Quatro Estações: O trevo

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BOB DUTRA CÉLIO DINIZ HENRIQUE RODRIGUES MARCELO ALVES

QUATRO ESTAÇÕES: O TREVO

1ª edição

Rio de Janeiro Edição do autor 2012

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Q2 Quatro estações : o trevo / Marcelo Alves da Silva (ed.)... [et al.]. – Rio de Janeiro : Edição do coautor, 2012. . 115 p. ISBN: 978-85-913205-0-9 1. Literatura Brasileira. 2. Poesia. I. Silva, Ficha catalográfica elaborada de acordo com asMarcelo normas Alves. da AACR2 II. Dutra, Bob. III. Diniz, Célio. IV. Rodrigues, Henrique. V. Título. Thatiana de Abreu Bartolazzi Bibliotecária CRB 7/ 5375

CDD B869

Ficha catalográfica elaborada de acordo com as normas da AACR2. Thatiana de Abreu Bartolazzi Bibliotecária CRB 7/ 5375 Capa: Paulo Vasques de Miranda

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/deed.pt_BR

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SUMÁRIO

Apresentação............................................................................................................... 4 Canções de afiar a noite, Bob Dutra.................................................................. 5 Junto ao lagar, Célio Diniz.................................................................................... 35 A simetria do espelho, Henrique Rodrigues..................................................... 61 Menina com sol e outros poemas, Marcelo Alves........................................ 88 Sobre os autores..................................................................................................... 116

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Apresentação

O dia 13 de maio de 1999 é uma das datas mais importantes da minha vida. Após cursar a faculdade de Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, período de rica aprendizagem técnica e humana, lancei meu primeiro livro. Foi escrito com meus três grandes amigos, com quem publicava um fanzine durante o curso, e eu mal sabia que todo aquele processo seria o embrião da minha (ainda incipiente) carreira literária. Este Quatro estações que você tem em mãos foi a nossa estreia como escritores. E ao pensar nele, volto no tempo. Em pouco mais de 13 anos, muita coisa mudou. Se hoje é praticamente fácil criar livro via impressão por demanda, ou mesmo lançar um PDF ou blog ou outros aplicativos mais recentes para se publicar um livro, naquele longínquo final do século XX não era tão fácil. Encomendamos uma tiragem pequena, caseira, de uns trezentos exemplares. Mesmo sendo algo que hoje vejo como rudimentar, lançar esse livro foi a culminância de um processo de experimentação artística e da ação de colher (do latim legere, mesma etimologia que gerou o verbo ler) aqueles leitores que cultivamos ao longo da faculdade, entre colegas, professores e mesmo escritores – Antônio Torres, que ministrava oficina literária na Uerj, foi lá nos prestigiar. Embora chovesse, o hall do 11º andar estava lotado. Como acontece com qualquer primeiro livro depois de um tempo, há poemas aqui dos quais não gosto, outros que reescreveria, mas é importante frisar que este livro foi uma espécie de diploma para os garotos que ousaram ser escritores. Junto com Célio Diniz, Bob Dutra e Marcelo Alves, nasci ali como escritor e me senti pronto para encarar o mundo. E por isso, a cada livro novo sempre volto a ser aquele jovem que se espanta e se entusiasma na estreia. Este livro é um registro estético dos nossos olhares poéticos de aprendizes. Henrique Rodrigues

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CANÇÕES DE AFIAR A NOITE

Bob Dutra

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Breviário Bob é um dos que já nasceram prontos para a poesia. Pelo menos foi essa a primeira sensação que tive quando o convidei para participar de uma revista que estávamos produzindo no segundo semestre de 1994 — época em que iniciamos nossos estudos no curso de Letras. Ele se preocupava bastante com a qualidade e, principalmente, com a responsabilidade dos textos publicados: “Poesia é algo muito sério, não pode haver leviandade.” A idéia principal era essa — ipsis verbis, não confirmo. Desde então veio crescendo em mim a admiração por seu trabalho, e uma amizade bastante proveitosa, pois aprendi muito com nossas farras no Programa de Leitura no qual trabalhávamos na universidade, com as suas leituras e a sua poesia advinda desde os tempos em que participava de um grupo de poetas: o Círculo dos Poetas de Carretel. Tive sorte de estar ao seu lado em alguns concursos, dentre os quais o da I Mostra de Poesia Carioca, ocorrida em 1998. Nesta, publicaram nossos poemas em uma antologia. Iniciei esta nesga de biografia dizendo que ele já nasceu pronto para a poesia. Pois bem, faço votos de que o leitor das páginas seguintes vá além desse comentariozinho singelo de quem ainda se perturba com os versos de um poeta — meu amigo Bob — que tem muito a nos dizer.

Marcelo Alves

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... QUANDO FIZER UM POEMA: desfiar pedras alimentar tigres ordenhar deles o medo e constelar ar a ar o frĂŞmito febril em alumbramento

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JANELA Preso no horizonte eu mesmo Não sei se te vejo ou às próprias grades da cegueira. O sol se pôs Vivi na sombra do não ser-me.

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Acaso ao horizonte as linhas se perdem nos homens. Linhas e horizonte de homens. Homens: linhas e horizontes do tear. Ao acaso as linhas cruzam-se. A velha fiava ao sereno linhas, horizontes e homens. Ao cerrar-se o fio quisĂŠramos todos, ser carretel.

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NOTURNO os poemas repousam no escuro e na noite para vê-los tenho que apagar a vela e seguir minhas sombras.

SOLILÓQUIO EM SILÊNCIO quando morro desço fundo em mim vendo-me só, desapareço

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METÁFORA Um camaleão ambíguo Sobre uma rocha de sombra Declama serenos motivos Sem saber-se - é rocha? ou sombra ou palco ou ele mesmo ou Mário Quintana.

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CICLO DAS PEDRAS “No meio do caminho tinha uma pedra.” A vidraça estilhaçou. Há dez milhões e trezentas mil quatrocentas e treze inconstâncias indo de encontro ao branco papel que perderá sua inocência de leite moça para formar carne, veias e a literatura dos homens que contam estrelas. Os homens que contam estrelas dirão a elas (que são crianças): um dia virão ao mundo rasgar as rochas das montanhas verdes então urinar. Rios de pacus, traíras, trutas, velhos chicos e sereias letradas. As sereias letradas seduzirão os homens. De suas canções e histórias sua fecundação úmida na noite uivante gestarão juntos, todos; O poema que brota no leito do rio da rocha. O poema que brota no leito do rio, é rocha, é pedra. A pedra, Drummond a pegou atirou na vidraça.

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O ENCONTRO Hoje acordei aflito, buscava a poesia em todos os cantos. Mesmo a brisa invernal dobrando a folhagem, dando voz às madeiras do tempo, mesmo o cântico matinal da natureza não a trouxe a mim. - Não, naquela manhã eu não encontraria a poesia! Não sabendo o que me tocava, parti, comum. Não sabendo o óbvio do nada, parti, nenhum. Pois só então consumidas noite e velas, sob o forro do galpão, crepitando meditativas madeira e memória do rústico mobiliário de mim soube-me dois. Nas sombras e meia luz de uma tela impressa em chão algodão e suor soube do destino úmido da vida. Neste ínterim enovelado em tempo e respiração humana (um átimo da vida dos planetas) eis, que diante de ti percebi: — Havia sido tocado pela poesia!

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SOFRER cultivar a tristeza em um jardim de rocha quebrar a pedra para nascer

GRAFITI jรก morei no escuro da cidade mas incomodava-me a luz.

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DE TIGRES Os tigres bebem seca a água que lhes acalma os pensamentos de fúria.

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POEMA ÁRIDO Persigo as palavras fundo, na memória das pedras, ruído dos pássaros. A pele descarnada das botinas traduzindo-se em deserto. Quando há um poema o deserto sou eu.

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ANIMAL DE LAMA ao Márcio Hoje o tigre que julgo luz e trevas demiurgo fez-se sua forma os dias todos como um ano. Moldando água em brilho e terra em sombra sendo todo tempo e todo abismo todo animal de grito lírico. Cada passo e cada pata cada pedra de sua estrada imprime-se em forma inata. Sendo inegável então a qualquer livre - homem ou não reconhecer-te o passo infalível como um dardo, com que desenhaste a terra em poesia, água e barro. Da fome, o tigre ruge sem negá-la, percorre-a sem mágoa, despersonaliza molda e cala. Então surge das listras baças como um mito de cunho opaco, uma lenda - talvez voz de esquecido bardo novas linhas, novo significado para antigas quedas d’água (poesia quebrada); das mesmas quedas antigas marcas emoldurando toda vida (até a sua) em uma pintura de palavras recriando o rio, como a água. O tigre, Poeta imortal devora-se, escreve-se recria-se e amanhece. Sois tigre todos os dias.

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RESOLUÇÃO FATAL Tinha o terrível hábito de morrer então, foi ser poeta.

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DE TIGRES (II) o poema deve saciar a sede do tigre. inalterando o sopro leve leve sopro leve brisa do beija-flor.

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NUDEZ A cada minuto perder o fio diáfano da manhã contemplando sua lânguida luz

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logo, longe, ali, o mundo que vivi s贸 depois de ti.

simples, singelo, barro sentir do doce, o travo.

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DESENHO DA ROSÂNE Quando amanhece a flor-de-lis que em ti brota grita seus aromas. Inflama-se o ar fecundo da flama de amar. Nas páginas de suas pétalas um colibri de nanquim desenha o alvorecer a bico de pena.

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A AGRAMÁTICA (DE MANOEL) Desinventar palavras abrir-lhes as celas mostrando a elas asas e janelas, fecundar suas gemas com mistérios e semas — Ficar prenhe da palavra dar vida a um tema. Não parto do conhecido saio do que não foi visto chegando aonde não sei. Há de pulsar com clareza o enigma da curva, o que eu não enxergo não vejo não, só a alma cabe saber os deslimites da visão.

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Súbito fez-se sombra em meu viver. Na treva espessa ao meu redor retorcia-se a Cólera de Calar. Silenciosa, Sombria, Soturna. Em um canto um escultor cego, criterioso, eternizava uma imagem de mulher. No silêncio dos olhos dele a contemplação além do sentido. Adiante pássaros púrpuras entreolhavam o silêncio da sombra buscando razão. Em um lago negro seres aquáticos trocavam ases de um baralho completamente esquecido. Chamou-me a atenção um homem roto com todos os cabelos do corpo enevoados que dizia aos elfos que tinham seus arcos repousados para ouvi-lo: "Destruir para recriar, nascer para o poente, viver com a sombra perpassada no peito. "Súbito fez-se sombra em meu viver e jamais esquecerei das sonatas barrocas, o café quente pela manhã fria e seus longos braços pedindo-me que ficasse.

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PAISAGEM

Portas e gavetas quebradas, um brilho tênue e profundo prolonga a vista além do olhar, além do mar (e do fundo do mar), além de nós (o que comemos e respiramos até pensar deveras já vai longe e atrás). Verdadeiramente além. Nem físico ou metafísico, apenas além. A paisagem da janela é preciso deixar de sentir para sê-la. Surreal vazando em nossas mãos sujas de céu e alumbramento e o rosto molhado de oceano. Além de mim um animal acrobata atravessa um espelho e mergulha longe do seu reflexo. Em mim nada termina nem começa a não ser os infinitos olhos verdes dela debruçada no parapeito...

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RITO you've got venom in your stomach, you've got poison in your head (Marillion) punhal

sangue escor rem

pela página minha pena de ódio amarga cortou-me a língua em par tes ru bras de so nho dis so l u t o . A única lembrança viva era a morte de não ter você.

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DESLIMITE ao Marcos Vidal

qualquer imagem sem palavras qualquer alegria sem receios qualquer passeio ao infinito qualquer foto sem moldura qualquer disco arranhado para voltar ao comeรงo qualquer tudo sem nada adiante a nรฃo ser a si prรณprio.

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O REMETENTE Havia um homem que escrevia cartas sem nunca tê-las respondidas. Em um passeio desolado pelo cemitério viu seu nome escrito e — sério — todas as cartas que remetera.

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AFORISMOS PARA VOO ao Marcelo Alves No plano fino do espelho, uma mácula. No caco fino à mão, uma lâmina. Dentro Ícaro me plange a alma e a música flui das asas peroladas. Um impulso de ave domina-me os pés. Assim meu eu me dissolve: um vôo cortante de ave e adaga a polifonia da noite atravessada de sonho e arquétipo mergulho preciso na sombra do sonho. no canto do olho pássaro e homem são um.

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DOIS POEMINHAS SIMPLES à Alice: "a poem ... pure ... the whiteness of a sheet ... and eternal..."

I. no bico do passarinho sonho e realização. — É que ele carrega no papinho comidinha para os filhotes — disse Alice.

II. Como saber a grandeza do olhar? Como contar com as mãos o desejo? É possível medir saudade? Distância do olhar, há? Precisava medir o perto das pessoas. Saber a não-distância que nos envolve as mãos. — Lembrei! — gritou Alice — No poema dá!

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DA MULHER FATAL “Because she hides, she lies and she bites me...” Lembro-me que tinha tigres nos olhos. Pouco mais sabia sobre ela, mas sua assinatura sangüínea em minhas costas ... e que tinha tigres nos olhos.

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DE TIGRES (III) Tigre, tigre de Norah e de Borges, atrás de suas imaginárias grades que me diz dos olhos dela: — profundos

profundos profundos

como suas garras tão cortantes como seus olhos tão tristes em sua prisão de arquétipo de corpos de outro de nós.

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PÓLEN, POEMA Caio no Vôo do Ar pena e peso de mim mesmo Vazio de mim, cheio de Ar mergulho sem par — para o vazio de mim, para o delírio do ar.

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JOSÉ RIBAMAR o que faz o poema curto é o longo silêncio que assopra asas ao barulho

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JUNTO AO LAGAR

Célio Diniz

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A Busca do Essencial Quando Célio Diniz nasceu, o espírito de Salvador Dalí chegou pra ele e disse: “Vai, Célio, ser guache na vida!”. Artista polivalente — tão poli quanto valente —, começou a pintar desde cedo, depois tornou-se poeta, violonista, poliglota etc. A despeito de tantos atributos, é surpreendente a sua humildade diante de tudo, inclusive da própria Arte. Essa humildade, aliás, parece ser a base da sua existência. Já que tal palavra provém de humus (terra), podemos deduzir que sua Arte também está intrinsecamente ligada à simplicidade. Durante toda a faculdade fizemos a revista Esteróides. Era um espaço que nos permitia experimentar as relações autor/texto, texto/leitor, e até autor/leitor. Esta, embora fosse o maior estímulo para continuarmos o trabalho (ninguém escreve sem estímulo; se escreve, é coisa puramente mecânica), fazia surgir em nós uma espécie de vaidade literária. Mas o Célio permanecia isento, esquivo desse orgulho quase excessivo. Na dele, enfim. É esse o caminho pelo qual segue a obra de Célio Diniz: a trilha de barro que leva ao essencial, ao humus, onde mora o material dos poemas que habitam as próximas páginas. Vide verso.

Henrique Rodrigues

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O POEMA I O poema, poeta, tem o teu nome a tua luz e tua dor teu frio e calor amor de desamor. Possui também um pouco do nada e o completo não sei mas um tanto plangente alegre ou demente. O poema, poeta, tem a tua parte iluminada e o que é sombra. Tudo vezes nada alfombra. Tem um pouco de loucura e alguma sanidade. Um pouco de amargura e ainda assim há ternura. O poema, poeta, é tua casa e também na rua o céu e faces nuas que o sonho não envelhece. Há noite e estrela que esquece de si quando amanhece... Tudo por nada nada por tudo o poema é um viaduto sobre o mundo.

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COLEIRINHO Que música é esta? Sinto-a sonar fora de mim mas é na alma que ela se espraia. Será Mahler Mozart, Elgar? É um pássaro coleirinho. Passarinho que rege a harmoniosa manhã que inebria o ar que vai de galho em galho. Vai, coleirinho, foge dos alçapões leva teu canto distante do egoísmo mais presente nos corações.

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POEMA DE INVERNO Como se fosse minha voz tardia ao silêncio suspirado de meu coração senti o frio toque da brisa inverno. Aceitei sua presença sorrindo com os versos já escritos sobre a mesa e a poesia no horizonte. Tudo o que vi e senti é que me envolvia bailando em minha jovem fronte e de leve tocando os meus lábios. De que importa o instante ser breve se é leve a alma?

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PENSAMENTO Naquela manhã pousou em minha janela um bem-te-vi. Quis tê-lo nas mãos hesitei levantar-me da cadeira mas seu canto de tanta beleza preencheu o meu quarto. Espantei-o pelo simples prazer de vê-lo voar.

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A POESIA QUE HÁ EM CADA UM Não bebas de minhas palavras que neste poema escrevo se não tens sede. Deixa-o na estante ou sobre a mesa mas não o leves no peito. Não profiras palavras em lábios apáticos porque não escrevo para tua aparência nem para teus ouvidos. Antes escrevo o que sinto mas se em teu olhar brilha também esse desejo não me leias. Lê a ti mesmo.

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AO MODO DE ÁLVARES DE AZEVEDO “Amemos, vivamos, que amor é sonhar.” Adormecida em meus sonhos no acalanto da madrugada esfíngica e enebriante eras o pulsar da vida na forma mais que humana e bela. Enlevada de doçura envolvera-me em divícias de teu corpo a sorver o amoroso olor da noite arfando os seios num ritmo doce e amante. Como cirros sobre os montes os lençóis cobriam enleios e tuas formas e a voz sumida nos recortes do espaço dava seu lugar à plenitude do amor. Quisera cantar a poesia que emana tua pele e rescende em teus olhos perfumar esses versos com o ar que te envolve. Mas tua imagem inefável para o maior poeta vai de encontro aos espelhos da alma e a deixa em fragmentos.

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ESPAÇO Se pudesse tocar o volume das palavras elas teriam a forma do instante (da criação) não mais que o silêncio que a seu tempo traz a voz sussurrante. A mão a construir o poema ganha o espaço da letra limitado mas a essência tem todos os espaços. Os olhos que contemplam o horizonte que faz adormecer toda a ânsia de algum lugar são a ponte entre o que sinto e a alva folha. Assim, o que me resta saber e esperar é que não caibo nas palavras.

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A POESIA A poesia é meu dom de voar uma ânsia embebida de ternura que me aquece. A poesia é um momento extático reflexo da luz que trago em mim. Por ventura, pediria eu a sua diáfana explicação? Basta que eu a tenha e que me envolva.

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O POEMA II Bato à porta de um mundo interior entro manso ou por ele sou amansado. Chamo por palavras ao topar em sentimentos que bailam em portos do meu ser. Quero tomar a poesia nas mãos mas ela aflui cristalina escapando-me da minha mais diáfana razão. Meu pensamento se perde e me sinto fragmentado. As palavras rodeiam o meu olhar e o meu instante é a morada da minha alma. Penso que não mais existo porque ela é tudo em mim. E no momento em que dói senti-la dissoluto me pergunto: — Por que fazer poesia?

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APOÉTICO Chamo-te por assim dizer poesia. Quais são os teus matizes? Quero verdes, azuis e amarelos. Quero as cores da Bandeira. Posso ouvir os teus sussurros em cada verso que a explêndida voz da alma de um poeta ecoou na terra. Posso sentir o corpóreo ardor de teus amores e viver o sonho ainda vivo da tua esperança. O que mais rescende nas matas se não as diversas formas de beleza e ilusão? Araras-azuis, mico-leão boto-rosa noites de paixão. Mais ainda vive quem os laços de ternura golpeiam a cada dia. Sedentos homens, insanos sem vida sem mistério sem poesia.

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ANONIMATO Enquanto se agita a multidão frêmita no ir e vir deitado estás no chão de qualquer praça como traça a corroer as impurezas da vida. Nossos lixos estão aí. E não sei se bêbado morto ou mesmo fatigado pela infindável batalha e não sabes para que lado te encontras. Mendigo homem ultrajado da dor seca inútil louca que ecoa na profundeza de teu ser. Não caberia a humana essência no que é mas no porque somos. E só o amor poderá nos dar resposta.

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LUZ Havia em mim um silêncio efêmero. Catei os frutos que no meu caminho pude colher. Nada... nada levava nas mãos pois que o pensamento era tudo. Vi nas cinzas brotar o lírio e como sou partícula nesse mundo diverso construo versos esse é meu viver.

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O POEMA III As palavras caminham distante do ninho fora do útero poético. Elas vão assim sem a menor proteção. Pelo ar são levadas sem deixar pegadas mas tão claro o caminho. O frio que sentem a dor que emitem a sensibilidade que expressam não trazem a poeira da estrada antes a lindeza da criação. As palavras sabem o seu caminho o que faço é contemplar seu primeiro vôo. As palavras não estão em mim pois em mim estão o silêncio e a contemplação.

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LUTAR Ela vinha toda noite a lembrança vaga... Ora monótona outrora corria e o meu peito sempre suportava. Eu sentia vontade de estrangular essa co-habitante vê-la diluir-se esfumaçar. Mas ela olhava-me eu, desencorajado, sorria. O que posso fazer se sou fraco?

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PAISAGEM Refaço o poema que um dia fiz mas se não encontro abrigo amasso o papel. Em passos lentos vou até a janela e busco uma nova paisagem. Penso que as coisas existam na sua diversidade e enquanto espero pelos versos que construirão o poema desse dia contemplo um pássaro no seu primeiro vôo. Assim me parece o poeta é preciso sempre tentar o primeiro vôo pois a paisagem não é a mesma e o poeta já não sou eu.

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INCURSÕES O poema que faço não é mais belo que o sorriso de uma criança. Não é mais doce que o beijo da pessoa amada nem mais lindo que o canto do sanhaço. Estas simples linhas que escrevo não são uma ilha para onde se vai quando se quer fugir nem trazem comicidade que te faça sorrir. Não são companhia augusta nem sequer um saber que te faça notório entre os homens. poema que faço não é algo almejado pois já está ao meu lado. É o que sei dizer da vida. É o que tenho a dividir para um dia sorrir na minha partida.

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PERSPECTIVA Que distância há entre a palavra e a coisa para o poeta? Há um enorme vazio há um oceano numa única gota que ele interpreta com sua luneta mágica.

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INSTANTE Seguro de que nada mais havia para dizer deixei quedos os olhos livre, o pensamento. Fluiu-se de mim uma flor que meu nímio corpo não suportou. Chorei em compassos convulsos. Ainda uma segunda vez tentei olhar tudo que já havia visto. Não digo do que senti pois ao morno toque de teu corpo tudo me parecia extático.

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PESCADOR Ouve-me, pescador volta teu ouvido para o mar. Eu vago sobre as águas piso sobre as ondas e sinto já o brilho dourado das vagas se chegando. Tu vais nesse barco esquece a tempestade olha o horizonte com bons olhos. Tu és meu pescador vais ao fundo do mar e se me vês se me encontras joga a tua rede. Eu virei na rede de tua paixão e levarei teu barco por tranqüilas águas para uma pesca ainda maior.

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PAISAGEM II Como as nuvens do céu vão mudando as faces de todos os que passam. E porque existem tantas em mim é que não me surpreendo de nenhuma delas. Lá, onde distam minhas lembranças colho versos sem que nunca os plantasse. Aqui sou pequeno e sem tamanho. Árvores mares lírios canções tudo, num único instante forma qualquer paisagem. Inóspita é a poesia porque ela é que habita em nós.

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O POEMA IV As palavras afluem à pena sobre o papel como cristais da alma que brilham sem véus. Depois de tão certas nascem pequenas e, serenas, ganham peso pois estão abertas. O leitor as toma sem medida ao instante que lhe abre o infinito. Cristalino o poema brota em sua vida cedendo novos sentidos. Mas não é a voz do poeta que fala em nós ele nos empresta as palavras e nós seguimos a estrada. O poema é coisa morta dá-lhe vida quando se abre a porta.

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AO MODO DE VINICIUS DE MORAES “Se você quer ser minha namorada...” Se você quiser ser minha namorada cantarei como o ébrio o amor que me invade e sussurrarei versos obscenos aos seus ouvidos e chorarei em cada despedida já louco de saudade. Se você quiser ser minha namorada beijarei os teus lábios com tanta doçura que no mundo não se verá tamanha ternura com que trato a minha amada. Se você quiser de mão entrelaçadas caminharemos naquela praia que nos espera e tocaremos com nossos dedos o arrebol e com nossos sonhos, a primavera. Se você quiser, pois, que o amor que lhe confesso seja como o zéfiro acariciando teu corpo eternamente ou como o beija-flor a buscar insaciável teus lábios não percamos um novo instante para que o desejo dilacerante se traduza numa única palavra amar.

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O POEMA V Visto-me de fantasias a fim de ver o mais distante a imagem esconde a essência e a palavra, o instante. Fixo, na descortinada manhã sem lençóis está o pensamento unido à beleza que silenta a voz em cada claro momento. Como um pescador lanço no mar a minha rede e colho intuitamente as palavras. E no breve instante em que busco aquelas cujo peso é maior torno às águas serenas todas que ainda não evolveram. A simples voz intuita assovia na alma o que em breve será o poema. Vejo como ele se espraia no pensamento e como mergulha na folha pequena. Sobre a mesa, o papel é como um aquário mas aos olhos do leitor o poema volta ao oceano de modo solitário.

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SONETO O teu semblante tênue se afigura nas imagens que deixo no papel. Espelham como o mar, a cor do céu; imitam dos teus olhos, a ternura. Entanto não revelam o limiar da tua essência nem das tuas formas. Expressam tão somente a luz que torna refletida no espelho em teu olhar. Pura essência que no tempo se abstrai incontida nas formas do pensar. Tão somente corisca no horizonte estrela que no azul pleno se esvai esquecida de si no dom de amar fazendo-se entre a terra e o céu, a ponte.

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A SIMETRIA DO ESPELHO

Henrique Rodrigues

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Um Goliardo, Certamente

Certa vez, quando ainda fazíamos a graduação no curso de Letras da Uerj, Henrique Rodrigues escreveu um texto de humor que foi duramente criticado. Eram críticas pesadas, quase grosseiras (embora tenha feito mais sucesso após a polêmica). Resolvi, como amigo, defendê-lo com um pequeno artigo em que o comparava com um daqueles goliardos do final da Idade Média — ex-seminaristas, expulsos do convento, que saíam pelas tavernas e praças públicas escarnecendo a todos com grande virulência e erudição. Foi a partir desta situação que percebi o riso como o grande elemento — senão o maior — de subversão da ordem. O riso tem esse poder e o Henrique sabe como utilizá-lo. E se no passado, a título de defesa, o comparei com um goliardo, hoje retomo esta mesma idéia a título de uma brevissíma apresentação. Acrescento, porém, um detalhe: aliado ao que foi dito, está a sensibilidade do poeta, exigente e laborioso no trato com as formas poéticas — vide a sextina, os sonetos e os haikais. O primo Altamirando, se pudesse ler este texto, certamente diria: “Bom, chega de embromação, está na hora de ler os poemas”. Tia Zulmira e eu concordaríamos. Passemos, então, aos poemas. Marcelo Alves

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TAL QUAL Quase tudo se assemelha. No passado é que se espelha Tudo o que é atual. Como que numa ciranda, Só girando o mundo anda No silêncio atemporal. Tudo sempre se repete Na mesmice que reflete O que foi inaugural. A repetição do dia, Que se mata e se inicia Quando chega no final. Desse modo é que eu me imito, Paro, volto e me repito, Depois faço tudo igual. Com um jeito de moinho A girar devagarinho Nessa vida tão tal qual.

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BARCAROLA “Navigare necesse; vivere non est necesse.” Pompeu Durante a neblina cega No leito da noite fria O navegante carrega Todo o cansaço do dia. Caminhar não poderia... Mas ainda assim navega. E vai seguindo a corrente E ao silêncio se apega. A água lhe é transparente Malgrado a neblina cega, Que tudo visível nega A toda visão silente. A chuva o seu barco rega e assaz cai na correnteza. O navegante carrega Além da sua leveza O peso da natureza... Mas ainda assim navega.

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RONDÓ DO SILÊNCIO DA AURORA Para meu irmão Hugo No silêncio bom da aurora é pouca a gente que assiste a escuridão que desiste de ser do mundo senhora, sobretudo que devora a claridade que existe, tornando cansado e triste o sonho de paz que aflora. E esse sol que surge agora, com raios de luz em riste, sabe que não perde, e insiste em mandar a noite embora no silêncio bom da aurora.

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SEXTINA Ao menos se esticasse um pouco o tempo, Um dia não se fosse em uma hora, Veria um certo tempo que não vejo. Não por manter cerrados os meus olhos, Mas por deixar que ouçam o velho canto Das horas limitadas pelo espaço. Cruel limite: nunca houve espaço Que pudesse cair diante do tempo. O resto que se esprema pelo canto E ao centro uma batalha hora a hora Do rio, que a correr diante dos olhos, Parece afogar tudo enquanto vejo. Mas sei que quanto mais de tudo eu vejo Mais posso caminhar no meu espaço, Bastando que se eduque os próprios olhos Deixando-os olhar, de tempo em tempo, Todos os lados de uma mesma hora, E não somente vê-la de um só canto. Não fica harmonizado como um canto O que não há silêncio (o qual não vejo), E passa pelo tempo a qualquer hora. Quiçá seja o silêncio lá do espaço O vácuo que não sente o nosso tempo Por não tê-lo a vazar os próprios olhos. E o que será que vêem nossos olhos? Como dizer, cantando como eu canto, Em avanço e em evasão ao mesmo tempo? Se falo aos olhos, ouço, e assim mais vejo Do que veria dentro de um espaço Olhando e nada vendo a toda hora. E penso mais: que enfim chegou a hora De eu alternar o foco dos meus olhos Em tudo o que há de belo neste espaço. De ver em cada lado e em cada canto, Ouvir o que não ouço e o que não vejo, Enquanto houver espaço e restar tempo. Que seja todo o tempo uma só hora, Pois vejo muito mais se fecho os olhos E guardo a vida a um canto sem espaço.

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IMAGEM Polido plano plástico que espelha, No ocaso o lago é um quadro azul perplexo. Alterna-se entre o côncavo e o convexo, Enquanto no céu surge uma centelha, Um pingo alvo de luz, que se assemelha A um diamante longínquo e desconexo. E completando o mundo do reflexo O sol vira uma lágrima vermelha. A noite negra e nua não nivela O quadro. Permanecem na aquarela Os tons de abstração e sonho incríveis. Na madrugada, as solidões cromáticas Sibilam sob as sombras sorumbáticas: Às vezes vazam vozes invisíveis.

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DOIS Meu barco em pleno mar parou um dia, Num tempo de maré muito agitada. E vi a sua proa iluminada, Enquanto, lá na popa, anoitecia. Sentado eu à bombordo, também via Em duas minha imagem separada. Havia na direita a gargalhada; Do outro lado, só melancolia. Daquilo então ficou-me uma certeza: O riso é o irmão gêmeo da tristeza, E um lado outro sempre complementa. No mar, se o lado esquerdo sofre e falha, O outro toma o leme e então gargalha, Pois navegar sozinho nenhum tenta.

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TEMPO O tempo voa e morre a cada instante. De tudo o que aparenta eternidade Nem o passado fica, na verdade, E o agora é só um segundo já distante. Futuro é nada mais do que o presente Que aguarda numa fila, e se suicida. A vida que virá já é coisa ida Enquanto a que se foi faz a nascente. O instante, que se mata e vai embora, Em noite se transforma como o dia. Momentos se sepultam a toda hora Mostrando uma verdade que dizia Que a morte não existe — existe o medo De a noite revelar-se ainda mais cedo.

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AUTOPARODIOGRAFIA O poeta é um canastrão. Sempre engana muita gente: Chega a fingir que é paixão Uma simples dor de dente. E os que o vêem quando chora Vão sofrendo assim também. Não da cárie que ele teve, Mas da dor que eles não têm. E nesse mundo que rola, Onde há só simulação, Segue o poeta (que enrola) Com seu jeito canastrão. A partir de “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa.

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SONETO INGLÊS CHEIO DE SPLEEN És bela, ó minha amada. E eu aqui, tísico, Acendo este cigarro de tristeza E fumo um sentimento metafísico De em vão amar-te ao ver a tua beleza. Tu passas, qual Madame Bovary, Com o corpo fino, esguio, a pele pálida, Um olhar semicerrado, e sem sorrir; Enfim, tu és perfeita, embora esquálida. Pareces não me ver, mas eu te vejo, Vejo-te em todo canto, embevecido Por essa coisa etílica, o desejo. Vai, segue ó linda garça, pois tens sido O vício mais ditoso ao qual me amarro. Tu passas, e eu te acendo outro cigarro.

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DESPERTAR DAS RIMAS RIQUÍSSIMAS Acorde! O dia está de acordo com os seus sonhos: vem na cor do sol, com penumbra de névoa... Acorde! Pela chaminé voa o seu corpo, à mercê do olhar que vem de longe... É cedo. Acorde com os olhos úmidos, molhados no perfume dos sorrisos quase inaudíveis, como quem quer sentir vez por outra que há o mal mas há o bem também nas almas... Acorde! E que durma a ânsia de que não há amanhã, se a noite não for o fim do dia, que é algo nunca findo pois se renova em alvoradas... Acorde! E que o tom voraz das horas cale esse silêncio seu, e aí não pense o dia como o que restou dos sonhos que se acabam todos... A partir de “Berceuse das Rimas Riquíssimas”, de Guilherme de Almeida

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MAIS UMA CANÇÃO DO EXÍLIO Minha casa tem goteiras Onde a chuva vem vazar. A chuva que hoje me molha Molha muito mais que lá. Nosso céu são as estrelas, Nossa vida não tem flores, Pois a vida aqui na rua É só feita de temores. Em dormir, sozinho à noite, Dá vontade de estar lá. Lá na casa na favela Onde a chuva vem vazar. Tanto faz na minha casa Ou nessa casa de cá, Em ambas encontro a fome Que não queria encontrar. Tanto aqui quanto na casa Onde a chuva vem vazar. Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá Levando algum pra família Que de tudo está a faltar; Lá na casa na favela Onde a vida vem vazar.

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GAZAL PARA BANDEIRA “Poeta, pai, áspero irmão.” Vinicius de Moraes Vê, Bandeira, eu também fiz Um gazal. Não pro Hafiz, Mas pra ti, que dizes versos Como só um gigante diz. Doente, foste privado Dos amores juvenis; Disseste: “Vou pra Pasárgada, Aqui eu não sou feliz.” Quiseste uma estrela alta E fria, que não o quis. Mas na obra que deixaste Habitam paixões sutis, Mais eternas que as estrelas. Nela, Bandeira, sorris. A partir de “Gazal em louvor de Hafiz”, de Manuel Bandeira.

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BACALHAU PORTUGUÊS Ó bacalhau salgado, quanto do teu sal Vem dos mares de Portugal! Por te almoçarem, quantas raparigas, Com vários pratos nas barrigas, Passaram tardes no hospital. Por tua causa, ó bacalhau! E vale a pena? Tudo vale a pena Quando a indigestão é pequena. Quem fizer bacalhoada, que aceite: Tem é que carregar no azeite. Deus no mar deu sal, e o bacalhau fez, Mas fez também o norueguês. A partir de “Mar Português”, de Fernando Pessoa

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IDADE Impossível aos dedos Segurar o tempo-areia. Escorre a ampulheta.

O VERBO Às vezes palavras Destroem grandes impérios. Sejamos mais quietos.

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NĂ UFRAGO Ilha no horizonte. Vou nadando... Vou nadando... Parece mais longe.

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CRUZAMENTO Quase toda a rua É triste. Felicidade Mora nas esquinas.

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CONCRETO (Ă rvores gigantes) Cidades sentem saudades Dos tempos de antes.

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QUATRO ESTAÇÕES I - MÍMESE Vais pintar a flor? Espera, que a primavera É o melhor pintor.

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II - BRONZE Sorriso do sol. Ver達o. Muitos dever達o Virar arrebol.

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III - POMAR No meio do sono, O sonho ĂŠ um fruto risonho Colhido no outono.

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IV - FAGULHA A manh達 de inverno. Do galho brilha o orvalho, Num sorriso terno.

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CONSEQUÊNCIA Não se esqueçam. Contem: Futuro é o efeito duro Do amanhã de ontem.

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ETERNO RETORNO Só repetição. Ou seja, tudo gagueja. Queiramos ou não.

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LĂ GRIMA A ponta do dedo Recolhe a gota que o molha, Tal chuva em rochedo.

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O RISO Dei forma chistosa Ao verso com que converso. Ficou todo prosa.

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MENINA COM SOL E OUTROS POEMAS

Marcelo Alves

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A Poesia Aquém, Além do Quarto Se poesia tivesse naturalidade, diria que a poesia de Marcelo é intensamente carioca. De um jeito próprio que só ele mesmo saberia imprimir. Mas sua poesia abre asas para o mundo que o rodeia. O autor sim, carioca, pacato e de uma sagacidade tranquila deixa impresso pelas ruas do subúrbio, do centro e do resto do Rio sua tonalidade rica e deveras impressionista; poesia. Desde a escola a percepção de Marcelo soube desdobrar-se em publicações de diversos cunhos até o sucesso de sua última, a revista literária Esteróides – uma injeção de anabolizantes na veia poética, que veio a tornar-se um sucesso no meio acadêmico. Mas eis como na sinfonia Do Novo Mundo, de Dvoràk, a literatura de Marcelo Alves abre-se (molto vivace), ou melhor, será aberta pelo leitor deste livro. Menina com Sol e outros Poemas poderia ser uma escultura pelo labor, a luta do poeta com as palavras. Mas é uma sinfonia. A cada página, um movimento parece estender os significados da compreensão de seu ser ao mundo. Como se nos convidasse à sua casa, para ouvirmos com ele seus CDs, ver as fotos e folhear os livros que povoam seu quarto. Ouvir um blues, sua preferência quando tem que escrever, com a intimidade de muitos amigos. Cada momento de descoberta salta-nos da página, pequenas fotos, pequenas observações. A poesia aquém, de longos momentos individuais, abre-se (molto vivace) além do quarto, para as páginas, além, muito além, mas com uma intimidade que nós sempre carregamos. Abramos as janelas para esta menina com sol sorrir para nós.

Bob Dutra

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“Menina com Sol e Outros Poemas” é dedicado à pintura-mural O Sol, de Edvard Munch.

A ROCHA INCRUSTADA NO PICO DO MEIO-DIA DOS AMANTES O sol brônzeo armado em quatro faces em punho Na juventude indomável de um janeiro robusto Contempla, ousa, mas não esfacela no talho precoce A rocha incrustada no pico do meio-dia dos amantes. O vento imberbe que o mar expulsa, Retalhado pelo gume da espada em riste, Pronto para bramir as núpcias de uma tempestade em flor Não consegue dilacerar o viço na carne Da rocha incrustada no pico do meio-dia dos amantes. O fausto manto disperso no trono das águas De caminhos cravejados no leito fino e indolente dos rios, Que desbravam lancinantes o colo morno da terra prenhe, Também esmorejam numa tarde de domingo, Plácidos, alquebrados e moribundos ao longo Da rocha incrustada no pico do meio-dia dos amantes. Faça-se apenas o cântico débil e moroso (no prelúdio, um silêncio) No derradeiro instante de luta, Esgarçado à sombra de sua própria ossatura, Capaz de fender no veio mais profundo, A rocha incrustada no pico do meio-dia dos amantes.

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AINDA UNS REBENTOS, NÃO QUEBRANTARAM Ergue-se incólume Uma lápide forcejada com o calvário de todos os mortos. Os que estão vivos aguardam seu traçado torto e alquebrado Junto aos companheiros, antigos ou recentes, No sulco embrutecido na lápide. Dos que estão vivos, alguns não caminham mais. Suspiram maviosos e contentes rumo ao cessar do minuto corrente Do fio das horas mortas que o sol ora anuncia na manhã seguinte. Ainda uns rebentos, não quebrantaram. Seus corpos desolaram arruinados no vigor do dia, A carne desgraçada em poeira banida ao toque da brisa.

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MARTIN CODAX Deito em teus versos Tamanha mesura que não comportas, Sei bem o filho bastardo que a palavra Em ti provoca. Clareia em meus olhos toda a dor que a música profana, (As ondas do mar de Vigo Querem responder, mas não podem). Aplaudo, enfim, o trovador antigo, Pois compartilho dos anseios a que a procura nos alça.

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Somente as palavras vazias Deslizando à sombra do vento matinal em flor No sorriso tristonho do amante que perdeu as asas do amor. (Mas um sorriso ainda é um sorriso E o que se esconde atrás de um sorriso É vício da esperança).

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HERÁCLITO Como a grama empastada pela saliva que o boi regurgita Insistente insistente na colina verde da manhã quente, Cai na devora o verme que opera na carne morta Acolhida ao solo, um dia úmido, hoje ardente. Tal mudança, tal princípio.

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INVOCAÇÃO A GREGÓRIO DE MATOS Teça uma rede intrincada de palavras sagradas e profanas, Ó! Gregório de Matos — homem forte da Bahia — Que da ardente e viperina língua, Mil demônios proferiste, ávidos por justiça No promíscuo solo da santa Bahia. Erga-se um monumento a cada verso teu, Para que não esqueçamos as injúrias, As dores do amor e desventuras, E das putas e dos oprimidos, lamúrias, Que com tua pena, tão bem discorreste. Seja um canto seco e ardente; Um eco, nascido de tua morte, Vigoroso e insistente A cada fulgente leitura.

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AMOR E A MORTE Forja de rei envilecido ao mar das angústias em que nasce mais um rebento ao léu da esteira da noite, arfando miséria e migalhas do estandarte do amor que grassa impávido sob a sombra da terra no cio dos dias; triste fulgor no coração envinagrado do jovem cavaleiro que, estando alquebrado ao pé das oliveiras, não preparara o óleo para o banho de seus cabelos revoltosos que de tanto amor afogaram dedos radiantes no perfume das roseiras em festa que um dia obraram esplendores na relva; não, queria mais e mais ainda lutou esquartejando milhares bravamente em seu caminho; a têmpera da espada imorredoura salgava a carne banhada em sangue fero que espraiava pedaços ainda bêbados de vida aos ares febris daquela manhã, minado em meio ao poço de torpor que seduz e amacia sonhos frágeis; suas lágrimas assassinavam flores que mal pariam o olhar sob a face azul dos céus campestres ao saber a morte da donzela; planando rumo ao alto, tendo pássaros aos pés, estava Amor que saíra derrotada uma vez mais.

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PRÓLOGO DE UM CONCERTO PARA DVORÁK Lancetas em minh’alma imensas torres magníficas Que anseiam o casamento pelo sol. Pode acaso a harpia tonitruante gozar o Paraíso? O dia ora arqueja o voo de um pássaro faminto, Ora desfalece nas salinas languidamente Escorrendo o seu véu branco na areia platinada. A flauta que a nuvem timbra ao alvorecer, Não encontra na boca da serpente o travo sequioso Da trompa inflamante que alveja solitária e altissonante Como o suicídio do escorpião que, em seus últimos momentos, Abrasa furioso por longos séculos em corpo e espírito Porque ambos trombeteiam alarmados a chegada da estrela do mar, Embevecida pelo brilho intenso das águas que se curvam deleitosas No grande útero dos violinos embriagados. Arde o casco do cavalo no prato surdo da estrela morta, Brandindo o ritmo assassinado dos altares em ruínas.

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SEGURA MINHA MÃO BEM FIRME Segura minha mão bem firme Para que se não desvele o broto arcaico De todas as idades que as trevas amamentam. A cobra inflama a noite em seus olhos vagos E saboreia a infância do rato. Acaso quereis a penumbra Tecida pelo voo da mariposa Ornamentando a lividez do teu corpo nu? Não te amedrontes do pulso retumbante Da relva seca na noite fria, Segura minha mão bem firme, Segura minha mão bem firme.

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KAGEMUSHA É uma voz reinado, Um viver no outro sigilo. O desvão na vida.

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MENINA COM SOL Havia uma menina com sol deitada à sombra de uma árvore-brisa, na primavera da tarde, festeira que estava com o peixe que vagava no céu. Tanto era encanto o volteio que o peixe bordava por entre as nuvens bailarinas que a menina, num sorriso, fez seu pensamento flor.

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MISHIMA Ao olhar p’ra trás, Escondido na surdina, Uma sombra pulsa.

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RETRATO DE BACO a Caravaggio No olhar dissimulado que tu escondes Sob o luzente véu de uma pintura, Lança por vezes vezo na textura, Tal apuro sua glória ali dispondes Feito intento da carne, ainda assim vedes Cujo clamor por vós, sim, recebera. Nem vejo convicção no que bebera Engano, pois em tal rebuço credes, Nem vejo a mim vestígio dum divino Olor, feito fará se nos permite, Diz, abraçar a nós, humanos, frágeis Logros d’alma fugazes, ainda indi’no Ao vigor duma forja quando emite Verdadeiro e brutal empenhar, ages.

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Erga homines Não é verdade que o trabalho Traz a ti somente dignidade, Pois se assim fosse teu suor Estaria sagrado por todos. Erga homines Decerto que vem, Do fabrico do teu suor, Aquilo que te impede Para algo maior. Erga homines Pode ser também, Que do fabrico do teu suor, Venha o que te impele Para algo bem maior Que o nome de teus filhos.

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Ah! economistas! Larguem o cetro! Por que o mundo torna-se menor aos olhos de v贸s?

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AUGUSTO RODRIGUES Hoje arrependo-me quando era capaz, Menino, talvez nem fosse ainda rapaz Quando recusei suas aulas de pintura. Mamãe lembrou-me: “Bom desenho já faz.”

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A dor funda os olhos febris ao final das lágrimas, Quando nada mais resta além do profundo silêncio Que emerge seco a preencher iluminado todo o estar. No espaldar, os corpos tombados em assentos pétreos Como o pesado instante daquelas almas ali prostradas, Entranhadas em união para sagrar num rio de preces Não mais a morte, agora a vida soerguendo-se Lenta e derradeira no concerto que rege a dor Na lembrança dos presentes, reunindo-os para sempre.

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MINÚCIAS D’O BANQUETE DOS OFICIAIS DA COMPANHIA DE SÃO JORGE Nada vejo além das faces rosadas, Na mesa ali posta para o prazer Dos oficiais, não sejam pausadas Festas cujo pincel buscou trazer Ao quadro. Das vestimentas, pousadas, Estão das faixas os tons a fazer Ação na vista d’olhos deslumbrados De quem busca no contemplar, cuidados.

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TANGO aos meus pais Seguem os pés a música adornada Nos voltejos que os corpos desenham Ao longo do baile. Há um fervor Na conduta, uma liturgia para um Outro regozijo, outras estações, Tramados pelo cavalheiro e sua dama.

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QUANDO NASCE UM GRITO Eclesiastes Cap. 1:9 Quando nasce um grito sequioso no peito de uma criança No trabalho e nos dias, meu espírito emudece, Porque agora sei, com uma certeza conturbada, —“Não há nada de novo debaixo do sol”. Os velhos e os seus rogos estão encimados junto ao monte Das folhas secas, prontos para regressar, indistintos, ao pó, Porque agora sei, com uma certeza conturbada, —“Não há nada de novo debaixo do sol”. Talvez fosse preciso vendar os olhos para atingir A nascente de uma outra primeira vez. Mas ainda assim, com uma certeza conturbada, — “Não há nada de novo debaixo do sol”.

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A GÊNESE DA PRIMAVERA a Dylan Thomas I Aninhada ao colo despetalado Das estrelas, uma noite encanecia Guarda no botão da rosa Que escondia, Umedecido no mais silencioso abismo, A gênese da primavera, Estampada no bico dos pássaros, Estampada na candura geminada Dos novos corações Ressoantes ao larvar de um novo dia, Nem tão incandescente quanto o sal Na boca de um menino, Nem tão rútilo quanto o ventre rasgado De um peixe. II Surge de todas as direções, galgando Liberto sob a terra ainda materna Trazendo a benção úmida do mar Que saúda a ramada festiva das árvores, Como quem saúda o filho na hora de seu casamento, Como quem purifica o sorriso, Todos os sorrisos que prorrompem No pólen furtado das flores Que esparzem suas oferendas A um sol-Prometeu (Acoimado no talhe esculpido Das nuvens), O sopro imaculado de uma tarde, Um corolário de pássaros e pétalas.

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O desafio de calar o papel branco Com um vagalhão de palavras É quase tão grande quanto O fascínio, que exercia em mim Quando fedelho, De queimar a carne fresca da lesma, No jardim, com o sal da cozinha.

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UMA CANTIGA DE AMIGO para D. Amiga, que Deus vos guarde! Quando a face descarada De meu amigo romper, Aparta língua e coração: Pois no que tudo ele escuta, Diz, há de ter confusão. Sei eu que por falar, ‘miga, Guardo em mim muita tristeza Ao saber tal fato, peço, Dobre os votos de atenção: Pois no que tudo ele escuta, Diz, há de ter confusão.

112


O sol erigido No vale, na manhĂŁ alva. Os pĂĄssaros cantam Para que um tapiz dourado Acalente mais um dia.

113


Acredita, n達o sei da vida A dispensa da fantasia Quando a alegria cai iludida, Acredita, n達o sei da vida Desatar o sonho da lida Quando a festa finda vazia. Acredita, n達o sei da vida A dispensa da fantasia.

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Faz brilhar por toda a relva Os corações puros Faz brilhar agora Pétala amor faz brilhar A manhã não mais a dor

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Sobre os autores:

Bob Dutra [Roberto Dutra Jr.] nasceu em 1970 e tem a convicção que deve sua miopia a uma infância dentro das páginas de todos os livros que pode colocar as mãos. A cada ano podia alcançar mais uma prateleira na biblioteca enorme que seu pai, professor, possuía. Escrever pareceu uma natural extensão da amizade com os livros. A poesia tornou-se uma linguagem mais consistente durante o período universitário e o conto praticamente uma válvula de escape. Contribuiu durante anos com o jornal Panorama da Palavra, como poeta, e fotógrafo. Junto com os outros autores deste livro, foi homenageado pelo Programa de Leitura da UERJ em 2000, quando este livro fez um ano de publicado.

Célio Diniz Ribeiro é formado em Letras (português-literaturas) pela UERJ, com mestrado em Ciência da Literatura, pela UFRJ. Atualmente é professor.

Henrique Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 1975. Formou-se em Letras pela UERJ, fez pós em Jornalismo Cultural, também na Uerj, e mestrado em Literatura na PUC-Rio, onde é doutorando em Literatura. Trabalha com projetos de incentivo à leitura, especialmente com jovens e professores. É coautor dos livros Quatro Estações: o trevo (independente, 1999) e participou das antologias Prosas cariocas: uma nova cartografia do Rio de Janeiro (Casa da Palavra, 2004) e Dicionário amoroso da Língua Portuguesa (Casa da Palavra, 2009). Autor do livro de poemas A musa diluída (Record, 2006), Versos para um Rio Antigo (infantil, Pinakotheke, 2007), Machado de Assis: o Rio de Janeiro de seus personagens (juvenil, Pinakotheke, 2008), O segredo da gravata mágica e O segredo da bolsa mágica (infantil, ambos pela Memória Visual, 2009), Sofia e o dente de leite (infantil, pela Memória Visual, 2011). Organizou a antologia Como se não houvesse amanhã: 20 contos inspirados nas músicas da Legião Urbana (Record, 2010). Site do autor: www.henriquerodrigues.net

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Marcelo Alves nasceu no Rio de Janeiro em 1971. É formado em Letras e mestre em Linguística pela Uerj. Professor de português, foi coautor do livro de poesia Quatro estações: o trevo (1999), edição independente, e participou do livro de contos “Prosas cariocas: uma nova cartografia do Rio de Janeiro, Casa da Palavra (2004). É professor de Língua Portuguesa e desenhista instrucional, trabalhando com Ensino a Distância. Realiza oficinas de leitura, esporadicamente, e estuda programação de jogos. Seu twitter é: @smarcelo10.

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