Um Mundo chamado Rússia

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LEIALDO PULZ

UM MUNDO CHAMADO


EXPERIÊNCIAS FUTEBOLÍSTICAS Quando falamos de Brasil, logo vem a associação na mente dos russos com café e futebol. Mas o café brasileiro já é assediado pela concorrência de outros países, como Etiópia, Colômbia, entre tantos outros. Neste caso então sobra a imagem do país do futebol. E este esporte é o mais popular do mundo. Em todos os cantos existem pessoas que correm atrás de uma bola. A admiração na Rússia pelos nossos desportistas é constatável pelo número destes atletas nos times do país. Praticamente todas as equipes da primeira divisão têm no seu elenco nossos compatriotas. Mesmo na segunda divisão, percebe-se o empenho dos times em reforçar seu elenco com algum jogador daqui, ou mesmo da Argentina. Mas a busca por sul-americanos atualmente tem se diversificado e a busca por uruguaios, paraguaios e outros tem crescido.


Por isto não seria de admirar que em nossa Krasnodar houvesse ao menos um brasileiro jogando no time local. Quando chegamos em 2005, o Clube de Futebol Kuban era daqueles times que, ora está na Segundona, ora sobe para a Primeirona. Na Universidade, ficamos sabendo que o time tinha um brasileiro jogando lá. Ficamos felizes, pois até então pensávamos que éramos os únicos brasileiros conhecidos por aquelas estepes. Descobrimos que ele era a estrela do time, e conseguir o contato assim direto era algo que precisava ser batalhado. Certo dia, o celular toca e ao atender ouvi um sotaque baiano falando do outro lado. Demorou uns micro-segundos até reorientar a mente para o português e conversar com o conterrâneo. Dali em diante, desenvolvemos uma amizade muito profunda com este jogador. Ele havia saído ainda novo em sua carreira para jogar na Bósnia. Passou um tempo lá e o clube de Krasnodar o contratou. Sem família (esposa e filhos), sem maiores impedimentos aceitou o desafio de ir para Krasnodar. E isto é digno de nota, pois muitos jogadores que vão para fora do Brasil, em busca de realização profissional e estabilidade financeira, se deparam lá fora com falta de estrutura, solidão, choques culturais e etc. Isto acaba levando a uma volta prematura ou desestímulo, que afeta a carreira. Acompanhamos (como família) todas as alegrias e dificuldades destes profissionais que no decorrer dos anos passaram por


Krasnodar. Muitas são as lutas, desde o assédio, a cobrança, o despreparo para situações da vida lá fora, as saudades de casa e entre outros aspectos dos brasileiros no estrangeiro. O futebol russo sempre foi marcado por, digamos, suspeitas em relação a sua integridade. Muitos analistas afirmam que as fracas atuações dos times da URSS e Rússia eram resultado de uma máquina de corrupção que não deixavam com que as equipes conseguissem atingir um nível técnico para conseguir competir com os outros times europeus. Num país onde tudo era resolvido fora do campo, era de se esperar que os resultados em competições internacionais fossem frustrantes. E este “jeitinho russo” incomodava muitos jogadores. Não que em outros lugares este tipo de “jeitinho” não existisse, mas era sempre tão evidente na Rússia, que os próprios torcedores diziam: o time campeão sempre é o time do Premier (na época soviética). Coincidentemente, era exatamente isto que acontecia! Mas a chegada cada vez maior da “legião estrangeira”, investimentos privados e a seriedade dos campeonatos vêm elevando o nível do futebol russo. Hoje eles já brigam nos campeonatos europeus de forma mais digna, passando das primeiras fases, e até mesmo se tornando campeões, como CSKA e o Zenit. Todo russo com quem conversei sobre o assunto de futebol torcia por um time russo (óbvio!) e para um time europeu da


Alemanha, Inglaterra, Itália, Espanha, ou outro. A pergunta que me faziam era sempre para que time russo eu torcia, o que era normal, mas em seguida a questão era para que time europeu. Quando dizia que não tinha nenhuma equipe pela qual eu tinha simpatia imediata, suas caras sempre expressavam assombro. Como um brasileiro pode não ter um time de futebol? Isto se explica pelo fato de os russos não terem idéia de que futebol possa existir em outros continentes. Nenhum deles conhecia clubes brasileiros, ou mesmo sul-americanos. Taça Libertadores? Que é isto? - perguntavam. Mundial de Clubes? Enfim, eu sempre desistia da conversa no meio, pois mostrar que se existem jogadores brasileiros, deveria indicar que eles deveriam jogar em algum time por aqui, antes de ir para a tão badalada Europa. Para um russo, ir ao estádio é como ir a um balé, um espetáculo, assistir um filme. É parte de uma herança cultural da URSS, onde atividades “culturais” eram de acesso das massas. O crescente padrão da técnica, jogadas de efeito (de brasileiros na maioria, é claro!) estimularam o público a se aproximar dos clubes de futebol. O esporte virou um grande negócio, e isto tem profissionalizado o espetáculo. Mas nem só dos profissionais tem vivido a paixão dos russos pelo futebol. Ao longo do tempo que vivemos lá, pudemos ver se multiplicar as quadras e campos de futebol, especialmente do tipo “grama sintética”. O interesse de pais em buscar uma atividade


física para os filhos também impulsionou o mercado de escolinhas de futebol. O governo tem encontrado no esporte uma forma de ideologia perdida com o fim da URSS. O consumo de drogas e álcool tem alarmado as autoridades, e em especial as autoridades de Krasnodar. A solução mais rápida foi incentivar a prática de esporte. Assim, através de alguns contatos na cidade, nós com um grupo de amigos propusemos a vinda de uma equipe de futsal do Brasil para trabalharmos um pouco esta questão. O alvo principal era atingir as crianças, que são o ponto mais fraco e desprotegido destes terríveis males que atacam todas as sociedades. Tínhamos a experiência de um amigo nosso no Brasil que vem trabalhando com uma ONG em São Paulo em comunidades carentes da capital. Agregamos a isto a necessidade dos russos e o interesse do futebol. O resultado foi que em 2010, um grupo de 8 jogadores foram até Krasnodar para este projeto. A equipe contava com jogadores profissionais de futsal que já haviam jogado na Liga Italiana, outros que foram para Portugal e EUA. Mas a grande estrela do time era um ex-jogador da seleção brasileira de futsal, bi-campeão mundial. A presença dele foi fundamental para que conseguíssemos chamar a atenção da imprensa local e de algumas autoridades. O projeto durou ao todo duas semanas, e estivemos em muitos lugares do estado e na capital. Participamos de um torneio de futsal de rua, numa quadra onde ocorriam os jogos da liga de Krasnodar de futsal de rua. Os atletas foram em escolas, ginásios,


estádio. As emissoras locais de TV (5 canais ao todo) fizeram reportagens, entrevistas e uma “coletiva de imprensa”. Foi muito importante para a região, especialmente para as pequenas cidades do interior. A chegada do time causou um verdadeiro alvoroço em cidades do interior, e mesmo na cidade de Maykop, capital da República da Adygea, tivemos uma partida com o time local, onde o estádio municipal ficou completamente lotado. A mensagem que queríamos transmitir para aquela sociedade era de que existem valores aos quais devemos nos apegar, o que ia ao encontro do discurso do próprio governo, ou seja, um chamado para valorização da família, uma atitude contra as drogas, e a necessidade da fé. Sempre fomos bem recepcionados nos lugares por onde passamos. As pessoas eram atenciosas e sempre procuravam o contato, o que era muito estranho para mim, pois geralmente os russos são frios, distantes e muito desconfiados. Isto até causou uma impressão equivocada com o pessoal da equipe, que acabou levando aquele clima cordial e amistoso como sendo a constante da vida dos russos. Em uma cidade no interior de Krasnodar tivemos uma experiência um tanto negativa. Num dos jogos que os brasileiros participaram, um deles se chocou com um russo e caiu. Ele sentiu uma forte dor no ombro, mas teimosamente continuou em campo. Ao acabar a partida sentindo muitas dores, ele me procurou e pediu para


ver se poderíamos ver o que havia ocorrido. Felizmente no local havia uma ambulância de plantão, e recorremos ao pessoal ali. Fizeram uma faixa e deram algum remédio, mas a situação não parecia nada boa. Uma das organizadoras do evento veio ao meu encontro e recomendou que fôssemos para o hospital municipal para falar com os médicos. Não tive como conter em minha mente as cenas das experiências anteriores nos hospitais de Krasnodar, mas pensando na situação de nosso atleta, resolvemos prosseguir. Ao grupo se somou outro jogador que estava sentindo fortes dores nas costas. Ao chegarmos ao hospital, a moça que cuidava da organização do evento tomou a dianteira e foi falar com alguém lá dentro. Parece que cidades pequenas têm a vantagem de que certas pessoas carregam consigo alguma influência e logo são recebidas. Em pouco tempo ela volta com o médico que vem perguntando o que havia acontecido. Ele examinou os jogadores com muita paciência (!!!) e pediu que fôssemos até uma sala onde seria tirada uma radiografia. Comecei a imaginar para onde tudo aquilo nos levaria, especialmente em termos financeiros. Neste meio tempo fiquei conversando com algumas pessoas ali mesmo, pois parecia que todos os funcionários que estavam naquele dia no hospital, num fim de sábado, num hospital de cidade interiorana vieram ver o movimento que estava acontecendo. Achei muito engraçado tudo aquilo, e a tensão foi baixando.


Após alguns minutos, que não tenho bem certeza devido a toda a situação, os médicos chamaram para uma sala. Eles haviam constatado que um osso havia quebrado na região do ombro. Eles achavam melhor operar para verificar os pequenos estilhaços que estavam alojados e fazer o procedimento padrão. Devo confessar que não entendi muito do que estavam falando, mas apontavam com insistência para um local na radiografia, e era nítido o rompimento e alguns pedaços pequenos pela região. Assustado com a possibilidade de uma cirurgia naquele local, precisei ligar para um amigo médico brasileiro em Moscou. Não tive resposta, por isto convenci os médicos que iríamos esperar até termos uma posição do nosso amigo lá de Moscou. Os médicos não ficaram muito contentes com aquilo, pois achavam que uma intervenção era necessária. Contudo, o humor deles não se desfaleceu com isto, e acabaram por “tietar” nossos jogadores, tirando várias fotos com eles, exclamando “quando teremos a oportunidade de tirar fotos com celebridades assim de novo?” e riam como crianças diante de um ídolo. Sorrimos apertamos as mãos e fomos embora. A noite conversei com nosso amigo médico, que após vários minutos de conversa, deixou em nossas mãos a decisão, ou esperar até a data da viagem para o jogador ser atendido no Brasil dali uma semana, ou antecipar a viagem (e pagar por isto) para que fosse


atendido de pronto. O próprio atleta resolveu permanecer com o grupo. Depois de uma semana o grupo foi embora, e entre tantas dificuldades, especialmente com contusões e outros problemas físicos, eles partiram animados, felizes por participar de um projeto tão inusitado. A pergunta que nos fazíamos como família era se aqueles dias mágicos seriam apenas como sonhos de verão, que não voltariam a se repetir. Tivemos um tempo de grande alegria com a presença daqueles jogadores por lá, apesar de todas as dificuldades que tivemos com burocracias, choques culturais dos atletas, falta de preparo por parte dos russos na logística entre outros. Mas no ano seguinte aconteceria outro projeto nos moldes do anterior. Contudo, desta vez, ao invés de oito atletas, seriam quatorze, sendo que alguns destes haviam participado do primeiro time. O grupo, no entanto, era bem mais experiente em relação à vida. Alguns já tinham famílias e vieram com o intuito de focar no trabalho de mini-clínicas de futebol voltado mais para o público infanto-juvenil. Se o primeiro time foi uma espécie de cartão de visitas, um “abra alas”, este segundo veio colher os resultados do anterior, pois já haviam sido estabelecidos alguns contatos, e isto na Rússia é primordial para um bom desempenho. Apesar de não contarmos com nenhuma “estrela” no time, fomos bem recebidos por todos como se tivéssemos ali uma equipe de renome


internacional. Principalmente nas cidades do interior, a festa sempre era muito calorosa. E na realidade aquele momento de uma equipe de brasileiros chegando à cidade ou vila, seria possivelmente a única oportunidade de muitos estarem perto de jogadores, e até mesmo de estrangeiros de uma forma geral. Nossa intenção naquele momento não era entrar na mídia mais expressamente, ainda que canais estivessem presentes em determinadas ocasiões. Este segundo projeto esteve muito mais perto das pessoas, e de forma mais especial, das crianças. Brincar e divertir-se com elas era muito bom, além de abrir o coração dos pais. Numa das ocasiões, quando estávamos numa escolinha de futebol nos arredores de Krasnodar, enquanto nossos brasileiros brincavam com as crianças no campo, eu passeava pelo gramado que estava cheio de pais atentos ao que acontecia. De repente, alguém se aproximou e disse: “Que interessante, como o pessoal brinca e se diverte com nossos filhos!!!”. A alegria era contagiante, e os pais ali presentes se maravilhavam com tudo aquilo. O dia que mais marcou para mim foi quando tivemos a oportunidade de visitarmos o Hospital de Câncer Infantil de Krasnodar. A diretora autorizou a vinda do grupo, com uma condição: as crianças desceriam para a quadra, mas ficariam no máximo 30 minutos e ficariam sentadas fora da quadra assistindo o show dos jogadores. Pensando na situação, não discordamos da diretora e nos submetemos a todas suas ordens.


Aquele provavelmente foi o dia mais quente do ano. O termômetro da praça estava marcando 40° C. Nossos atletas se perguntavam o que poderia ser feito em tais condições, e senti que alguns estavam desanimados, até mesmo pelo cansaço da maratona a qual estavam sendo submetidos nos últimos dias. Quando chegamos à quadra, vi um batalhão de crianças sentadas, comportadas, algumas com os pais, e no canto estavam as enfermeiras com seus jalecos brancos. Muitas das crianças estavam com véu ou boné em suas cabeças, pois a quimioterapia tinha cobrado um preço alto. Pensei comigo: “o que podemos fazer por elas? O que será possível fazer aqui?”. Gosto de crer que esta pequena oração foi escutada nos céus. A enfermeira chefe veio repassar as condições da diretora, e nos comprometemos em não desobedecermos a suas normas. O interessante foi ver o nosso pessoal renovando as forças ao verem as crianças. O capitão da delegação chamou os jogadores no centro e passou as instruções rígidas da diretora e concluiu: “Pessoal, vamos dar ao menos algum tempo de alegria para estas crianças, sei que está calor, vocês estão cansados, mas façam isto por elas!!!”. Foi de arrepiar… Os jogadores foram para o centro da quadra com as bolas e começaram a fazer a apresentação padrão com firulas, embaixadinhas, toques de bola, ou seja, o espetáculo que eles muito bem sabiam fazer. As crianças ficavam ali paradas, imóveis em seus corpos,


numa disciplina militar russa, mas foi só uma bola escapar, uma brincadeira com a criança, um sorriso e um convite para chutar a bola, que tudo foi por água a baixo. Em instantes as crianças estavam em pé sorrindo, querendo chutar a bola também. As enfermeiras se olharam e simplesmente “deixaram o clima rolar”. Em pouco tempo havia organizada uma fila para chutar a bola, outra para abraçar jogadores, lá no canto outros tiravam fotos, e aí ninguém mais ficou sentado. Até um mini-jogo foi organizado num outro canto. E parecia que ninguém estava querendo sair dali. Depois de bastante tempo, onde toda a programação já tinha furado, o pessoal se aquietou um pouco e as bolas foram deixadas de lado. Já não importava mais nada, todos foram tirar fotos, as crianças com os jogadores, e os jogadores com as crianças. Alguém da equipe havia trazido um violão e um tambor. Pronto, aí virou festa mesmo. Os jogadores tocaram e cantaram para as crianças, num ritmo bem brasileiro. Quando olho para meio do grupo animado, vi uma enfermeira rebolando com uma ginga típica de brasileiro (uma imitação, mas era o que ela podia fazer!!!). Depois descobri que ela era a chefe das enfermeiras. Era surreal ver tantas pessoas empolgadas e sorrindo. Depois de algumas músicas, as enfermeiras pediram para as crianças se despedirem dos jogadores, pois dos 30 minutos que deveriam ficar fora, haviam se passado quase duas horas! A despedida foi muito calorosa, com abraços e mais fotos.


Depois disto, chegou-se a mim a enfermeira chefe e me apresentou a diretora do hospital. Preparei-me psicologicamente para a bronca, aquela típica dos russos. Mas vi no seu rosto algo surpreendente, ela me cumprimentou sorrindo e agradecendo por nossa estadia ali. Ela se mostrou muito empolgada e resolveu fazer um tour com nossos atletas pelo hospital. O convite não foi muito bem recebido pelo nosso pessoal, que já estavam exaustos e ansiosos por um banho depois daquela tarde quente. Mas eu sabia que aquele momento era algo raro. O convite era uma honra que a diretora estava estendendo para o grupo, pois este tipo de oportunidade só é estendida quando um russo, especialmente no caso de uma diretora de instituição pública, está plenamente satisfeito e contente com algo. Este foi um momento impar para nós, pois se confirmava diante de nossos olhos uma característica especial do povo russo. Em geral, eles se apresentam fechados, sérios, frios e desconfiados. Contudo, tudo isto é muito mais uma fachada cultural que eles seguem à risca, mas quando se rompe esta primeira barreira, eles se mostram absolutamente passionais, emotivos, e em certos aspectos, quase latinos. Pena que para nós brasileiros, o romper destas barreiras externas seja um processo tão demorado e penoso! Muitos outros momentos interessantes ocorreram nesta segunda viagem, mas gostaria de me restringir ao que já foi narrado,


pois poderíamos nos delongar e acabar diluindo este encontro que foi o mais marcante para todos. Na despedida ao fim do projeto que durou duas semanas, houve

muita

emoção

no

aeroporto.

Alguns

nitidamente

emocionados falaram do que aqueles poucos dias na Rússia haviam representado para eles. Outros nos abraçaram comovidos e não falaram nada. Vê-los partir foi um forte golpe nos nossos corações. Mas para nós, sem que soubéssemos, o tempo de Rússia também estava chegando ao fim…


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