À SOMBRA DE GIGANTES Uma viagem ao coração das mais famosas pequenas torcidas do futebol europeu por Leandro Vignoli
CONTEÚDO 1. Espanyol e a maravilhosa minoria 2. Amor ao Rayo e ódio ao racismo 3. O incrível fracasso do Munique 1860 4. Sangue pelo Union Berlin 5. St. Pauli: entre o ativismo e o futebol 6. Fuck off, I'm Millwall 7. Ninguém odeia o Fulham 8. Queens Park e os Últimos Reis da Escócia 9. Não há futebol sem o Leyton Orient 10. Somos Belenenses e só o Belenenses 11. Red Star Paris não é uma festa 12. Isso é Sparta! 13. O grande Torino eterno
PRÓLOGO Por que torcer para um time que não ganha títulos? Essa foi uma pergunta que fiz para dezenas de torcedores com quem cruzei ao longo desta jornada de 50 dias por estádios europeus. Algo que rapidamente descobri não haver uma única resposta. Se é que existe, de fato, uma resposta conclusiva. A ideia de se apaixonar por um time de futebol é o resultado de uma soma de motivos que ao longo do tempo aumentam, se consolidam, e ficam mais fáceis de colocar em palavras. Às vezes podem até evaporar, pois é algo que exige dedicação, uma dedicação que a maioria das pessoas simplesmente não está disposta a insistir. Um sentimento que nunca será algo racional por completo. Talvez não seja diferente de escolher com quem se casar. Quando somos mais jovens – não apenas, mas principalmente –, procuramos em geral pelas afinidades, e não mais que de repente percebe-se que o amor da sua vida curte Almodóvar e MPB, enquanto você escuta Slayer e assiste a todos os filmes do Mad Max em sequência. Poetas dedicam uma existência inteira a encontrar a explicação para o amor. Não seria eu que a encontraria, ainda que nada me impedisse de tentar.
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A maioria dos torcedores fanáticos costumam dizer que esse é um amor que não pede nada em troca. Ir ao estádio, comprar camisetas, apoiar o clube mesmo nos piores momentos (ou especialmente durante), pois não importa o que aconteça ele sempre estará presente, como o seu porto seguro. Certo? Bom, lá no fundo, nem sempre é assim. De forma geral todos nós queremos alguma coisa em troca, sim, que são as conquistas. Naquela soma de motivos que te fazem escolher algum time, o sucesso é um dos principais, seja ele recente, ou algum em perspectiva - como um clube grande há anos sem conquistas, por exemplo. Essa forma de se agarrar ao passado é um dos maiores pontos em comum em torcedores de futebol: esperança. Na Europa, onde os títulos dos campeonatos nacionais são mais fragmentados que, por exemplo, no Brasil e Argentina, torcer pelo Real Madrid, Barcelona ou Bayern é sempre a escolha mais fácil. É a garantia de não ficar mais do que um par de anos sem comemorar um título. Termos como fila e seca não fazem parte do vocabulário, e não há sonhos impossíveis. É nessa parte da história que entram estes torcedores com quem fui aos jogos, que torci ao lado, e que me levaram para beber, conversar sobre seus clubes, as torcidas, estádios e sentimentos. E, claro, beber um pouco mais.
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Torcer para um clube pequeno não é fácil, e estas pessoas estão espalhadas aos milhares pelo mundo. No Brasil, existem clubes pequenos na cidade de grandes, é claro, como o Juventus da Mooca, em São Paulo, o América no Rio, o Zequinha em Porto Alegre, entre tantos outros. Na Europa, porém, além da popularidade e das conquistas dos vizinhos, existe um abismo econômico não comparável a qualquer outro lugar. Os chamados “nanicos” são como um guarda-sol no tsunami dos clubes mais ricos do planeta – que a cada dia ficam mais ricos, e ganham mais adeptos ao redor do mundo. Optar pelo Rayo Vallecano em Madrid, o TSV 1860 em Munique ou o Millwall em Londres, alguns dos clubes que acompanhei nesta caminhada, é mais do que apenas paixão, mas quase um ato de resistência. É continuar vivo em um local que lhes foi deixado para morrer. Com a surreal diferença de recursos financeiros que só cresce, esses abnegados passaram a servir de lemas como “o futebol respira” ou então "é mais do que futebol". Mas a verdade é que a essência dessas torcidas não é ser contra o futebol moderno. Essa é só a única alternativa que lhes restou. O roteiro original desse projeto incluía dez clubes, todos com a premissa de estarem à sombra de gigantes da mesma cidade. Incorporei outros três na metade do caminho - quase que
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literalmente - ao saber de suas histórias fascinantes. Em Glasgow, o Queen's Park é o clube mais antigo da cidade, cuja a bandeira do amadorismo parece um afronta ao no auge da era profissional; na Berlim oriental, o Union precisou lutar por décadas contra o serviço secreto da Alemanha comunista; e o St. Pauli, em Hamburgo, talvez o mais conhecido, por toda a sua mística de ser o time da esquerda anticapitalista. Além destes, conto a história do Espanyol e a sua eterna sina de ser o “outro time de Barcelona”; o Rayo Vallecano e a sua representação da classe operária de Madri; os Belenenses e a simpatia do clube no famoso bairro dos pastéis de Belém, em Lisboa; em Londres o Millwall e a sua fama de hooligans, o Fulham e a sua fama da torcida "do bem", e o Leyton Orient e, bom, nenhuma fama; em Paris, o Red Star e a dicotomia em ser o “tradicional” clube na cidade com os novos ricos do PSG; o Sparta Rotterdam e sua dedicação ao passado na mais moderna cidade europeia; o TSV 1860 e a eterna amargura de um dia ter sido o maior clube de Munique; e por fim, o Torino, que embora seja o clube com mais glórias de todo o projeto, ainda sobrevive sob os escombros do seu passado (a tragédia de avião de Superga) e também do presente (a força da Juventus).
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Durante os 50 dias pela Europa foram 1.440 minutos dentro de estádios, ao lado de 275 mil torcedores, onde foram comemorados 35 gols, em 15 jogos que assisti em 10 cidades diferentes. Percorri cerca de 11.700 km no total, uma distância que seria suficiente para ir e voltar do sul ao norte do Brasil e ainda sobraria milhas até Machu Picchu. Foi um tempo equivalente a ficar 24 horas seguidas assistindo futebol na TV. E não futebol de grande primazia técnica, para ser um tanto generoso. Certos momentos, especialmente em noites mais frias do inverno europeu, os jogos se arrastavam como as horas extras do trabalho em uma pós-ressaca do feriadão prolongado. E por que eu fiz tudo isso? Porque este é um livro dedicado a fanáticos por futebol, gente que como eu já se pegou vendo Tahiti x Nova Caledônia na madrugada. Mas, sobretudo, dedicado aos fanáticos por algum time de futebol. Não me entenda mal: eu também gosto do jogo propriamente dito, ainda que isso não seja a mesma coisa que ser um apaixonado. Existe uma diferença sutil, mas fundamental, que é entre a curiosidade e o estudo pelo futebol, e o sentimento de se sentir parte daquilo, como na inexplicável angústia antes de uma decisão por pênaltis que acontece apenas quando o seu time está envolvido.
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É lógico, também, que esse projeto foi movido pela curiosidade. Eu queria entender estes torcedores e a resiliência de cada um deles em cidades com outros a ocupar todo o espaço. Mas a ideia nunca foi analisá-los como freaks de um mundo distante, ou masoquistas por opção. Eles torcem por um clube exatamente da mesma forma que cada um de nós. Então não se engane: este livro diz respeito a todos os torcedores, mesmo que separados por número de troféus, tamanho de estádios, ou "tradição", aqueles que dedicam horas ao time, choram, riem, prometem largar tudo, para logo depois fazer tudo de novo. E o futebol dentro do estádio ainda é a sua grande força motriz, não importa quantos jogos são transmitidos pela TV. Somente após colocar no papel os números de quilômetros e as horas que dediquei a este livro é que percebi a maluquice. Antes de cair na estrada, porém, era para ser pura diversão. Viajar e assistir a dezenas de jogos (ruins), conhecer pessoas que viraram amigas. E se meter em furadas. Tudo sem rios de dinheiro envolvido, apenas um bom planejamento, organização, e o principal, a disposição para colocar ideias doidas em prática até à última consequência. Obviamente que não foi apenas diversão. A demanda de trabalho e pesquisa foram extenuantes, e as viagens não foram um passeio à Disney. Com a proposta de ser um livro sobre torcedores
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e suas experiências, preferi fazer pouco ou quase nada de contato com as fontes oficiais destes clubes. A ideia era assistir às partidas ao lado das pessoas comuns, comprar o ingresso, nos locais recomendados por elas como os melhores. Quem seriam elas e como encontrá-las foi a parte mais difícil, no entanto, crucial do projeto. Os personagens do livro são das mais variadas faixas etárias, classes sociais, torcedores comuns ou ultras. As histórias passam pelo verniz particular das suas vivências, mas carregado com a tinta daquilo que observei, além de pesquisa em jornais, livros, internet, e conversas com alguns jornalistas. Nenhum dos jogos deste livro entrou para a história. Nas ruas não houveram gritos de campeão ao final da temporada. É provável que também não haverá nas próximas. Nada, porém, fará com que estes torcedores desistam. Por que? É o que levei uma viagem inteira pra descobrir. Espero que goste.
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6. Fuck off, I'm Millwall Millwall 1-0 Peterborough The Den Terça-feira, 28/02/2017 Terceira Divisão (League One) Público: 8.032 [ESSE É UM PEQUENO TRECHO DO CAPÍTULO]
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No entanto, a fama da torcida do Millwall não morreu fácil e no jogo que assisti o entorno do estádio tinha polícia em quantidade para uma guerra - os "Old Bill", como a torcida chama, de forma difamatória - se considerarmos a total nulidade do jogo. O acesso dos visitantes ao estádio é uma estrada conectada diretamente com a estação de trem mais próxima, o que alguns torcedores do Millwall chamam de o "corredor dos covardes". O trajeto ao The Den, aliás, é um anti-clímax de qualquer coisa relacionada ao hooliganismo. Entre a estação de South Bermondsey e o estádio, o caminho inclui uma oficina mecânica, uma revendedora de caminhões usados e o famoso túnel grafitado com uma icônica foto do atacante Neil Harris de braços abertos. Não existem bares perto do estádio, então esqueça qualquer folclore de beber uma Guinness com um hooligan das antigas. A única opção para o "aquece" é um restaurante de aspecto caseiro chamado Millwall Cafe, decorado com os poucos triunfos do clube, e onde só tinham famílias comendo fish & chips.
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A loja do clube fica no lado oposto a esse café, e fora isso, as únicas outras coisas no entorno do estádio são um mercado atacadista, 12 oficinas mecânicas (sim, eu contei), além dos trilhos do trem - é um literal beco sem saída, e daí a enorme aura de tensão para os visitantes. A região é completamente fora do circuito dos turistas, a menos que o seu turismo envolva assistir a jogos ruins da terceirona inglesa (né!). Qualquer pessoa que visite Londres passando pelo tradicional Big Ben e pela London Eye chamaria a região apenas de "feia pra caralho". Mas como o bairro não é para os turistas, ele resume bem o perfil working class people do torcedor do Millwall. A região sul não tem qualquer aspecto cool: algumas quadras ao norte do estádio está uma área residencial revitalizada, bem suburbana, daquele tipo com casinhas todas iguais, uma ao lado das outras, como se fosse a locação do filme Edward Mãos de Tesoura, mas é só isso. "Há poucos torcedores do Millwall nessa região hoje, embora exista a conexão pelo passado. A maioria das pessoas se mudaram devido a gentrificação da área ou tinham família por aqui”, diz Alexander Melnikov, ou simplesmente Alex, 16 anos, filho de um casal russo que emigrou nos anos 90 e que mora nessa parte "remodelada".
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A torcida permanece vinculada a classe média/baixa, mas vive nos subúrbios para fugir dos aluguéis caros. Em Londres, os bilionários russos e chineses não estão envolvidos apenas com times de futebol, mas com a compra de uma quantidade ilimitada de imóveis, bolha que em última instância afeta não apenas a região sul, mas a cidade toda. É uma escadinha: os novos ricos deixam a classe média em maus lençóis pelo aumento dos preços, a classe média se move para lugares mais baratos na cidade, e a classe baixa simplesmente vaza de Londres. Que é o que aconteceu com grande parte dessa torcida do Millwall. Há um interesse, por exemplo, de transformar todo o muquifo ao redor do The Den em uma "vila de esportes" e de imóveis de "alto padrão". Embora o estádio, em si, seja algo que não possa ser desapropriado, sem a sua infraestrutura como a sede social e o estacionamento, o Millwall seria quase que obrigado a se mudar.
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Essa Londres pós-globalização é uma tecla constante da torcida na sua ira contra o futebol moderno. A fama de brigões não contribui, e "os bons velhos tempos" ainda estão vinculados à violência, mas os torcedores têm algumas preocupações que são justas. Uma partida da terceira divisão custar 28 libras (cerca de R$ 115,00) é algo sem muita explicação, por exemplo. "É surreal para dizer o mínimo", diz Alex. "Como eles pensam que um trabalhador tem como pagar por isso? Ou um estudante como eu? Isso não é a Premier League e a nossa torcida é pequena. Os resultados importam por aqui, e as pessoas acabam não vindo ao jogo se tiverem de pagar caro. O time é horrível e os horários nem sempre os melhores". Em uma terça-feira à noite de muito frio, o estádio para 20 mil pessoas não estava ocupado nem pela metade, e olha que o Millwall não perdia uma partida há três meses. ************************
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11. Red Star Paris (não é uma festa) Red Star 0-1 Amiens Stade Jean-Bouin Sexta-feira, 17/03/2017 Ligue 2, Segunda Divisão Público: 4.093 [ESSE É UM PEQUENO TRECHO DO CAPÍTULO] **************** Para compreender o Red Star é indispensável ir até SaintOuen, que é onde fica o Stade Bauer. Perto da estação de metrô Porte de Clignancourt está o famoso mercado de pulgas Les Puces, uma demência extrema com roupas, eletrônicos e cacarecos diversos, onde provavelmente seja o lugar ideal para achar a camisa mais obscura do time obscuro que você deseja. Só que meu destino não envolvia turismo de livro de viagem. A avenida que leva ao estádio é repleta de camelôs, na qual aqui chamarei de Av. Comercial de Roupas e Tênis Piratas da [ 15 ]
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Europa, do tipo em que 95% dos vendedores são árabes, e 98,5% de chance de você ser o único turista. Região onde o croissant é três euros mais barato, o cafezinho dois e onde três cervejas saem pelo preço de uma na Champs Elisée. Onde não é legal ficar vagando com cara de americano perdido (eu não sei porque, mas todo dono de loja em Paris pensa que você é turista americano). Onde em frente ao estádio fica o L'Olympic Saint Ouen, quartelgeneral da torcida do Red Star desde os anos 70 e que, como todo bom boteco, estava aberto às duas da tarde. Do outro lado da rua está o Stade Bauer, a casa do Red Star há mais de 100 anos. No lado de fora, a abandonada bilheteria parecia o cenário de um filme zumbi. Na recepção, completamente vazia, todo o aspecto de secretaria de esportes de uma cidade do interior. Na parede, um mural de cortiça com informações das equipes infantis. Em uma pequena vitrine de vidro, os troféus do time principal e um cachecol do jogo contra o Saint-Etienne pela Copa da França de alguns anos atrás. Fui entrando sem ninguém aparecer até chegar aos vestiários, aquele estilo clássico de ginásio poliesportivo que a gente bate uma bolinha toda semana. Continuei. Ninguém apareceu. Então resolvi dar a volta no estádio, passei pelo estacionamento, e entrei por uma portinha que era...o acesso ao
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estádio. Novamente, ninguém para me impedir. Acanhado, e de gramado artificial, o Stade Bauer está autorizado a receber 3 mil pessoas da sua capacidade de 10 mil, com todo um setor interditado por medidas de segurança - cheia de limo, parecia uma outra ótima locação do seriado Walking Dead. Atrás de um dos gols, praticamente em cima do gramado, um prédio no peculiar formato de um esquadro para desenho é quase que a área vip aos moradores do conjunto habitacional. Quando o clube subiu para segunda divisão em 2015, pela primeira vez em 15 anos, a festa foi quase estragada por ter de jogar longe do estádio. Entre outras coisas, um dos motivos é a falta de banheiro (!), que fica apenas do lado de fora das arquibancadas. O clube optou por jogar a 75 quilômetros de Paris, em Beauvais, mais conhecida pelo aeroporto onde chegam os voos de baixo custo da empresa Ryanair, que por um grande acaso, foi onde eu aterrissei. Boa parte da torcida do Red Star boicotou os jogos em Beauvais. Mas pelo que pude sentir na pele na penosa viagem, talvez "boicote" não fosse o real motivo. Para a temporada 2016/17 o time se mudou para o Stade Jean-Bouin, do Stade Français, que é o mais popular clube de rúgbi. Muito mais perto, ele fica literalmente do outro lado da rua do Parc des Princes, na área nobre de Paris, distante 15 minutos
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das quadras de Roland Garros. É um estádio moderno, de design assimétrico em forma de curvas, tipo um Edifício Copan, e que foi remodelado para Paris sediar as Olimpíadas de 2024. O aluguel custou 1.3 milhão de euros anual, o que cruzando a rua não pagaria uma semana de salário de Neymar no PSG, mas é uma grana surreal para um clube quase amador. ************************************* GOSTOU? COLABORE COM O PROJETO. OBRIGADO!
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