O Jardim das DelĂcias
O Jardim das DelĂcias Bernadette Lyra
Editora Santana
O Jardim das Delícias
Editor responsável Gráfica Santana
Capa Danillo Burgos Manoel Ricardo
Co-editor Sandra Medeiros
Revisão ortográfica Luciana Eller
Diagramação Leandro Niero
contato@editorasantana.com.br http://www.editorasantana.com.br/
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) L992j
Lyra, Bernadette, 1938O jardim das delícias / Bernadette Lyra. - Vitória, ES : Santana, 2010. 66 p. ; 18 cm ISBN 85-7419-168-X 1. Contos brasileiros. 2. Literatura brasileira. I. Título. CDU: 821.134.3(81)-34
2010 - Todos os direitos desta edição reservados à Editora Santana Ltda.
Dedico este livro aos leitores capixabas
ÍNDICE
Introdução Últimos dias de Gomorra Com Interferências O Jardim das delícias Blau Princesa das czardas O dourado e o negro No ar seu elemento Família Tempo Repibárdei Aleluia Tardes silenciosas de lindóia Urália Horto das oliveiras Chip Chip meu gatinho A pureza da raça Lobos essenciais O perfume dos mortos Jogos familiares de inverno Incidente noturno Temos modernos
9 13 15 18 21 24 26 28 30 33 35 39 41 43 46 48 51 54 56 58 60 61
Introdução Esta edição múltipla de O Jardim das Delícias, da escritora Bernadette Lyra, se realiza com um nobre objetivo: aproximar o estudante de Design Gráfico da produção de um dos mais significativos nomes da literatura pós-moderna realizada no Brasil. Planejada para ser o exercício prático de projetar um livro, promoveu, paralelamente, mais um encontro semestral entre aprendizes (estudantes) e mestres (escritores capixabas). Uma série de encontros, idealizada pela professora Sandra Medeiros, que desde 2003 faz parte do calendário da disciplina Gráfica 3, do Curso de Desenho Industrial da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Do primeiro semestre de 2002 para cá, o Curso recebeu a visita dos poetas Waldo Motta, Gilson Soares, Marcos Tavares, Marien Calixte, e dos escritores Pedro Nunes, Reinaldo Santos Neves e Fernando Achiamé. Foram encontros proveitosos, que possibilitaram um intercâmbio que não acontece com muita freqüência. Os autores falam de sua produção e de maneira destacada da obra utilizada pelos alunos para a aplicação dos conhecimentos acumulados ao longo das disciplinas Gráfica 1, Gráfica 2 e Gráfica 3. Expressam sua opinião sobre os resultados alcançados e permitem aos estudantes revelar a sua forma de interpretar o autor capixaba, a sua maneira de projetar e a sua compreensão do Design. O Jardim das Delícias é mais um exercício feito com dedicação, grande interesse e curiosidade. Trata-se
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de uma edição múltipla porque o empreendimento consiste em quatro projetos gráficos distintos, e quatro edições distintas. Como nos anos anteriores, a turma dividiu-se em grupos e assim cada autor recebe propostas diferentes, baseadas em soluções voltadas para o público-alvo com que cada grupo decidiu trabalhar. Desta vez foram quatro grupos. Já houve período em que a turma, maior, foi dividida em seis ou sete grupos. Mais uma vez, agora com a turma 2010-1, os estudantes de Gráfica 3 tiveram a oportunidade de tornar concreto um livro, esse indispensável objeto armazenador e propagador de conhecimento que desde que surgiu – antes mesmo de adquirir a forma de códex, datada do início da Idade Média – até hoje, tem se mostrado indispensável ao aprendizado e elevação espiritual do Homem. De O Jardim das Delícias é possível dizer que, com título claramente inspirado em obra homônima do pintor Yeronimus Bosch, provoca a mesma inquietação que aquela. Da autora, Bernadeth Lyra, destaca-se que, nascida (em 1938) em Conceição da Barra, município ao norte do Espírito Santo, licenciou-se em Letras pela Ufes, a mesma universidade onde se realiza esta experiência de edição e a mesma universidade onde foi professora até se aposentar, em 1991. Doutora em cinema pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutora pela Universidade René Descartes, Sorbonne, na França, ela é autora de contos, romances, crônicas e ensaios. Publicou em jornais e revistas do
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país, entre os quais a revista literária ÍMÃ, nascida em Vitória e o Jornal do Brasil, editado no Rio de Janeiro. Com oito livros publicados (Tormentos Ocasionais, A Nave Extraviada e outros), Bernadette é, hoje, professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi e professora visitante da Universidade do Algarve, em Portugal. Em seu currículo constam ainda outros importantes cargos, como o de Secretária da Cultura do Espírito Santo (1996-1997), e membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Cinema e Audiovisual (Socine), entidade que ajudou a fundar. …
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Últimos dias de Gomorra – Bom dia para todos – gritou enquanto atravessava a roleta. O trocador, como sempre, devolvia alguns centavos a menos. – Bom dia para todos. Apenas uma moça de blusa amarela virou a cabeça. Acomodou-se perto da moça tropeçando na bolsa de um negro cheia de ferramentas. – Com licença – pediu. Porém a moça limitou-se a um encolhido de pernas para o fundo do assento, muito preocupada em contar os decalques colados na porta de vidro por trás do motorista. Esse filho da puta quer me estragar o dia – pensou o motorista. Durante alguns minutos acompanhou as gotas de chuva que escorriam ligeiras, em diagonal. – Que tempo, hein – disse alto. A moça parecia estar bastante ocupada. Porra! que cara chato – pensou o motorista – não vê que ela está interessada em – O negro da bolsa de ferramentas torceu-se no assento. – Que tempo – repetiu animado se voltando para o lado do negro. Antes foram meses de tanto sol que as moscas despencavam nos copos de chope. As casas se fechavam de cortinas escuras desde madrugadinha e as pessoas, de garganta fervendo, choravam angustiadas, todas de óculos pretos, mesmo assim o sol descascava as pupilas.
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O negro puxou a campainha. O ônibus freou com uma série de pequenos grunhidos que atiraram o negro e sua bolsa muitos passos à frente. O negro saltou. Saltou atrás do negro espetando-se em pontas de sombrinha, cabos de guarda-chuvas molhados. – São uns cavalos – disse. Na rua, dois garotos sem grande entusiasmo chutavam uma bola. O negro pousou a bolsa de ferramentas no chão, chutou um pouco. – É difícil driblar com essa lama – comentou com o negro. O negro sorriu, limpou o quichute em uma ponta de pedra, arrebanhou a bolsa e se foi, caminhando depressa. Ficou ali parado, vendo o negro sumir pela esquina. Os meninos continuavam jogando em um canto da rua. – Mas que tempo, hein – falou. – Assim não dá – disse um dos meninos. – É, não dá – disse o outro. Continuou sozinho, olhando, de pé na calçada. Oh, não há alternativas – pensava. Dava uma chuva rala sobre os garotos e a bola. …
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Com Interferências Cabo Leonélio tem dois meses de cabo e namora com a filha do vigia do eucaliptal. um dois um dois As casinhas novas da vila, novas e pré-fabricadas, vêem cabo Leonélio passar. uma duas uma duas Cabo Leonélio conta as casinhas novas pelas novas antenas de televisão. Na uma: Gertrudes. Na duas: namorada. O marido de Gertrudes vendeu a terra que tinha para a fábrica do doutor Herzlichekeit plantar eucaliptos. Passa os dias, sujo e esmolambento, bebendo o dinheiro da venda, reclamando do roubo dos gringos. Gertrudes costura para fora, seca os cabelos ao sol, lixa e pinta as unhas com esmalte “wild honey” à janela. Cabo Leonélio passa em pose de cabo: – Boa tarde. Gertrudes acha cabo Leonélio de voz estufada como a voz do apresentador do Jornal Nacional e o bigode de cabo Leonélio como o de astro da novela das sete. Cabo Leonélio acha essa Gertrudes boazuda um pedaço. Que ancas! Que peitos! – pensa cabo Leonélio. Bem que eu poderia tentar. Cabo Leonélio leva um vidro de Caresse de Fem-
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me, o perfume proibido da Shebo, para a filha do vigia do eucaliptal. Mas o cheiro, ele acha, ficaria bem melhor em Gertrudes. Gertrudes acabou de lavar os cabelos com xampu. Suavidade de Seda para Cabelos Crespos. Oh, oh, gostaria de ter um homem desse na cama, não uma rã embriagada – ela pensa. Se pudesse mastigar os biquinhos... – pensa cabo Leonélio. Gertrudes se penteia como Lady à janela. Cabo Leonélio passa, bota a mão no cabo do revólver, apertando os olhos como os do detetive Kojak. Preciso me conter. Afinal, estou no comando, não é bom que os homens me percam o respei... – Ai, ai, uma coruja – é Gertrudes quem grita. Me acudam. Ai, ai, uma coruja. O defensor dos fracos, das damas e dos oprimidos. – Cadê essa coruja? Atrás do caixote. Ali, junto da pia. Ai! Debaixo da cama. Roberto Carlos avança por dentro do espelho. Vera Fischer se ajeita, desnuda, na primavera em flor do sofá. Cadê essa coruja. Os peitos de Gertrudes endurecem apertados no peito de cabo Leonélio. Os dentes de Gertrudes esmerilham nos dentes de cabo Leonélio. As coxas de Gertrudes tremem dentro das coxas de cabo Leonélio. Que mulher! Mais gostosa do que eu imaginava – pensa cabo Leonélio. Gertrudes desmancha de gozo, babando os cabelos que nem dama da novela das oito: – Ai, ai, meu amorzinho.
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Lá fora as corujas se movem um centímetro em direção à noite pousadas nas antenas. Percevejos afiam os dentinhos no pescoço de cabo Leonélio. Ha ha ha – gargalham as corujas. Vamos pegar outros agora. Ha ha ha. …
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O Jardim das Delícias Sete velhos sentados na doçura da tarde. São dois homens e cinco mulheres. A primeira à direita foi deixada ali desde as primeiras horas do dia, recoberta por imensa barraca de praia. Desde então sua ocupação predileta tem sido balançar as pontas dos dedos dos pés nas chinelas. Além disso, apenas cochila. Quando um fio de baba desliza sobre a gola do seu peignoir, mesmo adormecida, estremece. Gira o branco do olho e imagina: oh, será que teremos morcegos por aqui nesta noite? Perto desta, duas outras velhinhas tricotam. A de vestido roxo vez em quando descansa a agulha e se ocupa em lustrar moedinhas nas coxas. Ela esfrega, até que as moedinhas se transformam em rodelas brilhantes. Então, mete as moedinhas uma a uma no decote, entre os seios. Enquanto a outra, a criatura do xale amarelo, finge que enrola fios de lã entre os dedos. Na verdade, por trás dos bifocais, tem os olhos de ágata dissolvidos no gelo. Estão duros, esses olhos, cobiçosos e duros como pedras saídas de um congelador. finos peixes atravessam os ladrilhos do tanque alguns flamboyants comem o sol No centro, estão os velhos. O primeiro tem bigodes muito bem aparados. Veste terno cinzento com um emblema à lapela e se ajeita no banco. Com digni-
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dade, apoiado à bengala, pode descer sozinho os três lances de escadas do apartamento do filho. Mas atrás deixa a nora reclamando das porcarias feitas na cama, dos lençóis estradados de mijo. Deixa a nora, louca, descabelada, a gritar ao marido: ele ou eu. O segundo compra sempre umas balas que oferece às babás. Elas dizem que não, obrigada. Saem rindo, rebolando das ancas como close de dança obscena. Ele então lambe o papel vermelho das balas, remói as gengivas, cospe em cima do cardo do tumor prostático solto dentro das calças. no ar leve uma pomba recorta de branco a pedreira entre as fendas aparece curiosa a cabeça de um camaleão Bem à esquerda, bem virada para o alto, uma velhinha magra morde o ar e segura um cachorro que, fincando as orelhas busca reconhecer no espasmo mais fundo da dona o momento de horror que antecede o castigo. Quando os dedos ossudos subirem e descerem em seu lombo, afocinhado contra o armário e a cômoda, não terá salvação: será escarneado entre uivos e gemidos e acessos de tosse. Os vizinhos, com o som da tevê todo alto por detrás das vidraças ulceradas, durão: já está dona Matilde castigando o Puquito. Na derradeira ponta, mastigando o glacê de algum fétido bolo, a derradeira velha cobre arrotos com um lenço de seda alvíssimo. Após tantas mentiras ao médico e à filha solteira, o açúcar já lhe fura as boche-
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chas. As formigas passeiam em sua roupa de baixo, devoram o mel da gangrena semi-oculta da perna. E uma flor de azia lhe repuxa as entranhas. parasotas de cetim rosado dependuram-se pelos veios da pedra o sol rola delicadamente pelo chão de blocretes De repente, um anjo negro de calça Lee suada, asas como veludo e o zíper da jaqueta brilhando mais que a luz de mercúrio, vai saltar de sua moto. Com rajadas de metralhadora vai estraçalhar toda suavidade desses deuses de plástico. O sangue vai gorgolejar nos bueiros e os pedaços de ossos vão dançar nas calçadas até que a cidade diga oh! com o vidro de alma tomado por um alucinado terror. …
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Blau Na primeira: ficou ali na porta. Bateu cílios indecisos como essas formigas de asas levíssimas que despencam das lâmpadas e morrem delicadamente. Na segunda: foi entrando. Cruzou os dedos por cima dos joelhos com afetação. Na terceira: acendeu um roliúde. afofou mechas roxas no sol dos cabelos. Despiu o gasalho de lã e exibiu hematomas azuis. Na quarta: roeu duas unhas. Escutou Macalé dando os mais langorosos suspiros. Na quinta: tentou beijos de língua e de fotonovela bem por dentro da boca. (Deitou-se de bruços, afinal). Na sexta (ou melhor, entre a quinta e a sexta): um morcego entrou pela janela esquivando-se de todos os obstáculos, passou negro e inflado as asas grudadas pela membrana fosca, descobriu meu nariz, grudou-se em meu nariz, fincou nele as garras afiadas e meteu os dentinhos com toda delícia, o sangue jorrou coagulado e dormente assim como o pecado, aos pedaços como pétalas de cetim vermelhíssimas muito lisas e brilhantes no sinteco do chão.
OU
es
ta
va
no
ar
?
Relação (isso tudo foi feito na sexta):
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1.
Ler carta: “logo teremos mais um médico em nossa família, isso enche de orgulho o coração de teu pai e meu”. 2. Ver a noite inchando lá fora por cima do edifício Botão de Gardênia. 3. Observar a rata de saia curtíssima se esfregando nas pernas do vigia noturno que agarrava aqueles peitos durinhos embaixo dos dedos. 4. Desejar, de todo coração, que pintasse uma grana. 5. Ligar e desligar a tevê. 6. Inflar o tórax na frente do espelho e dizer alto: vem ou não vem, que porra! 7. Enrolar um baseado e fumar. 8. Ter vontade de deitar-se na cama. 9. Chorar baixo e delicadamente. 10. Esperar. O agasalho era verde que te quieto roxas olheiras de passarinho maluco na hora do muito obrigado, senhora: capitães de navios varões armas assinaladas além de muitos médicos em nossa remonta a quatro séculos e jamais houve um só caso com rum é que é consequentemente a pederastia onde os extremos se tocam creio que não há dúvidas quanto à natureza maligna da obnubilação dos sentidos disse tente pas-
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sar pelo que estou passando e desvio também tangos ora tangos! verde tango verdes olhos de cobra e sol roxo ai! daqueles que sim meu senhor Thomas Morgan foi meu pai hematoma com cores e sorvete que pela ordem são bisavô, tetra-avô e uma prima por parte de nosso simpático e parassimpático pois é toda ironia está fora de moda e então? veadinho sacana! na esfera do subconsciente genético vos digo senhora e senhor é preciso não dar tanta importância hoje em dia só paciência e um pouco de esporte com papai e mamãe quero as circunvoluções desse cérebro senhores que tal lascas de sexo em uma clínica especializada em todo antepassado que diriam os vizinhos e o orgulho de nossa quatrocentos anos, senhora embaixatriz, eu prefiro cozidos em azeite Na sétima ou na oitava ou na nona: sobre a escrivaninha borbulhos de suor e de fumo. A dor de alguém lentamente suicidada com Elis Regina na poeira transcendental de uma faixa. Toda aquela cintilante sujeira como corda de seda que enforcasse os parentes, alguns nobres e antepassados. de um lado: a face oculta contra a visão da porta, a nuca ao espelho. do oUTRo lado: a luz refletida nos dentes; no rosto amarelo a casca aberta, dura, do amor e do medo.
…
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Princesa das Czardas Sempre um pouco antes das onze, a velha sentada debaixo do sol, via o filho. As lagartas de luz escorriam por cima das placas encardidas do cimento do chão. A velha via o filho. Ele vinha sorrindo com a menina caçula trepada na curva do braço. – Oi, mãe. Então, a irmã de caridade rebentava por detrás do canteiro de antúrios. Os pardais tremelicavam à cabeça. Agitavam as asas com susto. O tom da irmã de caridade não disfarçava em nada: – Velha rabugenta. Só vou carregada – a velha pensava. A irmã de caridade agarrava a velha pelos pulsos finíssimos: – Rabugenta e teimosa. A irmã de caridade carregava a velha arrastada até o refeitório: – Come agora, vovó. Havia: moscas nos guardanapos laranjas bem murchas coroando cada topo de copo estrelas rombudas de pedaços de pão. As outras velhinhas se entreolhavam espantadas. A irmã de caridade empurrava os lábios da velha com a colher de metal: – Bebe a sopa, vovó. A sopa era de água e sal, pedaços de sebo e verduras.
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A irmã de caridade raspava a boca da velha com a ponta da colher de metal: – Não se suje, vovó. As outras velhinhas sugavam os legumes depressa. A velha ia bebendo a sopa de qualquer maneira. Jamais trocaria uma palavra só com essas outras companheiras de mesa – a velha pensava. Criaturas tolas e mal-educadas. Sugavam e chiavam, sempre prontas a esticar os beiços a qualquer porcaria. As outras velhinhas saíram da mesa ruminando o almoço. Iam para o recreio. Rondavam o portão: “cigarrinho, só unzinho”. Tragavam tremendo de medo da irmã de caridade. Desvai radas sem brio – a velha pensava. A velha esquentava debaixo do sol orgulhosamente as duas alianças de ouro soltas no dedo de pergaminho. O filho vinha entrando pelo portão de grades de ferro, a menina caçula no braço: – Oi, mãe. A irmã de caridade fugia como camaleão sem coragem. Os fantasmas do asilo surgiam guinchando: “cigarrinho, cigarrinho, só unzinho”. O filho afastava aquelas formas desatinadas. Levantava a velha com doçura do banco. Ela se sacudia como poeira de osso e marfim. Ia andando com o filho debaixo do sol. Caminhando para longe. Para casa. Onde há um gato e uma manta de lã na cadeira e um cheiro de bolo e lavanda aos domingos. Iam indo, ela e o filho e a criança caçula que tem o seu nome. – Como é mesmo meu nome, meu Deus?
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O Dourado e o Negro O sol bateu em cheio no rosto do arcanjo. Os elos de metal faiscaram na armadura de couro. O saiote em tiras reluziu sobre a túnica mal enrodilhada acima dos joelhos. O arcanjo tinha o rosto incendiado. De uma certa doçura, no entanto. Era um arcanjo guerreiro. O sacristão pegou com cuidado a haste da campainha entre os dedos, esfregando delicadamente as pequeninas folhas esculpidas de hera. Quando o padre elevou o cibório, ele moveu o pulso. O pulso estremeceu, mas o corpo do sacristão permaneceu direto, muito digno, ajoelhado. O som da campainha tilintou pela nave. O sacristão desceu a cabeça até quase o tapete vermelho. O padre voltou-se: – A paz seja convosco. – E convosco também – o sacristão falou. O padre despiu a estola e o casulo e saiu pela porta dos fundos. Tinha pressa de quebrar o jejum com pão doce e café. O sacristão dobrou o casulo e a estola do padre. Foi até a sacristia, guardou os paramentos na gaveta do armário. Veio, apagou as velas. Lavou as galhetas. Alisou as toalhas. Desenroscou o gancho da lâmpada, puxou a corrente. Com a campânula, sufocou a chama votiva. Desceu os três degraus do altar-mor, passeou entre os bancos recolhendo os livretos. Observou bastante, à procura de um lenço, um véu, um embrulho esquecido. Finalmente, a igreja ficou oca,
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silenciosa. O sacristão pegou a estopa, subiu para limpar o vitral. As asas do arcanjo recobriam todo o espaço entre duas janelas. Uma das mãos do arcanjo segurava, reluzente, a espada. As sandálias esmagavam a cabeça de uma serpente. Um vento mudo, uma flor de fogo, incendiava os cabelos do arcanjo, os olhos dele expediam ouro e cintilações. O sacristão tocou o vitral com a ponta dos dedos. Com cautela, passou a estopa pelas grades de sustentação. Alisou com a estopa macia, retirando a poeira. Os dedos do sacristão acompanhavam o corpo do arcanjo no vidro; Circulavam as poderosas rótulas, as coxas. Deslizaram nos retângulos duros das espátulas. As estopa caiu. Magro e ossudo, o corpo do sacristão se equilibrava no alto da escada. Rastejou um minuto sobre o torso guerreiro do arcanjo. De repente, o sacristão esfregou as mãos sobre o fio de metal agudo das grades. Ele apertou as palmas das mãos até que o alto-relevo de ferro despedaçou a carne. Um pequenino risco de sangue escorreu, pingou sobre a serpente. O sacristão desceu. Tirou a fita azul de mariano. Beijou a medalhinha. Dobrou a fita azul entre as folhas do livro de missa. Sacudiu o paletó escuro. Vestiu-se. Fez genuflexão e saiu. Lá fora, respirou o ar fino. Alguns homens, nos bares, encomendavam já as primeiras cervejas. …
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No ar seu elemento Encontrou o primeiro sob um monte de folhas. Mas já estava morto. Encontrou o segundo como um pássaro duto, gelado quando varria o pátio. Cuidou dele feroz. Disputou com a febre seu coração pequeno impalpável. Depois fez,com pontos grossos, um roupão de retalhos de linho. Logo pôde voar. Só por delicadeza permanecia ali. Conversava com ele, os passantes apressados sacudiam as cabeças: – Está doida, coitada. As moedas caíam no colo, sóis miúdos. Ele ria. Ela admoestava: que não fizesse isso, que não risse da ignorância do alheio. Para satisfazê-la, se armava em silêncios. Todo sério, roupa de trapos de linho azul e grosseiro, olhos infinitamente dourados. Os passantes moviam as cabeças: – Doida, doida, coitada! Se não sobrava uma fatia de pão ou caneca de arroz, ela cantava ali na calçada. Acima, um céu de chumbo. Ventos uivavam. Ela cantava trechos de amor, veias jovens que batem depressa, línguas que se desfazem sobre corpos suados, mães aflitas: o sol adoça o sangue. Há uma especial, uma cantiga sobre o mar onde se enroscam gaivotas, as palavras têm sabor salitrado. Ela cantava, ele tocava as lágrimas. Ria, tão claro, dourado. Certa ocasião, um porteiro numa casa de escadarias enxotou-a:
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– Passa fora! Pela primeira vez, todo tonto, mãos presas nas mãos dela, pela primeira vez desde a queda tornou a voar. Ela foi carregada. Redemoinho dispersando os pardais. Apertou muito os olhos com medo. De repente, percebeu um espanto. Deliciada, navegava no ar. Navegava de mãos presas nas mãos do companheiro. Navegava e pensava como um querubim amentando quem jamais vira o rosto de um deus. Escancarou os olhos, a paisagem, lá embaixo, rodopiava, dourada. Então compreendeu. Imaginou os outros, sombras débeis nas ruas, recontando moedas: doidinha, coitada. Gritou alegremente, soltou-se e girou executando um salto mortal, duplo giro, planando no ar. No ar, seu elemento. …
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Família Esclareço que nossa família goza de excelente conceito entre a vizinhança e mora em casa própria financiada em dez anos pelo beeneagá. nosso avô: é um sábio. Pode enfiar a mão pelo lustre imitação de bronze que custou quinze mil e quinhentos e dali retirar frases como: “a moral de um homem está no seu chapéu” ou “dêem-me um ponto de vista e enxergarei o mundo”. Nosso avô pode em quinze minutos estabelecer diferenças entre um Pteroplátea, altavela, L. e um P. micrura, fato rato. Foi citado três vezes nos fascículos “Maravilhas do Mundo Marinho”. Nosso avô pode ainda, em suas horas de folga, jogar rebolô e cartear, com a mão livre, um baralho de mulheres nuinhas. nossa avó é uma fotografia de um álbum de pelúcia verde estrelado de mofo. Duas vezes por ano, em sua sagrada memória, mandamos celebrar. Vem o padre Belchior com as mãos de cetim bem lavado, a tosse noturna, a bolsinha de balas para nosso caçula – que é seu predileto – e a mania de bailar à cossacos. nossa mãe é uma dessas senhoras criadas à antiga, sa-
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tisfeita com a vida doméstica, a Rainha do Lar. Docemente cose as meias dos filhos, lava roupa na área do tanque, passa ternos, uniformes e escolhe gravatas. No verão, faz suéteres belíssimos que costuma para o inverno. Aos domingos nos serve galinha, macarrão e farofa, além de um grande bolo cuidado por suas próprias mãos. Ao partilo, dele voam seus melhores dias e seus mais caros sonhos que acabam por se estatelarem miseravelmente nos ladrilhos empapados de pinho e de sol. nosso pai é um homem com agá maiúsculo nestes tempo que ele proclama de bichas e maricas. Nosso pai sai com a pasta jamesbond para enfrentar o mundo. Grita para nossa mãe: vou me já. Volta às onze, suado e cheirando a chopinho. Reclama do exagero do tamanho dos bifes, confere a nota do gás, bota quinhentos embaixo do açucareiro para o supermercado, dorme quinze minutos em sua poltrona e regressa à repartição, onde tem dona Tuta (olhos de cabra mansa, seios de cava brava) com quem nossa mãe proibiu que falássemos. Nosso pai é do tipo caseiro que adora tevê. Mas às noites de quarta, sai anunciando que vai à reunião dos Amigos do Bairro. não convém mencionar nosso irmão que tem dezoito anos
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não trabalha nem estuda e só quer perambular altas horas da tarde afagando as estátuas e se a gente pergunta: como vai essa força? reponde depressa: como vai essa joça fita nossas visitas com um olho de bobo e outro olho de fogo e também se recusa a passear com o cachorro. …
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Tempo O menino aprofunda o olhar no caminho. O madeireiro Stan vem ao longe. – Anda, passa pra dentro – grita a avó de repente. O menino remancha, demora. A avó, travada em reumatismo, aparece na porta se escorando às paredes: – Pra dentro. O menino então corre. A avó quer urgência. Não é bom contrariar a avó. O madeireiro Stan passa a trote num lindo cavalo. Põe os olhos agarrados na casa, investigando o ermo, procurando o menino que, fingindo às vistas da avó, corta a vara de pegar passarinhos. A avó sente os olhos do madeireiro Stan sobre ele. – Não te quero com aquele demônio. O menino imagina que a avó tem suas cismas. A avó que o criara. Não é bom contrariar a avó. No dia em que veio a mãe do menino, pintadíssima (e da mãe só sabe isso: que ela veio pintadíssima) a avó resmungou, para depois se abrir toda tonta num choro quando a mãe do menino se foi pela estrada abanando o lencinho. O menino, por isso, sente pena da avó. Ela é assim: pequenina e macia. Mas se o madeireiro Stan bota os olhos sobre ele, menino, a avó enrijece que nem galho de ingá: – Não te quero com aquele. O silêncio então estala no ar. O madeireiro Stan vem a trote. Passa investigando
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a casa, com os olhos trespassando as paredes. O coração do menino é um grilo pequeno. Quer galopar com o madeireiro. Quer voar para ele. Quer pular na garupa do lindo cavalo. Mas a avó quer que fique. O menino, então, fica. Com o canivete afina a aroeira, faz a cara de pegar passarinho. Em companhia da avó. O madeireiro passa. Alguma coisa espreita pela fresta dos olhos. Como a asa de um pássaro, roça leve. Toca no coração do menino. O menino não sabe por quê. Mas espera. Há de o tempo chegar;. O menino, só, espera. …
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Repibárdei – Olha a torta de frutas, está um palácio. – bêbado se desmoronando por cima da – – Estende a toalha vermelha. – como fios de sangue nas aranhas de renda e – – Agora os parabéns: “repibárdei tuiú repibárdei tuiú repibárdei Lucinha repibárdei tuiú” – imitando os pardais em – – Deliciosas, as empadas. – Não tem de camarão? – só pardais natimortos ou – – A torta! – A primeira fatia para o senhor Diretor. – A segunda para sua excelentíssima esposa. – com a cabecinha tímida ainda empapada de gemas em torno do biquinho cintilante esperando as – – A terceira para o aniversariante. – ah poder escapar daquele amontoado de pe-
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– Viva dona Lucinha. – Viva. Viva.
nas e cascas e – – pelo amor de Deus voa voa –
o senhor diretor (terno aberto, gravata cordial, olhos graves cravados nas coxas de dona Divininha, homenagens aceitas com dignidade): – Ora, ora. dona zélia (secretária executiva, dançando como um boxeador em torno do terno e gravata): – Bem servido, senhor Diretor? Mais um copo de vinho senhor Diretor? som (vindo de algum lugar): – Blem. divininha (esteno-datilógrafa. Pernas grossas à mostra): – Aceite mais um pouco de torta, senhor. som (cada vez mais no centro da cena): – Blem. Blem. seu mário (desenhista, consertando a garganta): – Agora, a champagne. Brindaremos à saúde de
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nossa mui digna, graciosa e gentil aniversariante, senhorinha Lúcia Melo, flor de nosso escritório...
o champanhe (entornando em copos de papel): – Glug. Glug. Glug. geral: – Guaraná para Divina. – Hoje não. Hoje eu bebo champanha. – Tá louca, minha filha. E sua úlcera? – Vai mais um pedacinho de torta, meu bem? – Agora o presente. – Muito bem, o presente. – Abre, abre. (embrulho deslaçado e o Danúbio Azul na vitrola) – Mas que linda! – Lindíssima. – Guarda que é pro enxoval. – Vai guardando, hein. uma nuvem de nailon rosado para envolver teu corpo com amor De repente: . os bigodes do senhor Diretor respingados de doce . os babados de gaze de seda em cima do vestido da mulher do senhor Diretor . o mel de dona Zélia em torno do senhor
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Diretor . as coxas da Divina embutidas cruzadas na pupila do senhor Diretor . os beiços de seu Mário empapados de vinho como mata-borrão . os dedos umedecidos de suor e de tédio . as bocas farinhadas de açúcar de torta. Duas uvas rolaram molengas. Metades de uma pera começaram a apodrecer. Ai, eu quero chegar em meu quarto depressa. Jogar essa merda cor de rosa no lixo. Me trancar em meu quarto sozinha. Chorar meus trinta e oito sozinha. Até amolecer esse vinco idiota de riso cravado na boca. Até limpar a língua corroída de ameixa e glacê. Me trancar em meu quarto sozinha sozinha sozinha. Como um caramujo em sua casca. Meu Deus. …
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Aleluia – Imagine. Um lugar como esse. Dá cá o papelzinho. A menina abaixou a cabeça. De nada adiantava esconder. Desde a hora em que o moço chegou com as entradas, veio aquela certeza. A mãe não deixaria. A mãe nunca permitiria. O moço era bonito. Chegou com bons modos: “com licença, senhora professora”. Distribuiu os brindes para a matinê. Os colegas gritaram: “não precisa dar a ela, ela é crente”. Sentiu o rosto sem um pingo de fogo. O moço do circo fez que nem escutou: “como é seu nome, menina?” Respondeu bem sumida: “Ana Rosa”. “Ana Rosa, que nome gracioso” – o moço falou “toma aqui, Ana Rosa, pra sessão de domingo”. Pegou o papelzinho com o coração chupado de sangue no silêncio instantâneo. Enterrou a cara na carteira, no tampo, envergonhada, exausta. Um toldo azul, bailarinas de nuvens, cavalos ensinados, anões. Os colegas comendo pipoca. Porém a menina de tranças tombadas na igreja. De olho fechado, a boca entoando aleluia mas o corpo pensando no olho engatiado do moço do circo, no toque da mão dele deliciosamente escorrendo na pele. Pensando até não poder mais. – Dá cá o papelzinho. A menina viu as mãos estendidas da mãe. As mãos da mãe louvando ao Senhor. As mãos da mãe engomando o paletó do pastor. As mãos da mãe, as mãos santas, estendidas, esperando. O pastor passava a
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mão pela cabeça da menina: “os cabelos são a coroa da mulher”, descia e alisava o corpinho, rodeava com os dedos os seios pequenos. O pastor puxava a menina entre as pernas, esfregava os quadris: “o corpo é templo do Senhor”. A menina ficava de boca suspensa, ar trancado de medo. – Anda, dá. A mãe já agarrava o bilhete da entrada. A menina entregou. Nunca mais ia rever o moço tão lindo. – Coisa de Satanás – a mãe ia falar. …
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Tardes Silenciosas de Lindóia Papiau ó, te conto: gostava de espiar as sem-vergonhices da filha da vizinha (que a menina tem umas pernonas, isso tem). E de rir. A nora de Papiau, uma dama!, ficava azul, pálida, roxa. Conforme o riso de Papiau cada tarde. Papiau nem te ligo. Lá, firme. Espiando pela janelinha. E a menina, filha da vizinha, firme. Lá. Velhinho descarado – gritava. Quando chegava o namorado (o pilantra como Papiau diz) começavam os mais outros quinhentos. Então, tome beijinhos e tome abracinhos e tome tanta esfregadinha e tanto agarramento que nora de Papiau vinha correndo para fechar as janelas (fora criada em colégio de freiras, se considerava, graças a Deus, uma dama!). Papiau nessa hora achava essa nora um saco, uma fresca. Não dizia, só achava. E nem saberia dizer. Este era o palavreado dos netos. Capiau pouco entendia do que os netos falavam, menos quando falavam como no cartão que a nora botou em cima da mesa no dia do pais. Ao nosso querido vovô que é pai de nosso pai com um beijo oferecem Mário Luís Maria Christina Juninho. Dentro do embrulhão cor de café-com-leite, um par de pantufas número trinta e oito (Papiau tinha
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um pé magro, fino, pequeno). Mas melhor do que tudo na vida, melhor de que presente era ficar ali na janela, espiando a menina e o namoro com sem-vergonhices da menina, filha da vizinha. Para escândalo da nora: – Você tem que dar um jeito em seu pai, meu amor. Papiau via o rapaz pegar naqueles peitos, passar a mão naquelas pernonas grossonas. Ria. Gengivas só. Que os dentes de há muito foram pro beleléu. A nora, uma dama, ficava azul, pálida, roxa: – Você tem de dar um jeito, meu amor. Papiau só querendo: espiar a menina naquela preguiça; espiar a menina dia inteiro lendo fotonovelas; espiar a menina naquele namoro que benzaa Deus. Mas a nora de Papiau, com seus nervos de dama, querendo: – Você tem de dar um jeito. A nora de Papiau, ela mesma, sacudiu o forro do terno marrom. Escolheu a gravata seca de tão velha na caixa. Botou um lenço amarelo no bolso para combinar com a gravata. – Se morrer, já está preparado. Carregaram Papiau no Corcel comprado a prestação. A filha da vizinha indagou (foi a única): – Pra onde estão levando o velhinho? Mas ninguém quis dizer. Nem a nora, nem o filho, nem os netos. Papiau não é bicho. Mas também não é gente. Papiau, ó, babau.
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Urália Agora imagino que minha desgraça vem de ter nascido em Urália. Costumam dizer que os uralianos (ou uralienses: tão pequeno o país que divergem os gramáticos) aprendem a pintar desde o ventre da mãe. Basta citar o método de nascimento local, o parto com cor para que se imagine o quanto a pintura é venerada em minha terra. Ninguém ignora que as glórias maiores de Urália vêm de seus artistas. Capazes de apanharem os segredos mais íntimos, com um ou dois traços, em um par de olhos, na carnação polpuda de uns lábios. O governo de Urália cuida da tradição. As crianças, quando mal se equilibram sobre suas perninhas, são mandadas às escolas de arte. Onde, naturalmente, primeiro aprendem a montar cavaletes. Lambuzadas de tinta, cada criança é ela mesma uma tela ambulante ao fim de cada tarde. Todas juntas, pelas ruas de Urália, formam um caleidoscópio que encanta os turistas. Nasci de um amor. Minha mãe, muito jovem, apaixonou-se por um estranho. Dessa raça de agricultores do norte, onde todos carregam mãos rudes como cascos e, ao invés da delicada polpa dos tubos de tinta, manejam a enxada. De pequeno, mostrei o que seria em adulto. Enquanto meus primos se encaminhavam para sessões de escolha de temas, eu me deliciava afofando sementes. Minha mãe, vendo em mim as feições de meu perdido pai, me fazia as vontades.
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Confesso, foram anos divinos. E se menciono aqui minhas mágoas, por certo não incluem o tempo em que, sob os olhos de minha mãe, criança mimadíssima, arrancava legumes de um canteiro por trás de nossa casa. Para pasmo, escândalo e horror da família. Mesmo adolescente, na época em que os jovens pesquisavam um tom exato de ocre ou as doze pinceladas de um queixo, eu vivia imundo de terra. Feliz como um desvairado, cavava, adubava ou brincava de acariciar com as pontas dos dedos esses meus prediletos: os tomates. Então, meu bisavô mandou homens pisotearem o canteiro. Eles vieram, empurraram minha mãe, saquearam, esmigalharam tudo. Eu fugi. Duas noites e dois dias passei sobre a esteira imunda de um circo, com febre. Minha mãe, soube muito depois, vagueava entre os tomateiros desfeitos sussurrando meu nome. Andei vários meses com o circo. Um dia, o chefe mandou que eu copiasse os traços delicados de Bela, um doce domador que toda noite expunha a cabeça na boca do leão. Mesmo cheio de pena das lágrimas de Bela, respondi: não daria uma só pincelada. O chefe, feroz, comentou que ali quem comia fazia mandados. Retirei minha trouxa. Na cidade, arranjei um emprego. Varria os pátios e sonhava com um quadrado de chão onde as sementinhas brotavam como joias debaixo da luz. Até que o patrão, folheando umas fichas, descobriu onde eu havia nascido. Imediatamente sugeriu uns retoques no mural do salão. Depois veio o Prefeito e queria umas faixas. E o padre desejava
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umas estrelas para o manto da Virgem. E seguiu-se a encomenda de um retrato de corpo inteiro com os seios de fora da dona do bordel. E um meio retrato vestido da filha virtuosa de um comerciante. As mães vinham a mim, implorando que ensinasse minha arte a seus filhos. Quando eu respondia que jamais fui pintor, que minha aspiração era a terra, que por favor me deixassem em paz e plantar, todos arregalavam os olhos: que modéstia! – diziam. Só me entendem as crianças olhadas com um secreto terror. As que andam pelos cantos mais escuros das casas e em noites sem lua, com seus olhos de cães alucinados, me veem sair pelas ruas pincelando tomates, tomates, tomates, com a tinta mais suave, vermelha e sedosa. …
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Horto das Oliveiras Jejuou frente à vela benzida por dona Zuleica com o nome de Nela bordado entre contas vermelhas. Jejuou sete dias. Jejuou e orou: “pai afasta de mim este cálice”. Ficou fraco, porém. Quando sentiu zoeira no ouvido bebeu um pouquinho de leite. No sétimo dia, o coração gemeu. Tocaram a campainha. Foi abrir. Era dona Zuleica. – Vim saber do senhor como vai. Beijou as mãos de dona Zuleica. Ugh! – pensou. As mãos dela fediam a cebola. Dina Zuleica olhou para a vela derretida em pingos de amor e paixão. – Tenha fé. Botou as cartas. Cortou. Na mão direita dele apareceu a dama de espadas. – Ah, a fatalidade! – falou dona Zuleica. – Oh, meu Deus. – Sinto muito, meu filho. – disse dona Zuleica. O destino é cruel. Quando dona Zuleica se foi, ele sentou no banco em que Nelma costumava sentar para pintar as unhas dos pés. Lembrou dela fazendo biquinho, assoprando o esmalte. Por que não veio a dama de copas, essa amável senhora de quatro corações? Foi escutar o disco que Nelma adorava: donde estarás mi vida por que no vienes. Quero Nelma de volta. Quero beijar os bicos dos peitos escurinhos e duros. Nelma, Nelma, Nelminha. Pegou a soda cáustica na área, botou
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duas colheres num copo. Arrancou com a pinça as asinhas de uma mariposa. Esmagou a cabeça do inseto entre os dedos. Mato ela – pensou. Continuou vagando pela casa sem saber que pedaço de tapete pisar. Quando anoiteceu, desceu para a avenida. Viu Nelma de ombro nu, roendo um sorvete. – Meu amor – disse baixo. Longo tempo se escondeu na avenida, cheia de marinheiros e cachorros, onde Nelma, de peruca alourada, circulava entre outros travestis. – Meu amor – repetiu. …
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Chip Chip Meu Gatinho De início ninguém estranhou quando a ratazana apareceu morta, estatelada, no beco. Sabíamos que ali as Matoso jogavam seu lixo de toda semana. Embora os fiscais de há muito rondassem para surpreender essas duas senhoras, elas eram mais espertas. Descobrimos que escolhiam dia e hora de que nunca desconfiavam. Que podiam fazer os fiscais acostumados à ordem das coisas? No inverno, as Matoso levavam seu lixo para fora quando o vento caía, todos estavam trancados por dentro das casas, fumando ou se agasalhando. No verão, saíam sol a pino, meio-dia, enquanto os fiscais tomavam guaraná com coxinhas no alpendre. Primeiro, Dercília espiava cuidadosamente as ruas desertas; depois, Antonieta vinha vindo com a lata de lixo na mão. Nós não tínhamos intenção de alertar os fiscais que embirravam conosco quando íamos dar uns mergulhos na fonte da praça, pelotar passarinhos. Que tivéssemos! “Ora, ora” diriam continuando a fumar agasalhando os pés nas pantufas ou a bebericar guaraná com as bocas escorridas de óleo e frituras, beliscando as mulheres ou entornando cervejas. O lixo das Matoso incluía pedaços de bolo, muito papel de bala. E o beco se enchia de ratos que apareciam mortos depois. No entanto, nunca tivemos medo de vagabundear por ali. Pode ser dito até que era nosso lugar predileto, com dois muros altíssimos, peludos de musgo e os trilhos que a Companhia Cipreste mandaram instalar para as vagonetas do cais.
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Ainda tinha os dormente, um pouco enterrados, roídos de carunchos. Sobre eles, pulávamos aos tiros. Mas o divertimento era mesmo judiar de Josué. O desgraçado tinha uma cara tão doce e tão triste. “Lá vai a mocinha”, gritávamos quando ele passava com o saco para comprar o pão. O pai de Josué, o pastor, batia nele de vara. Sentávamos todos na porta para ouvi-lo apanhar. Josué aparecia bambo de surra. “Bem feito”, gritávamos, falando criançola, boi de relho. Ele olhava com raiva, está claro que era com raiva, até hoje ninguém olhou para a gente daquela maneira., ficamos sem saber se era raiva ou o cúmulo da sem-vergonhice ou outra coisa que nunca pudemos entender. Morriam as ratazanas. Eram achatadas assim aflitas, as patinhas pro alto, olhos esbugalhados de horror. Empesteavam o ar. Depois, quando íamos quase acostumando com aquilo, foi a vez do cachorro de Plínio. Plínio tinha um com malhas marrons, brincalhão, enfiava o focinho nos trilhos. Apareceu já duro, com moscas por cima. Plínio deu de ficar meio lerdo, falando em esganar as Matoso, lembrando o bichinho até que a porca-da índia de João Augusto deu cria e ele deu uma cria para Plínio se esquecer do cachorro. Uma vez, sumiu uma galinha da mulher do Prefeito. Galinha de raça, penacho vermelhíssimo. A galinha amanheceu de bico estourado no beco. Ficamos ali olhando, engasgados de medo de que nos acusassem. A mulher do Prefeito rogou pragas. O prefeito jurou que aquilo ia se acabar. Daí a pouco era semana santa. De há muito não
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fazíamos uma maldadezinha a Josué, embora Plínio afirmasse que não fazia mal, que crente e judeu era tudo a mesma cambada. Sexta-feira da Paixão nem dormimos direito, com pavor de capetas. Então, quando a cidade acordou no domingo de Páscoa foi aquele alvoroço. Os fiscais encontraram Josué morto no beco. Foi achado com açúcar de restos de bolo na boca, o dinheiro e o saco de pão. Nossas mães nos lavaram as orelhas. De sapato, meia e orelhas lavadas entramos no velório. Sem graça, não tivemos coragem de espiar muito tempo. Até que demos um jeito de nos escapulir, evitando cruzar os olhares, pois sabíamos que dali a pouco, como uns criançolas, desataríamos todos a chorar. …
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A pureza da Raça Rodou a borboleta com força. Foi direto contra a pilha de latas de atum importado. Depois, rodopiou a sessão de farinhas com um saco de um quilo na mão. Cheirou e fez cara de nojo. – Tá podre. Tá tudo podre. A moça da registradora gritou. Veio o gerente. – É aquele velho de novo. Na saída, empurrou o rapaz dos embrulhos: – Xô,. negro! O rapaz protestou. Disse alto, então, com orgulho: – Procura teu lugar, urubu. A filha sempre recomendava: “Não diz isso, meu pai. Não vai falar besteira, meu pai”. A filha agora namorava um mulato. Ainda que doutor, um mulatinho atoa, cabelinho picuim. Sozinho. Velho e solitário. Sozinho com a traição da filha. Escutou quando a moça da registradora dizia: – Coitado, está um pouco pancada desde a morte da esposa. Cuspiu: – Gente nojenta. Em casa, a filha perguntou: – Trouxe o azeite, meu pai? Esquecia-se, sempre. Das miúdas e novas, esquecia-se. Das coisas grandiosas, lembrava-se. Como daquelas andanças pelo Jardim do Éden, com a camisa de palha de seda passeando no ar de primavera, vagarosamente, braços dados com Zora. – E quem foi essa Zora, meu pai?
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Faz de conta que é surdo. Cantarola o Gondoleiro: “Teus olhos são negros, negros, como as noites sem luar” Ah, os olhos de Zora. Mete o nariz no leite macio da pele de Zora, afunda no cangote de cetim. Navega no sol de primavera. Cai de borco defronte da televisão. – Vai pra cama, meu pai. – Não estou cochilando, Marina. A filha ajudava a vestir o pijama azul de bolinhas. A enfiar pela manga aquele braço podre, sem jogo depois do derrame. – Mas não estou com sono, Marina. – Sei, sei. Fica aí bem quietinho. Olha, toma o remédio. Eram veneno roxo. Essas pílulas que cuspia, uma a uma, dentro do lavatório. A filha queria que ele morresse. Bastaria que ele morresse e zás! a filha passaria a casa adiante para a construtora que ofertava mundos e fundos. A filha acabava c om a casa, com as lembranças todas. A desavergonhada da filha com aquele mulato, com o escurinho se esfregando lá embaixo da escada, esperando só que ele dormisse para se atracarem ali no sofá. A filha, a desavergonhada da filha, apressando-se em servir ao mulato o licor de laranja e o café. O mulato ia se assenhorando, ia entrando, ia tomando conta de tudo. A filha já não era criança. Como a mãe, não possuía a fibra da raça. Branca, sim, mas de uma brancura de cristão tão frágil como se a alma não lhe aguentasse com o corpo. Puxou a gaveta, com as mãos trêmulas, tirou o revólver. A filha, de há muito, subtraíra as balas.
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– Tenho força bastante. O mulato e a filha iam ambos antes dele. Velho, sim, mas com muito orgulho nas veias. Ergueu a mão entre as sombras do abajur de grelô. Sob a pele alvíssima corriam os canais, duros, intumescidos, azuis. – Sangue bom, sangue bom. Gostaria de sentir muito fogo, muito ódio. Mas agora sente apenas o cansaço. …
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Lobos Essenciais Tenho lobos em minha casa. Tem que estranhe. no entanto, me dou muito bem com meus bichos. São ferozes, é verdade. Isso convém a lobos. E, demais, são educados. Tão finos que dá gosto ver com que classe, com que savoir-faire devoram, um a um, os cordeiros de mais vizinhos, lanugentos e adocicados. Entre todos, tenho meu predileto. Veio com pedigree. Tem o pelo mais cinza, o rabo mais longo, os dentes mais duros. E um nome respeitável e famoso: Xanudeu Beterrene de Vigo. Eu costumo chamar-lhe de Xanu. Quando é noite de lua (está claro que não enxergamos a lua, pois a fábrica constrói para todos nós outro céu de fuligem e de gases) encenamos uma pequenina comédia. – Oh, que noite belíssima de lua – exclamo. Xanu uiva. Rodeado de toda a alcateia, o focinho apertado para o alto como seta de seda pronta a ser desfechada. Nada soa mais encantador. Os vizinhos, nessa ocasião, têm oportunidade de invocarem a lei do silêncio. Como antes, entre as faixas de algodão pintadas, invocaram a da poluição. Mas nem eu, nem meus lobos jamais damos qualquer atenção aos vizinhos. Duvido que consigam deixar de invejar a perfeição e a técnica de um só. O comprimento exato da cauda, a crueldade essencial dos olhinhos, o brilho como faca dos dentes. Sobretudo, a elegância de onde gote-
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ja a morte. A elegância carnívora com que se atiram sobre os cordeiros que balem, bale, estupidamente, sem o mínimo de brio. …
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O Perfume dos Mortos O homem veio descendo a ladeira, silenciosamente, empurrado pelos paralelepípedos. Estou fugindo – pensava. Em casa, o chá tinha sido servido debaixo dos retratos dos mortos. O bisavô de espadim e comenda, a bisavó com suas bochechas de anjo, o pai e o irmão que morreu de icterícia em pequeno. – Um pedaço de bolo, meu filho? – Sim, mãe. As poltronas recobertas por lençóis pareciam elefantes absurdos encostados às paredes como coisas quietas mas vivas no olho oval do salão. – Suas chinelas, filho. – A senhora é uma santa, mamãe. No retângulo amarelo do bar apareceu um bêbado que acenou com as mãos roxas de vinho. O homem acenou para o bêbado. – Vou entrar – disse baixo. Vou me embriagar. Começava a chover. Chuva doce, sob a camisa fina. Doce, morna, pesada. Como pingos de mel. Como dedos de amante. “Entenda, meu meu anjo, minha mãe está velha” – foi o que disse. Ela: “Você está se enterrando com a múmia naquele mausoléu”. Uma moça passava. Saltos altos batendo nas pedras. O homem fez um gesto. A moça hesitou. Parou em frente à boate. Um porteiro veio abrir com olhos imensos de boi. A moça puxou um cigarro:
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– Tem fogo? O homem riscou um isqueiro. Fino feixe de lux se encravou no peito palidíssimo da moça. O homem recuou. Ela entrou na boate. O porteiro bateu a porta de novo. “Entenda, minha mãe necessita de mim” “Mas você está morto” Continuava a chover. A água se empoçava. Os filetes escorriam. A camisa do homem começou a esfriar, se colando na pele. A rua se alongava para além da matilha das trevas. O homem sentiu os dentes da escuridão arranhando-lhe a face. “Entenda, por favor” “Morto e sepultado, meu bem”. Andou mais ligeiro. Sentia urgência. Tropeçou num paralelepípedo. Estão soltos. Estarão todos soltos, meu Deus? Sobre ele, a chuva desabava. Teve medo. E vontade de afogar-se na chuva. Morrer besta e estupidamente na chuva e no escuro. …
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Jogos Familiares de Inverno O pai afrouxou a gravata, atirou a pasta jamesbond sobre o guarda-comida: – Hoje fui despedido – cantou. – Amanhã eu arrumo outro emprego, meu bem – disse a mãe com um pequeno grunhido. A babá destarraxou tampa do potinho de legumes Nestlé: – C'est dommage – falou. – O importante é que emoções eu vivi – reagiu o cachorro. – O frio complica essas coisas – gargarejou a tia intelectual agitando nas ventas do bebê o carnê do beeneagá. – Na verdade, pedi minhas contas – exclamou o bebê com dignidade. – Au au au – reclamou o avô levantando a cabeça do volume Un de Ècrits. A mãe lançou-lhe um olhar de desprezo sem comedimentos: – Buá, buá. – Oh, meu Deus! – fez o pai enfiando uma boa colherada de purê de legumes nas bochechas sensuais da babá. – Quando vamos comer – esganiçaram os gêmeos com uma dupla dentada na perna de reumatismo do avô. –Que tal sopa de violetas à luz de velas – berrou apoplético o bebê. Fez-se um belo e lento minuto em que todos es-
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cutaram as violetas crescerem com suave e veludoso ruído por debaixo da grama. – Elas levam uma eternidade para adquirirem esse roxo profundo – murmurou pensativamente o cachorro. …
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Incidente Noturno Saem à noite muito preocupados comigo. E se passam ir à boate, dão uma paradinha. Como vai? – me perguntam. E aconchegam almofadas sob minha cabeça. E insistem em me cobrir os braços. E há quem mesmo se ocupe em derramar na minha garganta um pouco desse horrível conhaque sem nenhum pedigree que engolem com estalidos de lábios. Para esquentar, meu caro – me dizem. Alguns chegam à ignomínia de me dar pancadinhas nos ombros. Isso me deixa louco da vida. – Vão embora – berro. Olham com ar meio de pena, meio de admiração. Tsc, tsc – alguns fazem com a boca. Mas, por mais de uma vez, alguém mencionou a ambulância. Na verdade, teve um que falou em polícia. – Um caso de polícia – exclamou abafado nos clamores gerais. – Não, não. Isso não. Não merece. – Só eu sei o que mereço – gritei. No entanto, ninguém deu ouvidos. E aquele que disse polícia deu de ombros e se foi. Então, publicamente, urino a seus pés. Eles desviam as vistas. – É uma vergonha – uivo. Se por acaso um vômito cobre seus paletós, fazem cara de espanto, balançam as cabeças, intrigados. Acenam a legiões de criadas de pernas roliças que acodem com flanelas e benzinas. Quando se vão, abro a braguilha. As criadinhas alegremente se deitam, satisfeitas e sadias, por servirem a tão magnânimo patrão. 61
Tempos Modernos Mataram uma menina. Atiraram o corpo na praça. O local ficou cheio de gente. As perguntas subiam no ar. As perguntas mais frequentes eram: vai graxa com água ou soda que tal num motel tem aí Corações Solitários e misturo com o quê mas, em disco voador me arruma um, malandro vamos nessa se creio em milagres? A menina era desconhecida. Estava com a blusa suspensa e a ponta da saia rasgada. Sobre ela começava uma sombra. – Santíssima virgem! – berrou uma senhora. Quem faria uma maldade dessas. Uma jovem de longos cabelos trepou no relógio, essa espécie de falo que se armava no ventre da praça. De lá, arremessou papeizinhos com o plan of God sobre todos. Reunidos em torno do corpo da menina morta, outros dedicadíssimos jovens executaram um hino religioso: ele formula um plano de ação mais terrível ele pune a miserável carne com tormentos cruéis. Um bêbados começou a dançar. Alguns acharam graça até que ele abriu a braguilha e urinou todo o álcool bebido. Então apareceram os homens de cinza com seus
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cintos metálicos e botas especiais. Estenderam correntes. Sobre os recalcitrantes, o novíssimo equipamento – um orgulho para a Corporação – foi testado. Nesse exato momento passavam colegiais em excursão. Dois rapazes de gestos delicados acenaram para os colegiais. Um dos colegiais viu as pernas da menina morta. Oh – exclamou. E mais tarde registrou em seu diário: “as garotas daqui possuem belas pernas, porém são arredias, mas quem sabe se a gente tiver a chance de...” Antes de adormecer, pensou nisso. Na hora do almoço, muitos tinham partido. Veio um parapsicólogo, afinal. O que ele declarou foi que o mundo e a cidade não estavam preparados para eventos do Terceiro Milênio. O investigador Oficial ouviu sobre tudo isso quando estava jantando numa praia da moda. Ouviu sobre tudo isso e se aborreceu. Nesses tempos modernos, qualquer um podia ir à tevê, declarar as maiores asneiras enquanto um policial tem sua indigestão. O i.o. pegou o telefone e ditou seu protesto. Os rapazes da imprensa registraram fielmente o que disse o i.o. As palavras daqueles que viam no crime uma suposta obra de vândalos do soçaite local não passavam da mais absoluta nojenta mentira. De madrugada apenas prostitutas se afogavam em minério de ferro e cerveja no bar Scandinave. Uma lua de zinco tentava, inutilmente, luzir. Um cão lambeu a crosta de sangue que ficara empoçada no centro da ilha. E etc. ◊
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Este livro foi projetado por Danillo Burgos, Leandro Niero, Luciana Eller e Manoel Lemos, para a disciplina Gráfica 3 2010/1, ministrada pela professora Sandra Medeiros, na Universidade Federal do Espírito Santo. Foi impresso na Gráfica GSA através do sistema offset, com a utilização dos papéis Pólem Soft 90 g/m² no miolo e papel cartão Supremo Duo Design 350 g/m² na capa. O texto e a capa utilizam a família tipográfica Janson Text LT Std.