Contribuição ao estudo das influências do iídiche sobre o esperanto

Page 1

Contribuição ao estudo das influências do iídiche sobre o esperanto Claude Piron Introdução Os falantes de iídiche que praticam esperanto muitas vezes têm um sentimento de que existe uma afinidade real entre as duas línguas, embora sutil demais para poder ser facilmente demonstrada. Teria essa impressão algum fundamento na realidade? O objetivo do presente artigo é oferecer à discussão alguns elementos que permitirão, talvez, avançar em direção a uma resposta objetiva. O Esperanto evoluiu sensivelmente após seu surgimento, em 1887; alterações de sentidos, introdução de neologismos, desenvolvimento de tendências latentes, ajustes interculturais foram provocados pela utilização prática da língua nos contextos mais diversos. É possível que uma influência do iídiche tenha se exercido sobre esse ou aquele aspecto dessa evolução, mas as considerações formuladas aqui se limitarão ao esperanto tal qual ele foi concebido por Zamenhof e praticado por ele nos primeiros anos de vida da língua (Zamenhof morreu em 1917). Uma primeira observação impõe-se: Zamenhof não organizou seu idioma de maneira absolutamente metódica: ele agiu muitas vezes empiricamente. Ele traduzia e redigia textos, e compunha a língua progressivamente, confiando mais na intuição e no sentimento estético do que na razão. O léxico dá testemunho disso de forma abundante. Se o esperanto fosse, como se diz às vezes, uma língua planificada, no sentido estrito, os princípios diretores teriam sido sistematicamente aplicados nos empréstimos, e o vocabulário apresentaria uma coerência que lhe é, pelo menos, ausente. É assim que ao lado de voĉo ‘voz’, encontra-se paco ‘paz’ (compare a coerência do italiano, do espanhol e do francês: voce, pace; voz, paz; voix, paix); ao lado de nacio ‘nação’, leciono ‘lição’ e kondiĉo ‘condição’; ao lado de ŝpari ‘economizar’ e de ŝteli ‘roubar’; anstataŭ ‘no lugar de’ (e não *anŝtataŭ). Stelo ‘estrela’ e studi ‘estudar’ coexistem com esperi ‘esperar (ter esperança)’; esprimi ‘expressar’ com ekskludi ‘excluir’. Do mesmo modo, Zamenhof escolhia tanto o schriftbild (boato ‘barco’, soifo ‘sede’ (subs. feminino relacionado a quem tem vontade de beber), birdo ‘pássaro’), quanto o lautbild1 (ŝanĝi ‘mudar’, vualo ‘véu’, rajti ‘ter o direito de’). O estudo da evolução gramatical testemunha o mesmo processo. A bela simetria das terminações verbais atuais é um fim, não um ponto de partida. Ela não se encontra nos primeiros projetos (Waringhien, 1959, 22-37). 1

Schriftbild e Lautbild são palavras de origem alemã que significam, respectivamente, ‘imagem escrita’ e ‘imagem acústica’. São usadas, nesse caso, para representar os empréstimos vocabulares de outras línguas feitos por Zamenhof durante a elaboração do Esperanto. (N.T.)

1


Teria Zamenhof feito empréstimos conscientes do iídiche? Nós não temos nenhum modo de saber, porque não possuímos nenhum documento onde ele tenha afirmado isso. A resposta a essa questão importa, para dizer a verdade, muito pouco, pois certamente é mais provável que se o iídiche exerceu alguma influência, isso se deu inconscientemente. Uma escolha resulta, geralmente, da convergência de vários fatores, uns conscientes, outros inconscientes. Acreditar que um fator é mais importante porque ele é consciente seria um grande erro. Sabemos, depois de Freud, que o argumento consciente é, muitas vezes, apenas uma simples racionalização. Nestas condições, é sem dúvida um falso problema se perguntar se fajro ‘fogo’ vem do inglês fire, do alemão Feuer ou do iídiche fayr. É provável que a palavra tenha se apresentado a Zamenhof como sendo evidente, pelo fato da convergência dessas três influências, reforçadas pelo f inicial das palavras correspondentes nas línguas românicas. Dito isso, é razoável admitir que, quaisquer que tenham sido as escolhas conscientes, as línguas que lhe eram mais familiares agiram sobre sua obra como um substrato.

O substrato A língua de substrato mais predominante é geralmente aquela que falamos com os colegas da escola e das brincadeiras ao longo de nossa vida escolar. Essa influência é geralmente mais forte que a da família, dos professores ou da língua oficial da região, como bem sabem todos os pais que se instalaram em uma nova zona linguística com os filhos em idade escolar. Sabemos por Holzhaus (1970, 19) que Zamenhof frequentou a escola primária judaica (kheyder). É provável que a língua que ele mais tenha falado com seus companheiros de estudo tenha sido o iídiche, que parece ter sido, julgando-se por Holzhaus (ibid.), a língua de instrução. Por outro lado, se seu pai exigia que se falasse russo dentro de casa, essa regra aplicava-se somente ao núcleo familiar. É pouco provável que o restante da família tenha sido tão obediente ao pai do jovem Lázaro. O iídiche estava, portanto, presente, segundo toda probabilidade, em amplo sentido no meio familiar. Enfim, nas relações com os habitantes judeus de Bialistoque e, mais tarde, de Varsóvia, sem dúvida era a língua mais empregada. Na Real’naja Gimnazija de Białistoque, e no Ginásio Secundário de Varsóvia, Zamenhof recebeu uma educação em russo. Mas isso significa que ele utilizava esta língua com seus colegas de classe? Pode-se presumir que ele tenha falado, sobretudo, russo em Bialistoque e polonês em Varsóvia. Seja como for, podemos afirmar, sem grandes riscos de nos enganar, que as duas línguas que formavam juntas o substrato mais influente nas suas estruturas mentais eram o iídiche e o russo, provavelmente seguidas muito de perto pelo polonês. Quanto ao alemão, é uma língua que ele conhecia bem, mas não tão bem quanto o iídiche. Dois fatos o testemunham. De um lado, ele escreveu poemas em iídiche, mas não em alemão. Ninguém publica poemas em uma língua que não domine verdadeiramente bem, se excluímos os 2


casos de esnobismo ou de narcisismo ingênuo; ora, nada no comportamento de Zamenhof nos permite fazer uma hipótese de tais traços de caráter. Aliás, um esnobe ou um narcisista não escreveria numa língua sem prestígio, como era o iídiche na época de Zamenhof. Podese concluir assim que ele se sentia mais à vontade nesta língua do que em alemão. Além disso, em 1915, ele pediu a Marie Hankel para lhe traduzir “em bom alemão” um artigo que gostava muito (Holzhaus, 1970, 39); ele não teria recorrido a outra pessoa se tivesse o sentimento de ter um domínio suficiente da língua. Por outro lado, se existia uma comunidade germanófona (não-judaica) na província de Grodno, e mesmo em Bialistoque, é duvidoso que Zamenhof tenha tido muitas relações com ela. É provável que seu conhecimento do alemão fosse mais exterior, mais livresco, do que seu conhecimento do iídiche, que vinha da vida cotidiana e estava por este fato muito mais profundamente enraizado em seu psiquismo. Outro argumento: nós não temos nenhum sinal de apego afetivo ao alemão, ou, aliás, ao polonês. Ao contrário, Zamenhof disse várias vezes que amava muito o russo e o primeiro artigo sobre o iídiche que ele publicou no número de maio de 1909 de Lebn un visnshaft começa pela frase “Kh’ lib heys dem azoy genantn zhargon” ‘Eu amo com um amor ardente esse assim chamado dialeto. No número de março de 1910, ele disse igualmente – eu cito a tradução literal dada em inglês por Gold (1980, 305-306) – “thirty years ago, when I worked with the Yiddish language with hot love” ‘há trinta anos, quando eu trabalhei com a língua iídiche com muito amor’. Ao contrário de muitas pessoas, ele via no iídiche “uma língua como todas as outras” (Homo Sum, 1901, citado por Holzhaus, 1970, 19). Ele sempre amou sua identidade judaica, por mais dolorosa que ela pudesse ser, e sempre se sentiu solidário ao povo judeu, isto é, a uma comunidade que, na Europa oriental, era falante do iídiche. O alemão certamente não tinha uma cumplicidade tão estreita com o mais íntimo de seu ser. A mesma observação é aplicável ao polonês. Enfim, uma influência é sempre maior quando há uma identificação, e pode-se imaginar que Zamenhof identificou o esperanto no iídiche, no sentido de que este último apresentava um modelo de língua internacional eficaz, particularmente para as classes socialmente desfavorecidas. O jovem autor pode ter se atentado para fato de que um falante do iídiche da Rússia ou da Ucrânia compartilhava uma língua comum (quaisquer que fossem as diferenças de pronúncia, de gramática, de vocabulário, etc.) com os habitantes judeus de zonas linguísticas estoniana, húngara, romena ou outras, nas quais as línguas locais não lhes eram compreensíveis e das quais os habitantes não-judeus de cultura modesta estavam privados de todo meio internacional de comunicação linguística. Ele sabia também que uma língua poderia parecer composta, heterogênea, e, no entanto, se prestar admiravelmente às exigências da vida prática, à discussão intelectual, à comunicação expressiva das emoções e dos sentimentos, bem como à atividade literária. É, portanto, provável que muitas vezes, quando Zamenhof queria definir a forma de uma palavra ou a maneira de exprimir uma sequência complexa de conceitos, a primeira solução que se apresentava a ele (mesmo que nem sempre plenamente consciente) eram as fórmulas iídiche e russa, mas não é menos certo que não lhe fosse permitido utilizar formas 3


cuja origem iídiche fosse perceptível. Ele era suficientemente realista para saber que os empréstimos diretos do iídiche seriam difíceis de justificar racionalmente em uma língua destinada a todos os povos. A intelligentsia não-judaica jamais teria admitido tal maneira de agir. A esse respeito, é preciso lembrar que o importante lugar de onde Zamenhof concordou ter admitido os radicais latinos e românicos visava, sem dúvida, tornar a língua aceitável para uma elite intelectual que, geralmente, tinha aprendido o latim e sabia o francês. Mesmo se a língua fosse, à primeira vista, destinada às pessoas do povo, e não somente à elite, era importante lhe dar um aspecto capaz de agradar à intelligentsia. A facilidade pela qual as palavras francesas eram assimiladas, em grande parte, pelo alemão e o russo, e a presença massiva do francês no léxico inglês eram dois argumentos a mais. A influência do iídiche foi, portanto, inconsciente na maioria dos casos. Se ela às vezes foi consciente, deve ter sido dissimulada. De um ponto de vista “oficial”, as línguas das quais Zamenhof mais lançou mão foram o francês, o latim, o alemão e o inglês.

Um exemplo: o tratamento de alguns grupos consonantais É provável que se tivéssemos perguntado a Zamenhof qual era a origem do verbo fajfi ‘assobiar’, ele teria citado o alemão pfeifen e não o iídiche fayfn. Gold (1980, 315-316) também confere uma parte preponderante ao alemão e concede ao iídiche, nesse caso, apenas um papel de reforço. Eu não sou da mesma opinião. Nada impedia Zamenhof de adotar formas tais como *pfajfi ou *ŝtopfi. Será que o grupo pf era demasiadamente específico do alemão para que pudesse ser usado em uma língua internacional? Mas se esse tipo de consideração o impedisse, por que teria ele lançado mão, tão frequentemente, de formas puramente alemãs? Tago ‘dia’ é menos internacional que *dago, e palavras como laŭbo ‘caramanchão’, ŝuldi ‘dever, ter dívidas’, ŝvebi ‘pairar’ não têm nada de universal para serem usadas. Se o grupo pf lhe tivesse parecido incômodo, porque excessivamente alemão, ele teria, pela mesma razão, rejeitado os grupos ŝm, ŝp, ŝt, etc., que não se encontram em nenhuma outra língua germânica além do alemão e do iídiche. É notável que em todas as palavras do esperanto que correspondem a uma palavra alemã que comporta uma africada e uma fricativa lábio-dental (pf), a palavra em esperanto segue o modelo iídiche: fajfi ‘assobiar’ (iíd. fayfn), fuŝi ‘trabalhar mal, fazer às pressas’ (iíd. fushern), mas ŝtopi ‘tapar, obstruir’ (iíd. shtopn). O exemplo citado por Gold (1980, 316) que contraria essa tese, kramfo ‘câimbra’, não pertence ao léxico de Zamenhof; ele foi introduzido posteriormente e se explica pela necessidade de evitar a homonímia com a palavra zamenhofiana krampo ‘grampo (mecânica); parêntese (gramática)’. Um outro exemplo interessante é o das oclusivas precedidas de uma fricativa alveolar (sibilante) ou de uma fricativa pós-alveolar. Por que o esperanto tem studi ‘estudar’, mas ŝtalo ‘aço’? A explicação nesses casos pelas línguas latinas ou pelo inglês 4


não é admissível. Se ela fosse válida, teríamos *spari, não ŝpari ‘economizar’, por causa do inglês spare, e *stofo, não ŝtofo ‘estofo, pano, tecido’ por causa do italiano stoffa (e do francês étoffe, porque para um é inicial corresponde frequentemente um s esperanto). A questão merece ser cercada mais de perto. Eu tentei fazê-lo estudando o conjunto de radicais zamenhofianos que se iniciam por sp, st, ŝp ou ŝt e tendo um equivalente em iídiche, em alemão, em russo e em polonês. O conjunto compreende 56 radicais. Sobre esse número, 53 (96%) têm um correspondente em iídiche2, 50 (89%) em alemão, 33 (59%) em russo e 27 (49%) em polonês. Nesse conjunto, as proporções respectivas de radicais do esperanto que têm uma semelhança na forma com a palavra correspondente na outra língua, particularmente naquilo que se refere ao caráter sibilante da consoante inicial, apresentam-se a seguir: iídiche 37/56, ou seja, 66% russo 25/56, ou seja, 45% polonês 20/56, ou seja, 36% alemão 12/56, ou seja, 21%. A correlação com o iídiche sobressai claramente. Mas talvez alguns possam fazer alguma objeção dizendo que, dado o critério aplicado, a amostra tem uma influência que favorece o iídiche. De fato, se no lugar de calcular para as quatro línguas a porcentagem em relação aos 56 radicais da amostra, apenas tendo em conta palavras análogas em esperanto e na língua considerada, o russo e o polonês alcançam o iídiche: russo 25/33, ou seja, 76% polonês 20/27, ou seja, 74% iídiche 37/53, ou seja, 70% alemão 12/50, ou seja, 24%. Notaremos, todavia, que a diferença permanece grande entre o iídiche e o alemão. O manejo das estatísticas é sempre delicado e, apesar do argumento apresentado acima, talvez seja falso argumentar em um caso como este sem levar em conta a influência de outras línguas vastamente utilizadas por Zamenhof, como o francês e o latim. Ainda assim a porcentagem elevada de semelhanças entre o iídiche e o esperanto não é menos notável em relação ao alemão. Será que, dirão alguns, o iídiche e o esperanto zamenhofiano simplesmente tratam seus empréstimos da mesma maneira? Mas como explicar essa semelhança a não ser pela existência de um modelo iídiche subjacente à escolha de Zamenhof?

2 São eles ŝpalie, ŝpat, ŝpinak / ŝpinat, ŝpindl, ŝpinen, ŝpion, ŝpricn, ŝporn, ŝprot, ŝtab, ŝtang, onŝtaplen, ŝtal, ŝtat, ŝtempl, ŝteyn, ŝtof, ŝtol, ŝtopn, ŝtopsl, spermacetn, specjel, specifirn, spiralik, spiritualizm, sporadish, spritne, stadie, stamin, statik, stacje / stancj, statue, statur, status, step, stil, stimulirn, stoish, stole, strikt, strof, struktur, studjum, student, stuko, stur.

5


A complexidade do problema: schriftbild e lautbild Duas tendências de Zamenhof complicam muito o problema da etimologia do esperanto. De um lado, muitas vezes ele chegou a escolher uma forma que representava um compromisso, isto é, uma forma fácil de guardar para pessoas de línguas diferentes. Será que ele saberia que strato ‘rua’ corresponde exatamente ao holandês straat? É duvidoso. Ele deve ter escolhido essa forma porque ela era intermediária entre o inglês street e o alemão Strasse. Najtingalo ‘rouxinol’ é provavelmente mais um compromisso entre o inglês nightingale (> *najtingelo, *najtingejlo) e o alemão Nachtigall (>*naĥtigalo) do que entre o lautbild e o schriftbild da palavra inglesa. A forma strebi ‘esforçar-se, empenhar-se’ (e não *ŝtrebi) explica-se sem dúvida pelo russo stremit’sja, talvez também pelo inglês strive. E ŝtono ‘pedra’ só pode ser uma miscigenação do inglês stone, do alemão Stein e do iídiche shteyn. Por outro lado, Zamenhof desejava muito evitar as homonímias: ŝpini ‘fiar, tecer’ teve a preferência sobre *spini (inglês spin), porque o radical spin já existia com o sentido de ‘coluna vertebral’, para o qual havia uma convergência múltipla: latim spina; russo spin; inglês – schriftbild – spine; francês épine dorsale (adjetivo francês spinal)3. A essas duas características do trabalho zamenhofiano seremos tentados a juntar uma aparente indiferença quanto à escolha entre o schriftbild e o lautbild. Essa impressão, que nos leva a considerar as influências da forma escrita e da pronúncia como quase equiprováveis, é invalidada pela análise dos fatos. Ela vem, sem dúvida, do fato de que formas como soifo ‘sede (subs. feminino relacionado a quem tem vontade de beber)’, foiro ‘feira, mercado’ ou boato ‘barco’ são tão notáveis que elas ocupam um lugar desproporcional na memória daquele que medita sobre esses temas. De fato, elas são exceções. É isso o que confirma o estudo do vocabulário, contanto que se admitam algumas regras muito constantes, como o fato de que um c latino diante de e ou i corresponde geralmente a um c esperanto (provavelmente em razão da pronúncia do latim por Zamenhof) e que a um ch francês corresponde geralmente a um ĉ esperanto, enquanto que o lautbild daria um ŝ. Sem dúvida, trata-se aqui de uma generalização do sistema adotado, num espírito de compromisso, para as numerosas palavras comuns ao inglês e ao francês: parece mais justo atribuir o ĉ de ĉarma ‘charmoso’, ĉefo ‘chefe’, ĉeko ‘cheque’, ĉokolado ‘chocolate’, etc., à pronúncia da língua inglesa do que à influência de um schriftbild francês, de alguma maneira bem desfigurado pela perda do h. Uma vez admitidas essas regras, percebe-se que a preferência pelo schriftbild é muito rara. Em uma sondagem que efetuei sobre uma amostra aleatória de 500 radicais do vocabulário do Fundamento4 para as quais a questão se apresentava (isto é, exceto palavras 3

Em português: espinal ou espinhal. (N.T.)

4 O “Fundamento” é uma obra composta da “Gramática em dezesseis regras”, do “Léxico universal” e da “Coletânea de exercícios”, publicada em 1887 por Zamenhof e à qual o primeiro Congresso Universal de esperanto (Boulogne-sur-mer, França, 1905) conferiu o status de base oficial da língua. (N.T.)

6


como eĉ ‘mesmo’ – com o sentido do inglês even –, edzo ‘marido’, ĉio ‘tudo’, de etimologia pouco clara; no caso de edzo, cf. Golden, 1982), 488 formas (97,6%) se explicavam pelo lautbild e apenas 12 (2,4%), pelo schriftbild. Esse número é ainda mais notável porque eu dei o máximo de chances ao schiftbild, recusando confiar em certos casos de assimilação; por exemplo, eu incluí blov ‘soprar’ (< inglês blow) na categoria schriftbild, ao passo que se trata, provavelmente, de uma generalização do sistema admitido para brov ‘sobrancelha’, onde ao w inglês (brow) corresponde a um v russo (brov’). A predominância do lautbild é importante para o tema que estudamos, pois é tentador atribuir a etimologia dessa ou daquela forma em esperanto ao alemão e não ao iídiche, invocando o schriftbild. É assim que, no artigo já mencionado, Gold (1980, 316) diz: “What are the origins of Esperanto hejmo and hejti? Yiddish has heym and heytsn (...). German has Heim and heizen, with /aj/. Esperanto has a diphthong /aj/ and one would therefore expect that, if from German, these words would be pronounced *hajmo and *hajti. It is hard to believe that Zamenhof would borrow these words from Yiddish and we must therefore link them in some way with German (...). The answer is that Zamenhof borrowed the schriftbild rather than the lautbild”5. Eu duvido que tenha sido assim. Zamenhof não tinha nenhuma razão para escolher ej nesse caso e não nos outros. Por que fajli ‘polir’ e fajfi ‘assobiar’, mas hejmo ‘lar’? É improvável que a correspondência com o iídiche fayln, fayfn, heym seja somente o efeito do acaso, dado o que foi dito acima sobre a predominância superior do iídiche, em relação ao alemão, nas escolhas inconscientes de Zamenhof. Um outro argumento manifesta-se a favor da tese da etimologia do iídiche. A ideia de ‘em casa’ exprime-se em esperanto por hejme. Se a influência do alemão tivesse sido predominante, ter-se-ia *dome (correspondendo ao alemão zu Hause, ao russo doma, ao polonês w domu), enquanto que o iídiche diz in der heym. A conotação afetiva da palavra pode, aliás, desempenhar um papel que não podemos negligenciar, da mesma forma que o reforço pelo inglês at home. Outro exemplo: o esperanto ŝati ‘estimar, prezar’ (na língua de Zamenhof; hoje em dia, ‘amar’ no sentido do inglês ‘to like’) me parece conservar mais do iídiche shatsn do que do alemão schätzen. A tese de Gold (1980) segundo a qual Zamenhof teria partido da forma escrita suprimindo o signo diacrítico não é convincente. Se essa forma de proceder fosse aceitável para ele, encontraríamos exemplos desse tipo em outros lugares: pökeln teria dado *pokeli ou *pokli, ao invés de pekli ‘salgar para conservar’, e sägen ‘serrar’ *sagi no lugar de segi.

5

“Quais são as origens de heijmo e hejti do esperanto? O iídiche tem heym e heytsn (...). O alemão tem Heim e heizen, com /aj/. O esperanto tem o ditongo /aj/ e alguém poderia achar que, se vindas do alemão, estas palavras seriam pronunciadas *hajmo e *hajti. É difícil acreditar que Zamenhof tomaria emprestadas as palavras do iídiche, logo, somos obrigados a ligá-las, de alguma forma, ao alemão (...). A resposta é que Zamenhol tomou emprestado o schriftbild em vez do lautbild”. (N.T.)

7


Será que não há sentido em pensar dessa maneira, enquanto que, como vimos na introdução, Zamenhof agiu na ausência de qualquer outro sistema? Mas “inconsciente” – e sobretudo “empírico” ou “intuitivo” – não significa “aleatório”, nem “sem causa”. Uma influência do tipo substrato comporta sempre certa regularidade. Se nunca, ou praticamente nunca, Zamenhof recorre à supressão do umlaut nos empréstimos do alemão, é porque um fator, provavelmente inconsciente, o impulsionava a preferir uma outra solução. Igualmente, é porque há uma grande regularidade na correspondência entre o c latino diante de e ou i e o c esperanto, pronunciado /c/ (cervo ‘veado’, necesa ‘necessário’, acero ‘bordo’...), que podemos ver em voĉo ‘voz’ um empréstimo, não do latim, mas do italiano. É um fato psicológico bem conhecido: uma série de escolhas operadas aparentemente ao acaso, isto é, fora de todo plano, de toda organização metódica, pode atestar uma regularidade devido à intervenção de estruturas inconscientes. De fato, o único caso onde uma forma zamenhofiana não é suscetível de nenhuma outra explicação a não ser um empréstimo do alemão com supressão do umlaut é fraŭlino ‘senhorita’ (<Fräulein). Quando se trata dos ditongos äu e eu, Zamenhof respeita sempre o schriftbild: Eŭropo, leŭtenanto (cf. russo lejtenant, iídiche leytenant). Sem dúvida ele julgou que o schriftbild fosse mais internacional. Na minha opinião, está correto. Muitos estrangeiros conhecem a palavra Fräulein, mas não sabem como pronunciá-la (certamente é o caso da maioria dos francófonos não-suíços). Podemos concluir a partir da forma da palavra em esperanto fraŭlino que esta transformação só deve ser invocada com a maior prudência. (Sobre o iídiche shatsn > esperanto ŝati, se observará incidentalmente a curiosa passagem de /c/ a /t/ que se encontra igualmente no iídiche shvitsn > esperanto ŝviti, no iídiche heytsn > esperanto hejti; trata-se talvez da extensão em ŝati, por assimilação, de um compromisso com as formas inglesas sweat e heat). Alguns, sem dúvida, irão ver em ŝuti ‘despejar, derramar’ um exemplo de empréstimo do alemão (schütten), com substituição de ü por u. De fato, podemos nos perguntar se não se trata, aqui, de um caso particular de uma tendência surpreendente que manifestou Zamenhof em utilizar um u em uma raiz onde se esperaria antes um i (a palavra correspondente é shitn em iídiche). Por que ele diz ŝpruci ‘esguichar, jorrar’, enquanto que o alemão diz spritzen e o iídiche shpritsn? O italiano spruzzare não oferece uma explicação bem convincente para uma palavra tão pouco usada. Por que dungi ‘assalariar, empregar’ (alemão dingen, iídiche dingen)? Certamente, o particípio passado é gedungen no iídiche do nordeste da Europa, mas Zamenhof não tinha nenhuma razão para preferir a vogal do particípio em lugar da do infinitivo; se essa tivesse sido a explicação do u de dungi, seria um caso totalmente excepcional. Bindi ‘encadernar’, ŝpini ‘fiar, tecer’, ŝteli ‘roubar’, trinki ‘beber’ e muitos outros verbos teriam uma forma diferente se o empréstimo tivesse sido feito do particípio. A forma gliti ‘escorregar, deslizar’ explica-se, sem dúvida, mais pelo iídiche glitshn e pelo francês glisser do que pelo particípio geglitten do verbo alemão gleiten. Por que flugi ‘voar’ (alemão fliegen, iídiche flien)? É pouco provável que a etimologia dessa última palavra tenha sido o substantivo Flug. De um lado, muitos indícios mostram que Zamenhof via no verbo a forma principal de onde derivam todas as outras, sobretudo quando se trata de uma ação, de acordo com uma ideia muito difundida junto aos filólogos da época e conforme à estrutura do hebraico (é assim que ele faz de armi ‘armar’ a forma-mãe, a palavra ‘arma’ sendo uma derivada: armilo). De outro lado, se ele tivesse 8


sentido o substantivo como o étimo, é este que ele teria registrado no seu léxico. Ora, o vocabulário da versão alemã do Léxico universal tem flugi ‘fliegen’, e não flugo, ‘Flug’. Poderíamos estar tentados a atribuir o u de ĉu ‘partícula interrogativa’ a essa estranha predileção pelo som u. De fato, ele representa sem dúvida nenhuma um compromisso entre o polonês czy e o iídiche oriental tsu (correspondente ao iídiche padrão tsi); lembremo-nos que o iídiche de Bialistoque pertencia ao iídiche oriental. A influência do polonês deve ter sido preponderante: a ordem das palavras de uma questão introduzida por ĉu segue o modelo polonês e não o modelo iídiche.

Alguns casos interessantes de correspondência semântica ou estrutural entre o iídiche e o esperanto O exemplo de ĉu ilustra bem a complexidade do problema. Seria de fato uma simplificação excessiva considerar apenas a forma da palavra, como se elementos mais profundos, de ordem estrutural ou semântica, não tivessem desempenhado nenhum papel. Zamenhof sabia que na maioria das línguas europeias a inversão do sujeito é a maneira mais comum de marcar uma frase interrogativa. Por que ele não utilizou esse sistema? Ao lado da influência preponderante do iídiche e do polonês, um reforço de tipo estrutural pode ter sido assegurado pelo francês est-ce que e talvez ainda pelo inglês do, que pode ter contribuído para a escolha da vogal. Embora se tratasse, gramaticalmente, de uma outra coisa, uma estrutura inglesa como do you know? possui uma forma paralela a czy ty znasz?, a est-ce que tu sais? e, logo, a ĉu vi scias?6. Diante de tal convergência de influências, é infelizmente impossível conhecer a proporção respectiva das diversas forças em jogo. Entre os casos possíveis de influência puramente semântica, é preciso classificar a partícula do, emprestada do francês donc, com um reforço, sem dúvida, pelo iídiche oriental to. Na maioria dos casos ela desempenha o papel do iídiche zhe. Dizemos em esperanto donu do al mi, seguindo assim a ordem das palavras do iídiche gib zhe mir e não a do francês donne-moi donc. Esta influência é compartilhada com aquela do polonês że e do russo zhe. Mas o campo semântico do russo zhe é mais amplo que o do iídiche zhe, porque ele abarca o sentido do francês même ‘mesmo’ (inglês ‘same’). Um terceiro exemplo nos é fornecido pela preposição laŭ, cuja frequência em esperanto é, salvo engano, mais próxima dessa do iídiche loyt do que do laut alemão, que fornece a etimologia “oficial”. Laŭ emprega-se em muitos casos onde diríamos antes gemäss ou nach em alemão. A palavra que significa ‘próximo’, em referência ao tempo, pode figurar nessa série. Dizemos em esperanto venonta ‘que virá’. O emprego do verbo ‘vir’ não se explica nem pelo russo buduščij, nem pelo alemão nächst. As outras línguas das quais Zamenhof tirava com mais freqüência seu material linguístico utilizam igualmente um outro conceito: o inglês diz next, o francês prochain e o latim proximus ou futurus. O iídiche kumendik 6

Em português: você sabe? (N.T.)

9


(<kumen ‘vir’) – com, talvez, reforço pelo hebreu ba – poderia muito bem ter exercido a influência mais direta, o polonês przyszly (<przyjść ‘vir’) vindo corroborar essa escolha. A ideia de utilizar um sufixo para indicar uma partícula de matéria procede sem dúvida de uma convergência entre o iídiche, o russo e o polonês. O paralelismo é notável entre o iídiche shneyele, zemdl, shteybl, etc., o russo sneinka, pesčinka, pylinka e o esperanto neĝero ‘floco de neve’, sablero ‘grão de areia’ e polvero ‘grão de poeira’, ainda que o esperanto não utilize um diminutivo. Um caso onde é difícil negar a influência predominante do iídiche é o da distinção que o esperanto faz entre os adjetivos landa ‘nacional, do país’ e nacia ‘nacional, da nação’. Essas duas palavras correspondem, respectivamente, ao iídiche landish e natsyonal. Ora, essa distinção não se encontra nas outras línguas das quais Zamenhof tinha o costume de tomar emprestado. O russo diz narodnyj ou nacional’nyj, mas não tem adjetivo derivado diretamente de ‘país’. O polonês tem somente narodowy. O alemão não tem adjetivo derivado de Land; ele emprega este monema como primeiro termo de uma palavra composta, seja sob a forma Land- no sentido de ‘rural, campestre’, seja sob a forma Landes- no sentido do esperanto landa, do iídiche landish, mas não se saberia assimilar essas estruturas a adjetivos. O inglês e o francês têm somente national. Quando o inglês emprega country em posição adjetiva, tem o sentido de ‘rural’. A palavra artsi, em hebreu moderno, tem uma formação paralela e um sentido idêntico ao esperanto landa. Ele também representa, segundo toda verossimilhança, um vestígio do iídiche landish. Alguns farão objeção dizendo que a palavra landa, longe de estar relacionada com o iídiche, resulta simplesmente de uma formação interna da língua e representa somente uma aplicação da regra geral que permite ao esperanto formar palavras de qualquer categoria gramatical a partir de todo radical, por simples junção da vogal correspondente à função (-a para a função adjetiva; a mesma objeção poderia, aliás, ser feita à tese sobre a qual artsi refleteria uma formação iídiche). Essa maneira de ver, convincente à primeira vista, não leva em conta, entretanto, a influência extremamente forte dos diversos substratos agindo sobre o esperanto. Essa presença do substrato é atestada, por exemplo, pelo fato de que empregamos quase sempre internacia ‘internacional’ lá onde a formação interna e uma verificável adequação palavra/conceito exigiria interlanda (< land- ‘país’), interŝtata (<ŝtat- ‘Estado’), ver intergenta (< gent- ‘etnia, povo’). O substrato ocidental, que reforça o de Zamenhof, conduziu a maioria dos esperantistas a adotar (inconscientemente) uma forma próxima daquela que eles utilizam na vida cotidiana fora do mundo do esperanto, sem se colocar a questão de saber se se trata verdadeiramente de nação em vez de país ou Estado. A ONU, por exemplo, é sempre qualificada de internacia; deveríamos dizer interŝtata, pois são os Estados que votam, que decidem, que organizam, não as nações. O fato de dizermos internacia organizo ‘organização internacional’, mas landa asocio ‘associação nacional’ (e não nacia, que seria conforme o uso da maioria das línguas europeias, ou landasocio, fórmula exatamente correta seguindo o modelo alemão) evoca a influência de um substrato iídiche, única língua onde se encontram formas paralelas a essas do esperanto: internatsyonal no primeiro caso, landish no segundo. 10


Aliás, a maneira pela qual o iídiche e o esperanto apresentam a diferenciação que faz o russo entre russkij e rossijskij impressiona pelo seu paralelismo, mesmo que as palavras sejam relativamente tardias nas duas línguas: o iídiche diz rusish e ruslendish, o esperanto, rusa e ruslanda (ou rusia). Certamente, as duas línguas não fazem outra coisa a não ser aplicar o modelo russo, mas, precisamente, o sentimento de afinidade mencionado na introdução inclina-se a esse gênero de paralelismo. É fato que nenhuma língua realiza essa distinção. Como último exemplo de influência provável do iídiche, podemos citar a palavra respondi no sentido de ‘corresponder (a alguma coisa)’, que o esperanto compartilha com o iídiche enfern; nos dois casos, o sentido primeiro da palavra é ‘responder’. Esse uso não pode ser atribuído nem ao russo, que diz nesse caso sootvetstvovat’ (não otvečat’), nem ao alemão, que não utiliza antworten, mas entsprechen em tal caso. Em francês, podemos teoricamente dar à palavra répondre essa significação, mas esse uso é raro, a palavra que vem espontaneamente ao espírito dos francófonos sendo sempre correspondre. A melhor prova disso é que a maior parte dos francófonos que falam esperanto diz nesse caso korespondi, enquanto que, com base no uso de Zamenhof e nos dicionários, esse termo deveria se limitar à correspondência escrita.

Influência sobre a forma das palavras em esperanto Não existe, sem dúvida, um único caso em que a forma de uma palavra em esperanto possa ser considerada como derivando direta e unicamente de um étimo iídiche. O único caso no qual muitos esperantistas acreditaram é o monema edz ‘marido, cônjuge’, onde se quis ver, por causa do feminino edzin, um empréstimo do etsn de rebetsn, mas o artigo de Bernard Golden no volume n° 2 da Jewish Language Review (Golden, 1982) mostra a que ponto a argumentação feita a favor dessa tese é questionável. Se considerarmos, não a sucessão dos fonemas, mas o tipo de formação, encontramos três casos nos quais a influência do iídiche é indiscutível: antaŭtuko ‘avental’, lernolibro ‘manual, livro didático’ e superjaro ‘ano bissexto’. Como apontado por Gold (1980, 327), antaŭtuko pode derivar somente do iídiche fartekh. Se a etimologia fosse o russo fartuk ou o polonês fartuszek / fartuch, formas emprestadas do iídiche, assim como atesta o elemento far, retomado como uma sílaba desprovida de significação e não como um prefixo, teríamos dito *fartuko. O caso de lernolibro foi assinalado por Verloren van Themaat (citado por Gold, 1982, 8). Esta forma não é explicável pelo alemão Lehrbuch, que teria dado instrulibro (palavra correta, mas quase não empregada); ao contrário, ela corresponde exatamente ao iídiche lernbukh. Gold prefere uma etimologia russa a uma etimologia iídiche. Eu não compartilho da opinião dele. A expressão russa é učebnaja kniga e ela só poderia dar em esperanto instrua libro ou lerna libro, formas aliás perfeitamente corretas, mas inusitadas.

11


Superjaro, enfim, reproduz muito exatamente a etimologia popular do iídiche iberyor para que se possa duvidar de uma filiação direta. Nenhuma outra língua traduz dessa maneira o conceito de ano bissexto. Quanto às palavras cuja forma, em esperanto, segue de perto aquela da palavra iídiche de mesmo sentido, elas compartilham sempre essa etimologia com uma outra língua. Para tomar o exemplo de uma derivação aparente do alemão, é interessante constatar que ao lado de Posten > posteno ‘posto (p. ex. militar)’, Faden > fadeno ‘fio, linha’, Gulden > guldeno ‘florim’, temos Schinken > ŝinko ‘presunto’, e não *ŝinkeno. Mas a interpretação pelo iídiche shinke é insuficiente, o polonês szynka deve aqui ser levado em consideração. O verbo em esperanto liveri vem provavelmente e, sobretudo, do iídiche livern (talvez passando pelo iíd. liverant > esperanto liveranto). O francês livrer, agindo sozinho, teria dado *livri, o inglês deliver *deliveri ou, mais provavelmente, *delivri, e o alemão liefern *lifri ou *liferi. Solução de compromisso ou influência do iídiche? As duas, mas em uma proporção que restará sempre impossível de determinar. Podemos admitir que quando Zamenhof teve que exprimir esse conceito, a palavra iídiche lhe veio imediatamente ao espírito, surgindo-lhe como uma excelente solução de compromisso entre várias línguas importantes. A palavra meblo representa um caso análogo: ele se encontra ao mesmo tempo no iídiche mebl, no russo mebel’, no polonês mebel e no francês meuble, com reforço pelo alemão Möbel. Esse exemplo confirma a hipótese segundo a qual o schriftbild do alemão, eventualmente com supressão do signo diacrítico, não supera praticamente nunca os outros fatores. Na hipótese contrária, teríamos *moblo, forma que reforçaria ao mesmo tempo a transcrição clássica do /œ/ francês pelo o (cœur > kor, honneur > honor) e a etimologia latina, que Zamenhof facilmente levava em consideração (sankta é menos internacional e menos fácil de pronunciar que *santa). Influência do iídiche sobre a sintaxe e as feições do esperanto Um certo número de traços diferencia sob esse ponto-de-vista o esperanto das línguas da Europa ocidental. Por exemplo, nas frases condicionais introduzidas por ‘se’, utiliza-se a forma condicional do verbo tanto na subordinada quanto na principal: se mi konus lin, mi lin demandus ‘se eu o conhecesse, eu lhe perguntaria’, literalmente: ‘se eu o conheceria, eu lhe perguntaria’; emprega-se no discurso indireto o tempo que teríamos empregado no discurso direto (li diris, ke li komprenas ‘ele disse que compreendia’, literalmente: ‘ele disse que compreende’); a ordem das palavras é muito livre (lin mi tre amas ‘eu o amo muito’, literalmente: ‘a ele eu muito amo’), etc. Todos esses traços se encontram no iídiche, mas também no russo e no polonês. O artigo de Gold (1980), citado várias vezes, aborda essa questão (embora ele atribua ao iídiche, provavelmente de forma errônea, somente um papel de reforço) e parece mais sábio dar a referência a ele do que sobrecarregar este artigo reproduzindo aquilo que foi exposto em outros lugares.

12


Conclusão Parece-me que podemos responder afirmativamente à questão colocada no começo deste artigo: existe um fundamento real na impressão subjetiva de uma afinidade entre o iídiche e o esperanto? De fato, talvez essa afinidade esteja presente, sobretudo nos domínios mais sutis: ordem das palavras, sintaxe, palavras de sentimento e expressões de atitude (nu ‘ora, pois bem’, iíd. nu; do ‘portanto, então, logo’, iíd. to, zhe; kompreneble ‘compreensivelmente, certo (adv.)’, iíd. farshteyt zikh; ve ‘desgraçadamente’, iíd. oy vey; hejme ‘em casa’, iíd. in der heym), frequência dos ditongos do tipo aj, ej, oj etc. Mas ela aparece igualmente em um certo número de casos que podem ser esclarecidos pela análise do material linguístico, como vimos nas páginas anteriores. O esperanto tem mais afinidades com o iídiche do que com as outras línguas? Qualquer que pudesse ser sua importância nas estruturas mentais do jovem Zamenhof trabalhando na elaboração de sua língua, eu não acredito que seja esse o caso. Um dos milagres do esperanto reside justamente no fato de que um número muito grande de pessoas se sente à vontade nele. Um francês reconhece ali uma parte enorme do vocabulário, um italiano também e, além disso, uma fonologia, um falante de eslavo, uma sintaxe e um estilo, um alemão, um sistema de formação de palavras, um turco, palavras complexas formadas por junção de sufixos (rusigonte ‘que se preparará para traduzir para o russo’, estraraniĝis ‘tornou-se membro da diretoria’), um chinês, uma total invariabilidade de monemas suscetíveis de combinações múltiplas (Piron, 1981) e um falante de iídiche, uma atmosfera sutil criada pela presença, sob o disfarce latino, de uma síntese de sintaxe eslava e de radicais de tipo alemão que lhe são familiares. A complexidade da etimologia é apenas um fator entre tantos outros que explicam esta afinidade geral do esperanto. Portanto, em um grande número de casos, somente a noção de sobredeterminação – a explicação de um fato pela ação convergente de vários fatores – dá conta da realidade de maneira satisfatória. Por exemplo, seria um grave erro pensar que o sufixo ig deriva do alemão e, em particular, da dupla rein > reinigen, que teria fornecido o modelo de pura > purigi ‘limpo’ / ‘limpar’ (com reforço por formas como entschuldigen, entmutigen, que dão em esperanto senkulpigi ‘desculpar’, senkuraĝigi ‘desencorajar’), sem levar em conta o fato de que Zamenhof aprendeu o latim e, o espírito sempre atento quando se tratava de línguas, tinha certamente notado derivações do tipo fumus > fumigare, mitis > mitigare, purus > pur(i)gare. Mas ficar apenas com essas duas fontes, a alemã e a latina, não seria suficiente. De um lado, não se pode esquecer que Zamenhof concebera sua língua como um código (Silfer, 1983, 4-8; Waringhien, 1959, 105-107), o que impunha certas restrições na forma dos sufixos (eles são quase sempre compostos de uma vogal seguida de uma consoante), mas provoca, inversamente, a possibilidade de generalizar seu emprego ao infinito. Por outro lado, Zamenhof dominava o hebraico. Será que não é no «hif’il» (causativo) hebraico que temos que buscar a origem da escolha de uma forma para as derivações dos adjetivos (granda > grandigi ‘grande’ / ‘tornar grande, aumentar’; cf. hebreu gadol > higdil) e verbos (ridi > ridigi ‘rir / fazer rir’; hebr. caxaq > hicxiq)? Nenhuma língua indo-europeia apresenta esse traço, presente nas línguas semíticas, e que amplia consideravelmente a riqueza de expressão sem sobrecarregar a memória. 13


Mas se o «hif’il» hebreu inspirou Zamenhof, é bem possível que ele não tenha tido consciência do fato. Uma vez admitida a ideia de uma língua inter-povos, e não somente interjudaica, ele certamente foi cauteloso em relação a todo empréstimo aberto do hebreu e do iídiche7, e se essas línguas contribuíram para o seu trabalho, isso ocorreu de maneira clandestina, apenas pela sua presença (certamente massiva no caso do iídiche) nas estruturas mentais do jovem autor. Entre os fatores que convergiram para conduzir Zamenhof a tal escolha antes que a outra, é preciso citar ao menos quatro: 1) o princípio do código (monemas invariáveis e diferenciados se combinando à vontade; indicação clara da função da palavra na frase); 2) as influências inconscientes (iídiche, muito frequente; russo e polonês, em muitos casos, principalmente no que se refere à sintaxe, o valor semântico das palavras (plena recobre o campo semântico do russo polnyj, não o do francês plein ou o do latim plenus: plena vortaro só pode se traduzir por ‘dicionário completo’, enquanto que o russo diz polnyj slovar’) e das expressões (elpaŝi kun propono ‘apresentar uma proposição’ é uma tradução literal do russo vystupit’ s predloženiem); 3) os empréstimos conscientes às línguas conhecidas (principalmente as línguas ocidentais vivas e o latim, ocasionalmente o grego antigo: kaj ‘e’, pri ‘a respeito de’, plurais em -j); 4) as ideias que Zamenhof tirou das línguas que ele não conhecia. Esse último ponto pede um esclarecimento. A maior parte dos autores que tratam da etimologia do esperanto estimam que basta limitar a pesquisa às línguas as quais Zamenhof tinha um conhecimento suficientemente aprofundado8. Mas um homem como ele, curioso a respeito de tudo que se refere às línguas, provavelmente consultou nas bibliotecas dicionários e gramáticas de línguas estrangeiras, bem como descrições de línguas que apareciam nas enciclopédias e em outras obras. Ele pode muito bem ter efetuado pesquisas do gênero, por exemplo, enquanto era estudante em Moscou. A questão da etimologia do esperanto está, portanto, longe de ser simples. Com certeza seria muito fácil invocar fatos hipotéticos e inverificáveis para explicar semelhanças surpreendentes, mas é não menos certo que muitos fatos da língua ficam inexplicáveis se nos limitamos àquilo que é comprovado na vida de Zamenhof. A capacidade de assimilação desse homem era grande demais, sua motivação muito poderosa, seu espírito de síntese muito desenvolvido para que ele deixasse de levar em consideração todos os materiais que lhe caíam nas mãos.

7 Seus primeiros projetos compreendiam empréstimos diretos do hebreu. No início, Zamenhof desejava elaborar uma língua destinada aos judeus, como ele afirmou em uma entrevista que surgiu em 1907 no Jewish Chronicle de Londres. 8

«Não é científico propor como étimo uma palavra de uma língua que Zamenhof não sabia» (Gaston Waringhien, citado por Albault (1961), p. 87).

14


Poderia ele ter inventado, somente pela lógica, um sistema de numeração perfeitamente paralelo ao sistema chinês? (Chinês shi ‘10’, san ‘3’ > shisan ‘13’, sanshi ‘30’, sanshi san ‘33’, esperanto dek ‘10’, tri ‘3’ > dektri ‘13’, tridek ‘30’, tridek tri ‘33’). É possível. Mas é também possível que ele tenha lido uma descrição da língua chinesa na biblioteca universitária de Moscou ou em alguma biblioteca de Varsóvia. Ou, para tomar um outro exemplo, palavras como voĉo ‘voz’ ou ĉielo ‘céu’ podem se explicar a não ser por uma referência ao italiano? A explicação pelo latim poderia, a rigor, ser admitida no caso de voĉo, mas não de ĉielo, e ainda, o c latim antes de e e i dá normalmente um c em esperanto, de acordo com a pronúncia da época na Europa do leste, de onde vêm as formas cent ‘cem’, paco ‘paz’, facila ‘fácil’, etc. Outros exemplos testemunham a presença do italiano nas fontes de Zamenhof. É o caso principalmente de ardezo ‘ardósia’, de dolĉa ‘doce (adj.)’, ankaŭ ‘também’, do sufixo eco (grandeco ‘grandeza’, dolĉeco ‘doçura’) ou de uma palavra como apogi ‘apoiar’, cujo g só pode se explicar pelo schriftbild de appoggiare. De fato, Zamenhof utilizava os materiais mais diversos. Talvez ele tenha lido em alguma revista um artigo sobre a numeração do chinês, ou, em um livro sobre as línguas românicas, precisões sobre a frequência dos femininos em -o em provençal (as palavras do provençal la fenestro, la roso, la danso se pronunciam quase exatamente, incluindo o acento tônico, como suas correspondentes em esperanto: la fenestro ‘a janela’, la rozo ‘a rosa’, la danco ‘a dança’). Outro exemplo: em crioulo caribenho se diz li onde em francês se diz il (‘ele’, em português). As formas li e pli são soluções de compromisso ou empréstimos do crioulo posteriores à leitura de um artigo a respeito dessa língua? Nós provavelmente jamais teremos certeza sobre esses pontos, mas é sábio guardar essas possibilidades apresentadas ao espírito. Assim, por mais convincente que possa ser uma argumentação relativa à influência do iídiche sobre o esperanto, ela só surtirá efeito em um certo grau de probabilidade em relação a um fator entre tantos outros num conjunto convergente, onde a dosagem real dos diversos elementos será sempre impossível de determinar, salvo algum caso particularmente marcado como superjaro ‘ano bissexto’, dikfingro ‘polegar’, etc. Além disso, se pudéssemos perguntar a Zamenhof, não obteríamos uma resposta segura: a atividade cerebral é em grande parte inconsciente, e a elaboração da «lingvo internacia de doktoro Esperanto» não se constitui uma exceção à regra. Artigo traduzido por Leandro Freitas e revisado por Ismael M. A. Ávila São José do Rio Preto, SP – abril, 2011 ____________ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Albault, André (1961) “Etimologio, pra-Esperanto kaj Mistrala lingvo”, Esperantologio, 2, 2. Gold, David L. (1980) “Towards a Study of Possible Yiddish and Hebrew Influence on Esperanto” in Szerdahélyi, Istvan (réd.) Miscellaneous Interlinguistics (Budapest: Tankönyvkiadó), 300-367. Gold, David L. (1982) “Plie pri judaj aspektoj de Esperanto” Planlingvistiko 1, somero, 7-14. 15


Golden, Bernard (1982) “The Supposed Yiddish Origin of the Esperanto Morpheme edz”, Jewish Language Review 2, 21-33. Holzhaus, Adolf (1970) Doktoro kaj Lingvo Esperanto (Helsinki: Fondumo Esperanto). Piron, Claude (1981) “Esperanto: European or Asiatic Language”, Esperanto Documents No 22 A (Rotterdam: Universala Esperanto-Asocio). Silfer, Giorgio (1983) “Hipotezoj pri kriptaj aspektoj de esperanto” Planlingvistiko 2, aŭtuno, 4-10. Waringhien, Gaston (1959) Lingvo kaj Vivo (La Laguna: J. Régulo).

16


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.