburguesamento” das camadas mais abastadas da população carioca, direta ou indiretamente enriquecidas com os saldos da balança comercial, graças às exportações de café e açúcar fluminenses, e sua vontade de copiar o modelo europeu de vida. No segundo, a presença de uma numerosa e rica burguesia estrangeira, bem como de um abundante pessoal do corpo diplomático dos distintos países com os quais o Brasil mantinha relações econômicas, de alto poder aquisitivo, que ao se mudar com suas famílias para o Brasil, trazia suas roupas e objetos pessoais, seu mobiliário e seus objetos de decoração, suas louças e faqueiros, e, principalmente, outros costumes, outras mentalidades e sensibilidades, enfim, distintos hábitos de vida. No entanto, foi o grande contingente de imigrantes pobres e remediados, chegados na segunda metade do século XIX, especialmente portugueses, que em sua grande maioria foram empregados no comércio como caixeiros – habitavam quartos, às vezes partilhados com dois ou mais indivíduos, em casas de cômodos e em pensões de família, quando não em cortiços – que motivaram algumas mudanças radicais nos padrões urbanos de consumo, especialmente no ramo da alimentação e no imobiliário. A estes atores anônimos deveu-se, muito provavelmente, a difusão de novos gostos e maneiras nos hábitos alimentícios do carioca, quando novos paladares e novas sensibilidades olfativas e de degustação foram acrescentados aos antigos, estabelecidos há longos anos e dispostos a se defender.5 Um exemplo emblemático da investida da produção mercantil na mesa das famílias cariocas foi a introdução do hábito de comer pão francês. Antropolítica
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Tradicionalmente, segundo o pastor norte-americano Daniel Kidder, o pão do brasileiro era a farinha de mandioca, adicionada a outros pratos, principalmente ao feijão, ou ingerida pura: Exceto no jantar* de cerimônia, um excelente prato, muito apreciado pelo estrangeiro, encontra sempre lugar na mesa brasileira. Compõe-se de feijão (feijão preto do país) misturado com carne seca e toucinho. Farinha é espalhada por cima, ou, preparada como uma pasta espessa. Essa farinha é o pão para milhões de pessoas, e é o principal alimento dos pretos em todo o país, que a consideram como prejudicada em seu paladar quando não comida sem ser com os dedos.6
E se tomarmos ainda o seu testemunho, em fins dos anos 1830, o pão era feito em casa ou comprado de vendedores ambulantes (os fregueses não saíam de suas casas para fazer compras), que iam pelas ruas acompanhados de seus escravos que transportavam a cesta de pão, mas não podiam tocá-lo,7 e o tamborete sobre o qual era apoiada (pode-se ver em gravuras da época) enquanto os proprietários serviam os seus clientes: Os proprietários acompanham a louça, sedas, e também o pão, e neste último os negros não têm permissão de tocar. Quando um freguês chama, o escravo traz a sua carga, põe-na no chão, e fica parado perto até que o dono entregue o artigo desejado.8
Entretanto, na década seguinte, um grande número de padarias havia sido inaugurado por todas as freguesias do centro da cidade e nos bairros próximos – Russel, Glória, Catete e Santa Tereza – e nos mais distantes, como o novo e rico bairro de Botafogo, assim como nos seus arrabaldes. Este crescimento no número de padarias pode ser verificado no Almanak Laemmert. Elas passaram de 22 (1844) para 50 (1850), dando outro salto em 1860, quando já eram 137, estabilizando-se nas duas décadas seguintes, para saltar novamente, atingindo a cifra de 212 panificadoras em 1889. Estes dados parecem indicar que a produção doméstica de pães sucumbiu muito cedo à concorrência das padarias, na mesma rapidez com que o pão francês, biscoitos e bolachas instalavam-se no gosto da população carioca. E o anúncio, feito em 1857, de uma escrava que sabia fazer pão, era um dos poucos vestígios desta arte culinária doméstica que desaparecia: Vende-se uma parda, moça, sadia, sabendo lavar, engomar, coser, cozinhar e fazer pão; para ver, na rua de São Pedro n° 67, 2° andar; e para tratar na rua Direita n° 86.9 * O jantar era a refeição realizada ao meio-dia. O almoço era a realizada de manhã cedo e a ceia no final da tarde. Antropolítica
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Este rápido crescimento na quantidade de padarias pode ser explicado não só pela queda da produção doméstica de pão, consumido pela manhã com manteiga e café com leite, ou da mesma forma, à noite, no jantar (quando o café podia ser substituído pelo chá). Contudo, isto ocorreu mais provavelmente, pelo aumento inusitado da população de origem européia, habituada a comer pão, que realizava suas refeições em cafés, restaurantes e pensões de família. Inicialmente, os avisos das padarias resumiam-se a listar pães, broas, biscoitos (de diferentes espécies e formatos), a qualidade da matériaprima utilizada e de seus produtos finais e (quando acontecia) a origem estrangeira do padeiro – na intenção de demonstrar a superioridade da panificação em relação à cozinha caseira, como neste anúncio de 1849, em que os irmãos Estruc, estabelecidos no nº 38 da rua da Ajuda, apresentavam-se como: Padeiros de Carcassonne, única cidade da França que tem feito até agora as melhores qualidades de pão, podem pôr à disposição do público 8 feitios de pão ainda aqui não conhecidos, e de hoje em diante terão pão à la Pompadour, dito Molé, dito de Trèse, dito a Esse, e os verdadeiros pães Navites para chá e café. Todas as pessoas que não encontraram no domingo passado deste gênero, queiram ir hoje para serem bem servidas.10
Posteriormente, a propaganda parece visar mais o comércio de alimentos preparados, cafés, restaurantes, pensões e vendas, onde a população mais pobre alimentava-se, e os reclamos insistem nos horários das fornadas que correspondiam à demanda comercial e principiavam pela manhã muito cedo: Na nova padaria da rua do Sabão da Cidade Nova n. 77 continua a haver pão quente desde as 5 horas da manhã até às 9, e de tarde desde as 3 h até às 5, e das 7 até às 9, muito superior tanto em trabalho como na qualidade das farinhas, por serem das melhores que há, e também há biscoitos de todas as qualidades por preços cômodos. Também vende na mesma padaria um preto muito bom padeiro e hábil para qualquer serviço; quem o pretender dirija-se à mesma casa desde as 9 h da manhã até às 3 da tarde.11
O surto imobiliário estampado nas páginas dos periódicos cariocas, nos quais a oferta em ritmo acelerado de quartos em casas de cômodos e pensões de família, particularmente nas freguesias centrais da cidade, cadenciado pela chegada sempre crescente de imigrantes europeus, Antropolítica
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teve como contrapartida o aumento de produção e consumo de pão, da quantidade de padarias e abertura de filiais, às vezes muito próximas de suas matrizes. Na medida em que o centro comercial ia-se transformando em núcleo residencial das camadas mais pobres – os cortiços surgiam e proliferavam-se aí – devido à proximidade dos locais de trabalho, os mais ricos iam-se mudando para os bairros e freguesias distantes, de clima mais ameno e mais salubres, agora servidos por bondes de tração animal e embarcações a vapor (casos de Botafogo e Niterói). Mas, enquanto as freguesias rurais e as áreas de ocupação recente não justificavam a presença de uma panificadora, essas eram disputadas por quem puzesse à disposição de seus moradores, vendedores ambulantes de pão, que as percorriam em carrocinhas cobertas – “Precisa-se na padaria de Benfica de um caixeiro para vender pão pela roça”12 – ou que colocavam-se em pontos estratégicos em dias e horários anunciados pelos jornais: Pão para as Laranjeiras. Principia hoje a funcionar uma carrocinha com pão para as Laranjeiras, a qual levará pão de todas as qualidades, de 20, 40 e 80 rs, o verdadeiro pão de família de 100 e 200 rs, pão inglês, que não há nada que lhe chegue em gosto, só experimentando-se, de 80 e 160 rs; a carrocinha chegará ao pé das águas-férreas pelas 7 horas, e demora-se aí até às 8 horas para quem quiser comprar pão; não há que desejar em qualidade. Nova padaria da rua da Misericórdia n. 115.13
A panificação, ainda completamente artesanal, não dependia de grandes capitais para instalação, e dispunha de uma boa oferta de trabalhadores escravos, e depois de imigrantes, todos do sexo masculino, que renovavase pelo aprendizado da profissão, a partir dos 10 anos, como aprendiz – “Precisa-se de um bom trabalhador de masseira, e de um pequeno, para entregar pão e ajudar dentro ao serviço; na padaria da rua das Marrecas n. 30”14 – e contava, ainda, com um mercado consumidor em expansão, devido ao rápido crescimento demográfico da cidade. Sua publicidade refletia este estado de coisas. Contando com uma clientela garantida, formada pelos moradores do bairro ou das ruas mais próximas, e dispondo de mão-de-obra, matéria-prima e tecnologia semelhantes, seus preços não variavam muito e sua concorrência fazia-se pela oferta de pães e biscoitos especiais, quando não de empadas e doces,15 o que implicava no engajamento de mestres padeiros – “Quem precisar de um mestre de pão francês, pão pequeno de todas as qualidades e biscoito, tudo com perfeição, o que à vista se provará, pode deixar carta fechada neste escritório com as iniciais F.S.N. para ser procurado”16 – e na conquista de fregueses das novas áreas de expansão urbana pela entrega de pão em domicílio ou venda de pão em carrocinhas. Além disso, a expansão Antropolítica
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contínua do consumo aliada à farta oferta de trabalho fez com que os preços do aluguel dos escravos urbanos e do salário dos livres caíssem, não estimulando a concorrência e a propaganda. Daí, também, ter ocorrido o raquitismo da atividade publicitária. Esta mesma ausência de criatividade verifica-se nos anúncios de oferta/ procura de empregados domésticos, outros tipos de trabalhadores urbanos, artesãos/prestadores de serviços, escravos ou livres. O corrente uso era de fórmulas prontas, provavelmente disponibilizadas pelo próprio jornal, seguidas religiosamente pelos anunciantes que não queriam ou não podiam despender muito, sendo inclusive mais práticas. Apenas em alguns casos, quando era preciso ressaltar a qualidade do trabalhador, especialmente das mucamas muito prendadas (a fim de justificar o seu preço) é que o aviso era mais detalhado e fugia aos cânones estabelecidos. No mais das vezes, eram curtos e repetitivos. Eis um exemplo de reclamo mais elaborado, onde os saberes domésticos estão claramente enunciados: Vende-se uma vistosa preta com duas crias de ano e tanto, mui galantes, sabendo a preta coser perfeitamente, corta e faz camisas de homem e vestidos de senhora com perfeição e por figurino, engoma perfeitamente toda a qualidade de roupa, sabe vestir e pregar uma senhora com perfeição, cozinha perfeitamente e faz bons quitutes e doces para sobremesa, lava perfeitamente bem, etc.; é preta de muitos bons costumes, muito diligente para tudo e reúne todos os quesitos de uma perfeita mucama; muito própria para tomar conta de todo o arranjo de uma casa mesmo de tratamento; enquanto à conduta, é exemplar, e dá-se a contento os dias que se tratar, vindo o próprio comprador ver e ajustar; dirijam-se à rua do Lavradio n. 45.17
Mas, cuidado! Não pense que a leitura destes anúncios seja insípida. Ao contrário, é rica e fascinante, especialmente a dos avisos de oferta e procura por serviços domésticos, em particular os de compra, venda ou aluguel de escravos, mas não menos interessantes são os de aluguel de criados ou criadas, livres, amas-de-leite e amas-secas,18 ou os de prestação de serviços de costureiras, modistas, alfaiates, dentistas e médicos, bem como os de charlatães que ofereciam panacéias de suas autorias que curavam sarna, queimadura, sífilis e hemorróidas. Havia ainda os anúncios de cartomantes e sonâmbulas que resolviam todos os casos de amor e dinheiro, além de predizerem o futuro. E tudo era feito com muita transparência, pois eles podiam ser encontrados nos endereços anunciados. E convenhamos, nos anos 1850, havia muita diferença entre um médico alopata ou homeopata com diploma da Faculdade de Antropolítica
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Medicina do Rio de Janeiro e um curandeiro? Os remédios infalíveis para escrófulas, bobas, sífilis, gonorréia, hemorróidas, sarnas, empigens, queimaduras, fistulas, febres, antrazes, belides, etc. vendem-se em casa de seu descobridor, rua da Lapa do Desterro n º 54.19
Outro tipo de anúncio que seguia um formato mais ou menos rígido era o de fuga de escravos. A seguir, mas em menor escala, o de imigrantes que ainda não haviam saldado as dívidas contraídas com seus patrões, pelo pagamento da viagem marítima desde a Europa. Estes avisos, particularmente os de escravos, deviam atrair especialmente a atenção dos leitores da época, pois, freqüentemente, em seu cabeçalho estava estampada a quantia que seria vertida àquele que denunciasse ou levasse à presença do proprietário o escravo fugido. Porém, o que mais atrai o pesquisador é a riqueza de detalhes com que era descrito o fugitivo, numa época em que não havia ainda a fotografia ou quando ela era apenas realizada em estúdios apropriados e, neste caso, para efeito de constituição de um fichário judicial, utilizado pela polícia. Somente quando se compara uma fotografia policial de um prisioneiro com a descrição de um escravo fugitivo, é possível perceber o quanto esta – a ótica subjetiva do senhor – é mais rica e viva do que a suposta objetividade e imparcialidade da objetiva de uma máquina fotográfica, cujo resultado é uma figura inerte e sem personalidade! Eis um aviso de fuga de escravo: Fugiu no dia 7, um moleque de nome Antonio, nação benguela, baixo, gordo, de 18 a 20 anos, pescoço curto, é bem falante até que passa por crioulo* anda pela cidade com uma rodilha na cabeça a título que anda ao ganho, é cozinheiro e se tem querido alugar sem consentimento de seu senhor; e gosta de jogar na praia do Peixe com os seus colegas cozinheiros. Quem o levar na praia dos Mineiros n. 25, será gratificado.20
A propaganda, no que dizia respeito aos açougues, era praticamente inexistente. O comércio da carne, excetuando-se galinhas, patos e alguns porcos, que podiam ser criados nos quintais de muitas residências cariocas (e ainda gado leiteiro, cabras e vacas, criado em chácaras, até mesmo nas freguesias do centro do Rio de Janeiro!), fora sempre o apanágio dos açougues que estavam concentrados, segundo as listas do Almanak Laemmert, nas ruas da Assembléia (antiga rua da Cadeia) e São José e suas imediações. Em 1848, apenas dois proprietários possuíam mais de um açougue: um no centro e outro num bairro distante. E até * Escravo nascido no Brasil e que falava bem o português. Antropolítica
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1854, não eram muitos os que se anunciavam neste almanaque, e menos ainda nos jornais. Artigo de primeira necessidade, o comércio da carne foi alvo permanente do interesse do governo imperial e das autoridades policiais do Rio de Janeiro, preocupados com a formação de monopólios, proibidos por lei. Os açougueiros eram freqüentemente acusados como responsáveis pela carestia da vida no Rio de Janeiro e pelas insatisfações populares. Foi o caso, no início de 1855, quando a população carioca foi surpreendida pela alta desmesurada dos preços dos produtos alimentícios. Em um artigo publicado, em 1857, no Jornal do Comércio,21 o autor C. (preferia o anonimato) denunciava a situação aflitiva das camadas mais pobres da população livre em face do custo de vida. Tentava dar uma idéia daquele estado de coisas, através da enumeração dos produtos de primeira necessidade e da variação de preços no atacado (entre 1850 e 1857). O autor assinalava ainda que os preços eram muito mais elevados no varejo, e os tecidos tinham tido um aumento de 10 a 15%, o feitio das roupas de 80 a 100%, a lavagem e engomagem de 20 a 30%, os calçados de 10 a 20%,22 os aluguéis residenciais de 60 a 100% e escravos de 100%. Quanto ao preço das carnes e seus derivados, a de boi havia dobrado, a de porco subira um pouco menos, o da carne seca, “alimento ordinário, e quiçá exclusivo da grande massa do povo”,23 elevara-se ainda mais, e o do toucinho quintuplicado! E como “almoço sem toucinho não é almoço” e “feijão com toicinho é o prato nacional do Brasil”.24 Esta elevação desmesurada dos preços da carne tinha a ver com a estrutura do mercado brasileiro de carnes verdes que caracterizava-se por grandes distâncias, sistema de estradas precário e navegação que praticamente só servia as províncias marítimas, até que os rios do interior (Paraná e Paraguai) fossem abertos à navegação internacional. Os caminhos para as tropas eram, pois, os mais procurados pelos fornecedores vindos do interior, sobretudo de Minas Gerais, principal fornecedora da Corte. Mas se o seu estado em geral era ruim, tornavam-se impraticáveis durante a estação das chuvas. Quanto às boiadas, da mesma forma que as tropas de mulas, além das paradas obrigatórias para que se saciassem, tinham que passar alguns meses nas invernadas, alugadas nas proximidades da Corte, onde recuperavam o peso perdido durante estas longas viagens e a travessia da Serra do Mar, que separava o litoral da província do Rio de Janeiro de seu interior. Todas estas dificuldades só aumentavam os preços das mercadorias. No que concernia à carne verde, outra circunstância que lhe era peculiar vinha a se acrescentar: o clima tropical quente e úmido, muito favorável Antropolítica
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a sua decomposição, exigia que fosse consumida o mais rapidamente possível. Assim, uma vez abatido, o gado devia ser imediatamente vendido, aproveitando-se das horas mais frescas do dia. Sua venda nos açougues começava, portanto, de manhã muito cedo, por volta das cinco horas, e, de tarde, devido a seu estado não muito fresco, seu preço caía. Por outro lado, uma vez comprada, ela devia ser muito rapidamente preparada para o consumo. A singularidade deste comércio – que supunha um longo percurso desde os pastos de criação do gado, transporte por longas distâncias em condições bastante penosas e permanência em invernadas antes do abate – favorecia a formação de grandes empresas pelo volume dos capitais imobilizados que implicava. Aliás, naquela época, esta era uma marca deste comércio por toda parte, inclusive na Europa.25 Foi nestas circunstâncias que, no início de 1855, Francisco José de Mello e Sousa apresentou ao governo, segundo as regras do Código Comercial, o pedido de incorporação de uma sociedade anônima, a Companhia de Curtume, estabelecida à rua do Imperador em São Cristóvão, que além do curtume devia também dedicar-se à venda de carne. Proprietário de uma cadeia de açougues, via realizar-se seu projeto de espalhar por toda a cidade do Rio e sua vizinha Niterói, grandes pontos-de-venda, os açougues monstros, iniciado apenas um ano antes, onde, segundo o testemunho do Chefe da Polícia, encarregado da fiscalização, a carne de boi era vendida a 120 réis26 (ao mais baixo preço praticado na época no mercado carioca): Atenção. Ao Grande Açougue Fama de S. Clemente, r. de S. Clemente n. 3C. No domingo 26 de fevereiro abriu-se o grande, limpo e asseado açougue, denominado – Fama de S. Clemente – estabelecido na rua de S. Clemente n. 3C, próximo à praia do Botafogo. Os moradores desta, de S. Clemente, do Brocó, Real Grandeza, Azinhaga, Lagoa e suas imediações encontrarão d’ora em diante na Fama de S. Clemente grande porção de superior carne de vaca por preço sempre razoável, de 100 a 120 réis cada libra. Sendo estes novos estabelecimentos devidos aos sacrifícios pecuniários que seus proprietários têm feito para garantir à população um gênero de primeira necessidade por preço módico, espera-se que a concorrência pública animará novos melhoramentos projetados; posto que inteiramente estranhos a cálculos de interesse e egoísmo, se só tendo por fim garantir a indústria fabril do país, e beneficiar o público.27 (Grifo do anunciante)
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Neste mesmo número do Correio Mercantil havia a publicidade do Açougue Monstro da rua da Assembléia nºs 2 e 4, do Açougue do Bom Gosto da rua dos Latoeiros, canto da rua do Rosário, do Açougue Campestre da rua do Catete nºs 201 e 203 (Campo do Machado), e do Açougue da Marinha na rua da Saúde nº 2 (casa de 8 portas), canto do Largo da Imperatriz. No final do reclamo, deste último, o anunciante acrescentava: Os proprietários não se pouparam a fadigas e sacrifícios pecuniários para montarem os novos estabelecimentos no pé em que se acham, garantindo ao público um gênero de primeira necessidade por módico preço, a despeito de todas as eventualidades e injustiças de prevenção.28 (Grifo nosso)
Naquele momento, além de dois ou três curtumes, esta sociedade possuía uma trintena de açougues, pequenos e grandes. Estes últimos, os açougues monstros, inaugurados em vários bairros do Rio, chamavam a atenção pela limpeza, boas instalações, luxo e organização: nos dias de grande afluência, a fim de ordenar a venda, senhas eram distribuídas aos clientes, que muitas vezes atingiam a cifra de “mais de cem pessoas entre livres e escravos”.29 E como dispunham de grandes quantidades de carne, reservavam quartos inteiros para que, depois de acabada a carne já cortada, fossem colocados à venda. Assim, havia sempre carne fresca e não havia necessidade de se lançar mão da prática muito criticável de fazer “reservas de carnes para a venda em horas e a pessoas determinadas”.30 Mas se faziam tudo certinho, porque haveria prevenção contra os seus donos? E da parte de quem? Certamente, da parte dos açougueiros que não resistiam a sua concorrência ou que a temiam. Seu sucesso foi arrasador. A reação dos açougueiros foi muito tímida, restringindo-se a inclusão nas listas do Almanak Laemmert.31 Dessa forma, o número de assinantes que, em 1854, não passava de 30, pulou para 81 no ano seguinte e já alcançava a cifra de 97 em 1857, para satisfação dos seus editores. A partir daquele ano, a lista de talhos de carnes era encabeçada pelos 30 “açougues monstros” do Sr. Francisco José de Mello e Sousa (três na cidade de Niterói), talvez porque levassem um nome de fantasia, o que era uma novidade no ramo. Só depois, então, na lista, era que vinham os demais, segundo o nome dos seus proprietários, em ordem alfabética. Muita propaganda nos jornais, baixos preços e boa qualidade de serviço e açougues espalhados por toda a cidade só eram possíveis porque o Sr. Mello e Sousa e seus sócios dispunham de uma importante soma de dinheiro – o capital social da firma era a enorme soma de 2.000 contos de réis –, o que lhes permitia fazer “grandes gastos, entres os quais fiAntropolítica
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guravam as enormes luvas que se têm dado pelas chaves das casas, não demandando de pouco quantitativo”, ou comprar os açougues que não resistiam à sua concorrência e cujos proprietários preferiam renunciar à sua autonomia, passando então a vender “carne por conta do mesmo Mello e Sousa e Cia.” que, em certos casos, não hesitava em pagar seus concorrentes, para que fechassem seus açougues e fossem “pôr outro negócio”.32 A Cia. de Curtume não só inovara as técnicas de venda e fizera uso da propaganda diária de seus açougues no jornais (coisa inédita naquele ramo de comércio) como também, para manter seus preços baixos e constantes, ia buscar o gado “nas próprias fazendas de criação, em lugares longínquos”, comprando diretamente do produtor. Em conseqüência, recebera a adesão de mais de 70 criadores, porque não só oferecia melhores preços, mas seus pagamentos eram pontuais, assegurando-lhes maior rentabilidade.33 Além disso, era a única a poder “ter invernadas suas nas vizinhanças da Corte”, onde o gado magro podia repousar e engordar tornando-se mais lucrativo, servindo de reserva para os momentos de carência devidos às “demoras dos boiadeiros, ou de outro qualquer acidente”.34 No entanto, a Cia., porque detinha (em 1857) 30 dos 97 açougues anunciados no Almanak Laemmert35 – quase 30% da distribuição da carne fresca na cidade do Rio de Janeiro – e por ter-se organizado sob a forma jurídica de sociedade anônima (fora a primeira no comércio a varejo) caiu na malha da suspeição, antes mesmo de obter a aprovação do governo imperial. Obteve apenas o estatuto jurídico de sociedade anônima para suas atividades propriamente produtivas de preparo dos couros, apesar das vantagens decorrentes destas práticas comerciais para os consumidores cariocas de carne fresca, pois, “não consta que auferissem os lucros copiosos que o monopólio sói produzir”.36 No entanto, o governo imperial, atendendo às queixas e pressões dos açougueiros descontentes, foi incapaz de compreender que tratava-se de uma decorrência natural de um mercado de livre concorrência, e preferiu ver nela uma tentativa de monopólio à moda antiga, visando a supressão dos demais concorrentes para a imposição de preços altos às carnes, e vetou a sua organização em sociedade anônima. Mas isto não mudava em nada a situação do Sr. Francisco José de Mello e Sousa e seus sócios, que continuaram atuando como empresários independentes, no mercado da carne verde (que haviam revolucionado). E como havia espaço para todos numa cidade que crescia e cuja população aumentava, e onde o hábito de comer carne, sobretudo de boi, parecia Antropolítica
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ser generalizado, o número de talhos de carne só fez aumentar. Em 1860, eles já eram mais de 120, dos quais 31 “monstros”, e, em 1870, alcançavam a cifra 200, dos quais apenas 10 “monstros”, que já não apareciam agrupados no início da lista. Assim, ficava evidente que o Sr. Francisco José de Mello e Sousa, Carvalho e Cia. (forma como apareciam no mesmo almanaque em 1870) havia percebido precocemente as características do comércio da carne verde e como tirar partido delas. Sua atuação não matou a iniciativa dos demais açougueiros que, ao contrário, viram-se estimulados a seguir o seu exemplo. Assim é que, naquele mesmo número do almanaque, entre os listados 162 proprietários de talhos de carne, 16 possuíam mais de dois, ou mesmo um só ocupando várias casas: o Sr. Domingos Ramos de Mello possuía oito açougues, dos quais três na mesma rua, e o Sr. Manoel Gonçalves Pacheco, que anunciava ter “conduções para as carnes verdes”, o que era uma novidade, tinha açougues na rua Uruguaiana nos nºs 85 e 87, 104, 106, 108 e 110 e no Largo da Sé nºs 6, 14 e 20.37 O modernismo empresarial fora, sem dúvida, o grande trunfo de Francisco José de Mello e Sousa e residia não apenas na organização gerencial e em sua capacidade de reunir (numa só firma) todas as operações concernentes à distribuição de carne verde, desde o criador até o consumidor, baixando o seu preço de custo, como também em suas inusitadas técnicas de venda e propaganda cerrada nos jornais. Contudo, seus anúncios eram, em muitos casos, mal elaborados e não inovaram em nada a publicidade. A grande inovação publicitária surgiu no ramo dos alimentos preparados. Até 1854, a publicidade neste ramo da alimentação – botequins, padarias e confeitarias, casas de pasto, restaurantes e hotéis – não fugia à regra. Consistia basicamente em relacionar produtos vendidos, indicar seus preços, gabar-se de sua qualidade, lembrar – quando era o caso – a sua procedência ou fórmula estrangeira, e dar o endereço da casa. Contrariamente às pensões, que se identificavam apenas por seus endereços, estes estabelecimentos tinham, com freqüência, um nome de fantasia, como Padaria Francesa ou a casa de pasto O Gambá do Saco do Alferes. Rompendo com esta tradição, José de Sousa e Silva Braga, “o Braguinha”, proprietário da Fama do Café com Leite, Praça da Constituição nº 1, e do Botequim do Progresso, à rua da Prainha, inovou a propaganda. Acompanhando a trajetória de seus anúncios no Almanak Laemmert, a partir de 1844, quando já estava instalado neste mesmo endereço, sob o nome de Café da Fama, vê-se que, se seus reclamos não fugiam à cartilha, ao menos eram maiores e mais detalhados, aliás, como tantos outros, Antropolítica
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especialmente, os de algumas confeitarias e padarias que, sem embargo, constituíam minoria. Mas continuava preocupado em economizar no gasto com anúncios, pois, neste, a seguir, abreviara as palavras “Constituição”, “esquina” e “rua” para não ter de pagar mais uma linha: Café da Fama, José de Souza Silva Braga, tem sempre para almoço superior café com leite, chá, chocolate, etc.; igualmente vende leite puro de vaca, todos os dias de manhã; praça da Constit., 28 B, esq. da r. do Sacramento.38
Em 1849, parecia disposto a gastar mais e seu anúncio era mais completo. Porém, em termos publicitários, não inovava em nada: Café da Fama, José de Souza Silva Braga, praça da Constituição, 28 B, esquina da rua do Sacramento. Tem para almoço bom café com leite, chocolate, etc. Apronta bandejas de doces e tudo o que pertence a este ramo de negócio; fabrica boa orchata em massa, feita de pevides de melancias; e vende a varejo todos os dias de manhã leite de vaca de superior qualidade.39
Contudo, em 1854, seu botequim, que havia sido reformado, passara a se denominar Fama do Café com Leite e, apesar de começar pela letra f, ocupava o primeiro lugar na lista dos avisos de Cafés, Botequins, Bilhares, etc. das páginas do Almanak Laemmert. Seu anúncio, que já não economizava linhas nem espaços, ocupava o campo correspondente a uma página, mas distribuído em duas, e era encabeçado pela gravura de um anjo arauto que apregoava: Botequim da Fama do Café com Leite de José de Souza e Silva Braga, Praça da Constituição Esquina da Rua do Sacramento, 1. Este estabelecimento muito espaçoso com um grande salão, com seis portas, muito arejado, oferece agora muitos maiores cômodos** e atrai maior concorrência dos fregueses e amigos, e do respeitável público em geral, pelas boas fazendas***, asseio, assim como pela boa administração, de maneira que faz gosto ver que todas as pessoas que ali entram saem satisfeitas. O proprietário não se poupa a despesa alguma, como se esmera também em agradar aos seus fregueses e ao generoso público, a fim que o seu estabelecimento se conserve um dos **
Por “cômodos”, entenda-se conforto. Por “fazendas”, entenda-se qualidade do material: mobiliário, louças, talheres, toalhas etc.
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28 principais da capital. Os fregueses encontrarão sempre a toda hora almoços e ceias do gabado café com leite, Dito de chá do melhor que há, Dito de chá preto do melhor, Dito de chá, mate dito, Dito de chocolate dito, Cerveja, vinhos, licores e refrescos de todas as qualidades, tudo do bom e do melhor. Também se fabrica neste estabelecimento a verdadeira orchata**** feita de pevide de melancia. Esta orchata está acreditada há 12 anos: toda a pessoa que usar dela para remédio, pode mostra-la aos médicos para examina-la, para com mais facilidade usar dela. O seu proprietário é José de Souza e Silva Braga, o único que a faz e responde por toda que for feita, e que se venda nesta casa. Faz também todas a qualidade de refrescos, assim como caju, laranja, limão, lima, tanto em calda como em massa, com o gosto natural, só vendo a qualidade faz gosto comprar. Vende-se cada garrafa sendo em calda a 1$000, e em massa a 1$000 a libra; afiança-se ser só feito de calda do mesmo fruto e açúcar. Qualquer pessoa pode experimentar antes de comprar.40
Nesta propaganda, além de não se referir à venda de leite de vaca a varejo, assumindo as características de um café moderno, ele retoma e aprofunda uma prática publicitária corrente: o uso da narrativa numa linguagem coloquial, entretendo-se com o leitor numa relação direta e pessoal, através de frases do tipo: “pode mostra-la aos médicos para examina-la”, “só vendo a qualidade faz gosto comprar”. Ainda que, neste anúncio, é o anjo que fala e se interpõe entre ele – o proprietário – e o leitor. Ainda em 1854, foi publicada pela primeira vez sua propaganda em versos, cuja autoria assumia, autografando-os, num diário importante da Corte (Correio Mercantil), o mais lido depois do Jornal do Comércio – de todos o de maior tiragem. Era o ano da inauguração da iluminação a gás não só nas vias e passeios públicos mas no comércio e nas residências, e ele aproveitou para roubar a cena e dirigir as luzes da ribalta sobre si mesmo: No grande botequim da Fama, Hoje a gás iluminado, Há o bom café com leite Por todos apreciado. Refresco preparado com pevides de melancia pisadas, água e açúcar.
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29 O salão que é mui extenso, Aos outros inveja faz, Principalmente depois Da iluminação a gás. O café que aqui se faz É mui bom, não tem rival, Melhor jamais pode haver, E talvez não haja igual. Grão por grão é escolhido E torrado com primor, Por isso que os fregueses Lhe acham tão bom sabor. E têm razão, oh se têm, Eu mesmo digo – apoiado, Porque desde que me entendo Sempre fui desinteressado. O eu querer muito freguês Não é por ser interesseiro, Porém sim p’ra ver à noite A gaveta com dinheiro.
No ano seguinte, 1855, o seu anúncio já ocupava sozinho uma página inteira do mesmo Almanak. E o anjo arauto que o encabeçava era muito maior e havia tido a trombeta que sustentava na mão direita substituída por uma faixa com os dizeres “Sem Mistura ou Usura”. A coroa de louros da mão esquerda dera lugar a uma enorme xícara de café! Abaixo da figura angelical vinham o endereço, o nome do café em caracteres bem grandes e, mais abaixo, as estrofes de Os Lusíadas, de Luis de Camões: “Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar engenho e arte”, referindo-se, evidentemente, à sua própria astúcia publicitária. E, depois de repetir o enunciado do aviso do ano precedente, acrescentava no final que o seu café estaria aberto das duas horas da tarde em diante, e fazia a sua propaganda, também, em versos, onde se assumia como o “amigo Braguinha”: A toda a hora do dia, Mesmo ao toque d’alvorada, Nesta casa encontrarão Antropolítica
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30 Café com leite e torrada. Café simples, sup’rior, Também sempre encontrareis, O seu preço será sempre Meia xic’ra vinte réis. Meu café faz bem à vista Com ele já curo azia, Mas não sou MONOPOLISTA***** Com a minha freguesia. O que quero é agradar À bela rapaziada, Que nunca deixou de vir À grande casa afamada. Portanto, camaradinhas, Aqui está sempre contente O vosso amigo Braguinha P’ra servir a toda a gente. Pode ser que esta notícia Faça azia a muita gente, Mas eu digo que ao barbeiro Vá só quem lhe doer o dente.41
Neste reclamo, inaugura-se de vez a sua marca publicitária, “Braguinha”, como devia ser conhecido na praça e como ficará conhecido o seu estabelecimento – o “Café do Braguinha” – e sua maneira pessoal, informal e irreverente de fazer propaganda, através de versos nos quais divulgava as novidades de seu botequim num linguajar quotidiano e depurado de qualquer sofisticação, fácil de ser recitado e lembrado. E a relação intimista que desejava estabelecer com sua clientela virtual, referida, neste caso, por “rapaziada” e “camaradinhas”, outra marca publicitária sua, ficava definitivamente impressa. Aí, avisa que servia a meia xícara de café – o cafezinho (mas não era o único) – pela metade do preço, para incitar seus clientes a tomá-lo várias vezes ao dia, retornando sempre ao seu botequim, e para estimular a vinda de outros. A preocupação com os concorrentes é evidente, bem como no anúncio Referindo-se, provavelmente, às acusações feitas a Francisco José de Mello e Sousa, proprietário dos “açougues monstros”.
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publicado no mesmo Almanak, em 1856, sem dúvida, a razão principal de sua campanha publicitária: A Fama com suas asas, Altiva, sempre a voar; Dos invejosos os passos, Protestou alfim cortar! Fregueses do grande tom, Vinde a Fama exp’rimentar, O belo café com leite Que o Braga sabe arranjar. Dizem uns, que sabe a gaitas; Outros dizem, está bem feito; Que fará quando souberem Que faz muito bem ao peito? Acreditem, meus amigos, Não julguem ser isto peta: O café que aqui se faz, É chamado – de chupeta! O Braga cursou as aulas Na vila de Macaé, E tendo-se lá formado, Hoje é doutor em café! Também estudou chocolate, Chá pretinho, limonadas; Depois formou-se em manteiga, Ovos quentes e torradas. Portanto, caros fregueses, Um doutor tão afamado, Deve ser por todo o mundo Com vantagem consultado. Amigos, e verdadeiros amigos, Cada qual sem distinção: Aqui está o vosso Braga, Disponham do – seu coração.42 Antropolítica
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Diferentemente do Almanak Laemmert, que era anual, na imprensa quotidiana sua publicidade podia e devia ser mais ágil, e sua criatividade devia apropriar-se mais rapidamente dos acontecimentos, aproveitando-se de todas as ocasiões para aumentar as suas vendas, como nas datas festivas, e tornar-se simpático ao público: Ano Bom O Braga, proprietário da Fama do Café com Leite, vem pelo órgão da imprensa, único meio ao seu alcance, dar as boas festas aos seus numerosos amigos e fregueses, a quem deseja boas saídas do ano velho e melhores entradas no novo, dinheiro bastante para tomar café sem conta, peso nem medida, e tudo quanto a musa antiga canta.43
E acontecimentos não faltavam, naquela década de 1850, para alimentar sua verve trocista! Pusera-se fim, desta vez de forma definitiva, ao comércio africano de escravos e perseguiam-se e deportavam-se os grandes comerciantes de “carne humana”. Inaugurara-se o Banco do Brasil, o de Mauá Mc-Gregor e o Mercantil, a Estrada de Ferro de D. Pedro II, o novo prédio do Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia e o magnífico edifício do Asilo de D. Pedro II, chamado de “palácio dos loucos”. O serviço de bondes à tração animal fora colocado à disposição da população que já podia ocupar os bairros mais distantes do centro comercial; algumas ruas do centro da cidade receberam calçamento e iluminação a gás. Foram anos marcados pela luta entre comerciantes atacadistas e importadores, episódio conhecido como o Convênio,44 que muito afetou o comércio, da mesma forma que a Guerra da Criméia fizera cair as vendas; de alta de preços dos alimentos da cesta básica e, portanto, de carestia. Sobretudo, foi a década da endêmica epidemia da febre amarela (ocasião em que foram criados os cemitérios públicos de São João Batista e o do Caju) e a da cólera-morbus,45 desastrosas, pois os métodos de controle das medicinas alopática e homeopática decepcionaram, deixando patente que não diferiam muito da medicina popular e dos curandeiros, sendo alvo de críticas acerbadas. Nas folhas periódicas, de forma jocosa, “assustado ainda com o bicho ou bicha (isso lá como quiserem) cólera-morbus”, Silva Braga enaltecia a higiene de seus estabelecimentos, conforme o discurso médico em voga, e também o luxo e o conforto resultantes do “progresso material” – palavra de ordem do discurso oficial – no caso, iluminação a gás. Exaltava os novos hábitos de vida e de consumo adotados pelos setores médios urbanos emergentes, fruto do crescimento das atividades econômicas, em particular do comércio e da malha urbana. Antropolítica
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Era exatamente dessa numerosa população, sobretudo masculina e solteira, alimentada pela imigração européia, mas também formada de funcionários públicos e profissionais liberais, que ele buscava atrair a melhor parte. Sua proposta era a de possuir uma clientela mais escolhida e refinada, capaz de pagar pela melhor qualidade do serviço que lhe era oferecido: A Fama do Café com Leite. Agora que tudo é progresso, Que tudo leva o seu fim, Já não fica mal a alguém O entrar em um botequim. Muito mais quando asseado, Pelo gás iluminado, Comida gente do tom A tomar do café do bom. E o café já tem fama Em todo e qualquer lugar, Da fama do seu café Que faz gosto se tomar. Nele há café, torradas, Sem mistura o leite puro, Chá, o bom chocolate, Pão, biscoito sem ser duro. Boa roda entra de tarde Para os cafés tomar; Faz gosto estar numa mesa Com tal gente a conversar. Aqui entra o deputado, E também o senador; Entra o padre, o militar, Escrivão, juiz, doutor. Entra muita gente boa Que faz honra a esta casa; Desordeiros, malcriados, Na Fama não fazem vaza. Antropolítica
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34 Porque pronto cá na Fama, Para servir ao freguês, Anda entre seus caixeiros O Braga bem cortês.46
Mas o Silva Braga não estava sozinho nesta lide; outros proprietários de botequins melhoravam as condições de seus estabelecimentos a fim de trazerem para si uma freguesia requintada e de maior poder aquisitivo, e usavam artifícios para atraí-la, oferecendo-lhe outras formas de lazer, a fim de fazê-la permanecer mais tempo e consumir mais. Eis a propaganda do Café da Suíça, situado à rua da Assembléia nº 57: Dois bilhares. De dia 400 réis – De noite 800 réis. Haverá sempre café fresco das 8 horas da manhã até às 10 horas da noite. Quartas-feiras e sábados haverá as afamadas lingüiças de fígado de porco por porções. Domingos, das 10 horas da manhã ate às 4 horas da tarde, haverá bouillons.****** Cerveja imperial e nacional a 320 réis a garrafa. Toda qualidade de vinhos em garrafas e meias garrafas. Se cuidará muito em merecer a confiança do respeitável público pelo pronto e real serviço. Faz-se ciente ao mesmo tempo que na mesma casa estão expostos uns quadros de pintura de paisagem, etc., etc, e convida-se todos os amantes e artistas a vir julgar.47
Sensível às transformações sociais, percebeu no movimento, ainda que lento, de inserção da mulher no espaço público, a ocasião para incluí-la, ainda que sempre acompanhada da família. Mas trazer a mulher honesta, de família, para o espaço masculino dos botequins e até mesmo dos restaurantes será uma árdua tarefa. Até então, e durante muito tempo ainda, as únicas mulheres que freqüentavam os botequins, e mais precisamente, as vendas, eram as “mulheres públicas”, escravas e mulheres pobres. E esses locais eram conhecidos da polícia como ambiente de vadios, arruaceiros, brigões e prostitutas, de gente de hábitos reprováveis ******
Sopas.
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que usava um linguajar chulo e grosseiro. Um protesto publicado no Jornal do Comércio, em 1864, nos pode dar uma idéia de como eram as casas de pasto e as tavernas populares da época: As casas de pasto do troço******* e as tavernas. Recomenda-se à polícia e junta de higiene as imundas casas de pasto e tavernas que por aí formigam, que envenenam quotidianamente as classes operárias. Não existe rua que não tenha imensas dessas pocilgas; onde correm parelhas a porcaria com a imoralidade. Ass.: Argos.48
Em vista disso, não era de se estranhar que o preconceito contra tais estabelecimentos afastasse deles as “famílias honestas” e os “homens de bem”. Daí haver criado uma “sala por cima do seu café unicamente para se receber famílias para tomar sorvetes ou qualquer outra coisa”.49 Porém, criar novos ambientes com mobiliário moderno e louças de qualidade custava muito caro, sobretudo quando a perda de material por quebra era muito grande, como, em tom de pilhéria, lembrava: Agora que o ano velho Está quase p’ra findar, Vai o Braga aos seus fregueses Tudo, tudo declarar. Pelo relatório junto, Que submisso apresento, Vereis da casa afamada O contínuo movimento. É do meu dever, senhores, Não omitir coisa alguma, Para que fiqueis ao fato De tudo, de tudo... em suma. Principiarei por dizer-vos Que esta casa vive em paz Depois que as ruas ficaram Iluminadas a gás. Antes disto (mas já foi), Era um pouco incomodada Cá por certos sujeitinhos... Não de gravata lavada. Antropolítica
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36 Com a guerra da Criméia Também a Fama sofreu, Os sorvetes não correram Pouco café se bebeu. De café trezentas pipas Foi o que se fez apenas; Mas podia ganhar muito Se as xíc’ras fossem pequenas. Porém elas são maiores Do que um vidro homeopático... Mas que importa perder Com um povo tão simpático? Que o freguês vá satisfeito Para de novo voltar, É o que o Braga deseja; Tudo o mais se há de arranjar. Durante o ano quebraram-se Xícaras finas – vinte mil; Dez mil ficaram rachadas Que não valem um ceitil! Dois mil e seiscentos bules Que mandei vir do Japão, Ficou tudo em cacarecos Espalhados pelo chão. Dez mil e quinhentos pires, Com seis grosas de leiteiras Foram quebradas num dia Com sete mil cafeteiras. Dez grosas de facas finas Com seus cabos de veado, Apenas existe um cento, E esse mesmo maltratado.
***** Casas de pasto de baixa categoria e imundas. Antropolítica
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Manteigueiras, paliteiros, Colheres de prata de lei, Perdem-se tão grande soma, Que com certeza, não sei. Mas com todas estas perdas, No meu balanço vereis, Que inda me ficou de lucro Uma pataca e dez réis!! Com estes cobres eu vou Fazer sortimento novo, Para servir, como sempre, À gente nobre e do povo. Aqui mesmo vou pedir Aos meus ilustres fregueses, Para que venham à FAMA Por dia oito ou dez vezes. Quanto mais café tomarem Mais saúde lograrão; E os cobres vêm p’ra gaveta Tin...tin...tin...tirilin...tin...tão.
“Limpar o ambiente” da presença dos escravos, das camadas pobres de brasileiros, na maioria libertos, de imigrantes, e muito particularmente dos marinheiros estrangeiros, afeitos às bebidas alcoólicas e dados a grandes bebedeiras, tornara-se uma condição sine qua non para a renovação da clientela dos cafés e restaurantes. E os proprietários do Passeio Campestre advertiam: “Não serão admitidas no estabelecimento pessoas indecentemente vestidas”.50 Por isso mesmo, apesar da venda de cerveja e vinho, em sua prop aganda o Braga insiste no consumo de café, chocolate, chá e refrigerantes, bebidas que estavam muito mais de acordo com os hábitos cariocas, em que os “homens de bem” eram conhecidos por seus hábitos abstêmios e sóbrios. Seus preços para as refeições da manhã (almoço) e da noite (ceia) parecem ser relativamente elevados, pois cobrava 240 réis por um café da manhã, consistindo em pão com manteiga e café com leite,51 enquanto nos anos 1870, o Hotel Santo Antônio servia um “almoço de garfo” com dois pratos, pão e café, por 230 réis.52
38
Estes traços de sociabilidade inovadores, com aspiração a criar um espaço elegante e fino para conquistar uma clientela feminina, são os que chamam de imediato a atenção para os anúncios do comerciante José Sousa e Silva Braga. Sem embargo, seus anúncios, como todos os demais durante o período monárquico, nunca dialogam direta e pessoalmente com a mulher, de quem sequer fazem referência ao corpo, nem mesmo os avisos que tinham a ver especificamente com a clientela feminina. Eles dirigem-se às senhoras, abstratamente, e referem-se ao produto, não às suas fantasias: Colete para Senhora. A viúva Maria das Neves, discípula e ex contramestre de Mme. Charavel, participa às Exmas. senhoras e às suas freguesas que tem sempre coletes perfeitamente acabados, e faz sob medida qualquer encomenda com prontidão e elegância, os únicos hoje reconhecidos como os melhores neste gênero: todos os seus coletes são dos modelos, dos de Mme. Charavel, manufaturados na sua fábrica, à rua do Ouvidor n .79, 1º andar.53
Não obstante fornecer um rico material para a descrição dos hábitos de consumo e de lazer nos botequins do Rio de Janeiro, o que mais nos interessa é a originalidade publicitária do Braguinha: “Cantando espalharei por toda a parte.” As colunas que sustentam A Fama com galhardia, É ter sempre bom café E uma nobre freguesia. Nesta afamada casa Já do público conhecida, Abriu-se uma nova sala De primores enriquecida. Nesta lindíssima sala Com gosto bem preparada, Para tomar café Senhoras terão entrada. Com luxo, gosto e asseio É tudo o que ali se vê, E entra a se recrear Quem por acaso não crê. Antropolítica
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39 O Braga a nada poupou-se, Tudo o que fez é bom; É um salão-toilette Ora gente do grande tom. A toda hora da noite, A toda hora do dia, Deve haver neste salão Primorosa companhia. Agora, sim, no Rocio, Na Fama tão decantada Para se tomar refrescos Há sala já preparada. Nem se precisa p’ra isso Ir à rua do Ouvidor, Há na Fama do Café com Leite Um salão de primor. O Braga quer freguesia De gente limpa e asseada, Que p’ra isso o salão Foi com luxo preparado.54
Foi do ponto de vista da propaganda que Silva Braga mais inovou. Rapidamente compreendeu que para melhorar a qualidade de seu estabelecimento, devia antes de mais nada conquistar uma clientela que tinha o costume – trazido do período colonial por influência da vida rural –, de dormir cedo e realizar suas refeições em casa com a família. Silva Braga via no espaço público, fora do espaço masculino do trabalho, uma zona de sombra, freqüentada por marginais e delinqüentes, suspeita de vícios e pecados. E o melhor meio de tornar esse espaço atraente para a classe média e alta era fazer uso da publicidade nos jornais, principal meio de comunicação da época. Nela, de forma brincalhona e amável, valorizava seu botequim, tomando como medida o tamanho da inveja e mal-estar que supunha provocar em seus concorrentes (também uma forma de manter certa cumplicidade com os clientes virtuais), e, ao gabar-se da qualidade do seu serviço (incluindo o conforto do estabelecimento) e de suas bebidas (preparadas por pessoal competente), justificava seu preço. Aliás, a forma mais eficiente de afastar o pobre e selecionar sua clientela. Antropolítica
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Sua estratégia parecia estar rendendo lucros, pois, em 1856, procurava por pessoal de serviço das mesas55 e ajudante na cozinha,56 inaugurando novo café, o Botequim do Progresso, na rua da Prainha nº 35, que assim era saudado: Vinte e seis do lindo agosto Dia de tanta ventura, Destinado para ser Do Progresso a abertura. O Braga dono da Fama Convida a sua freguesia, Para tomar o café À Prainha neste dia.57
É claro que Silva Braga, além de não estar sozinho, contou com as mudanças econômicas e sociais da época, que avançavam a passos largos, mas, como ninguém, soube tirar partido delas. Afinado com seu tempo e sensível às transformações, procurou captar os ritmos da mudança e as novas formas de sociabilidade urbanas, cada vez mais sintonizadas com o mundo capitalista e os novos padrões de consumo burgueses, aderindo a elas: Mania de Quadra. De manhã, logo cedinho, Os jornais do dia ler, Fumar um bom charutinho, Café com leite beber. À mesa da Fama Levar um quarto de hora, Lendo os debates da Câmara, Não pescando nada, embora. Voltar depois às dez horas Para um almoço chuchar, E o belo café com leite E torradas desfrutar. Ir depois p’ras galerias Do nosso bom parlamento, Antropolítica
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41 Ouvir os grandes debates, Para o nosso florescimento. Se for dia de calor, Ao sair da galeria, Deve-se tomar orchata, Remédio bom para azia. À tarde voltar bem cedo, Ver na Fama tanta gente P’ra tomar o bom café, Ver as mesas com enchente! Café simples e com leite Tudo se deve tomar; E após, logo um charuto Aí mesmo saborear. Ler depois o suplemento Do Jornal, e o folhetim, Desfrutar tudo o que é bom Da Fama do botequim.58
Tanto em sua propaganda quanto em seus botequins, colocava-se no centro do espaço virtual ou real: da mesma maneira que, muito cortês, circulava entre os seus clientes enquanto eram servidos pelos garçons, os quais vigiava, também estava sempre presente nos versos de seus reclamos, estabelecendo uma relação de caráter intimista do “Braguinha” com sua clientela: Fama do Café com Leite O grande salão da Fama Vestiu camisa lavada Tem chapéu e calça nova E botina envernizada. Agora pode o freguês Tomar café com franqueza, E ler as folhas do dia Que andam por cima da mesa. O Braga não se descuida Em agradar os fregueses, Antropolítica
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42 Para que eles venham sempre, Por dia quatro e seis vezes O café daqui avante Há de ser feito a vapor; E depois deste processo Leva um rufo de tambor. O chazinho e chocolate, Feito ao som de um rabecão, Há de ser acompanhado Por um belo violão. São feitas por minuetes As torradas de pão fino; O mate por ser mais grosso, Levará toque de sino. Os caixeiros sempre alertas, Hão de um novo hino entoar Aos fregueses que deixarem Os cobrinhos cá ficar. Lá enquanto ao vintenzinho Que o Braga fez aumentar, No tempo em que nos achamos Não são coisas de estranhar. O vintém que se aumentou É por causa do tenor Que está fazendo o café Com rufinho de tambor. Portanto, caros fregueses, Não reparem no aumento, Porque bem sabem que as modas Andam sempre com o tempo.59
Pelo número e tamanho dos anúncios que fez publicar nos jornais a partir de 1854, e, anualmente, no Almanak Laemmert, de 1855 em diante, é possível adivinhar que vira no emprego sem parcimônia da propaganda o melhor meio de atrair uma clientela seleta e eliminar seus concorrentes. Como ele mesmo afirmava, em verso: “A Fama tem remédios para curar Antropolítica
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todas as moléstias, menos para curar más línguas, e tapar a boca dos invejosos”.60 Irreverente, buscava inspiração no quotidiano, o que aparenta ser, já nessa época, uma atitude do “fluminense”, como era chamado o carioca. Por exemplo, diante do fracasso da medicina oficial, aconselhava “os senhores médicos tratar de se formarem em outra coisa, porque pela medicina não fazem nada”, e colocava à disposição do público: Chá preto, azul, amarelo, verde, etc., etc. Chocolate homeopático, alopático, hidropático, e curandeirático charlatônico; tudo isto aprovado pelos doutores – Ginipá (francês), Ginimini (italiano), Ginimicoff (russo), Gimicamiesse-arling (inglês), Giminiaasca (alemão).61
Quanto às táticas utilizadas para conquistar uma nova freguesia ou aumentar o consumo da existente, fazendo com que permanecesse mais tempo em seu estabelecimento, e voltasse várias vezes no mesmo dia, afora a criação de um ambiente limpo, arejado, bem iluminado e bem decorado, mesinhas bem postas, jornais do dia sobre as mesas à disposição dos fregueses, mesa de bilhar, bebidas de qualidade, além do cafezinho, e garçons solícitos, passou a disponibilizar o serviço de entrega do café da manhã, bem cedinho, na casa dos fregueses que o encomendassem, e, da mesma maneira que alguns restaurantes, a fornecer “de sua casa ceias de café, de chá e chocolate, licores, refrescos, doces e enfim de tudo para os camarotes nas noites de espetáculo”,62 sempre pelos mesmos preços, àqueles que o desejassem e que fizessem a encomenda com antecedência: [...] Desde já peço aos fregueses Que quiserem cá da Fama Tomar o belo café De manhã bem cedo na cama. Que mandem buscar depressa, Pois os que querem são tantos, Que os caixeiros muitas vezes Saltam por cima dos bancos! Lá n’Alfândega há trabalho: A Fama não fica atrás; Mas tudo isto é porque o Braga Sempre foi muito rapaz.
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44 E se acaso duvidarem Ide a ele perguntar, Pois tudo o que aqui vos diz Está pronto a sustentar. E Vós, nobres fazendeiros, Vendei cafés baratinhos Para ver se o amigo Braga Ganha mais alguns cobrinhos Para poder sustentar Meia dúzia de filhinhos. N. B. – Os caixeiros da Fama não vão oferecer nada aos camarotes, porém encarregam-se de levar lá, com toda a prontidão e asseio, as encomendas que se lhe fizerem.63
De temperamento brincalhão, em sua propaganda, o Braguinha transmite otimismo, alegria, afeto e intimidade, sempre num linguajar coloquial, como se quisesse reproduzir o ambiente descontraído de seu botequim: Vinde à Fama do Braguinha Vinde o bom café tomar; Senão rogo-lhe uma praga Que jamais há de casar. Mas quem vier Café tomar, Com moça bela Há de casar. [....]64
E se tomarmos por parâmetro de sucesso o gasto que fazia com publicidade nos jornais e no Almanak Laemmert, podemos dizer que tudo correu muito bem até 1866, quando, pela primeira vez, não aparece na lista de Notabilidades do Almanak. Naquele ano, seu anúncio reduziu-se a apenas duas linhas nas quais, além do nome e endereço do proprietário, dizia que o estabelecimento possuía bilhares, mas sem especificar quantos, porque não deviam ser muitos, talvez não mais que dois. E assim continuou até 1870, quando seu aviso, sempre de duas linhas, aparece com o nome fantasia de Café do Braguinha e a nota remissiva à seção Notabilidades, onde, no entanto, seu anúncio não consta. No ano seguinte, o último em que aparece na lista do Almanak Laemmert, o seu Antropolítica
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reclamo repetia-se, mas já sem nenhuma referência a Notablilidades. E, desde 1870, um certo Luis Sergio Pinto de Moraes aparecia à frente do Nova Fama do Café com Leite, sito à rua do Hospício nº 141. Talvez houvesse comprado do Silva Braga o nome de seu botequim. Desvendar o que aconteceu com José de Souza da Silva Braga e seu café não é objeto desta pesquisa. No entanto, pela leitura do Almanak Laemmert, é possível levantar algumas conjecturas, ainda que apressadas, das quais a mais plausível é: o Silva Braga não suportou a concorrência dos demais cafés, alguns mais bem localizados, por estarem mais próximos às ruas mais chiques, como a do Ouvidor, e dispondo de maior conforto que o seu, e sobretudo maiores atrativos, ou seja, maior número de mesas de bilhar que, a crer nos anúncios da época, era a coqueluche da moda, e até mesmo, em 1860, o boliche: “Preugel’s Billiards and Bowling Sallons”.65 Desde 1854, os avisos de cafés com mesas de bilhar neste almanaque eram muito numerosos. Do total de 25, 16 possuíam bilhar, e em dois deles, o Café Ecremont e o Café Lusitano, havia cinco mesas, e no famoso Café Pharoux (no hotel de mesmo nome) havia quatro, desde 1844, quando era o único a anunciá-los.66 Mas uma mesa de bilhar nova custava tanto quanto um escravo: “Vendem-se dois bilhares por 500$, que custaram há cinco anos 2:200$, têm todas as pertenças; na rua de D. Manoel n. 60”.67 O que valia dizer que, para instalar um café com muitas mesas de bilhar, era preciso dispor de muita grana!: “Café Imperial, 18 bilhares, de Edmundo Miche, rua Uruguaiana n. 86, esquina da rua do Ouvidor”.68 Quem sabe, o Braguinha não teria podido acompanhar o progresso e a moda, ou seja, a sofisticação da sociedade da Corte, quando talvez já não fosse de bom tom beber apenas “O café torradinho,Torrada, boa manteiga, Ou um belo biscoitinho”,69 mas, freqüentar as luxuosas e requintadas confeitarias e restaurantes, alguns franceses, que recomendavase às pessoas finas e de bom gosto, sobretudo os da rua do Ouvidor e adjacências: Hôtel Restaurant des Frère Provençaux.70 De todos os estabelecimentos de primeira ordem no Rio, nenhum há que mais chama a atenção e reúna a flor da sociedade e do comércio do que o dos Frères Provençaux, Rua do Ouvidor, entrada pela rua dos Latoeiros n. 83 Disposto com toda a elegância e luxo europeu, tão notável pela exatidão, como pelos cuidados do serviço, o Hotel des Frères Provençaux se recomenda por todos estes títulos ao viajante e ao estrangeiro. A Antropolítica
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46 modicidade dos preços não tem comparação com o bem estar, o luxo e o confortável. Na cidade preparam-se de encomenda almoços, jantares, soirées, etc.71
De qualquer forma, ninguém soube melhor do que o Braguinha fazer uso da publicidade, quando as técnicas tipográficas eram ainda muito precárias, tirando partido das palavras e até mesmo da gravura. Ele foi o único a manejar sistematicamente72 a linguagem em função da propaganda e a manipular as gravuras-padrão fornecidas pelos clichês das gráficas dos jornais, que, no mais das vezes, nada diziam a respeito do produto ou serviço divulgado, como era o caso do anjo arauto, que não tinha nada a ver com o seu botequim, até o momento em que colocoulhe numa das mãos uma faixa com os dizeres “Sem mistura nem usura” e, na outra, uma enorme xícara de café! E foi por isso que hoje, 150 anos depois, A Fama do Café com Leite É por todos conhecida, A lembrança do Braguinha É por todos aplaudida.73
Résumé Celui qui lit, à présent, les petites annonces des journaux de Rio de Janeiro de la deuxième moitié du XIXe siècle, s’étonne certainement de la relative indigence de la publicité à l’époque. Son but était alors de rompre la carcasse des habitudes coloniales d’autosuffisance des familles, qui constituaient un marché potentiel pour la production marchande ; la concurrence entre les entreprises de même type venait en deuxième lieu. D’où probablement le manque de créativité qui les caractérise. La grande innovation publicitaire a surgi dans la branche des aliments préparés avec José de Sousa e Silva Braga, plus connu comme « Braguinha », propriétaire du café Fama do Café com Leite. Très vite, il a compris que pour améliorer la qualité de son établissement et pour mieux sélectionner son public, il devait se servir de la publicité dans les journaux, alors le principal moyen de communication. En phase avec son temps et sensible à son évolution, il chercha à saisir les rythmes des changements et les nouvelles formes de sociabilité urbaines, de plus en plus en harmonie avec le monde capitaliste et les nouveaux paradigmes de consommation bourgeois, en y adhérant. Mieux que personne, il a su se servir de la publicité, alors que les techniques typographiques étaient très Antropolítica
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précaires, tout en tirant le meilleur parti des mots et même de la gravure. Mots-clefs : publicité et techniques de vente ; alimentation ; petites annonces ; boucheries « monstres » ; cafés; Fama do Café com Leite.
Notas 1
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 28 jan. 1854. Cabeçalho da p. 1. Doravante CM.
2
EWEN, Stuaart. Consciences sous influence: publicité et genèse de la societé de consommation. Trad. Gérard Lagneau. Paris: Aubier Montaigne, 1983.
3
Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 01 jan. 1887. Anúncios, p. 8. Doravante JC,
4
JC, 07 mar.1857. Anúncios, p. 4.
5
A prova do sucesso desta resistência está no fato de o feijão e de a farinha de mandioca permanecerem até hoje como alimentos fundamentais da mesa do carioca, ainda que venham perdendo espaço ultimamente.
6
KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil (Rio de Janeiro e Província de São Paulo): compreendendo notícias históricas e geográficas do Império e das diversas províncias. São Paulo: Livraria Martins Editora: EDUSP, 1972. p. 191-192.
7
Não obstante, os escravos eram empregados na sua confecção doméstica ou nas padarias, como pode se verificar nos anúncios de escravos padeiros.
8
KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil (Rio de Janeiro e Província de São Paulo): compreendendo notícias históricas e geográficas do Império e das diversas províncias. São Paulo: Livraria Martins Editora: EDUSP, 1972. p. 100. JC, 01 mar. 1857. Anúncios, p. 4.
9
Provavelmente, há erros de impressão no texto e a ortografia correta devia ser moulé, que significa pão assado em fôrma, e navettes que são pãezinhos feitos com leite. Quanto às palavras de Trèse e a Esse deviam designar as cidades alemãs de Trèves e de Essen. Estes erros tipográficos sugerem a pouca intimidade dos tipógrafos com a terminologia estrangeira, especialmente a culinária, ou então a precária alfabetização dos irmãos Estruc (JC, 14 jan.1849. Anúncios, p. 3).
10
JC, 12 jan. 1851. Anúncios, p. 4.
11
CM, 24 maio 1856. Anúncios, p. 3.
12
CM, 02 maio1856. Anúncios, p. 4.
13
JC, 03 jan. 1880. Anúncios, p. 6.
14
A respeito da falta de especialização e da concorrência travada entre padarias, confeitarias, casas de pasto e cafés: EL-KAREH, Almir C. Cozinhar e comer, em casa e na rua: culinária e gastronomia na Corte do Império do Brasil. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 33, p. 91-92, 2001.
15
JC, 25 abr. 1857. Anúncios, p. 4.
16
JC, 02 mar. 1857. Anúncios, p. 4.
17
EL-KAREH, Almir C. Famílias adotivas, amas-de-leite e amas-secas e o comércio de leite materno e de carinho na Corte do Rio de Janeiro. Gênero, Niterói, v. 4, n. 2, 1. sem. 2004.
18
CM, 16 maio 1856. Anúncios, p. 3.
19
CM, 13 set. 1856. Anúncios, p. 3.
20
JC, 08 fev. 1857. Os empregados públicos, assinado: C., publicações a pedido, p. 2.
21
No entanto, estes serviços eram em sua maior parte, ainda, realizados pelos escravos domésticos, o que devia diminuir em muito o impacto da elevação de seus preços.
22
Marquês de Olinda. Conselho de Estado IV. Ata de 19 jul. 1855, p. 287.
23
VON KOSERITZ, Karl. Imagens do Brasil. São Paulo: Livraria Martins Editora: EDUSP, 1972. p. 135
24
Antropolítica
Niterói, n. 21, p. 13-49, 2. sem. 2006
48 IGLÉSIAS, Francisco. Atas do Conselho de Estado. v. VI, 1865-1867. Brasília, DF: Centro Gráfico do Senado Federal, 1978. Prefácio, p. XXXIX.
25
Marquês de Olinda. Conselho de Estado IV. Ata de 03 abr. 1855, p. 241.
26
CM, 18 out.1856. Anúncios, p. 4.
27
CM, 18 out. 1856. Anúncios, p. 4.
28
Marquês de Olinda. Conselho de Estado IV. Ata de 03 abr. 1855, p. 255.
29
Marquês de Olinda. Conselho de Estado IV. Ata de 03 abr. 1855, p. 257.
30
ALMANAK administrativo, comercial e industrial (Almanak Laemmert). Rio de Janeiro: [s.n.], 1844-1889. Doravante Almanak Laemmert.
31
Marquês de Olinda. Conselho de Estado IV. Ata de 03 abr. 1855, p. 256.
32
Marquês de Olinda. Conselho de Estado IV. Ata de 03 abr. 1855, p. 256.
33
Visconde de Sapucaí, Relator da Comissão dos Negócios do Império. Conselho de Estado IV. Ata de 03/04/1855, p. 250-251.
34
Almanak Laemmert, 1857. Talhos de carne e açougues, p. 619-621.
35
Dr. João Baptista dos Santos. Conselho de Estado VI, Seção dos Negócios do Império. Ata de 27/06/1867, p. 322-323.
36
Almanak Laemmert, 1870. Talhos de carne e açougues, p. 610-611.
37
Almanak Laemmert, 1844. Hotéis, casas de pasto, cafés, etc., p. 250.
38
Almanak Laemmert, 1849. Cafés, botequins, etc., p. 335.
39
Almanak Laemmert, 1854. Cafés, botequins e bilhares, p. 514-515.
40
Almanak Laemmert, 1856.
41
Almanak Laemmert, 1856. Cafés, botequins e bilhares, p. 609
42
CM, 01 jan. 1857. Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.
43
EL-KAREH, Almir C. O convenio: a queda de braço entre os comerciantes importadores e atacadistas em meados do século XIX no Rio de Janeiro. In: REUNIÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PESQUISA HISTÓRICA, 20., 2001, Curitiba. Anais... Curitiba, 2001.
44
Almanak Laemmert, 1857. Notabilidades, p. 93.
45
CM, 15 jun. 1856. Anúncios, p. 3.
46
CM, 22 jun. 1856. Anúncios, p. 3.
47
JC, 02 jan.1864. Anúncios, p. 4.
48
CM, 28 fev. 1857. Anúncios, A Fama do Café com Leite, O teatro S. Pedro, p. 4.
49
CM, 25 maio1856. Anúncios, p. 4.
50
CM, 07 jun. 1856. Anúncios, Fama do Café com Leite, p. 4.
51
JC, 03 jul. 1870. Anúncios, p. 6.
52
JC, 01 out. 1887. Anúncios, p. 4.
53
CM, 29 jun.1856. Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.
54
“Precisa-se de mais uma pessoa para o serviço das mesas; na Fama do Café com Leite”. CM, 06 maio 1856. Anúncios, p. 2.
55
“Precisa-se de um ajudante para cozinha, prefere-se brasileiro, para a Fama do Café com Leite”. CM, 30 ago. 1856. Anúncios, p. 3.
56
CM, 06 jul. 1856. Anúncios, Botequim, rua da Prainha, n. 37.
57
CM, 20 jul. 1856. Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.
58
CM, DATA. Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.
59
Almanak Laemmertt, 1857. Cafés, botequins e bilhares, p. 94.
60
Almanak Laemmert, 1857. Cafés, botequins e bilhares, p. 94.
61
Antropolítica
Niterói, n. 21, p. 13-49, 2. sem. 2006
49 Almanak Laemmert, 1856. Cafés, botequins e bilhares, p. 608.
62
Almanak Laemmert, 1857. Cafés, botequins e bilhares, p. 94.
63
CM, 14 dez. 1856. Anúncios, p. 3.
64
Almanak Laemmert, 1860. Cafés, botequins, bilhares etc., p. 677.
65
Vale a pena notar que, desde 1850, no índice do Almanak Laemmert aparecia “Cafés, botequins, bilhares, etc”.
66
JC, 30 out. 1864. Anúncios, p. 4.
67
Almanak Laemmert, 1871. Cafés, botequins e bilhares, p. 616.
68
CM, 06 jul. 1856. Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.
69
Já no ano de 1856, eles anunciavam ao público estarem empregando um cozinheiro do famoso restaurante dos Frères Provençaux de Paris: “Les frères Guigou (de Marseille) ont l’honneur de prévenir le public et particulièrement leurs amis et connaissances que, dès le 1er. Avril courrant, ils ont ouvert leur nouvel établissement. Un salon richement décoré et dans un nouveau style et bien aéré, les mets les plus variés et recherchés, apprêtés par un des premiers chefs (des Frères Provençaux, de Paris) […] ” (CM, 16 maio1856. Anúncios, p. 3).
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JC, 07 mar. 1857. Anúncios, p. 4.
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JC, 30 maio 1857. Anúncios, p. 4. Neste periódico, aparece uma propaganda em verso de um certo Guimarães, com loja na rua do Sacramento nº 13, portanto não longe do botequim da Fama do Café com Leite, onde o proprietário contentava-se em divulgar suas roupas feitas. A falta de originalidade e de conteúdo social crítico contrasta e, ao mesmo tempo, valoriza as qualidades publicitárias do Braguinha.
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CM, 06 jul. 1856. Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.
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Antropolítica
Niterói, n. 21, p. 13-49, 2. sem. 2006
Vladimir Safatle*
Identidades flexíveis como dispositivo disciplinar: Algumas hipóteses sobre publicidade e ideologia em sociedades “pós-ideológicas” Trata-se de expor os resultados de uma pesquisa realizada em 2006 a respeito do que podemos chamar de imaginário de consumidores globais veiculado pela publicidade de circulação mundial. Tal imaginário foi analisado em duas de suas representações centrais, a saber, as representações vinculadas à imagem do corpo e à sexualidade. As conseqüências de tal análise apontam para uma descrição do modo contemporâneo de funcionamento da ideologia no interior da retórica de consumo. Palavras-chave: publicidade; corpo; sexualidade; ideologia; ironia.
* Vladimir Safatle, Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, pesquisadorbolsista do CNPq. Autor de A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006).
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Durante o ano de 2006 foi realizada uma pesquisa no intuito de analisar o processo de formação do imaginário de consumidores globais, ou seja, consumidores de marcas de produtos distribuídos mundialmente que se comunicam de maneira relativamente uniforme em todos os locais onde atua.1 Partiu-se da hipótese de que a eficácia da comunicação de tais marcas pressupõe a existência de consumidores capazes de codificar mensagens de maneira idêntica a partir de conjuntos de referências culturais simétricos. Tal comunicação publicitária de marcas globais prevê a existência de um conjunto de representações sociais partilhadas por consumidores em várias partes do mundo. Podemos mesmo falar, neste caso, da existência de um imaginário global de consumo e de socialização. Ele nos coloca diante de um setor privilegiado dos processos de reprodução simbólica das estruturas sociais. Tal imaginário seria composto de várias representações sociais que podem ser individualizadas e analisadas de maneira relativamente independente. Algumas destas representações mais importantes dizem respeito ao corpo e à sexualidade, já que são representações determinantes na constituição da noção de auto-identidade socialmente reconhecida. O objeto desta pesquisa consistiu exatamente na análise do processo de reconstrução de tais representações sociais na publicidade dos anos 1990 e 2000, veiculada na mídia globalizada. Para tanto, a metodologia utilizada serviu-se de dois procedimentos. Por um lado, tratou-se de construir “constelações semânticas”, visando definir os tipos ideais de corpo e sexualidade nos anos 1990 e 2000. Isto implicou na determinação de redes de importação entre as diversas esferas da cultura de consumo: cinema, games, moda, publicidade. Tal rede foi o resultado mais visível da aplicação de uma abordagem histórico-social, visando estabelecer uma cartografia capaz de identificar as mutações mais substanciais das representações hegemônicas do corpo e da sexualidade na publicidade de veiculação mundial. Uma cartografia que não procurou, nem julgou necessário, ser exaustiva, pois ela devia ser sobretudo axial e expor os eixos maiores de desenvolvimento de tais representações para que a interação entre publicidade e forças socioculturais se deixe apreender. Dessa maneira, procurou-se organizar uma abordagem sistêmica dos fatos culturais capaz de identificar a origem e os processos de migração destas representações sociais que, a partir dos anos 1990, comportar-se-ão como hegemônicas. Se partirmos da hipótese adorniana de que a cultura de massa articula-se como um sistema, poderemos estar mais atentos à maneira com que certos conteúdos sociais utilizados pela publicidade Antropolítica
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são sintetizados primeiramente em outras esferas da cultura (cinema, música pop, moda, artes visuais etc.), o que nos permitirá colocar uma questão central: o que acontece a certos conteúdos quando eles migram de outras áreas da cultura em direção à publicidade? Lembremos Adorno, que, ao refletir sobre a estrutura monopolista da indústria cultural, afirma: Tudo está tão estreitamente justaposto que a concentração do espírito atinge um volume tal que lhe permite passar por cima da linha de demarcação entre as diferentes firmas e setores técnicos. A unidade implacável da indústria cultural atesta a unidade em formação da política (ADORNO, 1991, p. 116).
Podemos encontrar uma confirmação suplementar deste caráter sistêmico da cultura de massa através dos cool hunters, ou seja, profissionais pagos por grandes multinacionais que procuram ver, na produção cultural, os traços para as novas tendências do consumo de massa (FONTENNELLE, 2005). Sua função é identificar “novas tendências culturais que possam ser empacotadas, transformadas em commodities, e vendidas no mercado comercial” (RIFKIN, 2001, p. 149), mostrando assim a articulação sistêmica entre cultura, mídia e mercados. Por outro lado, a metodologia também consistiu em pesquisas qualitativas baseadas em entrevistas diretas com consumidores brasileiros e europeus das marcas em questão. As entrevistas procuraram não apenas constituir tais constelações semânticas do ponto de vista das individualidades, mas também identificar a maneira com que a comunicação de tais marcas insere-se em reflexões mais amplas, fornecendo referenciais para as experiências subjetivas relacionadas ao corpo e à sexualidade.
A mercantilização da recusa à publicidade Há uma década, o fotógrafo italiano Oliviero Toscani acusava a publicidade global de sustentar um ideal ariano de beleza capaz de sintetizar apenas corpos harmônicos, saudáveis e jovens. Sua crítica também não poupava uma certa noção falocêntrica de sexualidade que guiaria a produção de representações sociais na comunicação de massa. Mas, no decorrer da década de 1990, percebemos um lento processo de reconfiguração de representações sociais midiáticas vinculadas ao corpo e à sexualidade. Processo este que, aos poucos, colocou em circulação imagens do corpo e da sexualidade até então nunca investidas libidinalmente pela publicidade. Graças às campanhas mundiais de marcas como BennetAntropolítica
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ton, Calvin Klein, Versace e Playstation, corpos doentes, mortificados, des-idênticos, portadores de uma sexualidade ambígua, autodestrutiva e muitas vezes perversa, marcaram a trajetória da publicidade nos anos 1990. Compreender a lógica imanente ao processo de reconstrução de tais representações sociais na mídia globalizada aparece como fundamental para a caracterização das mutações da retórica contemporânea do consumo e de suas implicações na cultura. A comunicação destas marcas foi o objeto deste estudo. A escolha em centrar a análise na publicidade mundial a partir dos anos 1990 teve uma razão que se articula com um problema próprio à economia política da mídia. A partir dos anos 1990, a mídia mundial adquiriu mais claramente a forma de grandes conglomerados multimídias transnacionais nos quais convergem: controle dos meios de comunicação, dos processos de elaboração de produtos midiático-culturais e das pesquisas tecnológicas em novas mídias. Centros de tecnologia/entretenimento/ informação formam hoje um tripé fundamental da economia mundial. Na história da mídia, os anos 1990 serão lembrados pela criação de conglomerados como AOL Time Warner, Vivendi Universal e a News Corporation de Rupert Murdoch; além da consolidação de outros como Sony, Viacom, Disney e General Eletric (ALBARRAN, 1998). Podemos insistir, por exemplo, que já no início dos anos 1990, quatro grandes grupos de mídia controlavam cerca de 92% da circulação de jornais diários e cerca de 89% da circulação dos jornais de domingo na Inglaterra. Longe de termos uma pulverização das instâncias de produção de conteúdo midiá tico, como alguns esperaram devido ao desenvolvimento exponencial de novas mídias, vimos uma convergência cada vez maior de produção de conteúdo, canais de distribuição e de gestão de recepção. Tal processo de globalização das mídias chegou rapidamente ao mercado publicitário, que viu durante os anos 1990 numerosas fusões e jointventures que, em muitos casos, centralizaram boa parte do processo e da decisão criativa na matriz mundial, cabendo às filiais regionais apenas a tradução de campanhas e pequenas adaptações (DE MOOIJ, 1994). A conjugação destes fatores, impulsionada pelo desenvolvimento tecnológico da comunicação global (TV a cabo, internet etc.) consolidou o reaparecimento de uma publicidade produzida e veiculada mundialmente direcionada a um “público global”. Notemos que esta publicidade mundial foi talvez o melhor veículo de uma ideologia da globalização e da abolição de fronteiras culturais que ganhou força através da euforia alimentada pela queda dos países de regime comunista na Europa do Leste, a partir de 1989, e pela ascensão Antropolítica
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do multiculturalismo como projeto maior das sociedades liberais. Neste sentido, não devemos descartar a possibilidade de convergência entre os conteúdos das representações sociais do corpo e da sexualidade a serem apresentados e certos imperativos próprios à constituição de identidades globais. No entanto, o que salta primeiramente aos olhos é que este processo de constituição de um imaginário global de consumo não se deixa ler a partir da noção de repetição massiva de estereótipos e tipos ideais de conformação do corpo e da sexualidade. Ao contrário, tudo indica que os anos 1990 formam o momento em que, de certo modo, a publicidade mercantilizou o discurso da dissolução do eu como unidade sintética. Sabemos como o eu está profundamente vinculado à imagem do corpo próprio, ao ponto em que desarticulações na imagem do corpo próprio afetam necessariamente a capacidade de síntese do eu (LACAN, 1996, p. 96-104). O processo de formação do eu como instância de auto-referência e como unidade sintética de percepções é fundamentalmente dependente da constituição de uma imagem do corpo próprio capaz de servir como matriz imaginária para distinções entre ipseidade e alteridade, entre interior e exterior, entre outros. De fato, há uma proeminência da imagem do corpo sobre os “dados e sensações imediatas” do corpo. Para que existam sensações localizadas e percepções é necessário que exista um esquema corporal (fundamentalmente vinculado às capacidades organizadoras da imagem) capaz de operar a síntese dos fenômenos ligados ao corpo. A imagem aparece assim em posição transcendente e unificadora. Mas, se voltarmos os olhos para a retórica do consumo e da indústria cultural, veremos como elas passaram por mutações profundas que afetaram o regime de disponibilização das imagens ideais de corpo. Ao invés de locus da identidade estável, o corpo fornecido pela indústria cultural e pela retórica do consumo aparece cada vez mais como matéria plástica, espaço de afirmação da multiplicidade. Isto levou um sociólogo como Mike Featherstone a afirmar que ”no interior da cultura do consumo, o corpo sempre foi apresentado como um objeto pronto para transformações” (FEATHERSTONE, 2000, p. 4). A princípio, tal situação parecia marcar com o selo da obsolescência a idéia frankfurtiana da indústria cultural como negação absoluta da individualidade. Pois, ao invés das operações de socialização através da exigência de identificação com um conjunto determinado de imagens ideais, estaríamos agora diante de uma indústria cultural que incita a reconfiguração contínua e a construção performativa de identidades. Na verdade, o setor mais avançado da cultura do consumo não forneAntropolítica
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ceria mais ao eu a positividade de modelos estáticos de identificação. Ele forneceria apenas a forma vazia da reconfiguração contínua de si que parece aceitar, dissolver e passar por todos os conteúdos. Isto pode explicar por que temos cada vez menos necessidade de padrões claros de conformação do corpo a ideais sociais. Foi tendo este processo em vista que a pesquisa se debruçou sobre a análise do posicionamento mundial de comunicação de quatro marcas nos anos 1990: Benetton, Calvin Klein, Versace e PlayStation. Este conjunto se impôs porque estamos diante de marcas que influenciaram de maneira decisiva o desenvolvimento da publicidade dos anos 1990, através de uma conjunção entre novidade estilística e apresentação de novas representações sociais. A estética heroína chic da Calvin Klein, a androginia e indeterminação sexual da Versace, a publicidade que questiona os parâmetros da linguagem publicitária da Benetton, assim como o corpo maquínico, fusional e mutante da PlayStation modificaram sensivelmente os limites e as estratégias da retórica publicitária. Outro dado importante a lembrar é que todas estas campanhas foram criadas por fotógrafos e agências internacionais. Agências nacionais decidem apenas a veiculação. No caso da Playstation, sequer a veiculação é feita no Brasil. Os espaços são comprados em veículos internacionais (TV a cabo, revistas de circulação internacional etc.). No que diz respeito ao nosso objeto de estudo, podemos dizer que essas agências estruturaram três representações sociais que foram analisadas detalhadamente nesta pesquisa, a saber: – o corpo doente e mortificado como objeto do desejo (Calvin Klein, Benetton2), Tal representação já havia aparecido anteriormente na estética dos videoclipes e da moda. A beleza anoréxica de Kate Moss, por exemplo, tinha necessariamente algo desta ordem de representação do corpo doente. – o corpo como interface e superfície de reconfiguração que coloca o sujeito diante da instabilidade de personalidades múltiplas e da des-identidade subjetiva (PlayStation). No caso das campanhas da Playstation, o corpo deixa de ser concebido com um limite entre o sujeito e o mundo para ser uma interface de conexão. A questão da autoidentidade, tão ligada à noção de integridade do corpo, modifica-se necessariamente. Neste sentido, podemos ver aí o esforço publicitário de incorporação da lógica corporal de interface desenvolvida por artistas como Orlan, Sterlac e por cineastas como David Cronemberg (Ex-sistenz). Antropolítica
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– o corpo sexualmente ambivalente (Versace) que aparentemente questiona as imagens da sexualidade falocêntrica que sempre dominaram a publicidade. A diferença sexual nunca colocou problemas para a retórica publicitária. Mas os anos 1990 viram a proliferação de imagens de ambivalência, assim como uma certa feminização de representações masculinas em produtos cujo target nada tem a ver com públicos homossexuais. O fato de três destas marcas referirem-se a produtos de moda (Benetton, Calvin Klein e Versace) e uma a um game ligado, de uma certa forma, ao imaginário da realidade virtual é algo que não deve causar surpresas. Pois todas estas marcas oferecem produtos que mercantilizam diretamente a promessa da re-fabricação plástica da identidade de si. Promessa fundamental para a sustentação dos vínculos subjetivos com uma ordem econômica (o capitalismo tardio) marcada exatamente pela realidade da desterritorialização. No caso de um produto ligado ao universo da realidade virtual (PlayStation), o apelo à experiência controlada da plasticidade da identidade é ainda mais visível. Notemos, apenas a título indicativo, que, ao trabalhar representações publicitárias do corpo marcado pela doença, pela ambigüidade e pela des-identidade, estamos falando de um processo de mercantilização do que aparentemente seria o avesso da forma-mercadoria. Pois estamos diante da mercantilização midiática de representações do corpo aparentemente avessas à imagem ideal do corpo fetichizado (como são as representações do corpo doente e do corpo ambivalente) que circulava de maneira hegemônica na própria publicidade. Talvez este fato indique uma nova etapa da retórica do consumo, já que vemos uma retórica prestes a flertar com noções aparentemente desharmônicas do desejo e que pode indicar o advento de novos processos de mercantilização da negatividade da auto-destruição e da revolta contra as imagens ideais do corpo. Talvez valha neste caso o dito premonitório de Debord (2002, p. 40): “À aceitação dócil do que existe pode juntarse a revolta puramente espetacular: isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em que a abundância econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento desta matéria-prima”. Ou seja, nada impede que a frustração com o universo fetichizado da forma-mercadoria e de suas imagens ideais possa se transformar também em uma mercadoria. Na verdade, esta é a base do posicionamento das campanhas mundiais da Bennetton, só para ficar no exemplo mais visível. Ao questionar consumidores da marca a respeito das estratégias de comunicação da Bennetton, percebemos os resultados Antropolítica
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de uma lógica na qual a frustração com o universo publicitário vira a mola do próprio discurso publicitário. Afirmações feitas por entrevistados, como: “Aquilo é o mundo real”, “Não gosto de ser tratado como alguém absolutamente à parte dos problemas do mundo” e “Bennetton foi importante por trazer problemas mundiais para o horário comercial”, indicam que as rupturas formais e de conteúdo próprias às campanhas da Bennetton permitiram a mercantilização publicitária da frustração com o universo publicitário. Podemos mesmo colocar como hipótese que, a partir do momento em que a saturação do público consumidor em relação aos artifícios corriqueiros da retórica publicitária motivou uma certa invalidação de representações sociais normalmente vinculadas à positividade do universo das mercadorias, então a publicidade viu-se obrigada a, digamos, “flertar com o negativo”. Assim: “a crítica ao capitalismo tornou-se, de forma bem estranha, o sague salvador do capitalismo” (FRANK, 2003, p. 44). A publicidade enquanto estrutura retórica tem uma dinâmica própria de investimento e des-investimento de estratégias persuasivas. A repetição contínua de certas estratégias impõe uma lógica de desgaste de certos conteúdos retóricos.
Posicionamento bipolar de marca Este processo de mercantilização publicitária da frustração com o universo publicitário serviu de base para a análise das campanhas da Calvin Klein e Versace. Nestes casos, a hipótese inicial consistia em afirmar que idéias vinculadas à ambivalência sexual e ao desconforto com imagens ideais de corpo estariam migrando para o cerne da cultura de consumo. Uma migração que levaria consumidores a identificarem-se cada vez mais com tais representações sociais. Tal hipótese parecia corroborar uma certa forma cada vez mais hegemônica de afirmar a obsolescência de lógicas próprias a uma sociedade repressiva, isto em prol do advento de uma época de flexibilização e “construção” de papéis sexuais. Poderíamos assim esperar que os consumidores de Calvin Klein e Versace tivessem, de uma forma ou de outra, este ideal de conduta. No entanto, esta hipótese não se confirmou através das entrevistas realizadas. Sobre as campanhas da Calvin Klein, com modelos no limiar da anorexia e com corpos des-vitalizados, algumas afirmações de entrevistados foram: “As campanhas da Calvin Klein mostravam pessoas que não existem. Ninguém tem aqueles corpos magros e estilosos”, “Aquele não é meu padrão de beleza. Gosto de mulher com carne”(consumidor brasileiro). Antropolítica
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Sobre a Versace, encontramos afirmações como: “Hoje em dia as pessoas são cada vez mais bissexuais, as mulheres querem copiar o que há de pior nos homens”, “A marca é tão chique que pode ser vulgar”, “Não é o tipo de situação na qual me vejo. Mas hoje é cool tratar sexo como o jogo”. Tais afirmações foram muito ilustrativas da média do que foi encontrado pela pesquisa. A conclusão aparente indicava que parte significativa dos consumidores daquela mesma marca não se reconhecia nos padrões de corpo e sexualidade da própria marca, o que nos colocava diante da questão de saber o que então sustentava o processo de identificação entre consumidor e marca. Notemos, por outro lado, que, mesmo não se identificando com tais padrões, a grande maioria dos entrevistados reconhecia estes mesmos padrões como tendências hegemônicas: “Cada vez mais os adolescentes jogam com a ambivalência sexual”, afirma um entrevistado de 33 anos a quem foi pedida uma projeção social a respeito das representações de sexualidade presentes em um conjunto de peças publicitárias da Calvin Klein, o que indica a capacidade da marca de se colocar como referência de interpretação da vida social. Mas o dado inusitado consistia nesta posição de consumidores de marca com a qual eles não se identificam. A chave para o problema consistia numa aparente contradição. Na mesma época em que Calvin Klein colocava em circulação suas campanhas heroína chic e suas representações de corpo doente, mortificado, sexualmente ambivalente (em campanhas, por exemplo, para CK One, CK Be e Obsession), disponibilizava campanhas (como as criadas para Eternity) com valores exatamente contrários, valores exaltando a família moderna e “classicamente definida”, o retorno à natureza, o equilíbrio. Lembremos que tratava-se de campanhas que alcançavam o mesmo target por serem veiculadas nas mesmas revistas (Details, Vanity Fair, Vogue, GQ, Rolling Stones etc.). A resposta para tal contradição aparente consiste em insistir que o posicionamento destas marcas não é um posicionamento de valores “exclusivos”, mas um posicionamento “bipolar”. Ou seja, ele é assentado em valores contrários. O que aparentemente seria um erro crasso de posicionamento revela-se uma astúcia. Por um lado, isto permite ao consumidor identificar-se com a marca sem, necessariamente, identificarse com um dos seus pólos. Mas, principalmente, este posicionamento bipolar pode funcionar porque os próprios consumidores são incitados a não se identificarem mais com situações estáticas. A publicidade contemporânea e a cultura de massa estão repletas de padrões de condutas construídos através de figuras para as quais conAntropolítica
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vergem disposições aparentemente contrárias. Mulheres, ao mesmo tempo, lascivas e puras, crianças, ao mesmo tempo, adultas e infantis, marcas tradicionais e modernas. Esta lógica foi bem sintetizada no teaser de uma campanha da própria Calvin Klein: “Be bad, be good, just be”. Ou seja, um modo de ser próprio a uma era da flexibilização de padrões de identificação. Uma época como esta permite marcas que tragam, ao mesmo tempo, a enunciação da transgressão e da norma. Até porque os sujeitos estão presos a esta lógica de ao mesmo tempo aceitar a norma e desejar sua transgressão. A publicidade compreendeu isto. Daí porque atualmente ela fala a eles visando este ponto em que transgressão e norma se imbricam. Se este for realmente o caso, então teríamos uma tendência a repensar a dinâmica própria à noção de posicionamento de marca. Práticas comerciais e dispositivos de incitação ao consumo pressupõem, necessariamente, uma certa teoria a respeito da maneira com que sujeitos orientam seus desejos e sustentam processos de identificação. À sua maneira, Marx já havia percebido algo desta natureza ao afirmar que: “A produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” (MARX, 1978, p. 100). Devemos apenas completar dizendo que não apenas os modos de produção criam modos de subjetivação, mas também que modos de consumo produzem maneiras dos sujeitos determinarem sua própria subjetividade. Digamos que, grosso modo, na noção “clássica” de posicionamento de marcas, trabalhamos com sujeitos pensados como tipos-ideais (para usar um termo weberiano) que parecem procurar, nos produtos, certos valores de significação bem definida (“segurança”, “modernidade”, “retorno à natureza” etc.). No entanto, é possível que tal maneira de pensar a relação consumidor-marca não dê mais conta de certas tendências contemporâneas. Tendências que levam os consumidores a se identificar com o ponto de indistinção entre valores contrários, compondo com isto um ideal de personalidade não mais vinculado à coerência de condutas submetidas a um padrão de unidade. O que não poderia ser diferente. Basta lembrarmos que, atualmente, estamos diante de uma sociedade na qual os vínculos com os objetos (incluindo aqui os vínculos com a imagem do corpo próprio) são frágeis, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de se alimentar desta fragilidade. Até porque, não se trata de disponibilizar exatamente conteúdos determinados de representações sociais através do mercado. Trata-se de disponibilizar a pura forma da reconfiguração incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado, e é isto que tais marcas procuram fazer. Antropolítica
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Note-se, por exemplo, a significação do aparecimento do corpo sexualmente ambivalente como elemento maior da retórica publicitária do final dos anos 1990. A diferença sexual nunca colocou problemas para a retórica publicitária, mas os anos 1990 viram a proliferação de imagens de ambivalência, assim como uma certa feminização de representações masculinas em produtos cujo target nada tem a ver com públicos homossexuais. O caso mais ilustrativo é a campanha mundial da marca Versace desenvolvida pelo fotógrafo Steven Meisel e pela A/R media, em 2002: ela se resume a fotos de um casal na cama ou em um quarto com decoração carregada e pretensões de luxo. Além disto, há apenas a assinatura do anunciante. Nós sempre sabemos quem é um dos parceiros (um homem ou uma mulher bem vestidos em posição de autoconfiança, tédio e domínio da situação), mas nunca sabemos quem é o outro, já que sempre aparece sem rosto, jogado em um canto para denotar que foi usado em um jogo sexual, com roupas íntimas femininas e traços de corpo masculino. Implicações de lesbianismo lipstick, de homossexualismo e de ambigüidade sexual são evidentes. Este apelo ao embaralhamento de papéis sexuais não é direcionado para um target homossexual. O target da Versace é composto basicamente de mulheres com mais de 30 anos. A análise de entrevistas sobre Versace feitas por esta pesquisa apenas demonstrou a recorrência de afirmações como: “Hoje em dia as pessoas são cada vez mais bissexuais, as mulheres querem copiar o que há de pior nos homens”, “A marca é tão chique que pode ser vulgar”, “Não é o tipo de situação na qual me vejo. Mas hoje é cool tratar sexo como o jogo”. Ou seja, novamente, as próprias consumidoras não identificavam-se totalmente com o padrão geral de conduta apresentado pela campanha publicitária, a não ser que tal jogo de ambivalências seja apenas uma aparência que deva ser tratada como pura aparência.
A sociedade da insatisfação administrada e seus dispositivos disciplinares
Neste ponto, vale a pena uma certa digressão. É possível que o segredo desta sociedade na qual os vínculos com objetos e valores são frágeis, mas que é capaz de alimentar-se desta mesma fragilidade, esteja em algo que poderíamos chamar de “ironização absoluta dos modos de vida”. Pois, em uma sociedade como a nossa, na qual se trata fundamentalmente de saber administrar a insatisfação (e não exatamente de administrar a satisfação através da constituição de estereótipos de conduta), os sujeitos não são mais chamados a identificar-se com tipos ideais construídos a partir de identidades fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos Antropolítica
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e uma certa ética da convicção. Na verdade, eles são cada vez mais chamados a sustentar identificações irônicas: identificações nas quais, a todo momento, o sujeito afirma sua distância em relação àquilo que ele está representando ou ainda, em relação a suas próprias ações. A psicanálise, em especial a psicanálise de orientação lacaniana, insistiu no papel das identificações como processo central na socialização e na sustentação dos vínculos sociais. Ela chegou mesmo a estabelecer uma distinção estrita entre identificação imaginária, fundada na introjeção constitutiva e especular da imagem de um outro que tem o valor de tipo ideal, e identificação simbólica, que indica o reconhecimento de si em um traço unário vindo de um Outro (normalmente aquele que sustenta a função paterna) na posição de Ideal do eu. Esta forma de identificação é modo de reconhecimento que, por operar através de traços unários, isto é, em vez de operar por imagens estáticas, não impõe ao sujeito a partilha de uma identidade fixa, mas leva-o a se reconhecer e a reconhecer seu desejo naquilo que não tem objetivação previamente determinada. Através desta duplicidade nos mecanismos de identificação, Lacan procurava explicar como os processos de socialização baseados em identificações podiam dar conta do fato de os sujeitos serem capazes de se reconhecerem em funções simbólicas que não se esgotam nas figuras contingentes daqueles que as portam. No entanto, tudo se passa como se transformássemos esta ausência de objetivação previamente determinada, própria às funções simbólicas, em ironia. Pois, tal como as identificações simbólicas, as identificações irônicas não estão vinculadas à introjeção de imagens privilegiadas colocadas em posição de ideal. Mas esta destruição da pregnância das imagens pode redundar simplesmente na implementação contínua de uma certa distância irônica em relação a toda determinidade empírica, ou seja, em relação a todo papel identitário que determina um fazer social. Um distanciamento que pode se estabilizar a partir do momento em que os sujeitos tratam suas identidades sociais como simples semblants, para usar um termo de Lacan, ou ainda, como aparências postas enquanto tal. Assim, eles se aferram a identidades sociais que não têm realidade substancial devido exatamente ao fato de não terem realidade substancial alguma. Tal lógica da ironização pode realizar-se, por exemplo, através da “flexibilidade” de uma subjetividade plástica que compreende identidades sociais como aparências postas como aparência e que, com isto, pode afirmar-se enquanto puro jogo de máscaras não mais submetido a princípio unificador algum. Tudo isso nos permite dizer que esta ironização absoluta dos modos de vida – com sua lógica de autonomização da aparência – pode aparecer Antropolítica
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como posição subjetiva que internalizou a desvinculação geral entre imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados, própria a uma retórica de consumo que enuncia, ao mesmo tempo, a norma e sua transgressão. Ela ganha relevância em uma situação histórica, como a nossa, na qual a ideologia no capitalismo pode livrar-se de todo e qualquer vínculo privilegiado a conteúdos substantivos. Pois: Da mesma forma que o sujeito irônico pode adotar qualquer discurso ou persona, o capitalismo pode colocar no mercado qualquer discurso ou valor [...] Ironia representa, ao mesmo tempo, uma tendência e um problema do capitalismo. Ela sempre pôs algum ponto para além de todo conteúdo ou valor particular. Neste sentido, ela antecipou a tendência do capitalismo em atravessar contextos e produzir um ponto universal a partir do qual todos valores podem ser intercambiados (COLEBROOK, 2004, p. 150).
Há muito nossos dispositivos disciplinares não procuram mais produzir subjetividades através da internalização de sistemas unificados de condutas e regras de práticas corporais. Não vivemos mais na época em que a ideologia procurava naturalizar modelos normativos de conduta e tipos sociais ideais, até porque isto exigiria identificações com tipos sociais pautadas pela ética da convicção; o que é impossível em situações de crise de legitimidade como a nossa. Mas note-se esta disposição atual da indústria cultural em ironizar a todo momento aquilo que ela própria apresenta. Esta autoderrisão é uma maneira astuta de perenizar estruturas narrativas e quadros de socialização, mesmo reconhecendo que eles já estão completamente arruinados. Levando tal situação em conta, podemos afirmar que uma época como a nossa desenvolveu dispositivos disciplinares que são subjetivados “de maneira paródica” por procurarem levar sujeitos a constituirem sexualidades e economias libidinais que absorvem, ao mesmo tempo, o código e sua negação. Neste sentido, a paródia, longe de ter uma força política explosiva (como defendem teóricos como Giorgio Agamben (2005) e Judith Butler (1999)), parece ser, na verdade, a lógica mesma de funcionamento dos dispositivos disciplinares da biopolítica contemporânea, o que nos leva a encontrá-la no seio da retórica midiática de consumo. Pois a “administração dos corpos e a gestão calculista da vida”, a respeito da qual fala Michel Foucault, só é atualmente possível não através do vínculo a mandatos simbólicos coesos, mas através da internalização de tipos ideais e práticas que transgridem suas próprias disposições de conduta, tipos ideais próprios a situações de anomia. Ou seja, esta maneira de funcionamento do setor mais avançado da retórica de consumo é Antropolítica
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apenas uma forma de gestão disciplinar dos processos de subjetivação em situações sociais de anomia. É bem provável que a contemporaneidade esteja diante de uma situação histórica na qual a própria Lei normativa tende a funcionar de maneira paródica e autoderrisória (SAFATLE, 2005). Este fato está vinculado a uma modificação maior nos modos de operação da ideologia, já diagnosticado desde Adorno: a ironização absoluta dos modos de vida e condutas. Ironização que nos coloca diante daquilo que Peter Sloterdijk um dia chamou de ideologia reflexiva, posição ideológica que porta em si mesma a negação dos conteúdos que ela apresenta. Maneira astuta de perpetuá-los mesmo em situações históricas nas quais eles não podem mais esperar enraizamento substancial algum.
Abstract This article aims to show the results of a research made in 2006 about the imaginary of global consumers in global advertising. Such imaginary was analysed upon two major representations: one that concerns the body image and other that concerns sexuality. The consequences of such analyse open to a description of the way that ideology works in the contemporary rethoric of consuptiom. Keywords: advertising; body; sexuality; ideology; irony.
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Notas 1
Esta pesquisa foi conduzida pelo autor, que teve o auxílio inestimável e decisivo do bolsista Gustavo Monteiro, sendo financiada pelo Centro de Altos Estudos em Propaganda e Marketing (CAEPM), centro de pesquisas vinculado à ESPM/SP.
2
Lembremos da provocação de Oliviero Toscani: “A publicidade não conhece a morte” (1998, p. 5). Devemos acrescentar, nesta mercantilização do corpo doente e mortificado, a transformação de um certo “sadomasoquismo chic” em paradigma do comportamento sexual socialmente aceito e veiculado pela publicidade. Ao analisar certas publicidades de moda dos anos 1990, Diane Barthel afirma: “In such advertisements sadism becomes understandable and aggression is presented as a daily part, even a desirable part of daily life” (BARTHEL, 1988, p. 81).
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Vinícius Andrade Pereira*
Remediação e Linguagens Publicitárias nos Meios Digitais** Os meios digitais surgem como sistemas complexos, capazes de realizar múltiplas funções comunicativas. Esta característica pode trazer dificuldades para a apreen são de como funcionam e como se dão as dinâmicas comunicacionais na contemporaneidade. Considearando que, desde a Modernidade, a publicidade é um dos caminhos para se compreender as culturas urbanas, e que as práticas publicitárias são reflexos das linguagens e dos espaços propostos por cada meio específico, este artigo busca mapear a evolução dos espaços midiáticos em consonância com as diferentes práticas de comunicação propostas por cada meio. Com a reflexão empreendida, busca-se, também — recorrendo a pensadores como Marshall McLuhan, Jay Bolter, Richard Grusin, dentre outros —, apontar algumas relações em jogo entre práticas de comunicação, materialidades dos corpos e dos meios, e apropriações tecnológicas. Palavras-chave: linguagens publicitárias; meios digitais; materialidades da comunicação.
∗
O autor é Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ, Mestre em Psicologia pelo IP/UFRJ. É professor dos cursos de comunicação e de design da ESPM-RJ. É professor, também, da Faculdade de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ, onde coordena a Linha de Pesquisa Novas Tecnologias e Cultura. É o atual coordenador do GT Comunicação e Cibercultura, da COMPÓS – Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, e Pesquisador Associado do McLuhan Program in Culture and Technology, da Universidade de Toronto, Canadá.
**
Este artigo representa parte das reflexões elaboradas ao longo do desenvolvimento de duas pesquisas. A primeira delas, intitulada Transficção: Narrativas Multilineares, Mídias Híbridas e Ambientes Pró-Branding, foi desenvolvida ao longo do ano de 2006, no Laboratório de Mídias da ESPM-RJ, financiada pelo CAEPM – Centro de Altos Estudos em Propaganda e Marketing da ESPM. Esta pesquisa contou com a colaboração do aluno de iniciação científica Darwin Ribeiro. A segunda pesquisa, intitulada Práticas de Comunicação em Redes Tele-informáticas e A Lógica das Linguagens Digitais – Construindo Modelos de Propaganda e de Marketing no Ciberespaço, que conta com a Prof.ª Andrea Hecksher como co-autora, foi aprovada pelo CAEPM para o ano de 2007 e será desenvolvida no Laboratório de Design da ESPM-RJ. O autor agradece ao CAEPM e à ESPM-RJ as condições e o apoio dados, sem os quais o desenvolvimento de ambas as pesquisas não seria possível.
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É relativamente comum a idéia de que a vida de alguém que passa por uma experiência de quase morte, nos instantes que pareciam ser os derradeiros, apresenta-se como um filme para o desesperado em questão. É como se os momentos mais significativos da existência — por exemplo, o primeiro dia de escola, o primeiro beijo, a primeira transa, o primeiro emprego, o casamento, os nascimentos dos filhos etc — se enfileirassem na forma de memória audiovisual, numa bem cuidada edição, e através de uma narrativa linear contassem pela última vez, para o personagem principal da história, no que se resumiu a sua existência. Uma pergunta possível que um estudioso das mídias ou da cultura poderia fazer diante desta idéia seria: mas, como será que a própria vida passaria a este mesmo sujeito hipotético que quase morre, se ele tivesse vivido em algum momento da história antes do aparecimento da tecnologia filme? De outro modo, pode-se indagar: há uma memória das próprias vivências que se estrutura naturalmente como gramática de um filme, isto é, reproduzindo uma realidade socialmente construída, de forma linear e coerente, independente da cultura em que se tenha vivido? Ou, ao contrário, a memória seria construída e moldada a partir das tecnologias de comunicação de cada época, e sendo o filme uma forma de expressão hegemônica na cultura ocidental nos últimos 60 anos, tal tecnologia se refletiria ainda hoje na estruturação dos relatos mnêmicos mais expressivos, como na rápida recuperação da história pessoal do indivíduo que quase morre? Estas indagações iniciais podem alimentar todo um conjunto de reflexões que interessam para analisar os possíveis efeitos das tecnologias de comunicação nas sociedades. Mais especificamente, pensar até que ponto o encontro com as mídias digitais pode estar propiciando novas formas de narrativas, a partir das quais novos modos de representação de si e do mundo podem estar em processo e, assim, pensar como as dinâmicas das linguagens midiáticas evoluem e, em paralelo, como se transforma a cultura contemporânea. Se o filme comparece como uma referência importante para se pensar os modos de produção de representações que chegam até a contemporaneidade, a televisão e, dentro desse meio, os filmes publicitários, têm relevante participação neste processo. Antropolítica
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McLuhan (1964, p. 206) escreveu que “Os historiadores e arqueólogos um dia descobrirão que os anúncios de nosso tempo constituem os mais ricos e fiéis reflexos diários que uma sociedade pode conceber para retratar todos os seus setores de atividades”. Sendo válidas ainda as palavras do pensador canadense, lançar um olhar para as linguagens publicitárias, para as formas que assumem na contemporaneidade, pode ajudar a compreender parte dos modos com que as subjetividades dos públicos são constituídas hoje em dia, nas suas relações com os meios de comunicação. E isso pode significar o alargamento da compreensão acerca da própria cultura contemporânea. Entretanto, reconhecendo que a história das linguagens publicitárias sempre esteve ligada à evolução dos meios de comunicação, chegar à contemporaneidade e se deparar com uma infinidade de artefatos que atendem pelo genérico nome de mídias digitais — PDAs, laptops, telefones celulares, TVs digitais, câmeras de vídeo e de fotografia digitais, computadores pessoais, Ipods etc — implica reconhecer enormes dificuldades na empreitada de compreender como devem ser as linguagens publicitárias nestes novos meios. De imediato, duas estratégias parecem possíveis. A primeira seria tomar os artefatos digitais como distintos e singulares, implicando pensar para cada um deles um conjunto de características que os definam a partir de suas lógicas de funcionamento e, assim, pensar uma linguagem publicitária específica para cada um dos diferentes meios. Uma segunda perspectiva seria considerar todos os diferentes meios como representantes de um mesmo gênero — os meios digitais — e, assim, buscar uma lógica de funcionamento suficientemente abrangente, capaz de abarcar todos eles, explicitando pontos fundamentais das suas dinâmicas, lógica sobre a qual devam ser montadas as estratégias publicitárias para os meios que, afinal, não seriam tão diferentes assim. Esta perspectiva não deverá ser entendida como oposta e excludente quanto à primeira, desde que se compreenda que, em termos lógicos, diferentes linguagens para diferentes meios obedecerão a um conjunto de princípios comuns.
Os meios e seus espaços Adotar a perspectiva de estudos dos meios que tomariam as mídias digitais como próximas entre si, para pensar uma lógica passível de ordenar as linguagens publicitárias, contudo, exigirá uma manobra teórica sutil, que consiste em deslocar a ênfase dos estudos das linguagens publicitárias das suas relações com os meios de comunicação em geral, para as suas Antropolítica
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relações com os espaços engendrados pelos diferentes meios. Em outros termos, significa que para se pensar as características das linguagens publicitárias em meios distintos tais como um jornal, um rádio, ou uma TV, por exemplo, não se deve buscar compreender especificamente o que seja cada um desses meios em termos de suas características formais e funcionais, apenas, mas compreender os espaços que tais meios engendram, espaços estes que são tomados, apropriados, pelas linguagens publicitárias. Assim, a história da propaganda e, mais especificamente, do anúncio publicitário, dentre outras abordagens possíveis, poderia ser pensada através de uma história dos espaços, possibilitados por diferentes meios. A idéia de um espaço gerado por um meio deve ser entendida, inicialmente, diretamente relacionada com a idéia de extensão, que pode ser bi ou tridimensional, em que determinados eventos e/ou acontecimentos ocorrem.1 Por exemplo, o rádio irá propor um espaço que é a extensão dos comprimentos de ondas dentro das quais opera, extensão esta na qual os eventos (a transmissão de uma mensagem sonora) ocorrem. Pensar um marco zero para a história que se quer seguir, das relações entre espaços midiáticos e espaços publicitários, significa partir da Modernidade. É somente a partir deste período, mais especificamente do final do século XVIII, que se pode falar de forma plena da constituição de sociedades de consumo. Assim, ao se voltar os olhos para as cidades modernas, deve-se ocupá-los com os espaços arquitetônicos e gráficos dos meios de comunicação de massa. As primeiras formas de anúncios publicitários irão ocupar os espaços das cidades de maneira difusa, especialmente pela ocupação de muros, paredes e dos espaços em papel dos meios de comunicação de massa. No primeiro caso, os cartazes seriam o meio, principalmente, e no segundo, os jornais, catálogos de lojas, revistas e impressos afins. Em ambos os casos trata-se de um espaço limitado pelas variáveis largura, altura e comprimento, ou seja, por características bidimensionais, típicas do espaço visual gráfico. Considerar o espaço publicitário a partir das variáveis físicas inerentes à bidimensionalidade do espaço gráfico significa pensar que toda forma de anúncio publicitário, seja na forma de texto, seja na forma de imagens, estará constrangida pelas variáveis mencionadas, no ato da sua execução. Ou seja, aqui, como em qualquer outro meio de comunicação, valerá a máxima proposta por Marshall Mcluhan (1964) de que “o meio é a mensagem”. Antropolítica
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Contudo, na virada do século XIX para o século XX, observa-se a emergência de novos espaços dentro da cultura urbana e massiva. Os meios eletrônicos de comunicação, particular e inicialmente rádio e cinema, e TV, em seguida, irão possibilitar novos espaços, capazes de suportar mensagens não mais determinadas exclusivamente por variáveis típicas do universo visual gráfico, mas, por outras, relativas ao tempo. Ou seja, as mensagens radiofônica, cinematográfica e televisiva irão inaugurar novos espaços publicitários, submetidos a novas variáveis, que não apenas àquelas típicas da mensagem visual gráfica. O tempo impõe-se como uma nova variável condicionante da mensagem publicitária, dentro dos espaços eletrônicos. Neste ponto pode-se observar a evolução dos espaços publicitários urbanos através de uma estrutura que poderia ser pensada na forma de camadas. Camadas espaciais. O desafio constante da linguagem publicitária: adaptar-se às características de cada uma dessas camadas. Espaço das ruas, dos meios impressos e dos então novos meios eletrônicos: rádio, cinema e televisão. O próximo desafio a ser enfrentado pelas linguagens publicitárias será pensar como se constituir em um novo espaço: o ciberespaço.2 O que se conjectura é a idéia de que os meios de comunicação possuem lógicas que estruturam seus espaços e suas linguagens e que, assim, toda linguagem publicitária deve falar a linguagem do meio em que se expressa; ao contrário não será compreendida pelo público usuário do meio em questão. Mas, o que seria, afinal, a linguagem de um meio e como ela estaria ligada diretamente aos espaços gerados por este mesmo meio? Não há uma única e absoluta resposta a esta questão e apresenta-se, em seguida, qual o encaminhamento adotado neste estudo.
As materialidades dos meios e dos seus espaços Neste artigo, a idéia de linguagem de um meio deve ser entendida como um conjunto de fatores que implicam nas características materiais dos meios (e dos seus espaços), as características materiais do corpo humano e os usos dos meios (as práticas de comunicação). Avançar-se-á mais pausadamente sobre cada um destes elementos. A idéia de materialidades dos meios deve ser compreendida como o conjunto de características físicas dos próprios meios e dos espaços que estes meios engendram. Tal idéia foi desenvolvida, especialmente, pela Antropolítica
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Escola de Toronto de Comunicação, com os trabalhos de Harold Innis, Eric Havelock e Marshall McLuhan.3 Os estudos pioneiros de Innis observaram como as características físicas de determinadas tecnologias da comunicação implicariam em tendências promovidas por tais tecnologias que afetariam diretamente não apenas os modos de certas culturas se comunicarem, mas até de se organizarem e de ocuparem um determinado espaço.4
As materialidades do corpo As materialidades do corpo seriam o conjunto de características perceptivas e cognitivas que o humano apresenta como espécie, mais o conjunto de características culturais e acontecimentos fortuitos, de caráter pessoal — um acidente, por exemplo — que marcam um corpo em termos de gostos, de habilidades variadas, como a destreza em tocar um instrumento ou de se movimentar em uma certa dança, dos prazeres sexuais, gastronômicos, das formas de percepções visuais etc.5 A idéia de materialidade do corpo, tal como se emprega neste texto, permite compreender melhor, não só as diferenças entre membros de diferentes culturas mas as diferenças entre membros de uma mesma cultura. Ou seja, se por um lado a cultura promove certas transformações e marcas no corpo através de técnicas de adestramento e de condicionamento — e com freqüência utilizando os meios de comunicação como instrumentos destas técnicas — os acontecimentos pessoais e fortuitos podem promover outras que alteram e singularizam os corpos, mesmo entre membros de um determinado grupo social.
Os usos dos meios Os usos dos meios são as diferentes apropriações que uma dada sociedade faz dos meios e dos espaços engendrados por tais meios. Assim, seus usos deverão, em primeiro lugar, se adequar às relações entre as materialidades mencionadas, de modo que qualquer linguagem midiática deva ser pensada, primeiramente, como submetida à condição sine qua non de respeitar os limites das materialidades dos meios e dos seus espaços, nas suas relações com os corpos. Isto significa que quaisquer mensagens ou signos emitidos por um meio apresentarão um conjunto de atributos físicos que deverá ser compatível com o conjunto de materialidades de um dado corpo; caso contrário o processo de comunicação estará prejudicado. Isto implica, diretamente, pensar um espaço físico onde estas relações entre materialidades ocorrem. Por exemplo, qualquer Antropolítica
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signo visual que não se expressar dentro dos limites de comprimentos de ondas luminosas que o olho humano enxerga, em um intervalo que vai, aproximadamente, de 400 a 700 nanômetros, não poderá ser visto e, conseqüentemente, não poderá fazer parte de processos de comunicação visual mais comuns. Outro exemplo desta questão poderia ser o processo de produção de ilusão de movimento do cinema, que só consegue este efeito — fundamental para o desenvolvimento das narrativas fílmicas dramáticas e mesmo documentais — ao apresentar uma dinâmica de exposição de imagens aos olhos na ordem de 24 quadros por segundo. Para que o cérebro humano possa perceber imagens isoladas como um todo em movimento, é necessário que as imagens seqüenciais se apresentem dentro de um ritmo de, no mínimo, 16 quadros por segundo. Sem o ritmo de 24 quadros por segundo, contudo, a ilusão do movimento realista se perde e o processo comunicacional pode se comprometer. Por outro lado, há a questão dos usos dos meios, ou a dimensão social das práticas midiáticas. Ou seja, a forma como um grupo social se apropria de um meio poderá influir na linguagem deste meio, embora haja uma estrutura, digamos, mais profunda da linguagem midiática que diz respeito às relações entre as materialidades dos meios, dos seus espaços e dos corpos, tal como exposto. Quando se observa a questão do uso dos meios, se recorrermos à história das tecnologias de comunicação, mais uma vez, pode-se observar que nos momentos em que um novo meio surge, de uma maneira geral as linguagens específicas deste meio ainda não foram geradas de forma plena. Esta idéia pode parecer estranha, afinal, se uma tecnologia é criada, é de se supor que ela já nasça pensada para um determinado fim e, portanto, acompanhada por um conjunto de indicações de como utilizá-la, que definiria a estrutura da sua mensagem, ou seja, a estrutura da sua linguagem. Ao se acompanhar a história das principais tecnologias de comunicação que transformaram o Ocidente, contudo, observa-se que as coisas não se deram exatamente assim.
Os usos dos meios como “remediação” Bolter e Grusin (1998), retomando idéias inspiradas em McLuhan — particularmente a de que o conteúdo de um meio é sempre um outro meio (MCLUHAN, 1964, p. 23) — defendem a idéia de que todo meio de comunicação, quando surge em uma dada sociedade, precisa contar com o meio anterior para se afirmar e para desenvolver as suas próprias Antropolítica
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linguagens. É como se um meio pegasse carona no meio anterior, chegando a se confundir com este, em um jogo ambíguo de continuidade e ruptura, provocando o meio anterior a se definir enquanto singular, enquanto o próprio meio novo tenta afirmar a novidade que traz em si. Dentro deste raciocínio, o rádio, quando surge, estará marcado por linguagens ora mais próximas dos jornais impressos, ora por linguagens típicas do teatro, e isso se refletiria nos formatos iniciais dos seus noticiários(muitas vezes sendo lidas notícias diretamente de jornais) e da sua dramaturgia. Aos poucos, com a percepção mais apurada das características do espaço radiofônico, suas linguagens se tornariam mais específicas, singularizando o rádio como um novo meio. Do mesmo modo, quando a TV aparece, assemelha-se em muitos aspectos ao rádio, e mais uma vez as linguagens dos noticiários e das novelas dramáticas são exemplares — não é a toa que boa parte do casting de atores e os speakers do rádio migram diretamente para a TV, nos seus primórdios. Novamente, aos poucos, a TV irá encontrar os melhores formatos para as suas linguagens e se distanciar radicalmente do rádio. Este, por sua vez, lutará para redefinir suas linguagens, em busca de competitividade com o novo meio.6 A este processo Bolter e Grusin (1998) chamam de remediação (remediation, no original). Assim, é interessante observar que as linguagens são definidas, para além das suas estruturas materiais, pelos usos que se faz dos meios. O cinema, por exemplo, quando emerge, não tinha sido concebido propriamente como um meio para a expressão de narrativas dramáticas, como hoje acontece com quase 90% das atividades da indústria cinematográfica mundial. As intenções dos irmãos Lumière pareciam apontar na direção de se ter com o cinema uma espécie de câmera fotográfica capaz de registrar movimentos e nada mais (remediação entre o cinema e a fotografia). Ou seja, os usos iniciais do cinema eram muito mais relacionados à produção de memórias visuais, como a fotografia, originalmente. É com o passar dos tempos que o cinema irá mostrar-se um excelente meio para se contar histórias, ficcionais ou não, e será transformado radicalmente, desenvolvendo as suas linguagens específicas com este novo uso. Neste exemplo pode-se ver com clareza a idéia de que as linguagens de um meio são determinadas não apenas pelas relações entre as materialidades dos meios, seus espaços e dos corpos, mas também pelos usos que este meio permite. Por fim, pode-se observar que se o processo de remediação caracteriza a história das linguagens midiáticas, isto não será diferente hoje, com a Antropolítica
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emergência das mídias digitais. Ao contrário, tal processo parece ocorrer de modo ainda mais intensificado no cenário midiático atual.7
As linguagem das novas mídias como “remediação” Em busca de uma linguagem própria, e dada a sua natureza multimidiática, as novas tecnologias de comunicação parecem remediar quase todas as principais linguagens dos veículos de comunicação de massa: jornais impressos, rádio e TV. Isto pode ser percebido, especialmente, quando se analisa as interfaces gráficas da maioria de sites, home pages e informativos de diferentes ordens na web — o famoso www – world wide web, serviço mais popular da internet. Apesar das metáforas que apontavam para um novo espaço constituído pelos novos meios digitais, como a idéia de um espaço líquido, fluido, que o termo navegar traz, observa-se que a maioria das interfaces gráficas da web ainda são, de muitas formas, apropriações das linguagens gráficas dos meios impressos, reeditando a prática da remediação. Isto evidencia-se nas críticas que Ted Nelson, (um dos grandes estudiosos das novas mídias e criador dos termos hipertexto e hipermídias) faz às linguagens gráficas computacionais. Apostando na urgência da superação do fechamento dos modelos visuais gráficos tipificados pela cultura do impresso, na sua maioria com formatos bidimensionais e lineares, Nelson argumenta em favor de novas lógicas de organização da informação para as interfaces gráficas em meios digitais. O pessoal da Informática não entende os computadores. Bem, eles entendem a parte técnica, sim, mas não entendem as possibilidades. Principalmente, eles não entendem que o mundo dos computadores é totalmente feito de arranjos artificiais e arbitrários. Editor de textos, planilhas, banco de dados não são fundamentais, são apenas idéias diferentes que diversas pessoas elaboraram, idéias que poderiam ter uma estrutura totalmente diferente. Mas essas idéias têm um aspecto plausível que se solidificou como concreto em uma realidade aparente [...]. Mas o mundo da tela poderia ser qualquer coisa, não apenas uma imitação do papel (NELSON, 2005, grifos nossos).
Por outro lado, como dito, para além desta influência dos meios impressos, como a mídia digital tem como uma de suas características seu caráter multimidiático, meios analógicos anteriores, (tv, rádio, jornais e revistas) estarão também sendo tomados em suas linguagens, como prática de remediação. Antropolítica
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Pode-se ver, assim, que as interfaces que os computadores apresentam nos processos de mediação de práticas comunicacionais, não raramente evocam linguagens que ora assemelham-se às da TV, ora às do rádio, ora às dos jornais, ora às dos livros, dentre outras. Do mesmo modo, todos estes meios tentam, a partir do acossamento dos meios digitais, redefinir suas linguagens, tentando incorporar, muitas vezes, elementos que seriam associados ao universo digital, como interatividade, imagens em texto simultâneas com mensagens audiovisuais (onde se destacam as telas propostas pelo canal de TV CNN), com possibilidades para receber mensagens tipo MSM (Mtv, por exemplo), dentre outros.8
As linguagens publicitárias em meios digitais como práticas de “remediação”. A história das linguagens publicitárias, sendo aceita como em estreita relação com a história do desenvolvimento dos meios, como procurou-se argumentar, revela-se como reflexo direto das linguagens e dos espaços engendrados pelos meios. Assim, se todo meio se apropria das linguagens dos meios anteriores como os primeiros passos na gênese de suas próprias linguagens, é bastante lógico que as linguagens publicitárias também reproduzam esta dinâmica. Ou seja, é plausível pensar que as linguagens publicitárias nos meios digitais reproduzam linguagens publicitárias de meios anteriores, até que as linguagens dos novos meios em que operam estejam suficientemente maduras para que, então, possam se expressar de modo diferenciado e próprio. Desse modo, é ainda plausível conjecturar que as linguagens publicitárias nos meios digitais ainda não correspondem às potencialidades deste novo espaço midiático, estando aquém das possibilidades que este espaço oferece em termos de linguagens específicas e de práticas de comunicação. Esta hipótese é sustentada em dois pontos: teórico e empírico. O ponto teórico é a própria reflexão trazida com a idéia de remediação, proposta por Bolter e Grusin, amplamente explorada neste texto, e que ajuda a compreender a recorrência, por parte das mídias digitais, a diferentes linguagens midiáticas. Como ponto empírico de sustentação da hipótese aventada vale-se de alguns dos resultados obtidos com a pesquisa Transficção: narrativas multilineares, mídias híbridas e ambientes pró-branding.9
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Como parte das estratégias de investigação de como a cultura contemporânea está se comunicando a partir das novas mídias, que era parte dos objetivos daquela pesquisa, buscou-se fazer um mapeamento das principais estratégias de propaganda e marketing utilizadas pelas principais agências que atuam na web. Tal investigação foi realizada a partir de clippings semanais e teve como foco estratégias de propaganda e marketing em meios digitais. Esta investigação revelou como existe um conjunto de práticas de promoção de produtos em meios digitais que parecem reproduzir a lógica das mídias massivas, como um exercício de remediação, tal como se apostou quando foi apresentada a idéia dos ambientes pró-branding, dentro da descrição da pesquisa Transficção: A TV, o rádio e os veículos impressos massivos possuem uma forma mais ou menos idêntica de apresentarem suas linguagens publicitárias [...] a partir de um corte, uma interrupção da narrativa principal de um meio (rádio, TV, jornal, etc). Assim, o anúncio publicitário se faz quase sempre interrompendo uma narrativa — novela, filme, telejornal, texto etc. — impondo a mensagem publicitária como condição intermediária para se acessar o restante da narrativa na qual está envolvido o potencial consumidor. A contra-ação a esta estratégia seria evitar a mensagem publicitária em questão, mudando de canal ou de emissora, no caso da TV ou do rádio, passando rapidamente as páginas, no caso dos impressos e, mesmo nos meios digitais, desativando os banners e popups, antes mesmo que eles se apresentem plenamente (antes de estarem carregados) (PEREIRA, 2006).
Observe-se que os modos de intromissão das mensagens publicitárias em meio a uma narrativa, típico das linguagens massivas e sua lógica da oferta, são reproduzidos nas estratégias publicitárias em meios digitais, caracterizando o processo de remediação. Isto sem falar em mensagens explicitamente reproduzidas dos veículos de comunicação de massa como filmes de propaganda (TV), fotografia e chamadas textuais (meios impressos), dentre outras possibilidades, como já mencionado. Entretanto, este processo de remediação identificado nas práticas das linguagens publicitárias não deve ser visto como algo negativo, mas como parte do processo de gestação de novas linguagens nos meios digitais. E se as linguagens digitais ainda estão sendo gestadas, os seus espaços, do mesmo modo, também ainda estão em processo de formação. Lembrando que as linguagens dos meios implicam em articulações entre as características materiais dos meios e dos seus espaços, as características Antropolítica
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materiais dos corpos e os usos dos meios, conseqüentemente, as linguagens publicitárias estarão sujeitas a estas mesmas variáveis. Em um certo sentido, já se pode reconhecer que, com as apropriações facilitadas dos meios, tal como é possível hoje na cultura digital — em que os modos de produção e de difusão de bens simbólicos como filmes, música, textos, imagens etc, ganham cada vez mais expressões no cotidiano —, as práticas de remediação parecem refletir traços da própria cultura contemporânea. Ou seja, de posse de variados gadgets há toda uma geração experimentando exercícios de composição de mensagens variadas, a partir de impressões estéticas e afetivas que advém de linguagens anteriores, típicas da era dos veículos de comunicação de massa, em permanente negociação com tais referências. Assim, os blogs, flogs, as produtoras de filmes trash, as bandas e músicas que circulam pela rede, os jogadores de games on line, por exemplo, contribuem para o desenvolvimento das linguagens e dos espaços dos novos meios, remediando, ao mesmo tempo, linguagens midiáticas anteriores e atuais e seus espaços correlatos. Por outro lado, as linguagens publicitárias nos meios digitais, que em um primeiro momento pareciam meras cópias das linguagens publicitárias massivas, reproduzindo, inclusive a sua lógica de funcionamento de explorar furtivamente o espaço midiático de modo intrusivo, como exposto, parecem descobrir que repetir velhas fórmulas dos veículos de comunicação de massa para anunciar nos meios digitais pode até funcionar precariamente e por um tempo relativo, mas certamente não resistirá à velocidade das mudanças cognitivas e culturais que o público usuário das novas mídias vem experimentando. Assim, parece que as agências publicitárias começam a aceitar se instruírem pelo próprio público que almejam atingir através dos meios digitais, estando mais sensíveis a todo um conjunto de práticas lúdicas, de entretenimento e de interações sociais que ocorrem hoje na rede, considerados por muitos como lixo digital — games, Orkut, blogs, fotologs, MySpace, YouTube, sites, home pages e produtoras de filmes trash como, por exemplo, Gaveta Filmes, TV LIXO etc. Estar em contato de forma aberta e curiosa com todo este mundo significa estar em contato com novas práticas de comunicação e de interação social que, para o profissional de publicidade competente e atencioso, pode significar um mundo de novas oportunidades para a identificação de novas linguagens midiáticas, em primeiro lugar, e de novos espaços publicitários em segundo lugar. Antropolítica
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Neste sentido, mais uma vez, as palavras do velho McLuhan parecem ganhar validade, quando escreve: “Trata-se de fazer com que o anúncio inclua a experiência do público. O produto e a resposta do público se tornam uma única estrutura complexa” (McLUHAN, 1964, p. 2001). E esta estrutura complexa pode se revelar como um rico objeto a ser explorado por estudiosos das mídias e da cultura, na busca de uma melhor compreensão da contemporaneidade.
Abstract Digital media arise as a complex system able to perform multiple communicational functions. This particular feature can trouble our understanding of how contemporary media and communication work. Since Modernity advertising is one of many ways to understand urban cultures. Advertising practices also reflect a specific medium and its language and space. Considering these propositions, the present article aims to map the media evolution vis-à-vis different kinds of communication produced by each particular medium. Finally, this article studies some aspects of the relationships between communication practices, body and media materialities, as well as their mutual technological appropriations. For that purpose, I rely on ideas developed by authors such as Marshall McLuhan, Jay Bolter and Richard Grusin, among others Keywords: advertising languages; digital media; materialities of communication.
Referências BOLTER, Jay D.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT, 1998. CSORDAS, T. Embodiment and experience. New York: Hunter Books, 1984. INNIS, H. The bias of communication. Toronto: University of Toronto Press, 1999. NELSON, T. Libertando-se da prisão. In: FILE – FESTIVAL INTERNACIONAL DE LINGUAGENS ELETRÔNICAS, São Paulo, 2005. Anais... São Paulo, 2005. McLUHAN, Marshall. Understanding media: the extensions of man. New York: McGraw-Hill Books, 1964. Antropolítica
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PEREIRA, Vinícius A. Ciberespaço: um passo na dança semiótica do universo. Contracampo, Niterói, n. 4, Niterói, 2000. ______. Tendências das tecnologias de comunicação: da fala às mídias digitais. In: SÁ, S.; ENNE, A. Prazeres digitais: computadores,entretenimento e sociabilidade. Rio de Janeiro: e-Papers Seviços Editoriais, 2004. ______. Transficção: narrativas multilineares, mídias híbridas e ambientes pró-branding. In: ENCONTRO EM COMUNICAÇÃO CAEPM/ESPM – MÍDIA E CONSUMIDOR DO FUTURO, 1., Anais... Revista da ESPM, São Paulo, ano 12, v. 13, n. 1, jan./fev. 2006. 1 CD-ROM.
Notas 1
Ainda, quando se falar de espaço dos meios para os objetivos desta investigação, será considerada inclusa a variável tempo que todo espaço midiático implica, uma vez que não podem haver acontecimentos a não ser que possuam alguma duração.
2
O termo Ciberespaço aparece primeiramente na obra de ficção científica Neuromancer, em 1984, do escritor William Gibson, designando um espaço paralelo, não físico, em que as relações comunicacionais e cognitivas são marcadas por uma instantaneidade e por uma dimensão lúdica possibilitadas pelo desenvolvimento das infotécnicas. Para uma apreciação crítica deste conceito ver Pereira (2000).
3
Sobre a Escola de Toronto de Comunicação, ver Pereira (2004).
4
Cf. Innis (1999).
5
Neste sentido, a idéia de materialidades do corpo está próxima daquela empregada por T. Csordas com o conceito de embodiment. Cf. Csordas (1984).
6
Neste ponto é particularmente interessante a história da propaganda, quando se pode observar que muitas peças criadas para a TV eram reproduzidas quase integralmente como peças para o rádio. Da mesma forma, jingles e vinhetas sonoras originalmente produzidas como peças para o rádio eram freqüentemente reproduzidas na TV.
7
Cf. Pereira (2004).
8
Cf. Bolter e Grusin (1998).
9
Para uma melhor idéia desta pesquisa ver Pereira (2006).
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ARTIGOS
Eli Bartra* Sônia Peçanha**
O sorriso da lua
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Doutora em filosofia e professora-pesquisadora titular da Universidade Autônoma Metropolitana-Xochimilco. Co-fundadora e coordenadora do mestrado em Estudos sobre a Mulher e na área de pesquisa “Mulher, identidade e poder” da mesma universidade. Pesquisadora Nacional II. Autora de Frida Kahlo, mujer, ideología y arte, En busca de las diablas e de Mujeres en el arte popular. De promesas, traiciones, monstruos y celebridades. Compiladora de Debates en torno a una metodología feminista, Creatividad invisible e co-autora de Feminismo en México ayer y hoy, entre outros. Revisão técnica. Mestre em Literatura Brasileira, autora premiada, membro da Associação Niteroiense de Escritores.
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Neste artigo, percorrem-se algumas regiões, e certas manifestações da arte popular brasileira são examinadas. Em primeiro lugar, os acervos de alguns museus de arte popular do Rio de Janeiro, prestando uma especial atenção à arte popular realizada pelas mulheres. Também especificam-se as diferenças entre arte popular e artesanato, distinção não muito clara no Brasil e que, em outros lugares do mundo, como o México, por exemplo, apresenta-se totalmente confusa. Após comentar várias expressões e características desta arte no Brasil, toma-se um único exemplo de arte popular carioca, que são as bonecas negras de pano feitas com material reaproveitado sem a utilização de cola nem costura, produzidas por um grupo de mulheres negras com consciência ecológica, de gênero e de “raça”. Nestas bonecas, combinam-se a luta pela sobrevivência e a valorização da beleza e da dignidade das mulheres negras. A principal informação sobre esta expressão de arte popular foi obtida através da criadora destas bonecas negras, Lena Martins, que conta sua história e a do grupo que foi criado há quase 20 anos: suas palavras foram misturando-se com reflexões ao redor das lindas bonecas negras que saem de suas mãos, como se fossem uma boneca Abayomi. Palavras-chave: arte popular; gênero; feminismo; negritude.
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Introdução à arte popular brasileira Sem dúvida, o Brasil não é o único lugar do mundo em que a lua sorri. Nesta zona do hemisfério da América do Sul, onde a terra é quente, o calor ardente, o sol brilhante – quando nasce –, a música mexe o corpo dos pés à cabeça, e a chuva é abundante e inesperada, o trópico está à vontade, em todo seu esplendor. Essa complexa, multicultural e multiética sociedade possui uma riqueza plástica surpreendente que se tem manifestado com vigor há anos e anos. Maravilhosos artistas visuais, mulheres e homens, que nasceram brasileiros ou que surgiram no Brasil. Suponho que julgar a riqueza ou a pobreza relativa à arte, ou à arte popular particularmente, pode ser tão sugestivo como a própria valorização da arte. Quando se entra no terreno da valorização, tenho a impressão de que caminho sobre um pântano. Por um tempo, pensei que no Brasil não havia muita coisa quanto à produção da arte popular ou artesanato artístico e muito menos pesquisas sobre isso, que apresentassem o mínimo de análise e que contemplassem a divisão de gênero. Quando fiz minhas primeiras pesquisas bibliográficas e também ao procurar pessoalmente em instituições como de mulheres do movimento feminista para saber se existia alguém que trabalhasse com a temática de mulheres e arte popular nesse país, o resultado foi nulo, não consegui encontrar ninguém. Meu interesse devia se ao fato de estar compilando uma antologia de textos sobre mulheres e arte popular na América Latina e Caribe. Para mim, era importante que o Brasil estivesse representado.1 No entanto, não pude incluí-lo. Por isso, de alguma maneira, decidi observar pessoalmente o mundo da arte popular brasileira e escrever sobre o tema. Talvez possa afirmar, a partir de uma exaustiva pesquisa em bases de dados e grandes acervos que tive a oportunidade de revisar em diferentes lugares, que não há muito sobre o tema no Brasil. No entanto, existe um raro livro, que se refere claramente ao gênero dos artistas, e me parece digno mencionálo, já que isso não acontece com muita freqüência.2 Além disso, já foi publicado o significativo trabalho de Sônia Missagia Matos, Artefatos de gênero na arte do barro, que representa um avanço no campo das pesquisas da arte popular, considerando tanto o valor artístico quanto a divisão de gênero ao longo do processo, que são os dois aspectos que se encontram sistematicamente ausentes nas pesquisas sobre o tema em qualquer lugar do mundo.3 Muitos artistas, principalmente aqueles mais reconhecidos dentro da arte popular brasileira, já foram resgatados do anonimato e encontramse até mesmo em museus, particularmente no Museu Casa do Pontal e Antropolítica
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no Museu do Folclore Edison Carneiro, no Rio de Janeiro. Estes são os dois locais mais importantes que guardam as melhores coleções de arte popular no Brasil. O primeiro publicou um livro belamente ilustrado sobre sua coleção (MASCELANI, 2002). E é, de certa maneira, pela seleção das obras expostas e apresentadas no livro mencionado que se torna imprescindível falar das mulheres. A coleção do Museu Casa do Pontal é quase exclusivamente de cerâmica figurativa. No país, a maioria dos ceramistas são mulheres, entretanto, dos 54 artistas mencionados no índice, apenas 17 são mulheres. Alguns homens se denominam mestres, o que não ocorre com nenhuma mulher, sem exceção. O mesmo acontece no Museu do Folclore Edison Carneiro. Entre os nomes de artistas populares inscritos com letras grandes no muro, para resgatá-los, com justiça, do anonimato, a ínfima minoria é de mulheres. Como ocorre nos grandes museus do Ocidente, que guardam a “grande” arte de todos os tempos, as mulheres estão praticamente ausentes. Poderia pensar-se que a coisa seria diferente, quando se trata de museus de arte popular, mas não é. Aliás, acontece o mesmo com suas publicações. O Museu Casa do Pontal é, sem dúvida, um lugar excepcional sob vários pontos de vista. Primeiro, pelo lugar em que se encontra: uma belíssima casa, próxima ao Rio de Janeiro, no meio do campo; o acesso é difícil, mas, mesmo assim, é grande e constante a quantidade de visitantes. Segundo, pela qualidade e quantidade de obras do seu acervo, em torno de 8.000 peças, sendo a maioria cerâmica figurativa. Finalmente, pela museografia bastante sui generis e muito interessante. A disposição das obras é temática, e os conjuntos são mais que afortunados. Inicia-se com “A lei e a notícia”, onde há figuras que representam julgamentos, como policiais, juízes ou pessoas lendo o jornal. Depois, seguem-se “as profissões”, apresentando os vendedores ambulantes, as praças, as rendeiras e as atividades domésticas. Vale ressaltar que os temas estão divididos em dois gêneros, sendo que, em geral, são as mulheres artistas que elaboram peças que representam as cenas de trabalho doméstico. Em seguida tem-se “A vida no campo” que, como o nome indica, agrupa peças que retratam a forma como as pessoas vêem o desenvolvimento da existência no campo, com cenas em que se alimentam animais ou se montam em cavalos. Há ainda conjuntos que mostram atividades lúdicas e as celebrações mais importantes no Brasil: “A caça e a pesca”, “Os ciclos da vida”, “As brincadeiras de crianças”, “Sacramentos”, “Casamentos”, “Comemorações”, “Morte”, “Maracatu”, entre outros. Além disso, há uma coleção de máscaras de mamulengo (teatro popular de fantoches), de jogos e diversões, de animais, e, numa sala especial, uma fantástica reunião de peças eróticas de Adalton (Adalton Fernandez Lopes), um dos grandes Antropolítica
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artistas expostos e que, já idoso, continua a produzir, morando em Niterói (RJ). Há, também, uma parede inteira com os excepcionais quadros de barro de Maria de Lourdes Cândido, Maria Cândido Monteiro e Ciça, das quais falarei mais adiante. A escolha dos diversos temas das obras expostas parece ilustrativa tanto dos assuntos que são abordados pelos artistas populares, como do que as pessoas que organizam a museografia consideram importante dentro da arte popular no Brasil. Já o Museu do Folclore Edison Carneiro encontra-se numa zona central do Rio de Janeiro: faz parte do famoso Palácio do Catete que abriga o Museu da República, e que foi a residência dos presidentes do Brasil entre 1897 e 1954, ano em que se suicidou o presidente Getúlio Vargas. Neste célebre local, encontra-se este relativamente pequeno – conta com cerca de 1.500 peças –, mas estupendo, museu de arte popular, com uma sala especial de exposições temporárias denominada a Sala do Artista Popular. Mais uma vez, a maior parte do acervo é de cerâmica figurativa, e, assim como o da Casa do Pontal, ele está organizado tematicamente, mas não de forma tão estruturada nem tão variada. Na primeira sala, encontra-se, para mim, o melhor do museu: a coleção inteira de figuras de cerâmica, organizadas de forma a mostrar o ciclo da vida humana. Há, da mesma forma, admiráveis peças de Adalton extremamente elaboradas. O museu também conta com algumas peças de Vitalino, Noemisa, Galdino, Manuel Eudócio, Celestino, Luiz Antonio, Antonio Poteiro, Nuca e Maria, Tota, Maria de Beni, Ulisses Pereira Chaves, Maria Cândido Monteiro, Eugênia da Silva, Cícera Fonseca da Silva, Zé Cabloco e outros de primeira ordem. No entanto, por mais que se tente encontrar e nomear as mulheres, elas são franca minoria, o que se constata nesta lista de 17 artistas, em que apenas seis são mulheres. Os dois museus sofrem de um mesmo problema: a falta de informação histórica sobre as obras. Datas e lugares com freqüência não são mencionados. Este é um problema comum no que se refere a exposições e museus de arte popular: todos eles tendem a ser sumamente “a-históricos”, o tempo/ lugar e as pessoas que fazem os objetos não interessam. A intelectualidade brasileira – na literatura, nas artes plásticas, no cinema, na fotografia ou no vídeo – volta os olhos várias vezes para a arte popular, à procura de uma identidade nacional que responda aos seus anseios de autenticidade (FLEURY, 2002, p. 279). No México, procura-se há muito tempo a “mexicaneidade” de maneira obstinada e até obsessiva. No Brasil, também procura-se a “brasilidade”, e, em ambos os países, a arte popular é utilizada por se considerar que ela possui características distintas que atribuem identidade ao povo. Antropolítica
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Em todo o Brasil, produz-se muito artesanato e, em alguns lugares, elabora-se arte popular. Em termos gerais, os trabalhos mais significativos são os feitos com barro e, em seguida, o que se trabalha com maior destreza é a madeira. Assim como acontece no México, alguns estados são mais ricos na elaboração da arte popular que outros. No caso Brasil, ocorre ainda um dos grandes paradoxos no que se refere à arte popular: a publicação de luxuosos e caríssimos livros com fotos coloridas num papel fabuloso. Trata-se realmente de um paradoxo – e pode até parecer ofensivo – que uma arte tão barata e tão pobre como esta esteja nas belas páginas ilustradas de um livro magnífico. No entanto, é bom que prestem a devida atenção e reproduzam a arte popular da melhor maneira possível, a fim de que as peças sejam apreciadas como devem.4 Por outro lado, interessa-me destacar que o Brasil talvez seja o único país da América Latina em que há uma clara distinção entre artesanato e arte popular. Ambos são produtos artesanais, sendo que o primeiro tem uma finalidade prática e utilitária, enquanto o segundo é fundamentalmente ornamental, mesmo que também possa ter uma função mágico/religiosa ou lúdica. A arte popular (o artesanato artístico, como é chamado no Brasil), ao contrário do artesanato em geral, tem precisamente um elemento estético de tal magnitude, que se converte em objeto propriamente artístico. Cabe destacar que a diferença não está unicamente no fato de o artesanato ter primordialmente uma função utilitária e sim de a arte popular ter, sobretudo, uma função estética, servindo mais ao gozo, à sensibilidade, às emoções, à fé e à consciência, do que a apoiar as infinitas necessidades da vida cotidiana. A repetição da mesma peça várias vezes converte freqüentemente em artesanato um objeto que nasceu como arte popular. De fato, no México não existe uma clara diferença entre arte popular e artesanato. Nas lojas e museus, artesanato e objetos de arte popular estão sempre misturados. Ao expressar-se, também se referem ao artesanato como arte popular e vice-versa, sem levar em conta a possibilidade de alguma diferença. No Brasil, não é assim. Nos museus de arte popular, assim como nas lojas especializadas, encontram-se geralmente aqueles objetos que se podem caracterizar, sem nenhuma ambigüidade, como arte popular. Já os artesanatos estão expostos nos camelôs, mercados e lojas para turistas menos sofisticadas. Por outro lado, existem alguns exemplos interessantes de objetos que, a meu ver, deveriam ser considerados artesanato e, no entanto, têm mais importância como arte popular brasileira. Neste caso, por exemplo, estão as carrancas de barro elaboradas por Ana das Carrancas de Petrolina, em Pernambuco. São feitas em série e não deixam de ser, em meu modo de Antropolítica
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pensar, vasos com a forma particular de um barco, com a cabeça na proa. Também aí se incluem as panelas de barro muito grossas, com tampa, que servem para fazer as moquecas produzidas na cidade de Vitória, no Espírito Santo. Estas panelas parecem encarnar o que há de mais autêntico e tradicional na alma do povo brasileiro, já que sua origem é possivelmente indígena, além de serem bastante estimadas como objetos de arte popular das mais legítimas. São feitas, inclusive, em miniatura para serem vendidas como enfeite ou curiosidade. Estes fatos denotam a habilidade de converter o artesanato em arte popular, ao se agregar um valor estético, obtendo-se um resultado interessante. No que se refere ao artesanato com tecidos, apesar de não ser dos mais destacados e de pouca coisa chegar a se tornar arte popular, apresenta uma certa variedade. São elaborados principalmente em Goiás, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, assim como em outros lugares, só que em menor quantidade. Quase sempre, as mulheres são encarregadas da elaboração dos produtos de tecido. Já os objetos de madeira são geralmente trabalhados por homens. No Ceará e no Maranhão, eles produzem de santos a instrumentos musicais, móveis e utensílios de cozinha. Entretanto, os objetos de madeira mais originais do Brasil são as carrancas do rio São Francisco. Feitas inicialmente para ornamentar os barcos a remo que trafegam no rio, atualmente são objetos de arte elaborados em diversos tamanhos, para serem vendidos em lojas de arte popular. Florianópolis, no estado de Santa Catarina, é também chamada de Ilha das Bruxas, já que, segundo a lenda, os colonizadores portugueses – provenientes das ilhas dos Açores – acreditavam que as sétimas filhas que nascessem seriam bruxas, e os sétimos filhos, lobisomens. Hoje em dia, a identidade do lugar manifesta-se em centenas de figuras de bruxas e de homens velhos e feios que representam os lobisomens, a maioria feita de barro. Entretanto, estes objetos são muito pouco atraentes do ponto de vista artístico. A lenda é mais bela do que as imagens que a representam. O estado de Minas Gerais, que já foi uma das regiões mineiras mais ricas do mundo, continua sendo um lugar muito rico, só que agora em arte popular, a arte das pessoas mais pobres. Ali se faz a arte genuinamente brasileira que consiste em diversos objetos de madeira maciça e em figuras de barro policromadas. Os homens talham a madeira, principalmente na região de Ouro Preto e Tiradentes, enquanto as mulheres ajudam a pintar, se for necessário. Já com a cerâmica figurativa do Vale do Jequitinhonha ocorre o contrário: as mulheres produzem, e os homens Antropolítica
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ajudam, esta é a regra. Claro que alguns homens se distinguem e, por isso, são muito mais notados que as dezenas de mulheres. O “casal mineiro” de madeira é uma criação bem singular e distintiva da região. Trata-se de um homem e uma mulher, policromados, quase sempre vestidos com roupas tradicionais mineiras do século XIX. Seus tamanhos variam, de centímetros até mais de um metro de altura. É comum que sejam colocados na frente das casas ou lojas para enfeitar, já que representam orgulhosamente a identidade mineira. Algumas vezes são esculturas raras, que, por questões de sobrevivência, acabam sendo fabricadas em quantidade. Neste caso, a qualidade, geralmente, não é muito boa. É o que também ocorre com os carneirinhos (com chifres e patas de metal) e com as galinhas policromadas, feitas totalmente idênticas, e que podem ser consideradas mais como artesanato do que como arte popular, não porque tenham uma função utilitária, porque não a têm. São simplesmente enfeites com um grande valor artístico. Talhamse muitas peças de madeira sem pintar, entre elas, animais de tamanhos absolutamente descomunais, como leões e gatos que medem mais de um metro de comprimento. Como são peças grandes, gasta-se muito para transportá-las por longas distâncias. Sendo assim, os principais consumidores são os próprios habitantes locais ou de lugares próximos. Ainda é preciso destacar que algumas peças são vendidas em lojas de artesanato das grandes cidades e, de vez em quando, são encontradas por algum comprador estrangeiro. Além dos animais e das figuras humanas policromadas que podem medir até dois metros de altura, destacam-se também em Minas algumas peças sumamente insólitas, as chamadas namoradeiras. Grandes figuras de madeira maciça – medem até meio metro –, elas apresentam bustos de mulheres em posição de espera, com a cabeça, às vezes, apoiada na mão. Policromadas, geralmente em cores vivas, à primeira vista, chegam a surpreender. Colocadas nas janelas das casas, a maioria das namoradeiras são mulheres negras muito enfeitadas e com decotes sensuais. Estão ali como se à espera do namorado. Novamente, trata-se de peças extremamente pesadas que não podem chegar muito longe, embora já exista uma produção de namoradeiras feitas de papel maché para que possam ser transportadas com maior facilidade. Existem também aquelas que são feitas de barro. Se há turismo, há artesanato e arte popular. É o que acontece no extraordinariamente belo povoado colonial de Tiradentes, no qual são elaboradas as artes populares já tradicionais de madeira e barro, onde também surgiram dezenas de neoartesanatos, alguns com uma certa graça Antropolítica
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e imaginação, outros nem tanto. Com cabaças, fazem bonecas gordas especialmente belas e originais. Usam lindas cores terrosas que fazem a distinção no concerto das cores dominantes dentro de certos artesanatos brasileiros. No povoado de Conceição da Barra, em minas, fazem com barro bonecas negras e gordas com nádegas e seios grandes. De tudo que é criado em Minas Gerais, o mais importante do ponto de vista artístico são as figuras de barro dos povoados do Vale de Jequitinhonha. Neste enorme país, existem apenas dois lugares onde são feitas figuras de barro de altíssima qualidade, e, sobretudo, extremamente originais: neste vale e no município de Caruaru (Alto de Moura), no estado de Pernambuco, um dos maiores centros de arte figurativa da América. Essas figuras de barro recriam personagens e cenas variadas da vida humana, acompanhado-a do berço à sepultura, assim como mitos populares. A origem moderna da elaboração dessas figuras no Nordeste do país se deve a Vitalino Pereira dos Santos – mestre Vitalino – que morreu prematuramente em 1963, na pobreza e de uma doença cuja vacina tinha sido descoberta havia 150 anos: a varíola (MARTINS, 2001, p. 50). Foi a partir de 1947, quando o pintor Augusto Rodrigues levou pela primeira vez o trabalho de mestre Vitalino, Zé Cabloco e outros a uma exposição no Rio de Janeiro, que a obra foi vista fora do seu lugar de origem (MASCELANI, 2002, p. 14-15). A partir de então, a arte alcançou um grande desenvolvimento na região, e centenas de pessoas passaram a se dedicar a ela. Parece que a mesma história se repete em muitos lugares do planeta. Faz-nos lembrar imediatamente da elaboração dos “diablitos” em Ocumicho, na década de 1960, por um homem chamado Marcelino, e que hoje em dia são feitos por dezenas de mulheres. Ou o caso de Juan Quezada, em Mata Ortiz, Chihuahua (México), que começou a fazer cerâmica e hoje centenas de homens e mulheres na região também se dedicam a fazer panelas de barro. Não vou me deter neste aspecto porque, embora me interesse bastante, já tem sido muito estudado, havendo inúmeros textos a respeito.5 As mulheres, com mais freqüência que os homens, encontraram na arte popular o complemento para as despesas familiares, quando os ganhos para o sustento não são suficientes. É um trabalho conveniente, porque pode combinar-se relativamente bem com as atividades domésticas e o cuidado das crianças. As rendas são especialmente importantes no Brasil e constituem uma arte popular bastante respeitada, chegando a formar verdadeiras indústrias domésticas, devido ao seu grau de perfeição e sofisticação.6 Antropolítica
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É uma arte elaborada única e exclusivamente por mulheres. Herança da colonização portuguesa, esta arte encontrou no país um solo fértil para o seu florescimento. Enquanto no México sua fabricação acabou desaparecendo, no Brasil ela se manteve, obtendo até um considerável desenvolvimento. Atualmente, destacam-se em sua produção Santa Catarina, Pará e praticamente todos os estados do Nordeste, como Ceará, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí e Maranhão. Muito valorizada, contitui um complexo símbolo de identidades regionais e até de brasilidade. Em Juazeiro do Norte, Ceará, Maria de Lourdes Cândido e suas filhas, Maria do Socorro e Maria Cândido Monteiro, elaboram maravilhosos quadros de barro pintado, com figuras sobrepostas, num trabalho artístico altamente atraente. Elas representam todo tipo de cenas da vida cotidiana e imaginária: mulheres e homens nadando, dançando, tocando instrumentos, indo ao médico, trabalhando a terra ou dançando o bumba-meu-boi. Como mencionei antes, no museu Casa do Pontal, há uma parede com estas obras. Em meio à grande variedade de objetos de arte popular, vale destacar três representações de barro produzidas em vários centros de cerâmica do país. Apresentados em diversos tamanhos e com qualidade distinta, são eles: as galinhas de Angola, Lampião, com ou sem Maria Bonita, e o bumba-meu-boi. As galinhas são simples, mas com uma forma redonda muito singular. A grande maioria é feita com molde; apenas algumas saem das mãos de bons artistas. Têm pintadas no corpo inteiro uns círculos brancos muito peculiares, com um ponto no centro, na cor que foi escolhida para ser usada na galinha, só que de uma outra tonalidade – logo, se a galinha foi pintada de azul, o centro dos círculos brancos também será azul. Os olhos, bem redondos, são círculos de cores diferentes. Todas são basicamente iguais. Lampião foi o cangaceiro mais famoso e temido de todos os tempos. É, sem dúvida, uma lendária figura histórica no Brasil. Existem Lampiões e Marias Bonitas em todas as formas de arte possíveis e imagináveis. Na arte popular, os de barro apresentam-se em diferentes tamanhos e formas, sendo a maioria mal acabada, ainda que represente um grande mito popular, um grande herói do povo brasileiro. Lampião, também chamado Rei do Cangaço, nasceu em Pernambuco, com o nome de Virgulino Ferreira (1898-1938). Foragido da justiça sanguinário e despiedado, ao longo de quase duas décadas, aterrorizou o sertão do Nordeste, assaltando com seu bando de cangaceiros. Vítima de uma Antropolítica
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traição, morreu decapitado pela polícia juntamente com Maria Bonita e outros integrantes do seu bando. Suas cabeças ficaram expostas no Museu Nina Rodrigues de Salvador, Bahia, por 30 anos. Se já era uma lenda em vida, após sua morte, converteu-se num mito que perdura até hoje. Em meio aos apaixonantes enredos escritos sobre ele, difícil definir onde acaba a história e começa o mito. Muitas informações referentes a este personagem são incertas, inclusive o ano de seu nascimento. Uns afirmam que foi em 1897; outros – que parecem ter pesquisado mais – indicam 1898. Assim acontece freqüentemente com os mitos: episódios da sua vida estão sempre envoltos na bruma da incerteza. O caso de Frida Khalo é parecido com o de Lampião, já que por muitos anos, por exemplo, persistiu a dúvida sobre sua verdadeira data de nascimento, e muitos episódios de sua vida continuam na escuridão, desvirtuados, como mito. Enfim, o fato é que algumas das representações populares de Lampião e Maria Bonita chegaram a ser, ao longo da última metade do século XX, de uma perfeição surpreendente. Como exemplo, vale citar as feitas por mestre Vitalino e Zé Cabloco como maravilhosas. Os bumba-meu-boi são bois pintados com cores brilhantes, enfeitados com laços de outras cores constratantes, e com um sino pendurado no pescoço. Representam o personagem principal da dança popular de mesmo nome, que encena a vida, morte e ressurreição de um boi. Semelhantemente ao que ocorre com as galinhas e com Lampião, há bois de vários tamanhos, alguns vindo até com buracos no lombo, para servir de porta-lápis. O curioso desse assunto é que estes três objetos são feitos em série e, ainda que sejam um simples artesanato barato feito para o consumo de turistas, são atraentes e interessantes. Contudo, algumas dessas representações, principalmente as de Lampião e Maria Bonita, são autênticas obras de arte. Estas três imagens vêm sendo consideradas o epítome da brasilidade na arte popular. Em meio à cerâmica figurativa do Nordeste, a representação dos retirantes é emblemática, por ser a imagem da migração por excelência dentro da arte popular. Trata-se de uma fila de seis pessoas – velhos, jovens, homens, mulheres com crianças no colo –, cachorros, gatos e burros que migram do sertão em virtude das terríveis secas. A infinidade de retirantes que chegam a fazer é assombrosa; existem de todos os tamanhos e em qualquer lugar. Esta seria a quarta peça mais fabricada, depois das três mencionadas. Os nordestinos são os eternos emigrantes, sendo a migração uma marca de sua identidade. Daí que este aspecto de sua história esteja retratado na arte popular, sendo levado por turistas de todo o mundo. Antropolítica
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Tanto as peças de barro de Minas Gerais quanto as de Pernambuco caracterizam-se por algo que lhes dá uma identidade absolutamente distinta das figuras similares dos outros lugares do mundo: os olhos. As figuras humanas da cerâmica brasileira têm olhos únicos: brancos, muito brancos, com o centro bem preto e totalmente rendodos.7 No México, nunca vi nenhuma figura com olhos assim. Mesmo alguns que mestre Vitalino fazia no começo, que não eram pintados, eram bem particulares: ele fazia os olhos da figura em forma de orifício, bem redondo e bastante profundo. Noemisa Batista do Santos, do Vale de Jequitinhonha, uma das criadoras mais originais do país, também compõe assim os olhos de suas figuras. Um outro objeto interessante, que ainda não chamou a atenção dos pesquisadores, embora mereça um estudo mais acurado, são os quadrinhos de sisal que as mulheres fazem em Recife, Pernambuco. Nesses quadrinhos, colam-se bonequinhos feitos de retalho e, assim, contam-se histórias ou se retratam cenas da vida do lugar, como, por exemplo, “A fazenda” ou a “Feirinha”. Parecem-se um pouco com as arpilleras chilenas, só que os materiais utilizados são diferentes: as chilenas são de puro tecido, não usam fibras vegetais, e a forma de cortar também é diferente. As mulheres que as elaboram estão agrupadas numa cooperativa, como estão centenas e centenas de pessoas que se dedicam ao artesanato e à arte popular.
Arte naïf8 Em todos os países da América Latina e do Caribe, as pessoas pobres, principalmente as mulheres, vivem inventando novas formas de expressão para que, com um pouco de sorte, consigam entrar no mercado. Daí vem o “neoartesanato”, em alta escala. Talvez seja por isso também que tenha aumentado enormemente a pintura naïf ou arte primitiva sobre tela. O Brasil não é exceção neste quadro; ao contrário, é provável que aqui a chamada pintura naïf, ingênua ou primitiva, seja ainda mais abundante. Pode-se realmente afirmar que existe uma tradição quanto à pintura naïf o que levou inclusive à necessidade de se criar um Museu Internacional de Arte Naïf no Brasil, no Rio de Janeiro. Freqüentemente, o que se exibe nesse museu são as expressões plásticas de certos artistas, a maioria homens, que elegem, sem dúvida, como meio de expressão, o estilo denominado ingênuo.
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Pelo que parece, a curadoria do museu não tem muita clareza quanto ao que deve integrar seu acervo, já que, entre as pinturas naïf expostas, encontram-se objetos de arte popular, como os amates pintados mexicanos. Seria bom que as fronteiras entre a arte naïf e a arte popular fossem menos difusas. “A arte naïf é tipicamente brasileira e está fortemente vinculada com a arte popular nacional”, afirma D’Ambrosio. No entanto, parece-me que no museu do Rio de Janeiro apenas se misturam alegremente a pintura deliberada e conscientemente ingênua de artistas, com expressões que “parecem” naïf, mas, na realidade, são formas de expressão de uma comunidade, que alguns pesquisadores de outras classes sociais decidem que são ingênuas. Esse tema é bem polêmico e, no momento, quero apenas destacar que no Brasil a plástica naïf tem uma enorme importância, ocorrendo em diversos lugares, sendo extremamente interessante do ponto de vista estético. Ela vibra como o próprio país e é considerada uma forma de expressão do povo e das classes populares, tanto rurais como urbanas. A questão que se impõe é caracterizar esta massa amorfa que se costuma denominar povo. A partir daí, interpretou-se essa arte ingênua ou primitiva como uma autêntica expressão do povo brasileiro. Não sei exatamente se é obra do povo ou de quem seria – embora seja importante definir-se isso – mas, na Bienal de 1998, foram apresentadas 480 obras de 240 artistas. Destas, foram escolhidos 153 trabalhos de 90 artistas. No catálogo, quase uma terça parte era composta de mulheres, algo que parece bem significativo, porque, se fosse outra categoria de arte plástica, o número de mulheres diminuiria drasticamente.9 Na verdade, em todos os lugares, sempre houve uma grande participação de artistas mulheres na pintura naïf. Em relação à Bienal, seria importante definir a que classe social elas pertencem. Seriam pinturas nascidas entre as classes populares ou na classe média? O simples fato de ser uma pintura naïf a define como arte popular? Ainda que isto seja o que ocorra de fato, creio que deveria ser considerada também a procedência popular. Artistas pertecentes a uma classe com recursos econômicos, que decidem de forma deliberada pintar quadros ingênuos, prescindindo dos convencionalismos acadêmicos, na contramão da arte erudita, nem por isso seriam caracterizados como artistas populares, mas, sem dúvida, seriam denominados naïf.
O boom das cooperativas Na década de 1970, proliferou no Brasil o sistema de cooperativas de produção; foram dezenas ou centenas, graças, talvez, à Lei Nacional de Antropolítica
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Cooperativismo, promulgada em 1971, durante o governo militar do general Emilio Garrastazu Médici. Nestes primeiros anos do século XXI, o presidente Luis Inácio Lula da Silva criou um grupo de trabalho interministerial com o fim de modernizar e fortalecer esse setor.10 Tal forma de organização de trabalho tem obtido êxito no país, e as cooperativas continuaram proliferando enormemente, sobretudo as das mulheres. Muitos afirmam que as mulheres sabem trabalhar melhor em conjunto.11 Para comprovar tal teoria, deveriam ser consideradas todas as cooperativas e associações existentes, para se verificar se há mais mulheres que homens. Além disso, é preciso levar em conta que existem outras formas de associação informal, assim como algumas de índole bem diferente, como as ONG’s ou organizações religiosas, que também deveriam ser consideradas, o que complicaria muito esse trabalho. Mas é certo que hoje as mulheres trabalham melhor em conjunto que os homens. É possível que isto se deva às desvantagens sociais que têm de enfrentar e que, unidas, resolvem com mais facilidade os problemas que surgem. O setor da produção e da comercialização de artesanatos e de arte popular não é uma exceção no que se refere a cooperativas. Homens e mulheres têm-se organizado em cooperativas ou em diversas associações para enfrentar melhor os problemas econômicos, decorrentes das sucessivas e intermináveis crises. No Brasil parece que as mulheres predominam neste setor. As cooperativas têm recebido diversos estímulos econômicos de programas estatais, assim como de financiadoras internacionais, e, assim, se desenvolveram e se multiplicaram as de arte popular e de artesanato, sobretudo durante as duas últimas décadas.12 O caso que narrarei a seguir representa um exemplo muito singular da enorme capacidade da mulher brasileira de associar-se para alcançar coletivamente os objetivos traçados, na luta pela sobrevivência, sejam objetivos políticos específicos ou não, com freqüência de cara à produção ou à comercialização.
Abayomi Palavra yorubá que significa “meu presente” ou “meu momento”, Abayomi é o nome de uma associação de mulheres negras com um projeto político. Desta associação, surgem bonecas de pano sem cola ou costura. Milhões de bonecas de panos são confeccionadas em todo o planeta. Talvez não exista um único povo que não tenha fabricado bonecas de pano como brinquedo, e estas, certamente, foram feitas pensando-se nas meninas, Antropolítica
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para inveja dos meninos. As bonecas Abayomi, no entanto, não são feitas para as brincadeiras de meninas, mas para serem contempladas: são enfeites, são arte popular. São “fiapos e farrapos animados pela imaginação de femininos pares de mãos”.13 O grupo chama-se “Cooperativa Abayomi”, mas, na realidade, trata-se de uma associação unicamente por questões de tipo legal e fiscal, não sendo propriamente uma cooperativa. Faz parte da Rede Nacional de Direitos Reprodutivos, da Rede contra a Violência contra a Mulher e da Rede de Mulheres Negras Latino-caribenhas (ASÍ se hace..., 2002, p. 41-42). Contam com financiamentos internacionais como o do Conselho Mundial de Igrejas, Mulheres pelo Dia Mundial da Organização, Mama Cash e hoje também com o apoio da Global Fund for Women. Artesã, educadora popular e militante do movimento de mulheres negras no Brasil, Lena Martins, que nasceu em 1950, foi quem inventou as bonecas negras. A primeira surgiu de suas mãos em 1987, no bairro Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, e o projeto coletivo Abayomi consolidou-se em 21 de dezembro de 1988. A decisão de fazer bonecas negras coincidiu com a comemoração do centenário da Abolição da Escravatura no Brasil (1988). O movimento negro, nesse momento, apresentava muita força e levou à descoberta pessoal de Lena, sendo ela mulher negra. No entanto, a associação só foi formalizada em 1994. Lena passou um ano fazendo bonecas sozinha, aperfeiçoando a técnica – porque as primeiras bonecas não eram mais que um aglomerado de tecido sem muito valor estético –, antes de juntar-se com algumas mulheres conhecidas que viram o seu trabalho e ficaram encantadas. Começaram então a fazer bonecas pensando até em exportá-las, o que acabou não se concretizando, já que elas mal conseguem levá-las para fora do Rio de Janeiro. Lena nasceu em São Luiz do Maranhão, no Nordeste do país, e migrou para o Rio de Janeiro aos 8 anos de idade. Hoje, a meu ver, é mais carioca que próprio o samba. Como artesã, para sobreviver, já tinha feito diferentes tipos de roupa, além das tradicionais bonecas de pano brasileiras.14 Estas bonecas têm a peculiaridade de serem elaboradas sem cola ou costura, unicamente com a reciclagem de sobras de materiais, numa proposta bem ecológica, sem utilizar máquinas, apenas tesouras. São feitas a base de nós, enrolando-se as tiras de pano de diversas cores de forma totalmente manual. A única matéria-prima utilizada provém das sobras das fábricas e do carnaval. Utiliza-se praticamente apenas puro algodão, o que, hoje em dia, torna mais difícil obter o material, já que as fábricas têm dado preferência às fibras sintéticas. Por isso, é preciso criar Antropolítica
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estratégias especiais para se conseguir a matéria-prima que, de qualquer maneira, irá para o lixo. Das mulheres que começaram, hoje em dia restam apenas três entre as 18 que formam a cooperativa atual. Aquelas que se envolveram no começo já não fazem parte do dia-a-dia da cooperativa. Todas dedicaram parte do seu tempo unicamente para a cooperativa. As que mais trabalham o fazem três ou quatro dias por semana. Além de fazerem bonecas e participarem, quando podem, nas demais atividades do grupo, essas mulheres têm e exercem profissões diversas. Há professoras, psicóloga, atriz, terapeuta, artista de circo. Cada pessoa que entra no grupo traz algo novo, e isto é importante para elas. Na associação, são oferecidos cursos, além de se organizarem exposições e espetáculos de rua, como, por exemplo, “O Cortejo Brincante”, no qual participam mulheres de todas as idades. Juntas, elas interagem por meio de jogos, de declamação de poemas, trava-línguas, troca de receitas, adivinhações, cantam músicas de trabalho e até cantigas de criança. Sobre “O Cortejo”, Edmundo Pereira escreve: “No canto, no gesto, no passo, guarda um povo, expressa um povo, seu saber e seu contar.”15 Existe um ateliê onde cada mulher participante elabora um bebê Abayomi. Colocam-se no chão retalhos formando uma mandala, e cada uma vai expressando seu desejo de construir um mundo mais justo, enquanto elabora uma boneca de pano. Em meio a brincadeiras, cantos e troca de idéias e sentimentos, cada participante faz sua boneca negra sem cola ou costura. O número ideal para este ateliê é de 25 pessoas. Trata-se de um trabalho de reflexão e conscientização para elevar a auto-estima e sensibilizar sobre as injustiças do mundo. Em 1995, houve uma exposição de bonecas abayomi na Sala do Artista Popular do Museu do Folclore Edison Carneiro, no Rio de Janeiro, e um catálogo foi editado. Este fato é particularmente significativo, já que o Museu do Folclore é um dos mais prestigiados no país. Já em 2000, receberam na cidade de Guadalajara, México, um prêmio para mulheres de êxito, outorgado pela Red de Educación entre Mujeres de América Latina y el Caribe (REPEM) do Uruguai. O prêmio foi a publicação de um capítulo sobre elas no livro Así se hace (2002). Entre 2000 e 2001, realizaram a exposição itinerante “Ritmos do Brasil”, e a “Retalhos do Brasil”, organizada em torno de cinco temas: “O cotidiano”, com cenas de casamentos, futebol, família; “O trabalho”, enfocando, por exemplo, a atividade no campo; “A selva mitológica”, onde estavam o saci-pererê, a cuca e o canto da sereia; o “O sagrado”, em que havia santos, assim Antropolítica
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como manifestações sincréticas das religiões africanas e do catolicismo; e “O profano” onde se integravam as festas populares como Bumba-meuboi, carnaval ou festa junina. Em 2004, a Unesco realizou um congresso em Brasília e encomendou à Abayomi mil bonecas. No entanto, apesar de estarem há tanto tempo neste mundo e de terem entrado em vários espaços da cidade e do país, estas bonecas são relativamente pouco conhecidas no Rio de Janeiro, menos ainda em outros Estados e, fora do país, são praticamente desconhecidas. As bonecas negras nasceram num momento em que o movimento negro no Rio de Janeiro tinha muita força, afirma Lena. Foi em 1986/87 que se deu sua descoberta como mulher negra, quando tomou plena consciência disso. Pensou em fazer bonecas negras, porque a maior parte das bonecas no Brasil são louras. Tratava-se de um grupo formado apenas por mulheres, não porque excluíssem os homens, e sim porque nenhum mostrou interesse em integrar-se ao projeto. É, portanto, uma organização feminina e, além do mais, feminista, porque evidencia as desigualdades e a falta de oportunidade para as mulheres, em particular para as negras. Por meio das bonecas e também do trabalho interno do grupo, elas buscam aumentar a auto-estima, bem como conscientizar a população sobre o significado de ser negra no Brasil. Todas as bonecas devem ser, sem exceção, negras. Segundo Lena, elas não possuem rosto, porque, no Brasil, existem muitos tipos de rostos e colocar olhos e boca as limitaria em demasia, já que não existe uma única fisionomia negra, sendo preferível que cada um imagine o que quiser. Lena insiste em que as bonecas sejam muito bonitas. Ela enfatiza que o valor estético do trabalho de cada uma das integrantes do grupo tem tanta importância quanto as questões políticas e ecológicas. Já houve época de todas trabalharem juntas num mesmo local, mas hoje, apenas quatro freqüentam o ateliê. As outras fazem suas bonecas em casa e, geralmente, só participam das reuniões. Há mulheres casadas e solteiras; Lena Martins é a única divorciada. Sua filha também faz bonecas como complemento para o seu salário, e Lena, às vezes, faz bonecas com seus netos e netas. Para Lena, as bonecas são representações humanas, são a própria humanidade. Os menores geralmente gostam das de capoeira, mas não há autorização para que sejam vendidas como brinquedo, porque podem ser perigosas. No Rio de Janeiro, não há nenhum artesanato que represente a cidade, não há nada de arte popular que seja estritamente do Rio de Janeiro; logo, a Abayomi acha que suas bonecas representam esse papel, apesar das influências africana e européia. Antropolítica
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Aprender a dominar a técnica de fazer bonecas pode exigir um ano de trabalho contínuo. Se as mulheres saem do grupo e retornam, devem tornar a aprender. A forma de fazer as bonecas vem mudando com o tempo. Elas têm chegado a uma excelência estética sem igual no Brasil, em se tratando de confecção de bonecas de pano. As primeiras tinham braços compridos, peitos grandes e um traseiro enorme. Eram bem diferentes das de hoje, que foram aperfeiçoadas. Hoje em dia, a principal função de Lena é organizar o trabalho, trazer novas idéias e colaborar na venda. Ela também participa em atividades do grupo. Uma vez por semana, as mulheres se reúnem no que chamam “Céu na terra”. Entre nove e meia e três da tarde, tomam café e realizam trabalhos coletivos. Lena praticamente já não faz bonecas, porque enfrenta um problema de saúde que lhe afeta os movimentos do braço. Está fazendo exames, mas há suspeita de estar sofrendo da síndrome do “túnel carpiano”, com certeza, por ter trabalhado tantos anos com as mãos, nesta pesada atividade de fazer nós e mais nós. As reuniões são realizadas na sede da cooperativa que é, de fato, a casa de Lena: fica na ladeira de um dos morros mais povoados do bairro de Santa Teresa, num conjunto de casas, na de número 10. Ali mora e trabalha Lena, mexendo os imaginários fios da cooperativa, como se ela fosse um fantoche em suas mãos. Adjacente ao ateliê, que é, ao mesmo tempo, a sala de reuniões, há outro pequeno quarto, com uma linda vista, onde fica a parte administrativa da cooperativa. A jovem Ariana começou a trabalhar agora neste setor e também está aprendendo a fazer bonecas. Todo ano é publicado um calendário com imagens das bonecas de pano. Lena é a única que trabalha apenas na cooperativa. Todas as demais fazem meio turno, devido a outras atividades. As que mais trabalham dedicam à associação três ou quatro dias da semana. Lena vive desse trabalho desde 1987, mas não tem casa própria, nem conta com benefícios regulados pela lei. Em 1999, houve um incêndio na sede da cooperativa, o que representou uma enorme perda. Tudo terminou em cinzas, inclusive, sua história: diversos documentos, arquivo de imprensa, fotos, vídeos, nada restou. Perderam-se também instrumentos musicais, utensílios de trabalho e cerca de 400 bonecas. Lena gostaria de encontrar alguém que fosse capaz de dinamizar as vendas, que tivesse uma visão clara de como comercializar de maneira justa o trabalho, já que, no momento, não dispõe de quem possa desempenhar essa função. Isto é fundamental para que as mulheres possam trabalhar Antropolítica
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com tranqüilidade. Com muita freqüência, o maior problema dos grupos que se dedicam à arte é a comercialização. Se não se consegue vender o que é produzido, não se sobrevive. Os preços das bonecas variam: se forem compradas diretamente na cooperativa, são mais baratas do que em lojas onde, geralmente, custam três vezes mais. Os tamanhos das bonecas variam de cerca de 2 centímetros – usadas como prendedores – até um metro e meio de altura. As menores valem menos de um dólar; as que têm um ímã para se colocar na geladeira ou em algum lugar de metal e medem entre de 5 e 6 centímetros custam um dólar. Aquelas que variam entre 10 e 15 centímetros custam de 10 a 20 dólares. Logo, os preços vão aumentando com o tamanho, assim como com o trabalho exigido para a confecção da boneca: as mais elaboradas valem mais. Normalmente 55% das vendas de uma boneca vão para a artista, uma parte vai para despesas da associação e para pagar a administração, e 5% para Lena, por direitos autorais. Evidentemente, as bonecas maiores, digamos a partir de 15 ou 20 centímetros são relativamente caras. São vendidas em alguns mercados ou feiras, exposições em universidades, e, principalmente, em algumas lojas de artesanato para turistas. No entanto, as lojas mais sofisticadas não as comercializam, o que é um contra-senso, já que se trata de um exemplar de arte popular de excelente qualidade. As bonecas criam uma imagem positiva das mulheres e dos negros. Por meio de expressões lúdicas e criativas, contribuem para o reconhecimento da identidade afro-brasileira. Ecologistas, feministas e anti-racistas afirmam que elas possuem a função de estimular a reflexão sobre as diferenças raciais, sociais e culturais e despertar a memória afetiva em cada pessoa. Há uma grande variedade de bonecas. Encontram-se anjos e fadas negros. Personagens de circo são também elaborados, como palhaços e trapezistas. Estas, especialmente lindas, trazem roupas coloridas, cabelos longos ou curtos, e ora oscilam com uma perna no trapézio, ora são penduradas na parede. Há ainda figuras mitológicas e do folclore brasileiro: a Curupira, com seus cabelos vermelhos e pés virados ao contrário; o saci-perê, com o gorro vermelho, o cachimbo e uma perna só; bruxas de desgrenhado cabelo vermelho-sangue, nariz comprido e torto, capa floreada, chapéu e vassoura; personagens com roupas típicas de danças regionais, e até mesmo Xangô. Lena, depois de ver várias reproduções dos quadros de Frida Kahlo, decidiu fazer uma Frida totalmente inventada, negra obviamente, muito bonita. Os jogadores de capoeira são um conjunto de três ou quatro Antropolítica
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bonecas colocadas sobre um pedaço de madeira, como se estivessem jogando capoeira. As pequenas bonecas que servem de prendedor ou as que têm o ímã são vendidas com uma enorme variedade de roupas e cores. Umas com saia, outras com calça, mas todas, praticamente todas, são bonecas bem femininas. De fato, as únicas representações masculinas que vi estão nos grupos de capoeira e em algumas imagens de seres do folclore, como o saci-pererê. Há também muitas bonecas vestidas de noiva. Em geral, todas as cores dos tecidos são vivas, muito vivas, algumas até extravagantes. Cada boneca distribuída leva uma etiqueta com a seguinte inscrição em português e em inglês: “Fortalecendo a auto-estima de um povo. Boneca negra feita sem cola ou costura, com material reaproveitado de sobras da indústria têxtil. Arte genuinamente brasileira desenvolvida exclusivamente pela Cooperativa Abayomi”. Há uma outra inscrição que diz: “Boneca negra feita sem cola ou costura. Artesanato genuinamente brasileiro, exclusivo da Cooperativa Abayomi, feito com material reciclado. Temas: personagem de circo, mitologia, manifestações folclóricas e culturais e figuras do cotidiano. Tamanho: 2cm a 1,5m”. E elas sabem que o povo não é neutro, também é negro e mulher. É normal que as elites políticas e intelectuais da América Latina e do Caribe, só para falar de nós, pensem no povo como “uma entidade abstrata, um lugar vazio”. As mulheres de Abayomi sabem claramente quem forma o povo brasileiro.16 O projeto Abayomi é muito significativo em mais de um sentido. As bonecas não são apenas interessantes e bonitas, com um valor artístico indiscutível. Há todo um caráter político por trás deste trabalho que representa algo absolutamente excepcional na arte popular latino-americana. Logo, o que torna a cooperativa Abayomi diferente de tantas e tantas outras que existem na região, é a deliberada conjunção do trabalho político e artístico com êxito total. Nelas não se percebe o temor de contaminar a arte com a política, muito pelo contrário, o político e o social dão sentido e conteúdo à sua arte. A valorização da afro-brasilidade com bonecas que representam orixás, que reproduzem personagens do Folclore de origem africana com suas vestimentas próprias, como as do traje de Jongo, por exemplo, dança típica do Rio de Janeiro, tudo é expresso pela arte. O objetivo é projetar uma imagen positiva do ser negro. É, de certa maneira, uma versão feminina e brasileira do Black is beautiful dos anos 1960 dos Estados Unidos. Para Lena Martins, seu trabalho em Abayomi representa uma forma poética de estar militando. Antropolítica
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102 […] tanto com relação aos conflitos identitários que alocam as imagens do negro e da negrura num universo ainda marcado por estereótipos negativos ou por dissensões localizadas, quanto na preocupação de se fortalecerem as manifestações da herança africana, na cultura brasileira, muitos mitos sobre a questão de cor e de raça no imaginário de nação, no Brasil, estão sendo recolocados em questão (FONSECA, 2001, p. 113).
É muito importante que haja essa revalorização da negritude, mas é preciso que ela passe também pelo corpo. Talvez pareça até um paradoxo a importância fundamental dada à corporalidade das bonecas Abayomi. Como já mencionei, nenhuma tem rosto, portanto a negritude é expressa unicamente por meio da cor da pele, do cabelo e, às vezes, da roupa. Os corpos são “esculpidos” com magnificência até o último detalhe. Se a representação dos negros e das negras na imaginação branca dominante é de que sejam apenas corpo, muito mais corpo que intelecto, um somatório de músculo, sensualidade, sexo, “uma corporalidade que fascina e horroriza ao mesmo tempo” (FONSECA, 2001, p. 93), tenho a sensação de que as bonecas ressaltam a beleza dos corpos negros. As artistas dão ênfase justamente à corporalidade, vivendo-a positivamente. Muitas bonecas são representadas em ação, não são figuras estáticas. É a corporalidade dinâmica que as define. A meu ver, as mulheres da Abayomi exploram justamente o que sempre foi entendido como negativo, questionando e redefinindo certos conceitos. “A classificação epidérmica dos indivíduos marcou profundamente as experiências históricas da população da América, de tal forma que, ainda hoje, o corpo humano leva um tipo de código moral e estético determinado, sobretudo, por seus traços externos” (FONSECA, 2001, p. 90). As bonecas Abayomi têm razão ao tratar de manter viva e presente na memória a ignominiosa história da escravidão africana. E vale comparar este projeto com a publicação de um livro intitulado Para nunca esquecer negras memórias/memórias de negros, no qual, parece mentira, esqueceramse, como sempre, das mulheres (ARAUJO, 2002). É assombrosa a ausência quase total de mulheres, sobretudo como criadoras, num livro que se supõe tenha sido feito, justamente, para reparar os estragos da memória racista seletiva e excludente. O pior é que, na primeira página, publicam o retrato de Ana Zinga, rainha de Matamba, com um seio descoberto. Esta imagem seria magnífica se houvesse uma relação de paridade entre o número de mulheres e de homens mostrando partes do corpo o que efetivamente não ocorre. Os homens retratados trazem habitualmente os corpos cobertos. Nesse contexto, as bonecas Abayomi contribuem para Antropolítica
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reparar “o desprezo” pelas mulheres, e mais ainda pelas mulheres negras, por meio da dinâmica reinvidicação lúdica da negritude feminina. É isto que importa politicamente, e a beleza das bonecas que nascem dessas mãos hábeis alimenta os sentidos e a razão de quem se deixa seduzir. Este breve prcurso pretendeu mostrar algumas expressões da arte popular brasileira, enfatizando o que achei excepcional. Depois de minhas pesquisas – baseando-me também no que a experiência me ensinou –, posso afirmar, obviamente com medo de errar, que a riqueza desta arte no Brasil deixa muito a desejar. Se a compararmos com a arte popular do México, ficará evidente que esta é bem mais abundante, interessante e superior em grau de excelência. Ao longo deste texto, procurei mostrar que no Brasil existem manifestações de arte popular que são extraordinárias, únicas no mundo por sua beleza e originalidade. No entanto, são ainda escassas, sobretudo se for considerada a enorme dimensão geográfica do país. Ou será, talvez, que nada é verdade, nada é mentira… e, por isso mesmo, existe a possibilidade de que a lua sorrisse só para mim. Tradução do espanhol: Tatiana Lessa Costa. Revisão da tradução: Simoni Lahud Guedes e Sônia Peçanha.
Acervos Consultados Museu Casa do Pontal, Rio de Janeiro. Museu do Folclore Edison Carneiro, Rio de Janeiro. Museu de Arte Naïf, Rio de Janeiro. “Pé de Boi”, Rio de Janeiro. “Brasil e Cia.”, Rio de Janeiro. “O Sol”, Rio de Janeiro. “Alma Brasileira”, Feira de São Cristovão, Rio de Janeiro. “Carmen. Artesanato Nordestino”, Feira de São Cristovão, Rio de Janeiro. “Salvaterra. Coisas da Roça”, Juiz de Fora, Minas Gerais. “Velho Chico”, Rio de Janeiro.
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Abstract In this article I make a small journey through some regions and certain expressions of Brazilian folk art, focusing on gender difference. I attempt to differentiate between folk art and handicrafts. I then consider one example of carioca folk art, the black dolls made of discarded cloth, that is neither glued nor sewed. The makers of these dolls are members of the Abayomi collective, and they are all black women with a consciousness of gender and race issues. They carry out a struggle for survival through this production and, moreover, express the strong presence, dignity, and beauty of black women. The creator of these dolls is Lena Martins, who tells her story, and, that of the group. Keywords: folk art; gender; feminism; blackness.
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RIBEIRO, Berta G. Arte indígena, linguagem visual. São Paulo: Editora Itatiaia Limitada: Editora de la Univesidade de São Paulo, 1989. 7 brasileiros e seu universo: artes, ofícios, origens, permanências. Brasília, DF: Departamento de Documentação e Divulgação, 1974. SOARES, Doralécio. Rendas e rendeiras da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1987. SOUZA, Tereza de. Uma estratégia de marketing para o artesanato do Rio Grande do Norte: o programa integrado de desenvolvimento do artesanato sob forma cooperativista. São Paulo: EAESP, 1991. TAVARES, Regina Marcia Moura. Brinquedos e brincadeiras. Campinas: Centro de Cultura e arte PUCCAMP, 1994. THE ART of brazilian handicraft. São Paulo: Talento, 2002. TINTAS e texturas: oficina de artesanato.Rio de Janeiro: SENAC, 2002. TRIBE, Tania Costa (Ed.). Heroes and artists: popular arts in the brazilian imagination. Cambridge: BrazilConnects, 2001. VINCENTELLI, Moira. Women potters transforming traditions. New Brunswick: Rutgers University Press, 2004.
Notas 1
Ver Bartra (2003) e Bartra (2004).
2
Ver Mestres-artesãos ( 2000). Este livro tem, além do mais, fotos bastante interesantes.
3
Ver bibliografía, Matos (2001)
4
Ver, por exemplo, The Art of Brazilian Handicraft (2002); Mascelani (2002) e outros.
5
Ver bibliografia.
6
Ver, por exemplo, Maria Luiza Pinto Mendoça (1959).
7
Parece que Manuel Eudócio Rodrigues (1931), do Alto de Moura, Pernambuco, foi aprendiz do mestre Vitalino que foi quem começou a fazer os olhos desta maneira particular.
8
Em português, como arte é feminino, deveria ser feita a concordância e dizer naive, mas não acostuma-se dizer assim.
9
Cf. Bienal Naïfs do Brasil 1998 (1998).
10
Cf. Carmenzina Mascarenhas em: <http://www.radiobras.gov.br/direto_planalto/matplanalto_100703. htm>.
11
Por exemplo, Ronald J. Duncan “El arte popular de las mujeres en La Chamba, Colombia”, em Eli Bartra (2004, p. 189).
12
Ver Tereza de Souza (1991).
13
Disponível em: <http://www.abayomi.com.br/quem_somos.html>
14
Entrevista com Lena Martins em novembro do 2004 na sede da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
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Disponível em: <http://www.abayomi.com.br/cortejo.html>
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José Murilo de Carvalho é quem destaca “as imagens da nação brasileira construídas pelas elites políticas e intelectuais [...] elaboram-se com recursos retóricos que descrevem o povo como uma entidade abstrata, um lugar vazio porque não se ajusta ao modelo de país pensado” (FONSECA, 2001, p. 91)
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Renata Menasche
Alimentos transgênicos, incerteza científica e percepções de risco: leigos com a palavra
Tomando por instrumental interpretativo perspectivas oferecidas por abordagens que se dedicam à análise das percepções de risco e pela antropologia da alimentação, este trabalho busca apreender as representações sociais, referentes aos organismos geneticamente modificados, de moradores de Porto Alegre (Rio Grande do Sul), entrevistados, indicando que o medo em relação a eventuais malefícios advindos da ingestão de alimentos transgênicos talvez não se substancie em risco a ser considerado no momento da decisão a respeito de o que consumir. Palavras-chave: transgênicos; percepções de risco; antropologia da alimentação.
*
Doutora em Antropologia Social, professora do programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Pgdr/ Ufrgs) e da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), pesquisadora da fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro).
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Introdução Os dados analisados neste artigo foram coletados em pesquisa realizada no período compreendido entre novembro de 2001 e março de 2002, quando, a partir do tema abrangente “hábitos alimentares”, foram entrevistados 25 moradores de Porto Alegre – mulheres e homens, de diferentes classes sociais, origens étnicas, faixas etárias, inserções profissionais, situações familiares, religiões, escolaridades, locais de nascimento e de moradia.1 No período que antecedeu a realização da pesquisa, alguns episódios contribuiriam para colocar o tema “transgênicos” em destaque no cenário nacional e particularmente no gaúcho. Repercutindo ações de denúncia de organizações ambientalistas, meios de comunicação de massa passariam, a partir de 1999, a veicular notícias a respeito da presença, nas gôndolas de supermercados brasileiros, de alimentos em cuja composição tomam parte organismos geneticamente modificados. Isso se daria em um contexto em que, como apontado por Gouin e Cordier (2001), na Europa, consolidava-se um ambiente psicológico – gerado a partir da primeira crise da vaca louca, ocorrida em 1996 – em que o tratamento como escândalo alimentar dos eventos relacionados a crises alimentares seria amplificado, como se verificaria nos casos da contaminação por dioxina (1999), da segunda crise da vaca louca (2000), bem como dos alimentos transgênicos. Em âmbito nacional, os tribunais eram, à época, o palco privilegiado para o exercício da polêmica sobre os organismos geneticamente modificados, que crescentemente ocupava espaço na mídia. Enquanto isso, no Rio Grande do Sul, as disputas legais se dariam em segundo plano, subordinadas à dinâmica de acontecimentos que teriam lugar junto aos campos de soja, no interior do estado. Para ilustrar o que foi afirmado, cabe mencionar o processo que, em 1999, colocou em situação de confronto a ação fiscalizadora de lavouras clandestinas de soja transgênica, realizada pelo governo do estado, e as mobilizações promovidas por produtores pró-transgênicos, que conduziriam o conflito ao ponto de manter fiscais como reféns. Vale lembrar, ainda, o episódio que, ocorrido no município gaúcho de Não-Me-Toque, em janeiro de 2001, durante a realização do primeiro Fórum Social Mundial, alcançaria repercussão internacional devido à participação do ativista francês José Bové, dirigente da Confédération Paysanne, em ação promovida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em área experimental pertencente à empresa Monsanto.2 Antropolítica
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É também indicadora da presença do debate sobre o tema a introdução, em 1999, do vocábulo “transgênico” no Dicionário Aurélio Século 21, bem como a crescente ocorrência do tema nos veículos de comunicação. Naquele ano, o jornal gaúcho Zero Hora contabilizaria a evolução do número de vezes em que o termo, inclusas as variações de gênero e grau, aparecia em suas reportagens. Em 1999, teriam sido 1291 os registros do termo – correspondendo a uma média de 3,5 vezes por dia –, enquanto no ano anterior haviam totalizado uma quantidade dez vezes menor.3 É, então, em um contexto em que o tema estava em evidência, e a presença de organismos geneticamente modificados na alimentação dos moradores de Porto Alegre era já uma possibilidade, que se desenha este artigo. A reflexão a ser aqui desenvolvida, a partir das percepções expressas pelos moradores de Porto Alegre, entrevistados quando o tema em pauta eram os organismos geneticamente modificados, toma em conta as contribuições dos trabalhos da antropóloga Mary Douglas e dos sociólogos Ulrich Beck e Anthony Giddens, reconhecidas como centrais no debate sobre risco nas ciências sociais.4
Transgênicos? Quase todos os moradores de Porto Alegre entrevistados já haviam escutado falar dos transgênicos. De fato, dos 25 informantes, apenas uma senhora declarou não ter qualquer idéia sobre o assunto: [A senhora já ouviu falar dos alimentos transgênicos?] Não, não vi isso aí, não. Às vezes eu passo dias sem assistir, hoje não foi nem ligado ao meio-dia, a televisão (Angelina).
No entanto, mesmo afirmando desconhecer o assunto, Dona Angelina demonstrava, em sua resposta – possivelmente dada a forma como fora apresentada a questão –, intuir que os alimentos transgênicos consti tuíssem tema passível de presença em noticiário televisivo. Obviamente, não se pretende considerar o universo de 25 moradores de Porto Alegre entrevistados como representativo para o debate sobre a questão. Entretanto, chama a atenção o fato de, à exceção de Dona Angelina, todos terem manifestado algum grau de familiaridade com o tema. O mesmo ocorre quando levamos em conta as pesquisas de opinião pública sobre transgênicos realizadas no Brasil (IBOPE, 2001, 2002), Antropolítica
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que – a partir de 2 mil entrevistas – indicam, para o período em foco, ser o tema mais presente entre os habitantes dos estados do Sul do que entre os das demais regiões do país. Observando os resultados dessas pesquisas – alguns deles podem ser conferidos no Quadro 1, abaixo –, podemos notar que, comparando com o conjunto do país, nos estados do Sul era, no período, significativamente maior o percentual de entrevistados que afirmava ter tido algum contato com o tema e que considerava que os transgênicos oferecem riscos à saúde e ao meio ambiente. Quadro 1 – Opinião pública sobre transgênicos: dados comparativos entre a Sul e o conjunto do Brasil (em % dos entrevistados) – 2001 e 2002
região
Fonte: IBOPE (2001, 2002).
É interessante observar, ainda, que para as questões que se repetem nas duas enquetes, realizadas em anos sucessivos, enquanto no conjunto do país as variações são pequenas, nos estados do Sul, durante o mesmo intervalo, as opiniões variam significativamente, o que evidencia a ocorrência, no período, de um aprofundamento da diferenciação entre as opiniões do Sul e do Brasil. Pode-se verificar, também, que no Sul encontra-se a menor taxa de entrevistados que abdica de responder às questões apresentadas, o que indica que, entre os brasileiros, eram, naquele período, os sulistas os que demonstravam menor dificuldade em posicionar-se acerca dos organismos geneticamente modificados. Dos resultados apresentados pelo IBOPE, são particularmente interessantes as respostas fornecidas pelos entrevistados quando solicitados a posicionar-se em um contexto em que o tema é objeto de polêmica entre os cientistas. Enquanto em 2001 os percentuais de entrevistados que se Antropolítica
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colocavam a favor da proibição dos transgênicos eram praticamente os mesmos para o Brasil e para o Sul, em 2002 os sulistas adotariam mais enfaticamente do que o conjunto dos brasileiros uma postura de precaução. Nessas pesquisas do IBOPE – pesquisas de opinião pública e, portanto, apresentando as limitações disso decorrentes –,5 os resultados disponíveis são agregados por regiões, o que torna impossível verificar especificamente os dados correspondentes ao Rio Grande do Sul. Entretanto, como os dados indicam claramente um comportamento diferenciado dos entrevistados do Sul, podemos, com chances razoáveis de acerto, supor que essa diferenciação tenha sido, em boa medida, produzida a partir das respostas obtidas no Rio Grande do Sul, o estado da Federação em que, como anteriormente comentado, a polêmica sobre os organismos geneticamente modificados se manifestava, no período, de forma amplificada. A partir desse quadro, talvez, possamos entender que, entre os 25 moradores de Porto Alegre que, no período compreendido entre novembro de 2001 e março de 2002, se dispuseram a conceder entrevistas a respeito de seus hábitos alimentares – tema geral das entrevistas, quando eram também indagados sobre os transgênicos –, apenas um tenha demonstrado desconhecer completamente o assunto. Mas, mesmo que a quase totalidade deles tenha tido algum contato prévio com o assunto transgênicos, apenas nas falas de duas informantes o tema surgiria espontaneamente nas conversas. Helena, quando indagada sobre as informações que busca em rótulos de alimentos, destacou que observava o país de origem dos produtos, afirmando evitar, dada a possibilidade de conterem transgênicos, os procedentes da Argentina, uma vez que, naquele país, a produção e o consumo de organismos geneticamente modificados já eram autorizados. Enquanto isso, Lourdes, mencionando alguns critérios que orientam suas escolhas ao fazer compras no supermercado, apontaria preferir sempre o tomate comercializado no Rio Grande do Sul, como tipo paulista, ao tipo longa vida, por acreditar ser o último geneticamente modificado.6 Helena e Lourdes seriam, entre os entrevistados – juntamente com Clara, que também afirmaria recusar-se ao consumo de tomates tipo longa vida –, as únicas a declararem adotar como critério de escolha de alimentos a rejeição aos transgênicos. Nos demais depoimentos, a introdução ao tema transgênicos se deu, em resposta à questão apresentada, a partir de afirmação de incerteza Antropolítica
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diante do assunto, por meio de expressões que evidenciavam que os informantes não se sentiam autorizados a emitir opinião. Diante de um tema complexo e polêmico, sobre o qual o debate científico permanece em aberto, os entrevistados demonstraram, inicialmente, constrangimento em se posicionar. É como se, em um assunto considerado de domínio do conhecimento especializado, se declarassem leigos,7 considerando que, nessa condição, não se encontrariam habilitados a constituir opinião a respeito. Entretanto, esse sentimento não impediria que os informantes manifestassem, no seguimento das conversas, seus posicionamentos sobre o tema, expressando, na maior parte das vezes, desconfiança diante dos organismos geneticamente modificados. [a senhora já ouviu falar dos alimentos transgênicos?] Pois é, aquilo nunca entendi direito... que o transgênico traz doença, então aqui [Rio Grande do Sul] o governo está bastante contra isso, mas não sei bem o que é que é aquilo, transgênico. [...] Diz que câncer, traz, né? Que tem um remédio, uma coisa tão forte, naquele produto, que traz doença. Mas eu nunca li nada sobre isso, não sei bem, também só escuto fazendo o meu crochê (Vanilde).
Vejamos o que dizem.
Leigos com a palavra Dona Angelina que, como vimos no início deste artigo, manifestou desconhecimento sobre o tema transgênicos, não estará entre os informantes a quem será aqui dada a palavra. Tampouco incluiremos Jorge, que, na condição de biólogo – convidado a opinar sobre o assunto, expressou dúvida, indicando expectativa diante dos avanços da ciência –, poderia ser classificado como leigo. Há os casos de Helena e Lourdes, que, como anteriormente comentado, abordaram espontaneamente, a partir das narrativas sobre critérios de escolha de alimentos, o tema transgênicos. E há, ainda, Luisa. Diferentemente dos outros 20 entrevistados de Porto Alegre, que, quando indagados se já haviam ouvido falar dos transgênicos, expressaram certo constrangimento em opinar a respeito de tema sobre o qual pairam incertezas científicas, Luisa afirmou sua confiança na ciência e nos cientistas. Antropolítica
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Luisa é médium, definindo-se como espiritualista, praticante da umbanda conhecida como de “linha branca”. Daí o “olho espiritual” a que se refere, e que fornece a chave para a compreensão de sua análise. É a partir da fé na reencarnação do espírito que Luisa constrói seu argumento em defesa da ciência e dos cientistas. Ela alia à idéia de evolução espiritual, que se daria ao longo de sucessivas vidas, um certo evolucionismo biológico, relacionado à capacidade de adaptação da espécie humana às mudanças – que impediria, inclusive, que a ingestão de alimentos transgênicos pudessem vir a ter efeitos nocivos à saúde –, e, ainda, uma espécie de evolucionismo científico, justificador de sua confiança no desfecho positivo de controvérsias científicas do presente a partir de comprovações que deverão – ela não deixa margem para quaisquer dúvidas – ocorrer no futuro. Traçando um paralelo com a polêmica dos transgênicos, Luisa busca no episódio conhecido como Revolta da Vacina argumento para demonstrar os acertos das descobertas científicas, mesmo quando contestadas em sua época. Esse episódio ocorreu no Rio de Janeiro, em 1904, onde a falta de saneamento básico deixava a população exposta a epidemias de febre amarela, varíola e outras doenças. Osvaldo Cruz chefiava o Departamento Nacional de Saúde Pública, conduzindo campanhas para a eliminação de ratos e mosquitos, destinadas a controlar a transmissão de doenças. Na época, essas campanhas encontravam forte oposição da sociedade, sendo ridicularizadas pela imprensa, que considerava absurda a responsabilização de um mosquito pela febre amarela. Diante do crescimento dos Antropolítica
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casos de varíola na capital, em outubro de 1904, o Congresso Nacional aprovaria a lei que tornava obrigatória a vacinação contra a doença em todo o território nacional. Com o estímulo de setores oposicionistas ao governo – que promoveram, inclusive, uma insurreição militar, que propunha a deposição do presidente da república –, por mais de uma semana as ruas do Rio de Janeiro seriam tomadas por manifestações populares contra a obrigatoriedade da vacina, que viria a ser suspensa.8 A menção, por Luisa, ao episódio da Revolta da Vacina parece ter o sentido de demonstrar que, mesmo quando os avanços científicos são contestados, a perspectiva científica acaba por evidenciar-se acertada. Esse otimismo com relação aos avanços científicos seria, à primeira vista, compartilhado por dona Olga, que, ao ser indagada a respeito dos transgênicos, respondeu: Já ouvi falar, e não dou minha opinião sobre isso [transgênicos]. Que tudo quando é novo sempre é combatido. A gente sabe disso. Agora, daqui há uns anos, talvez seja provado que é bom, então todo mundo está de acordo e bate palmas. Por enquanto, essa luta contra e a favor, eu não tenho conhecimento prá dar opinião (Olga).
Mas alguma coisa parecia estranha nesse discurso, proferido na sala do apartamento da senhora de quase 80 anos, decorado de forma que causava a sensação de que havíamos retornado no tempo uns 40 anos. E não era apenas com a decoração que a indicação do triunfo do novo não combinava. Quando perguntada se possuia forno de microondas, a senhora afirmoou não ter microondas, computador ou televisão a cabo, explicando: “todas essas novidades assim não me atraem”. Diferentemente de Luisa, que durante toda a entrevista sustentaria – mesmo diante das intervenções do marido, presente à conversa, que indicavam uma atitude mais precavida – uma posição otimista diante das inovações científicas, dona Olga, apesar da visão positiva que expressou na introdução do tema transgênicos, assumiu, ao longo da conversa, no desenvolvimento de seu argumento, uma postura bem mais cautelosa diante do assunto. Eu acho que não há esclarecimento suficiente para as pessoas se convencerem de que o transgênico não faz mal. Não há conhecimento suficiente. As pessoas arriscam a plantar, arriscam a comer, mas elas não sabem o efeito. Não há tempo de saber o efeito que pode produzir com o correr dos anos... Então eu acho que deve ser estudado mais, essa é a minha opinião (Olga). Antropolítica
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Assim, talvez sua afirmação inicial seja melhor compreendida pelo que expressa de dúvida, e não de certeza. Dona Olga é categórica, sim, mas no indicar a volatilidade das certezas científicas. E é a partir da constatação da atual insuficiência de conhecimento sobre o tema que ela – mencionando como riscos o plantio e o consumo de transgênicos nessa situação de incerteza – afirma não ter opinião formada a respeito. Excetuando-se Luisa – que, como visto, associa confiança, e não risco, às controvérsias científicas – os demais informantes compartilhariam, em algum grau, da postura de precaução assumida por dona Olga diante da situação de incerteza. Como o transgênico é uma polêmica recente, a maioria das pessoas não sabe o que é o transgênico, e ninguém sabe até hoje o que um transgênico pode causar ou não (Karen).
Mas a maior parte dos entrevistados foram mais enfáticos do que dona Olga ou Karen ao expressar sua desconfiança em relação aos alimentos geneticamente modificados. Alguns dos informantes demonstraram intranqüilidade diante do tema, evidenciando a origem de sua inquietação na insuficiência de informações sobre o assunto, deixando entrever como fonte da situação de incerteza os meios de comunicação. Acho que não faz bem, né? Não pode fazer bem, tenho a impressão que não, pelo que eles falam, né? Não fizeram uma pesquisa, assim, mesmo, pra se saber sobre eles [transgênicos], mas eu tenho a impressão que não faz bem (Zélia). Não se sabe se faz mal pra saúde ou não, eu não me decidi, porque eu não sei bem a verdade de tudo isso, não acho nada ainda, eu não sei. [...] Como é que nós vamos saber, se faz mal? Olha, já li tanto sobre esse transgênico! O que eles fazem? Eles modificam lá não sei o quê... mas como é que vai fazer mal, se é um vegetal também (Nilza)? Eu ainda não conheço, só escuto, li aí, não vi... só ouvi falar... não sei qual é o efeito disso aí, não acompanhei, eu só escuto, vi em jornal, na televisão. [...] Uns dizem que faz mal, outros dizem que não, que é o contrário, então a gente não sabe, eu não tenho uma idéia (Armando). Sobre isso eu não sei nada, pouco tenho visto. A gente ouve muita notícia, alguma coisa a gente ouve... Eu, no meu ponto de vista, às Antropolítica
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118 vezes eu acho que é perigoso mesmo, é perigoso abalar a saúde do povo, né (Marta)?
Como dona Marta, muitos dos entrevistados indicaram creditar aos alimentos transgênicos riscos à saúde. Do mesmo modo que em pesquisas sobre as percepções a respeito da biotecnologia realizadas na Europa,9 em alguns dos depoimentos dos moradores de Porto Alegre entrevistados, a transgenia seria associada a outras técnicas que despertam medo e rejeição (clonagem e radiação), ou a procedimento tecnológico que, comprovadamente, é causa de doença fatal em seres humanos (utilização de rações produzidas a partir de farinhas animais). Ah, sei lá... eu não sei falar... parece um clone. Pega duas coisas e bota numa só, e modifica ali. Eu não sei se é legal... Por que é que não vai continuar sendo como sempre foi? Por que mudar? Valor maior acho que não vai ter (Dirce). Eu vejo esse transgênico como a radiação. A radiação faz mal prá nós, e esses produtos transgênicos também podem fazer mal. Mas eu não tenho assim uma opinião formada a respeito, porque eu não tenho conhecimento de causa... (Gilberto). Eu ainda não sei o que vai fazer, mas é uma coisa que é uma modificação genética, né? E aquele problema de vaca louca, na Inglaterra, foi exatamente por causa disso, foram mutações genéticas, feitas através das rações dos animais, né (Helena)?
Outros informantes apontariam como conseqüências possíveis da ingestão de alimentos transgênicos a ocorrência de má-formação fetal e de câncer. Clone, radiação, vaca louca, mutação, má-formação fetal, câncer. Aí temos uma bela lista de medos contemporâneos, mencionados pelos informantes em associação aos transgênicos. Enquanto a doença da vaca louca e as técnicas de clonagem de mamíferos surgiram na última década, os demais “perigos” listados são mais antigos. Entretanto, todos têm algo em comum. Mesmo quando suas causas – ou conseqüências, no caso da clonagem e da radiação – não são objetivamente completamente conhecidas, têm sido percebidas como decorrência dos tempos modernos. E, nessa condição, têm sido, em diferentes sociedades contemporâneas, objeto de lendas e rumores. Antropolítica
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É o que mostra o trabalho de Zonabend (1993), que aponta os rumores correntes – entre outros, o nascimento de bebês deformados, ou de bezerros com duas cabeças – entre os habitantes dos arredores de uma usina francesa de reciclagem de resíduos nucleares. No mesmo sentido, Darmon (1993) indica como a crescente incidência de câncer vem, há mais de um século, sendo percebida, na Europa, como decorrente de hábitos – são mencionados, entre outros, o aumento do consumo de carne e a ingestão de alimentos industrializados – advindos com a civilização e o progresso. Temos, ainda, as inúmeras lendas urbanas analisadas por CampionVincent e Renard (1998). Esses autores, evidenciando a predisposição das sociedades contemporâneas, conferida pelo medo diante de novas tecnologias, em acolher tais lendas, narram as mais fantásticas histórias – e outras nem tão fantásticas – que relacionam como causa de câncer, ou má-formação fetal, ou mutações, o emprego de tecnologias modernas. Algumas delas, pelos riscos que oferecem, permanecem sendo, ainda hoje, objeto de controvérsias científicas. Retomando os depoimentos tomados entre os moradores entrevistados de Porto Alegre, cremos que, ao equiparar o perigo representado pela transgenia ao oferecido pela radiação, ou ao associar à modificação genética males como câncer ou má-formação fetal, vários dos informantes estariam identificando os alimentos transgênicos como mais um dos artefatos da ciência a merecer desconfiança. Tal fato deve ser fruto de uma situação de incerteza científica, perpetuada pela mídia e amplificada pelo debate público, politicamente polarizado. Entretanto, cabe destacar que a existência desse medo não nos permite concluir que ele se faça presente no momento em que os informantes se vêem diante das prateleiras dos supermercados, selecionando os produtos a serem consumidos em sua mesa.
Transgênicos: risco considerado? Os dados coletados permitem intuir a ocorrência, entre os moradores de Porto Alegre, entrevistados, – tal qual sugerido por Bauer et al. (1998, p.167), em um estudo sobre as percepções a respeito da biotecnologia na Grã-Bretanha – de uma disjunção entre seus posicionamentos enquanto cidadãos e seus comportamentos enquanto consumidores. Nas entrevistas realizadas, a maior parte dos informantes, quando colocados diante de uma situação hipotética em que deveriam optar entre Antropolítica
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um produto transgênico e um não-transgênico, declararam forte rejeição ao alimento geneticamente modificado, mesmo que seu preço fosse significativamente inferior ao do alimento convencional. Ainda que levando em conta as limitações decorrentes da excessiva importância das entrevistas na obtenção dos dados aqui analisados – diante das óbvias restrições à observação participante, impingidas pelas circunstâncias – especialmente no que se refere às práticas alimentares dos informantes, é possível afirmar que a postura que assumem diante da situação hipotética proposta parece não guardar correspondência com seu comportamento cotidiano. Afinal, muitos dos entrevistados haviam mencionado, em seus depoimentos, estarem cientes de que, nas prateleiras dos supermercados brasileiros, podem ser encontrados alimentos contendo transgênicos, que, dessa forma, estariam já sendo consumidos. Porém, como dito anteriormente, apenas Helena, Lourdes e Clara – as duas primeiras espontaneamente, a terceira após indagada sobre os transgênicos – afirmaram a rejeição aos alimentos geneticamente modificados como critério efetivamente empregado na seleção de produtos alimentícios. É bem verdade que, dada a não-regulamentação da lei que obriga a rotulagem de produtos contendo transgênicos, é difícil identificar, ainda hoje, a presença de componentes geneticamente modificados nos alimentos. Portanto, a presença de transgênicos não pode ser objetivamente considerada como critério para a escolha de produtos. Não há como prever em que proporção a rotulagem dos alimentos geneticamente modificados, possibilitaria sua identificação, provocando rejeição, entre os informantes – que, quando indagados, declaram rejeitar esses alimentos, ao mesmo tempo em que desconsideram essa rejeição em sua prática cotidiana de escolha. Também não temos evidências de que haja uma maior correspondência entre o posicionamento do consumidor e seu comportamento. Mas há como, mesmo nos limites das entrevistas, observar algumas contradições que evidenciam que o medo de eventuais malefícios advindos da ingestão de alimentos transgênicos talvez não se substancie em risco a ser considerado no momento da decisão a respeito de o quê consumir. Vejamos o que narram Cleusa e Lourdes. Ambas são mães (a primeira de um casal de crianças, a segunda de duas pré-adolescentes), extremamente criteriosas com relação à alimentação de suas famílias, especialmente no que se refere aos filhos. Entre todas as mães entrevistadas, as duas Antropolítica
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demonstraram ser as mais disciplinadoras no que concerne aos hábitos alimentares de suas crianças. O que eu sei, que eu ouvi falar, é que eles [os alimentos transgênicos] fazem mal pra saúde, que a gente não deveria comer, que não deveriam existir alimentos transgênicos. E eu sei que tem certos doces, também, tipo essas pastilhinhas, com chocolate... que isso aí tem transgênicos... Eu ouvi falar, não sei se é verdade, também. As crianças, às vezes, comem (Cleusa).
Assim, mesmo sendo bastante restritiva em relação ao consumo de doces pelos filhos, e acreditando serem os alimentos transgênicos prejudiciais à saúde, Cleusa admite que suas crianças ingerem, eventualmente, exatamente o tipo de confeito suspeito de conter ingredientes geneticamente modificados. Já Lourdes – a mesma que, espontaneamente, afirmara a rejeição aos alimentos geneticamente modificados como critério de escolha e que declarara considerar, por acreditar transgênico, cancerígeno o tomate tipo longa vida – confessaria ter “enganado o marido”, utilizando como ingrediente de uma refeição bifes de soja. Vejamos como isso se deu. Geraldo tem sua formação e inserção profissional na área ambiental, e parece, na visão da esposa, ter um posicionamento ainda mais firmemente contrário aos organismos geneticamente modificados do que ela. Enganei direitinho meu marido, fiz um [bife] à parmegiana... Mas eles [o marido e as duas filhas] comeram! O Geraldo dizia assim “como é que essa carne é tão macia?”. “Ah, é um bife que eu comprei, é carne, eu que fiz”. Mentira! Eu comprei os bifes já com a farinha aquela por cima, mas é de carne de soja! Então ele vem que é uma delícia, e tu jura que é carne, tu jura que é, e não é. Vem embaladinho, cada um vem embalado num saquinho. O gosto é ótimo, é o gosto da fritura. Tu não sabe, porque é o gosto da fritura... Até eu não acho tão ruim a soja, que a soja tem suas vantagens. Mas o Geraldo não gosta, que ele acha que a soja é transgênica, então que a gente não deve comer coisa com soja... por causa do transgênico. Então o Geraldo é muito ligado nessas coisas, também. E eles adoraram, ninguém dizia que não era carne. Ele desconfiou pela maciez da carne, tu cortava e “tchuc”, não tinha um nervinho, não era dura (Lourdes).
Se Geraldo comeu seu bife de soja acreditando ser de carne, ou se preferiu fingir acreditar, jamais saberemos. Mas temos na mentira confessa de Lourdes alguns elementos interessantes para a análise. Antropolítica
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Ao afirmar que também Geraldo “é muito ligado nessas coisas”, Lourdes faz referência à importância que ela própria, assim como o marido, atribui ao natural enquanto valor, seja no que diz respeito à qualidade da alimentação,10 seja em relação à qualidade de vida, em geral. E é a partir dessa visão que ela estrutura sua crítica aos transgênicos. Assim, ao ceder à praticidade do bife de soja pré-preparado, ela não apenas contraria as convicções que afirma, mas o faz com a determinação necessária para sustentar a farsa ante o marido. Como entender que, acreditando na nocividade da ingestão de alimentos geneticamente modificados, Cleusa não impeça seus filhos de consumir os confeitos suspeitos, e Lourdes ofereça à família, de forma camuflada, a soja proibida? Talvez ambas – possivelmente da mesma forma que a grande maioria dos informantes, que declaram rejeição aos transgênicos, mas não a levam em conta quando selecionam seus alimentos – tenham decidido que esse, entre tantos riscos com que se deparam em seu dia-a-dia, não seja um dos efetivamente escolhidos como objeto de preocupação.
Abstract This paper aims to offer an understanding of social representations about genetically modified organisms in Porto Alegre (Rio Grande do Sul). As our departing point, we have used the interpretative tools offered by studies on risk perception as well as the anthropological studies of food. The interviews suggest that the fear regarding uncertain consequences of the consumption of transgenic food is not necessarily showed up at the moment of taking the decision about what to consume. Keywords: genetically modified organisms, risk perception, anthropology of food.
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Notas 1
Este estudo é resultado de uma pesquisa mais ampla, que teve por objeto as representações sociais de agricultores e consumidores gaúchos sobre cultivos e alimentos transgênicos (MENASCHE, 2003b). Cabe mencionar que, com o objetivo de preservar o anonimato dos informantes, os nomes aqui utilizados são fictícios.
2
Para uma análise dos episódios aqui mencionados, ver Menasche (2002, 2005).
3
“Transgênicos na boca do povo”, Zero Hora, 24/12/1999.
4
Acerca da centralidade das contribuições de Douglas, Beck e Giddens no debate atual sobre risco nas ciências sociais, ver, entre outros, os trabalhos das antropólogas Silva (1999), Caplan (2000) e Martin (2003); bem como as análises de Boholm (1996), Guivant (1998) e Peretti-Watel (2000).
5
Para uma análise crítica dos métodos empregados em pesquisas de opinião pública, ver Champagne (1998).
6
Como alguns informantes mencionaram considerar o tomate tipo longa vida como sendo transgênico, cabe esclarecer que existem três possibilidades de obtenção de cultivares de tomateiro do tipo longa vida, duas delas via métodos convencionais de melhoramento genético e a terceira por meio de transgenia. No Brasil, diferentemente do que acreditavam vários informantes, os tomates longa vida comercializados não são – ou ao menos não eram à época – obtidos a partir de modificação genética (DELLA VECHIA; KOCH, 2000).
7
A distinção entre públicos leigo e perito – em verdade, a crescente redução, nas sociedades contemporâneas, dessa separação – está presente nas análises dos vários autores que discutem o tema risco. Pode-se considerar que ao público perito estaria originalmente associado o conhecimento especializado, enquanto ao leigo, o conhecimento tradicional (GIDDENS, 1997, p.105-109).
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125 Para mais informações sobre a Revolta da Vacina, ver: <http://www2.prossiga.br/Ocruz/ Trajetoria/ diretoriageral/31campanha>, <http://members.tripod.com/~omotim/Vacina.htr>, <http://geocities.yahoo. com.br/vinicrasbr/historia/brasil/revoltadava>. Acesso em: 17 jun. 2003.
8
A esse respeito, ver Menasche (2003a).
9
Acerca do debate sobre a valorização do natural na alimentação em referência ao tema transgênicos, ver Menasche (2004).
10
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Heloísa Helena Salvatti Paim*
Técnicos e usuários em programas de assistência social: encontros e desencontros
Através da análise das relações sociais constituídas pela implementação de um programa de assistência social da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, destinado a famílias cujas crianças e adolescentes são considerados em situação de risco, busco dar visibilidade para princípios que orientam práticas e salientar aspectos que revelam os pressupostos da organização social. Em consonância com estudos que interpretam os conflitos sociais como inerentes à vida social, analiso divergências e acusações entre técnicos e usuários do programa. Com isso, pretendo refletir sobre as relações de poder e de práticas de resistência que, nesse caso, são constituídas pelas ações de sujeitos que assumem posições distintas na instituição estatal. Palavras-chave: estado; assistência social; poder.
* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.
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Apresentação Através da análise das relações sociais constituídas pela implementação de um programa de assistência social da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, procuro oferecer visibilidade aos princípios que orientam as práticas dos sujeitos que nele relacionam-se e salientar aspectos que revelam os pressupostos dessa diferenciada e interdependente intervenção social. Em consonância com estudos que interpretam os conflitos sociais como partes da vida social, pretendo refletir sobre a constituição de relações de poder. Trato das interações entre sujeitos que ocupam posições diferenciadas na instituição e que estão em posições diferenciadas, distantes e desiguais no âmbito social mais amplo. A partir dessa análise, tento compreender tanto as tentativas de disciplinamento e normatização da vida familiar dos usuários dos programas de assistência, quanto os modos de relações que possibilitam o acesso desses sujeitos aos recursos de distribuição pública e estatal.1 A partir do diálogo com alguns autores, em especial Thompson (1998) e Scott (1985), busco compreender as situações de conflito a partir da produção e do exercício de relações de dominação e de resistência. Ao sublinhar as interdependências entre os sujeitos que ocupam posições diferenciadas na organização institucional, pretendo romper com uma visão estanque e unilateral comumente interposta à análise das ações do Estado. Neste texto, abordo uma dimensão restrita das relações que envolvem a assistência social, decorrente do contexto em que essa pesquisa foi realizada, no qual o foco era as relações entre técnicos e usuários do programa. Assim não se trata de tomar esse espaço como central, nem de supor a possibilidade de analisá-lo como um sistema fechado. Assim entendo tornar visíveis as tensões sociais expressivas de nossa sociedade.2 Ressalto que o processo de constituição de determinadas práticas enquanto “problemas sociais” ou “situações de risco” a serem enfrentadas, é resultado de processos de disputa entre diferentes sujeitos sociais, variando conforme os contextos históricos. Autores que abordam o porquê de determinados temas tornarem-se objeto de especial atenção e intervenção apresentam as variações nos focos de preocupação e nas propostas de solução, não havendo uma relação direta entre a gravidade do problema e o tamanho das atenções voltadas a ele (volume e intensidade emocional) (FONSECA; CARDARELLO, 1999). Seja: os “problemas sociais” existem nos termos que são definidos pelos que investem
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e disputam este reconhecimento, sendo resultado de um processo de definição coletiva. Para finalizar, sintetizo algumas características do programa e da pesquisa realizada. Em consonância com as resoluções do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei Orgânica da Assistência Social – que definem como função do Estado garantir que crianças e adolescentes sejam reconhecidos como cidadãos de direito, alvos de proteção integral – em 1997, titulares da FASC elaboraram o Programa de Apoio à Família. O programa tinha como objetivo atender às famílias dotadas de crianças ou adolescentes, em situação de risco social/pessoal, identificadas pelos técnicos pela presença de mendicância, situação de rua, drogadição, maus tratos, entre outros.3 Para tanto, oferecia suporte financeiro e educativo, por meio de uma bolsa-auxílio temporária e de grupos de mútua ajuda.4 A inserção da família no programa tornava-se efetiva a partir de uma avaliação realizada pelos técnicos que, sendo aceita, era proposto que uma pessoa da família, definida como membro agregador, participasse dos grupos de mútua ajuda, para ser o elo entre família e programa. Antes de iniciar sua participação no programa, a pessoa assinava um contrato formal elaborado pela equipe técnica, pelo qual comprometia-se a seguir certas normas: participar dos grupos de mútua ajuda, manter os filhos na escola, atender às orientações sugeridas no cuidado com os filhos, que incluíam uma vasta gama de encaminhamentos (busca de atendimento psicológico e/ou psiquiátrico; envolvimento em atividades de reforço escolar, de lazer ou de formação profissionalizante). A assessoria foi realizada em função da demanda da equipe técnica do programa. A preocupação dos técnicos era compreender o impasse colocado pelo fato de que as pessoas atendidas não cumpriam os combinados individuais ou grupais, ainda que estivessem obtendo o apoio dos recursos do programa. Refletindo sobre o próprio trabalho, os técnicos sugeriram que aquelas pessoas podiam ter dificuldades no entendimento verbal dos combinados ou ainda tinham uma postura apática na interação grupal. Outro problema identificado pelos técnicos: algumas práticas, estimuladas durante a vigência do contrato, não permaneciam após a finalização da bolsa. Consideravam que, através de um estudo de cunho antropológico, seria possível obter subsídios/explicações quanto às relações que eram então legitimadas pela população atendida com o programa; e que isso permitiria aprofundar os laços de troca com a população atendida. A proposta da assessoria ocorreu em um momento especial, visto que se aproximava do primeiro ano de vigência do programa com concessão de bolsas e, conforme o previsto no projeto, encerrava a participação Antropolítica
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de algumas famílias. Assim, havia um clima profícuo de reflexão sobre sua implementação, uma vez que os técnicos avaliavam junto às pessoas atendidas e à equipe, as contribuições e os limites do programa. Nesse sentido, a assessoria corroborava um processo que já estava sendo desencadeado no interior da equipe técnica. Noutro texto, abordei as questões em relação aos tipos de demanda que têm sido feitas aos antropólogos. Aqui registro que, inicialmente, argüi a importância de colocar a questão de outra forma: que considerava as relações estabelecidas e não o foco exclusivo sobre as práticas dos usuários. A assessoria contou com três ações: a) observação dos grupos de mútua ajuda, nos quais reuniam-se técnicos e usuários. Foram observados 25 encontros de grupos, realizados em dois centros comunitários, um localizado na zona leste e o outro na zona sul de Porto Alegre; b) formação de um grupo de discussão (com técnicos) de textos antropológicos que tratavam sobre concepções de família e experiências de intervenção. Formaram-se dois grupos, com oito encontros, cada um com 20 técnicos. Além disso, acompanharam-se as reuniões dos técnicos com a coordenação do programa durante um ano. c) foram realizadas visitas à casa de cinco mulheres que participavam do programa e mostraram-se disponíveis a receber as pesquisadoras. Foram feitas, em média, quatro visitas de três horas com cada uma das mulheres. Este texto está organizado em duas partes: inicialmente, apresento alguns conceitos que dão suporte à análise das situações etnográficas. Por fim, teço algumas considerações acerca da complexidade das relações entre técnicos e usuários que o diálogo com a bibliografia me permitiu perceber.
Estado, Política e Poder Lewellen (1983) analisa como política e poder, temas tradicionalmente abordados pela Filosofia e pela Ciência Política, constituem-se em objeto antropológico. Salienta ainda que uma das principais contribuições antropológicas foi não ter delimitado a política a uma parte do sistema social. Tanto por questões metodológicas (interação face a face em situações cotidianas e limites às generalizações), quanto pelas particularidades das sociedades tradicionalmente estudadas (sem instituições formais de governo), os antropólogos puderam perceber que a política não podia ser analiticamente isolada, uma vez que poder e autoridades manifestavam-se através de diferentes instituições. Também quando antropólogos analisam suas próprias sociedades, revelam que as relações Antropolítica
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informais têm influências nos desdobramentos das relações formais e, nesse sentido, mais do que análise das estruturas e normas sociais, cabe pensar a forma com que elas são produzidas, disputadas, selecionadas e aplicadas em situações concretas. Associado a isso, as ponderações feitas por Lewellen sobre a complexidade da noção de poder parecem pertinentes a este estudo, na medida em que salientam diferentes formas de expressão e dimensões que podem vir a ser analisadas, como público/privado, coerção/consenso, imposição/ legitimidade. O exercício do poder, ainda que possa ser feito de forma unilateral e sem nenhum consentimento, quando no geral está baseado no uso da força física, não elimina outros sentidos que podem ser atribuídos a essas práticas pelos sujeitos que são alvo dessa subjugação. A submissão às autoridades pode estar baseada em diferentes motivações; tanto pode ser por uma compreensão da legitimidade da instituição, como por receio de suas penalidades, ou ainda por certo comodismo. Considero essas formulações inspiradoras deste trabalho, rompendo com análises do Estado como entidade abstrata, monolítica e unilateral; ou ainda como mera aplicação de projetos por meio de estruturas preexistentes. Assim, a implementação das políticas públicas, forma tão específica da manifestação do Estado, é resultado de um processo de disputas entre diferentes agentes sociais acerca das regras, valores e objetivos. Essas disputas ocorrem entre sujeitos situados em posições sociais diferenciadas, em contextos marcados por desigualdades econômicas e sociais. Nesse sentido, encontro inspiração em Darnton (1986), Scott (1985) e Thompson (1998), uma vez que problematizam os processos de produção, dominação e resistência. É possível estabelecer aproximações entre tais trabalhos, principalmente no que se refere às preocupações dos autores em estudar sujeitos que, em geral, ocupam posições subalternas tanto na sociedade quanto nos campos temáticos dos estudos acadêmicos. Através da reconstrução das práticas cotidianas de operários, camponeses e plebeus, ressaltam as participações ativas nos eventos históricos. Apontam a complexidade das relações de poder, tendo em vista que não se trata de ações unilaterais de grupos considerados hierarquicamente superiores sobre os outros. Assim, ao mesmo tempo que abordam os processos de produção da dominação, suas análises possibilitam captar também as perspectivas dos sujeitos situados nas posições subalternas, dando visibilidade às suas práticas e aos significados sociais a elas atribuídos, bem como seus desdobramentos em contextos mais amplos. Através da atenção às práticas cotidianas de sujeitos comuns, questionam os silêncios da história oficial em relação às posições subalternas; e também Antropolítica
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as perspectivas teóricas que reduzem essas práticas a uma imposição da visão dominante ou apenas tentativas de garantir a sobrevivência. Com isso os subalternos revelam a alteridade de suas concepções e práticas, ao mesmo tempo que estão engajados ativamente nas relações com outros setores. Não têm seu modo de vida totalmente determinado pelas imposições dos segmentos dominantes. Cabe ressaltar que a inclusão dos subalternos não deve ser vista apenas como acréscimo a outras narrativas, mas pode mesmo propor novas interpretações para eventos históricos. Considero esta uma reflexão de extrema pertinência para não correr o risco de, nas reflexões acadêmicas, reproduzir a ótica dos de posição hierárquica superior. Muitas vezes a tentativa de afastar-se da perspectiva de “cima” é feita através da exposição de “denúncias” das injustiças ou de práticas de exploração e de subjugação. Outras tantas vezes, pela constituição de uma “imagem positiva” dos sujeitos de posição inferior que, muitas vezes, resulta na fabricação de uma imagem do grupo bastante coerente, integrada e romantizada. Essas posturas trazem a marca de uma leitura moralizante das relações sociais, que faz com que o acadêmico torne-se mais um agente que participa das disputas das leituras legítimas sobre uma dada realidade social do que um analista da complexidade das disputas existentes. Retomo de forma mais detalhada alguns conceitos elaborados por Thompson, em seu estudo sobre as relações entre a gentry e plebeus na Inglaterra do século XVIII. Estes podem contribuir para a compreensão das relações de dominação e de subordinação em outros contextos históricos, não por supor uma continuidade histórica ou ter alguma pretensão universalista, mas enquanto instrumentos teóricos e metodológicos que podem auxiliar no entendimento de outras realidades. Thompson reincorpora os sujeitos nas análises históricas, contrapondose a perspectivas que supõem a existência a priori de estruturas, as quais determinariam as posições e formas de ser dos sujeitos. Salienta ainda a importância de nos atermos à análise das interações dos sujeitos sociais, construídas em contextos específicos. A incorporação dos sujeitos não implica visão voluntarista. Os sujeitos deparam-se com constrangimentos sociais, econômicos e políticos, que não são apenas efeitos de modos de produção, desdobramento das interações em relações de interdependência. Assim, as estruturas são constituídas e só podem ser apreendidas na ação de sujeitos. Por essa perspectiva, a noção de “campo de forças” assume relevância, tendo em vista que assume caráter relacional das posições em disputa quanto às práticas consideradas legítimas. Assim, posições de dominação, Antropolítica
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deferência e resistência conformam-se e constrangem-se. Baseado nesse pressuposto, Thompson expõe uma concepção de cultura não como um todo ultraconsensual, mas como “arena de elementos conflitivos”, na qual há trocas entre dominantes e subordinados. Em sua análise das relações entre gentry e plebeus, salienta que as culturas não se autodefinem, nem são independentes de influências externas, mas constituídas de processos de disputas, concessões e resistências. Sujeitos, baseados em suas experiências prévias, agem conforme o que consideram ser princípios legítimos para orientar suas práticas. Thompson escreve: Os pobres podiam se dispor a conceder sua deferência à gentry, mas apenas por um preço, que era substancial. E a deferência era freqüentemente desprovida de qualquer ilusão: a partir de baixo, podia ser vista em parte como auto-preservação necessária, em parte com extração calculada do que podia ser conseguido. Visto dessa maneira, os pobres impunham aos ricos alguns dos deveres e funções do paternalismo, assim como a deferência lhes era por sua vez imposta. Ambos os lados estavam aprisionados num campo de força comum (THOMPSON, 1998, p.78).
Através dessa abordagem de Thompson, construo outra forma de problematizar relações entre técnicos e usuários de programas de assistência social. Sobretudo porque enquanto aponta para uma interdependência entre essas posições, possibilita perceber as particularidades com que os sujeitos situados numa posição subalterna percebem e agem no mundo. Em conseqüência, também, a noção de “campo de força” torna-se fundamental para a compreensão de paradoxos e tensões que constituem as relações entre técnicos e usuários; em especial porque enfatizam as pressões que os sujeitos exercem entre si, ao mesmo tempo que apontam para aspectos comuns entre eles e suas divergências, ainda que relativamente encobertas.
Encontros e desencontros Através da exposição de algumas situações presenciadas durante o trabalho de campo, pretendo salientar aspectos que revelem os encontros e os desencontros entre técnicos e usuários do programa municipal de assistência social, bem como o modo como estes atuam a fim de garantir que o programa atenda seus objetivos. Acompanhando o programa NASF, ao longo de um ano e em situações distintas, pude observar que técnicos e usuários gestavam frustrações e acusações mútuas. No entanto, uma análise mais detida sobre essas acusações revelava que não se tratava Antropolítica
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de algo pelo qual se pudesse responsabilizar isoladamente os agentes. Eram formuladas como resultado da relação estabelecida entre técnicos e usuários, agentes atuando para que o programa funcionasse de acordo com o que compreendiam como questão.5 Inicialmente, técnicos e usuários compartilhavam de uma mesma preocupação: as dificuldades vivenciadas por crianças e jovens. Também concordavam que a instituição, na qual uns trabalhavam e outros buscavam recursos, deveria e poderia auxiliar na superação dessas dificuldades. A “zona de consenso” encontrava seus limites quando se ultrapassava esses dois pontos. O ingresso das famílias no programa efetivava-se a partir de uma avaliação realizada pelos técnicos, através de entrevistas individuais, com membros das famílias e visitas domiciliares, nas quais iriam identificar a presença de crianças e adolescentes em situação de risco, indicada pelas práticas de mendicância, situação de rua, uso de drogas, maus tratos, entre outros. A seleção era realizada entre as pessoas encaminhadas por outras instituições: conselho tutelar, escolas, postos de saúde ou pela demanda direta das que se desejavam beneficiárias dos recursos disponíveis. Os relatos dos técnicos sobre o processo de seleção e a avaliação do andamento do trabalho indicavam inquietações e questionamentos. Enfatizavam uma decisão baseada em critérios técnicos, que consistia na identificação de crianças e adolescentes em situação de risco, e também na avaliação de que os sujeitos beneficiavam-se das atividades propostas pelo programa. Entretanto, diante dos casos que chegavam ao conhecimento desses experts de tais julgamentos e a escassez de recursos para o programa, sentiam-se pressionados a fazer escolhas difíceis. Nas reuniões entre coordenadores do programa e técnicos, constantemente retornava a discussão sobre critérios de ingresso, renovação ou encerramento da participação de usuários. Em geral, a maior polêmica girava em torno da condição de pobreza dos atendidos ou dos que estavam aguardando vaga. Havia um entendimento entre os técnicos de que os problemas familiares não eram decorrentes exclusivamente da situação de pobreza, tendo em vista que outras famílias, nas mesmas condições econômicas, não apresentavam os mesmos problemas; ou esses podiam ocorrer também em outros segmentos sociais (abuso sexual, uso de drogas). Também reforçavam a idéia de que não se tratava de um programa de renda mínima, logo a pobreza não poderia ser critério de ingresso. No entanto, na avaliação dos casos, a pobreza era registrada e enfatizada pelos técnicos: ora como causa, ora como contexto e indício de outras violações. Na tensão pela administração da transferência de Antropolítica
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escassos recursos e necessidade de selecionar pessoas, os técnicos diziam ter de se centrar em situações consideradas mais graves. Nas palavras de uma técnica: nós trabalhamos com o pior do pior.6 Tanto no material escrito quanto nos relatos dos técnicos, destacavase uma visão negativa da população atendida, que, se por uma parte, garantia seu ingresso no programa, por outra parte, gerava tensões, mormente quando os problemas mantinham-se apesar da adesão ao programa. Nesse caso, a avaliação era de que os usuários não correspondiam ao que era esperado: estruturar a família, elaborar um projeto de vida, segundo as concepções dos agentes estatais. Os motivos arrolados para a manutenção dos problemas eram diversos e, inclusive, um mesmo técnico podia apresentar argumentos contraditórios: ou eram pessoas que precisavam de intervenções das áreas médicas, acomodação ou estavam viciadas em ganhar coisas. Em que pese a diversidade de motivos, todos eram atribuídos aos usuários, que, por faltas morais ou de saúde, não conseguiam superar os problemas. Para as usuárias que disputavam entre si as restritas vagas disponíveis, tratava-se de narrar cada uma sua história, acentuando inúmeras dificuldades, de modo a sensibilizar os técnicos. Isso envolvia um processo de aprendizagem, conquistado nos percursos feitos por outras instituições, nas trocas de informações entre vizinhas e parentes. Manter-se vinculada ao programa também era algo que exigia muito das usuárias: deviam seguir expondo suas dificuldades e sua boa vontade para superá-las. A observação dos grupos de mútua ajuda revelava as tensões veladas nas relações entre os técnicos e as usuárias, bem como as diferentes compreensões sobre o que era visto como problema e sua forma de superação. Nos documentos oficiais e nos relatos das técnicas, apresentavase uma visão de que o grupo deveria ser um espaço reflexivo. Por tal convivência, as mulheres poderiam repensar as relações estabelecidas com seus familiares e desenvolver práticas de proteção em relação aos filhos. As trocas de experiências entre elas representavam o principal princípio de metodologia adotada. Narrando sobre sua atuação junto às mulheres, as técnicas salientavam a importância de manter uma relação de horizontalidade, de não julgamento e de trabalhar com as pessoas e não para ou por elas. Contudo, a marca dos técnicos estava na própria organização do tempo dos encontros, para a qual transpunha-se a linguagem de outras reuniões: primeiro, informes, nos quais instruíam sobre questões administrativas (data de pagamento da bolsa e sua renovação), também anunciavam a existência de vagas para cursos profissionalizantes ou atividades diversas. Antropolítica
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Esse era o momento de registrar as ausências dos participantes do grupo e anunciar as suas justificativas, quando haviam sido apresentadas com antecedência. Depois, era feita a solicitação de que as usuárias fizessem relatos da situação familiar ou de algum outro problema que estava sendo vivenciado. Em alguns encontros, havia realização de dinâmicas previamente planejadas pelas técnicas, com a intenção de abordar um tema específico. Por fim, os encaminhamentos, que incluíam as indicações de locais a ser procurados, marcação de atendimentos individuais, entre outros. Quando as usuárias eram estimuladas pelas técnicas a falar sobre a contribuição que a convivência no grupo estava tendo em suas vidas, elas pareciam reforçar os objetivos institucionais. Diziam que se sentiam aliviadas por ter com quem conversar; ressaltavam sentirem-se apoiadas para enfrentar as dificuldades. No entanto, em outras situações, mostravamse menos entusiastas com essa participação, vista como obrigação para manter o recebimento da bolsa. Durante as observações das convivências em grupos, notou-se que os depoimentos eram dirigidos especialmente para as técnicas e menos para as outras usuárias do programa. As ouvintes, em geral, não esboçavam reações ao relato, permanecendo em silêncio, ao menos que fossem indagadas diretamente pelas técnicas. Este comportamento destoa do observado em outras situações e também da habilidade de fazer narrativas (por exemplo, fofocas) que envolvem intensamente a platéia (Fonseca, 1995). Essa diferença na postura das mulheres (de fora e do interior do grupo) pode ser percebida quando as pesquisadoras, em momentos diferentes, não reconheceram no interior da instituição uma das mulheres a quem tinham sido apresentadas numa visita. Naquela ocasião, ela era expansiva, gestos largos, voz alta. No grupo, tinha ombros caídos, olhar no chão, voz fraca, gestos lentos. Quando as mulheres estavam relatando alguma situação no grupo, demonstravam tristeza, fazendo uma exposição minuciosa dos problemas e sofrimentos vivenciados. Os relatos eram acompanhados da apresentação de documentos que objetivam mostrar que cumpriram o estabelecido (uma visita ao psiquiatra etc.) ou ao menos haviam tentado. Uma das mulheres apresenta o extrato de transferência bancária de 60 reais para custear as necessidades de sua filha que passara a residir com a avó, no interior do Estado, como forma de afastá-la das drogas. Para as mulheres, tratava-se de um espaço de prestar contas do uso do dinheiro da bolsa e do cumprimento dos encaminhamentos sugeridos pelas técnicas. Essas informações eram registradas por estas para compor os relatórios de Antropolítica
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andamento dos casos. Ainda que as técnicas reforçassem a horizontalidade da relação, é sabido que lhes cabe a função do monitoramento dos recursos, sendo sua responsabilidade avaliar se as pessoas deveriam manter-se vinculadas ao programa. Na economia de gestos, narrativas e interação, as mulheres mostravam tentativas de autopreservar a participação no programa, bem como não interferir na situação das colegas. Uma das situações presenciadas em campo torna visíveis as tentativas e os riscos de não seguir tal orientação. Anita estava sendo identificada pelas técnicas como não mobilizada para superar os problemas. É questionada sobre o estado de seus filhos. Ela responde que trabalha e não tem como controlá-los. E, para se defender, acrescenta: tem gente que diz que os filhos estão no colégio, mas não estão não. Diante disso, a técnica retoma o que considera serem os princípios do grupo: um espaço de trocas de experiência, regido por confiança e transparência; não se admitiriam acusações veladas. Outra mulher reage e diz que cada mãe está aqui preocupada em resolver o problema do seu filho... ela que tem que colocar o problema... se falar sobre a outra terá que comprar briga. O que é reforçado por outra que acrescenta: A lei do grupo é a mesma lá de fora: a lei do alcagüete. Ou seja, entregar um vizinho pode trazer severas repercussões e as mulheres sabem disso, independente do que a técnica imagine que elas tenham combinado. É necessário fazer duas ressalvas quanto a essa situação. Primeiro, as concepções diferenciadas das técnicas e das mulheres foram explicitadas pela tensão: tanto pelo possível desligamento de Anita, por não estar cumprindo as exigências do programa, quanto pelo receio despertado nas outras mulheres de que se desencadeasse um processo de delação. Com isso, sinalizo que sob discursos de valorização dos grupos, supostamente de mútua ajuda, mascaravam-se relações de poder e resistência das mulheres. As técnicas, ainda que envoltas na tentativa de propor espaços de reflexão e de companheirismo, possibilitavam manter ou não alguém no programa. Poder reconhecido pelas mulheres que eram cuidadosas naquilo que era revelado de si e do outro. Salienta-se que havia um saber compartilhado pelas mulheres sobre o que podia ser ou não dito, baseado nas experiências acumuladas de busca de recursos em outras instituições e também de princípios que orientam as relações fora do âmbito institucional. Havia “leis”, ainda que não escritas, que nem precisavam ter sido enunciadas de forma tão explícita, mas que regiam suas ações e reforçavam cumplicidades e previam sanções aos “infratores”. Antropolítica
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Assim, o que era percebido pelas técnicas como sendo passividade, privação lingüística, cultural ou afetiva, podia ser compreendido como reconhecimento pelas mulheres de que a manutenção no programa significava manter a posição de concordância com os preceitos institucionais e também respeito às regras que regiam as relações com sua vizinhança. Cabe aqui a segunda ressalva: a recusa das mulheres em abordar os problemas vivenciados pelas colegas não deve ser interpretada como uma situação drástica de isolamento, visto que, fora do espaço institucional, são mantidas relações de cumplicidade com os problemas das pessoas de seu círculo social. Isto se evidenciou no comentário de uma das mulheres no debate anterior: após enfatizar que não falaria no grupo sobre as outras mulheres, afirma que se encontrasse na rua o filho de Marina – colega de grupo e, principalmente, amiga desde a infância e vizinha – usando drogas, ela o xingaria e depois contaria a amiga sobre o filho. Reforça que espera o mesmo da amiga, o que a outra prontamente concorda. A análise de Simmel (1999) sobre o segredo auxilia na compreensão das relações que se constituem através dos ocultamentos, como esses feitos pelas mulheres. Esse autor distingue os conteúdos morais e valorativos, que costumam ser associados aos segredos, das relações sociais que são constituídas através destes.7 Assim, manter um segredo ou ocultar uma informação implica cooperação e confiança, mas também envolve a formação das distâncias sociais, das exclusões. Salienta ainda que saber silenciar é produto e objeto de processos educativos nos quais as sociedades se reproduzem, envoltas em princípios morais. Desse modo, considero que o ocultamento de informações indicava tanto os desacordos implícitos das usuárias em relação às propostas dos técnicos, quanto suas estratégias para garantir o recebimento dos recursos. Também revela as relações de cooperação e confiança que se constituíam entre as usuárias, ainda que não tivessem se reunido e deliberado que algumas práticas não seriam ditas. Também exprime o resultado de um processo de aprendizagem mais amplo quanto às interações possíveis em sociedade. Aprendem que para contar com o apoio ou auxílio é importante saber contar sua história de modo a ressaltar suas dificuldades. Em seus relatos, ficava-se sabendo que elas mantinham contatos com diversas instituições filantrópicas, não governamentais, religiosas, através das quais recebiam de forma mais ou menos sistemática roupas, alimentos, móveis. Os estudos de Neves (1998) sobre a constituição do campo institucional da filantropia, em Niterói, corroboram essa hipótese, ao apresentarem a complexidade dos processos de classificação Antropolítica
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institucional dos “pobres merecedores” e das diferentes formas com que os demandantes interagem nesse processo, isto é, pela incorporação das regras e dos princípios institucionais ou pelas estratégias para arregimentar recursos.8 Seguindo as pistas sugeridas por Simmel, ao destacar que a ocultação também indica a constituição de fronteiras e distâncias entre indivíduos, apresento outras situações que revelam o quanto as concepções dos técnicos e das mulheres eram diferenciadas. Nesses termos, estão abertas pistas para se pensar o que era considerado problema e suas formas de superação. Como já foi dito, os técnicos consideravam que os problemas familiares não poderiam ser reduzidos apenas às condições econômicas das famílias. Assim, a tentativa dos técnicos era estimular uma reflexão sobre a qualidade das relações estabelecidas entre pais e filhos, por supor que havia uma falha no papel protetor dos pais em relação aos jovens. Seus discursos podiam ser inseridos em um ideário psicologizado.9 As usuárias não se mostravam sensibilizadas por esses discursos. Por exemplo: nos casos dos jovens considerados dependentes químicos, as mães pareciam apostar menos nos grupos de apoio e valorizar outras atividades que pudessem concorrer com a sedução exercida pelas más companhias e pelas drogas. Em geral, mostravam-se mais animadas com a possibilidade de os filhos largarem as drogas, quando começaram a participar de cultos evangélicos, dos quais nem sempre elas próprias participavam; pela freqüência a cursos profissionalizantes; algum emprego e até mesmo uma nova relação amorosa. Apresento a seguir o relato de duas mulheres acerca do que consideravam formas de evitar ou superar os problemas vivenciados pelos jovens. Algumas dessas práticas valorizadas como forma de encaminhar os filhos na vida nem eram reveladas para as técnicas, porque as mulheres sabiam que não contariam com a sua aprovação. Enquanto aguardávamos o início do grupo de mútua ajuda, Dona Olívia me chama para conversar em um lugar mais afastado. Sorridente, conta que seu filho de 12 anos está trabalhando como ajudante em uma serralheria. Enfatiza que com isso ele pegará gosto pelo trabalho e talvez evite as drogas, ao contrário de seu neto (motivo pelo qual foi integrada ao programa). Após relatar que eles combinaram que o primeiro salário dele seria dedicado à compra de um walkman e depois para auxiliar no pagamento das despesas da casa, ela pede que eu não conte às técnicas, pois considerariam errada sua atitude. Porém, justifica-se dizendo que sua intenção é ocupá-lo para que ele não fique pela rua exposto às más companhias. Dessa forma, trabalho aparece como prática valorizada traAntropolítica
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dicionalmente, forma de desenvolver responsabilidade e moral. Além disso, deve-se levar em conta que o estímulo ao trabalho pode ser visto como forma de superar os conflitos decorrentes do desejo de consumo que os pais não podem garantir aos filhos (ZALUAR, 1994). Também foi longe dos “ouvidos” dos técnicos, em uma visita à casa de Dona Geraci, que soube o que ela imaginava ser uma possível solução dos problemas de um de seus filhos. Essa família havia sido incluída no programa porque de seus cinco filhos, três estavam em situação de rua e/ou eram usuários de drogas. Ao longo do ano, ela havia relatado várias tentativas de manter os filhos em casa, envolvendo-os em atividades que ocupassem o seu tempo, inviabilizando o convívio com os amigos da rua ou com os outros usuários de drogas da vizinhança. Em uma tarde em sua casa, Geraci conta animadamente que seu filho Diogo de 14 anos parece que vai se endireitar agora: ele casou. Relata que a mãe de sua nora, que tem 13 anos, veio até sua casa e disse que eles deveriam casar porque estão juntos desde que a menina tem 10 anos – relação que Geraci desconhecia. Geraci concordou, bem como o jovem casal. Enfatiza que a relação com essa moça o tem ajudado a comprometer-se com o curso de jardinagem que está fazendo para ter uma profissão; e estimulado para não envolvimento com drogas. Em outra tarde, com alguns vizinhos e parentes reunidos no pátio da casa, Geraci faz um comentário aparentemente solto: todo o casal tem que ter um filho. Ela age de forma completamente diferente com o filho que está sendo considerado casado e com o outro que até a união do jovem casal era seu parceiro de drogas e de estadas na rua. Enquanto o que mantém o uso de drogas é ostensiva e constantemente mandado para o interior da casa, o jovem casal é convidado a participar da roda de chimarrão e a conversar com os demais adultos no pátio. Estes casos salientam as práticas valorizadas pelas usuárias do programa enquanto estratégias para incutir responsabilidades nos jovens que, como as técnicas, consideram estar agindo de forma inadequada. A valorização do trabalho, do estabelecimento de uniões conjugais e do primeiro filho como elementos importantes para constituição e reconhecimento como adulto têm sido descritos também por outros estudos realizados junto à população de baixa renda.10 Espera-se que constituir família e ter um trabalho sirvam como ritos de passagem para a vida adulta. Quanto ao trabalho, salienta-se que sua valorização está articulada à possibilidade de prover a família, ainda que seja algo mais ideal do que realizável. Em suma, observa-se que as mulheres percebem que as técnicas detêm o poder de selecioná-las e mantê-las no programa. Assim, devem agir de Antropolítica
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forma a sensibilizá-las quanto às suas dificuldades e a seus empenhos na superação dos problemas, bem como evitam expor determinadas práticas ou idéias que supõem não serem aceitas por elas. Além disso, as usuárias faziam críticas às técnicas quando estas não estavam presentes. Em geral, enfatizavam que elas estariam sendo ludibriadas por outras mulheres que se diziam mais necessitadas do que eram e que não seriam dedicadas aos filhos como queriam fazer crer.
Algumas ponderações Certamente as “soluções” encontradas por Dona Olívia e por Dona Geraci não seriam aprovadas pelas técnicas. Há inúmeras campanhas e programas específicos implementados pela Prefeitura e outros órgãos de “erradicação do trabalho infantil” e de “prevenção à gravidez precoce”. Mas como nos lembra Darnton (1986), ao analisar a narrativa sobre o massacre dos gatos, é justamente pelo estranhamento causado por uma prática, pela incapacidade de entender algo, que temos o indício das distâncias estabelecidas entre as pessoas e a possibilidade de perceber outros sentidos atribuídos às práticas.11 As situações apresentadas anteriormente evidenciavam constrangimentos institucionais e sociais que colocam-se tanto para os técnicos quanto para as usuárias. Ambos precisavam adequar-se às limitações institucionais (áreas de intervenção prioritária, recursos disponíveis), aos modos como os sujeitos exerciam seus papéis de técnicos e de usuários. Os modos de ação eram constituídos tendo como referência concepções específicas de família, do que eram considerados problemas e as formas de superação das dificuldades. Eles estavam embasados em diferentes experiências sociais constituídas em outros espaços (formação profissional, relações familiares e de vizinhança, entre outros). Sob um contrato formal firmado entre a instituição, através de seus técnicos, e as usuárias, estabeleciam-se outros contratos implícitos, até mais atuantes, como se percebe na explicitação da lei do alcagüete. Lei que ao mesmo tempo revela o compartilhamento de princípios entre as mulheres, pela possibilidade de que algumas práticas não fossem reveladas para as técnicas, mas que também controlava as mulheres, podendo ser usada como forma de exclusão. No retorno exigido pela apresentação dos resultados da pesquisa para a instituição e nas situações em que fui chamada para apresentar os resultados da pesquisa, percebia estar envolta pelos conflitos implícitos e explícitos inerentes a essas relações. Certamente o que me causava Antropolítica
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maiores questionamentos éticos era o modo de expor aquilo a que venho referindo como ocultamentos, conflitos e desacordos. Aos poucos me dei conta de que isso não era uma revelação muito surpreendente.12 No trabalho, os técnicos acabavam tendo acesso às tentativas de se ocultar informações, seja porque faziam visitas domiciliares, seja porque outros agentes institucionais contavam algo ou até por insinuações de outras usuárias ou das que queriam participar do programa e aguardavam vaga. Do ponto de vista analítico, minha argumentação consistia em apontar que não se podia analisar essas ações de forma isolada ou moralizante, mas considera os dilemas postos pelo próprio papel atribuído à assistência social em nossa sociedade. Tentava romper com as leituras fáceis que reduziam tais conflitos à incompetência dos funcionários ou às múltiplas privações dos usuários. Tratava-se de desmoralizar a idéia de ocultamento, assim como sugere Simmel. No entanto, permanecia a dúvida de como deveria interpretar essas práticas que, na época, eram referenciadas como “descompassos” e “desencontros”. Em que medida podem ser interpretadas como práticas de resistência descritas por Thompson e Scott? Quais as implicações da idéia de resistência? Scott, ao estudar em uma aldeia da Malásia, destaca a importância de se analisar as resistências cotidianas dos camponeses às ações da elite local. Aponta a importância de distinguir os discursos públicos dos camponeses, que em geral expressam deferência, daqueles discursos proferidos distante das elites, no qual revelam críticas e desprezos. Revela a existência das “armas dos fracos”, título da obra, que seriam dissimulação, ignorância fingida, falsa complacência, furtos, calúnia, sabotagens, entre outros. Essa resistência ocorria de forma oculta, individualizada, não premeditada, evitando uma confrontação direta com os poderosos. Embora não fosse organizada formalmente ou com lideranças, dependia de redes de solidariedade e cumplicidade das pessoas que vivem sob as mesmas condições. Isso implica na constituição de uma ética na resistência, fazendo com que algumas práticas fossem consideradas legítimas ou não, e os sujeitos que não se adequassem a ela podiam ser condenados a um relativo isolamento social. Scott ressalta ainda que, com essas práticas, não há um desafio explícito ao poder, mas considera que essas resistências cotidianas limitam a ação dos poderosos e podem vir a constituir formas alternativas de ação. Assim, indica que não há determinação das formas de pensar e agir dos sujeitos em posição subalterna pelas categorias e valores dos dominantes. Analisando a obra de Scott, Monsma (2000, p. 101) afirma que Antropolítica
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143 aqueles que vêem a hegemonia das elites nas idéias das classes populares, segundo Scott, geralmente só enxergam a face pública das relações de dominação. Quando interagem com os poderosos, os pobres representam estrategicamente a subordinação para se proteger e para conseguir benefícios, mas não devemos tomar essas representações como expressões dos pensamentos e dos sentimentos internos dos subalternos.
Também Thompson aborda as práticas de resistência e a idéia de hegemonia. Salienta que, ao mesmo tempo que o povo sofria pressões para “reformar” seu modo de vida, conforme as “normas vindas de cima”, ele também resistia. Porém, paradoxalmente, a cultura popular plebéia do século XVIII era rebelde e deferente. Resistia a inovações que lhes pareciam ser espoliadoras de direitos tradicionais. Nos motins da fome, ao exigirem a cobrança do “preço justo”, agiam segundo o que supunham que as autoridades deveriam fazer. Assim, não se tratava de uma resistência que estivesse propondo formas alternativas políticas, não estavam desafiando o poder político da gentry. As ações da multidão encerravam um papel legitimador da gentry, tanto ao ser platéia para o teatro aristocrático e também ao reivindicarem os costumes tradicionais. Com isso, Thompson reconhece a produção de uma hegemonia cultural; entretanto, salienta que tal hegemonia não acarreta que os sujeitos entendam nos mesmos termos as práticas e as relações estabelecidas.13 Tais colocações oferecem um caminho interpretativo para os conflitos implícitos das relações entre técnicos e usuários. Imbuídos da tentativa de constituir um programa de assistência que não reproduzisse as críticas recorrentes a esse tipo de ação, como autoritária e paliativa, a equipe técnica buscava subsídios teóricos e elaboração de metodologias que promovessem um engajamento ativo dos usuários para a superação dos problemas, através da prática reflexiva do seu papel junto à família. Isso torna-se visível pela ênfase dada ao caráter educativo do programa, revelado nas atividades desenvolvidas junto aos grupos de mútua ajuda. Contudo, tais princípios explicitados pelos técnicos não podem minimizar o reconhecimento de que a posição assumida por eles, decorrente da organização institucional, atribui-lhes as funções de seleção, monitoramento, avaliação e desligamento dos possíveis usuários; e também que os supostos critérios técnicos utilizados para identificação das situações de risco e de suas formas de superação estão baseados em princípios normativos e concepções culturais acerca da família, dos papéis dos adultos junto a crianças e jovens.
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Apesar da propalada horizontalidade e transparência tão esperadas pelas técnicas – como princípios que orientam os sujeitos para participação no programa, a despeito da postura de aprovação pública ao programa e à sua metodologia afirmada pelas usuárias –, os conflitos revelaram a assimetria de poder entre técnicos e usuários. Ainda que sem um enfrentamento direto, nas situações em que estavam com as técnicas, muito pelo contrário, as usuárias buscavam mostrar-se em conformidade com as regras colocadas, agiam de modo a manter-se vinculadas ao programa, projeção que podia incluir um ocultamento de certas práticas e a acentuação de outras. Assim, o exercício do poder não se dá de forma unilateral, tem seus limites contidos pela ação das pessoas em posição subalterna. De algum modo, as frustrações anunciadas pelas técnicas revelavam isso: apesar de seus esforços, as mulheres não estavam implicadas (da forma que esperavam) para a superação dos problemas. Além disso, salienta-se que diferentes sentidos estavam sendo atribuídos ao programa e aos problemas que buscavam solucionar. Se para as técnicas, elas estavam ali porque não exerciam de forma adequada seus papéis de mães, para estas, estar ali era mais uma comprovação de dedicação aos filhos, tendo em vista que estavam fazendo isso para garantir-lhes melhores condições de vida. Posso ter dado a impressão de que apenas o recebimento da bolsa interessava às usuárias ou que essa era a única contribuição do programa, mas isso não seria adequado. Também era um espaço que possibilitava solicitar ou ter informações sobre outros recursos dos quais poderiam dispor para garantir subsídios necessários para sua família –, como medicamentos, cursos profissionalizantes, atividades recreativas, entre outros. No diálogo com as mulheres atendidas, salientam-se outras contribuições que a inserção ao programa tinha-lhes trazido, ainda que parte dessas não fosse esperada pelas técnicas. Algumas mulheres valorizavam o fato de terem requererido outros recursos assistenciais, aos quais elas ou seus filhos tinham direito, mas desconheciam, como o Benefício de Prestação Continuidada (BPC). Também terem tido acesso à realização de testes de paternidade, que eram encaminhados pelas técnicas para garantir o direito à pensão dos filhos e mulheres. Além disso, o ingresso de dinheiro que, embora soubessem não seria sistemático, era forma de encerrar boatos sobre sua fidelidade. São dignas de registro, as diversas trocas que ocorriam entre as mulheres, que, se eram contidas no espaço formal do grupo de mútua ajuda, fluíam nos momentos de espera da atividade grupal ou após sua finalização. Nesses momentos, observava-se que circulavam roupas, alimentos, receitas, informações e experiências. Antropolítica
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Ou seja, essas práticas podem indicar outros sentidos que estavam sendo associados à participação no programa municipal de assistência social. Deve-se salientar que esses outros sentidos – associados ao vínculo com o programa, as estratégias usadas para garantir a continuidade do recebimento dos recursos e a resistência ao discurso técnico –, ao ocultarem informações, comporem narrativas que sensibilizassem as técnicas, não colocavam em questão a sua condição social ou sua inserção de forma subalterna e estigmatizante. Nesse sentido, Thompson também contribui para a compreensão de que a prática de resistência não coloca em questão a própria dominação, ainda que esta não seja exercida de forma unilateral ou mecânica. Penso que é importante refletir sobre os riscos que Monsma (2000) salienta no trabalho de Scott, desde que se assuma uma “noção voluntarista demais da ação dos subordinados”, que estaria implicada na ênfase na “manipulação”, enquanto cálculos conscientes orientando a resistência. Escreve Monsma: “Mesmo quando orientada por uma transcrição escondida claramente contestatória, a resistência cotidiana pode reforçar a estrutura de dominação ao mesmo tempo em que ameniza a condição do subordinado” (p. 106-7). Monsma cita ainda o estudo de Genovese sobre escravos americanos, no qual revela que a “resistência cotidiana dos escravos tendia a reforçar o poder dos senhores, ao mesmo tempo que trazia ganhos reais para os escravos”. Assim, se por um lado parte conquistavam a permissão de algumas práticas que lhes garantiam melhoras na qualidade de vida – cultivar hortas, descansar ou celebrar –, de outro lado, aumentava a dependência dos senhores e reforçava a ideologia do paternalismo. Ou seja, Monsma e Genovese estão chamando a atenção para as ambigüidades contidas nas práticas de resistência. Essa colocação aponta para outros meandros dessas relações. As mulheres agiam de forma a conter o que elas podiam perceber da autoridade exercida pelas técnicas, ou como forma de controlá-las a seu favor. No entanto, há dimensões do trabalho das técnicas, que também implicavam autoridade, a qual ou não percebiam ou não tinham como resistir. Por exemplo: não tinham domínio sobre as classificações que os técnicos faziam sobre elas e suas relações familiares, que podiam vir a ser utilizadas em outras instituições (Conselho Tutelar ou Juizado da Infância e da Adolescência), podendo vir a ter desdobramentos inesperados. Por um lado, a implementação de programas sociais pretende garantir a redistribuição de benefícios sociais, visando à diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico (cf. Höfling, 2001). Por outro, a implementação dá-se a partir de leituras Antropolítica
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estigmatizantes sobre a população a que se destinam os recursos. No entanto, os usuários não podem ser vistos como passivos, pois agiam ativamente para garantir a manutenção dos recursos, a partir do que consideravam ser suas responsabilidades e o que seria legítimo exigir das instituições de assistência. Por esse exercício reflexivo, penso ser possível compreender a complexidade das relações de dominação e de resistência, sobretudo por permitir perceber de forma mais consistente as interdependências que se estabelecem nessas relações, avessas às abordagens estanques e dicotômicas.
Abstract A set of social relations were established by the implementation of a social assistance program destined, by the municipality township of Porto Alegre, to families with children and teenagers considered to be in a risk situation. Through the analysis of these social relations, I intend to offer visibility to the principles that orientate practices and also emphasize aspects that reveal presuppositions of the social organization. According to studies that interpret social conflicts as intrinsic to social life, I analyze divergencies and accusations between the technical staff and the users of this program. With this, I am willing to think about power relations and resistance practices that, in this case, are comprised by actions of actors who assume different positions in this State institution. Keywords: state; social assistance; power.
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Notas 1
As ponderações elaboradas agora são releituras de uma pesquisa realizada acerca das relações entre técnicos e usuários do Programa de Apoio a Família (NASF), da Fundação de Assistência Social (FASC), órgão da Prefeitura de Porto Alegre, entre 1999 e 2000 (PAIM, 2000a, 2000b; PAIM; VIDOR, 1999). A pesquisa fez parte de uma assessoria realizada a essa instituição pelo Núcleo de Antropologia e Cidadania, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na época coordenado pela Professora Claudia Fonseca, e contou com a colaboração da bolsista de iniciação científica Ciana Vidor, financiada pelo CNPq.
2
Outras dimensões fundamentais para essa análise são salientadas por Neves (1998, 1999) que, ao considerar a constituição do campo institucional da filantropia, mostra concorrências e articulações entre instituições filantrópicas de diversas denominações religiosas, o Estado e os demandantes, variando os discursos e formas de atuação conforme o cenário político no qual se inserem. Também é preciso levar em consideração a influência de agências internacionais e nacionais que, através de financiamentos, induzem à elaboração de programas enfocando determinadas questões. Assim a FASC recebe recursos dos governos federal e municipal e tem projetos em parceira com BNDES, UNICEF, entre outros.
3
Os termos grifados em itálico foram utilizados pelos entrevistados.
4
Na época da pesquisa, o Programa era efetivado em dez centros municipais e cinco módulos, administrados pela Fundação de Assistência, e também em seis entidades não-governamentais conveniadas, localizadas em diversas áreas da cidade. Cada espaço dispunha de 40 vagas. As pessoas ficavam vinculadas ao programa por um período de seis meses, prorrogáveis por outros seis. A bolsa era de 150 reais, financiada por recursos públicos. Para rede conveniada, eram também repassados recursos públicos. Em alguns casos, o programa foi implementado por solicitações feitas no Orçamento Participativo.
5
Os termos “técnicos” e “usuários”, ainda que no plural, tendem a ser lidos enquanto componentes de grupos homogêneos. Contudo, não é esse meu propósito. Busco ressaltar as duas posições através de práticas recorrentes. A equipe técnica de cada Centro Comunitário ou Módulo era composta por um assistente social e um psicólogo; assim, tratava-se de profissionais com formações distintas, que podiam estar afiliados a abordagens teóricas e metodológicas também diferenciadas. Quanto às usuárias, podiam ser mães ou avós de crianças ou jovens identificados como em situação de risco. Em geral, tinham mais de 40 anos e moravam com filhos e netos em áreas de ocupação irregular. A maioria delas não tinha trabalhos regulares, mas desenvolvia algum tipo de atividade temporária, como faxina, venda de produtos artesanais, entre outros. Algumas mantinham relações conjugais e outras eram separadas.
6
Durante a pesquisa acompanhamos grupos que já estavam constituídos. Não tivemos como comparar as situações das pessoas que foram incluídas no programa com as daquelas que não foram. Intuíamos, na época, que talvez situações consideradas “muito problemáticas” não fossem incluídas, uma vez que também era avaliado se as pessoas se beneficiariam do programa na forma como ele estava organizado. Cabe salientar que parte dos técnicos reivindicava maior articulação da Fundação de Assistência com a Secretaria de Saúde, tendo em vista supor que certos problemas só poderiam ser resolvidos por intervenções de profissionais da área de saúde.
7
Simmel (1999) afirma que: “tal significação [do segredo para a estrutura da interação humana] não pode ser omitida, em vista do fato do segredo ser muitas vezes eticamente visto como negativo; pois o segredo é uma forma sociológica geral em situação de neutralidade, acima do valor e das funções dos seus conteúdos” (SIMMEL, 1999, p. 221). Segue em outro trecho: “Do contraponto entre esses dois interesses, o da ocultação e o da revelação, surgem nuanças e tonalidades de interação humana que o permeiam em sua inteireza. À luz do que foi dito anteriormente, toda relação humana é caracterizada, entre outras coisas, pela quantidade de segredo que nela se encontra e que a envolve” (SIMMEL, 1999, p. 223).
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149 Ver também Silva e Milito (1995) sobre as performances de exposição da miséria.
8
Ver Duarte e Ropa (1985), Lo Bianco (1981).
9
Ver Duarte (1986); Zaluar (1994); Fonseca, (1995); Sarti (1996), entre outros.
10
Nas palavras de Darnton: “A percepção dessa distância pode servir como ponto de partida para uma investigação, porque os antropólogos descobriram que as melhores vias de acesso, numa tentativa para penetrar uma cultura estranha podem ser aquelas em que ela aparece mais opaca. Quando se percebe que não se está entendendo alguma coisa – uma piada, um provérbio, uma cerimônia – particularmente significativa para os nativos, existe a possibilidade de se descobrir onde captar um sistema estranho de significação, a fim de decifrá-lo” (DARNTON, 1986, p. 106).
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Em função disso, adotei algumas “estratégias”: abordava determinadas questões que poderiam ser tomadas como “problemáticas” a partir de casos apresentados pela bibliografia antropológica, usando meus dados indiretamente. Privilegiava as situações em que técnicos e usuários estavam reunidos, assim aquela informação já estava disponível e a questão seria oferecer outra leitura. Também, inspirada nas inúmeras “dinâmicas” usadas pelos técnicos, propus improvisações teatrais que faziam com que eles revelassem suas visões sobre o cotidiano e explorava essas resistências a partir do que havia sido representado.
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Como escreve o autor: “O conceito de hegemonia é muito valioso, e sem ele não saberíamos compreender como as relações eram estruturadas. Mas embora essa hegemonia cultural possa definir os limites do que é possível, e inibir o crescimento de horizontes e expectativas alternativos, não há nada determinado ou automático nesse processo. Essa hegemonia só pode ser sustentada pelos governantes pelo exercício constante da habilidade, do teatro, da concessão. Em segundo lugar, essa hegemonia, até quando imposta com sucesso, não impõe uma visão abrangente da vida. Ao contrário, ela impõe antolhos que impedem a visão em certas direções, embora a deixem livre em outras. Pode coexistir (como aconteceu na Inglaterra do século XVIII) com uma cultura muito vigorosa e autônoma do povo, derivada de sua própria experiência e recursos. Essa cultura, que em muitos pontos pode ser resistente a toda forma de dominação externa, constitui uma ameaça sempre presente às descrições oficiais da realidade” (THOMPSON, 1998, p.78).
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Sidnei Peres*
no
A economia moral do extrativismo Médio Rio Negro: aviamento, alteridade e relações interétnicas na Amazônia.1
A única região do Brasil onde existem piaçabais nativos é a do Rio Negro, Amazonas, em áreas de vegetação do tipo campinarana (campina ou caatinga amazônica), caracterizada por florestas baixas, arbustivas que crescem em solos arenosos e inundáveis no período das chuvas. As fibras retiradas desta palmeira são comercializadas e utilizadas na confecção de vassouras. A extração da piaçava é organizada através do regime de aviamento, uma forma de recrutamento e exploração da força de trabalho baseada no cativeiro da dívida. Os fregueses são majoritariamente indígenas que migraram do Alto Rio Negro e foram compulsoriamente fixados nos piaçabais, vivendo completamente invisíveis diante dos poderes públicos locais, privados dos direitos civis mais elementares (liberdade de ir e vir). Neste artigo, pretendo abordar as condições materiais e simbólicas de reprodução social desta modalidade de monopólio e gestão de recursos naturais no espaço amazônico, que contrapõem fregueses indígenas e patrões não-indígenas enquanto personagens situados em pólos opostos na economia moral e no imaginário interétnico do extrativismo da piaçava. Palavras-chave: extrativismo; violência; relações interétnicas; índios; Amazônia.
* Doutor. Atua na área de Antropologia, nas linhas de indigenismo, etnodesenvolvimento, estudos amazônicos e relações interétnicas.
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Pluralismo étnico, migração indígena e extrativismo. A cidade de Barcelos cresceu nos últimos 25 anos, principalmente na última década. A migração de famílias indígenas, provenientes de comunidades e sítios de São Gabriel da Cachoeira, de Santa Isabel do Rio Negro e de Barcelos, contribuiu muito para este fenômeno.2 A população indígena do Rio Negro é extremamente móvel, desloca-se constantemente por vários motivos: visitas a parentes, conflitos internos nas comunidades, acusações de feitiçaria, escassez de recursos naturais (peixes ou terrenos agricultáveis), proximidade de escolas e hospitais, busca de emprego; enfim, buscando aquilo que consideram uma melhor condição de vida. Geralmente são os centros urbanos regionais (sedes dos municípios) os principais alvos destes deslocamentos. Entretanto, muitas famílias, antes de chegarem às cidades do Rio Negro, residiram em comunidades e sítios do interior. O município de Barcelos, localizado no estado do Amazonas, e a sua sede têm atraído uma parcela significativa da migração indígena no Rio Negro. O atrativo das demandas urbanas (hospitais e escolas) gera um aparente esvaziamento nas comunidades e sítios, aumentando o adensamento humano na sede municipal.3 Por outro lado, as relações sociais ordenadoras das comunidades e o uso econômico da terra favorecem um movimento de dispersão populacional ao longo do rio Negro e seus afluentes, formando novos assentamentos no interior. Essa dinâmica mantém uma circulação constante de indivíduos pela região, produzindo uma população flutuante nas comunidades. Outros fatores contribuem para isso: a escassez de áreas de terra firme, adequadas para moradia e uso agrícola, além das atividades sazonais de extrativismo. Por outro lado, muitas famílias que moram na cidade mantêm fortes laços econômicos e sociais com as comunidades e sítios, produzindo uma sólida conexão entre cidade e interior na vida de indígenas e ribeirinhos. As atividades sazonais do extrativismo também determinam a mobilidade inerente aos padrões de ocupação da terra e de assentamento vigentes na região, uma vez que deslocam das comunidades e da sede municipal os homens adultos ou famílias inteiras, para os locais onde estas atividades se desenvolvem. Os agentes intermediários entre o local de extração e o local de comercialização do produto são conhecidos na região como patrões. Eles organizam a empreitada trazendo os homens adultos das comunidades e sítios (e também da cidade de Barcelos) para os piaçabais — localidades onde se encontram as piaçabeiras —, onde são subordinados ao regime de aviamento. As colocações são feitas, principalmente, nas cabeceiras dos rios Aracá, Ereré, Padauirí, Preto e Curudurí, na margem Antropolítica
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esquerda do rio Negro.4 Existe um acordo tácito entre os patrões sobre a distribuição das áreas exploradas por cada um. Nas comunidades dos rios Padauiri e Ereré (Acuquaia, Acuacu, Tapera e Santa Rita) somente os homens adultos cortam piaçava, as mulheres e as crianças ficam nas comunidades cuidando da roça e dos afazeres domésticos. O ������������������������������������������������������������ patrão passa a cada dois ou três meses para pegar a piaçava. Em Tapera, no mesmo rio, os moradores ficam em média três meses consecutivos por ano no piaçabal, no inverno ou no verão, conforme a preferência do extrativista. A extração da piaçava ocorre durante todo o ano, porém existem vantagens e desvantagens no desempenho desta atividade no inverno (abril/setembro) e no verão (outubro/março). No inverno o acesso aos piaçabais é mais fácil porque os igarapés estão cheios e se pode chegar até eles em pequenas embarcações, enquanto no verão o caminho é por terra, perde-se mais tempo e o esforço é maior. Em compensação no verão chove menos, a produção é maior porque poucos dias são perdidos e o preço da piaçava é melhor porque a oferta é menor por causa da dificuldade de transportá-la. Os patrões pesam o produto nos barracões e descontam a tara — termo regional para designar a parte da produção não paga ao piaçabeiro. Esta é mais uma forma de exploração da força de trabalho nos piaçabais. A tara é um desconto de 10% no peso da piaçava se ela estiver seca. Caso esteja molhada, equivale a 20% pois estaria mais pesada.5 Se o freguês conseguir obter algum saldo — o que geralmente não acontece — está liberado. Caso continue endividado (sua produção é menor do que o valor das mercadorias consumidas) terá de trabalhar para aquele patrão e sanar o seu débito. O piaçabeiro não pode vender sua produção para nenhum outro patrão. Um patrão pode transferir um freguês seu para outro patrão caso este pague a dívida do extrativista ou se um patrão comprar do outro o direito de explorar seus piaçabais. Muitos patrões são comerciantes residentes na cidade de Barcelos ou parentes deles.6 A piaçava é comercializada em Barcelos, de onde segue para Manaus — capital do estado do Amazonas. Existem patrões menores que agenciam trabalhadores através do aviamento, leva-os aos locais de extração, transporta o produto até Barcelos, entregando-o a patrões maiores dos quais são fregueses. Esses patrões grandes ou comerciantes é que transportam a piaçava para Manaus, onde têm depósitos, e a vendem às indústrias de vassouras da capital do Amazonas. Alguns têm contato com compradores no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e outros estados do país; e outros até mesmo possuem depósitos nesses lugares.7
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Formação do sistema de aviamento no Médio Rio Negro No final do século XIX, com o ciclo da borracha, a elite social e política do Baixo Rio Negro vislumbrou uma possível recuperação econômica e demográfica na região. O auge desta nova frente de expansão econômica no Médio Rio Negro foi retardado porque ela se localizou algumas décadas atrás nos rios onde era maior a quantidade desta espécie de árvores: a Hevea brasiliensis. Os seringais no rio Negro nunca produziram tanto quanto os seringais de outros rios amazônicos (Xingu, Tapajós, Madeira, Juruá, Purus e Javari), mas foram capazes de redefinir as relações sociais, políticas, econômicas e culturais em toda a sua extensão e ofuscar todos os outros empreendimentos extrativistas, exceto a produção de lenha devido à intensificação da navegação fluvial. A composição populacional mudou drasticamente com a intensa imigração de nordestinos (cearenses, paraibanos etc.) que fugindo das secas calamitosas de 1877 e 1888, forneceram a mão-de-obra necessária — assim como os pequenos comerciantes — para suprir de matéria-prima as casas exportadoras e o capital financeiro inglês, ambos situados em Manaus, enfim ao mercado mundial da borracha e à incipiente indústria automobilística na Europa e nos Estados Unidos. Foi nesta época que se implantou a rede de aviamento ligando grandes lojas comerciais de Manaus, comerciantes dos pequenos núcleos urbanos no rio Negro, comerciantes menores situados nas embocaduras de afluentes e igarapés e extrativistas. As novas condições de transporte fluvial foram fundamentais para a organização social deste tipo especial de comércio em que bens industrializados circulam numa direção (sobem o rio Negro até as colocações no meio da mata) e os produtos da floresta circulam em outra direção (descem o rio Negro até o mercado nacional e/ou mundial), seguindo uma dupla trajetória traçada em escala vertical de posições de poder, autoridade e prestígio. As novas tecnologias de navegação (principalmente as máquinas de propulsão, os motores) aumentam a velocidade dos deslocamentos de cargas e passageiros. O controle do fluxo de mercadorias conecta a propriedade dos barcos ao comércio através de um leque variado de tipos de embarcações, possibilidades e saberes de navegação estreitamente ligados a posições no relacionamento entre patrões e fregueses. Peculiaridades ecológicas (distância dos locais de extração; nível dos rios, lagos e igarapés, ciclo produtivo) dos produtos da floresta (borracha e piaçava, por exemplo) traduzem-se em diferentes relações de aviamento e em funcionalidades diversas à propriedade e ao uso de embarcações distintas em capacidade de carga e velocidade de deslocamento. Antropolítica
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A casa de aviamento J. G. de Araújo estendeu por vários rios amazônicos uma ampla malha de interdependência comercial e política. No rio Negro foi a principal agenciadora de produção e circulação do látex, ao fornecer o volume de mercadorias imprescindível para o funcionamento do regime de aviamento. Muitas casas comerciais instalaram-se nos principais aglomerados urbanos do Baixo Rio Negro, introduzindo novos integrantes na elite local, assim como um novo estilo de vida no qual o consumo de bens conspícuos (batons, vinhos, xícaras de porcelana, pentes de marfim, tecidos, instrumentos musicais, fogos de artifício, espingardas e munições, etc.), vindos da capital (Manaus) dava um tom de refinamento e superioridade que marcava a distância social entre patrões e fregueses, entre civilização e atraso. Estes últimos, sim, ficavam restritos ao consumo de bens indispensáveis à sobrevivência na selva (sal, açúcar, tabaco, café, querosene etc.), adquiridos por altíssimos preços “pagos” em produtos, atolando o trabalhador em dívidas infindáveis. Caboclos e nordestinos não tinham mais tempo para fazer roças, pescar, caçar ou exercer outras atividades extrativas, devido à pesada carga da extração do látex regido pelo endividamento e subordinado às demandas do mercado internacional. Já os donos das casas comerciais de Airão, de Carvoeiro, de Moura, de Barcelos, de Tomar, de Moreira, de Santa Isabel e de Cucuí tentavam imitar a vida faustosa da oligarquia manauense. Todavia, a categoria dos patrões ou comerciantes não era homogênea, como atestam as diferenças no volume e no tipo de mercadorias solicitadas por eles às casas aviadoras de Manaus, na quantidade de borracha remetida, no grau de instrução e também no contingente de fregueses a eles submetidos (LEONARDI, 1999). Os intermediários locais espalhados pelos diversos rios estavam integrados em uma teia de relacionamentos personalistas, por onde circulavam obrigações e favores mútuos, cujo centro era a firma deste imigrante português. Estes compromissos de lealdade não eram apenas econômicos e J. G. Araújo controlava assim uma importante clientela política, arregimentando os coronéis de barranco em torno de seus objetivos eleitorais, que lhe permitiu estabelecer alianças com segmentos oligárquicos da província do Amazonas. Com a queda progressiva dos preços da borracha no mercado internacional, a partir de 1914, e a concorrência da produção gumífera do sudeste asiático, muitos nordestinos retornaram para suas terras de origem, despovoando os seringais do Baixo Rio Negro. A navegação fluvial retraiu-se consideravelmente e alternativas econômicas, antes abandonadas ou relegadas a um segundo plano, foram retomadas, como a extração de castanha e piaçava. A piaçava tornou-se o principal produto extrativo, estimulando o recrutamento de mão-de-obra nas Antropolítica
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comunidades indígenas do Alto Rio Negro para as colocações dos rios Aracá, Padauiri e Preto, devido à escassez de trabalhadores provocada pela decadência da extração da borracha (CARVALHO JR., 1994).8 O mecanismo do endividamento constituiu-se no pilar de todas as outras atividades extrativistas, inclusive a captura de peixes ornamentais que surgiu mais recentemente. No caso da extração da piaçava, devido a peculiaridades ecológicas desta atividade, o regime de aviamento foi ainda mais cruel. Diferentemente dos outros produtos, como a seringa e a castanha, cujos locais de extração localizam-se nas margens dos grandes rios, os piaçabais mais produtivos situam-se nas cabeceiras dos afluentes e igarapés muito distantes dos núcleos de povoamento (povoa dos e cidades). A extração da piaçava pode perdurar durante todo o ano enquanto outros produtos só podem ser coletados durante o verão quando os igapós estão secos (seringa) ou durante o inverno (castanha). Sendo assim, os fregueses podem retornar para seus locais de moradia quando termina o período de coleta da seringa e da castanha, enquanto os piaçabeiros permanecem nas colocações, cortando piaçava, onde estabelecem residência definitiva devido à precariedade das condições de acesso ao transporte fluvial. A dependência do patrão é muito maior como também a exploração e a violência vigentes nas relações de trabalho. O freguês aproveita a época das chuvas para transportar, em pequenas canoas, as piraíbas até o barracão, localizado na boca do igarapé, onde o patrão periodicamente chega para pegar o produto e suprir os trabalhadores com mercadorias.
Trajetórias indígenas e mudanças no sistema de aviamento. A maioria absoluta dos moradores indígenas da cidade de Barcelos é descendente (filhos ou netos) daqueles caboclos do Alto Rio Negro (rios Vaupés, Tiquié, Papuri, Içana, Aiari, Xié e alto rio Negro) que foram recrutados pelos patrões para trabalhar no extrativismo sob o regime de aviamento. Suas histórias de vida são marcadas por constantes deslocamentos em colocações, sítios, povoados e cidades do rio Negro, evidenciando uma memória biográfica cujas referências são as experiências vivenciadas no sistema extrativista regional. Antigos patrões subiam o rio Negro e traziam jovens solteiros ou casados, acompanhados ou não de suas famílias e parentes mais próximos, para trabalhar nos seringais, castanhais, piaçabais, sorvais, balatais, etc. Depois de trabalharem por um período, dependendo da “boa vontade” do patrão, retornavam para suas comunidades ou sítios no Alto Rio Negro, até serem recrutados novamente para outra empreitada. Nessas constantes idas e vindas, alguns Antropolítica
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estabeleceram-se definitivamente no Médio Rio Negro, para ficarem mais próximos dos locais de extração, na medida em que esta constituiu-se em principal (ou até exclusiva) atividade econômica de sustentação da família. Outros patrões impuseram coercitivamente a permanência definitiva do extrativista, através do mecanismo do endividamento, assim como o monopólio da comercialização dos produtos da floresta. Quando um patrão vendia as suas colocações a outro patrão, transferia também o seu contingente de fregueses a ele submetido. Os filhos herdavam as dívidas dos pais quando estes morriam, ou seja, os laços e compromissos de subordinação entre patrão e freguês atravessavam gerações. Um senhor, Baniwa, de 54 anos de idade, que nasceu na comunidade de Camissa, um pouco abaixo da boca do rio Xié, no Alto Rio Negro, quando tinha 15 anos de idade foi obrigado a assumir a dívida (vinte contos de réis) contraída pelo seu falecido pai com o patrão Adolfo Padrão. Foi então coletar sorva, seringa e castanha no rio Jurubaxi. Se o freguês não atendesse as expectativas do patrão, recebia veementes advertências e punições, inclusive castigos corporais. Uma senhora relatou que quando seu marido coletava seringa para Hamilton Ugarte foi grosseiramente advertido por ele (“ralhava com ele”) porque vendia sernambi aos regatões. Um patrão tomava as mercadorias mais apreciadas (rádio, motor etc) de um freguês e dava para outro. “O velho Marat tinha dez arigó só para dar surra, até de terçado, em quem não quisesse trabalhar” (morador Baniwa do bairro Aparecida). Joaquim Ugarte e o velho Marat não permitiam que seus fregueses retornassem aos seus locais de origem enquanto não pagassem suas dívidas. Pela lógica do aviamento era muito difícil adquirir um saldo, mas nem todos os patrões agiam da mesma maneira neste aspecto e nem todos os fregueses eram tratados igualmente. A mudança de residência para a cidade de Barcelos significou uma libertação do cativeiro da dívida, passando a ter como principais atividades econômicas de reprodução do grupo doméstico a agricultura e o artesanato, algumas vezes complementada com pequenos rendimentos provenientes de aposentarias adquiridas junto ao FUNRURAL ou à FUNAI. Estabeleceram suas roças nas margens da estrada que liga Barcelos ao rio Caurés ou em sítios, próximos à cidade onde estão situadas suas casas de farinha. Deslocam-se para os seus sítios em canoas movidas a remo ou por motores de popa de baixa potência (“rabetinhas” de 4, 5 ou 6hp). Os produtos agrícolas (mandioca, milho, cana, banana, abacaxi) são destinados predominantemente ao consumo doméstico, sendo algum excedente de farinha de mandioca comercializado para auferir Antropolítica
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alguma renda familiar. Uma alternativa de renda é a fabricação de peças artesanais (balaio, peneira, tupé, abano, tipiti...) que são vendidas para a Associação de Artesãos de Novo Airão (AANA), além da produção para uso doméstico. Mesmo nos casos em que não houve completa ruptura, as relações do freguês com o patrão se modificaram, tornando o extrativismo uma alternativa econômica adicional às outras fontes de sustentação acima mencionadas. Nesta situação, o espaço de manobra do trabalhador quanto às condições de entrada e saída do sistema amplia-se, inclusive considerando a possibilidade de denunciar privações e injustiças junto a instituições oficiais ou civis (Promotoria Pública, Fundação Nacional do Índio e Associação Indígena de Barcelos). Um morador Baré, do bairro da Aparecida (60 anos de idade), obteve a permissão do patrão Rui Macedo (genro de Adolfo Padrão), em 1985, para estabelecer uma roça no seu terreno situado no lugar chamado Tocandira, próximo da cidade de Barcelos, e como pagamento foi coletar sorva no rio Quiuini. Quando a sorva tornou-se um produto inviável comercialmente, o mesmo foi cortar piaçava no alto rio Aracá, pois contraíra uma dívida de R$ 1.500,00, juntamente com seu irmão, referente ao uso agrícola de uma parte do terreno do patrão. Ficou sete meses no rio Aracá cortando piaçava e conseguiu pagar a dívida e ainda tirar um saldo de R$ 276,00. Rui Macedo não lhe pagou, entretanto, dizendo-lhe que ele ainda estava em débito e não poderia sair do piaçabal sem pagar a conta. Esta é uma prática muito comum deste patrão: não paga o saldo aos seus fregueses. De todo modo, este senhor Baré, há dois anos, não corta mais piaçava e está pagando a sua roça com farinha, que o patrão fornece aos seus fregueses, que também cuidam do terreno de Rui Macedo. Merece destaque um outro caso no qual moradores indígenas da cidade recorrem ao sistema de aviamento para adquirir bens industrializados (eletrodomésticos) para a casa e um motor de popa para melhorar os meios de navegação fluvial da família. Um senhor Baniwa de 54 anos de idade, morador do bairro da Aparecida, não cortava piaçava há 30 anos quando, no inverno de 2000, resolveu ajudar seu filho, que tinha 20 anos de idade e nenhuma experiência no extrativismo, acompanhando-o ao piaçabal de Rui Macedo, no igarapé Cabeçudo, no rio Aracá, para lhe ensinar a trabalhar. A motivação do jovem para entrar no sistema de aviamento era a compra de um fogão para sua mãe. Chegando no piaçabal seguiram para o barracão do patrão. Ele despachou os outros fregueses antes.
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Na última viagem o patrão falou que não tinha mais gasolina e mandou que aquele senhor Baniwa e seu filho ficassem na “corda” (nome de uma colocação), pois havia muita piaçava lá. Só encontraram algumas piaçabeiras depois de dois dias de caminhada. Cortaram 240 kg de piaçava, nove pacotes em nove dias. Entregaram aquela pequena produção e aviaram-se mais um pouco. De lá foram para a “tristeza”, outra colocação. Trabalharam durante 15 dias e extraíram 44 pacotes, mas perderam nove cabeças (pacotes) quando a embarcação em que estavam afundou. Entregaram 35 pacotes ou 330 kg de piaçava somente. Resolveu trabalhar por mais algum tempo para comprar uma televisão. Seus dois filhos ficaram com ele e decidiram encomendar ao patrão um motor de popa Yamaha de 8hp. O patrão prometeu um motor melhor, de 15 hp. Subiram o igarapé no motor (15 hp) de Rui Macedo. Fizeram uma barraquinha. Cortaram 40 pacotes de piaçava. O chefe da equipe sugeriu que fossem para o igarapé Grande, onde tinha mais peixe para alimento. Produziram 60 pacotes (uma tonelada e 60 kg). O patrão chegou então para pegar a produção. Eles ficaram com o chefe. Subiram o igarapé mais um pouco, até chegarem noutra barraca, e encontraram “uma ponta de piaçava bonita”. Esta colocação foi uma descoberta deles, não pertencia ao patrão. Produziram mais 34 pacotes, completando 94 pacotes de piaçava. Desceram para o barracão e perguntaram a Rui Macedo pelo motor prometido por ele. Ao constatarem que o patrão não comprara o motor, aquele senhor Baniwa e seus dois filhos discutiram com Rui Macedo. Já tinham transcorrido seis meses desde que saíram de casa. Voltaram então para a cidade de Barcelos. O patrão ficou furioso quando soube que eles foram embora, disse que eles “ainda tinham conta [dívida] grande”. Em Barcelos, Rui Macedo apresentou o peso da produção destes fregueses, 90 pacotes ou 2.020 kg, todavia o montante verdadeiro da produção em seis meses foi cinco toneladas. O freguês Baniwa ficou devendo ainda R$ 400,00. O débito foi reduzido para R$ 350,00 devido a um saldo anterior ainda não pago a ele. Ao ser solicitado a entregar a “conta” (o registro escrito da contabilidade referente aos valores da piaçava entregue e das mercadorias adquiridas) Rui Macedo relutou, mas cedeu e reduziu a dívida para R$ 245,00. O seu “compadre indígena” queria mostrar a “conta” para seus filhos conferirem, pois eles sabiam ler e escrever. Fica claro aqui um dos motivos por que os indígenas valorizam tanto a instrução escolar dos seus filhos. A aquisição de um fogão deflagrou uma cadeia de ações e decisões que lançou novamente toda uma família nas relações sociais do endividamento, evidenciando algumas estratégias de manipulação dos sonhos de consumo dos extrativistas, acionadas Antropolítica
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pelo patrão para arregimentar um contingente de trabalhadores, inserindo-os esporadicamente no regime de aviamento. O idioma da afinidade (compadrio) utilizado nesta relação situa o patrão na posição liminar entre aliado e inimigo, próximo e distante, parente e estranho, protetor e predador. O vínculo de dependência pessoal entre patrão e freguês transcende o mero plano econômico do extrativismo, pressupõe a possibilidade de sua contínua reatualização sob modalidades distintas, inclusive no espaço social urbano. Para aqueles que residem na cidade, onde a escassez de emprego é crônica, o extrativismo é encarado como uma alternativa de “renda”, uma das poucas modalidades disponíveis de aquisição de bens industrializados destinados ao uso individual ou familiar. Um morador Desana, do bairro da Aparecida, 67 anos, casado com uma senhora Tukano, comprou os utensílios, móveis e eletrodomésticos da sua casa com a ajuda dos filhos que cortam piaçava no rio Aracá. Este senhor Desana nasceu em Taracuá, no rio Vaupés, Alto Rio Negro, e “baixou” para trabalhar na extração da piaçava. Morava numa ilha em frente à comunidade de Tapereira, onde ainda tem roça. É rezador e mora há oito anos na cidade de Barcelos. Ele e sua esposa são aposentados (FUNAI e FUNRURAL, respectivamente). Tem roça no igarapé Taiana, uma hora a remo no “inverno” e mais de duas horas no “verão”: “o sítio fica lá pro centro”. Um dos seus filhos leciona na escola da comunidade Baturité, outro trabalha na olaria em Barcelos e outros três filhos cortam piaçava. Eles moram no igarapé, no rio Aracá, próximo dos piaçabais. Vão à cidade uma vez por ano, permanecendo um mês em visita aos pais. Não cultivam nada, o patrão leva a farinha além de outros itens de alimentação, higiene, vestuário... que são aviados. Preferem a dependência do patrão no meio da floresta à dependência do dinheiro para viver na cidade. Neste caso, o extrativismo sob o sistema de aviamento é apreendido pelos fregueses como uma “opção de emprego”: não recebem salário nem há contrato formal de trabalho, a exploração da força de trabalho ainda é acentuada, mas há uma relativa autonomia e maior margem de negociação face aos laços tradicionais de sujeição ao patrão. A percepção desta diferença na economia moral e política do aviamento foi expressa em termos temporais, confrontando um passado de sujeição a um presente de autonomia: “Naquele tempo a gente só subia [retornava para o Alto Rio Negro] quando o patrão quisesse. Não é como hoje em dia, a gente já mais ou menos procura o caminho da gente do patrão”. No caso, cabe destacar alguns elementos, descritos anteriormente, que auxiliam no entendimento desta nova situação: jovens indígenas que Antropolítica
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ingressam voluntária e tardiamente no aviamento (não faz parte de suas experiências de vida desde o nascimento); possuem algum nível de escolarização (estudaram da 1ª à 4ª série nas escolas das comunidades, nem sempre concluindo esta fase elementar, sabem ler e escrever pelo menos), podendo conferir as notas apresentadas pelo patrão e controlar despesas. Possuem a residência dos pais ou de outros parentes na cidade como base de apoio, no caso de abandonarem as colocações, mesmo sem a permissão do patrão, e o conhecimento da existência de instituições para reclamar contra privações, violências e injustiças. Para mais um exemplo, menciono o caso de um morador Baniwa, do bairro da Aparecida, que abandonou a “empresa” de piaçava de Edson Marat no Malalahá (rio Araçá), considerado um dos patrões mais tiranos e agressivos da região, deixando toda a sua produção no barracão, aproveitando um convite da irmã para passear na cidade de Barcelos e estabelecendo-se definitivamente na casa dela. Edson Marat, quando soube que ele havia “baixado” com sua família sem sua autorização, mandou prendê-lo, juntamente com seu irmão. João Mineiro, funcionário do núcleo local da FUNAI, intercedeu a seu favor, advertindo o patrão que o “caboclo” não voltaria mais ao piaçabal porque ele não tinha mais dívida. É importante notar, contudo, que a dívida como forma de retenção compulsória da força de trabalho não foi questionada. De todo modo, este senhor Baniwa foi obrigado a retornar duas vezes — trabalhando durante um mês na primeira ocasião e por dois meses na segunda — com toda a família ao Malalahá para pagar a “conta” que o patrão alegava ainda existir. Desde que foi morar na cidade de Barcelos, há 10 anos, não corta mais piaçava, passando o sustento da família a depender principalmente da agricultura. No início, morou com a família na casa da irmã, a qual cedeu parte do seu terreno para ele construir sua casa. Tem uma roça no igarapé Taiana, onde sua irmã também tem roça; o terreno não tem dono. Utiliza o forno da irmã para fazer farinha e tapioca, cujo excedente vende. Fabrica peças de artesanato somente para o consumo doméstico. Antes de morar em Barcelos este senhor Baniwa não conhecia esta cidade nem Santa Isabel do Rio Negro, pois os fregueses eram proibidos de “passear” na cidade; se fizessem isso seriam presos. Ainda tem parentes, todos Baniwa, trabalhando para Edson Marat: “Eles têm medo do patrão, dele mandar prender ou dar surra neles. Ele manda pegar o cara pra ele bater, manda os fregueses dele mesmo” (morador Baniwa de Barcelos). Muitos extrativistas ainda vivem e trabalham nestas condições nos altos cursos dos rios e igarapés onde localizam-se as colocações de piaçava. Antropolítica
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Muitos não têm carteira de identidade, nem certidão de nascimento, apenas o título de eleitor. Em períodos de eleição “descem para Barcelos ou Santa Isabel”, junto com o patrão, para votar nos candidatos por ele indicados. Durante as entrevistas que eu fiz com moradores do bairro da Aparecida estes relataram-me um caso em que dois irmãos Baniwa foram presos porque “fugiram” das colocações de piaçava de Edson Marat. O patrão teve a colaboração de policiais militares e a anuência do delegado de Barcelos. Os dois fregueses adquiriram uma “rabetinha” (por R$ 160,00), trabalharam durante vários meses e não conseguiram quitar a dívida. Edson Marat confiscou a rabeta e mandou prender os dois. Depois de liberados foram obrigados a voltar ao piaçabal. Um deles estava doente e morreu no meio do caminho. É mais precária, portanto, a situação daqueles fregueses que moram em sítios próximos das colocações. Constituem reserva de mão-de-obra permanente e cativa do regime de aviamento por estreitos laços de dependência e subordinação ao patrão. A dedicação de famílias inteiras ao extrativismo é exclusiva e total; não há comunidades, nem geradores de energia elétrica, nem equipamentos de radiofonia, nem antenas parabólicas e tvs coletivas, nem escolas e nem sequer atendimento médico. Paradoxalmente o regime de aviamento é uma porta de entrada ao mundo civilizado (representado emblematicamente pela afluência de bens industrializados) que afasta os homens de outros símbolos próximos de modernidade e joga-os no universo perigoso da selva. Porém, forças potencialmente maléficas podem ser domesticadas, assim como a própria voracidade do patrão por produtos da floresta. É esta a perspectiva de autonomia do extrativista indígena.
O “patrão”, o “branco” e o “curupira”: o campo semântico das relações interétnicas e o regime de aviamento. No imaginário interétnico regional — compartilhado inclusive por não indígenas — mata, rios, lagos e igarapés são habitados por forças malfazejas (curupiras, espíritos dos mortos e encantados) e humanos dotados de poderes maravilhosos e ameaçadores (matis e maquiritares), tornando necessária uma série de cuidados especiais no manejo dos recursos “naturais” e no trato com os viventes. O homem precisa controlar os meios adequados de comunicação e relacionamento com estes seres potencialmente predadores, causadores de doenças e morte. As rezas e os benzimentos são mecanismos de proteção que servem para domesticar, amansar, entabular um diálogo com os senhores das matas, rios e lagos, a fim de transformar poderes ameaçadores em benefícios para os Antropolítica
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humanos. Entre as figuras de alteridade aquela que é mais diretamente vinculada ao extrativismo e, de diversas maneiras, à figura do patrão, é o curupira, mas cujo entendimento remete a um complexo mais amplo de agentes de predação e proteção, de forças potenciais de destruição e regeneração. Não é muito difícil em Barcelos coletar histórias sobre encontros com curupira, seja de alguém que presenciou pessoalmente os acontecimentos narrados ou porque ouviu de terceiros. Mesmo entre aqueles que nunca o viram engajados no extrativismo, inclusive muitos jovens, não há dúvidas sobre sua existência. O curupira é descrito como uma criatura extraordinária, inserida em uma economia simbólica da alteridade que o aproxima de outras figuras dotadas da capacidade de transitar entre formas corporais e universos cognitivos estranhos, como os animais, os pajés, as almas pecadoras e os brancos. Existem benzimentos para se proteger dele, cujo conhecimento não é monopólio dos pajés. O curupira não é propriamente um guardião da floresta — pelo menos não no sentido ambientalista vulgar, recorrente nos registros folclóricos —, ele zela por um patrimônio que não é um bem da humanidade, mas da supra-humanidade. A moderação, o controle de si, é um valor muito recorrente em várias situações sociais de contato com alteridades. Cabe sublinhar a ética do freguês que condena aqueles trabalhadores que não sabem “regular” o seu consumo, ampliando assim a dívida com o patrão. As leis que vigoram na mata não são “naturais”, são convencionadas e sancionadas por estes “espíritos encantados”. Existe todo um conjunto de condutas padronizadas, uma etiqueta, composta de ações e interdições, estratégias de aproximação ou de relativização da diferença para evitar os ataques destes seres. Em contraposição, o Outro é representado pelo excesso, pela incapacidade de conter sentimentos violentos, “ficar brabo”. Todo tipo de intervenção na floresta é um risco, pois devem-se respeitar certas regras e procedimentos estabelecidos para não ofender tais interlocutores invisíveis deixando-os “brabos”. Os extrativistas estabelecem relações muito delicadas, que requerem habilidades de relacionamento, com os donos dos produtos da floresta (curupiras e encantados) e de bens industrializados (os patrões), ícones locais da selvageria e da civilização, com os quais eles devem negociar. O curupira é um espírito canibal da floresta – tem raiva de outro grande predador (a onça) –, portador de diversas faces conforme as suas relações com outras figuras inerentes ao simbolismo da predação vigente no imaginário interétnico do Médio Rio Negro. Sua origem foi atribuída também a um ato imprudente e desmedido de alguém desprovido da Antropolítica
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capacidade de controlar a si mesmo: da ambição desmesurada de um homem de se tornar pajé. Ele cheirou paricá em excesso, enlouquecendo e correndo para dentro do mato.9 Um senhor Baniwa relatou uma história em que encontrou um curupira quando ainda era criança e já trabalhava na extração da borracha. O curupira estava cortando seringa e ficou com pena dele ao ver a exploração a que estava submetido sob as ordens do patrão. O freguês, portanto, fica sob a mira de duas perspectivas opostas: a do patrão querendo mais produtos e a dos curupiras e encantados, ciosos dos seus pertences. Numa versão tariana sobre a origem do curupira, ele era um encantado que não embarcou, perdendo a oportunidade de tornar-se humano, porque estava embriagado, quando passou a cobra-canoa na maloca onde morava. Por isso o curupira tem raiva de todos os humanos e prometeu devorar o primeiro que encontrasse, e todos os outros, desde então. Encontramos os mesmos elementos estruturais da formulação deste ícone de predação e alteridade em outras versões: canibalismo, descontrole, vingança, embriaguez, encantado, brancos, espíritos, animalidade. Outros encantados também perderam a oportunidade de entrar na cobra-canoa e de se transformarem em humanos. Por isso eles hoje têm raiva dos humanos, pois são descendentes dos encantados antigos que entraram na cobra-canoa quando foram criados os vários grupos indígenas do Rio Negro. Estes espíritos que não conseguiram tornar-se “gente” são descritos como tendo a aparência dos brancos. No mundo invisível, os encantados são pessoas que vêm para o mundo humano e aparecem sob a forma de animais. Quando os humanos vão para o mundo dos encantados são vistos como animais. Não existem povos (Tukano, Tariana, Arapaço, Desana, Piratapuia, etc) no mundo dos encantados, todos são brancos. Esta categoria remete (neste contexto) a uma identidade puramente negativa: é a eliminação de todas as fronteiras étnicas. O risco de tornar-se um branco, ter o seu espírito arrebatado pela “civilização”, é análogo a migrar definitivamente para o mundo dos encantados, perdendo suas referências étnicas, sua humanidade. Este reencantamento das “pessoas indígenas” está ligado aos estados de enfermidade. Os brancos são parentes dos encantados, por esta razão são mais facilmente curados pelos pajés: não existe raiva nem inveja neste relacionamento. Temos aqui a correspondência entre “indígenas” e “brancos” — os primeiros precisam de rezas para viver, de meios de defesa contra os ataques dos encantados — “corpo” e “alma”, “diversidade” e “universalidade”. As rezas são específicas para cada etnia e sua eficácia pode depender até do conhecimento do nome tribal do Antropolítica
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enfermo. As rezas (veículos da memória mítica e da memória histórica) constituem um meio de continuar o trabalho de transformação original (humanização), alimentando o espírito com as marcas distintivas da tradição para fortalecer um corpo vulnerável ao pathos da homogeneização e do caos. Um fundo comum civilizado (alteridade) sustenta as diversas possibilidades de ser indígena (identidade). Outra característica corporal do curupira que o aproxima dos brancos é a espingarda que ele carrega embutida no antebraço. A associação simbólica entre a arma de fogo e o homem branco é claramente expressa em uma versão do mito de origem dos povos rio negrinos, por mim registrada, de um morador Tukano, do bairro São Sebastião. O evento histórico da colonização adquire sentido ao ser inserido no registro mítico dos acontecimentos primordiais. A narrativa descreve a origem dos “brancos” no momento em que as tribos ou classes (termos locais) emergiram da cobra-canoa e transformaram-se em gente; antes eram peixes. A categoria étnica que personifica a “civilização” é indelevelmente carimbada com o estereótipo regional de “selvageria”, “inferioridade” e “infra-humanidade”: os Maku. O poder e a agressividade do homem branco, que o aproximam da figura do curupira, são compreendidos a partir de um ato original de coragem, audácia e ambição de um ser inferior que inaugurou o estado posterior de desordem das relações interétnicas no Rio Negro. A civilização emergiu da indianidade e ambas se contrapõem à sociabilidade do “caboclo ribeirinho” (Tukano, Desana, Arapaço...). Vemos o entrelaçamento entre as consciências histórica e mítica, nas quais dominação, violência e ganância dos colonizadores já estavam prefigurados no ato inaugural de inversão da ordem primordial do mundo. Duas figuras de alteridade são aproximadas para tecer um laço de continuidade entre história e mito, atribuindo sentido à experiência traumática da chegada (ou retorno, conforme a concepção mítica) dos brancos ao Rio Negro. Por outro lado, o “Alto” [Rio Negro] aparece como o lugar onde esta ordem original, tomando a distribuição de terras entre as “tribos” como parâmetro, teria sido preservada. A categoria de “índio” é situacional e relacional. Quando serve para estabelecer sinais diacríticos diante de outros “tipos de gente”, de outras “raças”, dos “índios verdadeiros”, daqueles que vivem no mato e moram em aldeias e malocas e eram originalmente “empregados”, “servos”, como os Maku, a categoria de “caboclo” é acionada para singularizar-se no cenário interétnico local. O “povoado” expressa o modo de ser “caboclo” — que não exclui referências étnicas precisas, como “caboclo Tukano, Desana, Antropolítica
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Arapaço...” — que os distingue dos “índios”, mas também dos “brancos”. Estes estão classificados pelo descontrole das suas ações e emoções, que os torna violentos e os faz perseguir os seus objetivos sem consideração e respeito pelos outros. Característica que os distancia da humanidade, sem excluí-los completamente dela.10 O regime de aviamento é um amplo circuito de trocas e dádivas, de dívidas e generosidades, de favores e obrigações, de coerções e negociações, frustrações e esperanças, predação e proteção, exploração e doação, desprezo e consideração, que se estrutura em relações hierárquicas fundadas em duas categorias básicas: o patrão e o freguês. Não estou atenuando a assimetria violência/exploração (sua explícita gramática da predação) do sistema de aviamento, porém, se não olharmos para a simetria proteção/doação como o seu reverso (sua gramática da dádiva subjacente), não se percebe a perspectiva dual em operação, que não se trata apenas de mercado e interesses, mas de reciprocidade e alianças. É um comércio que se sustenta em princípios alheios à lógica do mercado, em laços e compromissos duradouros e pessoais, numa economia moral que define o “bom” e o “mau” patrão assim como o “bom” e o “mau” freguês. O endividamento permanente – assim como o crédito e o risco envolvido nele – não pode ser entendido num código puramente econômico, pois é símbolo e base de manutenção de uma aliança entre o freguês laborioso e o patrão generoso. O “mau patrão”, portanto, é aquele que “nunca deixa acabar a conta, nunca faz saldo com ele”, “berra muito com o freguês”, como também aquele que fornece poucas mercadorias, “sempre deixa ficar sem farinha, sabão, sal, sem tudo”. O “bom freguês” é aquele que produz muito e consome pouco, não é preguiçoso, também é aquele que respeita o monopólio comercial exercido pelo patrão. As expectativas das duas categorias básicas de agentes do regime de aviamento são antagônicas. O “mau patrão” rompe com um modelo de reciprocidade idealizado pelo freguês indígena em que ele seria o provedor de bens industrializados em abundância, mas ao mesmo tempo coerente com uma ética na qual o freguês deve retribuir com grandes quantidades de produtos da floresta. O patrão, ao enfatizar a unilateralidade da dívida, nega a possibilidade de transformar o aviamento em um ciclo de prestações e contraprestações (baseado nos atos ao mesmo tempo voluntários e obrigatórios de dar, receber e retribuir), pois a dívida como um elemento imanente da dádiva agonística (que garante sua continuidade) torna as posições de credor e devedor constantemente intercambiáveis entre os parceiros envolvidos. O saldo neste modelo não retira o freguês da relação, mas Antropolítica
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ao contrário o insere nela segundo a lógica arriscada da dádiva, sem as garantias oferecidas pela lógica do interesse e da obrigação. O caráter paradoxal do regime de aviamento — no qual laços de lealdade e dependência pessoal são selados no idioma impessoal das trocas comerciais e as interações entre as pessoas estão embebidas no fluxo de objetos — pode ser compreendido melhor nesta tensão estrutural entre lógicas distintas de ação que coexistem: a instrumental, a normativa e a comunicativa. A ambigüidade da figura do patrão — que oscila entre o aliado/inimigo, parente/estranho, família/mercado, proteção/predação, doação/ exploração, generosidade/terror, comunhão/contrato — e o complexo simbolismo expresso nas representações dos atores envolvidos não podem ser adequadamente interpretados senão como uma modalidade muito especial de (i)mobilização da força de trabalho, na qual a economia política capitalista articula-se com a economia moral do aviamento, no bojo da qual há negociações e disputas sobre as fronteiras do humano (TAUSSIG, 1993).
Considerações finais O extrativismo da piaçava no Rio Negro é uma atividade econômica desenvolvida sob uma forma de exploração e recrutamento da força de trabalho. Nela, a coerção e a violência constituem elementos fundamentais. Buscamos compreender as relações sociais que se estabelecem entre “patrões” e “fregueses”, situando-as em seu contexto histórico e cultural. O regime de aviamento constituiu-se no processo de mudanças na composição das elites locais e regionais, inseridas na cadeia produtiva e comercial que ligava os seringais no meio da floresta ao mercado mundial, conectando índios e ribeirinhos amazônicos a um poderoso ícone da modernidade capitalista no início do século XX: o automóvel. Sobreviveu à decadência do ciclo da borracha — e do impulso econômico, urbano e civilizatório por ele gerado —, transformando-se e expandindo-se para outros setores extrativistas até chegar ao século XXI. As condições ecológicas e tecnológicas de extração de distintos produtos da floresta conferem feições diferenciadas aos modos de subordinação coercitiva do trabalho. O rendimento dos patrões não se pauta na concentração fundiária, no âmbito de um mercado de terras plenamente regularizado ou não, mas no controle do acesso e do manejo dos recursos da floresta, através do domínio sobre o fluxo de mercadorias, da propriedade de equipamentos de navegação fluvial; e, conseqüentemente, da capacidade de criar, conservar e ampliar uma rede permanente de Antropolítica
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dependência pessoal. Através da trajetória de vida dos extrativistas indígenas, vimos como foram se ampliando e diversificando os espaços de negociação e manipulação por parte dos “fregueses” — que sempre existiram mesmo nos contextos de extrema imposição do cativeiro da dívida — concomitantemente às mudanças de componentes relevantes na operacionalização do regime. Nas brechas constitutivas de qualquer esquema de dominação, que possibilita a irredutível agência dos subalternos, emergem as contradições e tensões entre os projetos de subordinação dos patrões e os de autonomia dos fregueses. Sendo assim, o aviamento foi abordado como uma realidade complexa, dinâmica e multifacetada, demonstrando que pode estar em crise, mas ainda é um ingrediente fundamental na configuração das desigualdades sociais, das relações de poder e do cenário interétnico no Rio Negro. Neste sentido, abordamos a inserção de vários grupos indígenas nesta modalidade de mobilização compulsória da força de trabalho, enfocando particularmente a extração de piaçava, como um fator relevante para a compreensão das relações interétnicas no Baixo Rio Negro. As migrações indígenas, motivadas pela busca de autonomia, envolveram amplos segmentos dos diversos povos indígenas na economia moral e política do endividamento. Por outro lado, é o campo semântico das relações interétnicas, ponto de interseção entre memória, identidade e história, que permite a compreensão da singularidade histórica e cultural do regime de aviamento no Noroeste Amazônico.
Abstract The single region of Brazil where exist natives piaçabais is the Rio Negro, Amazonas, in areas of the campinarana type (or Amazonian campina or caatinga), characterized for low forest, shrubbery that grow in arenaceous and subject to flooding ground in the period of rains. The removed fibers of this palm are commercialized and used in the confection of brooms. The extraction of piaçava is organized through the system of aviamento; one form of recruitment and exploration of the force of work based on the slavery for debt. The workers are mainly indigenous who migrated of the Alto Rio Negro and compulsorily had been fixed in the piaçabais, living in complete invisibility ahead of locals public powers and deprived of elementary civil rights (as the freedom of movement). In this article I intend to approach the material and symbolic conditions of social reproduction of this modality of monopoly and management of natural resources in the Amazonian space, which oppose indigenous workers and not-indigenous bosses while personages situated in contrasting positions in the moral economy and in the interethnic imaginary of the extractives activities of piaçava. Antropolítica
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Keywords: extractives activities; violence; interethnic relations; indigenous; Amazônia.
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Notas 1
Este artigo baseia-se em parte da minha tese de doutorado, apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas, em agosto de 2003, cujo título é “Cultura, Política e Identidade na Amazônia: o associativismo indígena no Baixo Rio Negro”. Uma versão preliminar foi apresentada no GT “Violência, Conflitos e Práticas Culturais”, no 30º Encontro da ANPOCS, 24 a 28/10/06.
2
Encontram-se residindo na cidade famílias pertencentes às seguintes etnias: Tukano, Baniwa, Baré, Desana, Piratapuia, Tariana, Arapaço, Cabarí, Yanomami, Canamar, Lanaua e Cubeu.
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As comunidades são unidades residenciais situadas fora das sedes municipais; a distâncias variadas, mas em geral longe dos núcleos urbanos. Possuem escola, posto de saúde, capela (católica ou evangélica), centro comunitário (chamado de sede), campo de futebol e voleibol. Já os sítios reúnem um pequeno número de famílias que têm acesso aos serviços de educação, religião e saúde das comunidades. Os habitantes das comunidades e sítios afiliam-se às seguintes etnias: Baré, Baniwa, Tucano, Piratapuia, Desana, Tariana, Arapaço, Tuyuca e Werequena.
4
Há ocorrência de piaçabais também nos rios Téia, Marié, Iá, Curicuriari (todos no Médio Rio Negro) e no rio Xié (no Alto Rio Negro). A única região do Brasil onde existem piaçabais nativos é no Rio Negro, em áreas de vegetação do tipo campinarana (ou campina ou caatinga amazônica), caracterizada por florestas baixas, arbustivas (variando entre seis e vinte metros) que crescem em solos arenosos e inundáveis no período das chuvas. Os outros dois tipos principais de vegetação no Rio Negro são: a floresta densa (ou de terra firme) e o igapó (ou área de refúgio) (CABALZAR FILHO; RICARDO, 1998). Segundo um ex-piaçabeiro, Baré, a fibra de piaçava cultivada na Bahia é de qualidade inferior, mais rígida, e é misturada à piaçava amazônica na fabricação das vassouras. A maior parte da produção nacional do produto é proveniente do nordeste. As fibras de piaçava constituíram matéria-prima para a confecção de cordas para as embarcações que trafegavam na bacia amazônica desde o período colonial. Nos anos 1960 foram substituídas pelas cordas fabricadas com nylon. Na fabricação de vassouras, a piaçava continua sendo utilizada apesar da crescente utilização, a partir dos anos 1950 e 1960, de materiais sintéticos nesta indústria. As palmeiras novas têm até 10 anos e são mais rentáveis comercialmente. Depois de explorada é necessário um intervalo de 10 anos para as fibras atingirem um tamanho economicamente interessante. Nem sempre existe a espera desse tempo para sua reutilização, apesar da produtividade ser menor. A extração da piaçava não elimina a planta-matriz, sendo assim uma atividade econômica sustentável. Porém, pode tornar-se predatória na medida em que não respeite o tempo de recuperação total da palmeira (MEIRA, 1993).
5
Segundo um ex-piaçabeiro, Baré, o patrão aumenta ainda mais o seu ganho vendendo a piaçava molhada porque assim é mais fácil de penteá-la. Além do mais não lhe é cobrada a tara.
6
Na cidade predominam os estabelecimentos dedicados ao comércio de estivas (alimentos e produtos de higiene) e de bebidas alcoólicas (bares); mercadorias estratégicas para a reprodução do regime de aviamento.
7
Há patrões que só mandam a piaçava para Manaus se não encontrarem comprador em Barcelos, pois as despesas com o frete do recreio (embarcação de grande porte que transporta cargas e passageiros entre Manaus e as cidades do Rio Negro) desestimulam tal iniciativa, mesmo que vendam o produto mais caro. Enviar para o Rio de Janeiro também não vale a pena, as despesas são maiores; além do frete do recreio tem a estiva e o frete do caminhão. Este investimento só é economicamente viável se envolver grandes quantidades de piaçava (80 a 100 toneladas). Negocia-se geralmente de 15 a 20 toneladas.
8
Nos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, a extração da seringa readquiriu um novo fôlego com a chegada dos “soldados da borracha” oriundos do Rio de Janeiro e do Nordeste. Eduardo Galvão constatou, em meados do século XX, a preferência dos fregueses pela extração da piaçava por ser mais rentável, apesar do alto preço das mercadorias aviadas pelos patrões. Mencionou também a vigência de um regime cruel de exploração da força de trabalho sublinhando os castigos corporais impostos aos fregueses, como a utilização da chibata (GALVÃO, 1959).
9
Numa versão tariana registrada no livro do Instituto Socioambiental, o curupira, junto com outros espíritos da floresta (tamanduá, onça e diabo-abacate), originou-se da desobediência das ordens do Trovão que proibiu que eles tivessem relações sexuais depois de cheirar paricá. Deveriam passar por um período de abstinência depois do qual o próprio Trovão providenciaria mulheres para eles casarem. Ou seja, deixaram seus impulsos, desejos e afetos dominarem as suas vontades, a capacidade humana de agir normativamente, transformando-os em bestas, bichos do mato. O curupira, a onça e o diabo-abacate foram condenados a viver na mata, enquanto o tamanduá foi condenado a viver nos buracos (BARBOSA; GARCIA, 2000). Para os Hohodene, autocontrole e autonomia constituem elementos básicos na construção social da pessoa em contraposição à desordem e à morte atribuídas a personagens e cenários de alteridade (WRIGHT, 1996).
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Jadir de Morais Pessoa
Educação e ruralidaes: por um olhar pesquisante plural
Sob o patrocínio do estado militar, a construção de estradas, grandes projetos agropecuários e o uso de incentivos fiscais para a ocupação dos espaços livres geraram no Brasil, na década de 1970, intensa privatização das terras não-tituladas e grande alteração demográfica no sentido campo-cidade. Nos anos 1980 intensificaram-se as lutas pela posse da terra e a constituição de assentamentos rurais. Já na década de 1990, o desenvolvimento do turismo dirigiu-se para as regiões rurais, provocando o surgimento de atividades não-agrícolas. Também na década de 1990 instituiu-se, com recursos do governo federal, o transporte escolar das regiões rurais para as sedes dos municípios. São fatores constitutivos da diversificação de formas de vida e de trabalho das populações rurais, em substituição ao rural agrícola homogêneo, o que é tratado neste artigo como ruralidades, termo que indica modos diferentes de identificação com o mundo rural, mesmo em realidades urbanas. O objetivo é propor que as pesquisas em educação se pautem por esta perspectiva polissêmica de compreensão do rural, dada a diversidade de constituição de identidades dos seus sujeitos em todo o país. Palavras-chave: ruralidades; educação escolar; populações rurais.
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Extensões da pergunta O lugar de onde surge e para onde se dirige esta pequena reflexão é o campo da pesquisa sobre atendimento escolar de populações rurais. Isso já significa dizer que abro mão de toda a fecundidade de idéias que poderiam brotar das lutas sociais, especialmente aquelas dos movimentos organizados em face da conquista de direitos relativos ao trabalho rural e à educação. Por falar em movimentos organizados, o que vem a seguir traz outra limitação: não poder me dedicar a refletir sobre a diversidade de saberes que emergem ou que são construídos quando os sujeitos individuais transformarem-se em um nós mobilizado, mobilizador, aprendente, ensinante (PESSOA, 2004). Também não poderei me estender para um campo que me é caro no momento: tomar as tradições e manifestações da cultura popular (religiosas ou da sociabilidade cotidiana), como momentos ou experiências coletivas de produção e transmissão de saberes (PESSOA, 2005). São lugares-saberes tão ricos e diversificados que, deixá-los de lado em uma reflexão sobre educação – em se tratando de populações rurais – tem um pouco de “cortar na própria carne”. Para melhor me situar, encurto drasticamente as extensões da pergunta motivadora desta reflexão. Reduzir suas extensões é empobrecer a pergunta, não fazê-lo é correr o risco da superficialidade. Eis o dilema, diante do qual a opção recaiu sobre a primeira alternativa. Ou seja, é sobre educação formal, educação escolar e correlatos, que se estará pensando neste artigo, com a pergunta sobre o tratamento que deve ser dado pela pesquisa ao atendimento escolar de populações rurais. Quando digo populações rurais, dois pequenos esclarecimentos precisam ser antecipados. Primeiro, não se estará pensando apenas em crianças e adolescentes, mas em adultos atingidos pela EJA (Educação de Jovens e Adultos). Segundo, não se estará pensando em rural como território, espaço geográfico, em oposição a urbano, pois existe um grande contingente de trabalhadores rurais e filhos destes, que, por intermédio do transporte escolar ou por força do processo de migração interna, no caso de EJA, vem recebendo atendimento escolar no espaço urbano das pequenas, médias e grandes cidades brasileiras. Diferentemente do que acontece com a produção e a habitação, no âmbito da educação, o rural não tem mais fronteiras.
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Onde está o rural No final dos anos 1990, um grupo de professores e alunos da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás desenvolvia um trabalho de EJA no Assentamento Tijuqueiro em Morrinhos-GO, quando, em certo dia, em plena aula, fomos surpreendidos pela manifestação acintosa de alguns alunos que acabou tendo o consentimento de toda a turma: “Não agüentamos mais fazer contas de leite”, disseram eles. Para nós, a melhor maneira de adequarmos o desenvolvimento das quatro operações matemáticas à realidade dos alunos era trabalhar com a produção, beneficiamento, consumo, comércio de leite. Não percebíamos que aquilo era uma superposição fatigante, uma vez que isso já era praticamente todo o cotidiano de trabalho daqueles destinatários de EJA. Tivemos, então, que reorientar o trabalho pedagógico, pois estávamos claramente diante da conclusão de que o rural estava mais em nossas cabeças do que na deles. O Tijuqueiro é um assentamento ladeado por duas rodovias pavimentadas e a 15 km da sede do município. Todas as atenções dos assentados – escoamento de seus produtos, compra do que não produzem, escolarização dos filhos, oportunidades de lazer – estavam voltadas para a cidade. Em suas expectativas, o “fazer contas” também deveria expressar essa realidade. Com aquele episódio vimo-nos em meio a um universo mais amplo de discursos, projetos e relatos de “lutas camponesas” elaboradas em espaços distantes daqueles de atuação dos trabalhadores rurais. Muitas vezes nem mesmo lhes é dada a possibilidade de fornecer a sua própria gramática. Nomes, definições e encaminhamentos são comumente decididos por pessoas e agências que não têm sensibilidade ou paciência para lidar com a diversidade de manifestações do rural e criam as suas próprias, mais simplificadas e supostamente mais lógicas ou politicamente mais corretas para falarem do rural. O sociólogo Octávio Ianni mostra de forma primorosa as fragilidades desse agir no lugar de, com o discurso de quem age em nome de. Nem sempre o camponês está pensando a “reforma agrária” que aparece nos programas, discursos e lutas dos partidos políticos, na maioria dos casos de base urbana. Pensa a posse e o uso da terra na qual vive ou vivia. Estranha quando o denominam “camponês”. Reconhece que é trabalhador rural, lavrador, sitiante, posseiro, colono, arrendatário, meeiro, parceiro etc. São os outros que dizem, falam, interpretam, criam, recriam ou mesmo transfiguram as reivindicações e lutas do camponês. Muitas vezes este não se reconhece no que dizem dele, ou Antropolítica
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174 fazem por ele, a partir de partidos políticos, agências governamentais, órgãos da imprensa, igrejas. (IANNI, 1988, p. 102)
Apesar de todos os dados oficiais tentando fazer do rural mais que uma “crônica de uma morte anunciada”, uma morte já acontecida, vou advogar no próximo item a existência ainda do rural, pelo menos em termos de habitação e de produção agrícola e não-agrícola. Ianni, um dos principais analistas dos fenômenos envolvendo o que ele preferia chamar de globalismo (em vez de globalização), no Brasil, diz, com certa tragicidade, que esse processo transfigura todo o modo de vida no campo –, aí compreendendo-se formas de organização do trabalho, da produção, dos padrões e ideais socioculturais. “Tudo o que é agrário dissolve-se no mercado...”, diz o autor (IANNI, 1997, p. 46), fazendo em seguida uma ressalva: É óbvio que tudo isso ocorre de modo irregular, fragmentário e contraditório. Inclusive são muitos os lugares em que esses processos não chegaram, chegaram apenas em parte, ou não afetaram maiormente o mundo agrário. Mas é inegável que a industrialização e a urbanização invadem progressivamente esse mundo, induzidas pelo desenvolvimento extensivo e intensivo do capitalismo pelos quatro cantos do mundo.
Há setores da agricultura, especialmente no âmbito dos pequenos produtores, que não são afetados ou o são de maneira fragmentária, porque, nos termos de Francisco de Oliveira (2003), a agricultura brasileira se assemelha ao ornitorrinco – o animal que tem bico, tem pêlo, amamenta, vive dentro d’água, vive sobre a terra. Onde ainda existem resíduos de agricultura de subsistência isso não quer dizer que o capitalismo não chegou e sim que a agricultura de subsistência contribui para a acumulação interna do capital (p. 128). Assim, pelo menos ancorados na velha tese do “desenvolvimento desigual e combinado”, todos nós temos muitas razões para dizer que ainda existem lugares que podem ser chamados de rural – “lugares em que esses processos ainda não chegaram”. Mas, em termos de socialização das novas gerações ou de ressocialização de populações já adultas, quer falemos de educação em sentido lato, quer no sentido de educação como atendimento escolar, parece já ser muito difícil falar em mundo rural. O advento da televisão, a aproximação entre o lugar de moradia e a cidade, através do surgimento de estradas e outras facilidades de locomoção, são fatores entre tantos outros, que tornam a cidade, qualquer que seja a sua extensão, o pólo catalisador de todas as atenções. O que é mais grave: mesmo que a superioridade do urbano sobre o rural seja uma herança Antropolítica
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da Revolução Industrial (PESSOA, 2006), esta ainda tem como corolário, recorrente e crescente, a imposição de valores, gostos artísticos, modelos de festividade etc. Talvez a educação seja mesmo a ação social em que mais possamos ver concretizada a “tragédia do desenvolvimento”, segundo a concepção literária de Goethe, em que a última e minúscula porção do mundo rural, constando apenas de uma pequena casa, uma igrejinha, um sino e um jardim de tílias, foi sumariamente destruída por “Mefisto e seus homens fortes”, a mando de Fausto (BERMAN, 1989, p. 66-68). A única diferença é que, como proponho no desenvolvimento deste ensaio, o casal de velhos não foi queimado junto com seu pequeno oásis em meio às dunas. Ou seja, em se tratando de atendimento escolar de populações rurais, temos de pensar também que Filemo e Báucia, e muitos “descendentes” seus, vivem nas pequenas, médias e grandes cidades brasileiras. Portanto, ver-se-á, a seguir, que o atendimento escolar de populações rurais não pode ser uma bandeira política territorializada, conduzindo a atenção das práticas para um espaço geográfico específico. Seguindo a conceituação dos geógrafos, a população escolar desterritorializada é, com toda certeza, muito mais numerosa que a população ainda territorializada.
Do rural às ruralidades No início da década de 1990, o antropólogo Klaas Woortmann constatava a dificuldade de se lidar com termos como camponês e campesinato, para ele, sempre muito associados à esfera econômica – terra e trabalho na terra como fatores de produção de mercadorias. Woortmann entende que o trabalhador rural vive a terra muito mais como algo pensado e representado numa perspectiva de valorações, como expressão de uma moralidade. Vem daí a sua preferência pelo termo campesinidade, uma qualidade presente em graus diferenciados, segundo os diferentes grupos sociais, independentemente do lugar em que se situam (WOORTMANN, 1990, p. 12-13). Eis o meu ponto de partida para falar do rural não como território, mas como contexto de significações que organizam e estruturam os modos de vida e trabalho dos sujeitos sociais, enquanto estão vivendo e trabalhando no meio rural, mesmo se esse rural é constantemente crivado pelos fatores atrativos do urbano. E, quando, por força de processos histórico-sociais, deslocam-se para espaços caracterizados como urbanos, essas significações tendem a acompanhar esses sujeitos sociais. Antropolítica
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Em termos teóricos, essas significações correspondem, numa primeira perspectiva, ao que o sociólogo Pierre Bourdieu, na sua teoria da prática, chama de habitus, um sistema de significações adquirido nas várias etapas de socialização dos indivíduos, mas que não é individual. O habitus é formado num contexto de relações constituídas em um campo social, o que significa dizer que tende a organizar da mesma forma o comportamento de todos os indivíduos socializados no mesmo contexto. Vejamos nas próprias palavras de Bourdieu, as principais características da sua definição de habitus: As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições materiais de existência características de uma condição de classe), que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações [...]. (BOURDIEU, 1983, p. 60-61) [...] sistema subjetivo mas não individual de estruturas interiorizadas, esquemas de percepção, de concepção e de ação, que são comuns a todos os membros do mesmo grupo ou da mesma classe e constituem a condição de toda objetivação e de toda percepção [...]. (BOURDIEU, 1983, p. 79).
A idéia de predisposição indica uma probabilidade tendencialmente conservadora. Ou seja, tanto em um contexto de grupos sociais territorialmente situados em um meio tipicamente rural, quanto em um meio tipicamente urbano, os costumes e valores estruturados nas primeiras etapas de socialização desses indivíduos e grupos tenderão a atuar de forma estruturante, organizando suas práticas e percepções. Não há como falar em atendimento escolar de populações rurais, pensando apenas nas hoje pouquíssimas escolas de educação básica ainda instaladas no meio rural. Numa segunda perspectiva, esse contexto de significações corresponde ao que a antropóloga Maria José Carneiro chama de ruralidade, sempre explicitando a sua diversidade, como na citação a seguir, em que relaciona esta diversidade com o pressuposto também diversificado do processo de transformação: [...] o “campo” não está passando por um processo único de transformação em toda a sua extensão. Se as medidas modernizadoras sobre Antropolítica
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177 a agricultura foram moldadas no padrão de produção (e de vida) urbano-industrial, seus efeitos sobre a população local e a maneira como esta reage a tais injunções não são, de modo algum, uniformes, assim como tais medidas não atingem com a mesma intensidade e proporções as diferentes categorias de produtores. Nesse sentido não se pode falar de ruralidade em geral; ela se expressa de formas diferentes em universos culturais, sociais e econômicos heterogêneos. (CARNEIRO, 1998, p. 53)
Esta complexidade de fatores urbanos e rurais presentes na constituição do conceito leva Carneiro a uma reflexão cara ao conhecimento antropológico: a idéia de cultura. Ancorando-se em Rambaud (1969), a autora entende que a idéia de ruralidade leva a uma perspectiva singular do conceito de cultura – nem rural nem urbana. Esse conjunto de reflexões nos leva a pensar a ruralidade como um processo dinâmico de constante reestruturação dos elementos da cultura local com base na incorporação de novos valores, hábitos e técnicas. Tal processo implica um movimento em dupla direção no qual identificamos, de um lado, a reapropriação de elementos da cultura local a partir de uma releitura possibilitada pela emergência de novos códigos e, no sentido inverso, a apropriação pela cultura urbana de bens culturais e naturais do mundo rural, produzindo uma situação que não se traduz necessariamente pela destruição da cultura local mas que, ao contrário, pode vir a contribuir para alimentar a sociabilidade e reforçar os vínculos com a localidade. Desse encontro, como observa Rambaud, nasce uma cultura singular que não é nem rural nem urbana, com espaços e tempos sociais distintos de uma e de outra. (p. 61-62)
E em termos histórico-sociais, temos de considerar com Raymond Williams (1989, p. 387), que “O campo e a cidade são realidades históricas em transformação tanto em si próprias quanto em suas inter-relações”. As transformações verificadas em um dos pólos, em uma dada época, são explicativas sem a respectiva localização nas “estruturas e dinamismos inclusivos”, nos dizeres de Florestan Fernandes (1976, p. 106) [...] os processos através dos quais se organizam e se transformam as formações rurais e urbanas – com suas funções econômicas, socio-culturais e políticas – são processos derivados e secundários. Eles contam com uma rede própria e específica de causas e efeitos. Mas nada explicam, se não forem observados e interpretados em termos de estruturas e dinamismos inclusivos, macrossociológicos, que condicionam e, inclusive, determinam os ritmos históricos do aparecimento dos processos comuAntropolítica
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178 nitários ou societários especificamente rurais ou urbanos, bem como os limites dentro dos quais eles chegam a desencadear os grandes processos histórico-sociais a que se ligam. (FERNANDES, 1976, p. 106).
Por outro lado, no âmbito das práticas políticas organizadas, os anseios ou possibilidades de melhoria das condições de vida e de trabalho, em um dos pólos, jamais terão efetividade se exercitadas em apenas um dos lados. Por isso, penso que quando se busca também compreender o que se passa em um dos pólos, que é o foco da pesquisa, compreender o rural ou o urbano, isoladamente, são dois problemas equivocados, o que resulta dizer que são dois falsos problemas. Ou seja, nesta perspectiva teórica, falar em desenvolvimento rural é, no mínimo, incorrer numa imprecisão conceitual. Portanto, buscar entender o lugar da educação em um dos pólos – o rural – ou refletir sobre os predicados do atendimento escolar de populações rurais, supõe, imprescindivelmente, tentar entender a inter-relação entre rural e urbano, no processo de desenvolvimento de toda a sociedade brasileira, desde a segunda metade do século passado. Nesse sentido, como suporte para o desenvolvimento deste raciocínio, parto de um conjunto de quatro premissas – fatores sócio-históricos – que guardam entre si um forte grau de imbricação. É em conseqüência desses mesmos fatores que poderemos falar em diversas ruralidades. Primeira revolução nas relações rural-urbano – conhecida como “revolução verde”. Um modelo de produção agrícola, copiado do modelo urbanoindustrial, de bases européia e norte-americana. No Brasil, verificou-se especialmente nas décadas de 1970 e 1980. Como era um “jogo” de grande envergadura do capital, foi necessário que os estados nacionais criassem a infra-estrutura necessária para seu êxito. E o Estado militar brasileiro o fez, especialmente através da expansão da malha rodoviária, de programas de crédito visando a empresarialização rural e do uso de incentivos fiscais que possibilitaram a “ocupação dos espaços vazios” pela concentração do capital. A década de 1970 foi marcada por uma massiva intervenção do Estado na agricultura, o que resultou numa intensiva privatização dos estoques ainda restantes de terras não-tituladas (PESSOA, 1999, p. 88). A propriedade da terra passou então a ser um fator importante na produção das mercadorias requisitadas pelo modelo de desenvolvimento adotado. Além disso, consolidou-se como importante reserva de valor no quadro das trocas econômicas próprias do modo de produção capitalista. Assim, a resistência familiar ou, no máximo, de pequenos grupos nas antigas posses, não encontrou força política suficiente para garantir a reprodução dos trabalhadores rurais. Por isso, Antropolítica
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esse processo tornou-se base para uma significativa alteração demográfica no sentido campo-cidade, envolvendo um contingente estimado em 30 milhões de brasileiros. O deslocamento do campo para a cidade, retomando o habitus de Bourdieu, não significa, entretanto, a anulação ou o abandono da identificação com o rural. Segunda revolução nas relações rural-urbano – a apropriação do rural pela sociedade urbano-industrial, impulsionada e alimentada especialmente pela expansão e desenvolvimento das atividades turísticas, da década de 1990 em diante. Esse fenômeno era praticamente desconhecido no meio rural no final dos anos 1980 (PESSOA, 1999), vindo a se consolidar apenas no decênio seguinte. Maria José Carneiro (1998, p. 56) trata desta questão num quadro analítico mais amplo, constatando a imbricação de dois fenômenos. O primeiro é o fenômeno da pluriatividade – “o espaço rural não se define mais exclusivamente pela atividade agrícola” –, diz a autora, acrescentando, com base em Graziano da Silva: Como já foi observado, é significativa a redução de pessoas ocupadas na agricultura, dado que se associa ao aumento do número de pessoas residentes no campo exercendo atividades não-agrícolas e ao aparecimento de uma camada relevante de pequenos agricultores que combinam a agricultura com outras fontes de rendimento.
O segundo fenômeno é a procura de formas de lazer no campo, por pessoas que moram na cidade. Entre os seus efeitos destacam-se a ampliação das possibilidades de trabalho para a população rural, até então dedicada quase exclusivamente à agricultura, e a maior aproximação e integração de sistemas culturais distintos. Novos valores sustentam a procura de proximidade com a natureza e com a vida no campo. (CARNEIRO, 1998, p. 56-57)
Com a conjunção desses dois fenômenos, Carneiro entende que o “campo”, uma categoria genérica, deixou de ser apenas um espaço de produção agrícola, passando a ser buscado também como espaço de vida, cada vez mais procurado por populações urbanas. Com isso enfatizouse ainda mais a integração entre os dois espaços, com “trocas cada vez mais intensas entre a sociedade urbano-industrial e as pequenas aldeias rurais” (p. 57). Ou, segundo Eli Napoleão de Lima (2005, p. 45), “Cai a lógica produtivista e vem à tona a da qualidade de vida”.
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Luta pela terra e constituição dos assentamentos rurais – dois marcos históricos devem ser lembrados. O primeiro é o surgimento das primeiras ocupações de terras em 1979, especialmente nos estados de São Paulo e do Paraná, que teve repercussão imediata, tanto nos fóruns de organização dos trabalhadores, como nas políticas do Estado. O III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, realizado em 1979, já sinalizava com a necessidade de se promover mobilizações e pressões, em vez de apenas solicitar do Estado o cumprimento do Estatuto da Terra, como ocorreu nos anteriores. O IV Congresso, de 1985, já trouxe entre seus temas de debate, explicitamente, “ocupações de terras” (PESSOA, 1999, p. 75-76). Do final dos anos 1970 a meados dos anos 1980, tem-se um período de disseminação das ocupações pelos estados, o que exigiu dos movimentos sociais uma organização própria para dar a direção política e organizativa das ocupações e da formação dos assentamentos rurais. Isso ocorreu nos anos 1984 e 1985, com a criação do Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –MST, uma vez que, segundo Leonilde Medeiros, a estrutura da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura–Contag, baseada na abrangente categoria “trabalhadores rurais”, diluía a especificidade da luta dos trabalhadores rurais sem terra (p. 100-101). O segundo marco histórico importante refere-se a uma alteração no comportamento do Estado, exatamente a partir desse crescimento organizativo e da pressão decorrente. Esta mudança de postura do Estado apareceu principalmente na edição do Plano Nacional de Reforma Agrária–PNRA, do governo Sarney, em 1986, e na Constituição de 1988, dando mais consistência à desapropriação com base na função social da propriedade. Os dois acontecimentos não significaram resultados concretos, pelo menos na proporção em que eram esperados, mas criaram um quadro institucional mais “palpável” para a fundamentação das reivindicações de desapropriação (PESSOA, 1999). A segunda e a terceira premissas têm uma incidência inversa nas condições demográficas brasileiras. Não na mesma escala da primeira, mas, juntas, são responsáveis por, pelo menos, uma desaceleração da alteração demográfica registrada anteriormente, no sentido rural-urbano. Uma parte da população aí implicada pode ser considerada como população que permanece no campo – a tradicional “fixação do homem no campo” – e outra parte retorna ao campo via assentamentos rurais e via pluriatividade. No caso dos assentamentos rurais, a relação com as condições demográficas ocorre em duas perspectivas, levando-se em conta, principalmente, Antropolítica
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os dados populacionais municipais. Quando um projeto de assentamento absorve predominantemente trabalhadores do próprio município em que foi instalado, ele está contribuindo para a manutenção das mesmas condições demográficas do município, evitando a emigração. Um projeto de assentamento contribui para uma possível alteração demográfica (a maior) apenas quando absorve predominantemente trabalhadores vindos “de fora” do município ou da região. O mesmo raciocínio vale para a relação entre população urbana e rural: toda vez que um projeto de assentamento absorve trabalhadores que já residiam no meio rural, mantém os índices de população rural; ao contrário, absorvendo trabalhadores vindos das cidades, ele participa da mudança da relação entre população urbana e rural, em favor da última (MEDEIROS; LEITE, 1998, p. 170). Os autores, Leonilde Medeiros e Sérgio Leite (p. 102), falam ainda de outro impacto dos assentamentos rurais sobre a cultura política local, de grande importância para se pensar também sobre a relação entre assentamentos e atendimento escolar de populações rurais. Novas formas de mediação política local e regional são constituídas, como explicam no parágrafo a seguir. Por meio dos assentamentos, em muitos locais se constitui uma dinâmica mais participativa do que a tradicionalmente existente nos municípios brasileiros: o simples fato da criação de uma associação inaugura uma prática política por vezes desconhecida regionalmente, o que nos permite indagar sobre a possibilidade de estarem ocorrendo alterações moleculares na cultura política local.
Transporte escolar de crianças e adolescentes – como rubrica do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério – Fundef, instituído em 1996. Esse recurso foi muito bem recebido pelas administrações municipais que, de uma só tacada, desvencilharam-se de três responsabilidades: duas poderiam representar um peso diretamente ligado à competência do município. Primeiro, não eram mais obrigados a manter em funcionamento as escolas rurais, algumas das quais, por força daqueles fenômenos socioeconômicos anteriormente expostos, com demanda constante em curva descendente; segundo, já que a ordem era levar “todo mundo” para a cidade, ainda ganharam “de bandeja”, o custeio dessa operação. Como se não bastasse, também receberam um benefício extra, que foi o abrigo de antigos “cabos eleitorais”, ainda não instalados, por causa da vigilância da Lei de Responsabilidade Fiscal, operando as linhas de transportes de alunos com kombis, caminhonetes, microônibus e ônibus; terceira responsaAntropolítica
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bilidade – na verdade, nunca assumida, mas que estava sempre indo e vindo nas reivindidações educacionais –, a demanda por um atendimento escolar efetivamente pensado e executado, a partir do modo de vida e dos anseios das populações rurais, incluindo-se a possibilidade de um calendário escolar próprio. Com isso, o artigo 28 da LDB, também de 1996, tornou-se absolutamente inócuo (PESSOA, 1997). Essa rubrica do Fundef foi uma verdadeira “benção federal”. Ou seja, não bastassem os efeitos do êxodo rural, o transporte escolar ampliou enormemente o contingente de crianças e adolescentes que passaram a receber atendimento escolar em nossas pequenas, médias e grandes cidades. E os sistemas de ensino (municipal e estadual) não querem nem saber dessa situação. É muito mais fácil pautarem-se no “aluno universal” (AZEVEDO; GOMES, 1991, p. 35). Resultado de tudo isso: se a educação escolar já era essencialmente urbana no tempo das “escolinhas rurais”, o que dizer agora, no pós-implantação do transporte escolar? Mas a pergunta mais pertinente sobre esta realidade, na presente reflexão, é quanto à caracterização das crianças e adolescentes do meio rural, escolarizadas nas cidades: será que elas se reconhecem na expressão “educação do campo” e nas práticas políticopedagógicas que a sustentam? E assim, confrontando-se esses quatro fatores históricos, é que consideramos: a pesquisa sobre o rural (mais especificamente, sobre o atendimento escolar de populações rurais) tem diante de si uma realidade profundamente marcada pela diversidade, pela polissemia. “Opondo-se ao rural agrícola homogêneo, a ruralidade torna-se o rural da diversidade”, diz ainda Eli Napoleão (LIMA, 2005, p. 45).
Fazeres e olhares No texto da antropóloga Maria José Carneiro, ainda podem ser feitas duas considerações importantes. Na primeira, para se entender a complexidade do termo ruralidade, há que se fazer um deslocamento, tirando o foco do espaço geográfico e colocando-o sobre os agentes sociais, onde quer que eles estejam. Vejamos como a autora expressa essa idéia. Orientar o foco de análise para os agentes sociais deste processo e não mais para um espaço geográfico reificado possiblita, por exemplo, que a distinção entre “cidade” e “aldeia” ou “urbano” e “rural” desapareça ou torne-se inútil como questão sociológica (CARNEIRO, 1998, p. 59).
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Colocando o foco sobre os agentes, resulta que “cada espaço contém em si contradições e conflitos”, por ser constituído de múltiplos valores e interesses, provenientes tanto do rural como do urbano. Por isso, numa segunda consideração, conclui a autora, mostrando o sentido biimplicativo das relações entre rural e urbano (p. 59-60): Nesses termos, não podemos entender a ruralidade hoje somente a partir da penetração do mundo urbano-industrial no que era definido tradicionalmente como “rural”, mas também do consumo pela sociedade urbano-industrial, de bens simbólicos e materiais (a natureza como valor e os produtos “naturais”, por exemplo) e de práticas culturais que são reconhecidos como sendo próprios do chamado mundo rural. Nesse sentido, importa mais do que tentarmos redefinir as fronteiras entre o “rural” e o “urbano”, ou simplesmente ignorar as diferenças culturais contidas nessas representações sociais, buscar, a partir do ponto de vista dos agentes sociais, os significados das práticas sociais que operacionalizam essa interação e que proliferam tanto no campo como nos grandes centros urbanos, tais como a pluriatividade, os neorurais, a cultura country etc.
É com o foco nos agentes sociais que Horácio Martins, a exemplo de Octávio Ianni, no texto já apresentado, constata, no campesinato brasileiro, uma “multiplicidade de situações”. No Pará, citando Jean Hebette, diz que os agricultores familiares são denominados ou se autodenominam como [...] lavradores, agricultores, camponeses, ribeirinhos, varzeiros, quilombolas, extratores, posseiros, colonos, assentados, atingidos por barragem, catadores de babaçu, castanheiros, seringueiros, pescadores, catadores de caranguejos e catadores de siris. (CARVALHO, 2005, p. 68)
No sul, Carvalho constata a importante distinção entre o colono e o caboclo: O colono é um camponês imigrante ou filho de imigrantes europeus, enquanto caboclo se refere ao lavrador nacional e ao modo de vida diferenciado deste último, mais próximo do nível de vida original do indígena. Colono significa um imigrante europeu ou descendente, de origem não ibérica, com nível de vida mais elevado e mais inserido no mercado, além de levar uma vida cultural distinta (p. 71).
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No Mato Grosso, Carvalho encontrou denominações como sesmeiros, remanescentes de quilombos, parentalha, pantaneiros, mimoseanos, seringueiros, beiradeiros, ribeirinhos, pescadores, marroquianos ou marronianos, ceramistas e retireitos (2005, p. 127). Ainda segundo Carvalho (2005, p. 171), Essa diversidade camponesa inclui desde os camponeses proprietários privados de terras aos posseiros de terras públicas e privadas; desde os camponeses que usufruem dos recursos naturais como os povos das florestas, os agroextrativistas, a recursagem, os ribeirinhos, os pescadores artesanais lavradores, os catadores de carangueijos e lavradores, os castanheiros, as quebradeiras de coco babaçu, os açaizeiros, os foreiros e os que usufruem dos fundos de pasto até os arrendatários não capitalistas, os parceiros, os foreiros e os que usufruem da terra por cessão; desde camponeses quilombolas a parcelas dos povos indígenas já camponeizados; os serranos, os caboclos e os colonizadores, assim como os povos das fronteiras no sul do país. E os novos camponeses resultantes dos assentamentos de reforma agrária.
A definição dessas denominações e autodenominações não se dá por um processo de abstração ou de elaboração conceitual e sim, na luta pela obtenção dos “meios de vida”, conforme a análise clássica de Antonio Candido (1979, p. 23). É no fazer das condições de sobrevivência que se dá o processo de constituição de identidades sociais. Como estamos tratando de ruralidades a partir desse fazer, são, pois, muitos fazeres. E o olhar pesquisante também deve ter esta perspectiva plural. Antes de definir a melhor designação do atendimento escolar dessas populações, a grande questão para os pesquisadores é: como é que em cada uma dessas situações e denominações de Horácio Martins, melhor se expressariam os anseios educacionais? Um exemplo interessante, entre todas essas denominações, seria conhecer a melhor forma de representar os anseios relacionados ao atendimento educacional dos apanhadores de açaí das beiras de algum igarapé, nas margens do Rio Guamá, que diariamente às três ou quatro horas da manhã atracam suas pequenas embarcações na plataforma do Ver o Peso, em Belém, para a entrega do produto às despolpadoras ou lanchonetes. O que eles esperam da educação dos seus filhos? Sim, porque é a partir das condições de obtenção dos seus “meios de vida” – ainda que para ultrapassá-las – que os agricultores familiares encaminham a socialização dos seus filhos. E isso é educação, nem sempre, mas, às vezes, incluindo até mesmo a educação escolar. A perspectiva Antropolítica
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da socialização, em meio à multiplicidade de formas de trabalho, está também no texto de Horácio Martins. A essa multiplicidade de formas de viver e de ser correspondem culturas diversas, religiosidades, valores éticos e sociais diferenciados, formas de socialização variadas, identidades e auto-identidades distintas, relações múltiplas com os aparelhos de poder, aspirações e expectativas sociais diversas. (CARVALHO, 2005, p. 171)
Considerações finais Ainda se pode falar de um rural em sentido estrito, por mais que os números oficiais tentem negar. Há também um grande contingente populacional, considerado pelo IBGE, como população urbana das médias e grandes cidades, mas que vive, na verdade, numa zona de intersecção entre o rural e o urbano. Grande parte da população aí situada provém diretamente de regiões rurais ou pequenas cidades, trabalha em hortaliças ou como bóias-frias ou fazendo fretes com carroças etc. Segundo os dados oficiais, nas regiões Sul e Sudeste, não há mais êxodo rural. Mas ele ainda está presente nas demais regiões. Isso significa que as periferias das médias e grandes cidades tendem a continuar recebendo fluxos migratórios, fazendo crescer os famosos “cinturões de pobreza” nas cidades, em geral, caracterizados por esta intersecção entre o rural e o urbano. Há um rural do entorno das médias e grandes cidades que demanda diariamente emprego, serviços de saúde e outros serviços na cidade-pólo. Por último, há um rural mais difuso, mas, em contrapartida, talvez muito mais extenso e abrangente, que é o rural do crescimento das cidades: pessoas que moram nas médias e grandes cidades, que mantêm práticas e costumes trazidos das regiões rurais ou de pequenas cidades onde foram criadas (PESSOA, 2006), como é o caso dos integrantes da Folia de Reis “Os Penitentes do Santa Marta”, na Favela Santa Marta, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro (ROCHA, 1985). O mais importante em todos esses casos não é o nome dado ao atendimento escolar, mas a sua qualidade, sua afinidade com o modo com que os sujeitos sociais organizam-se em cada um deles. O olhar dos pesquisadores deve captar com sensibilidade essa mesma diversidade.
Abstract Under the sponsorship of the military state, the construction of roads, of great farming projects and the use of tax incentives for the occupation of the free spaces had generated intensive privatiAntropolítica
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zation of lands not titleholders and great demographic alteration and constitution of rural settlements. After that, already in the decade of 1990, the development of tourism was directed for the rural regions, provoking the sprouting of no-agricultural activities. Also in the decade of 1990, it was instituted, with resources of the federal government, the school transport of the rural regions for the hosts of the municipal district. They are constitutive factors of the diversification of life and work types of rural populations, substituting the homogeneous agricultural rural one, that is treated in this article as rural things, term which indicates different ways of identification with the rural world, even in urban realities. The aim is to propose that the researches about education are based on this perspective with several menaings of comprehension of the rural, because of the diversity of identities constitution of their citizens all over the country. Keywords: rural things; school education; rural populations.
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Notas Texto apresentado na Sessão Especial “Políticas públicas para a educação do campo”, na 29ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu-MG, de 15 a 19 de outubro de 2006.
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resenhas
FREDERIC, Sabina. Buenos Vecinos, malos políticos: moralidad y política en el Gran Buenos Aires. Buenos Aires: Prometeo, 2004. 283 p. Fernanda Maidana*
Através de uma estimulante descrição etnográfica sobre acontecimentos que ocorreram entre 1988 e 2000, em um município de Buenos Aires (Argentina), denominado Uriarte, a autora, professora da Universidad Nacional de Quilmes, aborda empiricamente o “jogo de avaliações morais” e sua manifestação e incidência nos processos políticos, conseguindo demonstrar, com originalidade e destreza, seu papel constitutivo das relações de poder. Baseada na sua tese de doutorado – apresentada na Universidade de Utrecht (Holanda) –, Frederic oferecenos um texto que examina as transformações do campo político desse país, através de um estudo de caso, e consegue alcançar, com êxito, os dois objetivos a que se propõe. Sobre moralidade e política, visa demonstrar que “sólo considerando a ambas, la práctica de los políticos se vuelve inteligible” (p. 40) e explica por que, para as pessoas de Uriarte, ao longo dessa década, a política converte-se em um problema moral. Ao perseguir o primeiro objetivo, ela se esforça por demostrar que as diferentes avaliações morais, constitutivas de padrões morais em conflito, oposição ou complementariedade, definem “la lógica práctica mediante la cual se constituye el vínculo y las divisiones entre actores” (p. 44). Nesse sentido, a autora contempla, empiricamente, as diferentes avaliações articuladas entre os habitantes de Uriarte ao longo do processo para alterar a distribuição de poder; como elas afetaram os valores reconhecidos da pessoa política e determinaram a sucessão e a divisão do trabalho político.
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia – Universidade Federal Fluminense.
Nesses anos, a política debateu-se entre os valores e os sentidos que fundam o vínculo político. Ao seguir seu segundo objetivo, Frederic demonstra a existência de uma conexão estreita entre a metamorfose da política num problema moral e a modificação da divisão do tra-
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balho político durante essa etapa neoliberal da Argentina, em Uriarte. A política havia-se convertido em um problema moral para os atores – pela alteração da relação entre os fatores que habitualmente constituem a “etnomoralidade política”: a regulação do crescimento político ou sucessão política e a definição de alguma comunidade de referência para os políticos. Sua abordagem apresenta como tese principal que a modificação de um desses termos implica modificação do outro: a mudança da posição de um grupo na divisão do trabalho político não é possível sem que se altere, simultaneamente, o sentido da comunidade imaginada. Desta forma, tal sentido se redefiniria no curso da profissionalização da política, e a emergência de novos protagonistas impulsionaria novas imagens de comunidade. Para a autora, a associação entre imagens da comunidade moral, sucessão política e divisão do trabalho político é a chave da relação entre moralidade e política entre os habitantes de Uriarte. Sua etnografia, baseada em um trabalho de campo prolongado – de 10 anos, com interrupções –, detém-se em uma série de acontecimentos cuja continuidade está dada na articulação das avaliações morais ali desenvolvidas e nos atores sociais que deles participam. Com especial ênfase no ponto de vista dos nativos, oferece, assim, interpretações reflexivas sobre seu lugar como antropóloga nesse campo. Após uma minuciosa e sistemática apresentação do estado da questão, introduzindo o leitor na discussão sobre moralidade e política, a autora mergulha na prolífera literatura sobre as transformações na Argentina nos anos 1990. Propõe uma interpretação das transformações que afetaram o campo político que lhe permite compreender as condições e as avaliações morais que teriam alterado a relação dos políticos peronistas com “o povo deslocado”, produzindo a “renúncia” dessa comunidade histórica de referência. Este seria o ponto de partida crucial de sua abordagem. No capítulo II, a autora mostra como se inicia o processo de redefinição da divisão do trabalho político e de transformação da comunidade de referência no município de Uriarte. Durante os anos anteriores, o Proyecto Tierras, um plano de governo implementado no município, dispunha de uma causa política, “arraigar os villeros” – os deslocados –, fazia da política uma atividade com sentido. Ao finalizar os anos 1980, um conjunto de fatores fez com que essa causa fosse minada: dificuldades de transformar as condições de Antropolítica
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vida dos deslocados; a valorização das conseqüências negativas sobre as possibilidades do crescimento político destes políticos – e, nelas, a competência política dos villeros não era um fator menor –; e oportunidade de fazer carreira política à margem dessa comunidade de referência que o cenário oferecia. Para os políticos, isso tornava possível alterar a divisão do trabalho político. O Projeto Uriarte constitui a resposta a essa “experiência crítica” de enfraquecimento de uma moral política, sobre o qual se detém o capítulo III. Para Frederic, o plano de governo implementado nos anos 1990, cujas bandeiras são descentralização e participação, busca, a partir de um conjunto de procedimentos, a solução do problema moral da política, através da imaginação de uma nova comunidade de referência – “os vizinhos” – capaz de conter conflitos, regular a competência política e viabilizar a construção de políticos como classe diferenciada. Nesta imagem de comunidade “no habría lugar para que los villeros reivindicaran su inclusión en la carrera política, ni para que los políticos atendieran los problemas de la comunidad desplazada” (p. 254). A autora mostra que o deslocamento dos villeros do crescimento político era dependente de sua exclusão da comunidade de referência. Mas essa comunidade, os vizinhos, não consegue constituir-se em “una imagen lo suficientemente verosímil e irrebatible” (p. 258). Nos capítulos seguintes, a autora analisa as tensões e as resistências que esse projeto produz, com um desenlace imprevisto até para os próprios mentores do projeto. No capítulo IV, seguindo as variações que o reconhecimento assume, descreve a tensão entre duas formas de valorização da atuação política: a militância imposta pelo Projeto – militância social – e a militância deslocada por ele – militância política. No processo de conversão dos militantes políticos em militantes sociais, institucionalizam-se e deslocam-se categorias da divisão do trabalho político, dirimindo-se a profissionalização e as lutas em um novo sentido no qual a militância política seria uma atividade privada e altamente seleta. Os agentes buscariam a flexibilização dos limites nos espaços íntimos e públicos da política, nas formas de resistência e negociação à divisão instalada. Por outro lado, os comportamentos que resultam dessa tensão produzem uma dupla classificação: ignorantes e entendidos de política; e traidores Antropolítica
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e leais ao bairro. O capítulo V, além de expressar a tensão entre profissionalização e “autogoverno”, em Uriarte, mostra a diferença de domínios morais e contém formas alternativas de imaginar a comunidade de referência: a “lealdade” de bairro e o “conhecimento político especializado”. Sobre estas últimas, a autora dirá: “imágenes ambiguas, confusas e impracticables de la comunidad política de referencia” (p. 256). O valor da lealdade de bairro, “refúgio dos deslocados”, era resultado de uma forma de profissionalização política que restringiria as aspirações a uma liderança política para além das fronteiras do bairro, como também a uma fonte de resistências. No capítulo VI, a autora levanta mais evidências sobre a imbricação que as avaliações morais exibem entre sucessão política e comunidade de referência. Mostra também, através da descrição da politização da morte de um menino – que interpreta como um desafio aberto, dos deslocados, à autoridade de determinados dirigentes políticos visto que confrontava seus parâmetros morais – como se produz a atribuição de responsabilidades que define a comunidade de referência “pela qual e para qual” as autoridades governam. No entanto, Frederic irá mostrar também que a imaginação de uma comunidade de referência significativa dependeria da possibilidade de seus membros serem reconhecidos como candidatos a participar de seu governo. No último capítulo, descreve a força adquirida pelos padrões morais de avaliação, no final dos anos 1990, que negam a comunidade histórica de referência. As avaliações morais contidas nas denúncias judiciais por corrupção dos vereadores do município expandem um padrão de avaliação da conduta baseada numa ética apolítica, universal e individual, em que os valores políticos sobre a comunidade histórica de referência são passados de largo. Frederic dirá, então, que a política desgarrada de alguma comunidade imaginada, em relação à qual os políticos dirigem suas ações e em torno da qual constituem-se como classe política, desmoraliza-se. O texto de Frederic contribui com notável consistência, para o entendimento de processos políticos e para a análise da divisão do trabalho político em contextos de profissionalização como lutas pela regularização do “crescimento político”. O maior mérito é a admirável etnografia que Antropolítica
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constrói, repleta de trechos muito cuidadosos que exibem um trabalho criativo e artesanal. Cabe advertir que o tratamento da política e da moralidade como esferas analíticas separadas pode tornar difícil a leitura àquele leitor familiarizado com abordagens que consideram a moralidade enquanto parte de processos políticos e que analisam as avaliações morais não como um aspecto da prática, mas como inerentes a ela. Por último, é um livro particularmente recomendável para leitores interessados em etnografias de processos políticos e de estudos de caso, na divisão do trabalho político no nível local, na profissionalização política e nas lutas pela incorporação de especialistas ou não e, evidentemente, na discussão sobre moral e política. Vale mencionar que sua leitura também é recomendável para qualquer leitor que mergulhe nos estudos da antropologia da política, uma vez que seu texto é uma rica contribuição às discussões em voga.
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Resenhando o conceito de “Double Bind”, de Gregory Baterson, em seis autores das ciências humanas con temporâneas. Mônica Cavalcanti Lepri* A tear is an intellectual thing. William Blake
Apresentação O texto propõe-se a cartografar a teoria do double bind, de Gregory Bateson (1904-1980) alinhavando testemunhos de seis autores contemporâneos sobre sua pressuposição central: a de que o vínculo humano é, sempre e inevitavelmente, da ordem do duplo: pressupõe sujeitos e sua alteridade comum agindo em conjunto. Assim, privilegiando a relação tanto quanto seus pólos, a teoria do double bind parece colocar a alteridade em um contexto de sentidos dos quais brota uma concepção de sujeito rica em indagações para os cientistas humanos. Escolhi não seguir uma abordagem clássica, tendo por fio condutor os textos nos quais Bateson constrói e reconstrói o double bind (o que pressuporia o conhecimento de sua gradativa elaboração na complexa obra do biólogoantropólogo-epistemólogo), mas adotar uma perspectiva mais impressionista, guiada pela apropriação que dessa idéia fazem seis autores contemporâneos ao escreverem sobre a singular concepção de sujeito que a teoria ajuda a iluminar. O desafio da premissa aqui adotada é investigar se uma pesquisa bibliográfica de citações do termo double bind em textos de antropologia, psicanálise, sociologia, filosofia e literatura proporcionará – a mim que as transcrevo e aos que por ventura lerem meu texto – atualizações criativas dos dilemas propostos pela indeterminação inerente aos nossos vínculos alteritários, desafio central de muitos sujeitos humanos que inspiram-se nas idéias formuladas por essa teoria.
* Antropóloga – Incra/AL Mestre em C. AmbientalUFF
Tendo em vista essa perspectiva, a estratégia do trabalho será de um loose-thinking:1 um sobrevôo inicial de reconheci-
mento sobre o território que desejamos cartografar. Por isso, procurei relatar – além da citação em si – alguns
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comentários a respeito do contexto geral em que cada um dos autores fez uso da noção de double bind, de modo a pontuar um aspecto importante de sua própria démarche. Dos seis autores pesquisados, apenas Otávio Velho e Jacques Lacan mencionam explicitamente Bateson em suas citações do termo double bind. Otávio Velho utiliza-se da idéia, em conferência feita em 2003, no Simpósio da Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research denominado World Anthropologies: Disciplinary Transformations within Systems of Power, enquanto Lacan discute o double bind (que ele traduz, com a costumeira liberdade, por “relação dupla”) durante a década de 1950 ainda, em uma fala que ficaria famosa, intitulada “A foraclusão do nome-do-pai”. Os outros quatro autores pesquisados – o antropólogo da ciência Bruno Latour, o filósofo Jacques Derrida, o sociólogo Pierre Bourdieu e o crítico literário Roberto Schwarz – apenas lançam mão da expressão double bind2 em suas narrativas. No entanto, este segundo tipo de apropriação, com sua intimidade, talvez mais reforce que esgarce a importância paradigmática dessa idéia de Bateson. Contudo, foi apenas esta estratégia do pensar amplo que autorizou mesclar textos originalmente publicados em contextos tão diversos: se a citação sobre o double bind de Jacques Lacan é de seu Seminário 5 (As Formações do Inconsciente), as de Roberto Schwarz e de Bruno Latour foram retiradas de artigos/entrevistas do sítio www.uol.com.br, que hospeda o conteúdo do jornal Folha de São Paulo. As referências ao double bind de Otávio Velho vêm de uma conferência na qual ele inicialmente elege a tristeza como um objeto de estudo antropológico, mas finaliza relembrando a importância que Spinoza atribui à alegria na construção de contextos propícios a vínculos humanos mais amplos e ricos de significados, inclusive na própria ciência. Já o intrigante parágrafo que aproxima o double bind de uma espécie de “lei da lei”, foi pinçado na conversa entre o filósofo Derrida e a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, transcrita no livro De quoi demain... dialogue. Pierre Bourdieu, por sua vez, usa o termo em um curto ensaio no qual revisita uma antiga questão de seu trabalho como etnógrafo na África: herança patrilinear nas sociedades tradicionais. Assim, esta estratégia metodológica encara a diversidade de contextos dos textos citados, como constitutiva da capilaridade alcançada pela idéia de double bind no campo das ciências humanas contemporâneas. Por outro lado, essa opção requereu necessariamente o apoio de mediadores em áreas como a da psicanálise de Lacan, cuja discussão sobre o Antropolítica
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double bind aqui apresentada foi recolhida de uma resenha disponibilizada na internet, por Maria Ângela Maia, da EPB-RJ.
Os usos Na conferência de Otávio Velho intitulada “The Pictographics of tristesse: an antropolgy of nation-building in the tropics and its aftermath”, encontrei uma nota a respeito da teoria do double-bind que ajudou a sustentar a opção pela abordagem impressionista aqui adotada: I personally think that a creative appraisal of anthropology as a whole in this debate should be done with the reincorporating of Gregory Bateson’s work, especially if we intend on making a non-regressive critique of Culturalism. In this paper my appreciation of Bateson has only been hinted to by my frequent references to his double-bind theory, suggesting that its application might be a way to pursue some of the topics here developed. (VELHO, 2003)
Como sugere o antropólogo carioca, a apropriação feita por cada um dos autores aqui citados demonstra a diversidade de temas aos quais a teoria do duplo vínculo – tradução que eu pessoalmente adoto para double bind – pode ser associada de forma produtiva. Bruno Latour, por exemplo, utiliza o termo em uma entrevista na qual tenta explicitar a espinhosa situação que os cientistas e os leigos enfrentam ao serem convidados a debater certos temas contemporâneos polêmicos, como o das sementes transgênicas: Marcelo Leite: – Um dos principais debates públicos sobre ciência, hoje, é o dos organismos geneticamente modificados (OGMs), que não progride. Cientistas estão dispostos a tomar parte no debate, mas só como se estivessem entre pesquisadores. Há de fato resistência ao diálogo, a encontrar um modo novo de participar do debate público? Bruno Latour: – Eles estão certos, num certo sentido, por estarem preocupados. Ainda não se formou uma alternativa para o papel clássico do cientista de ensinar, fazer pesquisa ou aconselhar políticos. Em outras palavras, quando há hesitação sobre um novo regime, é melhor apegar-se ao velho. Pelo menos tem a vantagem principal de proteger a sua autonomia, que de outro modo é com freqüência ameaçada por outros interesses. A alternativa é muito difícil porque envolve não só mudar o modo com que os cientistas fazem as coisas, mas também o que se pede a eles que façam. É uma espécie de duplo vínculo: de um Antropolítica
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200 lado, eles são chamados a dar testemunho como “experts” – e eu acho que pedir a um cientista que se torne um “expert” é uma espécie de traição da missão da ciência –, e simultaneamente a nos dizer quais são os fatos. Ou seja: “Por favor, nada de nos dizer o que devemos fazer, mas, se também puder nos dizer o que devemos fazer, seria bom”. O que eu proponho nesse livro [“As Políticas da Natureza”] é que nós organizemos essas posições com uma diferenciação entre as habilidades de cientistas, políticos, economistas, pessoal de mídia e assim por diante, e suas funções. Fazer uma distinção entre os domínios em que eles são chamados a atuar e as suas habilidades, porque há um mal-entendido aí. As pessoas acham que as habilidades dos cientistas são também o seu domínio, que é separado do resto. Não, são as habilidades que são diferentes, mas o domínio é o mesmo. É o mesmo que construir uma casa, em que há carpinteiros, eletricistas, encanadores – eles não estão construindo várias casas diferentes, uma do encanador, outra do eletricista, mas trabalhando no mesmo prédio (LATOUR, 2004).
Neste e em outros casos polêmicos, que engendram posições opostas e extremadas entre especialistas e não-especialistas, a ciência é sempre levada embaixo do braço para ser usada contra o “adversário”, seja ele quem for. E, por sua constituição original como um corpo de conhecimentos, não de privilégios ou dogmas, a ciência acaba fornecendo munição para ambos os lados, dada a ausência de um fórum socialmente reconhecido para o debate público de tais double binds técnicos e éticos, como os propostos atualmente pela biotecnologia. No entanto, a proposta de constituição (não sei se Latour gostaria desse termo) desse fórum emana de uma perspectiva que é a do cientista. Porém, é a perspectiva de um cientista que procura comunicar-se com os outros, que constrói metáforas – uma das pontes que transpõem o double bind, segundo Bateson – como a dos diferentes especialistas construindo juntos a mesma casa. A idéia de double bind ajuda o também francês Derrida a se aproximar da fronteira desse território livre de predeterminações, que ele propõe ser alcançado com o “direito ao debate, à discussão, à não-censura”, território que é urgente proteger dos ataques daqueles que nele penetram apenas com a intenção de dominá-lo e não de compartilhá-lo: Il n’y a d’ailleurs de décision et de responsabilité dignes de ce nom que dans l’endurance d’un double bind, lá où l’on ne sait pas d’avance, quand aucun savoir préalable ne garantit ou ne programme de façon continue, sans quelque saut, le choix entre deux injonctions aussi impératives et aussi légitimes l’une que l’autre. Cette terrible loi, qui est la loi même, la loi de la loi, donne sa chance à la responsabilité Antropolítica
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201 et à la décision, s’il y en a, mais ne laisse aucune chance à la bonne conscience. Personne ne pourrait jamais savoir, jamais être assuré, dans un jugemente théorique et déterminant, qu’il y a eu de décision responsable et qu’elle aura être la meilleure. L’urgence d’aujourd’hui, c’est au moins de sauver un certain nombres de principes – le droit au débat, le droit à la discussion, la non-censure – et néamoins la possibilité de combattre, de limiter, de dénoncer ce qui, sous ce visage lá, laisse passer des tentations antisémites. C’est trés difficile. N’oubliez pas par exemple que Chomsky n’aurait jamais accepté que vous disiez de lui qu’il défendait Faurrison [professor de literatura em Lyon que apresentou e defendeu, em 1978, a tese da não existência das câmaras de gás nazistas]. À ses yeux, il défendait le droit à la parole. (DERRIDA; ROUDINESCO, 2001, p. 213)
De acordo com a reflexão de Derrida, ao adentrarmos esse territóriomatriz do indeterminismo, povoado de double binds que desafiam nossas indagações a respeito dos elos possíveis entre futuro e presente, e do papel de nossas ações nesse processo, onde sabemos que nada garante de antemão a aposta de nossas finitas fichas, encontramos a “lei da lei”, que fundamenta uma certa ética: a que nos impele a sermos responsáveis pelas nossas decisões. Ao falarmos em “lei da lei” encontramos-nos próximos de outro pólo de referência nos debates sobre o tema, de novo um francês malgré lui-même: Lacan e suas idéias sobre o “Não” do pai como uma tentativa de proteger o sujeito até mesmo das emanações desse território do indeterminado: melhor uma ordem injusta que a ausência de uma ordem qualquer. No texto “A foraclusão do nome-do-pai” (Capítulo VIII, do Seminário 5), Lacan assim apresenta Bateson: antropólogo e etnógrafo que nos trouxe algo que nos faz refletir um pouco além da ponta do nariz sobre o que concerne à ação terapêutica que tenta situar e formular o princípio da gênese do distúrbio psicótico em alguma coisa que se estabelece no plano da relação entre a mãe e o filho, e que não é simplesmente um efeito elementar de frustração, tensão, retenção, relaxamento, satisfação. Ele introduz desde o princípio a noção de comunicação como centrada não apenas num contato, num relacionamento, num meio, mas numa significação. (LACAN apud MAIA, [19--]) De acordo com Lacan, Bateson e Ruesch (1988) propôs a idéia desse estado “patológico” do esquizofrênico ter origem na dificuldade de uma criança humana configurar “o processo de comunicação como constitutivo do sujeito” quando exposta Antropolítica
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202 de forma precoce, sem a tenda protetora de um “Nome do Pai”, ao desamparo do território do double bind (LACAN apud MAIA, [19--]). No entanto, Lacan leva em consideração apenas os sentidos relatados no campo de debates no qual a noção de double bind emergiu inicialmente (como uma idéia que parece ter uma espécie de vida própria?): o disputado campo de estudos interdisciplinares sobre o estado esquizofrênico.3 Se a esquizofrenia às vezes parece ter sido uma das origens, de jeito algum foi o destino da noção. Depois de formulada nesse contexto específico, a noção de double bind foi ampliada e recolocada, em um registro não-patológico, com entradas possíveis em seu território por outras portas, como as de humor, poesia, aprendizado, evolução, arte, jogo, sexo e mística. Para continuar entre os franceses, com suas preocupações com a “lei da lei” e o “Nome-do-Pai”, trazemos ao debate Bourdieu e sua apropriação da noção de double bind na tentativa de iluminar questões a respeito da complexa problemática envolvida no estudo da herança familiar em sociedades tradicionais: Matriz da trajetória social e da relação com essa trajetória, portanto das contradições e das duplas coações (double binds) que nascem principalmente das discordâncias entre as disposições do herdeiro e o destino encerrado em sua herança, a família é geradora de tensões e de contradições genéricas (observáveis em todas as famílias, porque ligadas à sua propensão a se perpetuar) e específicas (variando, principalmente, segundo as características da herança). [...] A herança bem sucedida é um assassinato do pai realizado com a injunção do pai, uma superação do pai destinada a conservá-lo, a conservar seu “projeto” de superação. (BOURDIEU, 2000, grifos do autor) Esse gancho com a essencial superação da herança da lei paterna nos traz de volta às terras brasileiras, nas quais começamos essa resenha sobre as andanças das idéias vivas de Bateson no mundo das ciências humanas contemporâneas. Roberto Schwarz, procurando, mais uma vez, enfrentar nossos dilemas passados/presentes pela porta da análise literária – esmiuçando o livro O Elefante, de Francisco Alvim – acaba também por usar a noção de double bind para dar conta da perversa situação brasileira, que o poeta almeja denunciar com seu seco: FACTÓTUM Pior coisa é dever um favor a alguém Olha Virgílio a mim você não deve nada não Só a sua perna e Antropolítica
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O elegante e sincero crítico paulista assim pontua o território desse fato-tótem do double bind brasileiro visitado pelo poeta: Depois de uma vida de serviços prestados, o faz-tudo [o agregado] continua em dívida, ao passo que seu protetor [o fazendeiro dono da terra] não lhe deve nada e muito menos sente obrigação ou humilhação. É uma versão de nosso double bind [em inglês no original] entre dependentes e proprietários, onde a dívida dos primeiros é da ordem da obrigação pessoal e infinita, e não do dinheiro, ao passo que a dos segundos é da ordem da conveniência e do cálculo. Já estes últimos circulam em dois mundos e podem ir e vir, à escolha, entre o papel de fiel protetor e de indivíduo desobrigado e objetivo. Nos dois casos, a informalidade faculta aos de cima a estampa da civilidade amena, encobrindo o abismo social (SCHWARZ, 2002).
E, ao chegarmos ao final, cá estamos de volta ao começo: nossos double binds tropicais... Mas será que agora mais perto de entender que o fim da jornada é alcançar o ponto de partida e olhá-lo como se fosse a primeira vez? Mais perto de entender que poesia e ciência,4 lei e brincadeira, cultura e esquizofrenia, economia e herança familiar, genética e arte, evolução e jogo, sexo e o Deus-Eco, do qual não se zomba, são territórios possíveis de serem ligados pela viva idéia de double bind ? Para Gregory Bateson, a idéia de double bind ensejou o esforço de aprofundar nossa capacidade de encará-los, onde eles se encontrem em nosso caminho, também pela via de um aprendizado secundário bem resolvido, saudável, integrado na dinâmica do Deus-Eco, o qual não se pode gozar, mas que pode nos dar prazer. É disso, da necessidade dessa nova pedagogia, que ele falou em sua Last Conference. Se, a partir do double bind, somos capazes de enxergar o “monstruoso” engano epistemológico cartesiano que supôs ser possível e desejável a mente subordinar o reino do corpo nos humanos, nos deparamos com o insano mundo constituído e construído por esse conhecimento capaz de retalhar o real assim, sem emoção, com o objetivo de dominá-lo (o “saber é poder” de Francis Bacon), exemplificado por Bateson pelo tenebroso evento que foram as explosões atômicas americanas no Japão ao final da Segunda Guerra. Em outro momento, ele diz temer que este sujeito destituído da noção de corpo-mente, ao interagir a partir de seu patamar de poder tecnológico com a Natureza imanente da qual dependemos como seres vivos, tenha
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inoculado sua “insanidade” no “sistema mais amplo do qual somos uma parte” (BATESON, 1973). Com relação a esta perspectiva, sua intuição é de que “a tarefa mais importante hoje em dia é aprender a pensar de uma nova maneira”, pois as conseqüências ambientais e sociais da dupla “Revolução Industrial e Darwnismo [...] podem nos destruir nos próximos trinta anos”. Isso ele disse em uma conferência de 1970. E, nós, que em 2005 convivemos hiroshimas e nakasakis cotidianas, à medida que nossa patologia psicossocial exterioriza-se em um incontornável passivo ecológico provocado pela dominação cada vez mais danosa do ambiente natural e do trabalho humano transformados em simples mercadorias? No entanto, para alguém imune aos double binds da vida, como um cientista cartesiano, as pistas que o sistema ecológico deixa cada vez mais claras serão ignoradas até que não seja mais possível ignorá-las. Em um poema escrito em 1979, Bateson (1989) refere-se à dificuldade dos que adentram esse território do “esqueleto solitário da verdade”, que se estende além das soluções milagrosas aos dilemas do double bind oferecidas pelos tecnólogos, terapeutas, missionários, publicitários e pragmáticos de plantão, no qual é vedado recorrer “a velhos credos esquecidos”. Nesse território que tem uma didática e uma pedagogia tão peculiar, os que se inspiram na teoria do double bind parecem portar uma lanterna confiável a seu desejo de se aventurar “onde até mesmo os anjos temem caminhar”. Que aqueles que ousem perscrutá-lo possam nos ajudar a encontrar o que todos precisamos.
Referências BATESON, Gregory. Mente e natureza: a unidade necessária. Rio de Janeiro, F. Alves, 1986. ______. Metadiálogos. Lisboa: Gradiva, 1989. ______. Steps to an ecology of mind. London: Paladium, 1973. ______. Une unité sacrée: quelques pas de plus vers une écologie de l’esprit. Paris: Seuil, 1996. ______; BATESON, Mary Catherine. La peur des anges. Paris: Seuil, 1989. ______; RUESCH, Jurgen. Communication et société. Paris: Seuil, 1988.
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205 BOURDIEU, P. As contradições da herança. In: LINS, Daniel (Org.). Cultura e subjetividade: saberes nômades. Campinas, SP: Papirus, 2000. DERRIDA, J.; ROUDINESO, E. De quoi demain? Paris: Fayard: Galilée, 2001. GLEISER, Marcelo. Ensinar ciência com poesia. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 set. 2004. Caderno Mais! Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ ciencia/fe1209200402.htm>. Acesso em: 4 out. 2004. LATOUR, B. Entrevista a Marcelo Leite. 2004. Disponível em: <http://www. anbio.org.br/entrevistas/set04_1.htm>. Acesso em: 4 out. 2004. MAIA, Maria Ângela. A teoria do Double Bind de Bateson. Rio de Janeiro: EBPRJ, [19--]. Resenha de: LACAN. Seminário 5. cap. 8: “a foraclusão do nomedo-pai”. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999. Disponível em: <home.openlink.com. br/fabulocus/bdres16.htm>. Acesso em: 15 ago. 2001 . SCHWARZ, Roberto. O elefante. Folha de São Paulo, São Paulo, 10 mar. 2002. Caderno Mais! VELHO, Otávio. The pictographics of tristesse: an antropolgy of nation-building in the tropics and its aftermath. In: WORLD anthropologies: disciplinary transformations within systems of power. Research, Wenner-Gren Foudation for Anthropol. xerox, 2003.
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NOTÍCIAS DO PPGA
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NOTÍCIAS DO PPGA Em dezembro de 2006, ocorreu a Primeira Jornada de Antropologia dos alunos do PPGA/UFF, gerando debates produtivos sobre os trabalhos dos alunos. A programação foi a seguinte: Programação Jornada de Antropologia Data: 13 de dezembro de 2006 – Quarta-feira Tarde 14:00 as 16:30 – Grupo de Trabalho: Estado e Política Debatedor: Profa. Dra. Karina Kuschnir (UFRJ/PPGSA) BOTELHO, Paulo Storani. Vitória sobre a morte: a glória prometida: ritual, simbolismo e performance no curso de operações especiais da polícia militar. Mestranda, 2006. Maidana, Maria Fernanda. Sobre los hombres de confianza. Mestranda, 2006. NUNES, Bruner Titonelli. Trabalhadores da política. Mestrando, 2006. PIRES, Lênin. Deus ajuda a quem cedo madruga?: uma discussão sobre trabalho, informalidade e direitos civis no Rio de Janeiro. Doutorando, 2005.
17:00 – 19:00 – Grupo de Trabalho: Estado, cultura e sociedade Debatedor: Prof. Dr. Marcelo Rosa (UFF/PGSD) Luz, Margareth da. Caminho Niemeyer: os “usos” da cultura em Niterói. Doutoranda 2003. Martins, Cynthia Carvalho. O machado é nossa tecnologia: uma análise da relação entre práticas artesanais e mecanização. Doutoranda, 2003. Simão, Lucieni de Menezes. Certificando culturas: inventário e registro do ofício de paneleira. Doutoranda, 2003. Data: 14 de dezembro de 2006 – Quinta-feira Manhã 10:00 – 12:00 – Grupo de Trabalho: Saberes, técnicas e organização do trabalho Debatedor: Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes (UFRJ/MN) Antropolítica
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Filgueiras, Márcio de Paula. Territorialidade e conhecimento entre os pescadores da Praia da Concha. Mestrando, 2006. Mello, Pedro Paulo Thiago de. A presença chinesa no Saara: etnias, diásporas e conflitos num mercado popular carioca. Doutorando, 2004. SAKAMOTO, Julia Mitiko. Trabalhar em equipe e ser polivalente: os trabalhadores da indústria automobilística da Região Metropolitana de Curitiba. Mestranda, 2006. Tarde 14:00 as 18:00 – Grupo de Trabalho: Formas de produção do conhecimento e Campos disciplinares Debatedora: Profa. Dra. Diana Antonaz (UFPA/PPGCS) Costa, Fernando Cesar Coelho da. A Adolescência na medicina brasileira: um olhar antropológico. Doutorando, 2002. Dias Neto, José Colaço. Um outro olhar sobre Ponta Grossa dos Fidalgos. Mestrando, 2005. Eilbaum, Lucía. Entre a escrita e a oralidade: formas de produção de conhecimento nos Tribunais da cidade de Buenos Aires. Doutoranda, 2006. Mota. Durval D. Souza. A eficácia da acupuntura: uma abordagem cultural para além da técnica. Doutorando, 2004. Oliveira, Cátia Inês Salgado de. Sobre questões de “Ciência” e “Política”: o processo de Fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Doutoranda, 2003. Data: 15 de dezembro de 2006 – Sexta-feira Manhã 9:00 - 12:00 – Grupo de Trabalho: Identidades e fronteiras étnicas e nacionais Debatedor: Prof. Dra. Hebe Mattos (UFF/PPGH) AGOSTINE, felipe. Os narradores do Alto Rio Negro. a humanidade subiu o rio. Mestrando.
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Cavalcante Junior, Cláudio. Fronteiras étnicas entre muçulmanos do Rio de Janeiro de origem africana. Mestrando, 2006. Delgado, Paulo. O dia do Wamnhoro. Doutorando, 2003. SILVA, Ruth Henrique da. Brasileiros? identidade indígena? dilemas de coexistência dos Camba no Brasil. Doutoranda, 2004. Silveiro, João. Identidade nacional e democracia em Cabo Verde. Doutorando, 2003. Tarde 14:00 Grupo de Trabalho: Formas de Sociabilidade Debatedor: Prof. Dr. Isidoro Alves Simões, Soraya Silveira. Os moradores, a favela e o “bairro”: Cruzada São Sebastião do Leblon: disputas, formas associativas e arenas públicas na Zona Sul do Rio de Janeiro. Doutoranda, 2003. Pereira, Rafael. “Vozes de Barbacena” ou a “Cidade dos Loucos”: implicações antropológicas do retorno à cidade. Mestrando, 2006. GASPAR Neto, Verlan. Homossexualidade masculina: um estudo etnográfico dos espaços de homossociabilidade em Juiz de Fora. Mestrando, 2006.
Paim, Heloísa Helena Salvatti. Notas iniciais. Doutoranda, 2004. GARCIA, Ângela Maria. Consumo de bebida alcoólica: formas de sociabilidade e de controle social. Doutoranda, 2003. BARBOSA, Fernando Cordeiro. As redefinições sociais dos migrantes nordestinos no Rio de Janeiro. Doutorando, 2004.
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I Encontro da Rede Rural - uma proposta de intercâmbio de pesquisa Sob a associação executiva dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia, em História e em Sociologia e Direito, bem como do Departamento de Sociologia da UFF, foi realizado o I Encontro da Rede Rural, ocasião em que foi formalmente instituída a Rede Rural.
O que é a Rede Rural Há algum tempo, diversos estudiosos das mais diferenciadas formações disciplinares e teóricas, mas interligados tematicamente por fazerem do rural seu campo de investigação, vêm buscando um espaço próprio de discussão, propiciador de visibilidade da produção intelectual e da sistematização das tendências em curso. Os estudos sobre a agricultura e o mundo rural no Brasil têm-se multiplicado nos últimos anos, em diversas instituições universitárias e em numerosos centros especializados. Entidades como Anpocs, Sober, ABA, SBS, Anpec, Anpuh, Anppas, AGB, entre outras, têm-se constituído em espaço de discussão desses temas. No entanto, se a inserção nessas instituições tem um aspecto extremamente positivo no sentido de estimular o diálogo entre os estudos sobre o rural e os demais campos temáticos das Ciências Sociais, ela, no entanto, não tem sido suficiente. Assim, cresce a demanda por um espaço temático de intercâmbio que, sem excluir os existentes, permita o aprofundamento das discussões. Frente a isso, surgiu a proposta de uma primeira discussão para criar um espaço de intercâmbio de caráter interdisciplinar e inter-institucional, com um modelo flexível, sensível às questões emergentes no debate nacional, capaz, inclusive, de sinalizar a importância de outros temas menos abordados, evitando a cristalização de grupos de pesquisa previamente recortados. Essa possibilidade veio sendo amadurecida em diversas reuniões. Em outubro de 2003, durante a reunião da Anpocs, realizada em Caxambu, os pesquisadores interessados no tema realizaram uma primeira conversa, na qual foi reiterada a importância de criação de um fórum de discussão sobre os temas rurais. Algo que se inspirasse na experiência do PIPSA (Projeto de Intercâmbio de Pesquisa Social em Agricultura, rede de pesquisadores constituída em 1970 com apoio da Fundação Ford e que foi, ao longo dos anos 1980, um importante Fórum de discussão das Antropolítica
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questões agrárias e agrícolas do país), mas que superasse algumas das dificuldades que esse projeto enfrentou e fosse construído sobre novas bases. Desde então, em várias reuniões, aproveitando eventos científicos como Anpocs e SBS, o formato da Rede foi-se definindo. Embora, frente às dificuldades financeiras inerentes a uma iniciativa como esta, o número de presentes às reuniões preparatórias fosse reduzido, foram inúmeras as manifestações de apoio e encorajamento para a constituição da rede enviadas por e-mail aos que estavam à frente do processo. Após muitos debates e manifestações de opiniões sobre a proposta, foram construídos alguns consensos sobre os princípios que deveriam orientar a iniciativa de criar uma nova rede de intercâmbio. Nessa perspectiva, a rede deveria: • ter um caráter interdisciplinar e interinstitucional, buscando atrair profissionais das mais diferentes áreas disciplinares (Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Economia, História, Agronomia, Geografia, Comunicação Social, Serviço Social etc) e inserção institucional (universidades, centros de pesquisa, setores governamentais elaboradores de políticas públicas, organizações não governamentais); • envolver interessados com diferentes níveis de formação: desde estudantes que estão dando seus primeiros passos na pesquisa acadêmica até profissionais já tarimbados; • buscar um formato que não seja o de aceitação generalizada de trabalhos, inviabilizando a discussão dos estudos apresentados, mas que também não seja elitizado; • lançar mão de uma combinação de reuniões presenciais e espaços virtuais, estimulando o debate no intervalo entre as reuniões, com salas virtuais de discussão, circulação de informações, produção de textos etc; • ter o formato de uma associação, cuja sobrevivência esteja assegurada pela contribuição dos sócios. Ao longo dessas reuniões definiu-se também uma coordenação provisória da Rede, composta pelos professores Delma Pessanha Neves (PPGA/ UFF), Leonilde Servolo de Medeiros (CPDA/UFRRJ), Maria de Nazareth Baudel Wanderley (UFPE) e Sônia Maria Pessoa Pereira Bergamasco (Feagri/Unicamp). Essa coordenação foi substituída por uma Coordenação efetiva, com prazo de mandato definido nos Estatutos da Associação, documento que formalizou a Rede. Antropolítica
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A Rede como espaço virtual No horizonte da organização da Rede, pretende-se abrir um espaço virtual para facilitar o intercâmbio e a inclusão bastante ampla de pesquisadores e estudiosos voltados para as temáticas concernentes.
A Rede como espaço de encontros A intenção da Rede é realizar encontros presencias bi-anuais, com base em mesas redondas e grupos temáticos, atividades que deverão ser alimentadas e alimentar o debate virtual.
I Encontro da Rede Rural O primeiro encontro da Rede Rural foi realizado na UFF, Niterói, de 04 a 07 de julho de 2006. Os objetivos principais desse primeiro encontro foram: a) divulgar a Rede e seus objetivos; b) trazer novos pesquisadores para a Rede; c) experimentar novos formatos de debate; d) discutir as possibilidades de integração entre fóruns virtuais presenciais; e) aprofundar o debate sobre temas do meio rural brasileiro.
Estruturação Mesas temáticas Tiveram por objetivo constituir espaços de abertura de temas, mas também de agregação de pesquisadores. Foram propostas as seguintes mesas: 1) Modelos de desenvolvimento rural: projetos em concorrência, abarcando discussões sobre as diversas propostas de reordenação de agricultores e de suas práticas produtivas, bem como formas de enquadramento institucional, instrumentos pelos quais programas e recursos vêm sendo elaborados e disputados: redefinição da assistência técnica e a centralidade de modelos agroecológicos; políticas públicas de reafirmação do agribusiness e da agricultura familiar; modos de participação delegada dos proprietários de terra na redisAntropolítica
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tribuição de recursos públicos; e formatação do quadro institucional, especialmente o estatal. 2) Direito, costumes e formas de apropriação da terra, ocasião em que foram analisadas as múltiplas possibilidades de construção da legitimidade e de legalização da acesso à terra, condições que demonstram os diversos e encapsuladores significados que este ato incorpora. 3) Dimensões da questão fundiária, quando foram discutidos temas como luta pela terra, violência e diversidade regional; políticas fundiárias; interfaces entre as questões agrária e ambiental. 4) O mundo do trabalho na agricultura, espaço de debate sobre processo de trabalho e transformação produtiva, trabalho e direitos (previdenciários, trabalhistas, sociais), agricultura familiar e relações de trabalho.
Grupos Temáticos Nos períodos consecutivos às mesas, foram organizados Grupos de Trabalho. No primeiro encontro, optamos por grupos com temas relacionados aos temas das mesas, de forma a aprofundar o debate sobre as questões abordadas, bem como acolher resultados de pesquisas em curso. Para evitar que a Rede Rural se transforme em mais um espaço de simples apresentação de resultados de pesquisa, nos quais freqüentemente se sacrifica o debate, para garantir tempo individual para exposição de trabalhos, foi proposta, em caráter experimental, uma inovação de formato metodológico para o funcionamento dos grupos. A intenção fora que os trabalhos inscritos não fossem apresentados um a um, no formato tradicional de sessão de comunicação ou mesa-redonda. Os textos foram encaminhados com antecedência ao coordenador, que os leu e, com base neles, elaborou uma problematização das questões envolvidas. Essa síntese foi apresentada na sessão e por todos debatida. Esse formato permitiu que um número maior de pessoas inscrevessem trabalhos, que se “mapeasse” o campo do debate e que a discussão efetivamente se centralizasse nas questões teórico-metodológicas envolvidas. O coordenador também disponibilizou um texto-síntese para os demais participantes.
- A luta pela terra e a política fundiária. O GT integrou resultados de pesquisas que tratavam da temática proposta, tanto do ponto de vista histórico quanto regional, buscando Antropolítica
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recuperar as diferentes dimensões das realações entre Estado, políticas fundiárias e lutas por terra. Estas lutas abarcavam o acesso à terra e lutas pela permanência na terra, de forma a não segmentar um conjunto de demandas de agricultores que visam, em última instância, garantir suas condições de acesso aos recursos fundiários. Assim, além das formas de luta já reconhecidas como ocupações, acampamentos, resistência de posseiros, o grupo também se propôs a discutir as demandas por crédito fundiário, as reivindicações dos assentados e dos agricultores familiares por melhores condições de produção e acesso a mercado, assistência técnica, saúde, educação, inclusão digital etc.
- Interfaces entre a questão agrária e a questão ambiental. A problematização das formas de intervenção sobre o meio ambiente (numa concepção ampla) tem também operado como idéia-valor capaz de nortear a construção de novos modelos de apropriação de recursos naturais, incidindo assim sobre a transformação de espaços e identidades. Os trabalhos que integraram o debate neste GT evidenciaram, no bojo da questão proposta, o processo de valorização de grupos sociais (étnicos, tradicionais etc.), dotados de saberes e práticas ambientais correspondentes aos ideários da construção de sociedades sustentáveis. Muitos dos textos também consideraram a relação entre políticas socioambientais e (re)definição de territórios e de direitos diferenciados.
- Canais e formas de expressão de grupos sociais Por este GT, pesquisadores puderam se agregar em torno da discussão de diversas formas de construção de interesses e de institucionalização de grupos sociais, orientados pela demanda de recursos ou pelo empenho em se fazer reconhecer socialmente. Como as questões que envolvem as construções políticas são diversas, os participantes se ativeram a análises sobre associações, cooperativas, redes de intercâmbio, sindicatos, conselhos, grupos organizados por especialidades de gênero e ciclo de vida, etc.
- Agricultura familiar e formas de organização do trabalho. A ênfase nesta temática visou ultrapassar a reificação comumente associada à classificação agricultura familiar, por vezes bastando por si mesma para supor a compreensão da complexidade de formas que podem estar Antropolítica
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subjacentes a essa modalidade de organização da produção. Pelo GT tornou-se possível então dar expressão aos inúmeros modos de alocação e recrutamento da força de trabalho, bem como considerar o papel de valores familiares nesses arranjos.
- Processo de trabalho, transformação produtiva e direitos sociais. Neste espaço de debate, acolheram-se reflexões sobre diversas formas de organização do trabalho, correspondentes aos inúmeros rearranjos ou reordenações produtivas que vêm se constituindo no setor rural ou agropecuário. Foram enfatizados os modos de reordenação das relações de trabalho assalariadas, objeto de reflexão ultimamente tangencial ou até mesmo ausente nos encontros de pesquisadores do mundo rural. Correlatamente, foram consideradas as dificuldades enfrentadas pelos assalariados rurais para sua organização política.
- Saber e poder no campo. O GT visou agregar para discussão trabalhos que abordassem a temática proposta de forma ampla, temporal e espacialmente, contemplando estudos acerca das práticas de caráter pedagógico e/ou cultural perpetradas sobre ou a partir do “campo”. As propostas de trabalho envolveram desde questões ligadas a instituições escolares até aquelas vinculadas ao extensionismo e atividades afins, em distintas conjunturas históricas no Brasil. Foram também contemplados trabalhos que discutiam as práticas relativas à construção, redefinição e institucionalização de “saberes” específicos destinados ao espaço agrário e imbricados à questão mais ampla do desenvolvimento do capitalismo no país. Além disso, que abordassem, em distintos contextos históricos, as repercussões desses saberes sobre as práticas pedagógicas/culturais destinadas ao “espaço” agrário, seus agentes formuladores e implementadores, e ainda os espaços e modalidades de reprodução dos quadros técnicos ligados à “agricultura”.
Constituição formal da Rede de Estudos Rurais Na assembléia geral proposta durante o encontro, foi discutido e aprovado um estatuto da rede, formalizando sua fundação e eleita a nova coordenação.
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RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
CURSO DE MESTRADO EM ANTROPOLOGIA
1 título:
Um abraço para todos os amigos
Autor: Antonio Carlos Rafael Barbosa Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 16/1/1997
2 Título:
A produção social da morte e morte simbólica em pacientes hansenianos
Autor: Cristina Reis Maia Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 2/4/1997
3 Título:
Práticas acadêmicas e o ensino universitário: uma etnografia das formas de consagração e transmissão do saber na universidade
Autor: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa:16/6/1997
4 Título:
“Dom”, “iluminados” e “figurões”: um estudo sobre a representação da oratória no Tribunal do júri do
Rio de Janeiro
Autor: Alessandra de Andrade Rinaldi Orientador: Prof. Dr. Luiz de Castro Faria Data da defesa: 3/1/1997 Antropolítica
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5 Título:
Mudança ideológica para a qualidade
Autor: Miguel Pedro Alves Cardoso Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 7/10/1997
6 Título:
Culto rock a Raul Seixas: sociedade alternativa entre rebeldia e negociação
Autor: Monica Buarque Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 19/12/1997
7 Título:
A cavalgada do santo guerreiro: duas festas de São Jorge em São Gonçalo/Rio de Janeiro
Autor: Ricardo Maciel da Costa Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 23/12/1997
8 Título:
A loucura no manicômio judiciário: a prisão como terapia, o crime como sintoma, o perigo como verdade
Autor: Rosane Oliveira Carreteiro Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 6/2/1998
9 Título:
Articulação casa e trabalho: migrantes “nordestinos” nas ocupações de empregada doméstica e empregados de edifício
Autor: Fernando Cordeiro Barbosa Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 4/3/1998
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10 Título: Entre “modernidade” e “tradição”: a comunidade islâmica de Maputo Autor: Fátima Nordine Mussa Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 11/3/1998
11 Título: Os interesses sociais e a sectarização da doença mental
Autor: Cláudio Lyra Bastos Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 21/5/1998
12 Título: Programa médico de família: mediação e reciprocidade
Autor: Gláucia Maria Pontes Mouzinho Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 24/5/1999
13 Título: O império e a rosa: estudo sobre a devoção do Espírito Santo Autor: Margareth da Luz Coelho Orientador: Prof. Dr. Arno Vogel Data da defesa: 13/7/1998
14 Título: Do malandro ao marginal: representações dos personagens heróis no cinema brasileiro
Autor: Marcos Roberto Mazaro Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 30/10/1998
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15 Título: Prometer-cumprir: princípios morais da política: um estudo de representações sobre a política construídas por eleitores e políticos
Autor: Andréa Bayerl Mongim Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 21/1/1999
16 Título: O simbólico e o irracional: estudo sobre sistemas de pensamento e separação judicial
Autor: César Ramos Barreto Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 10/5/1999
17 Título: Em tempo de conciliação Autor: Angela Maria Fernandes Moreira-Leite Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 15/7/1999
18 Título: Negros, parentes e herdeiros: um estudo da reelaboração da identidade étnica na comunidade de
Retiro, Santa Leopoldina – ES
Autor: Osvaldo Marins de Oliveira Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 13/8/1999
19 Título: Sistema da sucessão e herança da posse habitacional em favela
Autor: Alexandre de Vasconcellos Weber Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 25/10/1999
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20 Título: E no samba fez escola: um estudo de construção social de trabalhadores em escola de samba
Autor: Cristina Chatel Vasconcellos Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 5/11/1999
21 Título: Cidadãos e favelados: os paradoxos dos projetos de (re)integração social Autor: André Luiz Videira de Figueiredo Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 19/11/1999
22 Título: Da anchova ao salário mínimo: uma etnografia sobre injunções de mudança social em
Arraial do Cabo/RJ
Autor: Simone Moutinho Prado Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 25/2/2000
23 TÍTULO: Pescadores e surfistas: uma disputa pelo uso do espaço da Praia Grande Autor: Delgado Goulart da Cunha Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 28/2/2000
24 TÍTULO: Produção corporal da mulher que dança
Autor: Sigrid Hoppe Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 27/4/2000
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25 TÍTULO: A produção da verdade nas práticas judiciárias criminais brasileiras: uma perspectiva antropológica de um processo criminal
Autor: Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 21/9/2000
26 TÍTULO: Campo de força: sociabilidade numa torcida organizada de futebol
Autor: Fernando Manuel Bessa Fernandes Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 22/9/2000
27 TÍTULO: Reservas extrativistas marinhas: uma reforma agrária no mar? Uma discussão sobre o processo de consolidação da reserva extrativista marinha de
Arraial do Cabo/RJ
Autor: Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 29/11/2000
28 TÍTULO: Patrulhando a cidade: o valor do trabalho e a construção de estereótipos em um programa radiofônico
Autor: : Edilson Márcio Almeida da Silva Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 8/12/2000
29 TÍTULO: Loucos de rua: institucionalização x desinstitucionalização
Autor: Ernesto Aranha Andrade Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 8/3/2001 Antropolítica
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30 TÍTULO: Festa do Rosário: iconografia e poética de um rito
Autor: Patrícia de Araújo Brandão Couto Orientador: Profª Drª Tania Stolze Lima Data da defesa: 8/5/2001
31 TÍTULO: Os caminhos do leão: uma etnografia do processo de cobrança do Imposto de Renda Autor: Gabriela Maria Hilu da Rocha Pinto Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 7/8/2001
32 TÍTULO: Representações políticas: alternativas e contradições – das múltiplas possibilidades de participação popular na Câmara Municipal do Rio de Janeiro Autor: Delaine Martins Costa Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 27/9/2001
33 TÍTULO: Capoeiras e mestres: um estudo de construção de identidades
Autor: Mariana Costa Aderaldo Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 29/10/2001
34 TÍTULO: Índios misturados: identidades e desterritorialização no século XIX Autor: Márcia Fernanda Malheiros Orientador: Profª Drª Tania Stolze Lima Data da defesa: 17/12/2001
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35 TÍTULO: Trabalho e exposição: um estudo da percepção ambiental nas indústrias cimenteiras de
Cantagalo/ RJ – Brasil
Autor: Maria Luiza Erthal Melo Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva, Prof. Dr. Carlos Machado de Freitas (co-orientador) Data da defesa: 4/5/2001
36 TÍTULO: Samba, jogo do bicho e narcotráfico: a rede de relações que se forma na quadra de uma escola de samba em uma favela do
Rio de
Janeiro Autor: Alcyr Mesquita Cavalcanti Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 20/12/2001
37 TÍTULO: Mãos de arte e o saber-fazer dos artesãos de Itacoareci: um estudo antropológico sobre socialidade, identidades e identificações locais Autor: Marzane Pinto de Souza Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva Data da defesa: 6/2/2002
38 TÍTULO: Do alto do rio Erepecuru à cidade de Oriximiná: a construção de um espaço social em um núcleo urbano da Amazônia Autor: Andréia Franco Luz Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 27/3/2002
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39 TÍTULO: O fio do desencanto: trajetória espacial e social de índios urbanos em Boa Vista (RR) Autor: Lana Araújo Rodrigues Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues Data da defesa: 27/3/2002
40 TÍTULO: Deus é pai: prosperidade ou sacrifício? Conversão, religiosidade e consumo na Igreja Universal do Reino de Deus Autor: Maria José Soares Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 1/4/2002
41 TÍTULO: Negros em ascensão social: poder de consumo e visibilidade
Autor: Lidia Celestino Meireles Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 1/4/2002
42 TÍTULO: A cultura material da nova era e o seu processo de cotidianização
Autor: Juliana Alves Magaldi Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 20/7/2002
43 TÍTULO: A Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, Goiás: polaridades simbólicas em torno de um rito
Autor: Felipe Berocan Veiga Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 1/7/2002
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44 TÍTULO: Privatização e reciprocidade para trabalhadores da CERJ em Alberto Torres/ RJ Autor: Cátia Inês Salgado de Oliveira Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva Data da defesa: 4/7/2002
45 TÍTULO: Cada louco com a sua mania, cada mania de cura com a sua loucura
Autor: Patricia Pereira Pavesi Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 7/1/2003
46 TÍTULO: Linguagem de parentesco e identidade social, um estudo de caso: os moradores de Campo Redondo Autor: Cátia Regina de Oliveira Motta Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva Data da defesa: 7/1/2003
47 TÍTULO: Vila Mimosa II: A Construção do Novo Conceito da Zona Autor: Soraya Silveira Simões Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 20/1/2003
48 TÍTULO: Tão perto, tão longe: etnografia sobre relações de amizade na favela da Mangueira no Rio de Janeiro Autor: Geovana Tabachi Silva Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa Data da defesa: 20/1/2003
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49 TÍTULO: O mercado dos orixás: uma etnografia do Mercadão de Madureira no Rio de Janeiro Autor: Carlos Eduardo Martins Costa Medawar Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 20/1/2003
50 TÍTULO: Para além da “porta de entrada”: usos e representações sobre o consumo da canabis entre universitários
Autor: Jóvirson José Milagres Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 10/6/2003
51 TÍTULO: E o verbo (re)fez o homem: estudo do processo de conversão do alcoólico ativo em alcoólico passivo
Autor: Angela Maria Garcia Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 12/6/2003
52 TÍTULO: Le souffle au coeur & damage: quando o mesmo toca o mesmo em 24 quadros por segundo (Louis Malle e a temática do incesto) Autor: Débora Breder Barreto Orientador: Profª Drª Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto Data da defesa: 24/6/2003
53 TÍTULO: O faccionalismo xavante na terra indígena São Marcos e a cidade de Barra das Garças Autor: Paulo Sérgio Delgado Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 24/6/2003
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54 TÍTULO: Cartografia nativa: a representação do território, pelos guarani kaiowá, para o procedimento administrativo de verificação da
Funai Autor: Ruth Henrique da Silva Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer Data da defesa: 27/6/2003
55 TÍTULO: Nem muito mar, nem muita terra. Nem tanto negro, nem tanto branco: uma discussão sobre o processo de construção da identidade da comunidade remanescente de
Quilombos na
Ilha da Marambaia/RJ Autor: Fábio Reis Mota Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 27/6/2003
56 TÍTULO: Pendura essa: a complexa etiqueta de reciprocidade em um botequim do Rio de Janeiro Autor: Pedro Paulo Thiago de Mello Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 30/6/2003
57 TÍTULO: Justiça desportiva: uma coexistência entre o público e o privado
Autor: Wanderson Antonio Jardim Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima, Profª Drª Simoni Lahud Guedes (co-orientadora) Data da defesa: 30/6/2003
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58 TÍTULO: O teu cabelo não nega? Um estudo de práticas e representações sobre o cabelo
Autor: Patrícia Gino Bouzón Orientador: Prof. Dr. José Sávio Leopoldi Data da defesa: 5/2/2004
59 TÍTULO: Usos e significados do vestuário entre adolescentes
Autor: Joana Macintosh Orientador: Profª Drª Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes Data da defesa: 16/2/2004
60 TÍTULO: A cientifização da acupuntura médica no Brasil: uma perspectiva antropológica Autor: Durval Dionísio Souza Mota Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima; Profª Drª Simoni Lahud Guedes (co-orientadores) Data da defesa: 19/2/2004
61 TÍTULO: Das práticas e dos seus saberes: a construção do “fazer policial” entre as praças da PMERJ Autor: Haydée Glória Cruz Caruso Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 19/2/2004
62 TÍTULO: O processo denunciador – retóricas, fobias e jocosidades na construção social da dengue em
2002
Autor: Anamaria de Souza Fagundes Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 29/3/2004
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63 TÍTULO: Rua dos Inválidos, 124 – a vila é a casa deles
Autor: Marcia Cörner Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 29/3/2004
64 TÍTULO: Santa Tecla, Graça e Laranjal: regras de sucessão nas casas de estância do Brasil Meridional Autor: Ana Amélia Cañez Xavier Orientador: Profª Drª Eliane Catarino O’Dwyer Data da defesa: 25/5/2004
65 TÍTULO: Desemprego e malabarismos culturais Autor: Valena Ribeiro Garcia Ramos Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 31/5/2004
66 TÍTULO: Dimensões da sexualidade na velhice: estudos com idosos em uma agência gerontológica
Autor: Rosangela dos Santos Bauer Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 9/6/2004
67 TÍTULO: Lavradores de sonhos: estruturas elementares do valor cultural na conformação do valor econômico. um estudo sobre a propriedade capixaba no município de vitória
Autor: Alexandre Silva Rampazzo Orientador: Profª Drª Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 26/7/2004
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68 TÍTULO: Responsabilidade social das empresas: quando o risco e o apoio caminham lado a lado
Autor: Ricardo Agum Ribeiro Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva Data da defesa: 28/1/2005
69 TÍTULO: A escolha: um estudo antropológico sobre a escolha do cônjugue
Autor: Paloma Rocha Lima Medina Orientador: Profª Drª Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 3/2/2005
70 TÍTULO: Agricultores orgânicos do Rio da Prata (RJ): luta pela preservação social Autor: Pedro Fonseca Leal Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 23/2/2005
71 TÍTULO: Uma comunidade em transformação: modernidade, organização e conflito nas escolas de samba
Autor: Fabio Oliveira Pavão Orientador: Prof. Dr. José Sávio Leopoldi Data da defesa: 28/2/2005
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72 TÍTULO: Esculhamba, mas não esculacha: um relato sobre uso dos trens da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, enfatizando as práticas e os conflitos relacionados a comerciantes ambulantes e outros atores, naquele espaço social
Autor: Lênin dos Santos Pires Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 28/2/2005
73 TÍTULO: O porteiro, o panóptico brasileiro: as transformações do saber-fazer e do saber-lidar deste trabalhador Autor: Roberta de Mello Correa Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 18/3/2005
74 TÍTULO: Tempo, trabalho e modo de vida: estudo de caso entre profissionais da enfermagem
Autor: Renata Elisa da Silveira Soares Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data da defesa: 8/4/2005
75 TÍTULO: Espaço urbano e segurança pública: entre o público, o privado e o particular Autor: Vanessa de Amorim Pereira Cortes Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 18/4/2005
76 TÍTULO: Vida após a morte: salvo ou condenado? Autor: Andréia Vicente da Silva Orientador: Profª Drª Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 9/5/2005 Antropolítica
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77 TÍTULO: Dramas sociais, realidade e representação: a família brasileira vista pela
TV
Autor: Shirley Alves Torquato Orientador: Profª Drª Laura Graziela F. F. Gomes Data da defesa: 11/5/2005
78 TÍTULO: Consumidor consciente, cidadão negligente? Autor: Michel Magno de Vasconcelos Orientador: Profª Drª Laura Graziela F. F. Gomes Data da defesa: 18/5/2005
79 TÍTULO: Paixão pela política e política dos Paixão: família e capital político em um município fluminense
Autor: Carla Bianca Vieira de Castro Figueiredo Orientador: Prof. Dr. Marcos Otávio Bezerra Data da defesa: 6/3/2006
80 TÍTULO: Quando a lagoa vira pasto: um estudo sobre as diferentes formas de apropriação e concepção dos espaços marginais da Lagoa
Feia–RJ
Autor: Carlos Abraão Moura Valpassos Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 6/3/2006
81 TÍTULO: O dono da rota: etnografia de um vendedor no centro urbano do
Rio de Janeiro
Autor: Flavio Conceição da Silveira Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 6/3/2006 Antropolítica
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82 TÍTULO: Os caminhos da Maré: a turma 302 do CIEP Samora Machel e a organização social do espaço
Autor: Lucia Maria Cardoso de Souza Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 7/3/2006
83 TÍTULO: Os ciganos de calon do Catumbi: ofício, etnografia e memória urbana Autor: Mirian Alves de Souza Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello Data da defesa: 9/3/2006
84 TÍTULO: Disque-denúncia: a arma do cidadão. Processos de construção da verdade a partir da experiência da Central Disque-denúncia do Rio de Janeiro Autor: Luciane Patrício Braga de Moraes Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 9/3/2006
85 TÍTULO: Quando o peixe morre pela boca: Os “casos de polícia” na Justiça Federal Argentina na cidade de Buenos Aires Autor: Lucía Eilbaum Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data da defesa: 10/3/2006
86 TÍTULO: A dádiva no mundo contemporâneo: um estudo do dom monádico
Autor: Fabiano Nascimento Orientador: Profa Dra Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 10/3/2006 Antropolítica
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87 TÍTULO: A fumaça da discórdia: da regulação do consumo e o consumo de cigarros
Autor: Patrícia da Rocha Gonçalves Orientador: Profa Dra Lívia Martins Pinheiro Neves Data da defesa: 10/3/2006
88 TÍTULO: Família, redes de sociabilidade e casa própria: um estudo etnográfico em uma cooperativa habitacional em
São Gonçalo, RJ Autor: Michelle da Silva Lima Orientador: Profa Dra Simoni Lahud Guedes Data da defesa: 10/3/2006
89 TÍTULO: Identidade, conhecimento e poder na comunidade muçulmana do
Rio de Janeiro
Autor: Gisele Fonseca Chagas Orientador: Prof. Dr. Paulo Gabriel Hilu Pinto da Rocha Data da defesa: 10/3/2006
90 TÍTULO: Comércio ambulante na cidade do Rio de Janeiro: a apropriação do espaço público
Autor: Marcelo Custódio da Silva Orientador: Prof. Dr. José Sávio Leopoldi Data da defesa: 10/3/2006
91 TÍTULO: Revitalização urbana em Niterói: uma visão antropológica. Autor: André Amud Botelho Orientador: Profª Drª Laura Graziela F. F. Gomes Data de defesa: 31/03/2006 Antropolítica
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92 TÍTULO:
Educandos e os educadores: Imagens Refletidas. Estudo do processo de constituição de categoria ocupacional
Autor: Arlete Inácio dos Santos Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves Data de defesa: 28/04/2006
93 TÍTULO:
Sobre a disciplina no futebol brasileiro – uma abordagem pela Justiça Desportiva Brasileira
Autor: André Gil Ribeiro de Andrade Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes Data de defesa: 25/05/2006
94 TÍTULO: Polícia para quem precisa: um estudo sobre tutela e repressão do GPAE no Morro do Cavalão (Niterói) Autor: Sabrina Souza da Silva Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Data de defesa: 30/06/2006
95 TÍTULO: Mobilidade espacial e campesinato: gestão de alternativas escassas
Autor: Gil Almeida Félix Orientadora: Profa Dra Delma Pessanha Neves Data da defesa: 30/06/2006
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Revista Antropolítica
ARTIGOS PUBLICADOS
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Revista no 1– 2o semestre de 1996 Artigos Brasil: nações imaginadas José Murilo de Carvalho Brasileiros e argentinos em Kibbutz: a diferença continua Sonia Bloomfield Ramagem Mudança social: exorcizando fantasmas Delma Pessanha Neves Ostras e pastas de papel: meio ambiente e a mão invisível do mercado José Drummond
Conferências Algumas considerações sobre o estado atual da antropologia no Brasil Otávio Velho That deadly pyhrronic poison a tradição cética e seu legado para a teoria política moderna Renato Lessa
Resenha Uma antropologia no plural: três experiências contemporâneas. Marisa G. Peirano Laura Graziela F. F. Gomes
Revista no 2 – 1o semestre de 1997 Artigos Entre a escravidão e o trabalho livre: um estudo comparado de Brasil e Cuba no século XIX Maria Lúcia Lamounier O arco do universo moral Joshua Cohen A posse de Goulart: emergência da esquerda e solução de compromisso Alberto Carlos de Almeida Antropolítica
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In córpore sano: os militares e a introdução da educação física no Brasil Celso Castro Neoliberalismo, racionalidade e subjetividade coletiva José Maurício Domingues Do “retorno do sagrado” às “religiões de resultado”: para uma caracterização das seitas neopentecostais Muniz Gonçalves Ferreira
Resenhas As noites das grandes fogueiras – uma história da coluna Prestes José Augusto Drummond Os sertões: da campanha de Canudos, Euclides da Cunha; O sertão prometido: massacre de Canudos no nordeste brasileiro Terezinha Maria Scher Pereira
Revista no 3 – 2o semestre de 1997 Artigos Cultura, educação popular e escola pública Alba Zaluar e Maria Cristina Leal A política estratégica de integração econômica nas Américas Gamaliel Perruci O direito do trabalho e a proteção dos fracos Miguel Pedro Cardoso Elites profissionais: produzindo a escassez no mercado Marli Diniz A “Casa do Islã”: igualitarismo e holismo nas sociedades muçulmanas Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Quando o amor vira ficção Wilson Poliero
Resenha Nós, cidadãos, aprendendo e ensinando a democracia: a narrativa de uma experiência de pesquisa Angela Maria Fernandes Moreira-Leite Antropolítica
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243
Revista no 4 – 1o semestre de 1998 Artigos Comunicação de massa, cultura e poder José Carlos Rodrigues A sociologia diante da globalização: possibilidades e perspectivas da sociologia da empresa Ana Maria Kirschner Tempo e conflito: um esboço das relações entre as cronosofias de Maquiavel e Aristóteles Raul Francisco Magalhães O embate das interpretações: o conflito de 1858 e a lei de terras Márcia Maria Menendes Motta Os terapeutas alternativos nos anos 90: uma nova profissão? Fátima Regina Gomes Tavares
Resenha Auto-subversão Gisálio Cerqueira Filho
Revista no 5 – 2o semestre de 1998 Artigos Jornalistas: de românticos a profissionais Alzira Alves de Abreu Mudanças recentes no campo religioso brasileiro Cecília Loreto Mariz e Maria das Dores Campos Machado Pesquisa antropológica e comunicação intercultural: novas discussões sobre antigos problemas. José Sávio Leopoldi Três pressupostos da facticidade dos problemas públicos ambientais Marcelo Pereira de Mello Duas visões acerca da obediência política: racionalidade e conservadorismo Maria Celina D’Araújo Antropolítica
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244
Revista no 6 – 1o semestre de 1999 Artigos Palimpsestos estéticos y espacios urbanos: de la razón práctica a la razón sensible Jairo Montoya Gómez Trajetórias e vulnerabilidade masculina Ceres Víctora e Daniela Riva Knauth O sujeito da “psiquiatria biológica” e a concepção moderna de pessoa Jane Araújo Russo, Marta F. Henning Os guardiães da história: a utilização da história na construção de uma identidade batista brasileira Fernando Costa A escritura das relações sociais: o valor cultural dos “documentos” para os trabalhadores Simoni Lahud Guedes A Interdisciplinaridade e suas (im)pertinências Marcos Marques de Oliveira
Revista no 7 – 2o semestre de 1999 Artigos Le geste pragmatique de la sociologie française. Autour des travaux de Luc Boltanski et Laurent Thévenot Marc Breviglieri e Joan Stavo-Debauge Economia e política na historiografia brasileira Sonia Regina de Mendonça Os paradoxos das políticas de sustentabilidade Luciana F. Florit Risco tecnológico e tradição: notas para uma antropologia do sofrimento Glaucia Oliveira da Silva Trabalho agrícola: gênero e saúde Delma Pessanha Neves
Antropolítica
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Revista no 8 – 1o semestre de 2000 Artigos Prolegômenos sobre a violência, a polícia e o Estado na era da globalização Daniel dos Santos Gabriel Tarde: Le monde comme féerie Isaac Joseph Estratégias coletivas e lógicas de construção das organizações de agricultores no Nordeste Eric Sabourin Cartórios: onde a tradição tem registro público Ana Paula Mendes de Miranda Do pequi à soja: expansão da agricultura e incorporação do Brasil central Antônio José Escobar Brussi
Resenha Terra sob água – sociedade e natureza nas várzeas amazônicas José Augusto Drummond
Revista no 9 – 2o semestre de 2000 Artigos Desenvolvimento económico, cultural e complexidade Adelino Torres The field training project: a pioneer experiment in field work methods: Everett C. Hughes, Buford H. Junker and Raymond Gold’s re-invention of Chicago field studies in the 1950’s Daniel Cefaï Cristianismos amazônicos e liberdade religiosa: uma abordagem histórico-antropológica Raymundo Heraldo Maués Poder de policía, costumbres locales y derechos humanos en Buenos Aires de los 90 Sofía Tiscornia Antropolítica
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A visão da mulher no imaginário pentecostal Marion Aubrée
Resenha Reflexões antropológicas em tópicos filosóficos Eliane Cantarino O’Dwyer
Revista no 10/11 – 1o/2o semestres de 2001 Artigos Profissionalismo e mediação da ação policial Dominique Monjardet The plaintiff – a sense of injustice Laura Nader Religião e política: evangélicos na disputa eleitoral do Rio de Janeiro Maria das Dores Campos Machado Um modelo para morrer: última etapa na construção social contemporânea da pessoa? Rachel Aisengart Menezes Torcidas jovens: entre a festa e a briga Rosana da Câmara Teixeira O debate sobre desenvolvimento entre o Brasil e os EUA na década de cinqüenta W. Michael Weis El individuo fragmentado y su experiencia del tiempo Carlos Rafael Rea Rodríguez Igreja do Rosário: espaço de negros no Rio Colonial Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros In nomine pater: a ciência política e o teatro intimista de A. Strindberg Gisálio Cerqueira Filho Terra: dádiva divina e herança dos ancestrais Osvaldo Martins de Oliveira
Antropolítica
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Resenha Estado e reestruturação produtiva Maria Alice Nunes Costa
Revista no 12/13 – 1o/2o semestres de 2002 Artigos Transição democrática e forças armadas na América Latina Maria Celina D’Araújo Mercado, coesão social e cidadania Flávio Saliba Cunha Cultura local y la globalización del beber. De las taberneras en Juchitan, Oaxaca (México) Sergio Lerin Piñón Romaria e missão: movimentos sociorreligiosos no sul do Pará Maria Antonieta da Costa Vieira “O estrangeiro” em “campo”: atritos e deslocamentos no trabalho antropológico Patrice Schuch A transmissão patrimonial em favelas Alexandre de Vasconcelos Weber A sociabilidade dos trabalhadores da fruticultura irrigada do platô de Neópolis/ SE Dalva Maria da Mota A beleza traída: percepção da usina nuclear pela população de Angra dos Reis Rosane M. Prado Povos indígenas e ambientalismo – as demandas ecológicas de índios do rio Solimões Deborah de Magalhães Lima Raízes antropológicas da filosofia de Montesquieu José Sávio Leopoldi
Antropolítica
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Resenhas A invenção de uma qualidade ou os índios que se inventa(ra)m Mercia Rejane Rangel Batista China’s peasants: the anthropology of a revolution João Roberto Correia e José Gabriel Silveira Corrêa
Revista no 14 – 1o semestre de 2003 Dossiê Esporte e modernidade Apresentação: Simoni Lahud Guedes Em torno da dialética entre igualdade e hierarquia: notas sobre as imagens e representações dos Jogos Olímpicos e do futebol no Brasil Roberto DaMatta Transforming Argentina: sport, modernity and national building in the periphery Eduardo P. Archetti Futebol e mídia: a retórica televisiva e suas implicações na identidade nacional, de gênero e religiosa Carmem Sílvia Moraes Rial
Artigos As concertações sociais na Europa dos anos 90: possibilidades e limites Jorge Ruben Biton Tapia A (re)construção de identidade e tradições: o rural como tema e cenário José Marcos Froehlich A pílula azul: uma análise de representações sobre masculinidade em face do viagra Rogério Lopes Azize e Emanuelle Silva Araújo
Homenagem René Armand Dreifuss por Eurico de Lima Figueiredo
Antropolítica
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Revista no 15 – 2o semestre de 2003 Dossiê Maneiras de beber: proscrições sociais Apresentação: Delma Pessanha Neves Entre práticas simbólicas e recursos terapêuticos: as problemáticas de um itinerário de pesquisa Sylvie Fainzang Alcoólicos anônimos: conversão e abstinência terapêutica Angela Maria Garcia “Embriagados no Espírito Santo”: reflexões sobre a experiência pentecostal e o alcoolismo Cecília L. Mariz
Artigos Visões de mundo e projetos de trabalhadores qualificados de nível médio em seu diálogo com a modernidade tardia Suzana Burnier O povo, a cidade e sua festa: a invenção da festa junina no espaço urbano Elizabeth Christina de Andrade Lima Antropologia e clínica – o tratamento da diferença Jaqueline Teresinha Ferreira Mares e marés: o masculino e o feminino no cultivo do mar Maria Ignez S. Paulilo
Resenhas Antropologia e comunicação: princípios radicais José Sávio Leopoldi Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética Fátima Portilho Criminologia e subjetividade no Brasil Wilson Couto Borges
Antropolítica
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Revista no 16 – 1o semestre de 2004 Homenagem Luiz de Castro Faria: o professor emérito por Felipe Berocan da Veiga
Dossiê Políticas públicas, direito(s) e justiça(s) – perspectivas comparativas Apresentação: Roberto Kant de Lima Drogas, globalização e direitos humanos Daniel dos Santos Detenciones policiales y muertes administrativas Sofía Tiscornia Os ilegalismos privilegiados Fernando Acosta
Artigos Estado e empresários na América Latina (1980-2000) Álvaro Bianchi O desamparo do indivíduo moderno na sociologia de Max Weber Luis Carlos Fridman A construção social dos assalariados na citricultura paulista Marie Anne Najm Chalita As arenas iluminadas de Maringá: reflexões sobre a constituição de uma cidade média Simone Pereira da Costa
Resenhas Ética e responsabilidade social nos negócios Priscila Ermínia Riscado Novas experiências de gestão pública e cidadania Daniela da Silva Lima Uma ciência da diferença: sexo e gênero Fernando Cesar Coelho da Costa Antropolítica
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Revista no 17 – 2o semestre de 2004 Dossiê Por uma antropologia do consumo Apresentação: Laura Graziela Gomes e Lívia Barbosa Pobreza Da Moralidade Daniel Miller O consumidor artesão: cultura, artesania e consumo em uma Sociedade Pós-Moderna Colin Campbell Por uma sociologia da embalagem Franck Cochoy
Artigos A Antropologia e as políticas de desenvolvimento: algumas orientações Jean-François Baré Arquivo público: Um segredo bem guardado? Ana Paula Mendes de Miranda A concepção da desigualdade em Hobbes, Locke e Rousseau Marcelo Pereira de Mello Associativismo em rede: uma construção identitária em territórios de agricultura familiar Zilá Mesquita e Márcio Bauer Depois de Bourdieu: as classes populares em algumas abordagens sociológicas contemporâneas Antonádia Borges
Resenhas Modération et sobriété. Études sur les usages sociaux de l’alcool Fernando Cordeiro Barbosa Governança democrática e poder local: A experiência dos conselhos municipais no Brasil Débora Cristina Rezende de Almeida Uma ciência da diferença: sexo e gênero Fernando Cesar Coelho da Costa Antropolítica
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Revista no 18 – 1o semestre de 2005 Dossiê Responsabilidade social das empresas, segundo as Ciências Sociais Apresentação: Eduardo R. Gomes Responsabilidade social e globalização: redefinindo o papel das empresas transnacionais no Brasil Letícia Helena Medeiros Veloso A modernização de valores nas relações contratuais: a ética de reparação antecede o dever de responsabilidade? Paola Cappellin Business, politics and the surge of corporate social responsibility in Latin America Felipe Agüero
Artigos Xamanismo e renovação carismática católica em uma povoação de pescadores no litoral da Amazônia Brasileira: questões de religião e de gênero Raymundo Heraldo Maués e Gisela Macambira Villacorta Conexões transnacionais: redes de Advocacy, cooperação Norte-Sul e as ONGs latino-americanas Pedro Jaime Parentesco e política no Rio Grande do Sul Igor Gastal Grill Diversidade e equilíbrio assimétrico: discutindo governança econômica e lógica institucional na União Européia Eduardo Salomão Condé
Homenagem Eduardo P. Archetti (1943-2005) In Memoriam Pablo Alabarces
Resenha Livro: O desafio da colaboração: práticas de responsabilidade social entre empresas e Terceiro Setor Rosa Maria Fischer Autora da resenha: Daniela Lima Furtado
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Revista no 19 – 2o semestre de 2005 Dossiê Fronteiras e passagens: fluxos culturais e a construção da etnicidade Apresentação: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Eliane Cantarino O’Dwyer Etnicidade e o conceito de cultura Fredrik Barth Etnicidade e nacionalismo religioso entre os curdos da Síria Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Entre iorubas e bantos: a influência dos estereótipos raciais nos estudos afro-americanos Stefania Capone Os quilombos e as fronteiras da Antropologia Eliane Cantarino O’Dwyer
Artigos Engajamento associativo/sindical e recrutamento de elites políticas: “empresários” e “trabalhadores” no período recente no Brasil Odaci Luiz Coradini Crônicas da pátria amada: futebol e identidades brasileiras na imprensa esportiva Édison Gastaldo O duro, a pedra e a lama: a etnotaxonomia e o artesanato da pesca em Ponta Grossa dos Fidalgos Arno Vogel e José Colaço Dias Neto De antas e outros bichos: expressão do conhecimento nativo Jane Felipe Beltrão e Gutemberg Armando Diniz Guerra
Resenha Livro: A revolução urbana Henri Lefèbvre Autor da resenha: Fabrício Mendes Fialho Livro: Ser polícia, ser militar. O curso de formação na socialização do policial militar Fernanda Valli Nummer Autora da resenha: Delma Pessanha Neves Livro: Reflexões sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches Bruno Latour Autora da resenha: Verlan Valle Gaspar Neto Antropolítica
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Revista no 20 – 1o semestre de 2006 Dossiê Antropologia, mídia e construção social da realidade Apresentação: Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes “cantando espalharei por toda a parte, se a tanto me ajudar engenho e arte”: propaganda, técnicas de vendas E consumo no Rio de Janeiro (1850-1870) Almir El Kareh Identidades flexíveis como dispositivo disciplinar: algumas hipóteses sobre publicidade e ideologia em sociedades “pós-ideológicas” Vladimir Safatle Remediação e linguagens publicitárias nos meios digitais Vinícius Andrade Pereira Artigos O sorriso da lua Eli Bartra Alimentos transgênicos, incerteza científica e percepções de risco: Leigos com a palavra Renata Menasche Técnicos e usuários em programas de assistência social: encontros e desencontros Heloísa Helena Salvatti Paim A economia moral do extrativismo no médio rio negro: Aviamento, alteridade e relações interétnicas na amazônia Sidnei Peres Educação e ruralidades: por um olhar pesquisante plural Jadir De Morais Pessoa Resenhas Livro: Buenos vecinos, malos políticos: Moralidad y política en el gran Buenos Aires. Buenos Aires: Prometeo, 2004. 283 p. Sabina Frederic Autor da resenha: Fernanda Maidana Resenhando o conceito de “Double Bind” de Gregory Bateson em seis autores das ciências humanas contemporâneas Autora da resenha: Mônica Cavalcanti Lepri Notícias do PPGA Relação de dissertações defendidas no PPGA Revista Antropolítica: números e artigos publicados Coleção Antropologia e Ciência Política (livros publicados) Antropolítica
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COLEÇÃO ANTROPOLOGIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16.
Os fornecedores de cana e o Estado intervencionista Delma Pessanha Neves Devastação e preservação ambiental no Rio de Janeiro José Augusto Drummond A predação do social Ari de Abreu Silva Assentamento rural: reforma agrária em migalhas Delma Pessanha Neves A antropologia da academia: quando os índios somos nós Roberto Kant de Lima Jogo de corpo: um estudo de construção social de trabalhadores Simoni Lahud Guedes A qualidade de vida no Estado do Rio de Janeiro Alberto Carlos Almeida Pescadores de Itaipu (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Roberto Kant de Lima Sendas da transição Sylvia França Schiavo O pastor peregrino Arno Vogel Presidencialismo, parlamentarismo e crise política no Brasil Alberto Carlos Almeida Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro Antônio Carlos Rafael Barbosa Escritos exumados – 1: espaços circunscritos – tempos soltos L. de Castro Faria Violência e racismo no Rio de Janeiro Jorge da Silva Novela e sociedade no Brasil Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes O Brasil no campo de futebol: estudos antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro Simoni Lahud Guedes
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17. Modernidade e tradição: construção da identidade social dos pescadores de Arraial do Cabo (RJ) (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Rosyan Campos de Caldas Britto 18. As redes do suor – a reprodução social dos trabalhadores da pesca em Jurujuba (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Luiz Fernando Dias Duarte 19. Escritos exumados – 2: dimensões do conhecimento antropológico L. de Castro Faria 20. Seringueiros da Amazônia: dramas sociais e o olhar antropológico (Série Amazônia) Eliane Cantarino O’Dwyer 21. Práticas acadêmicas e o ensino universitário Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto 22. “Dom”, “Iluminados” e “Figurões”: um estudo sobre a representação da oratória no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro Alessandra de Andrade Rinaldi 23. Angra I e a melancolia de uma era Gláucia Oliveira da Silva 24. Mudança ideológica para a qualidade Miguel Pedro Alves Cardoso 25. Trabalho e residência: estudo das ocupações de empregada doméstica e empregado de edifício a partir de migrantes “nordestinos” Fernando Cordeiro Barbosa 26. Um percurso da pintura: a produção de identidades de artista Lígia Dabul 27. A sociologia de Talcott Parsons José Maurício Domingues 28. Da anchova ao salário mínimo: uma etnografia sobre injunções de mudança social em Arraial do Cabo/RJ (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Simone Moutinho Prado 29. Centrais sindicais e sindicatos no Brasil dos anos 90: o caso Niterói Fernando Costa
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30. Antropologia e direitos humanos (Série Direitos Humanos) Regina Reyes Novaes e Roberto Kant de Lima 31. Os companheiros – trabalho e sociabilidade na pesca de Itaipu/RJ (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro) Elina Gonçalves da Fonte Pessanha 32. Festa do Rosário: iconografia e poética de um rito Patrícia de Araújo Brandão Couto 33. Antropologia e direitos humanos 2 (Série Direitos Humanos) Roberto Kant de Lima 34. Em tempo de conciliação Angela Moreira-Leite 35. Floresta de símbolos – aspectos do ritual Ndembu Victor Turner 36. Produção da verdade nas práticas judiciárias criminais brasileiras: uma perspectiva antropológica de um processo criminal Luiz Figueira 37. Ser polícia, ser militar: o curso de formação na socialização do policial militar Fernanda Valli Nummer 38. Antropologia e direitos humanos 3 Roberto Kant de Lima (Organizador) 39. Os caminhos do leão: uma etnografia do processo de cobrança do imposto de renda Gabriela Maria Hilu da Rocha Pinto 40. Antropologia – escritos exumados 3 – Lições de um praticante L. de Castro Faria
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Normas de apresentação de trabalhos 1. A revista Antropolítica, do programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF, aceita originais de artigos e resenhas de interesse das Ciências Sociais e da Antropologia em particular. 2. Os textos serão submetidos aos membros do Conselho Editorial e/ou a pareceristas externos, que poderão sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo. 3. Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8 páginas, no caso das resenhas. Eles devem ser apresentados em duas cópias impressas em papel A4 (210 x 297 mm), espaço duplo, em uma só face de papel, bem como em disquete ou CD no programa Word for Windows, em fonte Times New Roman (corpo 12), sem qualquer tipo de formatação, a não ser: • indicação de caracteres (negrito e itálico); • margens de 3cm; • recuo de 1cm no início do parágrafo; • recuo de 2cm nas citações; e • uso de itálico para termos estrangeiros e títulos de livros e periódicos. 4. As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com as seguintes informações; sobrenome do autor em caixa alta; vírgula; data da publicação; vírgula; abreviatura de página (p.) e o número desta.
(Ex.: PEREIRA, 1996, p. 12-26)
5. As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser apresentadas no final do texto. 6. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do texto, obedecendo às normas da ABNT (NBR-6023). Livro: MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 208p. (Os Pensadores, 6)
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LÜDIKE, Menga, ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. FRANÇA, Junia Lessa et al. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. 3. ed. ver. e aum. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1996, 191 p. Artigo: ARRUDA, Mauro. Brasil: é essencial reverter o atraso. Panorama da Tecnologia, Rio de Janeiro, v. 3, n.8, p. 4-9, 1989. Trabalhos apresentados em eventos: AGUIAR, C. S. A. L. et. al. Curso de técnica da pesquisa bibliográfica: programa-padrão para a Universidade de São Paulo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO, 9., 1977, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: Associação Rio-Grandense de Bibliotecários, 1977. p. 367-385. 7. As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa reprodução gráfica. Elas deverão ser identificadas com título ou legenda e designadas, no texto, como figura (Figura 1, Figura 2 etc.) 8. Os textos deverão ser acompanhados de título e resumo (máximo 250 palavras) em português e inglês, bem como de 3 a 5 palavras-chave também em português e em inglês. 9 Os textos deverão ser precedidos de identificação do autor (nome, instituição de vínculo, cargo, título, últimas publicações etc.), que não ultrapasse 5 linhas. 10. Os colaboradores na modalidade artigos terão direito a três exemplares da revista; e na modalidade resenha, a um exemplar. 11. Os originais não aprovados não serão devolvidos. 12. Os artigos, resenhas e demais correspondências deverão ser enviados para: Comitê Editorial da Antropolítica Programa de Pós-Graduação em Antropologia Campus do Gragoatá, Bloco “O”, sala 325 24210-350 - Niterói, RJ Tels.: (021) 2629-2866 Antropolítica
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