ESTUDOS SOBRE LINGUA E LITERATURA

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ESTUDOS SOBRE LEITURA E LITERATURA: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

LILIANE MARIA JAMIR E SILVA ORGANIZADORA

FAFIRE 2019


Copyright @ 2014 by Liliane Maria Jamir e Silva (organizadora) Autores: Adalberon Leocádio Silva Filho Alison Medeiros de Mendonça Santiago Ana Cristina Dubeux Dourado Claudiane Jurema de Sousa Dayanne Marins Gandin Edilza de Moura Érica Maria Silva Montenegro de Mélo Francisco Alexsandro da Silva Fransuely Araújo de Freitas Heloiza Montenegro Barbosa Ivon Rabêlo Rodrigues Jorge Augusto Batista Conde Laíza de França Carneiro Leão Leila Britto Amorim Lima Leila Regina Siqueira de Oliveira Branco Liliane Maria Jamir e Silva Lourival Pereira Pinto Maria das Graças Vieira Lins Maria Gabriela Wanderley Pedrosa Maria Iêda Justino da Rocha Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira Maria Luíza Fernandes de Andrade Costa Mariana Cardoso Vilela Mariana de Souza Alves Natália Farias Nascimento Costa Nelma Menezes Soares de Azevêdo Rayane Maria da Silva Oliveira Rejane Ribeiro da Silva Rosembergh da Silva Alves Rute Isabelle Ferreira de Melo Dantas Thiago Henrique Pereira do Nascimento Vilani Maria de Pádua Edição: Editora: BAGAÇO Apoio: Faculdade Frassinetti do Recife – FAFIRE Revisão ortográfica: Ana Paula Sá Normalização: Lenice Moura e Manuela Maranhão Projeto gráfico e diagramação: Taciane Giarelli

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Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura / Liliane Maria Jamir e Silva (Organizadora.) – Recife: Bagaço, 2019. 452 p.

Vários autores ISBN Impresso: 978-85-67471-07-5 ISBN Digital: 978-65-991293-0-8 1. Leitura literária. 2. Formação de leitores. 3. Leitura e literatura. Literatura brasileira – crítica e interpretação. I. Jamir e Silva, Liliane Maria (Org.) CDD 418.4

Impresso no Brasil Printed in Brasil BAGAÇO www.bagaco.com.br Estrada da Tabatinga, 336, Tabatinga, Igarassu-PE CEP 53.605-810 | CNPJ: 04.320 640/0001-30 Insc. Municipal: 012.036-7 Insc. Estadual: 0281292-45 e-mail: bagaco@bagaco.com.br


Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável. Antonio Candido


Sumário Apresentação ����������������������������������������������������������������������������������������������������������������008 Liliane Maria Jamir e Silva PARTE I – INICIAÇÃO À PRÁTICA CRÍTICA ����������������������������������������������������011 1. A arte pictórica de Arlindo Daibert e a imagética das personagens femininas na construção narrativa de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa Maria Gabriela Wanderley PEDROSA | Ivon Rabelo RODRIGUES.......................013 2. A literatura confessional de Sylvia Plath em A redoma de vidro Claudiane Jurema de SOUSA | Liliane Maria JAMIR E SILVA................................027 3. A melancolia e o mito do duplo na obra O tigre na sombra, de Lya Luft Rejane Ribeiro da SILVA | Liliane Maria JAMIR E SILVA.......................................041

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4. Ao lado da ilusão mais tentadora: um breve estudo sobre a imaginação poética e o devaneio no conto Rútilo nada, de Hilda Hilst Ivon Rabelo RODRIGUES | Vilani Maria de PÁDUA..............................................057 5. Bendita a morte que te acolheu: elementos do judaísmo na construção do personagem Leo, em Aos meus amigos, de Maria Adelaide Amaral Heloiza Montenegro BARBOSA | Ivon Rabêlo RODRIGUES.................................073 6. Contos cênicos: dramaticidade e denúncia social em Totonha e Muribeca, de Marcelino Freire Francisco Alexsandro da SILVA | Vilani Maria de PÁDUA......................................085 7. Narrador, metalinguagem e metaficção em A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins Rosembergh da Silva ALVES | Ivon Rabêlo RODRIGUES.......................................099 8. O Conto alexandrino, de Machado de Assis, e o diálogo com a sátira menipeia Mariana Cardoso VILELA | Vilani Maria de PÁDUA...............................................109 9. O sertão contra o estado: a antropologia política e a problemática do poder em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa Jorge Augusto Batista CONDE | Ivon Rabêlo RODRIGUES.....................................123 10. “Pra que servem tuas histórias?” Uma análise acerca da construção do narrador contemporâneo no romance Felicidade, de Wellington de Melo Dayanne Marins GANDIN | Thiago Henrique Pereira do NASCIMENTO Ivon Rabêlo RODRIGUES..........,...............................................................................133

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PARTE II – LEITURA LITERÁRIA, DIVERSIDADE CULTURAL E HUMANIZAÇÃO ��������������������������������������������������������������������������������������������������������145 1. A cor da palavra e a poesia da cor: traços humanizantes na literatura de André Neves Liliane Maria JAMIR E SILVA.....................................................................................147 2. A natureza humana nos contos infantojuvenis de Clarice Lispector: uma perspectiva alegórica do ser Natália Farias Nascimento COSTA | Liliane Maria JAMIR E SILVA.........................165 3. Autorreferencialidade, fluxo de consciência e compromisso social no conto União civil, de Marcelino Freire Rosembergh da Silva ALVES | Vilani Maria de PÁDUA..........................................181 4. Do racismo à violência contra a mulher: um estudo comparativo entre o conto e o romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto Maria Luíza Fernandes de Andrade COSTA | Rute Isabelle Ferreira de Melo DANTAS | Vilani Maria de PÁDUA...........................................................................199 5. Ideologia e forma na poética drummondiana: Caso do vestido, um caso de machismo Adalberon Leocádio SILVA FILHO | Natália Farias Nascimento COSTA Liliane Maria JAMIR E SILVA...................................................................................211 6. La gitanilla: a valorização entre culturas e a ruptura de estereótipos e preconceitos na obra de Cervantes Edilza de MOURA | Rayane Maria da Silva OLIVEIRA...........................................231 7. Literatura infantojuvenil afro-brasileira: caminhos na superação do racismo Rayane Maria da Silva OLIVEIRA | Liliane Maria JAMIR E SILVA.......................243 8. Literatura infantojuvenil: uma prática contra o bullying em sala de aula Fransuely Araújo de FREITAS | Liliane Maria JAMIR E SILVA..............................263 9. O sonho como rito de passagem e aprendizado em A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos Vilani Maria de PÁDUA...............................................................................................277 10. Viva eu, viva tu: a oralidade como expressão literária em Lenice Gomes Nelma Menezes Soares de AZEVÊDO..........................................................................285 PARTE III – MEDIAÇÃO DE LEITURA E FORMAÇÃO DE LEITORES ��������295 1. A formação do professor e as práticas da leitura literária Nelma Menezes Soares de AZEVÊDO...........................................................................297 2. A literatura em quadrinhos e os multiletramentos: uma construção possível na formação do indivíduo social Alison Medeiros de Mendonça SANTIAGO | Liliane Maria JAMIR E SILVA........309 Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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3. A literatura infantojuvenil e sua contribuição para a formação de professores de língua materna: uma reflexão teórico-metodológica a partir do texto de Elias José, Uma escola assim, eu quero pra mim Maria Lúcia RIBEIRO DE OLIVEIRA.......................................................................323 4. A poesia memorialista em Guriatã, um cordel para menino, de Marcus Accioly Maria Iêda Justino da ROCHA | Liliane Maria JAMIR E SILVA..............................331 5. Aspectos conceituais e relevância da literatura infantil para a criança Mariana de Souza ALVES | Maria Lúcia RIBEIRO DE OLIVEIRA........................351 6. Em cada criança uma Alice: o país das maravilhas em sala de aula Claudiane Jurema de SOUSA | Laíza de França Carneiro LEÃO Nelma Menezes Soares de AZEVÊDO...........................................................................359 7. Extensive reading e a leitura de contos fantásticos: abordagens prazerosas no processo de aprendizagem e aquisição da língua inglesa Rute Isabelle Ferreira de Melo DANTAS | Liliane Maria JAMIR E SILVA.............371 8. Iniciativas de incentivo à leitura literária e sua influência no comportamento leitor do brasileiro Ana Cristina Dubeux DOURADO.................................................................................387

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9. Leitura literária no 5º ano do Ensino Fundamental: o letramento literário na formação do leitor crítico Leila Regina Siqueira de Oliveira BRANCO | Leila Britto Amorim LIMA...................395 10. Literatura de cordel: uma face encantadora da literatura infantojuvenil Maria Iêda Justino da ROCHA | Nelma Menezes Soares de AZEVÊDO........................409 11. “Não esmaguem as palavras nas entrelinhas”: a obra literária de Clarice Lispector para a infância Maria das Graças Vieira LINS..............................................................................................421 12. Práticas de mediação de leitura em bibliotecas escolares Érica Maria Silva MONTENEGRO DE MÉLO | Lourival Pereira PINTO....................431 DEPOIMENTOS ����������������������������������������������������������������������������������������������������������450

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apresentação


APRESENTAÇÃO

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Este livro representa a realização de um grande desejo como também a culminância de trabalhos desenvolvidos no cotidiano profissional de um grupo de docentes que acredita no potencial da educação e, particularmente, na formação do ser humano através da leitura literária. Sem excluir o mérito de outras leituras, estamos com o mestre Antonio Candido, ao afirmar que, “a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.”1 Foi nessa perspectiva que, do início de 2018 até o momento presente, idealizamos e vimos concretizando um projeto de maior amplitude através do Núcleo de Pesquisas e Iniciação Científica da FAFIRE – NUPIC – o qual, com ousada e talvez utópica pretensão, abrigaria várias ações/atividades em prol da leitura. Sob a epígrafe Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura, o projeto partiu da necessidade de promover pesquisas e atividades sistemáticas voltadas para a formação de leitores e mediadores de leitura, ações que viriam a ser efetivadas através de um grupo de estudiosos e interessados em leitura e literatura, constituído por professores da FAFIRE, habilitados nesse campo específico, além da participação de estudantes de graduação e de pós-graduação da área de Letras, cuja formação acadêmica estivesse diretamente ligada aos objetivos de nossa proposta. Realizada em duas etapas, na primeira, em 2018, partimos de dados constatados e de fundamentação teórico-metodológica relevante, abrangendo, em seu percurso, diversificadas produções científicas e atividades didáticas, tanto com finalidade formativa e instrucional, como de socialização e divulgação do conhecimento produzido, através de participação em eventos, seminários, palestras, oficinas, minicursos, comunicação oral, entre outras. Na segunda etapa, já em 2019, passamos à compilação de produções captadas para a publicação em livro, em periódicos ou em outras formas de suporte, com a finalidade de socialização sistemática das pesquisas. Somando esforços e contando com a colaboração de várias pessoas, chegamos à publicação deste livro, cujo título tem a mesma denominação do projeto que lhe deu origem. Assim, procuramos dar corpo apropriado às pesquisas desenvolvidas __________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários escritos. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 243. 1

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em trabalhos de conclusão de curso da graduação, monografias de cursos de especialização, trabalhos de iniciação científica apresentados ao NUPIC e outros produzidos como culminância de disciplinas curriculares ministradas, nesse ínterim, no espaço acadêmico. Palestras e comunicações orais proferidas em eventos direcionados à formação de leitores, entre outros afins, também foram integradas, em forma de ensaio ou de artigo científico, a esta coletânea. Nosso trabalho, como organizadora, árduo, mas prazeroso, tem seu mérito compartilhado com a valiosa colaboração de professoras do Curso de Letras, formalmente envolvidas no projeto, como Nelma Menezes Soares de Azevêdo, Vilani Maria de Pádua e Maria das Graças Vieira Lins, esta última convidada, para as quais registramos nosso agradecimento e reconhecimento pela presença constante. Outros docentes também se agregaram à causa, contribuindo na garimpagem e na adequação das pesquisas ao formato próprio, entre os quais Edilza de Moura, Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira, Ivon Rabêlo Rodrigues, Ana Cristina Dubeux Dourado, Rosa Maria da Silva Pinto e Eliene Almeida de Amorim. Em fase de revisão ortográfica, nosso agradecimento também vai para a professora Ana Paula Sá, como também para a bibliotecária Lenice Moura, cujo apoio consultivo e de revisão normativa é de fundamental importância para o processo editorial e de publicação acadêmica da FAFIRE. Em fase final do produto, não poderíamos deixar de mencionar o trabalho criativo e eficiente de Taciane Giarelli, a quem coube a diagramação e o projeto gráfico deste livro e, durante todo o percurso do projeto, Etiene Alves, secretária do NUPIC, presença companheira em vários momentos de nossa trajetória. Diante da abrangência do projeto, e da gama de temas/subtemas contemplados nas produções selecionadas para este livro, achamos por bem agrupá-las em 3 núcleos distintos, de acordo com a ideia dominante em cada um dos trabalhos, no entanto sem isentá-los de uma sintonia ensejada no objetivo central de nossa proposta, qual seja o de “constituir um grupo de estudos e pesquisa visando à elaboração de textos de relevância acadêmica, entre outras produções, notadamente sobre leitura literária e formação de leitores”. E é nesse afã que acreditamos residir a unidade da presente publicação. Assim, na primeira parte, sob o título Iniciação à prática crítica, reunimos a produção de alunos que, com o impulso de professores orientadores, lançaram-se ao exercício analítico de obras literárias clássicas ou modernas, buscando, com sensibilidade e zelo teórico, formas inovadoras de ler e de apreciar a literatura, trazendo luzes e abrindo caminhos para novos leitores. Na segunda parte, denominada Leitura literária, diversidade cultural e humanização, estão relacionados os trabalhos que, dentro de uma perspectiva crítica e com referenciais próprios, contemplam temas/obras literárias cujo foco propõe uma tomada de posição diante da realidade, proporcionando reflexões, discussões Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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e possíveis superações de entraves sociais que possam coibir o respeito à diversidade e ferir princípios básicos de humanização do ser humano. Finalmente, a terceira parte, intitulada Mediação de leitura e formação de leitores, reúne trabalhos cuja verve crítica e humanizadora propõe formas significativas de leitura e de vivência literária, seja em sala de aula, seja em espaços informais de leitura, seja em bibliotecas escolares. Aqui temos o resultado de práticas leitoras em que os profissionais mediadores, aliando paixão pela literatura à pesquisa permanente e ao compromisso social, deixam um relato (ou o próprio testemunho) de experiências como possibilidade de formar novos mediadores e de motivar novos leitores. Reiteramos nosso agradecimento aos que contribuíram para a presente publicação, à FAFIRE e a todos que colaboraram de alguma forma, incentivaram e confiaram em nossa capacidade de empreender na realização desse sonho2. Enfim, esperamos que este livro possa contribuir para a formação de estudantes e profissionais dedicados à causa da leitura no contexto da educação de nosso país. Liliane Maria Jamir e Silva (professora, editora e organizadora)

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O “sonho” também aqui se reporta ao tema institucional adotado pela FAFIRE no ano em curso – ano do empreendedorismo –, no sentido de empreender na realização de metas e desejos ao longo de nossa prática profissional. 2

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parte i iniciação à prática crítica

O professor de literatura tem uma missão importante: fazer com calor e empenho a parte que lhe toca; convidar os alunos a entrar pelo reino sem fim da linguagem oral e literária, onde os espíritos de todos os tempos se encontram e se reconhecem humanos. Alfredo Bosi



A arte pictórica de Arlindo Daibert e a imagética das personagens femininas na construção narrativa de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa Arlindo Daibert’s pictorial art and the female characte rs’ imagetic into the narrative structure of the novel Grande sertão: veredas, by Guimarães Rosa Maria Gabriela Wanderley PEDROSA1 Ivon Rabêlo RODRIGUES2 Resumo: Este artigo propõe lançar um olhar reflexivo, a partir das imagens criadas pelo artista plástico mineiro Arlindo Daibert em Imagens do Grande Sertão, acerca de dois elementos narrativos importantes para a estrutura do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa: as personagens Diadorim e Otacília. A partir de um recorte na imensa fortuna crítica existente sobre o romance e de uma seleção de escritos do e sobre o artista plástico citado, compreende-se que há um jogo dual a unir as duas personagens e que, por conseguinte, ligam-nas à vida do narrador-protagonista, o jagunço Riobaldo, alicerçando, deste modo, a forma romanesca vertiginosa da obra literária em questão. Utilizou-se, para este estudo, o aporte teórico de Hutcheon (2013), Plaza (2001), Nunes (1976), Chevalier & Gheerbrant (2015), dentre outros. Palavras-chave: Guimarães Rosa. Arlindo Daibert. Grande sertão: veredas. Semiótica. Abstract: This article proposes to cast a reflective view from the images created by Arlindo Daibert in Imagens do Grande Sertão about two important narrative elements for the structure of the novel Grande sertão: veredas, by Guimarães Rosa: the characters Diadorim and Otacília. From a clipping on the massive critical fortune of the novel and a selection of writings by and about the aforementioned visual artist, it is understood that there is a dual relation uniting the two characters and, therefore, linking them to the life of the narrator, Riobaldo, thus grounding the dizzying romanesque form of the literary work in analysis. For this study, the theoretical contributions of Hutcheon (2013), Plaza (2001), Nunes (1976), Chevalier & Gheerbrant (2015), among others, were used. Keywords: Guimarães Rosa. Arlindo Daibert. Grande sertão: veredas. Semiotics.

Introdução Há seis décadas Guimarães Rosa conseguiu um feito notável: escreveu o livro que seria lido e apreciado mesmo em meio a uma cultura de massa e digital. Grande Sertão: Veredas é indiscutivelmente um cânone, de importância a nível nacional e mundial, tendo em vista as traduções das suas obras em outros países. A publicação do romance, em 1956, foi um dos pontos marcantes para a nova estética literária que irrompia na América Latina desde as primeiras décadas do século XX, em

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Pós-graduanda em Literatura Brasileira | FAFIRE/Recife/PE | E-mail: mariagpedrosa@gmail.com Mestre em Literatura e Interculturalidade | UEPB | Campina Grande-PB e orientador do trabalho | E-mail: ivonrabelo@hotmail.com

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Maria Gabriela Wanderley Pedrosa | Ivon Rabêlo Rodrigues

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conjunto com a produção de outros autores de força imaginativa e expressiva, tais como Jorge Luís Borges, Julio Cortázar e Gabriel García Márquez. O estilo rosiano rompe com a escrita feita de maneira tradicional e, por consequência dessa linguagem labiríntica e de suas caudalosas passagens narrativas, Grande Sertão: Veredas é considerado um clássico da literatura mundial, e o seu autor, o mineiro João Guimarães Rosa, um componente fundamental da história literária brasileira. Apesar da complexidade narrativa presente em suas páginas, a obra de Guimarães Rosa não deixou de ser prestigiada, tanto pelo público leitor quanto pela crítica. Essa recepção de Grande Sertão: Veredas suscitou inúmeras adaptações, tanto para a grande massa – como o filme homônimo, lançado em 1965, e a minissérie televisiva produzida pela Rede Globo, em 1985 –, quanto para um público mais restrito, como é o caso do álbum concebido pelo artista plástico mineiro Arlindo Daibert, intitulado Imagens do Grande Sertão, em 1998. Surpreendente por sua produção simultaneamente plástica, simbólica e discursiva, a produção de Arlindo Daibert é concebida como um exercício do livre pensar através das imagens, acabando por compor uma nova obra intersemiótica independente, ensaística e, até certo ponto, crítica do romance a que se refere. Como afirma Júlio Castañon Guimarães (apud DAIBERT, 1995, p. 07), na releitura crítica de Grande Sertão: Veredas, “o que o próprio Arlindo considerou ser sua visão do desenho foi uma forma de raciocínio, e não apenas a exibição de uma capacidade e de um jogo técnicos”. Arlindo Daibert produziu ativamente em torno de vinte anos, passando por períodos e recursos diversos, tais como a concatenação de habilidades com o desenho a bico de pena, o desenho a grafite, a xilogravura, a pintura, a colagem e a aquarela. Além dessa aptidão para com os diversos materiais, Daibert era um artista que escrevia criticamente acerca da sua própria atividade, sobre a criação de outros artistas e sobre as obras que viesse a adaptar. Outra característica peculiar era a sua predileção à pesquisa, vista principalmente nas suas obras plásticas, tais como as obras inspiradas em textos literários, como as séries sobre Macunaíma, Alice no país das maravilhas e Grande Sertão: Veredas. Arlindo Daibert possivelmente é um dos poucos artistas plásticos que, em sua obra, tentou unir o texto e a imagem, em todas as suas dimensões.

Daibert entre a imagem e a palavra A série Imagens do Grande Sertão foi concebida em um período de mais de uma década (1982 – 1993), tendo sido finalizada no ano da morte do seu criador. Essa produção reuniu vinte imagens em que se expõe um processo e uma variedade de técnicas de composição pictórica, a saber, a xilogravura associada a desenhos de várias técnicas. Em conjunto com esses desenhos, segue um texto crítico concebido pelo próprio organizador da obra e incluso no livro Caderno de Escritos (1995):

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A arte pictórica de Arlindo Daibert e a imagética das personagens femininas na construção narrativa de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

A relação entre artes plásticas e texto não se dá, no caso do trabalho de Arlindo Daibert, apenas como interesse por dados provenientes de outra linguagem que possibilitem a criação de novos dados plásticos. Na verdade, essa relação estaria diretamente ligada a uma perspectiva crítica que assumiu diversas conexões. Assim, a relação entre artes plásticas e texto está associada aos trabalhos que se voltam para a história da arte, aos textos críticos, à pesquisa e assim por diante (GUIMARÃES, 1995, p. 14, in: DAIBERT, 1995).

Consciente do processo criativo que envolve a releitura criativa, Arlindo Daibert criou roteiros, anotações, caderno de escritos e uma pesquisa extensa acerca da bibliografia sobre Guimarães Rosa e o seu universo ficcional. Apesar da intimidação inicial que teve em relação ao texto, Daibert elaborou uma gama de imagens complexas, incorporando textos dentro e fora das imagens:

15 Fig. 1: Ilustrações de Arlindo Daibert para o álbum Imagens do Grande Sertão

As imagens daibertianas se manifestam em uma releitura crítica do texto rosiano. O artista mineiro, ao produzir esse trabalho criativo, seguiu o pensamento de Walter Benjamin no ensaio A tarefa do tradutor, considerando a tradução como uma atividade sem uma obrigação ou fidelidade com o texto fonte, sendo, até mesmo, capaz de complementar o original; assim, nas palavras do artista plástico: Procurei agir como tradutor investigando quais seriam as possibilidades de recriação de processos de criação a partir do ponto de vista da mudança de linguagens. Esses exercícios de (in)traduzibilidade foram somados ao estudo sintomático das análises do texto literário e da biografia do autor [...]. Trata-se de um exercício de tradução, absolutamente pessoal e arbitrário. O livro continua aberto, desafiador (DAIBERT, 1995, p. 28).

A produção daibertiana pode ser classificada, devido a sua leitura aprofundada, como uma tradução criativa, conforme explica Julio Plaza (2001, p. 30): “Segue-se disso que leitura, tradução, crítica e análise são operações simultâneas, embutidas e/ou paralelas que serão sintetizadas na tradução”. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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As imagens manifestam-se como criação, leitura autônoma e crítica do texto de Guimarães Rosa, “pois o adaptador é um intérprete antes de tornar-se um criador” (HUTCHEON, 2013, p. 123). Assim, intenciona-se aqui verificar em que âmbito o texto rosiano é retomado por Daibert. Uma vez que a obra ficcional de Guimarães Rosa é aberta a múltiplas interpretações, entendemos que é natural, ao longo das décadas, o romance Grande Sertão: Veredas ser objeto de transposição para outras linguagens artísticas. Para isso, Arlindo Daibert observou que um processo natural à leitura da obra romanesca é estar atento às relações duais que são formadas no texto, uma vez que o processo criativo rosiano foi feito a partir das relações entre elementos que estão todos dentro um do outro, por vezes indissociáveis. É um grande labirinto: Diadorim é uma mulher presa no corpo de um homem; o sertão está em todo lugar, inclusive na cidade grande; o diabo vige dentro de nós, criaturas divinas etc. Um desses binômios é o do masculino/feminino. Nesse estudo, dirigiremos nossa atenção para a parte da galeria de personagens femininas do romance – Diadorim e Otacília –, uma vez que a leitura crítica atenta de Daibert e a produção de suas imagens acrescentam novas facetas à fortuna crítica da ficcionalidade rosiana.

Rosa entre a palavra e a imagem

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A reflexão em torno da relação entre as artes, principalmente a literatura e as artes plásticas, não era de todo indiferente ao próprio Guimarães Rosa, autor de pequenas ilustrações e desenhos rústicos com os quais costumava pontuar suas obras, cujas edições acompanhava minuciosamente, selecionando os capistas e coordenando a concepção visual dos livros. Exemplo disso, são as gravuras que ornam o prefácio de Primeiras estórias (1962), de sua autoria, que migram para a capa da edição publicada pela Livraria José Olympio (Fig. 2):

Fig. 2: Ilustrações de Guimarães Rosa, finalizadas por Luís Jardim para a 1ª edição de Primeiras estórias.

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Na coletânea de contos, o próprio autor concebeu e rascunhou os desenhos presentes nas epígrafes do livro, sendo finalizados por Luís Jardim, escritor e pintor pernambucano, havendo sua diagramação concebida de forma que cada conto fosse particularmente identificado por uma imagem de cunho narrativo. No conto A terceira margem do rio, por exemplo, há uma flecha relacionada com o signo de Sagitário, seguida por uma canoa com o remador, ladeada por dois símbolos que representam o signo de Libra. A “frase” se conclui com uma lemniscata, um “oito deitado”, que é o símbolo do infinito, sugerindo que, assim como o leitor descobrirá na narrativa, o barqueiro se dirige do mundo concreto, da civilização material, para o mundo das ideias, o mundo transcendente e metafísico. Da mesma forma, observa-se como, no projeto inicial do escritor, as orelhas da capa do romance Grande Sertão: Veredas deveriam, ao se fechar sobre a obra aberta, conceber um verdadeiro mapa simbólico da história, mapa este que se reproduzia nas ilustrações concebidas pelo gravurista Poty Lazzarotto, a pedido do autor (Fig. 3). Dessa forma, para a capa da primeira edição do romance, o autor teve uma longa conversa com Poty Lazzarotto sobre os acontecimentos e elementos-chave do enredo, para que o ilustrador estivesse integrado à obra. Na capa, constatamos a representação dos principais temas que compõem o romance: a natureza, a jagunçagem, as personagens femininas e o pacto com o diabo. Cada um desses elementos remete a algum acontecimento dentro da teia romanesca.

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Fig. 3: Capa e contracapa da 1ª edição de Grande Sertão: Veredas, lançada pela Editora José Olympio, em 1956, e ilustrada por Poty Lazzarotto.

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Da releitura paratextual passa-se para a obra que, de fato, será analisada: o álbum Imagens do Grande Sertão, de Arlindo Daibert (Fig. 4). Esta obra, de forma similar, resgata os temas centrais que permeiam a primeira capa do romance de Rosa. Percebe-se que o artista plástico enfoca uma atenção maior na galeria de personagens femininas, mais especificamente em Diadorim e Otacília, as duas figuras centrais para a travessia do jagunço Riobaldo.

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Fig. 4: Capa e contra capa do álbum de Imagens do Grande Sertão, de Arlindo Daibert.

Diadorim e Otacília no meio do redemoinho A releitura pictórica de Arlindo Daibert se organiza a partir de temas centrais presentes na obra de Guimarães Rosa, tais como o sertão, o amor, o homem e o sertão, a epopeia. Dentro da temática do amor, temos a representação crítica das figuras femininas: Diadorim, Otacília, Rosa’uarda, Nhorinhá e Maria Mutema. Assim como Benedito Nunes (1976) se debruçou criticamente na temática do amor, Daibert traça caminho semelhante: O amor é um dos grandes temas na obra de Guimarães Rosa e em Grande sertão: veredas assume peculiaridades curiosas. O mapeamento do universo amoroso de Riobaldo exige um exame acurado das diferentes entonações com que o sentimento é apresentado. As nuances afetivas acompanham o delinear dos tipos femininos e dos graus de relação amorosa que estabelecem com o chefe jagunço (NUNES, 1976, p. 46).

A atenção que Daibert dispensa a alguns personagens como Rosa’uarda ou Maria Mutema é curiosa, pois demonstra o fato de que, mesmo as personagens minimamente configuradas em menos de meia dúzia de páginas, são capazes de marcar a leitura crítica do romance; ou seja, o adaptador não descarta os “causos” que aparecem de forma aparentemente avulsa, mas enxerga-os como algo vital à continuidade narrativa. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A arte pictórica de Arlindo Daibert e a imagética das personagens femininas na construção narrativa de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

Esta leitura das figuras femininas do romance vai ao encontro da crítica feminista que teve seu boom na década de 1960, alçando a mulher a um local de prestígio – ainda hoje relegado a ela –, tanto como produtora de discurso quanto como representação de material poético. Em outras palavras, o adaptador mantém esse prestígio da galeria de personagens femininas, que tanto Guimarães Rosa mostrou prezar, colocando-as em lugar de destaque na capa da primeira edição de Grande Sertão: Veredas. Além disso, a própria ficção rosiana segue a linha de pensamento da literatura feminista: revelar as diversas faces que as mulheres possuem, como figuras ambíguas ou que detêm uma maldade inerente ao ser, como é o caso de Maria Mutema. O termo “literatura de mulheres” atribui uma ligação quase inseparável entre as escritoras e a noção biológica corporal. No entanto, se referir à literatura feminista pressupõe um conceito construído no seio dos estudos pós-culturais e remete à consciência das escritoras sobre o momento sociocultural e seus impasses em relação aos assuntos de gênero. No caso, apesar de biologicamente Guimarães Rosa ser homem, o tipo de literatura em que ele insere as personagens é de cunho feminista, pois ele descontrói a concepção de que uma mulher, por ter nascido mulher, deva agir de tal maneira, ou ter uma característica psicológica pré-definida. Isso posto, procederemos à análise das duas principais figuras femininas no romance: Diadorim e Otacília, já que, segundo Daibert (1995, p. 35), essas personagens “estabelecem os limites do universo afetivo de Riobaldo”. Na compreensão do artista plástico, Diadorim detém duas faces, além do feminino e do masculino: a do bem e a do mal. É, nesse sentido, a figura feminina principal, tanto em Grande Sertão: Veredas quanto em Imagens do Grande Sertão. Não é à toa que, por exemplo, o romance tenha tido uma edição em 1965, na França, em que o título adotado era Diadorim, demonstrando, apenas com isto, a importância da personagem para a construção da narrativa. Essa personagem aparece ora com uma aura demoníaca, ora com uma aura angelical. Ao mesmo tempo em que apresenta as belezas da natureza para Riobaldo, demostra nutrir um prazer na vingança, no ciúme e na violência. Na figura 5, podemos observar um labirinto formado por pássaros que voam em direções contrárias. Comparando com a leitura do romance, acreditamos que há uma sugestão, na releitura daibertiana, da tensão a que Diadorim é submetida por toda a sua vida – principalmente no episódio em que seu pai é assassinado. Há também uma nuvem, semelhante a um redemoinho, no centro da imagem. Os redemoinhos representam, simbolicamente, a “interação de correntes opostas [...] que na sua maior potência são capazes de sugar um barco para as profundezas” (O’CONNEL; AIREY, 2010, p. 197), simbolizando, deste modo, a aniquilação:

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Fig. 5: Diadorim, de Arlindo Daibert.

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Os pássaros que desejam voar em Daibert simbolizam, portanto, o desejo de Diadorim em encerrar a farsa e se entregar ao amor de Riobaldo; mas, em contraposição, existem os pássaros que não querem voar, aqueles que caracterizam o desejo de Diadorim em vingar a morte do pai. Ligada à figura dos pássaros, Diadorim não representa nem o amor carnal de Nhorinhá ou Rosa’uarda, nem o amor idílico de Otacília. Segundo crenças antigas, “os pássaros são vistos como mediadores entre o Céu e a Terra” (O’CONNEL; AIREY, 2010, p. 180). Sendo assim, Diadorim estaria no centro, isto é, no local do “inatingível para o ser humano”, em “uma busca incessante e interminável e de significação transcendental” (FERREIRA, 2013, p. 38): É através de Diadorim que Riobaldo se apercebe da beleza. Se sua primeira descoberta da poesia se dá numa noite de maio quando ouve pela primeira vez a canção de Siruiz, é com o paciente acompanhamento de Diadorim que Riobaldo ‘aprende’ a beleza do sertão. Diadorim é o mundo selvagem da vida aventureira e nômade e não é por acaso que os pássaros são uma constante em inúmeras passagens por ele protagonizadas (DAIBERT, 1995, p. 35).

Riobaldo, ao longo da narrativa, não se furta a admitir que é tomado por um amor que nunca se consumará, já que a travessia geográfica do bando do Urutu Branco finda-se na consolidação da vingança de Diadorim e na sua morte, tornando a realização deste amor inalcançável. A imagem de Diadorim agarra-se ao pensamento de Riobaldo e para sempre se eterniza em sua memória, como a lembrança do voo de um pássaro sorrateiramente avistado, ao se olhar para o céu aberto: Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá, num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre preta na Serra do Tatú – já ouviu o senhor gargaragem de onça? A garôa rebrilhante da dos-Confins, madrugada quando o céu embranquece – neblim que chamam de xererém. Quem me ensinou a apreciar essas Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A arte pictórica de Arlindo Daibert e a imagética das personagens femininas na construção narrativa de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

belezas sem dono foi Diadorim... A da-Raizama, onde até os pássaros calculam o giro da lua [...]. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza (ROSA, 2015, p. 34-36).

Além de sua associação aos pássaros, um aspecto marcante na figura de Diadorim são os olhos. Nas tradições literárias mundo afora, existe uma ligação explícita a ser explorada entre a característica psicológica dos personagens e os seus olhos. Para exemplificar, utilizaremos o já clássico exemplo da personagem Capitu, na obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, que tinha “olhos oblíquos e dissimulados”, representando a grande questão do romance: a dúvida da traição; no romance Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz, a personagem Marialva deseja fugir com Valentim, um saltimbanco de magnético olhos verdes. Desta forma, podemos afirmar que os olhos sempre estiveram presentes na literatura e, ao que parece, o verde relaciona-se à polaridade de um personagem, normalmente quando um personagem é ambíguo, não possuindo uma personalidade que tende ao bem nem ao mal inteiramente. O verde também é mediador “entre calor e frio, o alto e o baixo, equidistante do azul celeste e do vermelho infernal” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 939). Ou seja, Diadorim não é nem o azul celeste idílico de Otacília, nem o vermelho infernal das paixões carnais de Rosa’uarda e Nhorinhá. Outro significado atribuído também à cor verde é o de que, na Europa medieval, por exemplo, “o verde era muito associado ao demônio” (O’CONNEL; AIREY, 2010, p. 115). Para a simbologia da figura do demônio, nós temos: “com sua habilidade de compreender o destino de alguém, acreditava-se que os daimons apresentavam sinais de intuição além de entendimento racional, atuando como guias interiores” (O’CONNEL; AIREY, 2010, p. 132, grifo dos autores). Em muitas passagens, Riobaldo refere-se a Diadorim como um guia, uma pessoa em quem deposita a sua confiança em relação a ações futuras. É através dos olhos de Diadorim que Riobaldo aprende a ver a poesia do e no sertão. Diadorim, assim, age como um guia espiritual, um daimon, um gênio ou demônio para Riobaldo: “Diadorim é uma grande ilusão (‘Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço?’) e vai ser no meio do caos, “no meio do redemunho” que essa ilusão vai se desfazer em tragédia” (DAIBERT, 1995, p. 36). Certeiramente, os olhos e o olhar carregam uma simbologia: “o olhar é o instrumento das ordens interiores: ele mata, fascina, fulmina, seduz, assim como exprime” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 653). Em um dos desenhos de Arlindo Daibert sobre Diadorim, podemos ver que a lua e o sol representam o olhar de Diadorim: “sendo o olho direito correspondente ao ativo, ao futuro (o sol) e o esquerdo ao passivo e ao passado (a lua)” (O’CONNEL; AIREY 2010, p. 155) e a luz retratada na imagem é a minguante, que simboliza uma época de declínio. Na figura 6, podemos compreender que o círculo direito, o do sol, representa o desejo de Diadorim em, novamente, ceder ao amor de Riobaldo; já o esquerdo, da lua, é o apego ao passado, à promessa e à morte do pai, que lhe atormentam frequentemente:

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Diadorim partilha da tradição das mulheres guerreiras que se travestem em nome do amor e da fé, como a Clorinda da Jerusalém libertada, de Tasso, ou tantas outras heroínas do imaginário cavaleiresco. Mas, mais do que a revelação de sua identidade sexual, o ponto dramático da cena é a constatação da fatalidade à qual a personagem foi condenada: obrigada a viver e guerrear como homem, Diadorim-mulher é condenada a renegar também sua natureza biológica (DAIBERT, 1995, p. 61).

Fig. 6: Diadorim II, de Arlindo Daibert.

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Voltando à capa do romance de Rosa concebida por Poty Lazarotto (Fig. 3), temos a figura de uma jovem mulher com os cabelos longos. Antigamente, “os cabelos longos e soltos em mulheres indicavam juventude e virgindade” (O’CONNEL; AIREY, 2010, p. 154). E, de fato, Otacília representa esse amor virginal, idílico, quase uma Beatriz dantesca. Otacília é o oposto de Diadorim. Se Diadorim se encontra entre o Céu e a Terra, Otacília é o próprio Céu: “Otacília é seu oposto: a vida doméstica, sedentária, a fazenda com buritis e flores. É dela o mundo da segurança e das raízes” (DAIBERT, 1995, p. 35). Conforme seja muito ligado ao idílico, o amor entre Otacília e Riobaldo se concretiza no casamento. Ainda relacionando nossa análise ao desenho da capa de Lazarotto, podemos notar a presença dos buritis, que são árvores relacionadas à figura de Otacília (Fig. 6). A cor verde dos buritis representa, diferente de Diadorim, a fertilidade e o crescimento. Os buritis, porém, se encontram entrançados de maneira labiríntica, ligados, dessa maneira, à travessia, tema caro ao romance e à própria produção ficcional rosiana. O labirinto é um espaço que reflete a falta de conhecimento e a desorientação, impulsionando uma movimentação diante dos obstáculos da vida. Em carta a Edoardo Bizzarri, Guimarães Rosa (2003, p. 41) diz que nas veredas há sempre o buriti: “De longe, a gente avista os buritis, e já sabe: lá se encontra água. A vereda é um oásis”.

Fig. 7: Otacília, de Arlindo Daibert. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A arte pictórica de Arlindo Daibert e a imagética das personagens femininas na construção narrativa de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

Otacília representa para Riobaldo não só a estabilidade que um casamento pode oferecer, mas para além disso: ela oferece a expurgação de todo o mal que vige dentro de Riobaldo. Apesar do pacto, da recusa e posterior aceitação da liderança do bando de jagunços, da relação conturbada e nebulosa com Diadorim, depois de tantas mortes, Riobaldo se encontra, no instante da diegese, com Otacília; esta, significando para ele o emblema da quietude: O buriti encarna um dos elementos mais benfazejos e positivos do cenário do romance. Palmeira que sinaliza os poços de água, o buriti ainda é árvore da doação total. Suas palmas e frutos identificam-se à vida dos sertanejos na confecção de doces e licores, esteiras, coberturas de casas, abanos para o cuidado do fogo de lenha, etc. Não é à toa que Otacília tem a palmeira quase que como um emblema (DAIBERT, 1995, p. 38-39).

Como aponta André Mendes (2011) em sua tese, arrematando as ideias aqui apresentadas, Arlindo Daibert intentou realçar as características singulares das personagens apresentadas no romance por meio de símbolos inseridos dentro de labirintos, nuvens, dentro do corpo e da natureza, elementos pontuados no texto de Guimarães Rosa, e que, portanto, apontam para uma possível leitura e um possível entendimento da complexidade apresentada por Diadorim e Otacília: Diadorim tem uma vida aventureira e nômade, enquanto Otacília é apegada à vida doméstica, fixa, sólida – essa diferença é evidente na escolha dos elementos que constituem os labirintos. ‘Diadorim’ é constituída por um bando de pássaros, seres de movimento, enquanto ‘Otacília’ é formada por um conjunto de árvores, símbolos da estabilidade – é dela o mundo da segurança e das raízes; por isso, no centro do seu labirinto, predomina a luz, enquanto no mundo de Diadorim existe uma borra, uma nuvem, que talvez represente sua instabilidade (MENDES, 2011, p. 101).

Percebe-se como o artista plástico compreendeu o jogo dual que as duas personagens representam não só no relato do jagunço Riobaldo, como também na própria estrutura narrativa do romance, que existe em razão dessas duas mulheres.

Considerações finais O artista adaptador da obra literária manteve a atenção voltada aos temas centrais do romance, especialmente no que se refere à importância das personagens femininas para a construção romanesca, concebendo dezenas de gravuras tanto para as personagens principais quanto para personagens que aparecem secundariamente. Neste artigo apenas foi analisada a concepção das imagens referentes à Diadorim e à Otacília, as duas personagens principais e as catalisadoras do drama narrativo vivenciado por Riobaldo no romance de Guimarães Rosa. Compreende-se, assim, que recontar a narrativa do texto fonte não impediu que o artista plástico mineiro fizesse sua própria leitura, dotando-a de grande liberdade criativa, podendo ousar, ir em busca de outros textos do próprio Guimarães Rosa e usá-los como fonte de inspiração para acoplar às xilogravuras. As imagens apresentam um ato analítico profundo não só sobre o universo biográfico como também sobre o universo ficcional rosiano. Portanto, as imagens daibertianas são um exemplo de que a tradução intersemiótica pode ser um ramo, ainda marginalizado, da crítica. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Referências

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BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In: BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Tradução Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas e figuras, cores, números. 27. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2015. DAIBERT, Arlindo. Caderno de escritos. Org. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995. DAIBERT, Arlindo. Imagens do Grande Sertão. Juiz de Fora: Editora UFJF, 1998. DRUMOND, Josina Nunes. As dobras do Sertão: palavra e imagem: o neobarroco em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa e em Imagens do Grande Sertão, de Arlindo Daibert. São Paulo: Annablume, 2008. FERREIRA, Agripina Encarnación Alvarez. Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos bachelardianos. Londrina: EDUEL, 2013. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. 2. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2013. MENDES, André Melo. Mapas de Arlindo Daibert: diálogos entre imagens e textos. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2011. NUNES, Benedito. O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. O’CONNEL, Mark; AIREY, Raje. Almanaque ilustrado de símbolos. Tradução Débora Ginza. São Paulo: Editora Escala, 2010. PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 21. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. ROSA, João Guimarães. João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

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A literatura confessional de Sylvia Plath em A redoma de vidro1 The confessional literature of Sylvia Plath in A redoma de vidro Claudiane Jurema de SOUSA2 Liliane Maria JAMIR E SILVA3 Resumo: Este trabalho propõe uma análise do romance autobiográfico A redoma de vidro, da escritora norteamericana Sylvia Plath, voltado para a literatura confessional. A pesquisa se reporta ao desenvolvimento da literatura confessional ao longo dos séculos, e como a poesia confessional norteamericana impulsionou o que conhecemos hoje por ‘confessional’ no mercado editorial, visto que atualmente o consumo dessa literatura tem recebido mais espaço entre os leitores. Sylvia Plath, contista, romancista e poetisa, se solidifica então na literatura com seus aclamados livros de poesia, em que discute os mais variados temas, sendo em seu único romance, A redoma de vidro, onde expõe o relato de sua vida ficcionalizada, corpus textual aqui analisado. Destaca-se a contribuição de Philipe Lejeune (2014), para o estudo do autobiográfico, a obra A redoma de vidro, de Sylvia Plath, para análise, bem como as biografias sobre a vida da autora, de Carl Rollyson (2015) e Janet Malcom (2012). Palavras-chave: Romance autobiográfico. Sylvia Plath. Literatura confessional. Abstract: This work proposes an analysis of the autobiographical novel A redoma de vidro, by the North American writer Sylvia Plath, focused on the confessional literature. The research refers to the development of confessional literature throughout the centuries, and how American confessional poetry has become what we know today as 'confessional' in the publishing market, since the consumption of this literature has now received more space among readers. Sylvia Plath, a short storyteller, novelist and poet, then solidifies herself in literature with her acclaimed poetry books, in which she discusses the most varied themes, being in her only novel, A redoma de vidro, where she exposes the account of her fictional life, textual corpus analyzed here. The contribution of Philipe Lejeune (2014), for the study of the autobiographical, A redoma de vidro, by Sylvia Plath, for analysis, as well as the biographies on the life of the author, by Carl Rollyson (2015) and Janet Malcom (2012). Keywords: Autobiographical romance. Sylvia Plath. Confessional literature.

Introdução A literatura confessional vem alcançando novos mercados e novos leitores, expondo ainda mais a individualidade do autor, colocando-o como o objeto central de sua própria obra. Essa literatura se consolida em diversos gêneros, a exemplo do romance autobiográfico. Sylvia Plath foi poetisa, romancista e contista norte-americana do século XX. Dentre as diversas obras da autora, abordaremos aqui o seu único romance – A redoma de vidro. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Artigo oriundo de trabalho de conclusão de curso, Letras, apresentado e aprovado em 2019.1. Graduanda do curso de Letras (Português/Inglês) pela Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE). Professora de inglês em curso livre. | E-mail: claudianesousa@live.co.uk 3 Doutora em Literatura e Cultura | UFPB | Professora do Curso de Letras | FAFIRE | orientadora da pesquisa | E-mail: lilianejamir@ uol.com.br 1 2

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Os conflitos internos, as tentativas de suicídio, entre outras situações, são traços que aproximam Esther Greenwood, a personagem principal, e Sylvia Plath, mostrando, assim, como seria possível afirmar que o romance é a ficcionalização de sua biografia, sendo, portanto parte da literatura confessional. Por sua vez, o romance A redoma de vidro tem grande visibilidade no mundo inteiro entre os admiradores da literatura, sendo considerado um clássico, recebendo ainda uma atenção maior por ser o único romance publicado por Sylvia Plath. Assim, este trabalho justifica-se pela importância da contribuição deste romance para a Literatura Norte Americana e para o entendimento do Confessional difundido na década de 1960. O trabalho busca uma aproximação da literatura confessional, a fim de explorar a autobiografia no romance A redoma de vidro. Para isso, foram estudados teóricos como Philippe Lejeune (2014) e Maria Luiza Remédios (1997), entre outros, e quanto às biografias, Carl Rollyson (2015) e Janet Malcom (2012).

O que é literatura confessional?

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A literatura confessional vem alcançando cada vez mais leitores através de gêneros como: memórias, diários, autobiografia, entre outros. Essa forma de escrita de si não é tão recente quanto se imagina, mas se intensificou na história como uma mudança radical quando o ser humano é enxergado como indivíduo único, o que traz à tona a necessidade de reportar sua subjetividade, suas experiências. Mas, o que caracteriza a literatura confessional, em si? As escritas de si, ou seja, aquelas escritas do eu, são ditas como literatura confessional, ou ainda literatura íntimista. Rolim (2005, p. 25) lembra que, no sentido etimológico, a confissão significa desvelar, manifestar, dar a conhecer, o que já nos insere no universo de desvelamento do eu que a literatura confessional vem suscitar. A literatura confessional é a auto-escrita de um eu personagem, que é, via de regra, (con)fundido com o autor da obra.

Rolim (2005, p. 25) ainda descreve que a literatura confessional se concebe como intimista, autobiográfica ou memorialista, adjetivações que, apesar das suas idiossincrasias, costumam se remeter a textos escritos em primeira pessoa em que ocorre, em algum momento, não a descrição de alguma verdade, mas a apresentação de um ponto-de-vista particular que individualize a existência do eu que se inscreve, independentemente da sua existência extratextual.

Assim, temos uma escrita voltada para o eu, tendo o autor como figura individual representativa no texto, baseando-se em sua mais íntima subjetividade e vivência. Outra visão sobre o que é a literatura confessional cabe ao dicionário de termos literários on line, onde Cabral (2009) diz que essa literatura “refere-se a textos literários, que têm como centro a expressão da intimidade de um indivíduo; em termos discursivos, o texto irradia de um sujeito de enunciação”. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A literatura confessional de Sylvia Plath em A redoma de vidro

Remédios (1997, p. 9) reitera que essa literatura seria a que mais se aproxima do leitor, porque fala de um eu, de uma pessoa viva que ali se encontra, diante da pessoa que lê desnuda sua vida, estabelecendo perfeita união entre autor e leitor. Dessa forma, a literatura confessional é capaz de proporcionar grande afinidade entre o leitor e a obra, visto que é fruto da suposta impressão de proximidade que o texto nos apresenta. Além disso, o texto confessional é capaz de promover a ilusão de que o escritor se desmascara, desnuda-se por meio de seu texto, dando o sentimento de proximidade, de intimidade entre aquele ser, pessoa física que compôs a obra, e aquele que a lê.

Uma breve trajetória da literatura confessional Vê-se, portanto, que a literatura confessional é centrada no sujeito, pois é ele o objeto de seu próprio discurso, podendo também ser chamada de intimista. Remédios (1997, p. 9) questiona: sendo esta literatura centrada no sujeito, quando ela surge? A literatura intimista começa a se fortalecer e a se definir enquanto gênero desde o momento em que a sociedade burguesa se estabelece, no século XVIII, e a noção de indivíduo se define sobre a concepção geral que se tem atualmente, ou seja, quando “o homem ocidental adquire um claro conhecimento histórico de sua existência, conquistando então, essa literatura, uma função cultural significativa” (ALVAREZ, 1989, p. 439). Maciel (2004, p. 4) destaca que, o crescimento da população é o dado que impulsiona as narrativas autobiográficas, pois, com o aumento do número de pessoas, começa-se a reconhecer o valor íntimo de cada indivíduo por suas vivências e interioridade. Outro fator importante quando pensamos na afirmação deste tipo de narrativa está relacionado ao mundo de então: a religião perdia sua força e o homem não encontrava apoio na ciência – é neste ambiente de desencanto que começa a ser cultivada a subjetividade.

É difícil determinar exatamente o surgimento da literatura confessional, visto que os textos centrados no eu como sujeito remontam ao ano 400, com a As confissões de Santo Agostinho. Segundo Araújo (2011, p.12), desde As confissões de Santo Agostinho, passando pelos Ensaios de Montaigne e por As confissões de Rousseau, a narrativa do eu procura investigar, por meio da introspecção e da narração da própria vida, o que caracteriza e define o indivíduo.

Então, sua existência no tempo e no espaço se dá quando os homens dedicam-se a retratarem seus feitos, os quais conquistam um público atento. Remédios (1997, p. 10) ressalta que, Entre as Confissões de Santo Agostinho, e as Confissões, de Rousseau, medeiam muitos séculos em que o ato de contar a própria vida oferece perfis nítidos e precisos, que têm sido objeto de investigação e que permitem que, hoje, tenha-se uma das teorias mais elaboradas sobre o gênero autobiográfico e a literatura confessional.

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Com esses três autores, Santo Agostinho, Montaigne e Rousseau, percebe-se que a subjetividade vai ganhando espaço no quesito autobiográfico das confissões. Passamos de uma autoanálise (como caminho em direção a Deus), com Santo Agostinho para a evolução do eu que se constrói perante o texto, expondo sua individualidade e desenvolvendo-a como uma nova modalidade, o que traz à literatura um imenso laboratório “no qual as formas subjetivas modernas ganharam contorno e visibilidade” (KHEL, 2001) . Tais mudanças são requesito principal para a literatura confessional que conhecemos na contemporaneidade. Assim, Maciel (2004, p. 5) alega que é importante destacar que, “apesar de o início da literatura confessional estar atado ao século XVIII e sua afirmação ter sido possível apenas no século seguinte, seu apogeu dá-se no início do século XX”, pois, é no decorrer desse século que todo o conjunto de literatura íntima torna-se produto de consumo e passa a ser digerida por uma grande massa de leitores interessados no segredo.

The confessionalists

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Com um olhar preciso para a evolução da literatura confessional e para o íntimo em si, surgem os confessionalistas, mediando a poesia norte-americana dos anos 1950 a 1970. No entanto, o título de confessionalista se estabelece a partir de 1959, devido à publicação de Life Studies, pelo poeta Robert Lowell, sendo atribuída a designação Confessional Poetry (Poesia Confessional) ao crítico literário M. L. Rosenthal, em seu ensaio Poetry as Confession (Poesia como confissão) (HOLLADAY, 2009). Em Life Studies, Lowell abre as portas para uma nova poesia norte-americana pós-II Guerra Mundial. Assim, é em torno da década de 1950 e 1970 que os poetas nomeados The Confessionalists (Os confessionalistas) revelaram a alienação moderna norte-americana pós-II Guerra Mundial, através de relatos autobiográficos que culminaram “na fragmentação e dissolução do eu, loucura e/ou suicídio, percorrendo o percurso vida real/ ficção poética e vice-versa” (CASAGRANDE, 2008, p. 51). Os temas abordados sem dúvida foram inovadores, expondo diversos tabus quebrados nos Estados Unidos, na época, revelações de experiências muito privadas e atípicas. De modo óbvio, explora-se a exposição da vida pessoal, isto é, fatos biográficos muito íntimos. Casagrande (2008, p. 52) fala sobre a liberdade de expressão nesse novo contexto de escrita: Tais poetas revelavam sentimentos e percepções muito ou intensamente pessoais, íntimas e dolorosas sobre si mesmos. Temas tratados de maneira extremamente sincera em poemas de estrofes improvisadas, sintaxe desigual, métrica densa e prosa poética. O que funcionaria como uma terapia auto-imposta para uma psicose real ou imaginária, sendo considerada franca e sincera por eles, já que acreditavam que a época histórica em que viviam necessitava de tal franqueza.

A maioria das temáticas tratava de morte, suicídio, distúrbios psíquicos, casamento, divórcio, relacionamentos, sexo, vida doméstica etc. Grandes poetas que receberam o título de confessionalista foram: Robert Lowell, W. D. Snodgrass, Sylvia Plath, Anne Sexton, Elizabeth Bishop, entre outros.

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A literatura confessional de Sylvia Plath em A redoma de vidro

O gênero confessional romance autobiográfico

É no romance autobiográfico que a ficção e a vida encontram morada, e a ficcionalização de uma história torna-se possível. O termo romance autobiográfico aparece nos ensaios do teórico francês Philippe Lejeune, onde o mesmo procura demarcar os limites da autobiografia, como também do “pacto autobiográfico”. É importante colocarmos que o romance autobiográfico não deixa de ser um romance, podendo ser lido como uma ficção como qualquer outra, caracterizando, assim, seu aspecto textual e linguístico no campo do romance. Sua classificação geralmente é explícita, seja na capa ou contra-capa do livro, não deixando dúvidas sobre seu caráter literário. Nesse sentido, Tardivo e Coqueiro (2018, p. 144) explanam que, Na literatura contemporânea, o gênero autobiográfico é recorrente, na medida em que o/a autor/a empresta sua vivência aos seus personagens, sem, contudo, deixar explícito o que realmente fora inventado e o que fora, de fato, vivido. Nesse sentido, o escritor, ao misturar elementos biográficos e ficcionais, acaba por criar um jogo de verdades e mentiras que levam o leitor (que não conhece a vida do autor com propriedade para ratificar os acontecimentos que estão no papel) a embarcar no texto sem preocupar-se com o que é de fato verdadeiro e o que é ficção.

Retornando a Lejeune, é preciso instituir algumas diferenças entre os gêneros literários autobiografia e romance autobiográfico, que ficam claras ao se estabelecer o “pacto autobiográfico”, isto é, a correspondência entre autor = narrador = personagem e o contrato de leitura estipulado entre o autor e o leitor; estes são pontos principais para distinção de ambos. Desta forma, o primeiro “pressupõe que haja identidade de nome entre autor (cujo nome está estampado na capa), o narrador e a pessoa de quem se fala” (LEJEUNE, 2014, p. 28-29), enquanto que o romance autobiográfico conteria semelhanças entre a vida do autor e os fatos narrados, sejam eles ocultados ou negados. Em “O pacto autobiográfico”, de 1973, Lejeune clareia a ideia de romance autobiográfico: Chamo assim [romance autobiográfico] todos os textos de ficção em que o leitor pode ter razões de suspeitar, a partir de semelhanças que acredita ver, que haja identidade entre autor e personagem, mas que o autor escolheu negar essa identidade ou, pelo menos, não afirmá-la. Assim, definido, o romance autobiográfico engloba tanto narrativas em primeira pessoa (identidade do narrador e personagem) quanto narrativas “impessoais” (personagens designados em terceira pessoa); ele se define por seu conteúdo (LEJEUNE, 2014, p. 29).

Ao passo que a autobiografia tem a afirmação do pacto autobiográfico, o romance autobiográfico não deixa de ter seu próprio pacto, este, no entanto, intitulado de pacto romanesco. Simetricamente ao pacto autobiográfico, poderíamos estabelecer o pacto romanesco que teria ele próprio dois aspectos: prática patente da não identidade (o autor e o personagem não têm o mesmo nome), atestado de ficcionalidade (é, em geral, o subtítulo do romance, na capa ou na folha de rosto, que preenche, hoje, essa função. Note-se que romance, na Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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terminologia atual, implica pacto romanesco, ao passo que narrativa, por ser indeterminada, é compatível com um pacto autobiográfico) (LEJEUNE, 2014, p. 32).

O romance autobiográfico é senão uma mistura da realidade vivida pelo autor e da ficção criada por ele em torno de um corpus de romance. Como neste romance não há o estabelecimento do pacto autobiográfico, o autor sente-se à vontade, livre para narrar seus relatos ficcionalizados ou não. De certa forma, a liberdade aqui, poderá ocasionar uma postura mais aberta já que o autor se encontra livre do pudor de algo ser associado a seu nome. Porém, é significativo que um breve conhecimento sobre sua vida (do autor) e o leitor poderá fazer associações pertinentes sobre as relações de identidade autor-personagem, ou até mesmo a curiosidade sobre esse personagem exposto na obra poderá fazer com que o leitor busque aproximações entre autor e personagem, não deixando assim de compor o pacto romanesco, nem muito menos de a obra se caracterizar como romance autobiográfico.

O romance autobiográfico em A redoma de vidro: Sylvia Plath e Esther Greenwood

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As semelhanças entre a vida de Sylvia Plath e a de Esther Greenwood não são apenas coincidências; a autora escolhe como palco principal de sua obra suas próprias experiências: a vida acadêmica, seus namorados, a relação com a mãe, a doença (mesmo que não diagnosticada), entre outros pontos. Seu relato em A redoma de vidro vai além de um romance comum, situando-o na categoria das obras confessionais como um romance autobiográfico. São suas experiências vividas e reveladas sobre o caráter fictício em A redoma de vidro que iremos explorar. É, portanto, um de seus biógrafos, Carl Rollyson (2015, p. 96), quem admite que os acontecimentos de junho de 1953 tornaram-se a base de A redoma de vidro, em que Plath transfigurou o mês traumático numa fábula [...] que capta todo o esplendor e a perfídia da cidade de Nova York, endereço do talentoso e do impostor, do predador e do pretensioso.

Para Malcom (2012, p. 41), The bell jar4 é um relato ficcionalizado do colapso, do tratamento de choque e da tentativa de suicídio da própria Sylvia Plath em 1953, e ela não queria que os originais em que se inspiravam suas personagens detestáveis – especialmente sua mãe lessem o livro. [...] Também dissecados e reprovados em todos os aspectos aparecem, entre outros, Olive Higgins Prouty, que era benfeitora de Sylvia Plath; o namorado de Sylvia na universidade, Dick Norton; e a mãe deste.

O livro inicia no verão em que eletrocutaram os Rosenberg. E a narradora se vê incomodada com essa execução, dizendo ironicamente que “a ideia de ser eletrocutada me deixa ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 4

Título original da obra, publicado em janeiro de 1963, na Inglaterra, após ter sido recusado por duas editoras americanas. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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doente”. A execução dos Rosenberg surge em mais de um ponto do livro, mostrando o quanto esse pensamento se tornou determinante para a personagem, assim como para autora: Durante esse mês movimentado, a terrível execução dos Rosenberg, condenados pela participação numa conspiração de espionagem soviética com a finalidade de roubar o segredo da bomba atômica, causou um impacto tão forte que deixou Sylvia enjoada. [...] Sylvia jamais perdeu de vista o mundo em geral, ao qual se encontrava irremediavelmente conectada pela consciência do que significava ser plenamente humana (ROLLYSON, 2015, p. 95-96).

Mais a frente, a autora nos situa sobre a vida da personagem em Nova York, após ter ganho um concurso de uma revista de moda: Tínhamos ganhado o concurso de uma revista de moda, escrevendo ensaios e contos e poemas e slogans, e como prêmio nos deram um estágio de um mês em Nova York, tudo pago, além de pilhas de brindes como ingressos para o balé, entradas para desfiles de moda, visitas a cabeleireiros chiques, a oportunidade de encontrar gente bem-sucedida na área de sua preferência e receber conselhos sobre o que fazer com o seu tipo de pele (PLATH, 2014, p. 9).

Rollyson (2015, p. 91), em sua biografia de Plath, intitulada Ísis Americana, pontua: No início de maio, as notícias são ainda melhores: Sylvia é escolhida para o cargo de editora convidada da Mademoiselle. [...] A revista explicava que aquela era uma grande oportunidade de aprender mais sobre seu público leitor. O cargo também fornecia aos selecionados treinamento e aconselhamento valiosos e uma visão “dos bastidores” do mundo editorial.

As semelhanças não se esgotam em situações narradas; a descrição de Plath de sua heroína Esther é acertadamente a sua própria descrição física. No enredo, Esther Greenwood é retratada com um metro e setenta e, comicamente ao sair com rapazes mais baixos precisa se inclinar um pouco e dar uma entortada nos quadris para parecer mais baixa; ela descreve que se sente desajeitada e defeituosa como uma atração de circo. Após um exame médico, Sylvia Plath relata a mãe que media 1,75m e pesava 62kg, com uma preocupação tão exagerada com relação à postura que ao alinhar orelhas e calcanhares se esquecia de ‘ficar ereta’. Essa última observação provocou o seguinte comentário do professor: ‘Você tem um bom alinhamento, mas vive em constante perigo de cair de cara no chão’ (ROLLYSON, 2015, p. 52).

No romance, há uma cena em que a personagem principal não quer ser reconhecida por seu nome ou por sua origem. A passagem se desenrola num momento em que a protagonista e Doreen (sua amiga) estão conhecendo dois rapazes em uma boate. A personagem-narradora então diz:

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– Meu nome é Elly Higginbottom – eu disse – e sou de Chicago. – Depois disso me senti mais segura. Eu não queria que nada do que eu dissesse ou fizesse naquela noite fosse associado a mim, ao meu nome verdadeiro ou ao fato de que viera de Boston (PLATH, 2014, p. 18).

A associação de seu nome às suas atitudes pode ser vinculada à própria obra que Plath escreve. Ela, assim como Esther, não quer ser associada à trama, por isso publica a obra com o pseudônimo de Victoria Lucas, para que nada possa ser atrelado a sua vida pessoal. No entanto, é após a sua morte que o livro é lançado com seu verdadeiro nome como autora, sendo inegáveis, as semelhanças entre personagem e autora. A bolsa de estudos de Sylvia Plath concedida para a Smith College também é retratada em A redoma de vidro. Seu biógrafo, Rollyson (2015, p. 55), descreve que “Sylvia ficou eufórica ao saber que recebera uma bolsa de estudos de Olive Higgins Prouty, autora do romance Stella Dallas, um melodrama transformado em novela radiofônica, bem como em dois filmes.” Em A redoma de vidro, esse fato é assinalado pela narradora: Minha bolsa havia sido concedida por Philomena Guinea, uma escritora rica que havia estudado na universidade no começo do século XX e cujo primeiro romance havia virado um filme mudo com Bette Davis, além de uma radionovela que ainda estava no ar (PLATH, 2014, p. 47).

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Sendo tão minuciosa, Sylvia Plath não iria deixar de se reportar a seus relacionamentos amorosos. Ela apresenta, então, Buddy Willard, namorado de Esther. Porém, a sua descrição começa por mostrar que o relacionamento entre os dois vai mal. Aos poucos, a narrativa apresenta um Buddy como namorado ideal, bonito, inteligente, estudante de medicina, um partido perfeito para o casamento, até esclarecer qual o motivo de sua desilusão e o porquê achá-lo um hipócrita. No enredo, Buddy confessa a Esther que não é mais virgem, pois, durante o relacionamento deles chegara a se envolver com uma garçonete, o que deixa Esther imensamente chateada, não pela traição, mas pela figura imperfeita que agora Buddy parecia para ela. Na vida de Sylvia Plath, Dick Norton representa essa figura, “um estudante de Medicina de Yale, alto e bonito”, segundo Rollyson (2015, p. 58). A relação entre Esther e Buddy é explorada ao mostrar duas cenas que de fato aconteceram na vida de Sylvia e Dick: a primeira delas, uma cena em que, ao visitar Buddy na universidade, ela termina por presenciar um parto natural; a segunda cena, em que ela quebra a perna tentando esquiar. Sylvia Plath é tão caprichosa com os pormenores que, até mesmo a tuberculose que Dick teve e seu internamento em um sanatório, são colocados em pauta por Buddy Willard. Encerrado o estágio em Nova York, Esther retorna para casa esperando ter entrado em uma oficina de escrita de ficção, para o que logo sua mãe a desencoraja, informando que ela não havia passado para a oficina. A partir daí, decide escrever um romance, e como reflexo da própria autora, diz: Minha ternura preencheu meu coração. Minha heroína seria eu, só que disfarçada. Ela se chamaria Elaine. Elaine. Contei as letras com meus dedos. Esther também tinha seis letras. Parecia um bom sinal. (PLATH, 2014, p. 135) Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A literatura confessional de Sylvia Plath em A redoma de vidro

Ao retornar do estágio em Nova York, Sylvia também se frustra ao não ingressar em um curso de escrita e toma a mesma decisão de Esther. Camuflada, sob um pseudônimo, viria a surgir a ideia de A redoma de vidro. No entanto, não foi tão simples dar início ao romance. Esther já se via exaurida pela experiência em Nova York, e tinha dificuldades para escrever por achar não ter experiência de vida o suficiente para criar um romance. Decide, portanto, aprender taquigrafia, um curso prático para mulheres na época. mas não se imaginava em um emprego sequer que precisasse de tal habilidade. Então, mais uma vez muda de planos e resolve passar o verão lendo Finnegans Wake5 e escrevendo sua tese, que assim estaria adiantada para quando as aulas da universidade retornassem. Plath, por outro lado, não está diferente de Esther: começa a questionar suas escolhas, a se achar incapaz e também não consegue escrever, faz planos de aprender alemão, taquigrafia, e também dar um passo em sua tese, que do mesmo modo seria sobre o duplo em James Joyce, mais tarde mudando para o autor para Fiódor Dostoiévski. Aos poucos, a depressão vai assolando Esther, que já não consegue mais dormir, ler, escrever ou sequer tomar banho. Assim, surge sua primeira visita ao psiquiatra, Dr. Gordon. A consulta é retratada como a mais fria possível. O médico não parece estar interessado na vida de Esther, e na segunda consulta, já é recomendado o tratamento com eletrochoques. Na vida de Sylvia Plath, a depressão tomaria um rumo logo percebido por sua mãe, e a partir daí um médico seria consultado. Em Ísis Americana, biografia de Carl Rollyson, temos que A descrição de Aurelia [mãe de Plath] em Letters Home6 do comportamento de Sylvia sugere todos os sintomas de depressão clínica. [...] Ela se sentava, com um livro nas mãos, mas não conseguia ler. Sylvia Plath não conseguia ler! Só falava em como havia decepcionado a todos. Pior do que isso: não conseguia escrever. Aurelia notou cortes nas pernas da filha, e Sylvia reagiu, dizendo: ‘Eu só queria ver se tinha coragem!’ [...] A filha concordou em consultar um médico e depois um psiquiatra, embora nem um nem outro, aparentemente, tenham sido de grande ajuda, além de receitar comprimidos para dormir e depois submetê-la a um tratamento brutal de eletrochoques, administrado sem sedativos ou relaxantes musculares (ROLLYSON, 2015, p. 99).

Em A redoma de vidro, a experiência dos eletrochoques é contada a partir da perspectiva mais dolorosa e confusa da narradora-personagem: Então alguma coisa dobrou-se sobre mim e me domi nou e me sacudiu como se o mundo estivesse acabando. Ouvi um guincho, iiii-ii-ii-ii-ii, o ar tomado por uma cintilização azulada, e a cada clarão algo me agitava e moía e eu achava que meus ossos se quebrariam e a seiva jorraria de mim como uma planta partida ao meio. Fiquei me perguntando o que é que eu tinha feito de tão terrível (PLATH, 2014, p. 161).

Na escrita, o desejo de contar sobre sua experiência com os eletrochoques fica visível. Afinal, qual escritor, diga-se de passagem, confessionalista, não iria ficcionalizar tamanho sofrimento? Em seu diário, em 26 de fevereiro de 1955, Sylvia Plath escreve: ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Livro do escritor irlandês James Joyce, publicado em 1939, e um dos grandes marcos da literatura experimental. Cartas para casa, livro em que a mãe de Plath divulga as correspondências trocadas entre 1950 e 1963.

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E agora estou aqui sentada, reservada e exausta em meu devaneio, algo enferma do coração. Quero escrever uma descrição detalhada do tratamento de choque, curta, densa, explosiva, sem um pingo de sentimentalismo pudico, e quando tiver escrito o bastante mandarei o texto para David Ross. [...] Pensei na descrição do tratamento de choque na noite passada: o sono mortífero de sua loucura, e o café da manhã que não veio, os pequenos detalhes, a volta ao tratamento de choque que deu errado: eletrocussão entra em cena, a inevitável descida ao salão subterrâneo, acordar num mundo novo, sem nome, renascer, mas não de mulher (KUKIL, 2017, p. 247).

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Na obra, as sessões de eletrochoque são inúteis a princípio. A depressão continua a aterrorizar Esther Greenwood. A partir daí, ela toma a decisão de cometer suicídio. As tentativas são múltiplas. Ela inicia por querer cortar os pulsos, mas apenas corta a panturrilha treinando (o que vimos ser fato verídico na descrição supracitada). Tenta se enforcar, mas o teto de sua casa é muito baixo para pendurar a corda; tenta se afogar, mas continua voltando a surgir na superfície da água. Até que surge sua última tentativa, quando se esconde no porão de sua casa e toma um vidro de pílulas para dormir. Passam dias até ser encontrada pela mãe e levada ao hospital, onde se recupera sem sequelas. No entanto, é internada na ala psiquiátrica, após a recuperação de seu corpo, e depois transferida para uma instituição particular. Na vida de Sylvia Plath, as tentativas de suicídio ficaram marcadas pela sua última tentativa antes do seu real suicídio, conforme descreve Carl Rollyson em estudo sobre a autora: Aurelia encontrou um bilhete em que a filha dizia ter ido dar uma longa caminhada. Sylvia sumiu durante três dias, até Warren [irmão mais novo de Plath] ouvir o que lhe soou como um gemido vindo do porão. Ali a encontrou num espaço apertado, semiconsciente depois de vomitar os comprimidos para dormir que tomara para pôr fim a vida. Tinha um corte no rosto que deixaria uma cicatriz, mas de resto se recuperou com bastante rapidez das mazelas físicas. Em setembro, começou a melhorar sobre a supervisão da Dra. Ruth Beuscher, no Hospital McLean, em Belmont, Massachusetts (ROLLYSON, 2015, p. 99).

Assim como na obra em foco, a benfeitora de Plath tem envolvimento pessoal e financeiro na internação em um hospital particular. “Em novembro, recebeu eletrochoques – dessa vez administrados com mais preparo e com a Dra. Beuscher a seu lado – e terapia de insulina”, ainda relata Rollyson (2015, p. 102). Em A redoma de vidro, o tratamento na clínica particular é feito pela Dra. Nolan, a qual Esther se apega. As injeções de insulina estão presentes e o tratamento de eletrochoques também continua, dessa vez sob uma administração diferenciada, de forma indolor, a qual a protagonista relata “e a escuridão me apagou como giz sobre um quadro negro” (PLATH, 2014, p. 239). É na clínica da Dra. Nolan (cujo título não é mencionado) que Esther conhece Joan Gilling, uma ex-namorada de Buddy Willard, que também estava internada por depressão. A partir de determinado momento, Esther começa a pensar que Joan seria seu duplo, alguém com experiências similares às suas, de quem ela particularmente parece não gostar, mas sente alguma afinidade. A narradora fala: Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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Olhei para Joan. Apesar de me dar nos nervos, apesar da minha velha e arraigada antipatia, ela me fascinava. [...] Seus pensamentos não eram meus pensamentos, seus sentimentos não eram meus sentimentos, mas éramos próximas o suficiente para que seus pensamentos e sentimentos parecessem uma versão distorcida e soturna dos meus (PLATH, 2014, p. 245).

Rollyson situa Joan Gilling do enredo como a Jane Anderson da vida de Sylvia Plath: As duas não eram especialmente próximas, mas Jane crescera em Wellesley e namorara Dick Norton. Ela havia se interessado particularmente pelo caso de Sylvia e chegara a presenteá-la com os recortes de jornal que falavam do seu sumiço de três dias [...] Assim como Sylvia, Jane atribuía boa parte do seu desejo suicida à relação conflituosa com o pai. [...] Em A redoma de vidro, Jane é transfigurada em Joan Gilling, uma colega da instituição psiquiátrica bastante misteriosa e uma espécie de cópia sua que Esther encara com um fascínio temeroso. No romance, Esther se recupera, mas Joan comete suicídio (2014, p. 109-110).

Com a melhora, a instituição psiquiátrica concede a Esther, de tempos em tempos, permissões para passear pela cidade. É nesse ensejo, que em A redoma de vidro, Plath também relata sua primeira experiência sexual, após decidir perder sua virgindade com um homem inteligente e experiente. Ela conhece Irwin, um professor de matemática com quem a tem sua primeira relação. Contudo, a cena não termina bem, pois Esther tem uma hemorragia violenta após o ato, sendo socorrida por Joan Gilling, que já se encontrava fora da clínica psiquiátrica. Segundo Rollyson (2015, p. 115), “a Sylvia protestante não parecia nutrir culpa alguma quanto a sexo”. Na vida de Plath, seu encontro com Irwin também é desastroso, pois “ela voltou do encontro nervosa, sangrando copiosamente. Admitiu que Irwin a estuprara” (ROLLYSON, 2015, p. 119). Cabe então à sua colega de quarto, Nancy Hunter, ajudá-la, ligando para Irwin, pedindo para levar Sylvia ao hospital e pagar pelo tratamento. A trama segue com o término do namoro entre Esther e Buddy Willard, fato que acontece na vida de Plath, uma vez que não quer se ver presa a Dick Norton, seu namorado, por não amá-lo. O desfecho da trama se dá com uma reunião esperada por Esther, com os diretores da instituição psiquiátrica, juntamente com a Dra. Nolan para saber se Esther estaria apta para viver sua vida. O que na obra é omitido, pois não há narração após a entrada na sala da protagonista com os diretores e a médica. A narradora faz a escolha de deixar algo no ar, destacando que “os olhos e os rostos se viraram na minha direção, e guiada por eles, como se puxada por um fio mágico, entrei na sala” (PLATH, 2014, p. 274). E, nessa perspectiva, os leitores não têm ideia do que se passa posteriormente. No entanto, na vida real, é sabe-se que a saída da clínica de fato acontece, e que Sylvia Plath vai de encontro ao retorno das atividades acadêmicas na Smith College, seguindo com o desenrolar de uma situação tumultuada por sua aparente fama na universidade e no meio editorial, seu talento excepcional para a escrita, seu futuro casamento e seu suicídio um mês após o lançamento de A redoma de vidro. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Considerações finais

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A literatura confessional parece-nos de fato estar mais presente na vida dos leitores, seja pela curiosidade em saber sobre o outro, seja pela verossimilhança que encontramos na subjetividade alheia. Assim, cada vez mais temos a publicação das escritas de si, ou como também chamamos escritas do eu. É através da difusão da poesia confessional, na década de 1960, nos Estados Unidos que o movimento confessional e a literatura intimista ganham forma tal como os conhecemos atualmente. Escritores como Robert Lowell, Sylvia Plath e Anne Sexton, dentre outros, exploram taboos para a sociedade, permitindo assim, que a exposição da vida privada e os conflitos pessoais se tornassem assunto de discussão com liberdade e sem pudor. A vida e a obra da escritora norteamericana Sylvia Plath ecoam no mundo literário, trazendo um misto de conflitos e revelações, o que a torna assunto para estudos acadêmicos dos mais variados. É inegável seu papel na poesia confessional norteamericana, moldando, de forma peculiar, um estilo agressivo, conflitante, espontâneo e catártico. Seu único romance – A redoma de vidro – não fica atrás; revela sua proeza para escrita, seu humor, inteligência e, acima de tudo, abre-nos portas para a sua vida através dos olhos de uma personagem cativante e atormentada. Vemos a trajetória de Esther Greenwood do ponto de vista de Sylvia Plath, possibilitando que nossos sentimentos se misturem aos da narração; ora de forma dissimulada, ora de modo escancarado, rimos e sofremos com suas experiências de vida. O trabalho, portanto, traz a discussão, a literatura intimista, a crescente propagação dessas leituras, o gênero confessional romance biográfico, a obra plathiana e a grande contribuição de Sylvia Plath para a literatura norteamericana, assim como para a literatura confessional.

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A melancolia e o mito do duplo na obra O tigre na sombra, de Lya Luft1 La melancolía y el mito del doble en la obra O tigre na sombra, de Lya Luft Rejane Ribeiro da SILVA2 Liliane Maria JAMIR E SILVA3 Resumo: O homem é um ser fabulador, criador de narrativas reais e ficcionais, nas quais e pelas quais adquire sentido o seu viver. Como marca da modernidade, o romance surge em meio a uma sociedade em profunda transformação e busca metafísica do ser. Em consequência, o gênero romanesco, chamado por Lukács de romance da desilusão, representa, através de suas personagens e tramas, a mímesis de um ser fragmentado e em constante procura de sentido. Na contemporaneidade, a melancolia de uma ausência essencial marca uma literatura mais intimista, por vezes introspectiva, mas, ao mesmo tempo, universal e reflexiva. Com o intuito de observar tais características na narrativa contemporânea, analisamos, enquanto corpus dessa investigação, a obra O tigre na sombra, da escritora Lya Luft, cuja personagem principal e narradora sofre o drama do preconceito, da traição, das complicadas relações familiares, tão recorrentes nas ficções reais representadas na obra, também, pelo mito do duplo, uma simbologia que remonta ao texto bíblico, mas atravessa a história da literatura, trazendo, em seu cerne, a busca pelo equilíbrio de um eu cada vez mais fragmentado. Com essa intenção, recorremos a alguns teóricos da sociologia, da filosofia, da literatura e da psicologia, a fim de compreendermos de que maneira a obra literária atual, em específico a citada, reflete tais elementos dessa nova realidade em sua composição. Palavras-chave: Literatura intimista. Melancolia. O mito do duplo. Lya Luft. Resumen: El hombre es un ser fabulador, creador de narrativas reales y ficcionales en las cuales y por las cuales adquiere sentido su vivir. Como marca de la modernidad, la novela surge en medio de una sociedad en profunda transformación y búsqueda metafísica del ser. En consecuencia, el paradigma novelístico, llamado por Lukács de romanticismo de la desilusión, representa a través de sus personajes y tramas la mímesis de un ser fragmentado y en constante búsqueda de sentido. En la contemporaneidad, la melancolía de una ausencia esencial marca una literatura más intimista, por veces introspectiva, pero a la vez universal y reflexiva. Con el objetivo de observar tales características en la narrativa contemporánea, analizamos como corpus de esta investigación la obra O tigre na sombra, de la escritora Lya Luft, cuyo personaje principal y narradora sufre el drama del prejuicio y de la traición de las complicadas relaciones familiares, tan recurrentes en las ficciones reales, representadas en la obra incluso por el mito del doble, una simbología que remonta al texto bíblico y que atraviesa la historia de la literatura, trayendo en su cerne la búsqueda del equilibrio del yo cada vez más fragmentado. Para ello, recurrimos a algunos teóricos de la sociología, de la filosofía, de la literatura y de la psicología, a fin de comprender de qué manera la obra literaria actual, sobre todo en la obra citada, refleja tales elementos de esa nueva realidad en su composición. Palabras clave: Literatura intimista. Melancolía. El mito del doble. Lya Luft.

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Artigo adaptado de monografia apesentada em 2017 ao curso de Especialização em Literatura Brasileira | FAFIRE, publicado na revista Lumen, Recife, v. 27, n. 2, p. 85-99, jul./dez. 2018. 2 Pós-graduada em Literatura Brasileira | FAFIRE | graduada em Letras: línguas portuguesa e espanhola | UFPE | E-mail: profrejane85@gmail.com 3 Doutora em Literatura e Cultura | UFPB | Professora do Curso de Letras | FAFIRE | orientadora da pesquisa | E¬mail: lilianejair@uol.com.br 1

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Rejane Ribeiro da Silva | Liliane Maria Jamir e Silva

Introdução

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Foi no Romantismo que a literatura brasileira passou a adquirir ares nacionais, trazendo a primeiro plano o elemento indígena como fonte de nossa brasilidade. Mas, de forma romântica e idealizada, o índio-herói ainda não nos identificava enquanto povo brasileiro, por sua vez, miscigenado. Sendo assim, os modernistas buscaram romper com essas ideias europeizadas do “bom-selvagem” de Rousseau e propuseram, literariamente, a construção da identidade nacional baseada nas três raças que a compuseram: a indígena, a negra e a branca, tendo a obra Macunaíma, de Mário de Andrade, como exemplo de sua principal vertente. Com isso, a literatura brasileira sofreu uma gama de transformações estéticas, cujo marco inaugural, nas terras tupiniquins, deu-se com a Semana de Arte Moderna, através das inovações trazidas da Europa e fagocitadas por nossos artistas vanguardistas. Este rompimento ideológico modernista causou uma revolução no modo de conceber a literatura. No plano estético, nossa literatura ganhou liberdade e variedade em todas suas nuances: de gênero, de estrutura, de tema. Nessas novas veredas literárias, surgiram grandes escritores da literatura dita intimista, introspectiva, individualizada. Mudou-se, portanto, o foco narrativo, e com ele toda a narrativa toma uma nova perspectiva: do eu para o outro, do dentro ao exterior. Desta maneira, a busca pela identidade nacional coletiva é rebelada e tem-se a busca pelo ser humano, seus desafios, desalentos e prospecções. Parece-nos que a literatura brasileira pós-modernista ganha sua maturidade estética, ao passo que os temas mais íntimos humanos ganham relevo em detrimento de regionalismos e puritanismos estéticos ou temáticos. É na literatura intimista, a nosso ver, que aplicamos e representamos nossa condição contemporânea de vida, numa “era de extremos”: personagens adquirem narrativas cada vez mais complexas, cujos moldes deixam de ser os costumes de determinada sociedade ou época, destacando-se um interior removido pelas angústias humanas (LUKÁCS, 2000). Não obstante, o sentimento de culpa cristão, deveras abordado pelos românticos, traz a melancolia de um ser em busca de um eu em relação a um nós cada vez mais heterogêneo e disforme. Com isso, surge uma nova literatura ou prosa do mundo. Lukács chamou-a de romantismo da desilusão, pois tal literatura se insere numa sociedade desencantada do mundo, devido à racionalização e à intelectualização. Desse modo, a crença no sagrado continua viva, mas menos latente e crível. O conhecimento trouxe legitimidade à ciência e, em contraponto, a não credulidade no mítico. Mas, de que forma esse niilismo se apresenta na literatura? Como a tessitura do romance moderno reverbera a voz do ser contemporâneo, fragmentado? Seria, como veremos, através de uma narrativa intimista e introspectiva, a exemplos de Dostoiévski, Clarice Lispector, entre outros, cujas obras são constantemente dissecadas pela crítica literária, e de Lya Luft, escritora brasileira, da qual a obra O tigre na sombra será analisada no corpus desta pesquisa. Esse intimismo é revelado, na obra, através da melancolia de um ser/personagem em desacordo com o mundo e com uma linguagem metafórica utilizada pela autora. A principal metáfora escolhida por Lya é a do espelho, junto ao mito do duplo, criando uma escrita reflexiva e, ao mesmo tempo, poética e crítica, ao passo que aborda elementos como a não aceitação do divergente, pela sociedade, e as complexas relações humanas. Na crença da Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A melancolia e o duplo na obra O tigre na sombra, de Lya Luft

afirmação da Nancy Huston, em seu A Espécie Fabuladora: um breve estudo sobre a humanidade, reiteramos: “Sim, por meio da literatura, podemos experimentar o que há de divino em cada um de nós (e em nenhum outro lugar!). Através dela, em segredo, em silêncio, de maneira efêmera, mas muito real, nos tornamos deuses” (2010, p. 132). E, ao considerar a missão ética da literatura de “mostrar-nos a verdade dos humanos, uma verdade sempre mista e impura, tecida de paradoxos, questionamentos e abismos” (ibidem, p. 133), far-se-á, neste artigo, a análise do romance luftiano.

Lya Luft, uma escritora de nosso tempo Aos 80 anos de idade, a escritora Lya Luft é uma figura feminina que se destaca na literatura brasileira. Portadora de um discurso firme acerca de seu fazer literário e de sua condição de mulher e escritora na atualidade, não se calou acerca da realidade extraliterária, por meio de artigos de opinião semanais numa revista de grande circulação nacional, o que fez com que muitos a criticassem e reduzissem o seu valor como escritora. Sua concepção acerca do fazer literário pode ser visto em vários depoimentos e entrevistas, inclusive em alguns de seus livros: Sou dos escritores que não sabem dizer coisas inteligentes sobre seus personagens, suas técnicas ou seus recursos. Naturalmente, tudo que faço hoje é fruto de minha experiência de ontem: na vida, na maneira de me vestir e me portar, no meu trabalho e na minha arte/ Não escrevo muito sobre a morte: na verdade ela é que escreve sobre nós – desde que nascemos vai elaborando o roteiro de nossa vida/ O medo de perder o que se ama faz com que avaliemos melhor muitas coisas. Assim como a doença nos leva a apreciar o que antes achávamos banal e desimportante, diante de uma dor pessoal compreendemos o valor de afetos e interesses que até então pareciam apenas naturais: nós os merecíamos, só isso. Eram parte de nós./ O amor nos tira o sono, nos tira do sério, tira o tapete debaixo dos nossos pés, faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas aparentemente superados, mas também com insuspeitada audácia e generosidade. E como habitualmente tem um fim – que é dor – complica a vida. Por outro lado, é um maravilhoso ladrão da nossa arrogância. / Quem nos quiser amar agora terá de vir com calma, terá de vir com jeito. Somos um território mais difícil de invadir, porque levantamos muros, inseguros de nossas forças disfarçamos a fragilidade com altas torres e ares imponentes. / A maturidade me permite olhar com menos ilusões, aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranquilidade, querer com mais doçura. / Às vezes é preciso recolher-se4.

O interesse por essa gaúcha fez-nos descobrir seus romances, a partir dos quais vislumbramos uma ficcionista, cujo íntimo mostra-se desnudado através de um lirismo próprio e de tramas, cujos fios condutores são os relacionamentos cotidianos, a aceitação de si perante a sociedade, o embate entre o eu e o outro e reflexões acerca do ser humano.

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Trecho retirado do site: < http://www.releituras.com/lyaluft_bio.asp> Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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A experiência introdutória com o gênero romanesco da autora deu-se através de O tigre na sombra, objeto de análise do presente trabalho e seu mais recente romance5, escrito por Lya aos 74 anos de idade. A partir daí, aprofundamo-nos nos abismos de sua escrita e atrevemo-nos a conhecer um pouco mais sobre essa escritora, que também é tradutora de autores como Virgínia Woolf, Thomas Mann, Herman Hesse, dentre outros; ganhadora de vários prêmios literários nacionais, mãe de quatro filhos, professora, ou seja, uma mulher polivalente como a maioria das mulheres modernas. Sua literatura – dita intimista ou introspectiva pelos críticos literários, ao modo de Clarice Lispector, James Joyce, Kafka, e tantos outros nomes importantes – destaca-se na literatura feminina atual. Suas personagens principais são mulheres inseridas numa sociedade patriarcal, cujo preconceito se dissolve nas teias sociais de forma quase imperceptível, mas voraz, como afirma com sagacidade Maria Osana de Medeiros Costa (1996, p. 17): “especificamente, a travessia de Lya Luft faz-se sob a forma de denúncia e ridicularização das normas impostas pelas instituições sociais. A mulher está aí integrada no jogo cultural, ocupando o espaço doméstico como se fosse um espaço de representação”. Deparamo-nos com esse tom de denúncia luftiano em O tigre na sombra quando a narradora-protagonista diz que, “além de tudo eu me recusava a fazer o que, com ou sem defeito, se esperava das boas meninas: fazer alguma coisa útil. Não pode dançar, mas pode bordar. Não pode jogar, mas pode cozinhar” (LUFT, 2012, p. 37). No entanto, a temática feminista está tão implícita em sua obra quanto sutil, e o que nos ficou mais evidente e sobressaltado nela foram as sombras, o tom melancólico, de descontentamento e desilusão modernos, que lhes dão o cunho pessimista, intimista e que carregam. E, em O tigre na sombra, talvez por ser sua obra mais recente, essa tônica se faz ainda mais presente. Os temas de sua prosa são os complexos relacionamentos diários, principais fios condutores dos enredos luftianos, marcados pelas incompreensões, buscas de identidade, preconceitos, encontros e desencontros. Ciente dessa perspectiva, a própria autora ressalta, em depoimento, que não se pode esquecer também que escrevo propondo uma releitura dos valores familiares e sociais de meu tempo: cada um de meus romances pode e deve ser lido como denúncia da hipocrisia, da superficialidade e da mentira dos tipos de relacionamentos mais estranhos ou mais comuns. Não é apenas o imponderável e misterioso que me interessa, mas o grande desencontro humano6.

Esse mergulho nas profundezas do humano, em Lya Luft, remete-nos à declaração de Walter Benjamin: que nenhuma narrativa “está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele” (BENJAMIN, 2012, p. 201). Essa característica tipicamente ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Escrito em 2012, O tigre na sombra marca a volta de Lya Luft à escrita de romances, já que passara os anos anteriores escrevendo livros de ensaios, poemas, contos. Como a própria autora define sua obra, “o livro é de novo uma elaboração da minha fantasia sobre o drama da existência humana”. Palavras retiradas de uma entrevista que a mesma concedeu ao programa Sempre Um Papo. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=BUMLrf0PEvA > Acesso: em 14 jul. 2016. 6 Trecho de depoimento da escritora Lya Luft à Revista Evidência, em 26 de julho, 2017. Ver referências. 5

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A melancolia e o duplo na obra O tigre na sombra, de Lya Luft

romanesca faz-se ainda mais latente no romance contemporâneo, iniciada durante o movimento romântico, ao perder-se cada vez mais o caráter de narrativa, enquanto história contada, e tornar-se mais empírica, portanto, menos heroica e exemplar: O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive (BENJAMIN, 2012, p. 201).

Lya Luft, portanto, reverbera a condição sui generis de uma prosa feminina, em consonância com o entorno que a cerca e com todas as mudanças pelas quais o romance passou desde a sua criação. Torna-se porta-voz de uma modernidade ambígua, inconstante e melancólica – cujas narrativas reais confundem-se com as ficcionais – em que o fazer literário transborda do interior de seus narradores, em tom quase confessional.

Melancolia e intimismo em O tigre na sombra Desde a origem do termo, que remonta à Grécia – cujos sintomas eram atribuídos a castigos dos deuses – passando pela teoria humoral de Hipócrates, a partir da qual “a concepção de doença deixa de ser vista como proveniente de um sobrenatural e passa a ser pensada em termos de um desequilíbrio humoral” (SANTA CLARA, 2009, p. 3), a classificação atual costuma ser empregada de três diferentes maneiras, conforme dispõe Zeggio: (1) um sintoma (estado de tristeza ou humor deprimido); (2) uma síndrome, em que os sinais e sintomas tipicamente envolvidos no transtorno depressivo maior decorrem de uma condição médica geral ou do uso de alguma substância; (3) uma psicopatologia, denominada Transtorno Depressivo pela CID-10 (Organização Mundial da Saúde, 1993) e Transtorno Depressivo Maior pelo DSM-V (American Psychiatric Association, 2013) (ZEGGIO et al 2015, p. 15).

O fenômeno da depressão intriga a humanidade, que tenta encontrar meios para preveni-la ou superá-la, apesar de algumas vezes estar ligada à genialidade de alguns intelectuais. Características como “tristeza, perda da capacidade de sentir prazer, falta de interesse, sentimento de inutilidade, culpa excessiva, fadiga, dificuldade de concentração, retardo psicomotor, insônia ou hipersonia, entre outros” (ZEGGIO et al, 2015, p. 15), são sintomas dessa doença, responsável por prejuízos relevantes na vida de muitas pessoas, cada vez mais cotidianamente presentes na contemporaneidade, chegando à máxima subjetiva de ser a depressão “o mal do século”. Levando tal pressuposto ao movimento literário contemporâneo, e tomando em conta o que Candido propagou em seu Literatura e sociedade, só podemos entender o literário

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fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno (CANDIDO, 2006, p. 13, 14).

Nisso reside o cerne da literatura contemporânea intimista: numa sociedade “melancólica”, nada mais coerente que suas representações artísticas tragam a reflexão pessimista e introspectiva do seu tempo. Nas palavras de Adorno, aplicadas a Kafka, mas totalmente aplicáveis a boa parte dos romances contemporâneos, a exemplo dos de Lya Luft, estes são a resposta a uma “constituição do mundo na qual a atitude contemplativa tornou-se um sarcasmo sangrento, porque a permanente ameaça da catástrofe não permite mais a observação imparcial, e nem mesmo a imitação estética dessa situação” (ADORNO, 2003, p. 61). Sendo assim, chegamos a uma das principais características da atualidade, revelada nas diversas formas de arte, em especial na literária, e que chamaremos aqui de consciência identitária-individual-conflituosa, pois à medida que se impõem o particular e o individual, o íntimo, se esbarra no coletivo conectado, globalizado, alinhavado nas teias sociais conflitantes. Leonardi aponta, como traço característico dos tempos atuais, a depressão como um fenômeno cultural:

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São várias e complexas as contingências sociais do mundo contemporâneo responsáveis por um número elevado de pessoas apresentarem um padrão comportamental similar, que recebe o nome de depressão. Quando um comportamento operante é emitido por muitas pessoas de forma independente, mas com efeito similar sobre o mundo, dizemos que se trata de uma prática cultural. Portanto, é possível afirmar que o conjunto de comportamentos que compõe o diagnóstico de depressão consiste em uma prática cultural no mundo atual (ZEGGIO et al., 2015, p. 22, grifo nosso).

A obra literária contemporânea, desse modo, ao ser representação estética dessa epidemia depressiva que parece nos consumir, reverbera no intimismo, na introspecção, na empiria, na quebra da ilusão, ou na violação da forma: seja na diminuição da distância estética e/ ou nas narrativas psicologizantes, esse fenômeno cultural que se apropriou de nosso tempo.

A menina do espelho e o tigre que habita em nós Narrado em primeira pessoa, O tigre na sombra conta a história de uma menina com uma deficiência física: uma de suas pernas é maior que a outra, motivo pelo qual sua mãe a despreza. Sua irmã mais velha e “perfeita” torna-se o centro das atenções, a predileta da mãe, mas também sua boneca de cera. Adentremos no mundo de Dolores para entendermos sua construção narrativa: A segunda filha fui eu. A mãe me chamou Dolores. Nome escuro, de sombra e pranto, cheio de ôôôs lúgubres. Escolheu esse nome porque, dizia, sofreu muito para me Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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botar no mundo. Eu lhe dei trabalho desde a hora de nascer, e sempre daria, porque nasci do jeito que sou [...] Eu era em tudo o oposto de Dália: rebelde, difícil, confusa, metida com meus devaneios, oscilando entre euforia e tristeza. Além do mais nasci com esse defeito: uma de minhas pernas é mais curta do que a outra. Não é muito, mas eu ando de um jeito feio, levemente inclinada para um lado. Para algumas pessoas, como minha mãe, esse defeito me classifica, como ter cabelo vermelho-escuro e olhos cinzentos. Só que é pior. Acho que ela nunca me perdoou por ser uma das tantas decepções que lhe vincaram a testa e baixaram os cantos da boca — que nunca sorria para mim (LUFT, 2012, p. 13, grifo nosso).

A personagem e narradora sofre com a ausência do carinho da mãe e busca na imaginação a fuga de sua realidade cruel. Surge a metáfora do espelho: “Mas aquilo se repetiu e se tornou cotidiano: havia uma menina no espelho, igual a mim, mas não era eu” (Ibidem, p. 42). É no espelho que a menina encontra um outro eu, livre de qualquer rótulo social: Certa vez tinha a impressão que a menina do espelho me observava. Fechei os olhos, larguei o lápis e saí do quarto sem olhar pra trás. Eu só estava cansada era isso. Era fantasia, era sonho. Mas aquilo se repetiu e se tornou cotidiano: havia uma menina no espelho, igual a mim, mas não era eu. Sempre que ela fazia algo diferente de mim, ou claramente me observava, meu cabelo se arrepiava na nuca como os pelinhos dos braços – eu fechava os olhos e saía correndo, às vezes derrubando a cadeira, sem coragem de voltar a levantar. Depois me acostumei, e nos observávamos mutuamente. No começo, em silêncio. Ela me imitava, mas inesperadamente fazia exatamente o contrário de mim, como ficar imóvel quando eu esboçava um gesto [...] Desde então, quando me olhava no espelho, ora eu via Dôda, ora enxergava Dolores. Frequentemente ela já estava ali à minha espera. Mas sumia tão depressa que nunca pude ver se tinha duas pernas retas ou rabo de sereia. Às vezes ela me chamava e eu entrava para o lado de lá das coisas. Ali não era escuro nem perigoso. A gente podia brincar sossegada e inventar o que quisesse, sem ninguém para me controlar ou olhar com disfarçada pena. Lá eu era normal, caminhava direito e com leveza. Podia até dançar. A esse lugar chamei Casa de Dôda e Dolores (LUFT, 2012, p. 17-18, grifo nosso).

Dolores e Dôda são os dois lados dessa personagem que se sente em desacordo com o mundo e em busca de uma autoafirmação. O tema do duplo, esse embate ambivalente entre dois lados do mesmo ser, é um fenômeno literário conhecido desde a antiguidade. Nomeado primeiramente por Freud como alter ego, e classificado com essa nomenclatura somente no Romantismo – “cunhado por Jean-Paul Richter em 1796 e que se traduz por ‘duplo’, ‘segundo eu’ [...] ‘aquele que caminha do lado’, ‘companheiro de estrada’ (BRAVO in: BRUNEL, 1997, p. 260) –, essa tipologia perpassa toda a história da literatura ocidental e traz em seu cerne a dualidade ‘eu’ e ‘outro’, cujo confronto implica a afirmação ou negação da identidade desse eu. Com seu ápice no período romântico, o duplo continua presente nas obras dos séculos XX e, como vemos, também nas do século XXI. Nicole Fernandez Bravo (In: BRUNEL, 1997, p. 280) afirma, ainda, que “a busca da verdadeira identidade é, de uma ou de outra maneira, o objetivo que persegue as histórias de duplo vistas dentro da perspectiva freudiana”. O mito do duplo na literatura contemporânea, no entanto, vem adquirindo esse aspecto muito mais psicológico, figura do heterogêneo freudiano em contraponto às lendas Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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heroicas, nas quais o duplo era representado na figura do homogêneo: gêmeos ou sósias. Conforme Bravo, a maior parte dos estudos realizados no século XX sobre o duplo privilegia o ângulo psicológico, a começar pela interpretação psicanalítica de O. Rank (1914) que relaciona os diferentes aspectos do duplo na literatura com o estudo da personalidade dos autores, com o estudo dos mitos (Narciso) e das tradições mitológicas; os heróis que se desdobram apresentam uma disposição amorosa voltada para o próprio ego e sofrem de uma incapacidade de amar. Um conflito psíquico cria o duplo, projeção da desordem íntima (1997, p. 262-263, grifo nosso).

Esse conflito psíquico causado pela projeção da desordem íntima, acima relatado, representado na figura do duplo, e, na obra em questão, na outra do espelho, parece assemelhar-se ao conceito de melancolia freudiano, o qual, fazendo a distinção entre luto e melancolia, diz: O melancólico exibe ainda uma outra coisa que está ausente no luto – uma diminuição extraordinária de sua autoestima, um empobrecimento de seu ego em grande escala. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego (FREUD, 2013, p. 2, grifo nosso).

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Parece-nos haver uma relação entre os dois conceitos: a melancolia estaria representada, deste modo, na figura do duplo, pois, se em ambos o ego se encontra dilacerado, literariamente, esse outro no espelho simboliza a busca por um lugar no mundo no qual um dos eus está em desacordo. A própria Lya Luft, que se coloca na personagem em primeira pessoa, revela, em entrevista sobre o lançamento do livro O tigre na sombra, que “A vida de modo geral ela é muito... dura. Ela exige, ela solicita. Então a gente vai ter que criar uns tempos, uns espaços interiores, né... pra... pra... contemplação... do bom, do belo, do estranho, do triste que também faz parte7”. Um desses espaços seria a literatura, cuja linguagem simbólica propõe a discussão de questões humanas mais profundas. A Dôda real e a Dolores do espelho, portanto, são as figurações de uma ambivalência inerentemente humana, constante desde a sua origem, mas acentuada na contemporaneidade pelas demandas de seu contexto. Sobre isso, afirma Berenice Sica Lamas: A jornada do ser humano pela vida é pautada pela aguda consciência das angústias e principalmente da dicotomização – matéria e espírito – do homem contemporâneo, já que um dos maiores problemas do homem moderno é a fragmentação acentuada na entrada do terceiro milênio. E, por conseguinte, as dificuldades que se apresentam para realizar o potencial pleno de cada um (LAMAS, 2004, p. 44).

Também, a metáfora do espelho brinca com a barreira entre o real e o ficcional: “quem se importa com a verdade? Ela é sempre invenção de alguém” (LUFT, 2012, p. 12), afirma a menina. Através da narração pessoal de Dolores, o leitor sofre junto a ela, repugna sua ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 7

Transcrição livre de trecho da entrevista concedida por Lya Luft ao Blog Conhecer tudo (4:13- 4:37), cf. referências. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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mãe malvada, assemelhando-a às bruxas dos contos de fadas. É pelos olhos de Dolores que enxergamos o mundo que a cerca: uma mãe orgulhosa e injusta, um pai conivente, mesmo que a trate com amor, e uma irmã adorada pela mãe: No fundo do corredor um espelho em pé é uma casa de vidro; um espelho deitado é um mar, abismo. Em ambos algo me observa lambendo calmamente as patas. Ele é a vida e a morte, Reais ou com disfarces bizarros: quem se importa com a verdade? Ela é sempre invenção de alguém. [...] Mas o mais interessante eram os silêncios. No silêncio tudo pode acontecer. Quem sabe o que se move em salas vazias, nas casas abandonadas, no fim de um corredor, quando não há ninguém? É como no mar: ninguém consegue imaginar o que existe lá embaixo, coisas que nenhum mergulhador ou instrumento pode detectar: uma realidade mais real que todas. Ou como num espelho em que não se enxerga uma perninha mais curta, e ela não significa nada — porque ali pulsa uma outra realidade (LUFT, 2012, p. 11 e 17).

Esse processo de catarse vivenciado pelo leitor é consequência da construção narrativa dessa narradora-personagem. É pelos olhos de Dolores, como se ela fosse a câmera, e nós, os olhos por trás, acompanhando toda a trama, sob a sua perspectiva. A esse modo de narrar, Beth Brait confere complexidade e profundidade à personagem, pois, se essa forma de caracterização e criação de personagem for encarada do ponto de vista da dificuldade representada para um ser humano de conhecer-se e exprimir para outrem esse conhecimento, então seremos levados a pensar que esse recurso resulta sempre em personagens densas, complexas, mais próximas dos abismos insondáveis do ser humano. Tomando como medida o romance moderno, empenhado cada vez mais em distanciar a personagem dos esquemas fixos que delimitam o ser fictício, teremos que admitir que esse recurso ajuda a multiplicar a complexidade da personagem e da escritura que lhe dá existência (BRAIT, 2000, p. 61).

À medida que a narradora-protagonista tece o enredo da obra, vamos adentrando no seu cotidiano desde o seu nascimento até a sua maturidade. Presenciamos todas as angústias, amores, conquistas, decepções, aspirações que fazem parte da existência humana nela representados. Os conflitos do ser humano em seu meio são mostrados como o são, como na ficção das vidas reais. No romance de Lya Luft, o paradoxo humano aparece em todas suas nuances e possibilidades. Sobre essas características romanescas atuais, Bournneuf e Ouellet afirmam:

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estes desenlaces impõem-se pela sua lógica, pela sua necessidade, pela riqueza da sua significação e os prolongamentos que eles deixam entrever, recomeçam com força para ‘desenlaçar’ as antíteses, as oposições e os conflitos sobre os quais repousam esses romances: fracasso e êxito, atração do nada ou fé nas possibilidades do homem, felicidade e sofrimento, morte e amor ou nascimento (BOURNNEUF; OUELLET, 1976, p. 60).

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É esse aprofundamento na alma humana que nos é dado através da personagem Dolores. Essa introspecção atinge a cada leitor de forma individual, pois quem lê interpreta a seu modo, traz suas experiências de vida e reflete sua própria existência. Segundo Lukács (2000), tais características são notadas em grande parte na literatura contemporânea, a qual chama de romance da ausência ou da desilusão. No caso da obra em análise, o enfoque está na ausência de carinho, na comparação desleal entre o eu e o outro, na exclusão social causada por uma deficiência, mas, acima de tudo, no impasse do viver em sociedade, nas traições, no emaranhado seio familiar, na formação da identidade e nas imposições sociais. Sobre isso, Nancy Huston afirma que, “Para que o eu possa surgir, é preciso fazê-lo existir em meio a vários nós. Como sempre, com os mais ou menos próximos ou ameaçadores eles. Você é dos nossos. Os outros são os inimigos. Esse é o Arquitexto da espécie humana, arcaico e poderoso” (2010, p. 65, grifos nossos). Na sociedade atual, a competitividade exagerada, a comparação desmedida e o isolamento causado pela exclusão dos considerados inadequados fazem surgir vários arquitextos. A vida é repleta de contradições e nossa protagonista sente o pesar do seu caminhar, como expressa no poema que abre o segundo capítulo do livro: Nasci fora do esquadro: um pedaço de mim está sempre sobrando. Não sei caminhar direito nem depressa: então pedi para voar. (Mas asas se partem. Asas pedem elegância.) Melhor fechar os olhos e deixar que as ondas me carreguem: vou poder dançar com os afogados e as criaturas do mar (LUFT, 2012, p. 20).

Mas tinha um tigre, O tigre na sombra, aquele que espreita. Seria ele os medos que perseguem cada ser humano, suas angústias pessoais? As inquietações, a presença da morte cotidiana, pois o “fato de sabermos antecipadamente que vamos morrer e de vivermos na narratividade muda tudo”, e “isso torna nossa espécie paranoica?” (HUSTON, 2010, p. 65). No romance, a narradora nos revela que, Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A melancolia e o duplo na obra O tigre na sombra, de Lya Luft

ao contrário do que as pessoas pensam, uma história não precisa ter começo, meio e fim. Como a vida, as histórias têm idas e vindas e voltas e imprevistos. Antes mesmo de abrir os olhos e tomar consciência total de que acordei. Em muitas manhãs eu sei que o tigre abriu seus olhos, naquele azul-claro de lasca de porcelana, e me observa. Se eu hoje andar na praia, é possível que, se eu me virar, ele esteja me seguindo de longe. Difícil de ser distinguido naquele jogo de cores e luzes ou sombras, com seu pelo listrado. (O meu tigre também nada no mar: o meu tigre é assim) (LUFT, 2012, p. 79).

É como se nossos “tigres” nos espreitassem a todos, esperando para aparecer a qualquer momento, trazendo consigo a outra face, a animalesca, e por vezes cruel e insólita. Com o mesmo tom intimista e contemplativo, aparece o tema da morte: As pessoas morrem demais. A morte: o que ela faz com a gente. Arranca as entranhas, te deixa vazia, por dentro só uma ferida aberta, mucosa inflamada e suja. Você só por obrigação se arrasta num mundo irreal, queria mesmo era ficar na cama. Pessoas chegam, falam, tocam você, dizem coisas sem sentido, o mesmo de sempre, reaja, a vida continua, o mundo não acabou, ele ou ela queria que você continuasse vivendo bem [...] A morte é uma traição. [...] Aí sabemos que, sim, a gente está de castigo, está no escuro, está no nada (idem, p. 74-75).

O que atribui à obra uma poeticidade mórbida, não somente pela presença de poemas a cada introdução dos quatro capítulos, mas pela linguagem metafórica de sua prosa. Na interação texto-contexto, numa sociedade marcada, concomitantemente, pelo apego às coisas materiais e pelo sentimento de culpa; pela intolerância e, ao mesmo tempo, pelo crescimento da solidariedade – paradoxos de nosso tempo –, nada mais coerente, como personagens romanescos “que se sentirão culpadas exatamente porque incapazes de remir sua condição de fraqueza e de vaidade, porque incapazes de resistir ao mecanismo do mundo que as ameaça, inadequadas à força – criadora e ao mesmo tempo destrutiva – da existência” (MAGRIS, apud MORETTI, 2009, p. 102). Essa inadequação frente às forças da existência também é mostrada nas reflexões acerca da alteridade da personagem, no tom bastante confessional dos monólogos interiores: Ninguém mais saberia lhe dar o seu nome nem o seu destino. E o que ela era nunca era o mesmo, mas união e ruptura e encontro e isolamento. E o que alguém é, ninguém jamais sabe. Nem pais nem filhos nem amigos nem amantes, ninguém. Pois não conhecemos uns aos outros, sombras que se cruzam num corredor mal iluminado (LUFT, 2012, p. 42).

A tessitura profunda de Lya, apresenta-nos, mais uma vez, o humano, cujo interior adormecido, a qualquer momento, pode revelar-se de forma surpreendente, pois a dualidade bem e mal é característica inerente e contraditória, mas, acima de tudo, humana. A história de Dolores não tem um desfecho idealizado e feliz. O único fato é que a personagem tem certeza da escolha que fez: não voltar a se relacionar com seu ex-marido. Aliás, felicidade é algo raro em O tigre na sombra, sempre fugaz e escorregadia, e viver é quase um enigma no qual as respostas muitas vezes nunca vêm: Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Talvez eu não precise saber o que fazer. Talvez não haja nada para ser entendido. O mar vai e vem, e vem e vai, e no seu tumulto permanece, enquanto nós humanos lutamos, queremos descobrir, achamos que sabemos – e a um embate de água e espuma tudo se desmancha como se nem tivesse existido. Castelos de areia, bichos formados com conchas e ilusão. Como dizia a minha Vovinha, isso de realidade é bobagem: cada um inventa a sua, o avesso pode ser o certo, no espelho pode estar a vida, e tudo aqui fora ser um sonho (LUFT, 2012, p. 126).

Reconhecida a tônica reflexiva nesse fragmento, como em toda a obra da autora, como também a influência freudiana, achou-se necessário, como interessante, adentrar um pouco mais no âmbito psicológico. Com esse intuito, buscamos Freud, que postulou a existência de três fatores responsáveis pelo sofrimento humano: O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro (FREUD, 1997, p. 25, grifo nosso).

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O sofrimento causado pelo outro, como afirmou o psicanalista, é o mais danoso e menos aceitável pela raça humana, por ser “uma espécie de acréscimo gratuito”; ou seja, não aceitamos que o outro fira nosso ego e nos faça sofrer, pois “nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desesperadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou seu amor” (ibidem, p. 32). Ainda, segundo Freud, uma das maneiras de evitar o sofrimento seria a satisfação dos instintos, ou seja, a volta ao primevo, nossa condição primeira de animal. Talvez por isso Lya aborde temas como o grotesco e a irresistibilidade pelos instintos perversos, em muitas de suas obras.

Considerações finais Finalizamos este artigo pelo começo da narrativa luftiana, na qual a narradora avisa que as pessoas foram despejadas neste mundo para atrapalhar tudo: Eu observo e registro. Eu falo e escrevo. Eu sangro. Sangro esta narrativa como se me escorresse dos pulsos abertos. Quando estavam de bom humor os deuses abriram as mãos e despejaram sobre a terra os oceanos com seus segredos, os campos onde corre o vento, as árvores com mil vozes, as manadas, as revoadas – e, para atrapalhar tudo, as pessoas.

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A melancolia e o duplo na obra O tigre na sombra, de Lya Luft

Mas onde está todo mundo? Buscando se anestesiar ou obter respostas, atrelados às mesmas incansáveis perguntas, como, quando, quanto, por quê, por que eu? Eu, a menina da perna curta, falava com a menina do espelho e criava um filhote de tigre no fundo do quintal. Quando lançaram a minha sorte os deuses estavam sombrios. E assim começa esta complicada história (LUFT, 2012, p. 11, 12).

Podemos concluir que, através de uma história tecida de metáforas, poeticidade, melancolia e exaltação da interioridade, O tigre na sombra revela-se a materialização literária do discurso de uma escritora contemporânea, cuja vida está impregnada por marcas de seu tempo. Uma época repleta de ambivalências, em que o conhecimento científico, médico, tecnológico tornou-a deveras complexa, e nisso o ser humano passou a ser refém de suas possibilidades e escolhas, fragilizado psicologicamente. Enquanto recurso estético, o mito do duplo é sintoma “da crise da fé do homem moderno que substitui a transcendência pela mercadoria” (BRAVO, 1997, p. 278), crise cada vez mais acentuada na contemporaneidade. Assim, a metáfora da menina do espelho e o conceito de melancolia freudiano convergem no mesmo sentido: desvelar um ego fragilizado, representado na obra pela personagem e narradora Dolores, que busca sua afirmação perante um mundo, por muitas vezes, hostil.

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Ao lado da ilusão mais tentadora: um breve estudo sobre a imaginação poética e o devaneio no conto Rútilo nada, de Hilda Hilst1 Alongside the most seductive illusion: a brief study about the poetic imagination and reverie in the short story Rútilo nada, by Hilda Hilst Ivon Rabêlo RODRIGUES2 Vilani Maria de PÁDUA3 Resumo: Este artigo tem como propósito analisar o conto Rútilo nada, da escritora paulistana Hilda Hilst, tomando como enfoque a linguagem poética. Além de apresentar a ótica metafísica da autora acerca da humanidade, presentificada nas figurações da sexualidade, do amor e da morte, os conflitos observados no enredo do conto questionam de maneira obstinada a visão limitada de um mundo hipócrita e, por isso mesmo, violento. A linguagem poética em Rútilo nada se torna mensagem/informação de fácil absorção no caso de o leitor render-se à emotividade expressa pelas imagens do devaneio. Na escritura da autora, percebe-se que os meios para se chegar à íntima faceta do ser dos personagens narradores encontram-se no manuseio da linguagem, nos recursos explorados em um nível incomum e exigente, pois que requerem nossa cumplicidade em um pacto de adesão inconteste. Utilizamos, neste trabalho, como apoio teórico, os estudos sobre imaginação poética e devaneio presentes nos ensaios de Gaston Bachelard (1988), as premissas sobre os recursos da linguagem poética estabelecidas por Octavio Paz (2012), assim como o estudo sobre a poesia e a prosa feito por Cristóvão Tezza (2013) e as considerações de Jean-Paul Sartre (2015) sobre os meandros de elaboração estética da arte literária. Palavras-chave: Devaneio. Narrativa. Hilda Hilst.

57 Abstract: This paper has the purpose of analyzing the short story Rútilo nada by the Brazilian writer Hilda Hilst, taking as a focus the poetic language as well as present the author’s metaphysical perspective on humanity, represented in the figurations of sexuality, love and death, the conflicts observed in the plot of the story stubbornly challenge the limited vision of a hypocritical and therefore violent world. The poetic language in Rútilo nada becomes easily absorbed as a message/information in case the reader surrenders to the emotion expressed by the images of reverie. In the author’s writing, we can notice that the way to reach the intimate face of being from one of the narrative characters are in the handling of the language, in the resources explored at an unusual and demanding level, since it requires our complicity in an uncontested pact of adhesion. In this paper, we used the theoretical studies about poetic imagination and reverie present in the essays by Gaston Bachelard (1988), the principles about the poetic language resources established by Octavio Paz (2012), as well as the study about poetry and prose by Cristóvão Tezza (2013) and the considerations of Jean-Paul Sartre (2015) about the aesthetic elaboration of literary art. Keywords: Reverie. Narrative. Hilda Hilst.

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Artigo adaptado de monografia apesentada em 2017 ao curso de Especialização em Literatura Brasileira | FAFIRE e publicado na revista Lumen, Recife, v. 27, n. 2, p. 69-83, jul./dez. 2018. 2 Especialista em Língua e Literatura Inglesa | FAFIRE/Recife/PE | Especialista em Literatura Brasileira | FAFIRE/Recife/PE | Mestre em Literatura e Interculturalidade | UEPB/Campina Grande/PB | E-mail: ivonrabelo@hotmail.com 3 Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada | USP | Professora da FAFIRE e orientadora do trabalho | E-mail: vilanip@prof.fafire.br 1

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Introdução

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A poeta, ficcionista, cronista e dramaturga paulistana Hilda Hilst (1930-2004) é considerada uma das maiores escritoras em língua portuguesa, sendo flagrante em sua obra, seja em prosa ou em verso, a presença de temáticas que subvertem normas e preceitos sociais já gastos e que rompem com as concepções moralistas acerca do ser humano. Sendo assim, sua criação subverte também as formas literárias, como meio de demostrar sua insatisfação com o mundo e com a arte, ao agir sobre a fatura das obras de forma intensa e revolucionária, dando-lhes uma configuração única e pessoal. Este artigo tem como propósito analisar o conto Rútilo Nada, tomando como enfoque um elemento que confere ao texto parte substancial da sua subversão e densidade, a saber, a linguagem poética, fazendo com que a obra desta autora contemporânea receba a classificação de hermética, por parte de alguns leitores. No trabalho, foram postas em foco as imagens do devaneio e a linguagem poética, na possibilidade de promover uma forma coerente de entendimento acerca do discurso literário. A escritora elabora o conto no recurso do “devaneio” (BACHELARD, 1988), na consciência da linguagem poetizada pelos protagonistas narradores, para abrir uma fresta na ordem do caos estabelecido pela opressão, em uma tentativa de fazer-nos cientes das (des) razões dos sentimentos e ações humanas. Destaca-se, neste artigo, a análise de um conjunto de sete pequenos poemas, inseridos no final do conto e escritos pelo personagem Lucas, um jovem aspirante a poeta. Pode-se dizer que esses poemas, por analogia, enfeixam o universo particular do personagem, representando de maneira perspicaz os temas qualificados como densos e propostos ao leitor pela escrita de Hilda Hilst.

Rútilo Nada: a tentativa humana de relação com o infinito Em Rútilo Nada, um de seus textos em prosa mais incensados pela crítica, Hilda Hilst dá voz a duas instâncias narrativas principais e convoca outros múltiplos modos narrativos para contar a história da paixão entre dois homens, sendo um deles já maduro, casado, pai de uma filha cujo jovem namorado (chamado Lucas) torna-se o seu amante. A relação amorosa entre os dois personagens termina em uma grande tragédia: um violento suicídio e a tentativa de refazimento desse homem mais velho (chamado Lucius Kod), através do seu relato escrito acerca dos fatos ocorridos, desde o instante do encontro até o desespero do luto diante do corpo morto do jovem rapaz. Nesta obra, as instâncias narrativas deslocam-se entre o passado e o presente, em altos volteios linguísticos, mergulhando-nos em espaços plenos de imagens poéticas a rechaçar todos os tabus de uma relação amorosa não permitida pelo senso comum heteronormativo. Os críticos literários são unânimes ao apontar uma singularidade no estilo de escritura elaborado por Hilda Hilst, mesmo se empenhando em relacioná-la à literatura de vanguarda surgida no Brasil em meados da década de 1950. Para que tal afirmação adquira um maior valor persuasivo, é necessário sempre nos voltarmos ao reforço das palavras da própria escritora, nas quais ela explica em depoimentos Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Ao lado da ilusão mais tentadora: um breve estudo sobre a imaginação poética e o devaneio no conto Rútilo nada, de Hilda Hilst

o propósito de promover a sua arte vinculada a certos padrões de complexidade, sejam eles temáticos ou estruturais: Meu trabalho tenta perceber o que passa, o que acontece no homem naquela porção que tem a ver com suas raízes mais profundas. Todo exterior é perecível, só a tentativa humana de relação com o infinito é que é permanência. [...] Há leitores que acham, por exemplo, que o meu texto tem uma sintomologia esquizofrênica, do grego schiz – quebrado, partido – e phrenós – alma, inteligência, espírito, coração, diafragma. Se você compreende a real condição do homem, isso talvez te leve à morte ou à loucura. [...] Daí então talvez erigirmos diante de nós mesmos um escudo, a viseira, a couraça: talvez seja a possibilidade de continuarmos vivos, ao lado da ilusão mais tentadora – o amor (HILST apud RIBEIRO, 1999, p. 86).

Tocar em questões relativas ao espaço mais íntimo do ser humano, perscrutar, ao modo da filosofia, os entraves, as angústias, os questionamentos surgidos ao longo do período de duração da vida, exige do escritor um mergulho intenso de encontro ao incognoscível. Tal empreitada demanda uma configuração textual igualmente profunda, tanto em seu discurso ideológico quanto em seu arranjo verbal.

Lucius Kod: o âmago cada vez mais complexo De natureza essencialmente plurissignificante, a linguagem poética toma corpo na imaginação dos produtores do artefato literário (escritores/autores) e se intensifica na atitude dos consumidores (leitores) diante da possibilidade de imprimir inúmeros significados ao que é dito pelo texto. Entretanto, no percurso da leitura, ao longo do processo de decodificação do escrito, por vezes ficamos sempre com uma vaga sensação de impotência, tal a grandiosidade do sacrifício de desnudamento e desapego que a poesia impõe a leitores incautos. Pode-se dizer que esse sacrifício se torna uma via de libertação das convenções linguísticas comumente adotadas por nós, desde há muito cristalizadas e que nada mais nos dizem, requerendo uma desapropriação dos nossos “instrumentos [de comunicação] que vão se desgastando pouco a pouco” e que precisam ser “jogados fora quando não servem mais” (SARTRE, 2015, p. 19). No conto, o personagem Lucius Kod se empenha na tentativa de relatar por escrito diversos acontecimentos dos quais foi um dos protagonistas. A possibilidade de tal tarefa se torna quase inoperante. Encarando a dor provocada pela lembrança do amante que havia sido violentado e que, por essa razão, cometera suicídio, Lucius cede o espaço da sua narração a um extenso devaneio no qual se sobrepõem diversas vozes em conflito. Para Gaston Bachelard (1988), a diferença entre um sonho e um devaneio é que no sonhar as imagens oníricas se transformam em elementos que escapam à estrutura da individualização do sonhador, apenas revelando o perfil do ser imutável e propagando a desorganização do “homem sem sujeito”. Ao passo que no devaneio existe uma consciência (cogito, nas palavras do autor) que imprime coerência ao ser e a seu mundo, através das “imagens que ele suscita” (BACHELARD, 1988, p. 146). Conforme o pensamento do autor, essas imagens poéticas provindas do devaneio se ampliam quando nos despertam do nosso relaxamento de “menos-ser”, expressão esta que Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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simplifica o estado de torpor no qual nos encontramos. Ao passarmos para a condição de “mais-ser” provocada pelo devaneio, sentimos a ilusão positiva de que estamos reunindo em torno do nosso próprio eixo existencial os fragmentos vivos do mundo, concretizando a percepção de sermos de fato o alguém que nem sempre havíamos suposto ou sentíamos ser. Após os ocorridos, para reorganizar internamente os fragmentos de todo o processo doloroso, o personagem Lucius Kod dispõe da consciência de si mesmo, revelada através de uma linguagem fartamente poetizada, recurso esse utilizado para fazer enfeixar sobre si os laços suaves que o ligariam a uma compreensão funda. Em seu devaneio, ele nos diz: Onde os começos? Onde? Farpas pontudas emergindo do corpo dos conceitos. Antes o conceito redondo. Liso. Aquela pedra à beira do riacho, aquela que carregam para casa. Tenho que saber dos começos. Os atos não podem ficar flutuando, fiapos de paina desgarrados daquela casca tão consistente, a casca era firme, abriu-se, o delicado foi se desfazendo, círculos, volutas, assim pelos ares, desfazido. Posso deduzir que escapei da casca consistente, que eu estava encerrado ali, não, que o meu corpo era o fruto da paineira, todo fechado, e num instante abriu-se. Abriu-se por quê? Porque já era noite para mim e aquele era o meu instante de maturação e rompimento. Porque fui atingido pela beleza como se um tigre me lanhasse o peito. O salto. O pânico. O que é a beleza? Translúcida como se o marfim do jade se fizesse carne, translúcido Lucas, intacto, luz sobre os degraus ocres de uma certa escada na eloquência da tarde (HILST, 2003, p. 87-88).

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Lucius Kod estabelece uma comparação entre a imagem pontiaguda da farpa e o sofrimento penetrante que ora carrega, afirmando que, para ele, a sensação provocada pela morte do amante foi destituída de qualquer possibilidade de conceituação (“farpas pontudas emergindo do corpo dos conceitos”). Antes do encontro e união com Lucas (“O salto. O pânico”), a experiência de vida que tinha se mostrava satisfatória, estática, uniforme, “lisa” como a pedra à beira do riacho (“aquela que carregam para casa”), ou seja, a visão de mundo petrificada que ele havia internalizado foi abalada ao se perceber diferente, atraído por um outro homem. Constatando que, mesmo com tanto conhecimento, de nada lhe serviu a experiência, quando se percebeu já dentro de uma relação homoerótica, ele busca ajustar-se aos acontecimentos (“Onde os começos? Onde?”), procurando o ponto, o instante no qual ocorreu a grande mudança interna. É isso que ele procura em seu devaneio, ao perceber o tanto de maturidade que se esvai, “flutuando” como fiapos desgarrados. Para conseguir o “instante de maturidade e rompimento”, Lucius Kod transmuta-se mental e emotivamente em fruto, um “mais-ser” produto do longo processo de maturação ao final do qual um ciclo se fecha e outro se avizinha. Desvelando os sentidos metaforizados pela linguagem poetizada, o personagem se reveste de delicadeza e sensibilidade (“atingido pela beleza”), em decorrência do sentimento amoroso que o fulmina ao conhecer Lucas (“como se um tigre me lanhasse o peito”), escapando assim de uma vivência enclausurada em relações amorosas heteronormativas (“escapei da casca consistente”), imprimindo renovação à consciência que tinha de si, como ser humano. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Ao lado da ilusão mais tentadora: um breve estudo sobre a imaginação poética e o devaneio no conto Rútilo nada, de Hilda Hilst

Os recursos linguísticos de que se serve a personagem em seu devaneio são “poderes poéticos do psiquismo”, segundo Bachelard (1988, p. 144): a percepção aguda de sua própria carne, aqui revitalizada pela paixão, torna-se essencial no momento de juntar os fatos e buscar entendimento e aceitação acerca de tudo o que sucedeu. O rompimento com a rigidez de uma vida mecanizada pelas relações estagnadas não ocorre para Lucius Kod sem que ele possa se embrenhar em um caminho desconhecido. Por ser novidade e estranheza, de início, o percurso em direção ao sentimento amoroso o assusta e provoca-lhe o pavor e o pânico. No entanto, a visão daquilo que se encontra no início do caminho escarpado suplanta qualquer desconforto: a beleza do jovem Lucas, autêntica rutilância em meio aos afazeres enfadonhos e obrigatórios (“luz sobre os degraus ocres de uma certa escada na eloquência da tarde”). A palavra “eloquência”, fazendo referência aqui ao sentido renovado que as coisas sem vida do cotidiano assumem, sintetiza o choque provocado pelo encontro, como se tudo, a partir daquele instante, naquele lugar, se dinamizasse, adquirindo um outro significado. Da mesma forma, no momento exato da morte de Lucas, através de suas palavras na carta de despedida, nota-se que, para ele, passa a existir “um acúmulo de significados tomando conta das coisas neste instante” (HILST, 2003, p. 99). Os objetos ao seu redor dialogam com a sua vibração interior, se tornam eloquentes, resplandecem, “crescendo de significados”: a pedra prateada (objeto rutilante) e o livro de poemas, exibindo em sua capa o perfil do poeta que “brilha como a luz da tarde”. Quase incrível se torna perceber o modo como a autora alinhava os elementos de significação simbólica do conto, arrematando um ciclo de nascimento, maturidade e término do relacionamento entre os dois homens, e concretizando-o na luminosidade presente desde o momento do encontro entre os dois personagens (“luz [...] na eloquência da tarde”) até o instante em que a morte impõe o desfecho sobre os amantes. O jovem Lucas deflagra esse instante final ao devanear, em sua carta, confirmando a subsistência da consciência, mesmo durante esse processo “onírico”: Por que tudo brilha e é mais? Apenas porque me despeço? Quando nos beijamos naquela antiquíssima tarde, a consciência de estar beijando um homem foi quase intolerável, mas foi também um sol se adentrando na boca, e na luz azulada desse sol havia uma friez de água de fonte, uma diminuta entre rochas, e beijei a tua boca como qualquer homem beijaria a boca do riso, da volúpia, depois de anos de inocência e austeridade (HILST, 2003, p. 99).

Ainda de acordo com Bachelard (1988, p. 144), “o devaneio é uma atividade onírica na qual subsiste uma clareza de consciência”, sendo essa a consciência que os protagonistas adquirem ao rememorar por escrito sua história, ao dizer-nos poeticamente no que eles haviam se tornado e como se modificaram tanto, desde o instante em que foram surpreendidos pela paixão até o momento em que foram tragados pelo espanto da separação. O filósofo francês Jean-Paul Sartre, em um longo ensaio intitulado Que é literatura?, examinou a fundo a natureza da escritura literária e as razões pelas quais os escritores se empenham em tal empreitada árdua, para, ao final das suas elucubrações, formular sem Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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preconceitos a dura pergunta: para quem se escreve? Clamando, assim, por uma autenticidade na relação que porventura pudesse existir entre os leitores e o texto que se apresenta para ser lido. Analisando tanto a tarefa de escrever em prosa quanto a arte da criação poética e o seu papel nas sociedades ocidentais, logo na primeira parte do texto, o autor afirma que “na verdade, a poesia não se serve de palavras; eu diria antes que ela as serve” (SARTRE, 2015, p. 19), considerando uma pretensa atitude diferencial do poeta ao utilizar-se de recursos incomuns da linguagem para erigir um discurso que propõe aos leitores o ato reflexivo, a tomada de postura, a antipassividade diante daquilo que lhe diz um texto abarrotado de artifícios e estratégias linguísticas, carregado de diversos mecanismos de sedução e sentidos potencializáveis pelo ato da leitura. Em determinado trecho da narrativa analisada aqui, Hilda Hilst nos faz intuir quem de fato é o personagem Lucius Kod, dando voz intrusa a um outro narrador que, em suas elucubrações poéticas, retoma o caminho turbulento das imagens metaforizadas, a fim de nos mostrar o âmago desse personagem tornado cada vez mais complexo:

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Voltavam ao coração os cães de gelo. Ali. Postados. Guardiães. Os olhos embaçados de furor, as presas cintilando. Cães de gelo. Ou lobos de olhar formoso inundados de cio. Ou um só lobo, Lucius Kod, preso numa armadilha jamais pensada, que oco de si mesmo tentou criar-se novo? Cansado de sua própria oquidão tentou verter humores, refazer-se em lago, em luz, mas torcido de ociosidade construiu para seu corpo um barco exíguo cravejado de espinhos, verdes espinhos de um ciúme opulento, úmidos longos espinhos aguçando sua própria matéria de carne, carne de Lucius antes era mansa e tépida, brioso corpo de antes tão educado respondendo rápido a qualquer afago, de mulheres naturalmente, ah sim, naturalmente, mulheres com discursos de várias qualidades […] (HILST, 2003, p. 91).

Por intermédio de uma troca brusca das vozes narrativas, que passa da primeira para a terceira pessoa, a autora faz irromper um Lucius Kod desprovido de sua face definitiva, no entanto, já abarrotado de sentimentos a serem deslindados pela própria ação devaneante da linguagem. Lucius está “oco”, acuado por tudo o que aconteceu, mas especialmente pela patrulha social; todos o julgam e ele sofre, tem a mente embotada e em devaneio. Ele não se expressa de modo lógico, ou melhor, a lógica interna é o elemento que o guia. Visto que a autora quis expor o funcionamento da mente perturbada pelo sofrimento, através de um discurso narrativo elaborado no caos em que se encontra o personagem, eis que se insurge essa outra voz narrativa, dizendo bem mais do que o personagem poderia. O efeito que nos causam as palavras rebuscadas deste outro narrador é o de uma vertiginosa intromissão no corpo da própria diegese (“que oco de si mesmo tentou criar-se novo?”), para onde vão todas as novas possibilidades de compreensão das razões do outro e, deste modo, ampliando a compreensão acerca do ser humano em toda sua complexidade. Da linguagem poética, em contraponto à prosa, podemos dizer que, conforme nos assevera Tezza (2003, p. 54) em seus estudos sobre as linguagens da prosa e da poesia, citando o norte-americano T. S. Eliot, ela “não deve ser definida por seus usos”, uma vez que pesa sobre nós, receptores da mensagem poetizada pelo devaneio, as causas de uma ruptura com Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Ao lado da ilusão mais tentadora: um breve estudo sobre a imaginação poética e o devaneio no conto Rútilo nada, de Hilda Hilst

os “modos convencionais de percepção e avaliação que perpetuamente se formam, levando as pessoas a ver o mundo de um modo novo” (TEZZA, 2003, p. 54). Sabendo que a linguagem poética carrega em si a capacidade de intensificar a expressão da subjetividade, trazendo à tona suas nuances mais emotivas, ela consequentemente torna o homem consciencioso dos sentimentos velados no “‘substrato do nosso ser’, no qual raramente penetramos” (TEZZA, 2003, p. 54).

Lucas: o ser-imagem na totalidade da palavra O personagem Lucas, quando surge no texto pela primeira vez, é apresentado por sua namorada ao sogro como um estudante de História e aspirante a poeta. O belo jovem escreve poemas nos quais é recorrente a figura de “muros” associados a diversas situações. Tais imagens aparecem no final da narrativa no formato de pequenos poemas enumerados de I a VII, que, fechando o conto com devaneios nebulosos, ao mesmo tempo apresentam imagens límpidas de uma vida contada metaforicamente em detalhes, desde a infância até os obstáculos da maturidade. Percebe-se nesses poemas a arquitetura de um amplo quadro metaforizado, no qual se revela a personalidade de Lucas, ao se despedir, legando à posteridade sua mais íntima natureza (“uma alma velha”). Todo o sentido dos poemas gravita em torno da imagem dos muros, símbolos que assumem nuances variadas em situações e contextos diversos, podendo representar desde a candura de uma infância talvez nunca superada até a dura e inflexível experiência amorosa, passando pela inevitabilidade e urgência de uma vida prática, objetivada em busca de uma solidez proporcionada pela sabedoria e advinda somente com a maturidade. (I) Muros longínquos Na polidora esgarçada dos sonhos. Tão altos. Fulgindo iluminuras. Muros de como te amei: Brindisi. Altamura E muros de chegança. De querença. Aquecidos. Anchos. O tenro entrelaçado à tua fala: Teu muro de criança. (HILST, 2003, p. 100)

No primeiro poema, a voz lírica ecoa a fase inicial da vida de todo ser humano, numa referência à infância distante (“muros longínquos”), a um mundo onírico não mais existente, difícil de ser transposto (“tão altos”) e impossível de ser revivido. A voz de Lucas, no poema, tendo ansiado pela chegada da maturidade e, ao mesmo tempo, sonhando a infância perdida (“teu muro de criança”), rememora a experiência amorosa e a intensidade elevada de tal paixão (“muros de como te amei”). Para simbolizar o percurso de peregrinação da idade mais tenra ao amadurecimento, a voz do poema faz referência a duas antigas cidades da Itália (“Muros de como te amei: Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Brindisi. / Altamura”), cujas posições geográficas estratégicas no sul do país, projetadas em direção ao Mar Mediterrâneo, permitiam que fossem consideradas pórticos de passagem para uma conexão direta com o continente africano, com a Grécia e o Oriente, espaços esses de conquista e expansão para o antigo e já civilizado povo romano. (II) Muros dilatados de doçura: Romãs. Dálias purpúreas. Irmãos adultos Recostados na manhã de chuvas. Muros do encantado da luxúria. Fendas. Nesgas de maciez. (HILST, 2003, p. 100)

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Nas duas estrofes seguintes, acima citadas, o poeta “dilata” a sisudez da imagem de contenção do muro na vida do ser humano, abrindo fendas na crispação (“nesgas de maciez”), através dos elementos da natureza, frutos e flores, em um processo precioso de abrandamento das relações amorosas que se prenunciam logo nos seus primórdios, de modo fraterno, no decorrer das etapas subsequentes da vida (“irmãos adultos / recostados na manhã de chuvas”). Entretanto, não há aqui apenas candura e cumplicidade fraterna, mas também a lascividade, uma carnalidade latente, a unir os corpos irmanados no desejo (“muros encantados da lúxuria”). (III) Muros prisioneiros de seu próprio murar. Campos de morte. Muros de medo. Muros silvestres, de ramagens e ninhos: Os meus muros da infância. Esfacelados. Muros de água. Escuros. Tua palavra: Um mosaico de vidro sobre o teu rosto altivo. Devo me permitir te repensar? (HILST, 2003, p. 101)

No terceiro poema são retomados os dilemas e as incertezas do contrato amoroso, quando os amantes se apercebem reféns de seus próprios sentimentos (“muros prisioneiros de seu próprio murar”), gerando neles o medo do incognoscível (“Campos de morte. Muros de medo”). Os engodos a que estão sujeitos todos os amantes surgem ao longo da relação amorosa e no poema eles têm como representação o verso “Muros silvestres, de ramagens e ninhos”, em uma metáfora dos desenredos e complicações a que são submetidos os sujeitos, quando aninhados no seio do medo que a paixão provoca: medo por não saberem, ao certo, por quais caminhos escuros a paixão poderá conduzi-los e nem para onde ela poderá levá-los. Nessa estrofe única se destaca uma imagem enigmática, a de um vitral: “Tua palavra: / Um mosaico de vidro sobre o rosto altivo”, fazendo-nos refletir acerca da clareza de uma Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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linguagem consciente que pudesse justificar e legitimar a emoção em detrimento da translucidez de um sentimento amoroso abrupto e não permitido. O mosaico de vidro construiria a imagem que vemos nos vitrais, uma cena que se embeleza e se perpetua no instante em que a luz a toca. A luminosidade seria essa tomada de consciência que a tudo esclarece, lançando entendimento e compreensão sobre os espaços ocultos e situações mais obscuras que, por conta de nosso orgulho (“o rosto altivo”) não enxergamos de modo claro, promovendo inclusive a resolução nítida dos dilemas e contradições. Em determinado momento da narrativa, Lucius Kod diz que “ético é descobrir-se inteiro livre como me sinto agora” (HILST, 2003, p. 91), equacionando os termos da questão em prol da solução mais emotiva nesse instante, quando questionado por Lucas sobre as consequências dessa relação (“tua filha vai sofrer, Lucius”), caso fosse descoberta pela filha de Lucius e namorada de Lucas. Sem emitir julgamentos acerca do que se impõe como moral ajustada ao contrato social, nos perguntamos, afinal: quem poderia dizer qual contexto se assume como mais “ético”: o pensar e ponderar sobre os prejuízos da transgressão operada pela relação homossexual, ou o legitimar e ser conivente com a situação na qual os dois homens devam se beneficiar com a grande liberdade proporcionada pela relação amorosa vivida? (IV) Muros intensos E outros vazios, como furos. Muros enfermos E outros de luto Como o todo em mim Na tarde encarcerada Repensando muros. A alma separada de ti Vai conquistar a chaga de saltar. (HILST, 2003, p. 101)

O quarto poema nos indica a intensidade das experiências ao longo da vida do poeta, com todas as dores e deleites que isso pode implicar. “Muros intensos”, “Muros enfermos”, “repensando muros”: são todas expressões a indicar a dubiedade e o paradoxo de que são constituídos os alicerces da existência, justapostos e suturados pela reflexão, esse ato de repensar as práticas adotadas e cultivadas ao longo do tempo de uma vida. Os dois últimos versos do poema de número quatro quebram todas as lógicas levantadas no percurso de uma existência coerente. Eles tomam o aspecto de uma firme voz emotiva que decreta: na ausência do ser amado, há apenas a incerteza que no fundo é a grande ferida da alma, a solidão imensa e o caminho vazio por onde se vai, compelido em um rompante em direção ao nada (“a chaga de saltar”). Os três últimos poemas trazem imagens diversas de muros, sempre qualificados, a indicarem os estágios peculiares por onde se esgueira a vivência (“muros agudos”, “muros loucos, desabados”, “muro máscara”, “muros acetinados”, “muros devassos”, “muros taciturnos”, “muros castos e tristes”, “muros escuros, tímidos”, “muros cendrados”): Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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(V) Muros agudos Iguais à fome de certos pássaros Descendo das alturas. Muros loucos, desabados: Poetas da Utopia e da Quimera. Muro máscara disfarçado de heras. Muros acetinados iguais a frutos. Muros devassos vomitando palavras. Muros taciturnos. Severos. Como os lúcidos pensadores De um sonhado mundo. (VI) Muros castos e tristes Cativos de si mesmos Como criaturas que envelhecem Sem conhecer a boca De homens e mulheres.

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Muros escuros, tímidos: Escorpiões de seda No acanhado da pedra. Há alturas soberbas Danosas, se tocadas. Como a tua própria boca, amor, Quando me toca. (VII) Muros cendrados. De estio. De equívoca clausura. Lá dentro um fluxo voraz De sentimentos, um tecido De escamas. Sangue escuro. Lá. Depois do muro. Criança me debrucei Sobre a tua cinzenta solidez. E até hoje me queima A carne da cintura. (HILST, 2003, p. 102-103)

Os muros representariam não apenas as situações adversas, mas espelhariam a complexidade do próprio ser que se depara com as inúmeras situações da existência. Dentre essas Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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situações está a paixão que acomete todos os seres humanos em um dado momento dessa existência. E aqui, de maneira mais avassaladora, a paixão homoerótica, surgida como um dos grandes interditos da vida. Por intermédio das imagens devaneantes, o poeta nos fala da urgência aguda provocada pela necessidade que o desejo impõe, da grande ilusão de perpetuidade em que se transforma o amor e a liberdade que o acompanha, quando sentidos, como também nos fala dos disfarces com que o amor se apresenta e com que também devemos nos apresentar, em contextos de repressão, para proteger a delicadeza do sentimento vivido (“muro máscara disfarçado de hera”). O poeta nos diz também da pobreza de espírito dos homens tristes, desde há muito oprimidos por seus próprios preceitos (“cativos de si mesmos”), criaturas que não se deram ao conhecimento proporcionado pela união carnal (“sem conhecer a boca / de homem e mulheres”), bem como nos fala o poeta do grande e sedutor perigo envolto nas sombras da dúvida, da timidez em ousar, quando o ser já aquiesce à zona de conforto onde se prostrou. Há, nos últimos versos do sexto poema, uma quadra de extrema beleza poética direcionada a flagrar o contato e a união, para além de carnal, entre os dois homens: Há alturas soberbas Danosas, se tocadas. Como a tua própria boca, amor, Quando me toca. (HILST, 2003, p. 103)

Cremos que a sensação descrita nessa quadra não se dirige apenas aos dois protagonistas do conto, mas também aos amantes de qualquer tempo, envolvidos em relações íntimas de cunho subversivo para os padrões sociais mais ínfimos. A bem da verdade, a carga de intencionalidade de que se reveste o conto escrito por Hilda Hilst foi muitíssimo bem dosada. Tudo converge para explorar a beleza erótica e a atração sensual de uma relação livre, porque íntima e consentida pelo mais nobre e elevado dos sentimentos, o amor. No texto inteiro, não há um instante sequer de concessão aos sentidos que não os trague como a um turbilhão, em direção a uma dignificação do ser na sua totalidade, especialmente nas referências feitas aos sentidos da visão, do paladar e do tato, como podemos constatar nos versos da quadra citada acima. De acordo com as imagens presentes no sétimo e último dos poemas, no “fluxo voraz / De sentimentos” em rebuliço no interior do ser emotivo, existe a crua sensação de confinamento (“equívoca clausura”) provocada pela ligação estabelecida entre os amantes. Equivocada por não haver sido imposta, mas estabelecida com o consentimento de cada um, portanto, não se configurando como prisão, mas sim liame reforçado (“sangue escuro”) e por isso mesmo inviolável e talvez perpétuo. Os muros acinzentados (“cendrados”) que separam o mundo dos amantes do território do heterossexismo repressor foram transpostos pela inocência e candura do poeta, em uma tentativa curiosa de vislumbrar o que haveria do outro lado daquela solidez (“Criança me debrucei / Sobre a tua cinzenta solidez”). No entanto, as consequências do ato desfecharam Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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um castigo doloroso sobre o poeta, passível de cicatrização impossível: a morte, não física, mas a ideia de interrupção irreversível representada nos versos finais: “E até hoje me queima / A carne da cintura”. Por sua configuração em sete partes versificadas, os excertos finais do conto elaboram a simbologia que o numeral sete carrega, representando “a conclusão do mundo e a plenitude dos tempos”, conforme Santo Agostinho (apud CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 828). Nessa totalidade, o numeral mede o tempo histórico do homem sobre a terra, sua peregrinação em direção à divindade. Segundo os autores do Dicionário de símbolos, associando o numeral quatro (a representação da terra) ao numeral três (simbolizando o céu), o sete irá representar a totalidade do universo em movimento. No entanto, para os autores Chevalier e Gheerbrant (2007), o sete encerra uma expectativa ansiosa, já que indica a passagem do conhecido ao desconhecido: “um ciclo concluído, qual será o próximo?” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 828). Sendo o sete “o número da conclusão cíclica e da sua renovação” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 827), as unidades menores que o constituem somam-se harmoniosamente em uma representação dos quatros elementos vitais (fogo, terra, água e ar) e dos três princípios da ciência secreta (a análise, a tese e a síntese), formalizando, assim, o “signo da realização” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 831). Ainda de acordo com a compreensão trazida pelo dicionário dos símbolos proposto pelos autores nos contos e lendas antigos, é fácil perceber que este número (“sete”) expressa também, de modo sequencial, as etapas da evolução, “os sete degraus da consciência”: o número “um” seria a consciência do corpo físico (os desejos e sua satisfação); o “dois” representaria a consciência da emoção (as pulsões mais complexas); o “três”, a consciência da inteligência (a organização do raciocínio); o “quatro”, a consciência da intuição (o inconsciente); o “cinco”, a consciência da espiritualidade (desprendimento da vida material); o “seis”, a consciência da vontade (o conhecimento que passa para a ação); e o “sete” representaria a consciência da vida, dirigindo a atividade humana para o eterno e a salvação. Aplicando a ideia de haver uma simbologia velada em relação ao numeral sete e relacionando cada uma das sete etapas da evolução a cada um dos sete poemas, constatando que o conjunto de poemas representa o trajeto de vida do personagem Lucas, chega-se à conclusão de que eles são o seu testamento pessoal, a cartografia do seu íntimo deixada ao mundo, elencando nele os bens preciosos de um espólio afetivo, suas experiências particulares, seu medos e desejos, conquistas e derrotas, sua história de vida, pois que o homem nada leva como posse material após finda sua existência carnal, a não ser a lembrança das inúmeras e impalpáveis sensações que o assolaram em vida. Assumindo a voz do jovem poeta Lucas, a autora do conto condensa em linguagem poética – e, portanto, devaneante – a significação fundamental da imagem pétrea do muro: “a comunicação cortada, com a sua dupla incidência psicológica: segurança, sufocação; defesa, mas prisão” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 626). Os muros são os impedimentos, tanto erguidos pelo próprio ser, como pelos outros. Barreiras de medo, inseguranças, tristezas, doenças, depressão e, enfim, sofrimento. Tudo isso afasta o ser, um do outro, as alteridades que deveriam conviver em harmonia. Desse modo, o outro também passa a ser um muro, no qual se esbarra, e a convivência fica Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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impossível, insuportável. O humano torna-se um estranho a si mesmo e o outro configura-se como um empecilho. A convivência dos seres humanos como inimigos tem gerado guerras, o mundo fica impossível, intolerante, ainda que todos queiram a mesma coisa, ou talvez até por isso mesmo. A paródia que Lucas faz (“Parodiando aquele outro: tudo o que é humano me foi estranho”), antes de imprimir sua assinatura à carta suicida, nas últimas linhas do conto, remete a uma frase do poeta e dramaturgo romano Públio Terêncio, nascido em Cartago no século II a. C.: “Sou um homem: nada do que é humano me é estranho”. Diferentemente de seu contemporâneo Plauto, comediógrafo que foi, em seu tempo, bem mais apreciado por suas farsas ágeis e alegres, Terêncio foi mais apreciado na Idade Média e na Renascença, sendo muito imitado até os tempos de Molière. O uso que Hilda Hilst faz da remissão ao poeta e dramaturgo latino representa o resultado frustrado da busca empreendida pela trajetória de uma vida que se encerra, ao alcance do entendimento e compreensão acerca das impossibilidades existentes na vida breve do ser, como limitações impostas pelos próprios humanos, além de indicar o grau elevado de erudição do jovem poeta Lucas, uma vez que os personagens criados pelo dramaturgo, em suas obras escritas em versos, pertenciam em sua maioria às classes sociais mais altas e cultas do mundo latino. Por meio de tais recursos estilísticos de elaboração literária, percebe-se que a autora envolve toda a narrativa, por mais fragmentada, polifônica e violenta que seja, em um halo de lirismo talvez nada cândido, como se buscasse no nível da linguagem (em turbulência poética) um contraponto ao turbilhão de eventos ocorridos entre os dois protagonistas. Sendo a palavra o item que reflete e agudiza a experiência de liberdade proporcionada pela paixão, é nela que os personagens se envergam e se enxergam por completo, uma vez que: A experiência poética é irredutível à palavra e, não obstante, só a palavra a expressa. A imagem reconcilia os opostos, mas essa reconciliação não pode ser explicada com palavras – exceto as da imagem […]. Assim, a imagem é um recurso desesperado contra o silêncio que nos invade toda vez que tentamos exprimir a experiência terrível daquilo que nos rodeia e de nós mesmos. O poema é linguagem em tensão: em extremo de ser e em ser até o extremo. Extremos da palavra e palavras extremas, voltadas para as próprias vísceras […] (PAZ, 2012, p. 117).

No mesmo sistema simbólico em que Lucas se desvela, servindo-se da imagem dos muros contra o silêncio da morte que o assombra e o leva embora, o personagem Lucius Kod também se organiza para poder refazer-se da tragédia através do “recurso desesperado” da escrita devaneante, da palavra poetizada, do sentido metaforizado: “Inventar palavras, quebrá-las, recompô-las, ajustar-me digno diante de tanta ferida” (HILST, 2003, p. 85). A linguagem aqui comunicando tanto a agonia da perda quanto o êxtase da descoberta insuspeitada do corpo amoroso do amante, sabendo ser o “eu” dele próprio (Lucius Kod) a mais visceral das descobertas: Escorpião de seda. Pulsando silencioso ali entre as frinchas. Ou eras o outro no quase escuro do quarto. Úmido. De seda. Tua macia rouquidão. Igualzinha à macia Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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rouquidão de uma sonhada mulher, só que não eras uma mulher, eras o meu eu pensado em muitos homens e em muitas mulheres, um ilógico de carne e seda, um conflito esculpido em harmonia, luz dorida sobre as ancas estreitas, o dorso deslizante e rijo, a nuca sumarenta, omoplatas lisas como a superfície esquecida de um grande lago nas alturas, docilidade e submissão de uma fêmea enfim subjugada, e aos poucos um macho novamente, altivo e austero, enfiando o sexo na minha boca. Viscoso. Cintilante. Pela primeira vez o meu olhar encontrava a junção do nojo e da beleza. Pela primeira vez, em toda a minha vida, eu, Lucius Kod, 35 anos, suguei o sexo de um homem. Deboche e clarão na lisura da boca. Ajoelhado, redondo de ternura, revi como os afogados a rua do meu passo, a via (HILST, 2003, p. 96).

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Analisando o trecho acima, chega-se à conclusão de que o homem vivencia o desejo homoerótico pela primeira vez e convoca a linguagem poética para legitimar essa concretização, como se, ao dizer explicitamente sobre si mesmo, ele assim afirma-se sem culpas como amante do próprio genro. Do instante no tempo que levou ambos os homens a se encontrarem e unirem-se em situações extremas (“nojo” e “beleza”) aos atos consumados que trazem à consciência a aceitação do fim do romance entre os dois, esses protagonistas do conto provam pela primeira e única vez em suas vidas a mais nobre das sensações: o amor, esse tal sentimento sem rastro medido. Pela vertigem do devaneio, a aventura da vida para os dois tornou-se lúcida e ilógica. A transformação operada de um ser circunstancial para um outro ser agora totalizado, a passagem de um extremo a outro de ambas as vidas se tornou viável devido às ferramentas de uma linguagem carregada de possibilidades: as imagens poéticas, “extremos da palavra”, de acordo com Octavio Paz (2012).

Considerações finais Para leitores desavisados, a obra de Hilda Hilst representa um desafio gritante e, ao mesmo tempo, um libelo contra injustiças e opressões, individuais e coletivas. Faz-se necessário, durante a leitura dos seus textos, ter em mente que o mundo é hostil e cruel, inflexível com todos que ousam praticar uma distinção radical do senso comum da vida socialmente ajustada. Além de apresentar a ótica metafísica da autora acerca da humanidade, presentificada nas figurações da sexualidade, do amor e da morte, os conflitos observados no enredo do conto Rútilo Nada são de caráter recalcitrante, pois questionam de maneira obstinada a visão limitada de um mundo hipócrita e, por isso mesmo, violento: na agonia em que se veem os amantes, as possibilidades de salvação são obscuras e distantes. Como o reverso de um prazer intenso e imenso, o conto exige do leitor um sacrifício: o desprendimento de suas acomodações, para que a linguagem complexa, porque metafórica, possa surtir o efeito adequado, no momento em que os relatos de Lucius Kod e de Lucas se apresentam para decifração, numa aventura ávida em direção ao incomum. Em se tratando de sentimentos vastos, tem-se a linguagem poética como representação da natureza do homem e como legitimação de suas emoções. Pode-se, inclusive, admitir a querela acerca da funcionalidade e utilidade de um texto abarrotado de recursos de Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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linguagem ambíguos e complexos, tais como metáforas e imagens de ordens várias que, na maioria das vezes, torna bem mais confusa a atribuição dos significados acerca do todo expressamente enunciado. Entretanto, temos como definitiva a certeza de que a linguagem poética em Rútilo Nada se torna mensagem/informação de fácil absorção no caso de o leitor render-se à emotividade expressa pelo devaneio. Essa é a estratégia para se conceber o sentido do texto analisado aqui, a via de acesso ao conhecimento acerca da mais íntima natureza do sujeito. Percebe-se que na escrita de Hilda Hilst os meios para se abrir essa íntima faceta do ser dos personagens narradores encontram-se encerrados no manuseio dessa linguagem, nos recursos explorados em um nível incomum e exigente, pois que requerem nossa cumplicidade de alma em um pacto de total adesão inconteste. Por conseguinte, o vasto universo do sentido se revela em magnitude. Desta forma é que acontece no conto Rútilo Nada, uma obra arquitetada com a poética do devaneio e cujo conflito universal, na arena de brutalidade em que se viram enredadas as vozes da narração, reveste de intensidade uma saga breve e densa de amor e de morte a nos contar do próprio destino da humanidade, de uma árdua trajetória rumo ao fim, perpetuando, no requinte das imagens, a vida dos sentimentos que se escoam e se refazem em linguagem poética.

Referências BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 21. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2007. HILST, Hilda. Rútilos. São Paulo: Globo, 2003. PAZ, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012. RIBEIRO, Leo Gilson. Da ficção. Cadernos de Literatura Brasileira. Hilda Hilst. n. 8, out. 1999. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 1999. SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Petrópolis: Vozes, 2015. TEZZA, Cristóvão. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

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Bendita a morte que te acolheu: elementos do judaísmo na construção do personagem Leo, em Aos meus amigos, de Maria Adelaide Amaral1 Blessed the death which welcomed you: elements of Judaism in the construction of the character Leo, in Aos meus amigos, by Maria Adelaide Amaral Heloiza Montenegro BARBOSA2 Ivon Rabêlo RODRIGUES3 Resumo: Publicado em 1991, Aos meus amigos foi escrito pela portuguesa Maria Adelaide Amaral, após o suicídio de Décio Bar, amigo da autora desde a época de escola. Maria Adelaide resolveu escrever um livro dedicado ao grupo de amigos mais próximo, uma homenagem e, ao mesmo tempo, um memorial póstumo a Décio. A narrativa – dividida em três partes – acompanha o enterro de Leo: acontecimento que une todos os personagens e os conflitos existentes entre si e consigo mesmos. Leo é o liame que une todos e, mesmo não estando presente fisicamente, apresenta-se como protagonista. As diversas nuances de sua personalidade, características físicas e psicológicas são apresentadas a partir de memórias dos amigos. Entre esses aspectos, o judaísmo apresenta-se como conflito e parte da identidade de Leo, como parte de seu discurso, suas relações e sua morte. O presente artigo procura trazer algumas dessas nuances – focando na relação da religião judaica e o suicídio – e reapresentar Leo dentro desse universo. Para isso, serão usados textos de Schøllhammer (2009) sobre a literatura contemporânea, além de textos religiosos basilares do judaísmo, como o Shulhan Arukh, a Torá e glossários sobre termos judaicos, tais como os de Avery-Peck; Neusner (2004) e Dosick (2007). Palavras-chave: Judaísmo. Maria Adelaide Amaral. Suicídio.

73 Abstract: Published in 1991, Aos meus amigos was written by the Portuguese Maria Adelaide Amaral, after Décio Bar, friend of the author since the time of school, having committed suicide. Maria Adelaide decided to write a book dedicated to the closest group of friends, a tribute and, at the same time, a posthumous memorial to Décio. The narrative – which is divided into three parts - accompanies the burial of Leo: an event that unites all the characters and conflicts among themselves and with themselves. Leo is the link that unites everyone and, even though he is not physically present, is the protagonist. The various nuances of his personality, physical and psychological characteristics are presented from his friends' memories. Among these aspects, Judaism presents itself as conflict and part of Leo's identity as part of his discourse, his relationships, and his death. The present article seeks to bring some of these nuances - focusing on the relationship of the Jewish religion and suicide - and to reintroduce Leo into this universe. For this, texts of Schøllhammer (2009) on contemporary literature, and basic religious texts of Judaism, such as the Shulhan Arukh, the Torah, will be used as well as glossaries on Jewish terms by Avery-Peck; Neusner (2004) and Dosick (2007). Keywords: Judaism. Maria Adelaide Amaral. Suicide.

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Artigo oriundo de monografia apresentada ao Curso de Especialização em Literatura Brasileira da FFIRE, em 2019, publicado na revista Lumen, Recife, v. 28, n. 1, p. 65-74, jan./jun. 2019. 2 Pós-graduada em Literatura Brasileira pela FAFIRE, mestranda em Teoria da Literatura pela UFPE | E-mail: hmontenegro91@gmail.com 3 Mestre em Literatura e Interculturalidade e orientador da pesquisa | E-mail: ivonrabelo@hotmail.com 1

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Heloíza Montenegro Barbosa | Ivon Rabêlo Rodrigues

Introdução

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Publicado em 1991, o romance Aos Meus Amigos tornou-se uma minissérie, adaptada para televisão pela escritora do livro, Maria Adelaide Amaral. Após o suicídio de Décio Bar – amigo da autora desde a época de escola –, a autora resolveu escrever um livro dedicado ao grupo de amigos mais próximos, uma homenagem e, ao mesmo tempo, um memorial póstumo a Décio. A história divide-se em três partes sequenciadas, todas acontecendo no mesmo dia. A primeira parte acontece no Cemitério do Araçá, onde Leo é enterrado: acompanha todo o procedimento funerário, desde a liberação do corpo até o enterro. A segunda parte é o momento posterior ao enterro, no qual os amigos se dividem em dois grupos: um vai para a casa de Lúcia, como uma maneira de celebrar a vida e lembrar do amigo que se foi; outro grupo vai para a casa de Leo, à procura de respostas para o suicídio do amigo – ou em busca de um livro que foi/não foi escrito. Na terceira parte ocorre a reunião dos dois grupos que haviam se dividido. Entre os vários personagens e suas mais diversas conexões (melhores amigos, ex-amantes, ex-cônjuges, inimigos), cada um traz sua história e, com ela, o peso de sua existência. As mais extremas nuances permeiam esses personagens, sendo quase impossível escolher um favorito, aquele com quem o leitor mais se conecta. Todos são amigos entre si e, ao mesmo tempo, todos parecem ser nossos amigos. O presente artigo procura apresentar Leo sob dois pontos de vista: como personagem de romance e, a partir daí, a sua relação com os aspectos do judaísmo trazidos pela autora para a construção do personagem, além da maneira que o seu suicídio é observado pela religião, fazendo uso de textos basilares do judaísmo, além das cerimônias rituais relacionadas a esse fato. O que é feito, como devia ter ocorrido o cerimonial e como as escrituras – e a realidade – se conectam, onde as tradições milenares do judaísmo podem nos ajudar a entender Leo, como o seu fim é o começo da narrativa e o início do fim das relações com os seus amigos.

Que notícias me dão dos amigos?4 Aos meus amigos começa com uma série de ligações telefônicas: entre um telefonema e outro, os amigos compartilham entre si a notícia da morte de Leo. E são ligações – não mais telefônicas – que vão percorrer toda a narrativa: amizades, romances, amantes, amores, amigos. O fio que percorre a vida de uns dos muitos personagens da trama vai conectando-se com a vida dos outros. Essas conexões podem soar largas, distantes, mas existem. Ninguém está só, ninguém viveu sua história solitária. No advento da filmagem do seriado Queridos Amigos, em 2008, a autora – que também foi responsável pela adaptação do romance no seriado de vinte e cinco capítulos – disse em entrevista que havia escrito “(...) para a minha geração, para os meus amigos e queria mostrar o que foi e como o período da ditadura marcou suas vítimas”5. Um memorial para essas relações, transformadas em romance. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

“Nada será como antes”, canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. Disponível em: <https://natelinha.uol.com.br/noticias/2008/03/28/maria-adelaide-amaral-fala-sobre-queridos-amigos-no-marilia-gabriela-entrevista-12913.php.> Acesso em: 24 jan. 2019. 4 5

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A todo momento a narrativa é mesclada entre o passado e o presente, misturando os personagens entre as histórias de suas vidas, entrelaçando-os entre um e outro. A vida – e a morte – de Leo é o fio condutor que conecta a todos, e o seu enterro é um momento de apoteose dessas relações e dessas memórias. A ditadura militar no país havia acabado, deixando para trás uma carga de idealismos e de luta por um país diferente daquele em que viviam. Os amigos, em sua maioria, já estavam na meia idade – os filhos haviam crescido, os casamentos haviam acabado ou encontravam-se no marasmo trazido pelos longos anos juntos – o esvaziamento de ideais e de perspectivas para o futuro. Quando Leo joga-se da janela, “às 6:15h da manhã” (AMARAL, 2008, p. 20), leva consigo muito do que havia sido, e, quando do seu enterro, em que os amigos são “obrigados” a se encontrar novamente, esse esvaziamento de ideais fica ainda mais aparente. Tal sentimento fica claro nas transcrições das ligações telefônicas entre os amigos, informando sobre o falecimento de Leo, por exemplo. Os amigos se fazem presentes – sendo o enterro mais do que uma despedida, também um reencontro. Colegas da escola, dos vários trabalhos que Leo teve durante a vida, do Partido Comunista, ex-amantes. E nessa junção de pessoas e de histórias, alguns amigos começam a se questionar sobre a existência de um livro que foi – possivelmente – escrito por Leo. Após o enterro, com todas as dúvidas sobre a existência ou não do romance escrito por Leo, e com um misto de alegria e nostalgia pelo reencontro, o grupo de amigos divide-se: alguns vão com Flora, viúva de Leo, à procura do romance, de alguma mensagem póstuma, ou apenas para ajudar, como apoio emocional ou na limpeza do apartamento; outro grupo desloca-se para a casa de Lúcia, para um jantar, onde todos devem se encontrar no final. No apartamento de Leo, o grupo espalha-se em busca de rastros do romance ou respostas. Entre fotos, livros e quadros, encontram um toca-fitas com fragmentos de poemas de Sylvia Plath – autora norte-americana que se suicidou aos 33 anos – e trechos de frases de Leo, criando um poema próprio. Posteriormente, enquanto ajuda Raquel na limpeza da casa, Adonis encontra mais um retalho da despedida de Leo, atrás de um quadro, na parede, com trechos de Uma estação no inferno, de Rimbaud (AMARAL, 2008, p. 232). Esses pequenos recados deixados por Leo, espalhados pela casa, acabam tornando-se, para aqueles que o compreendiam – ou ao menos tentavam – pequenos trechos de seu romance, da sua despedida, da sua carta final. Já a conexão é, de certa maneira, refeita mais à frente, quando, enquanto arruma o quarto do filho, Flora encontra o romance que todos buscavam: “Flora, dê isto ao Davi quando achar que ele está preparado”. Flora abriu a esmo e estremeceu. Era o diário de Leo, o diário da Granja que ele depusera na gaveta de brinquedos do filho, certo de que Flora seguramente o encontraria ali. Principiava em 31.12.72 e na primeira página, numa linha entre aspas, como uma epígrafe, escrevera: “Não é minha culpa, não é culpa de ninguém”. E logo abaixo começava: “Sozinho. Como devo chamar isto? Diário da minha angústia? Quase meia-noite. Há uma festa lá fora. Há sempre uma festa lá fora” (...). Suspeitava que fosse o texto que todos procuravam, mas suspeitava também que, mesmo diante da evidência do diário, as pessoas continuassem a procurar o romance, por que era isso que elas queriam encontrar. Ficção. Não. Não havia ficção (AMARAL, 2008, p. 229). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Esse é o momento de redenção entre Leo e Flora: depois de um casamento fadado ao fracasso, um distanciamento pós-divórcio, Flora ainda é a responsável por organizar todo o enterro de Leo, propondo enterrá-lo no jazigo da família, no Cemitério do Araçá, e não no cemitério judaico – onde, de acordo com algumas tradições, devem ser enterrados em espaços separados6. É nesse momento que Leo conecta-se com o seu passado e seu futuro, com o único herdeiro, seu filho Davi. A reunião final dos amigos é o momento em que acontecem as trocas de confidências, pequenas transcrições da realidade, declarações de amor e, obviamente, pequenas brigas e grandes dramas, como em toda reunião de família. E o romance encerra-se como começou: com Flora e Lena falando sobre Leo, o único assunto que as conectava de verdade: – Que mais ele dizia no diário? – perguntou Lena (...) – Ele escreveu sobre literatura, filosofia. Fala da correspondência de Flaubert com Turgueniev, de Hemingway, Walter Benjamin, outros suicidas, da sua incapacidade de escrever a obra definitiva e do seu suicídio inevitável. Lendo o que ele escreveu, é perfeitamente possível prever o que aconteceria. Foi essa a razão e nenhuma outra que ele ocultou os diários de vocês (AMARAL, 2008, p. 333).

Alvoroço em meu coração, amanhã ou depois de amanhã7

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Maria Adelaide Amaral dedica o livro ao poeta paulista Décio Bar, que havia se suicidado em 1991. Esse fato foi o que levou a autora a escrever o romance, transformando sua amizade com o poeta – e o grupo de amigos que acumulou durante os anos – em narrativa, com o próprio Décio como personagem: Leo. Pouco depois do lançamento do seriado, a família de Décio publicou seus poemas, encontrados postumamente8 – assim como Leo, Décio também havia se suicidado. A própria Maria Adelaide Amaral mantinha a carreira de jornalista durante os anos do regime ditatorial no Brasil: um período de ebulição cultural e, ao mesmo tempo, de extrema repressão. É nesse período que a literatura brasileira começa a desvincular-se da zona rural, do campo, do território inóspito e passa a voltar-se para a cidade, abandonando o bucólico para o caótico, não só em relação ao espaço onde a narrativa acontece, mas também por fatores estilísticos e temáticos Geração 90 frequentam os mesmos lugares inóspitos que os escritores da periferia — ruas deterioradas, botecos esquálidos, casas traumatizadas pelo desemprego, pela violência e pela loucura; há uma percepção geral do isolamento e da vulnerabilidade do sujeito moderno (e urbano) (PINTO, 2004, p. 87).

Aos Meus Amigos nos apresenta um grupo de personagens traumatizados, repletos de defeitos, como o próprio Leo, com problemas sérios ligados à bebida, e volátil demais em ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Disponível em: https://www.cbtbi.org/wp-content/uploads/2016/10/Guide-to-Jewish-Cemetery.pdf . Acesso em: 31 maio 2019. “Nada será como antes” – canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. 8 Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/familia-de-decio-bar-que-inspirou-leo-de-queridos-amigos-lanca-livro-postumo-3625304> Acesso em: 10 jan. 2019. 6 7

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suas atitudes, entre outros. Nos deparamos, assim, com “a vontade ou o projeto explícito de retratar a realidade atual da sociedade brasileira. Frequentemente pelos pontos de vista marginais ou periféricos” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 53). Além disso, o romance perpassa diversos aspectos políticos, essenciais para o entendimento do Brasil na época: apesar de nunca ficar explícito o ano em que a narrativa se passa – no seriado, porém, ela se passa em 19899 –, é possível concluir que a trama se dá no início dos anos 199010. O início da primeira década de um Brasil recém-democratizado e, ao mesmo tempo, a última década do milênio. Um misto de morte e vida, um respiro no meio do cemitério dos sonhos que muitos deixaram, como afirma Schøllhammer: “Com a abertura política, e durante o processo de retorno à democracia, surge uma escrita mais psicológica que configura uma subjetividade em crise” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 27). Outro aspecto importante é a temporalidade da narrativa: pode-se dizer que o texto acaba dividindo-se em dois aspectos temporais, o “atual” e a “memória”, acompanhado de um narrador onisciente neutro, fazendo uso da tipologia criada por Norman Friedman, apresentada por Ligia Chiappini Leite (1985, p. 32). Fazendo uso das informações e análises apresentadas, é possível entender que a obra Aos meus amigos acaba relacionando-se com o que é dito sobre as obras literárias da época, especialmente nas esferas temática, política e histórica pelas quais o país passava. Os amigos são imagens das pessoas que haviam passado pelos tormentos da ditadura e estavam ali, unidos – ou não – para contar suas histórias, na esperança de que nós, leitores, ouvíssemos. A relação de Leo com o suicídio perpassa questões familiares: ele é o primeiro a encontrar o pai enforcado dentro do banheiro da casa, além do avô que também havia se matado de maneira semelhante. Chegava a acreditar que o suicídio era uma característica genética (AMARAL, 2008, p. 24). Leo é neto de imigrantes judeus vindo da Bielorrússia, que se fixaram na Rua da Graça, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, onde o pai era peleteiro. Filho único, Leo é assim caracterizado, segundo a autora: “Os Rosemberg eram claros de pele, tinham o cabelo avermelhado e os olhos cinza-esverdeados” (AMARAL, 2008, p. 24). Além disso, Leo era um prodígio, tinha grande talento: Publicara um livro de poemas aos dezenove anos, excelente, segundo os críticos. Aos 23 tinha feito um curta metragem e ganhara todos os prêmios da categoria. Durante os três anos que cursou arquitetura, dedicou-se às artes plásticas. Chegou a participar de várias coletivas, foi saudado como um artista promissor. Seu texto jornalístico era agudo, claro e simples, sabia quando ser sarcástico, mordaz, engraçado. Tinha estilo, todos reconheciam que era brilhante (AMARAL, 2008, p. 44).

O primeiro momento em que o judaísmo de Leo é trazido à tona, no livro, acontece em suas primeiras páginas: nas transcrições das ligações telefônicas entre os amigos, avisando ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Disponível em: <http://revistaogrito.com/queridos-amigos/>. Acesso em: 27 dez. 2018. Como é que eles puderam confiar naquele mujique safado e falastrão? – exclamou Tito. “Ah meu Deus! Estão falando de Boris Ieltsin!”, Pedro pensou desanimado, desejando que ninguém pedisse sua opinião (AMARAL, 2008, p. 100). 9

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sobre o falecimento de Leo. Ivan questiona Lúcia sobre o local do velório, que será realizado no Cemitério do Araçá, no Pacaembu, apesar de ele ser judeu (AMARAL, 2008, p. 11)11. A escolha de Flora, que ficara encarregada de todas as decisões do enterro, como não levar o corpo para um cemitério judaico, é pautada pelo suicídio. Mesmo assim, ela procura, limitada pelo seu conhecimento superficial acerca do judaísmo, manter certas tradições: quando o caixão é colocado no espaço reservado para o velório, eles trazem consigo um crucifixo que Flora rejeita, dizendo que Leo “não era cristão” (AMARAL, 2008, p. 29). O judaísmo é uma religião conhecida – e baseada – por escrituras. Os judeus do passado e os judeus do presente são conectados por tais escrituras e leis, intimamente ligadas à sobrevivência da religião. A junção dessas leis é chamada da Halakhah, do hebreu “caminho”, que é o total de leis judaicas, que definem “the Jewish way of life” (AVERY-PECK; NEUSNER, 2004, p. 50). O livro base do Halakhah é a Torá, no qual todos os livros seguintes se inspiraram. E é também na Torá que somos apresentados ao primeiro trecho relacionado ao suicídio: no capítulo 9, versículos 5 e 6 do livro de Bereshit, primeiro livro da Torá – o equivalente ao Gênesis, na Bíblia Cristã: 5 Certamente requererei o vosso sangue, o sangue das vossas vidas; de todo animal o requererei; como também do homem, sim, da mão do irmão de cada um requererei a vida do homem. 6 Quem derramar sangue de homem, pelo homem terá o seu sangue derramado; porque Deus fez o homem à sua imagem.12

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Em 1565, Joseph Karo publica o Shulhan Arukh, considerado o mais completo código de leis judaicas que contemplam todos os rituais diários, no qual se encontram as leis referentes ao suicídio, usadas como base para definir a maneira como deve-se tratar o suicida, de acordo com a religião: One who commits suicide wilfully is not attended to at all; and one does not mourn for him and no lamentation is made for him, nor does one rend [garments] or bare [the shoulder in mourning for him], but one stands for him in the line [of comforters], and one recites over him the mourners' blessing, and whatever [brings] honour [only] to the living [may be done].13

O próprio conceito de suicídio apresentado no Shulhan Aruk se estende, de modo a explicar quem pode ser considerado suicida, diferenciando os sujeitos por idade ou circunstâncias ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Na cidade de São Paulo, onde a história se passa, existem dois cemitérios israelitas, segundo o site do Chevra Kadisha — Associação Cemitério Israelita de São Paulo, responsável pela administração dos cemitérios israelitas da cidade: o da Vila Mariana, primeiro da cidade, fundado em 1919, e o do Butantã, inaugurado em 1953, que é utilizado até hoje (além dos cemitérios de Embu, na Grande São Paulo, e o de Cubatão, na Baixada Santista). 12 Disponível em: <http://hebraico.top/biblia-hebraica-online-transliterada/geneses-bereshit-completo-‫ת ִיׁש ֵא ְרּב‬-hebraico-portugues-e-transliterado/genesis-bereshit-capitulo-09-‫תישארב‬-portugues-hebraico-transliterado/> Acesso em: 8 abr. 2018. 13 “Aquele que comete suicídio intencionalmente não é de modo algum assistido; e um não lamenta por ele e nenhuma lamentação é feita por ele, nem alguém rasga [vestes] ou desnuda [o ombro de luto por ele], mas um representa ele na linha [de edredons], e um recita sobre ele a bênção dos enlutados, e tudo o que [traz] honra [somente] para os vivos [pode ser feito]” (Tradução nossa). Disponível em: <https://www.sefaria.org/Shulchan_Arukh,_Yoreh_De'ah.345.1?lang=bi&with=all&lang2=en https://www.myjewishlearning. com/article/suicide-in-jewish-tradition-and-literature/>. Acesso em: 08 abr. 2018. 11

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do ato. No caso de Leo, segundo as leis, ele seria designado como um suicida comum. Desse modo, a reação de Flora em relação a não enterrá-lo em um cemitério israelita é entendida como uma reação às leis judaicas sobre os suicidas, resumidas por Stephen Weber (1996) no artigo “Ancient Answers to Modern Questions: Death, Dying and Organ Transplants — A Jewish Law Perspective”, publicado em 1996: “A suicide victim cannot be buried in a Jewish cemetery. The various rites of mourning which honor the dead, ranging from a eulogy to the rending of garments, are not applicable to a suicide” (WEBER, 1996, p. 29)14. Além de todas essas questões, Leo era ateu. Para entender como esse conceito de Judaísmo transcende a religião: em português não existe diferenciação entre judeu como etnia e judeu como ser religioso, mas em inglês essa dicotomia acontece com o uso das palavras Jewish (etnia) e Judaism (religião). No livro – assim como na língua portuguesa – esses espaços entre ser judeu e seguir o judaísmo são muito estreitos, fundindo-se o tempo todo. Ser ateu não é necessariamente o oposto de ser judeu. A origem dessa dicotomia entre “judeu etnia” e “judeu religião” é explicada por Leonard Mars (2016) após a Revolução Francesa: Jews became French men and French women of the Jewish religion, similar to Frenchmen who may be Roman Catholic or Protestant. The ethnic element was de-emphasised and was supposed to wither away. In Eastern Europe in the Russian Empire where most of Europe’s Jews resided in the Pale of Settlement, the fusion of religion and ethnicity was to persist. Jews were both a people with a religion and a lingua franca in the form of Yiddish (MARS, 2016, p. 39).15

Como é explicado pelo próprio Mars (2016), nos países do Império Russo – como a Bielorrússia, de onde a família de Leo veio – essa cisão não existia. A prova dessa relação aparece principalmente em Flora, que se responsabiliza pelo enterro e, de algum modo, procura seguir os protocolos religiosos, como o caixão fechado e a retirada do crucifixo: Ateu ou não, era judeu, e ela pedira ao irmão que o deixasse nu e o envolvesse num lençol, para que ele retornasse ao pó, como seus ancestrais. Talvez o mais correto tivesse sido procurar um rabino, mas ela temia que as circunstâncias da morte o privassem de uma cerimônia religiosa e Leo fosse banido para a ala dos suicidas do cemitério judeu (AMARAL, 2008, p. 29).

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“Uma vítima de suicídio não pode ser enterrada em um cemitério judeu. Os vários ritos de luto que honram os mortos, desde um elogio ao rasgar das vestes, não são aplicáveis a um suicídio” (Tradução nossa). 15 “A identidade judaica na Europa antes da Revolução Francesa baseava-se na fusão de dois elementos – um elemento religioso e um elemento étnico. Os judeus eram tanto um povo quanto uma religião. A Revolução Francesa dividiu essa identidade fundida em seus componentes. Na Europa Ocidental, primeiro na França, todos os direitos civis foram concedidos aos judeus franceses para que eles se tornassem cidadãos do Estado francês, membros da nação francesa como indivíduos, mas não como um grupo. A religião tornou-se um assunto privado – uma questão de consciência individual. Os judeus se tornaram homens franceses e mulheres francesas da religião judaica, semelhantes aos franceses que podem ser católicos romanos ou protestantes. O elemento étnico foi menos enfatizado e deveria desaparecer com o tempo. Na Europa Oriental, no Império Russo, onde a maioria dos judeus da Europa residia no Pale of Settlement, a fusão de religião e etnia persistia. Os judeus eram tanto um povo com uma religião quanto uma língua franca na forma de iídiche” (Tradução nossa). 14

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O ritual funerário judaico – Levaiah – “is laconic. The prayers are exceedingly brief.” (AVERY-PECK; NEUSNER, 2004, p. 77)16. Em geral, a cerimônia deve ser feita o mais rápido possível após a morte (DOSICK, 2010, p. 303)17. Sabendo ou não desse aspecto, a rapidez no processo é também um desejo da própria Flora, que “confiava na promessa de seu irmão de que Leo seria enterrado naquela tarde” (AMARAL, 2004, p. 20). Além disso – à sua própria maneira, sem conhecer profundamente – Flora também segue o ritual em relação ao tachrichin: “No matter the status of the deceased or the privileged life he or she may have lead, all bodies are wrapped in the same white shroud (tachrichim) prior to being placed in a coffin”18. Mais à frente, Beny questiona se o amigo havia sido enterrado com o talis, “o xale do bar mitzvah”, alegando que “Todo judeu guarda o talis para ser enterrado com ele, religioso ou não” (AMARAL, 2008, p. 132). É também Beny que, no enterro, “improvisa um kadish” (AMARAL, 2008, p. 151), uma oração funerária. O talis é um xale de orações, que contém franjas “knotted in a certain way to symbolically represent the number 613 – the number of commandments in the Torah” (DOSICK, 2010, p. 221)19. Essas franjas – chamadas de tzitzit – servem como lembrança constante dos mandamentos, da obrigação de segui-los. O uso constante do talis está muito mais ligado ao modo como a pessoa se conecta com o judaísmo, além de qual modelo usar – arban kanfot ou o tallit katan. Também é Beny que recita um kadish. Na falta de um rabino, ele cria o seu próprio: Bendito seja você, Leo, que habitou as sombras (...) Bendito seja você na arrogância, paranoia, no delírio, na pretensão de escrever a obra definitiva (...) Bendita a sua luz que brilhou para mim e mais uns poucos! Bendito o teu fracasso, o álcool que corroeu tuas vísceras, a nicotina que envenenou teu sangue, bendita a coragem de cagar pra vida, bendita a morte que te acolheu! (...) Bendito todos os que como você escolheram as trevas, bendito os loucos, os homossexuais, os bêbados e párias de todas as ordens, bendita a solidão, bendito o desespero que fez você cometer finalmente a grande obra da sua vida! (AMARAL, 2004, p. 152).

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O kadish é parte essencial do luto: deve ser recitado diariamente, durante onze meses após o falecimento do ente querido, como uma maneira de “facilitar” a jornada do ser que se foi: “each time a mourner recites kaddish for the deceased, the soul ‘earns points’ in its heavenly quest” (DOSICK, 2010, p. 308)20. Desse modo, é fácil entender a necessidade do kadish para Beny: é uma maneira de ajudar a alma atormentada de Leo na sua busca pela eternidade. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

“é lacônico. As orações são extremamente breves” (Tradução nossa). “O funeral e o enterro são realizados logo após a morte para enfatizar a crença judaica de que a alma – onde está a centelha da vida – retorna imediatamente a Deus que a deu; assim, o corpo – que é a morada terrestre da alma – deve ser devolvido, com a mesma rapidez, ao pó de onde veio. Uma vez que o corpo é apenas o recipiente da alma – e não a própria vida – ele não deve se tornar o objeto da triste veneração, mas deve ser rapidamente devolvido à sua fonte, a poeira da Terra de Deus” (Tradução nossa). 18 “Não importa o status do falecido ou a vida privilegiada que ele ou ela possa ter levado, todos os corpos estão envoltos na mesma mortalha branca (tachrichim) antes de serem colocados em um caixão”. Disponível em: <http://tepv.org/wpcontent/uploads/2015/07/ TEPV_Conservative_Guide_for_Jewish_Burial_and_Mourning.pdf>. Acesso em: 15 de jan. 2019. (Tradução nossa). 19 “amarrado de certa forma para simbolicamente representar o número 613 - o número de mandamentos na Torá” (Tradução nossa). 20 “cada vez que um enlutado recita o kadish pelo falecido, a alma ‘ganha pontos’ em sua busca celestial” (Tradução nossa). 16 17

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Não se sabe, por exemplo, como foi feito o enterro do pai e avô, se seguiram ou não as tradições funerárias. Leo vivia em um ambiente plural, além de ter se movimentado pelos mais diversos círculos culturais e políticos; logo, a maneira quase “esquizofrênica” – no sentido de sua constante distância da realidade, seu derradeiro isolamento – com que seu enterro acontece é, de certo modo, um retrato de quem ele era, dos amigos que tinha e da vida atribulada que levou.

Considerações finais O suicídio é o ato final de transgressão com a religião e cultura que Leo rejeita – sem efetivamente se desvincular, tanto que sua origem é conhecida e considerada por todos os amigos –, porém é um ato de suprema conexão com o passado, com aqueles que vieram antes: no caso de Leo, o suicídio é um mal de família, mas também é uma herança. Pensando o judaísmo como a religião baseada nos ensinamentos, resistindo a partir da transferência de seus dogmas, o final de Leo é o seu ponto de intersecção com seu pai, seu avô e sua cultura. E do pó ele veio. E para o pó ele retornou. Com o personagem Leo, a história não é diferente. A trajetória de seus antepassados é também a sua trajetória, complexa e completa em sua própria maneira. A caminhada desse judeu errante é mais do que geográfica, maior que a espera pela volta do profeta cristão: é uma busca pelas respostas que seus antepassados – seu pai, seu avô – fizeram e que recai sob ele. No final, a resposta está em um romance passado para a geração seguinte, do qual não sabemos a conclusão. No romance de Maria Adelaide Amaral acompanhamos sua vida através das lembranças e pelas palavras dos amigos: somos apresentados – e conhecemos – um homem amargurado, mas extremamente talentoso, um nômade e um eremita, sempre movido por grandes paixões e uma imensa carga de insatisfação. Complexo, nos vários sentidos da palavra. O fim da vida de Leo é apenas o início do seu romance – a conclusão do livro de sua vida, guardado entre cadernos antigos, herança para seu filho – que, só com a sua morte, será lido pela primeira vez. A previsão de Ivan – o romance dedicado Aos Meus Amigos – é concretizada, mesmo que só Flora e Lena saibam disso. O seu kadish não precisará ser repetido por onze meses. A sua busca já acabou. Sua alma foi salva e marcada no papel, como seus antepassados, antes dele mesmo.

Referências AMARAL, Maria Adelaide. Aos meus amigos. São Paulo: Globo, 2008. ANDERSON, George K. The legend of the wandering Jew. Providence: Brown University Press, 1965. AVERY-PECK, Alan J.; NEUSNER, Jacob. The routledge dictionary of judaism (routledge dictionaries). Abingdon-on-Thames: Routlegde, 2004. DOSICK, R. W. Living judaism: the complete guide to jewish belief, tradition and practice. Nova York: Harper Collins, 2007. LEITE, L. C. M. O foco narrativo (ou a polêmica em torno da ilusão). São Paulo: Ática, 1985. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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MARS, L. Reflections on an Atheist Jew. 2016. Disponível em: <http://www.hrpub.org/ download/20160130/SA6-19605387.pdf.> Acesso em: 24 jan. 2019. NEUSNER, Jacob. Judaism: the basics. Abington-on-Thames: Routledge, 2006. PINTO, Manuel da Costa. Literatura brasileira hoje. São Paulo: Publifolha, 2004. SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Contemporânea, 2009. WERBER, S J. Ancient answers to modern questions: death, dying, and organ transplants- a jewish law perspective. 11 J.L.; Health 13 (1996-1997). Disponível em: <https:// engagedscholarship.csuohio.edu/jlh/vol11/iss1/5/>. Acesso em: 08 abr. 2018.

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Contos cênicos: dramaticidade e denúncia social em Totonha e Muribeca, de Marcelino Freire1 Cuentos escénicos: drama y denuncia social sobre Totonha y Muribeca, de Marcelino Freire Francisco Alexsandro da SILVA1 Vilani Maria de PÁDUA2 Resumo: O presente artigo expõe uma análise dos elementos dramáticos nos contos Totonha e Muribeca, de Marcelino Freire, buscando entender a sua estética e o diálogo estabelecido entre os gêneros narrativo e dramático, mais especificamente entre o conto e a peça teatral. Os referidos contos apresentam uma escrita composta com ênfase no diálogo, composição utilizada, geralmente, pelo gênero dramático, o que nos leva a estabelecer o elo entre os dois gêneros, bem como o interesse e a paixão do autor pelo teatro. E mais: a obra de Marcelino Freire não fica na técnica, apenas, visto demonstrar um claro compromisso social. Como apoio teórico, foram utilizados os estudos de D’Onofrio (2001) e Moisés (2006) na compreensão do gênero dramático, e no que tange à hibridização dos gêneros literários, utilizamos os estudos de Rosenfeld (1985). Palavras-chave: Contos. Texto teatral. Elementos dramáticos. Marcelino Freire. Resumen: Este artículo presenta un análisis de los elementos dramáticos en los cuentos Totonha y Muribeca de Marcelino Freire, tratando de entender su estética y el diálogo establecido entre los géneros narrativo y dramático, más concretamente entre el cuento y la pieza teatral. Esos cuentos presentan una escritura compuesta con énfasis en el diálogo, composición utilizada, generalmente, por el género dramático, lo que nos lleva a establecer la relación entre los dos géneros, así como el interés y la pasión de autor por el teatro. Y más: la obra de Marcelino Freire no solo se limita a la técnica, puesto que demuestra un claro compromiso social. Utilizamos los estudios de D’Onofrio (2001) y Moisés (2006), para la compresión del género dramático, y Rosenfeld (1985), para el entendimiento de la hibridación de los géneros literarios. Palabras-clave: Cuentos. Texto teatral. Elementos dramáticos. Marcelino Freire.

Introdução Ler os contos de Marcelino Freire é como ouvir uma conversa de ônibus, desses que fazem o translado centro da cidade-subúrbio, no qual transitam pessoas que vivem à margem. É ouvir o discurso dessas pessoas anônimas que passam despercebidas pelas ruas, pelas praças, pelos shoppings, pela vida. Ivan Marques reforça essa afirmação na ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Artigo oriundo de monografia apresentada ao Curso de Especialização em Literatura da FAFIRE, em 2018, e publicado na Revista FAFIRE, Recife, v. 11, n. 1, p. 100-117, jan./jun. 2018. 2 Ator, diretor, dramaturgo e pesquisador cênico, mestrando em Artes Cênicas pela UFRN (2018), especialista em Literatura Brasileira (2018) e licenciado em LETRAS (2015) pela Faculdade Frassinetti do Recife | FAFIRE | E-mail: alexsandrosilvarisadinha@gmail.com 3 Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada | USP | professora do Curso de Letras | FAFIRE e orientadora do trabalho. | E-mail: vilanip@prof.fafire.br 1

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apresentação do livro de contos Amar é Crime (2015), ao dizer que a literatura de Marcelino Freire é erguida sobre falas, frases roubadas, pedaços vivos do cotidiano e da matéria social brasileira, que ele recolhe com inteligência crítica. Freire dá voz e vez a essas pessoas, que viram personagens que tanto nos tocam porque os encontramos a cada esquina. Da Paz, Totonha, Vaniclélia, Mariângela são personagens tão reais quanto a senhora que vende acarajé na esquina, como o garoto que entrega água mineral ou o vendedor de balas do metrô. Os personagens de Freire são representações de pessoas que perpassam o nosso cotidiano; podemos até não perceber, mas essas personagens estão ali, dividindo a cena conosco, o espaço cênico, a ação. Dotado de elementos dramáticos, os contos de Marcelino Freire confundem-se com monólogos, ultrapassando a barreira do gênero conto e adentrando numa escrita dramática. Tomamos como estudo os contos Muribeca, da obra Angu de sangue (2000), e Totonha, do livro Contos Negreiros (2005), nos quais identificamos uma infinidade desses elementos que compõem a estética de escrita do autor e serão analisados numa aproximação com a arte dramática. O artigo aqui apresentado é fruto de uma pesquisa empreendida e apresentada como trabalho de conclusão do curso de especialização em Literatura Brasileira da Faculdade Frassinetti do Recife – FAFIRE – e caracteriza-se como uma pesquisa teórica de análise bibliográfica, com o intuito de analisar a presença de elementos dramáticos nos contos do referido autor, buscando entender a sua estética e o diálogo estabelecido entre os gêneros narrativo e dramático, mais especificadamente entre o conto e a peça teatral. A escrita composta com ênfase no diálogo, composição utilizada, geralmente, pelo gênero dramático, leva-nos já de imediato a estabelecer o elo entre os dois gêneros, bem como o interesse e a paixão de Freire pelo teatro. O pernambucano Marcelino Freire estreou no palco da vida no ano de 1967. Escritor, contista, romancista. Viveu no Recife e, desde 1991, reside em São Paulo. É autor dos livros de contos Angu de Sangue (Ateliê Editorial), Contos Negreiros (Editora Record) e Amar é crime (Coletivo EDITH). No final de 2013, publicou seu primeiro romance, intitulado Nossos Ossos (Record), com o qual ganhou o Prêmio Machado de Assis 2014 de Melhor Romance, pela Biblioteca Nacional. Seus livros já foram publicados na Argentina e na França. Alguns de seus contos ganharam os palcos. É o caso dos contos de Angu de Sangue, levados à cena pelo Coletivo Angu de Teatro, companhia cênica de Pernambuco que desenvolve a sua dramaturgia a partir de textos não dramáticos. A referida companhia já levou aos palcos as obras Angu de Sangue, Mar que arrebenta e Nossos ossos, sendo o último adaptado para a cena pelo próprio autor. Do Vale do Jequitinhonha ao lixão da Muribeca: que vozes ecoam nessas histórias contadas por Marcelino Freire? Quais são seus personagens? Seus dramas? Seus espaços cênicos? O que gritam e por que gritam? Deixemos que a cena nos diga. Que se abram as cortinas!

Quem conta um conto, ecoa um grito Um grito. É isso que ressoa aos lermos os contos de Marcelino Freire. Um grito que nos tira da nossa passividade, que nos apresenta uma realidade invisível aos nossos olhos, Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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um grito de inúmeros personagens que, em palavras, vêm nos lembrar que existem, que estão ali ao nosso lado. O próprio Freire define os seus contos como um grito, ao falar da sua escrita breve e intensa... Quero dizer logo onde está doendo e sair de perto. Quero dizer logo o que eu quero e não encher o saco de ninguém. Nesse sentido, meus textos são gritos, chegam logo para o outro sem delongas. Eu gosto muito disso, os escritores e artistas que falaram muito comigo, que pegaram na minha mão, foram escritores assim. Eu poderia não entender tudo o que o Manuel Bandeira escreveu, mas sentia o que ele sentia (FREIRE, 2017, p. 08).

Como no quadro expressionista “O grito” (1893), do norueguês Edvard Munch, que representa um momento de extrema angústia e desespero existencial, um grito tem sempre como objetivo expurgar uma dor ou qualquer outro sentimento intenso que tomou a alma, o corpo, e violentamente se transfigurou num som, que quis ocupar o universo, mesmo que por um momento extremamente breve. Um grito seria uma boa definição para conceituar o gênero conto, e é certamente a definição mais precisa ao falarmos da literatura de Marcelino Freire. De uma grande sensibilidade, capaz de perceber um cotidiano, que muitas vezes já está morto aos nossos olhos, Freire nos reapresenta um mundo que preferimos não ver, dá voz aos “sub-humanos”, de submundos, que estão ali na porta do nosso prédio. Aliás, a temática do submundo é algo recorrente na obra de Freire. E passamos a entender essa paixão pelo submundo ao conhecer como se deu o contato inicial do autor com a literatura. Em um momento, com uns 8 ou 9 anos de idade, a poesia de Manuel Bandeira atravessou o meu caminho. Uma poesia que eu vi em uma gramática de um irmão mais velho. A poesia se chamava “O Bicho”. A partir dessa leitura eu quis ser aquele poeta. Eu gostei daquilo que ele falou para mim. Eu não sabia que existia um homem catando comida na minha rua. Eu via, mas não enxergava. Eu pensei: se ele diz uma coisa que eu não sei, ele deve ter outras coisas que eu não sei para me dizer. Fui atrás do livro do Manuel Bandeira, de outras poesias dele, numa casa que ninguém lia. Não havia biblioteca, daí uma professora sabendo desse meu encantamento, me deu uma antologia do Manuel Bandeira. Eu quis ser poeta a partir dessa contaminação que Manuel Bandeira exerceu em mim (FREIRE, 2017, p. 06).

Foi através do olhar de Bandeira que Freire pôde enxergar “Os bichos” e os pátios onde eles vivem. É nessa perspectiva de animalização do ser humano que Manuel Bandeira faz uma denúncia poética, nos fazendo ver a situação em que vivem alguns homens. O poema abaixo ilustra essa afirmação: O bicho Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos.

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Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem (BANDEIRA, 1985, p. 283).

É conduzido por esse olhar poético que Freire passa a enxergar o submundo e o que gritam os que nele habitam. Quando indagado sobre o seu fascínio pelo mundo dos marginalizados, Freire diz: Sempre estive neste submundo. Sertânia é um submundo. Escolher fazer poesia na minha casa, naquele mundo, era um submundo. Escolhi fazer teatro no bairro de Água Fria. Morei lá por muitos anos, um dos últimos bairros do Recife, submundo. Dentro de casa as escolhas que eu fazia também. Não ia fazer administração, fui fazer letras (FREIRE, 2017, p. 08).

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Freire não se coloca apenas como porta-voz do submundo. Nascido em Sertânia, município localizado a 313 km da capital de Pernambuco, na microrregião do Sertão do Moxotó, aos dois anos vai com a família morar em Paulo Afonso/BA. De lá, mudam-se para a capital pernambucana, instalando-se no Bairro de Água Fria, zona norte do Recife, bairro marcado pela pobreza. É desse pertencimento ao submundo que surge em Freire a vontade de ser voz, grito. A poesia de Bandeira não fez apenas o menino sertaniense enxergar o submundo que estava a sua volta, mas também se enxergar parte dele. E percebendo o poder da palavra, da arte literária, o menino que não tinha força física (e nunca quis ter) usou dos seus dons da escrita para entrar nessa luta de dar voz aos que vivem à margem da sociedade. Contemporânea, necessária, pungente, a obra de Freire dialoga com as mídias sociais, com as artes plásticas, com o cinema, com o teatro, sua segunda paixão. É o próprio autor que assume a presença do teatro em sua escrita: Esses contos e essas coisas que escrevo estou sempre pensando em teatro, na palavra falada. O teatro me ajuda nessa palavra oferecida para o outro, uma projeção de fala. Meus personagens são esses monólogos, têm uma fala boa de gritar. São ladainhas, queixas, rezas. Costumo dizer que eu escrevo rezando meus contos. Termino de escrever eu vou lê-lo em voz alta e rápida porque, se tiver algum problema de ritmo, eu tenho que mudar. Isso o ator reconhece, ele empresta seu corpo e seu gesto para aquela voz que está ali articulada (FREIRE, 2017, p. 07).

Freire quer que as palavras que escreve ganhem outras vozes, e, nesse sentido, usa a dramaticidade, para que outros (atores ou não) deem vozes aos seus personagens, se coloquem na pele de Totonha, do conto homônimo, ou na pele da personagem do conto Muribeca. Quando nos deixamos tocar pelo discurso do outro, quando emanamos suas Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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reivindicações, quando gritamos suas dores, passamos a gritar em coletivo, e o grito coletivo ecoa com mais intensidade.

Gêneros literários e hibridismo: um diálogo entre o conto e o texto teatral Rosenfeld (1985) afirma que, por mais que tenham sido combatidas, as teorias dos três gêneros, categorias ou arquiformas literárias, conservam-se em essência inacabadas. Desde Aristóteles, buscou-se definir formas e estruturas pertencentes a cada gênero. Inúmeras páginas foram escritas pelos que defendiam suas estruturas fechadas e outras tantas por aqueles que defendiam o diálogo entre elas, o hibridismo. Nesse sentido, Rosenfeld defende que a pureza não é necessariamente algo com valor positivo na arte literária, e que não existe gênero puro em sentido absoluto. No entanto, o autor ressalta que o uso da classificação de obras literárias por gêneros parece ser indispensável diante da necessidade de introduzir certa ordem na multiplicidade dos fenômenos. Assim, o autor apresenta a seguinte classificação: Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida em que nele não se cristalizarem personagens nítidos e em que, ao contrário, uma voz central – quase sempre um “Eu” – nele exprimir seu próprio estado de alma. Fará parte da Épica toda obra – poema ou não – de extensão maior, em que um narrador apresentar personagens envolvidos em situações e eventos. Pertencerá à Dramática toda obra dialogada em que atuarem os próprios personagens sem serem, em geral, apresentados por um narrador (ROSENFELD, 1985, p. 17).

Rosenfeld está lidando com categorias abstratas, com arquigêneros. Seus estudos nos fazem compreender que formas “puras” não existem concretamente. O autor cita diversas exceções: as baladas, muitas vezes dialogadas ou de cunho narrativo, certos contos construídos apenas com diálogos e obras dramáticas em que vemos um único personagem manifestar-se, através de um monólogo extenso. Tais eventos confirmam a artificialidade da classificação dos gêneros, que, no entanto, não diminui a necessidade de sua existência, visto que as classificações servem “para organizar, em linhas gerais, a multiplicidade dos fenômenos literários e comparar obras dentro de um contexto de tradição e renovação” (ROSENFELD, 1985, p. 17). Moisés, ao defender a hibridização dos gêneros, diz que “os gêneros e suas subdivisões (espécies e formas) não são compartimentos estanques: mesclam-se entre si, na horizontal e na vertical, originando uma variada gama de hibridismos” (2006, p. 85). No que se refere às relações de hibridismo entre o conto e o texto teatral, Massaud Moisés vê uma ligação muito próxima entre os gêneros. Veja-se: O parentesco do conto com o teatro ou dramaturgia salta aos olhos: o teatro circunscreve a intriga num tablado, onde transcorre em determinada fração de tempo, à maneira do conto. A ação do teatro pode ser múltipla e simultânea (circunstância em que aproxima do romance), enquanto a do conto é única. Quanto à linguagem, nota-se analogia entre o teatro e o conto desde o fato de predominar o diálogo num e noutro, até o de a linguagem do teatro caracterizar-se por sincretismo, e a do conto pelo emprego da metáfora (MOISÉS, 2006, p. 88). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Outros elementos também corroboram a hibridização entre o conto e o texto teatral. Moisés (2006) segue dizendo que, no que confere à descrição, encontramos no conto uma breve definição de espaço, algo que também vemos sintetizado no teatro. Segundo o autor, o ritmo acelerado e tenso do conto se reproduz no teatro através da presença física dos atores. Moisés infere seu estudo da hibridização dos gêneros conto e texto teatral dizendo que é importante lembrar que as semelhanças apresentadas são mais visíveis no teatro clássico, aquele em que são obedecidas as leis das três unidades (de tempo, espaço e ação). No entanto, também podemos elencar aproximações entre os referidos gêneros na produção dramática contemporânea.

Análise dos contos

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Calcados no diálogo, os contos Muribeca, da obra Angu de Sangue, e Totonha, do livro Contos Negreiros podem ser comparados a monólogos. Através das falas das personagens de cada conto, ficamos conhecendo seus contextos sociais, seus discursos, percalços e percursos. Curtos e tensos, os contos são apresentados por uma fala que não quer calar, na qual não há sequer os travessões característicos dos diálogos. Mas nem precisava, pois é um monólogo de parágrafos sintéticos, falas que vão jogando o leitor naquela realidade estranha, naqueles valores que afloram e com os quais nem sempre concordamos, pois é preciso se acostumar, aceitar e entender. Nos contos em análise, Freire coloca-nos diante de duas personagens que integram espaços de exclusão, marcados pela violência e o exílio social. Personas que lutam pela sobrevivência e expressam o sofrimento, a revolta e o desespero daqueles que trazem consigo a marca dos abandonados e excluídos. Em Muribeca, a personagem narra as virtudes de morar em um lixão e reivindica a não retirada dos moradores desse lugar. Totonha recusa o aprendizado das letras, ao não querer baixar a cabeça para leitura; alega desnecessário o conhecimento acadêmico, diz que sabe ler e interpretar tudo aquilo que é essencial a sua sobrevivência. Os dois contos são marcados, ao mesmo tempo, pela resistência e pelo conformismo.

Muribeca e os elementos do gênero dramático A personagem de Muribeca foi jogada nesse estado de conformidade pelo sofrimento, encontrou a sobrevivência no lixão e resiste em deixá-lo. Freire prega-nos uma peça ao nos fazer brigar, junto à personagem, pelo direito de sua permanência naquele lugar inóspito. O conto tem como título o nome de um bairro do município de Jaboatão dos Guararapes, onde estava localizado o maior lixão de Pernambuco. Segundo Rebêlo (2008), o Lixão da Muribeca começou a funcionar em 1985 e durante anos exerceu suas atividades sem licenciamento ambiental, recebendo não apenas os resíduos sólidos, lixo doméstico e comercial, mas também, clandestinamente, lixo hospitalar. Responsável pelo sustento total ou parcial de quase 3.000 catadores, o Lixão da Muribeca recebia lixo das cidades de Recife, Jaboatão e Moreno, e foi desativado em agosto de 2009. É de frente a essa bruta realidade que Freire nos coloca, propõe um jogo: brigarmos pelo direito de que a personagem permaneça ali, naquele “paraíso”, visto que lhe dá o Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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sustento, garante casa, comida e trabalho, mesmo que por vias miseráveis. E por um momento levantamos a bandeira da personagem, até percebermos as condições insalubres de sobrevivência de um ser humano em um lixão. A personagem do conto Muribeca briga pelo seu espaço como um cão entra em conflito por um osso, como o bicho, do poema de Manuel Bandeira, pugna com os detritos em busca de comida. Para D’ Onofrio (2001), o texto teatral é o elemento propriamente literário que o autor compõe com a finalidade de ser representado perante o público. O autor defende que encontramos no texto dramático os mesmos elementos que compõem o texto narrativo, e assim podemos utilizar o mesmo tipo de abordagem em sua análise. D’ Onofrio estrutura o texto dramático em níveis, nos quais situamos as questões referentes às ações do enredo, às personagens, ao tempo, no espaço e às reflexões que as personagens fazem sobre o tema abordado na peça. É através dessa estruturação que analisaremos o conto Muribeca. No que se refere ao nível fabular, encontramos a exposição do tema abordado, ou seja, as ações que, ligadas entre si, formam a trama e o enredo, já na primeira frase do conto: “Lixo? Lixo serve pra tudo” (FREIRE, 2005, p. 25). A personagem do conto encontra, nos resíduos descartados pela sociedade, uma maneira de sobrevivência, colocando-nos frente à dura realidade de saber que alguém vive em um lixão. Nesse sentido, podemos dizer que o autor trata, no conto, da extrema miséria em que vive uma parte da população de nosso país, pessoas que, literalmente, sobrevivem. A miséria é tratada no texto não apenas como a ausência dos bens essenciais à vida, mas também como a pobreza de espírito, de esperança, de confiança, a dor de alguém que, descrente de tudo e de todos, vê no lixão o único meio de subsistência. O conflito da trama nos é apresentado na seguinte frase: “E por que é que agora querem tirar ele da gente?” (FREIRE, 2005, p. 25). Assim, sabemos da possibilidade de retirada da população que vive naquele lixão. É a partir desse apelo da personagem, onde uma mãe de família explica as vantagens de viver nesse lugar, que Freire estrutura o conto. O desenvolvimento da trama se dá com a personagem narrando a facilidade de encontrar alimento, vestimenta, brinquedo e mobília, naquele lugar. Da felicidade que é a chegada do caminhão de lixo, de como homens, crianças e animais festejam este momento. Encontramos o clímax no trecho exposto abaixo, quando a personagem chega ao ápice do seu apelo: Agora, o que deu na cabeça desse povo? A gente nunca deu trabalho. A gente não quer nada deles que não esteja aqui jogado, rasgado, atirado. A gente não quer outra coisa senão esse lixão pra viver. Esse lixão para morrer, ser enterrado. Pra criar os nossos filhos, ensinar o nosso ofício, dar de comer. Pra continuar na graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não faltar brinquedo, comida, trabalho (FREIRE, 2005, p. 25).

Por um momento, somos pegos pela emoção, caímos no jogo do autor. No entanto, diante da extrema miséria, resta à personagem, sem ver outra opção, defender aquilo que lhe restou: sobreviver com os seus, daquilo que é a sobra da sociedade, já que não lhe foi dado o direito de trabalhar e viver dignamente. Nesse sentido, por falta de opção, devido à exclusão social e à total falta de direitos, a personagem foi jogada no conformismo, Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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demonstrando que é melhor ter o lixão que a alimenta, veste, dá moradia, a não ter nada. O conto é esse grito de desespero, de alguém que, em pleno abandono social, não vê mais qualquer saída. No desenlace, Freire revela sua armadilha num jogo linguístico em que utiliza as palavras “lixo” e “paraíso”. Essa contradição nos elucida sobre o processo de extrema exclusão social em que vive a personagem do conto; o seu paraíso é aquele lixão, a vida entre os detritos. Assim, o tema da animalização humana abordado no poema de Manuel Bandeira é retomado pelo autor. Não, eles nunca vão tirar a gente deste lixão. Tenho fé em Deus, com a ajuda de Deus eles nunca vão tirar a gente deste lixo. Eles dizem que sim, que vão. Mas não acredito. Eles nunca vão conseguir tirar a gente deste paraíso (FREIRE, 2005, p. 25).

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No nível atorial, aquele no qual encontramos as personagens que vivem os fatos que acontecem no enredo, D’ Onofrio (2001) afirma que, assim como no gênero narrativo, as personagens são os suportes vivos das ações: personas ficcionais inventadas pelo dramaturgo para exercerem determinadas funções. No conto, é apresentado apenas um personagem, que podemos classificar como protagonista. Sem ser identificada por um nome, a personagem representa uma máscara social, a voz de um coletivo, de um coro. D’ Onofrio, ao falar da máscara social, diz que a mesma substituiu a máscara física, aquela das tragédias e comédias do teatro grego. Segundo o autor, encontramos a máscara social no teatro moderno e ela representa as pessoas de uma mesma classe econômica e cultural que possuem características comuns. No nível descritivo, encontramos as descrições de espaço e tempo, e nelas, as indicações de cenário e, muitas vezes, de como devem ser ditas as falas. No conto, o tempo não é mensurado, não é apresentado explicitamente; no entanto, podemos encontrá-lo imbricado na ação do enredo. Assim, podemos falar do tempo da ação, aquele desenvolvido a partir do enredo, da trama. O tempo do conto é o da fala da personagem, do seu apelo. A personagem chega, expõe o seu drama e sai, como um personagem de uma peça de teatro. Já o espaço é visivelmente apresentado logo no início do conto: Por exemplo, onde a gente vai morar, é? Onde a gente vai morar? Aqueles barracos, tudo ali em volta do lixão, quem é que vai levantar? Você, o governador? Não. Esse negócio de prometer casa que a gente não pode pagar é balela, é conversa pra boi morto. Eles jogam a gente é num esgoto. Pr’onde vão os coitados desses urubus? A cachorra, o cachorro? (FREIRE, 2005, p. 25).

No trecho apresentado acima, o autor faz, através da fala da personagem, uma radiografia do espaço onde desenvolve sua narrativa. Barracos, lixo, urubus e cachorros formam uma imagem, um típico lixão, sem qualquer cuidado, que depois a personagem chamará de paraíso. É nesse jogo, de palavras que aparentemente se contrapõem, que são antagônicas, que Freire faz sua crítica social. Se para nós o lixão é um lugar inospitaleiro, a personagem do conto o vê como um paraíso, lugar que lhe traz a subsistência, que lhe garante os direitos Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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básicos a moradia, alimentação, vestimenta, direitos que lhe foram tirados, realidade de um país onde a desigualdade social ainda é um dos problemas mais graves. Em um relatório da ONU (Organização das Nações Unidas), divulgado em julho de 2010, o Brasil aparece com o terceiro pior índice de desigualdade social no mundo. O relatório apresenta, como principais causas dessa imensa disparidade social, a falta de acesso à educação de qualidade, uma política fiscal injusta, baixos salários e a dificuldade de a população usufruir de serviços básicos oferecidos pelo Estado, como saúde, transporte público e saneamento básico. É na análise do nível reflexivo que encontramos as argumentações que as personagens fazem sobre os fatos que estão acontecendo. No conto Muribeca, Freire nos dá um soco no estômago ao ecoar um grito de uma mulher que reivindica o direito de estar/permanecer num lixão, lugar onde vive e de onde tira a sua sobrevivência. A personagem, que como uma “mulher-urubu” defende o seu espaço, o único espaço que lhe foi dado, o único que lhe restou, representa uma realidade cada vez mais crescente em nosso país: a situação de extrema pobreza em que vive uma grande parte da população. É como se Freire quisesse dizer, com outras palavras ou com suas palavras, o poema de Manuel Bandeira que tanto lhe tocou, e nos diz de maneira abrupta: “vi bichos na imundice do lixão... e esses bichos, meu Deus eram homens”.

O conto Totonha e os elementos do texto dramático Moisés (2006) considera o teatro como a arte do diálogo, arte que se distingue como uma narrativa dialogada, na qual encontramos um conflito, que se expressa numa trama, com início, meio e fim, e afirma que esse tipo de diálogo é a característica principal do teatro: Narrativa dialogada, eis a característica textual, ou formal do teatro. E como narrativa dialogada, ostenta os ingredientes que justificam o designativo, estrutura-se com recursos expressivos que fazem do conto, da novela e do romance tipos específicos de narrativa. No caso do teatro, porém, trata-se de narrativa em diálogo (MOISÉS, 2006, p. 126).

Em outras palavras, Moisés enfatiza que encontramos no texto teatral todos os elementos presentes no gênero épico. No entanto, esses elementos que se articulam e formam a trama na narrativa são expressos no texto dramático através do diálogo e das didascálias. O autor conceitua o diálogo teatral como dramático e diz que o mesmo pode ser considerado sincrético. Isto porque, do ponto de vista da expressão, incorpora os demais recursos expressivos, utilizando os mesmos ao seu propósito, ou seja, a comunicação interpessoal por meio de palavras. Moisés conclui sua conceituação sobre o diálogo dramático dizendo que, sendo a “Arte dialógica, não mais, não menos que dialógica, o teatro reduz tudo ao diálogo: ação, descrição, narração, dissertação, personagens, espaço, tempo, etc.” (2006, p. 128). O autor infere os seus estudos, dividindo e classificando o diálogo teatral em três tipos: o diálogo-descrição, o diálogo-narração e o diálogo-dissertação, como visto anteriormente. O conto Totonha é um desabafo, uma fala ligeira, parece até um trecho saído de uma peça de teatro. A personagem do conto disserta sobre a inutilidade da leitura diante de sua Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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realidade, argumenta sobre a importância de aprender a assinar um nome que não tem valia nenhuma, resiste em baixar a cabeça para a escrita. Aqui também Freire desenvolve uma narrativa dentro de uma poética dos excluídos, retoma o tema do conformismo e da resistência, joga o leitor na dura realidade de Totonha, que aceita o seu exílio social e resistente ao aprendizado de letras e números. O grito de dor e desespero se dá através desses temas, que são apresentados até com certa pitada de humor, ácido e irônico, bem ao modo de Freire. O autor não quer que nos apiedemos da personagem, mas que entendamos sua revolta com uma sociedade que a coloca à margem. Ao elencarmos os elementos do texto dramático no referido conto, encontramos, no diálogo-descrição, as implicações de espaço e das personagens. No que se refere ao espaço, Freire o deixa expresso no seguinte trecho: No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa (FREIRE, 2005, p. 39).

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Totonha é uma habitante do Vale do Jequitinhonha, região situada no estado de Minas Gerais, conhecida devido a seus baixos indicadores sociais e por apresentar características do sertão nordestino. É nesse lugar simples, de vida rudimentar e de contato com a natureza que a personagem está inserida. Totonha pode ser classificada como protagonista, e, ao levantar a voz, mostra que mesmo ali, esquecida, exilada da sociedade, tem a sua valia, assumindo, assim, a sua autonomia. Nesse sentido, Moisés afirma: Em qualquer dos casos, porém, as personagens se assumem como individualidades autônomas: do prisma do foco narrativo, todo texto dramático se exprime na primeira pessoa do singular. Cada protagonista fala no próprio nome; o “eu” é, por excelência, a pessoa verbal do teatro (MOISÉS, 2005, p. 136).

Totonha se individualiza, sai da massa de excluídos, mesmo que por um instante, rebela-se, sai do coro, verbaliza sua revolta. Ela, que foi coisificada por uma sociedade que rotula e classifica tudo, como se pessoas fossem produtos. Ela que se transformou numa coisa estranha, devido ao abandono, à solidão, à pobreza, resiste à intervenção do homem letrado em seu cotidiano simplório. E nesse sentido Totonha comunga do mesmo conformismo que a personagem do conto “Muribeca”, pois não querem mais mudar sua situação, não confiam em mais nada, habituaram-se à inóspita realidade em que foram jogadas. Nessa resistência, podemos ver o estado de extrema opressão em que tais personagens são apresentadas. Assim, podemos dizer que os contos tratam de pessoas e suas dores, e que na possibilidade de essas dores serem amenizadas, preferem não as perder, pois já não sabem mais viver sem elas. No diálogo-narração, no qual encontramos as implicações de ação e de tempo, podemos inferir que a ação principal do conto se desenrola a partir do seguinte trecho: “Capim sabe Ler? Escrever? Já viu cachorro Letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso” (FREIRE, 2005, p. 39). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Contos cênicos: dramaticidade e denúncia social em Totonha e Muribeca, de Marcelino Freire

Totonha se compara a animais e plantas, porque é assim que é tratada, como coisa ou como animal; e, entendendo o espaço a ela destinado, contenta-se com seu conhecimento. É a partir da recusa da personagem, ao não querer ser inserida no mundo da leitura, que o autor desenvolve a ação principal do conto. E ela segue apresentando justificativas para sua escolha, e é aí que Freire ecoa os seus gritos, dá-nos suas punhaladas de verdades, verdades que doem, como as encontradas no trecho baixo: Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só para a mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta? (FREIRE, 2005, p. 39).

Aqui encontramos o clímax do enredo, o ponto central do discurso da personagem. Totonha indaga a necessidade do aprendizado da leitura, se tal ação terá alguma eficácia em sua rotina, em seu mundo de extrema simplicidade. Cansada do estado de coisificação, alega não querer ser apenas um dado, um número, quer ser ignorante, permanecer no seu anonimato. Freire deixa clara a lucidez da personagem em saber qual lugar lhe foi destinado pela sociedade, e ela, consciente disso, acha que pode se vingar, recusando o processo de letramento. Há, no discurso, uma imensa revolta e dor, que nitidamente ficam expressas na frase “Quem está atrás do nome não conta?” (FREIRE, 2005, p. 39). A falta de perspectiva demonstrada pela personagem ecoa como um grito de socorro, uma queixa cansada, um discurso de quem já não acredita mais em nada. O tempo em que a ação é desenvolvida configura-se como atemporal, realidade de ontem e de hoje, num país governado por e para poucos. Totonha e a personagem de “Muribeca” integram uma maioria da população que sofre com os descasos dos políticos que historicamente administraram pensando em si mesmos, cujo resultado são dramas como o dessas personagens, que nos são apresentadas dia após dia, e que, pelo reflexo do que temos vivido, infelizmente, se perpetuarão ainda por um longo tempo. Segundo Moisés (2005), no diálogo-dissertação encontramos o estado absoluto da ideologia ou do pensamento do texto. No conto em análise, Freire dá voz a um desses seres anônimos que, muitas vezes, passam a vida inteira sem o direito à fala. Totonha ganha voz e fala, torna-se protagonista, ao menos durante a ação do conto, sai da sua invisibilidade e ganha o poder da palavra, da opinião, da voz. Assim como Tépis, o primeiro ator de teatro, Totonha irrompe o coro e toma a fala, apresenta o seu drama. No entanto, seu pranto traz uma relutância com o novo. Cansadas, as personagens dos contos analisados não veem mais solução para os seus problemas. Estão sem esperança. Preferem o que já está garantido a promessas ocas. Assim, Marcelino Freire escreve sua literatura como um punhal que atravessa a carne, um grito que ecoa no espaço, fazendo-nos ver “os bichos na imundice do pátio”, fazendo-nos ver novos severinos em suas vidas-morte. É Freire em sua exposição fotográfica da realidade. Sua imagem é a PALAVRA e sua fotografia é o conto, exemplificando a conceituação de Cortázar (1993), ao estabelecer uma analogia entre o conto e a fotografia, mostrando-nos que ambas as artes fazem um recorte da realidade, apontando limites que constituem um “fragmento” capaz de indicar uma realidade muito mais ampla. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Francisco Alexsandro da Silva | Vilani Maria de Pádua

Nesse sentido, Freire nos presenteia em seus contos com a dura realidade de um país marcado pela desigualdade social, pelo descaso com uma grande parcela da população. E em seus contos ele não tem a menor cerimônia de lhes atribuir elementos do teatro para que outras vozes se somem e formem um coro, porque, quando gritamos juntos, o grito ecoa mais forte.

Considerações finais

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Deparamo-nos com os contos de Marcelino Freire no palco, numa encenação do Coletivo Angu de Teatro, companhia cênica de Recife que adaptou para a cena algumas obras do referido autor. Na ocasião, foi encenada a peça Angu de Sangue, que transpunha para a cena contos do livro de título homônimo. Os textos afinaram-se tão bem com a cena que mais pareciam ter sido escritos com o propósito da encenação. A palavra literária ultrapassava os seus limites e encontrava a entonação do ator, que lhe dava voz e vida. Eram mesmos contos? Indagávamo-nos. Uma imensa dramaticidade compunha aqueles textos que se assemelhavam a monólogos e que mais pareciam ter sido escritos para serem interpretados. Quando iniciamos as nossas pesquisas para elaboração das análises dos contos estudados e percebemos a relação estabelecida por Freire com o teatro, pudemos entender a presença do elemento dramático em sua obra. Freire encontra no conto, gênero ainda desprendido das conceituações e enquadramentos literários, o lugar ideal para a construção do seu angu, mistura conto e teatro, teatraliza sua narrativa, torna-a diálogo dramático, toma emprestado do texto teatral o poder da palavra dita, recitada, interpretada. O autor, que fez teatro no bairro de Água Fria, quando morou na capital pernambucana, sempre sonhou em ser dramaturgo. Essa paixão pelo teatro é expressa na dramaticidade de seus contos. A pesquisa aqui realizada, que propunha elencar os elementos dramáticos nos contos Muribeca e Totonha, de Marcelino Freire, dimensiona-se a partir do aprofundamento teórico. Vimos que a relação de hibridismo entre os gêneros literários não é um evento atípico; que os gêneros dialogam entre si, sem necessariamente sofrerem descaracterizações em suas estruturas. Rosenfeld (1985) exemplifica bem esse fenômeno, ao falar das baladas, apresentadas, muitas vezes, em diálogos ou narradas; dos contos que apresentam apenas diálogos, ou mesmo dos monólogos em que um personagem narra fatos. Dos gêneros literários épicos, o conto é, talvez, o gênero com maior abertura para estabelecer esses diálogos. Bosi (2006), ao falar do conto contemporâneo, afirma que o mesmo ora é quase documento-folclórico, ora quase-crônica, ora quase-drama, ora quase-poema. No entanto, esses diálogos a que o conto se disponibiliza não o descaracterizam, posto que sua estrutura não é uma fórmula fechada, mas uma base de onde se erguem múltiplos e variados pilares. Freire ergue os seus pilares sedimentados com o teatro, com a ação dramática, evoca gritos de sub-humanos de submundos que estão ali figurando o nosso cotidiano, gente invisível aos nossos olhos. Freire nos faz vê-los, apresenta-nos a sua realidade e nos propõe gritarmos o seu grito. Nos contos Totonha e Muribeca, os elementos dramáticos saltam aos nossos olhos, dão-nos vontade de interpretá-los, de vê-los em cena. Foram essas características que alimentaram o desejo de realizarmos esse estudo, de elencarmos esses elementos e de entendermos a relação estabelecida com o teatro na escrita de Freire. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Contos cênicos: dramaticidade e denúncia social em Totonha e Muribeca, de Marcelino Freire

O trabalho em questão também se propôs a abrir um novo olhar sobre a obra de Marcelino Freire, bem como sobre esses possíveis diálogos estabelecidos entre os gêneros literários. Para além de enumerarmos os rudimentos dramáticos, fez-se necessária a compreensão de cada gênero, das suas estruturas, conceitos e formas, bem como o entendimento do processo de hibridismo entre os gêneros literários. Contudo, a obra de Marcelino Freire não fica na técnica, apenas, visto que os recursos literários são utilizados em favor de seu compromisso social, pois, como diz o próprio autor, seus escritos são ‘gritos’, denúncias, já que põem em cena o povo reivindicando os seus direitos.

Referências ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Ed. Guimarães, 1964. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. BOSI, Alfredo. (Org.) O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 2006. CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993. D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 2: teoria da lírica e do drama. São Paulo: Ática, 2001. FREIRE, Marcelino. Angu de sangue. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. FREIRE, Marcelino. Contos negreiros. São Paulo: Record, 2005. MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa II. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. REBÊLO, Paulo. Uma novela chamada lixão da Muribeca. 2008. Disponível em: <https://rebelo.org/2008/uma-novela-chamada-lixão-da=muribeca/> Acesso em: 08 fev. 2018. ROSENFELD, Anatol. Teoria dos gêneros. In: O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1985.

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Narrador, metalinguagem e metaficção em A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins Narrator, metalanguage and metafiction in A rainha dos cárceres da Grécia, by Osman Lins Rosembergh da Silva ALVES1 Ivon Rabêlo RODRIGUES2 Resumo: Neste artigo, propõe-se analisar A rainha dos cárceres da Grécia, obra de Osman Lins. Trata-se de romance de construção fragmentada, no qual um narrador alterna seu texto entre análise e resumo de um romance que também se chama A rainha dos cárceres da Grécia. O narrador-protagonista se debruça sobre o romance de Julia Marquezin Enone, falecida amante, no qual se narram os esforços da protagonista Maria de França para ser aposentada por invalidez, imbricando-os com as peripécias da ladra Ana, em um lugar chamado Grécia. A obra é marcada pela mise en abyme, colocando em primeiro plano os bastidores da escrita literária, assumindo dimensão teórica e crítica, pois sua feição é metalinguística, sendo a obra um metarromance. Ela mostra que o autoconhecimento, objetivo da escritura do diário, se dá no contato com um romance ou com um ensaio. A partir dessas questões, a narrativa centra-se na posição do narrador, na forma como ele faz a mediação entre autor e leitor. Através do discurso e da função desse narrador, categorias narrativas e procedimentos literários são levantados, discutidos e questionados no decorrer da narrativa. Utilizou-se o suporte teórico de Bakhtin (2003), Dalcastagnè (2005), Dallenbach (1979), Todorov (1969), entre outros. Palavras-chave: Romance. Narrador. Metarromance. Osman Lins.

99 Abstract: This article aims to analyze the novel A rainha dos cárceres da Grécia, by Brazilian author Osman Lins. It is a fragmented literary construction, in which a narrator alternates his text between analysis and synopsis of a novel that is also entitled A rainha dos cárceres da Grécia. The narrator analyzes Julia Marquezin Enone’s novel (his already dead ex-lover) in which Maria de França’s efforts to be retired for disability are narrated, intermingling them with the adventures of a thief named Ana in a place called Greece. The novel is marked by mise en abyme, putting in the foreground the backstage of literary writing, assuming a theoretical and critical dimension, because its feature is metalinguistic, being a “metarromance”. It shows that self-knowledge, the goal of journal writing, takes place into the contact with a novel or an essay. From these questions, the narrative focuses on the narrator’s position, the way he mediates the relationship between author and reader. Through the discourse and function of this narrator, narrative categories and literary procedures are raised, discussed and questioned throughout the narrative. The theoretical support of Bakhtin (2003), Dalcastagnè (2005), Dallenbach (1979), Todorov (1969), among others, was used. Keywords: Novel. Narrator. “Metarromance”. Osman Lins.

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Pós-graduado em Literatura Brasileira | FAFIRE/Recife/PE | E-mail: rosemberghalves@bol.com.br Mestre em Literatura e Interculturalidade | UEPB/Campina Grande/PB | e orientador do trabalho | E-mail: ivonrabelo@hotmail.com 1 2

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Rosembergh da Silva Alves | Ivon Rabêlo Rodrigues

Introdução

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Osman Lins, escritor pernambucano cuja estreia literária se deu em 1955 com a publicação do romance O visitante, escreveu romances, contos, ensaios, artigos, narrativas adaptadas para televisão, livro de viagens e peças de teatro, inclusive texto infantil. Em sua fortuna crítica, percebe-se que muitas vezes é considerado um escritor centralizado na interioridade e, principalmente, adepto ao experimentalismo. O seu projeto literário mescla-se com sua biografia e os fatos que marcaram sua história pessoal aparecem de maneira recorrente em sua obra. Em Nove, novena (1966), Avalovara (1973) e A rainha dos cárceres da Grécia (1976) empreende diversas reflexões de caráter metalinguístico, abordando os efeitos da crise de representação, o papel da escrita e da leitura literária, além da relação entre o texto ficcional e a realidade empírica. O objeto de análise do presente artigo é o seu último romance, A rainha dos cárceres da Grécia, finalizado e publicado em vida, legando obra excepcional à literatura brasileira. Trata-se de um romance em forma de diário pessoal, de construção fragmentada, no qual um narrador alterna seu texto entre a análise e o resumo de um romance que se encontra oculto e de difícil compreensão, que também se chama “A rainha dos cárceres da Grécia”. Na obra, o narrador-protagonista, um professor de Ciências Biológicas, cujo nome não é mencionado, se debruça sobre o romance A rainha dos cárceres da Grécia, de Julia Marquezin Enone (doravante indicada pelas iniciais J. M. E.), sua falecida amante, no qual são narrados os inglórios esforços da protagonista Maria de França para ser aposentada por invalidez, em Recife, imbricando-os, ao final, com as peripécias da ladra Ana, em um lugar chamado Grécia.

A narrativa em abismo e o metarromance O romance que se propõe estudar aqui, do autor pernambucano, é marcado pela mise en abyme, e coloca em primeiro plano os bastidores da leitura literária. Nele, o leitor somente tem acesso ao relato de J. M. E., marcado pelo uso peculiar do tempo e do espaço, através do filtro do narrador. O romance é metalinguístico, pois versa sobre si mesmo o tempo todo, e ainda dá explicações sobre como é escrever um romance. Nesse sentido, a principal característica da função metalinguística é o fato de a mensagem estar centrada no próprio código. Cada função tem seu foco num dos elementos da comunicação e, para a função metalinguística, nada é mais importante do que a própria palavra e seus desdobramentos. Ou seja, nela, o código é utilizado para falar sobre o próprio código, explicando-o e analisando-o. Portanto, esse romance constitui um código metalinguístico usado para tratar do próprio romance, inserindo, em sua narrativa, um outro romance. Assim, são dois romances, um dentro de um outro, o principal, configurando-se, assim, como narrativas em abismo (mise en abyme). As narrativas em abismo são recursos recorrentes nas mais variadas mídias. No entanto, são poucas as vezes em que de fato toma-se conhecimento de que esses abismos estão presentes. O termo francês mise en abyme foi proposto inicialmente em 1893, pelo escritor André Gide, sendo ampliado por Lucien Dällenbach (1979, p. 52-53), que utilizava Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Narrador, metalinguagem e metaficção em A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins

a expressão fazendo referência a qualquer “trabalho dentro de um trabalho”, qualquer mídia que trouxesse mídias de mesmo tipo aninhadas em sua estrutura. Nesse sentido, a principal utilidade da narrativa em abismo é traçar paralelos com o enredo principal, em que cada camada pode ser encarada como uma releitura, uma sátira ou um símbolo daquilo que o leitor acompanhará em outros níveis da diegese. Elas adicionam novos sentidos à estrutura e podem servir para causar estranheza e curiosidade, incutindo diversas sugestões nos processos psíquicos do leitor. Tzvetan Todorov (1969), em As estruturas narrativas, destaca o procedimento de “encaixe em cadeia”, através do qual uma história se torna um prolongamento da outra. Dessa forma, o encaixe ocorre quando uma história secundária é inserida na primeira narrativa, ocasionando a interrupção desta pela aparição de uma nova personagem, por exemplo. Assim, uma narrativa alimenta a outra, de modo que cada uma delas remete a outra numa série de reflexos. Por meio do encaixe e do espelhamento, a narrativa encaixante é a “narrativa de uma narrativa”. A perspectiva da narrativa encaixante, conforme Todorov (1969), é semelhante ao processo de autorreflexão do mise en abyme. A narrativa em abismo, ou procedimento de duplicação especular, é um mecanismo discursivo que se manifesta nas mais variadas formas. O jogo narrativo, por meio do efeito do mise en abyme, ou redobramento especular da narrativa, funciona como um espelho (DÄLLENBACH, 1979, p. 67-68). No enredo de Osman Lins, J. M. E., romancista renegada pela família, escreveu um livro e morreu meses depois. O romance não fora publicado, pois as editoras recusaram o manuscrito. Contudo, a família, sem disposição ou competência para sequer chegar a ler, herdou o direito à obra e impediu a sua publicação, temerosa em relação ao que pudesse estar ali escrito. O amante de Julia, o narrador-protagonista do romance de Osman Lins, testemunha da escrita do livro e leitor empenhado, dispõe-se a revelá-lo em um diário ensaístico. Em meio a notícias de jornais, reflexões, confissões, referências teóricas e literárias, a personagem central do romance de J. M. E., Maria de França, mulher pobre e louca, é exposta, bem como a sua condição de visibilidade obscura e residual. Como assinalam Adacheski & Pacheco (2014), a romancista J. M. E., na versão transmitida por seu amante, revela-se uma nômade em busca de novas experiências. E o escritor do diário se envereda no labirinto desse romance em busca de si e da morta, num enredamento ardiloso que explora as armadilhas da linguagem e, dessa forma, a narrativa osmaniana assume-se ficcional, afirmando-se e duvidando de si, desprovida de molduras. Em A rainha dos cárceres da Grécia, o romance também é objeto de uma busca, nesse caso, empreendida por um leitor (o narrador-protagonista), que narra as vicissitudes de uma leitura e os percalços de uma interpretação. A obra lida é dada obliquamente pelas mediações do fictício leitor, que a comenta, resume e cita, de modo que ela só nos chega por pedaços, filtrada por suas seleções e interpretações. O romance assume uma dimensão teórica e crítica, pois sua linguagem é predominantemente metalinguística, cuja linguagem-objeto é a arte narrativa, ou seja, uma metaficção através de um metarromance. Barbosa (2014) aponta para um traço decisivo na caracterização de Osman Lins, a saber, a luta em preservar a qualidade artística de sua ficção, guardando para os textos ensaísticos a exasperação que o dominava quando via e refletia sobre as condições culturais Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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em que existia. Não que a sua ficção, desde o início, deixasse de fora os acontecimentos, que eram, e como em toda ficção, de grande qualidade literária, traduzidos por imagens fortes de construção que fizessem convergir personagens em situações, tempos e espaços narrativos, instaurando significados intimamente dependentes do trabalho com a linguagem literária.

O narrador-protagonista

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Osman Lins constrói um romance múltiplo, constituído de fragmentos que, por vezes, aparentam maior ou menor coesão, retirados de fontes variadas, organizado em uma linha cronológica principal regular, mas com diferentes linhas cronológicas secundárias, que por vezes retrocedem e/ou se entrecruzam. Constantemente levando o leitor a se questionar sobre os limites e conceitos do real e do ficcional, o escritor compõe uma obra que é por ele definida explicitamente como “romance”, como se pode observar na descrição que consta na ficha catalográfica da edição consultada em Lins (2005). Dalcastagnè (2005) diz que Osman Lins nos legou, com A rainha dos cárceres da Grécia, uma espécie de testamento literário que estreita a fronteira entre criação e vida, a partir de um posicionamento ético, pois ouvir suas personagens não quer dizer apenas transcrever-lhes a fala, pois isso seria fraudar suas existências e destruir as intenções do autor. Por meio da leitura do romance pelas lentes do narrador-protagonista, que também é o ensaísta, podemos criar um estranhamento ao nos depararmos com Maria de França e sua peregrinação pelos corredores da Previdência Social, principalmente porque quem se coloca entre nós leitores é uma “escritora” e seu “comentarista”, o que faz com que o distanciamento entre o leitor e as personagens cresça e a abordagem se torne extremamente complexa. Ainda de acordo com Dalcastagnè (2005), quem cria a polêmica não é exatamente a autora J. M. E., mas o homem, o professor secundarista que interpreta seu livro. No romance, é preciso ler o que se esconde nas entrelinhas, dialogando com a farsa e as ambiguidades do texto. Esse narrador sem nome, que escreve um ensaio/romance no formato de um diário sobre o romance de sua amada, justifica sua escrita na intenção de recuperar a obra desvalorizada de J. M. E. No entanto, em outros momentos da narrativa, ele admite que trazer à tona a história de Maria de França, misturada às suas lembranças e à análise do romance, seria como voltar a sentir a presença da escritora e tê-la perto de si. Através da interpretação do narrador, que também é uma personagem, J. M. E. tem empatia por Maria de França. No entanto, a personagem é sempre mencionada como louca, conferindo-lhe, deste modo, um estatuto superior. Para Dalcastagnè (2005), a loucura possui uma certa aura, que lhe permitiu, em diferentes momentos da sua história, ser vista como seu próprio reverso – sinal de sabedoria em meio a um mundo em desordem. Nesse romance “encaixado”, também intitulado de A rainha dos cárceres da Grécia, a escritora J. M. E. deixa sua personagem Maria de França se expressar através de longos monólogos e devaneios, enchendo-a de vida e de esperança, apesar dos obstáculos enfrentados na cidade do Recife. Assim como sua protagonista, J. M. E. também passou por percalços e problemas pessoais, sendo internada em hospícios, fato que, conforme o narrador no dado romance encaixante, denota uma proximidade entre a autora e sua personagem.

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Narrador, metalinguagem e metaficção em A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins

Peixoto (2018) destaca que o narrador-personagem, em um claro exercício metaficcional, vislumbra que, mesmo havendo hibridismo na estrutura selecionada para a escrita, pretende que o romance não seja impessoal, como o ensaio literário, apesar de utilizar as ferramentas linguísticas do ensaio, recurso no qual esse narrador busca, em vez disso, um “convívio mais leal” com o leitor, escrevendo, portanto, na forma de diário. É perceptível o início de uma construção narrativa que, já em suas escolhas estruturais, aponta para a mistura da pessoalidade com a impessoalidade, elementos diametralmente opostos que constituirão a identidade paradoxal do narrador contemporâneo do romance A rainha dos cárceres da Grécia. No trecho do romance, a seguir, o narrador-personagem se posiciona diante de sua escrita: Todo ensaio literário, obediente a uma convenção que firmou autoridade, evoca o narrador oculto. Inviável, nos dois casos, o discurso chamado pessoal – que precisa as circunstâncias da enunciação. O ensaísta nunca se dirige a nós em um tempo e um lugar definidos: intemporal e como abstrato, só nos revela de si, mediante o ardil de um texto que de certo modo o oculta e portanto nos ilude, suas leituras (sempre estimáveis) e seus conceitos (jamais inconclusos). Tomarei outro rumo. Quero um ensaio onde, abdicando da imunidade ao tempo, e, em consequência, da imunidade à surpresa e à hesitação, eu estabeleça com o leitor – ou cúmplice – um convívio mais leal. Que outra opção, neste caso, impõe-se mais naturalmente que o diário? Assim, dia a dia seguireis o progresso e as curvas das interrogações que me ocorrem. Vamos pois ao meu ensaio entre íntimo e público, confidencial, livro a ser composto devagar e no qual há de imprimir-se o fluxo dos dias (LINS, 2005, p. 14, grifo do autor).

O romance moderno tem-se caracterizado, em larga medida, pela co-presença de diversos gêneros do discurso que, segundo Bakhtin, são “tipos relativamente estáveis de enunciados” (2003, p. 262, grifo do autor). Ainda segundo esse teórico, podemos afirmar que o romance é um gênero, sobretudo, de natureza dialógica e polifônica. Além disso, as fronteiras entre ficção e não ficção, entre literatura e teoria, entre autor e objeto artístico têm sido, constantemente, desafiadas no romance moderno, em nome de uma nova poética: híbrida, autorreflexiva e ironicamente problematizadora, como é o caso da narrativa em A rainha dos cárceres da Grécia, em que verificamos um verdadeiro exercício de experimentação da escrita, um “romance de permutações, onde tudo invade tudo” (LINS, 2005, 191). É um exemplo de narrativa que transgride os limites das convenções artísticas ao associar história, teoria e crítica literárias, textos de diferentes domínios do conhecimento e das artes numa mesma trama. A construção desse romance, em que se entrecruzam diferentes tipos de discurso, é responsável por uma teia densa e híbrida, que leva o leitor a se questionar o tempo todo se está lendo um romance, um ensaio ou um diário.

O diário-ensaio, o narrador-autor e o discurso metaficcional O professor, leitor do romance de J. M. E., inicialmente resolve escrever um ensaio sobre o livro de sua amante. Opta depois, já no papel de narrador-personagem, pelo gênero diário, fundindo, em alguns momentos, os discursos do diário, do ensaio e do romance de Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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J. M. E. O narrador-autor tenta estabelecer com o seu leitor um “convívio mais leal” e torná-lo seu cúmplice nessa empreitada, pretendendo estabelecer uma relação mais próxima, confidenciando sua relação com J. M. E., por meio de um diário com suas reminiscências. Essa estratégia discursiva do narrador-autor remete-nos a uma situação de sinceridade que nos leva a questionar sua real intenção ou até mesmo acreditar em suas afirmações sobre o romance de Julia e a personagem Maria de França, pois elas nos são apresentadas através de sua perspectiva e de seu ponto de vista. O diário-ensaio do narrador-autor oscila entre o íntimo, o público e o confidencial. Para torná-lo mais verossímil, o romance escrito, em forma de diário, foi sendo datado exatamente de acordo com os dias em que estava sendo escrito, tratando-se de uma obra estritamente relacionada aos acontecimentos de cada dia. Sob a perspectiva metaficcional, o romance A rainha dos cárceres da Grécia é um romance que apresenta uma síntese parcial do projeto literário de Osman Lins, como se observa no excerto a seguir: A Rainha dos Cárceres, como todo romance de certa envergadura, é um objeto heterogêneo. Formam-no, em variada medida, ressonâncias mitológicas, inquietação metafísica, estudo social, clamor reivindicatório, aversão às instituições, tentativa de análise da psicologia dos pobres (abrangendo seus sonhos, os seus mitos e os seus núcleos de informações), tudo enlaçado com problemas formais de grande atualidade (LINS, 2005, p. 63),

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perspectiva essa já observável na fala do narrador-personagem: “Quem, lendo este ensaio, leia também [...] o esquema aqui exposto ficará talvez decepcionado e pode ser que recuse minha interpretação” (LINS, 2005, p. 62). Dalcastagnè (2005) indica que esse narrador também procura, no texto que constrói, estabelecer sua identidade, pois como não consegue se encontrar no romance de J. M. E., ele traz, para dentro de seu romance uma proximidade e uma intimidade com a escritora que permitam a sua própria revelação. Neste caso, é significativo notarmos e reconhecermos que, mesmo ficando cego, incapaz de se ver e aos outros, ele se torna ambíguo. No movimento mesmo em que tenta manter uma aproximação com J. M. E., ele vai estabelecendo uma distância que o separa da protagonista de Julia, Maria de França, principalmente por meio da interpretação. Por ser um intelectual, o narrador-autor utiliza, em sua escrita, citações e detalhismos enervantes, denotando certa superioridade ao texto de J. M. E., justamente por não se reconhecer ou se identificar com a miséria de Maria de França. Em seu diário-ensaio, o narrador-autor resume e lança pequenos trechos de parte da história da obra de J. M. E., utilizando-se, em alguns momentos, de citações e notas soltas no decorrer do ensaio. Dessa forma, é através do ensaio e por meio de outros recursos discursivos que tomamos conhecimento do romance de Julia Marquezim Enone. Camargo (2008) aponta que, entremeado ao discurso da narrativa sobre a vida de Maria de França, encontra-se um discurso, por parte do narrador-ensaísta, que constitui um questionamento, uma teorização sobre os elementos constitutivos do romance, tais como: a noção de personagem, o problema da autoria, do espaço, do tempo e da focalização ou ponto de vista. E esse discurso que aborda, no interior do texto, questões relativas Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Narrador, metalinguagem e metaficção em A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins

ao fazer literário, à criação literária, à arte romanesca do próprio romance que está sendo examinado, recebe, na teoria e crítica contemporânea, entre outras denominações, a de discurso metaficcional. Damasceno (2013) considera que, ao longo de A rainha dos cárceres da Grécia, esse discurso metaficcional torna-se cada vez mais intenso, à medida que o narrador-autor vai mergulhando no universo ficcional criado por Julia e na experiência de escrever sobre ele. Essa imersão se dá através da incorporação de marcas estilísticas da protagonista Maria de França, e é marcada por períodos nos quais ele tem crises de cegueira, sugerindo o quanto suas imagens do mundo e de si mesmo vão se tornando nebulosas e questionáveis. Esse processo chega ao auge no fim de seu livro, quando deixa de datar suas notas e as páginas do diário. Portanto, torna-se evidente esclarecer que a imbricação do narrador com o romance lido não seja mais controlada pelas datas. Sem mencionar os dias, o texto passa a ser marcado por fluxos de consciência, e não é mais regido pela “perspectiva que o cotidiano delimita”. Isso ocorre antes de se transformar em um dos personagens do romance de Julia, segundo o trecho: “Quem sou eu? Mesmo sem resposta clara, disponho-me a enfrentar o evento obscuro que se forma. Tenho passado a existir na expectativa e na interrogação” (LINS, 2005, p. 208).

Considerações finais Diante do exposto, é possível asseverar que A rainha dos cárceres da Grécia mostra que o autoconhecimento, um dos objetivos da escrita de um diário, também se dá no contato intenso com um romance ou com um ensaio. Osman Lins sugere, assim, que as repercussões da leitura podem ser, em parte, similares às da escrita de si. Fica nítida também a aproximação entre leitura e identidade, através do narrador-autor, responsável pela escolha de escrever notas de leitura em forma de diário, pois quem lê, na tentativa de decifrar um texto, sai de sua realidade familiar e, nesse processo, passa por mudanças. Sendo assim, podemos compreender que A rainha dos cárceres da Grécia se trata de um romance híbrido, heterogêneo, composto por múltiplos textos e discursos diversos. É uma narrativa que rompe com as fronteiras dos gêneros narrativos, pois o leitor se depara com um livro de Osman Lins intitulado A rainha dos cárceres da Grécia, que se apresenta como um romance, mas que o leitor pode reconhecê-lo como um diário-ensaio, escrito por um narrador-leitor-autor sobre um romance, por sua vez também intitulado A rainha dos cárceres da Grécia, escrito por Julia Marquezim Enone, amada do professor-narrador, também personagem protagonista. A partir dessas questões, percebemos que a narrativa está centrada na posição do narrador e na forma como ele faz a mediação entre o autor e o leitor, por meio da relação autor-narrador-leitor dentro do romance A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins. Portanto, é através do discurso e da função deste narrador que algumas categorias narrativas e procedimentos, como a metaficção e a construção das personagens, as categorias de espaço e de tempo, a problemática da perspectiva, a questão do leitor e da leitura, entre outros aspectos, são levantados, discutidos e questionados no decorrer da própria narrativa. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Rosembergh da Silva Alves | Ivon Rabêlo Rodrigues

Referências

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O Conto alexandrino, de Machado de Assis, e o diálogo com a sátira menipeia1 The Conto alexandrino, by Machado de Assis, and the dialogue with menippean satire Mariana Cardoso VILELA2 Vilani Maria de PÁDUA3 Resumo: O presente trabalho tem por proposta desenvolver uma análise sobre o conto machadiano Conto alexandrino, publicado em 1884, na coletânea Histórias sem data, com objetivo de ampliar os estudos sobre a sátira menipeia nas obras nacionais, em destaque nas de Machado de Assis. Dessa forma, partimos da importância atribuída ao uso da sátira pelo autor, o qual, a partir de 1881, com a publicação do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, inicia seu novo momento, mais maduro e, de uma forma debochada, critica a sociedade. Por essa razão, também é necessário um aprofundamento nas obras de tradição luciânica para que se esclareça o estilo de escrita de Luciano de Samósata, seu principal influenciador. Juntamente com a perspectiva de Enylton de Sá Rego (1989), torna-se possível uma melhor compreensão da relação entre Machado e a sátira menipeia, a qual apresenta características além do que seria apenas o sério-cômico. Palavras-chave: Sátira menipeia. Tradição luciânica. Machado de Assis. Conto. Abstract: The present work proposes to develop an analysis of the machadian short story Conto alexandrino, published in 1884 on the collection Histórias sem data, with the aim of increasing the studies about the menippean satire on national works, with focus on the ones by Machado de Assis. Therefore, we stem from the importance attributed to the use of the satire by the author, who, from 1881, with the release of the novel Memórias póstumas de Brás Cubas, initiates his new moment, more mature; in a mocking form critiques the society. For this reason, it is also necessary a literature which goes through lucianic tradition works, to deepen on the writing style of Luciano de Samósata, his main influencer. With the perspective of Enylton de Sá Rego (1989), becomes possible a better comprehension of the relation between Machado and the menippean satire, which presents characteristics beyond what could be only inadvertently comical. Keywords: Menippean satire. Lucianic tradition. Machado de Assis. Short story.

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Trabalho desenvolvido através do Núcleo de Pesquisa e Iniciação Científica da FAFIRE/NUPIC, em 2018, e apresentado em 2019. 2 Graduanda em Letras Português/Inglês | FAFIRE; Pesquisadora do NUPIC | E-mail: mariana.cvilela@outlook.com 3 Dr.ª em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP | professora da FAFIRE; pesquisadora do NUPIC | orientadora da pesquisa | E-mail: vilanip@prof.fafire.br 1

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Mariana Cardoso Vilela | Vilani Maria de Pádua

Introdução “se Machado de Assis não nasceu grego, morreu grego, ou, para ser mais exato, ‘andava grego’ quando morreu” (BRANDÃO, 2001, p. 126)

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O presente artigo tem como propósito uma análise do Conto Alexandrino, de Machado de Assis, inicialmente publicado na Gazeta de Notícias, em 1883 e, posteriormente, em 1884, na coletânea Histórias sem data. O estudo tem como foco a relação do referido conto com a sátira menipeia, buscando compreender a intencionalidade do autor em revelar seu contexto histórico-social, bem como a sua influência da Antiguidade Clássica na crítica social de seu tempo. O conto selecionado induz ao questionamento sobre as técnicas utilizadas por Machado que tanto contribuíram para uma nova fase em sua escrita. Esse seu novo nascimento se dá com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1882, distinguindo-se do que apresentava anteriormente. Ou seja, suas obras agora eram vistas como “tão diferentes entre si [...] que é difícil crer terem saído da pena do mesmo autor no curto espaço de dois anos” (FACIOLI, 2008, p. 38). Através da perspectiva de Enylton de Sá Rego (1989), em O Calundu e a Panacéia, que traz as características da sátira menipeia e a sua origem, relacionando-a a Machado de Assis, torna-se possível uma análise da forma de escrita às avessas, a qual se deu com toda a influência de Luciano de Samósata. Esse tipo de sátira, provinda da tradição grega, apresenta-se como liberdade de crítica à sociedade, baseada no riso sério-cômico. Desse modo, o estudo propõe desvendar a crítica que Machado de Assis, através da sátira menipeia, faz à sociedade do século XIX, ao cientificismo e ao naturalismo que estavam no auge na Europa, influenciando todo o mundo, além de contribuir para os estudos da sátira, criada inicialmente por Menipo de Gandara, na literatura brasileira.

Sátira menipeia ou tradição luciânica Ao adentrar em sua nova fase, mais especificamente em 1882, com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis buscou inspiração no recurso literário da Antiguidade Clássica chamado sátira menipeia. Esta, porém, necessita de um melhor esclarecimento sobre sua origem e características, para que se perceba a real mudança na produção de Machado. Para compreendermos a sátira menipeia, partimos da concepção de Enylton de Sá Rego, ao conceituá-la como um gênero baseado no riso sério-cômico, irônico e ambíguo. Trata-se de uma linguagem caracterizada, a partir da inovação de Luciano, como “essencialmente ambígua, dessacralizando todas as verdades absolutas, solapando inclusive suas próprias afirmações” (SÁ REGO, 1989, p. 51). Dessa forma, apresenta-se como denúncia de todas as teorias que pretendem decifrar e resolver as dificuldades condicionadas ao homem. Luciano de Samósata, inovador e influenciador direto de Machado de Assis na sátira menipeia, nasceu na Síria e viveu durante os últimos anos do Principado do imperador Trajano. Sabe-se pouco sobre a sua vida; apenas que foi aconselhado pela sua família a seguir a função de escultor junto a um de seus tios. Porém, não se encaixou na profissão e seguiu para Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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a Jônia com o intuito de estudar retórica e oratória. Porém, depois se desviou desse caminho e iniciou sua produção literária tão caracterizada pela inovação e a sátira da sociedade. Pela variada composição da obra de Luciano, há dificuldade em classificá-la em termos literários. Através da união de dois gêneros clássicos da literatura grega, o autor apresenta um aspecto inovador, visto que “antes não havia nem relações nem amizade entre o Diálogo e a Comédia” (SAMÓSATA apud SÁ REGO, 1989, p. 46), apresentando uma forma de junção harmoniosa do que se achava impossível conciliar. Para melhor explicar esse encontro, Luciano escreveu A dupla acusação, em que transforma os gêneros em personagens. Nesse diálogo, ele se insere no papel do “Sírio”, que é posto em julgamento pela Retórica, por ter sido ela quem o instruiu no caminho dos estudos e da escrita e, mesmo assim, foi abandonada e substituída pelo Diálogo, o qual também o acusa, afirmando que, conforme enfatiza Muracho, sempre foi sério e especulava sobre os deuses, sobre a natureza, sobre a constituição e evolução do universo, [...] mas que Luciano lhe arrancou a máscara trágica e respeitável, aplicando-lhe uma outra, grotesca, cômica, satírica, quase ridícula, trazendo-lhe as anedotas, o cinismo, a farsa de Êupolis e Aristófanes, que ridicularizavam tudo o que é sério e honesto. Ele até ressuscitou um tal de Menipo, grande latidor (MURACHO, 1996, p. 17 e 18).

Sendo assim, através dessa hibridação do Diálogo, com suas reuniões filosóficas, e da Comédia, entregue à Dionísio4, foi possível transformar o que já estava ultrapassado em algo atraente. Ao mesmo tempo que são apresentados questionamentos sobre a formação do homem e críticas sobre o que estava acontecendo na sociedade, é com o escárnio e a chacota que tudo é escrito para obter uma maior aproximação do público, assim como diz o Sírio, em sua defesa sobre a mudança no perfil do Diálogo: “associei-lhe a Comédia, conseguindo-lhe, deste modo, uma enorme benevolência por parte dos ouvintes, os quais até então, temendo os espinhos que ele possuía, tais os de um ouriço, evitavam tocar-lhe com as mãos” (SAMÓSATA, 2012, p. 118). O próprio Luciano reconhece que essa hibridação de sua técnica literária é atribuída a Menipo de Gadara, o qual dá o nome sátira. Porém, ele mesmo faz mudanças nas características na sátira menipeia que, posteriormente, também poderá ser nomeada de “tradição luciânica” ou “lucianismo”, assim como propõe Enylton de Sá Rego (1989). Luciano de Samósata apresenta, em sua obra, uma leitura da sociedade grega de forma satírica utilizando elementos da mitologia para criar situações ficcionais. Uma das características que enriquece a sua escrita é a brincadeira com o leitor, a ponto de muitas vezes se contradizer, pois, utiliza da dissimulação como ferramenta da narrativa, isto é, a mentira é parte integrante da diegese. A esse respeito, Brandão descreve que O próprio Luciano confessa que não quer privar-se da liberdade de contar histórias (myhologeîn), da qual usaram muitos dos “antigos poetas, historiadores e filósofos que escreveram sobre muitas coisas prodigiosas e fabulosas”. Entretanto, mentindo ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 4

É o deus do vinho, também conhecido como Dioniso, na mitologia grega, e Baco, na romana. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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como os outros, ele afasta-se deles porque confessa que mente: “Numa coisa serei verdadeiro: dizendo que minto”. O leitor, portanto, ele continua com surpreendente clareza, não deve crer em nada do que conta, pois ele, Luciano, fala de coisas que jamais viu, jamais experimentou, jamais ouviu da boca de ninguém, que não existem de todo e que não podem existir (BRANDÃO, 2001, p. 48).

Por isso, juntamente com sua forma de escrita, é importante que se saiba para qual público Luciano destinava suas obras. No século II d.C., na Grécia, quem sabia ler eram os filósofos, sendo essas as principais pessoas às quais as críticas eram direcionadas, exatamente por serem os que poderiam lê-las. Sendo assim, a “arma” de Luciano era o deboche que causava riso, e quem lia era a aristocracia letrada, a qual se afirmava detentora da verdade. A sátira menipeia, ainda pouco estudada, tem se apresentado de uma forma mais complexa do que se imagina. Rego, em sua tese de doutorado, expõe certas características que são adotadas por Luciano como integrantes da própria sátira menipeia, sendo elas o hibridismo genérico como meio de inovação artística; a utilização sistemática da paródia e de citações truncadas; uma extrema liberdade de imaginação e fantasia [...]; o caráter satírico não-moralizante [...] e finalmente, o emprego sistemático do ponto de vista irônico [...] do observador distanciado. Além destas cinco características principais [...] a presença de alusões explícitas ou veladas a textos e autores precedentes de mesma linhagem (SÁ REGO, 1989, p. 191).

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Assim como vimos anteriormente, o caráter híbrido da obra de Luciano se dá através da inovação de um gênero criado anteriormente. Menipo de Gadara aparece como personagem em vários diálogos escritos por Luciano. Diante disso, podemos perceber que ele é considerado por Luciano o mais faceto5 dos homens, sendo ele o real precursor da hibridação dos gêneros. É possível observar essa atribuição logo no primeiro diálogo da obra Diálogo dos Mortos6, quando Diógenes e Pólux discutem sobre as mensagens que Pólux terá que levar quando voltar à terra. Uma dessas mensagens é endereçada a Menipo, dizendo que ele deveria descer ao Hades para continuar “zombando” muito mais, pois a terra já estava muito “zombada” por ele. A utilização da paródia não é uma característica inovadora, pois já era utilizada muitos séculos antes. É através dela que podem ser fundamentados o escárnio e a chacota, permitindo o uso do riso a partir do momento em que se utiliza uma prática textual para que se crie outra, muitas vezes para zombar da original, ou também para apenas reproduzi-la de outra forma. Desse modo, foi criado um gênero que essencialmente foi derivado de outro gênero. Como aponta Facioli, “a paródia tanto indica a ideia de ridicularizar o texto parodiado, quanto pode ser repetição com a ideia de homenageá-lo ou prestigiá-lo” (FACIOLI, 2008, p. 83). ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Palavra derivada do latim “facetus”, que significa brincalhão, engraçado. Obra escrita por Luciano de Samósata. Trata-se do conjunto de trinta diálogos que são classificados por sátiras morais e religiosas. E está separada, dentre seus temas, no quarto e último tomo, seguindo a separação da edição de M.D. Macleod, escolhida por Henrique Muchado para melhor explicar e classificar os temas de Luciano (MURACHO, 1996). 5 6

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Através da terceira característica – uma extrema liberdade de imaginação e fantasia –, observamos a influência da tradição luciânica em Machado de Assis. É nesse ponto que podemos perceber o que Valentim Facioli trata como “mundo às avessas”. Ou seja, Luciano e Machado não fogem à verossimilhança, visto que, internamente, no mundo ficcional, há lógica e os acontecimentos se ligam dentro do que é possível (COSTA, 2006). Todavia, abordam assuntos que aconteciam na sociedade de uma forma completamente diferente do comum e fora do normal, visto que, mostrando “às avessas”, pode fazer rir e criticar; assim, o mundo ao contrário e ficcional critica o mundo real. Uma das características principais na sátira menipeia é a “tradição grega do spoudogeloion”7 (SÁ REGO, 1989, p. 60), o sério-cômico. A junção desses dois gêneros é explicada por Sá Rego como forma de coexistência; ou seja, “sem que nenhuma dessas assuma preponderância, sem que o elemento satírico sirva apenas como um meio para afirmação de uma verdade moral indiscutível” (SÁ REGO, 1989, p. 60). É através dessa tradição que conseguimos observar claramente a diferença entre a conhecida sátira romana e a sátira menipeia, de origem grega. A sátira romana pregava que, através da ironia, tinha o objetivo de moralizar. É interessante ressaltar que a tradição luciânica também se constitui como moralizante, uma vez que, mesmo sem aplicar um valor moral explicitamente, são satirizadas situações contextuais de seu momento histórico. O ponto de vista do kataskopos8 é uma característica anterior a Luciano, mas que se faz intrínseca a sua escrita. Dessa forma, Sá Rego apresenta que, em Luciano, é possível encontrar três formas dessa visão-de-mundo, sendo elas: “um narrador que, presente no texto, vê o mundo do alto; [...] um narrador que, ausente, é mero observador de suas personagens; [...] um narrador que, embora presente no texto, não deixa identificar-se a sua visão de mundo” (1989, p. 63 e 64). Portanto, a sátira menipeia se faz num conjunto de características que foram de encontro ao que era tido como literatura, na época em que foi escrita, isto é, narrativas do final do Romantismo, altamente idealizadas, e do início do Realismo, que buscavam ser o retrato da realidade de forma objetiva, todavia, difícil de ser apresentada e sintetizada numa obra, devido às contradições da própria sociedade brasileira: escravocrata e liberal, religiosa e cruel, entre outras. Assim, Machado nos apresenta uma forma séria para questionar, e satírica para “zombar” do mundo, além de ser harmoniosa e engraçada, pois sendo “às avessas”, há um desvio do foco que leva ao riso, fazendo com que o leitor nem sempre apreenda por completo e, por vezes, simplesmente aceite a versão do narrador galhofeiro. Através da apresentação dessas características, cabe-nos entender a sátira menipeia com maior complexidade, através de suas adaptações posteriores a Menipo de Gadara, principalmente pela sua transformação e inovação em Luciano, que diretamente influenciou autores tanto europeus quanto brasileiros. Dessa forma, temos maior subsídio para analisar o conto em questão com base no estudo específico de Enylton de Sá Rego, através do qual se tornou mais consistente a observação da influência de Luciano de Samósata em Machado de Assis. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 7 8

Palavra grega que vem da junção de spoudaîon, “sério” e geloîon, “risível” (SÁ REGO, 1989). Palavra grega que significa “espião”, por isso adotada para se referir a uma visão distanciada de algo (SÁ REGO, 1989).

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Machado e a sátira menipeia Diante de uma carreira tão vasta, entre críticas jornalísticas e romances condecorados, Joaquim Maria Machado de Assis se apresenta como um autor que não se contentou em escrever da mesma forma do começo ao fim. Ao nos debruçarmos sobre sua obra, percebemos dois momentos com escritas distintas. No primeiro, entre seus romances, temos Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876); e depois, somos contemplados com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), como apontam os estudiosos a seguir. John Gledson (2006) e Valentim Facioli (2008) destacam a grande mudança na escrita de Machado depois de suas crises em torno do final da década de 1870, “período da ‘crise dos quarenta anos’” (GLEDSON, 2006, p. 37), ocasião em que também houve sua transição entre as revistas Jornal das Famílias e A Estação. E assim, entra na década de 1880 como um novo estilo, começando a escrever para a Gazeta de Notícias, fundada em 1874, sendo essa uma novidade entre os jornais brasileiros, pois era vendida nas ruas, e não apenas para assinantes. Era um jornal liberal no melhor sentido da palavra, politicamente independente, vivo e empenhado em apoiar boas produções literárias (GLEDSON, 2006, p. 38).

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Porém, Machado só começou a fazer parte oficialmente dessa revista no final de 1881, publicando seu conto Teoria do Medalhão. As escritas de Machado de Assis são tão diferentes que, havendo sido produzidas em um espaço de apenas poucos anos, é difícil crer que são obras do mesmo autor. Este é um dos aspectos mais marcantes da escrita machadiana: a maneira com que consegue mudar, em tão pouco tempo, mesmo considerando o seu “curto” período de carreira. Tal característica proporcionou, também, a aceitação de suas obras por diferentes tipos de leitores. Deste modo, o trabalho de Machado de Assis é destacado por Facioli (2008) como uma “atividade civilizadora”, visto que escreveu em diferentes gêneros e formas para que pudesse contribuir com a educação do país, mesmo sabendo que a maior parte da população (os trabalhadores) não era alfabetizada, uma contribuição que certamente ficaria para as futuras gerações até o momento. É possível notar, através de suas produções, que Machado de Assis procurou compreender o Brasil dentro do contexto mais amplo, sempre transitando entre “o particular e o universal, o nacional e o internacional” (FACIOLI, 2008 p. 20), formando uma obra com bagagem social, histórica, política e filosófica. Desta forma, o autor se transforma em um escritor que não pode ser lido numa só direção ou em mão única, sob pena de se perderem dele aspectos e questões fundamentais, visto que em sua obra uma das dimensões iluminam outras e lhes dão sentido, ou as explicam, num conjunto que funciona dialeticamente com todas as contradições e complementaridades, rupturas e inovações, enquanto mimese, invenção, cânone e novidades individuais (FACIOLI, 2008, p. 20).

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Na segunda fase de sua obra, Machado de Assis apresenta uma leitura do Brasil contraposto ao continente europeu, de forma satírica e grotesca, como uma forma de inverter o mundo, ou seja, de o colocar às avessas. O autor, assim, critica não apenas o movimento romântico, mas também o movimento realista. Sá Rego esclarece que “Machado julgava necessária a superação tanto do romantismo quanto do realismo naturalista, assim como a criação de um novo herói épico que expressasse os tempos modernos” (1989, p. 142). Memórias Póstumas de Brás Cubas é considerado um marco nessa transformação de Machado de Assis, sendo esse o romance mais estudado no que diz respeito aos traços da sátira menipeia na obra do autor. Em um intervalo de um ano, após a publicação do referido romance, também veio a publicação de Papéis Avulsos, em 1882, coletânea de contos que “representa para o Machado de Assis contista o que as Memórias póstumas de Brás Cubas representaram para o Machado romancista” (GLEDSON, 2006, p. 51). Machado utilizou esse gênero satírico na sua forma de escrita também para criticar o Naturalismo9. A sociedade brasileira do século XIX bebia das ideias europeias que pregavam a ciência acima de tudo, e isso estava sendo empregado tanto na forma que as notícias eram veiculadas nos jornais, quanto nos discursos em meio à rua. A análise desta cultura cientificista pode ser percebida no artigo de Machado intitulado “A Nova Geração”, quando diz que os poetas, que estavam querendo transformar o país, liam os escritores da ciência; não há aí poeta digno desse nome que não converse um pouco, ao menos, com os naturalistas e filósofos modernos [...] Digo aos moços que a verdadeira ciência não é a que se incrusta para ornato, mas a que se assimila para nutrição; e que o modo eficaz de mostrar que se possui um processo científico, não é proclamá-lo a todos os instantes, mas aplicá-lo oportunamente (ASSIS, 1946, p. 253-254).

É importante ressaltar que, antes do estudo de Sá Rego, havia limitações em classificar a obra de Machado de Assis como sátira menipeia. Antes da publicação de sua obra, O Calundu e a Panacéia, só havia a análise de José Guilherme Merquior, na década de 70, focando apenas na influência de Laurence Sterne10 em Machado. Porém, Merquior (1972) a escreveu a partir da obra de Mikhail Baktin, Problemas da poética de Dostoiévski, que classifica o gênero sério-cômico de acordo com suas características, sendo dividido em diálogo socrático e sátira menipeia. Já Sá Rego explora a fundo a relação de Machado com a sátira e sua influência direta por Luciano, como também através de autores como Laurence Sterne e Robert Burton. De forma breve, procuramos ver seus diferentes caminhos utilizando a tradição luciânica, prosseguindo com o mesmo objetivo de criticar a sociedade em que vivia através de um viés sarcástico. Como afirma Brandão, “não há como negar que, de Machado, ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Vertente do movimento realista que teve seu primeiro romance brasileiro, “O mulato”, escrito por Aluísio de Azevedo (1857-1913), sendo esse predominado pelo determinismo social. “O Realismo se tingirá de naturalismo, no romance e no conto, sempre que fizer personagens e enredos submeterem-se ao destino cego das ‘leis naturais’ que a ciência da época julgava ter codificado” (BOSI, 2017, p. 178). 10 Autor de A vida e opiniões, de Tristram Shandy, em 1759, que também é classificado como sátira menipeia (SÁ REGO, 1989). 9

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passando pelos modernos, se chega a Luciano – e que, pelo viés luciânico, se remonta a Homero” (BRANDÃO, 2001, p. 128-129).

E se os homens fossem cobaias? O Conto Alexandrino foi escrito ao fim do século XIX, divulgado em primeira mão na Gazeta de Notícias e, um ano depois, em 1884, publicado em Histórias Sem Data. Essa quarta coletânea publicada por Machado de Assis seguiu o caminho de Papéis avulsos, principalmente por trazer debates científicos e filosóficos daquele século. O autor inicia o livro com uma Advertência sobre o respectivo título, dizendo que, De todos os contos que aqui se acham há dois que efetivamente não levam data expressa; os outros a têm, de maneira que este título Histórias sem Data parecerá a alguns ininteligível, ou vago. Supondo, porém, que o meu fim é definir estas páginas como tratando, em substância, de coisas que não são especialmente do dia, ou de um certo dia, penso que o título está explicado. E é o pior que lhe pode acontecer, pois o melhor dos títulos é ainda aquele que não precisa de explicação (ASSIS, 1957, p. 05).

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Logo, podemos perceber que, ao iniciar a coletânea, Machado de Assis busca esclarecer o que iremos ler nos contos selecionados. Seu esclarecimento, porém, pode parecer um pouco contraditório, por afirmar que a coletânea leva o nome de Histórias sem data, mas que, na verdade, apenas dois dos contos não são datados. São eles: A igreja do diabo, o primeiro, e Academia de Sião, o último. Esse livro apresenta contos sobre eventos que aconteceram em um passado distante – no caso do conto analisado, da Antiguidade. Machado tinha o hábito de colocar datas em todos os seus contos, e estava sempre sinalizando com algum acontecimento do momento em que vivia, desviando-o da atenção do leitor, não contando da mesma forma, na mesma época, ou com as mesmas pessoas. O Conto Alexandrino é considerado um “conto-novela de caráter fantástico” (SÁ REGO, 1989, p. 106), pela forma que é produzido. Classifica-se como um conto de tradição luciânica constituído por quatro pontos principais: a paródia, o uso do sério-cômico, o ponto de vista do narrador distanciado e a presença de alusões a textos e autores. Essas características contribuíram para o enriquecimento da ficção, visto que a narrativa explora a intenção crítica por meio dos recursos citados, dando possiblidades para a compreensão do leitor. O conto está dividido em quatro capítulos, sendo eles, respectivamente, No Mar; Experiência; Vitória; e Plus Ultra! Sá Rego observa que a “ação se passa na célebre Alexandria ptolomaica, no fim do século IV ou no início do século III a.C.” (SÁ REGO, 1989, p. 106). Não é possível, porém, definir exatamente o período em que o evento ocorre, pois Machado se apropria de dois personagens que, pelos nomes e características, fazem menções a pessoas que fizeram parte da nossa história, Ptolomeu11 e Herófilo12, que viveram em épocas ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Cláudio Ptolomeu (100 d.C. – 160 d.C.) foi um cientista grego reconhecido por trabalhos em matemática, astronomia, geografia, entre outros. 12 Herófilo de Calcedônia (335 a.C. – 280 a.C.) ficou conhecido como o pai da anatomia e foi um dos criadores da Faculdade de Medicina de Alexandria. 11

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distintas: o primeiro entre 100 d.C. e 160 d.C., o segundo entre 335 a.C. e 280 a.C. Essa seria uma estratégia da sátira menipeia na literatura, pois, para confundir e debochar, transforma o que seria impossível em algo lógico e possível, modifica o tempo, e até mesmo fornece datas incorretas, em favor da narrativa, que é ficcional e não precisa de dados verdadeiros. No primeiro capítulo, os filósofos Stroibus e Pítias13 estão em um navio, saindo de Chipre a caminho da Alexandria, cidade onde as ciências eram consideradas de grande importância. Durante o caminho, Stroibus argumenta ter encontrado a forma de “reconstituir os homens e os Estados” (ASSIS, 2007, p. 193), e assim convence Pítias a embarcar em uma saga para comprovar que o homem adquiriria as características morais de um animal ao beber seu sangue. Stroibus, que era leitor de Herófilo e “chegara a ser excelente anatomista” (ASSIS, 2007, p. 192), resume para Pítias que os deuses teriam colocado o imo de todos os sentimentos nos animais, sendo eles: a aranha, [...] os rudimentos da geometria e o sentimento musical. Com um bando de cegonhas, andorinhas, ou grous, faço-te de um caseiro um viageiro. O princípio da fidelidade conjugal está no sangue da rola, o da enfatuação no dos pavões... (ASSIS, 2007, p. 192).

Com essa hipótese, resolvem fazer um teste com sangue de rato, para assim adquirirem as características de ladrões, utilizando a justificativa de que, “em relação aos ratos, além de ganhar a ciência, ganhava a cidade, vendo diminuída a praga de um animal tão daninho” (ASSIS, 2007, p. 195). Com o intuito de que a experiência mostrasse efeito e colocasse os filósofos em acordo, escalpelaram os ratos até que encontrassem a cor correta da retina confirmando sua morte. De acordo com Daniela Magalhães da Silveira (2009), o número de torturas foi aumentado na publicação do conto dentro da coletânea, enfatizando, assim, a sua crítica aos experimentos feitos em nome da ciência. Enquanto no jornal Machado apresentou em torno de doze tentativas, no livro foram quarenta e cinco. Porém, os filósofos, ao resolverem aplicar a teoria neles próprios e beberem sangue de rato, passam a adquirir características de ladrões e dão início a roubos, começando por ideias, exemplares da biblioteca de Alexandria, etc. Nota-se, nas palavras do autor, que não há “nada mais científico do que essas estreias” (ASSIS, 2007, p. 196). Dessa maneira, através de seu narrador, Machado satiriza a cultura do plágio, dizendo que “é um indício de que os homens compreendem a dificuldade de confundir esse embrião da ladroeira com a ladroeira formal” (ASSIS, 2007, p. 196). Cesare Lombroso, criador da antropologia criminal e contemporâneo de Machado de Assis, desenvolveu uma teoria determinista sobre O Homem Delinquente, em 1876, afirmando que

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“Com efeito, a semelhança entre esses nomes e os dos famosos geógrafos e viajantes gregos Estrabão e Píteas – que viveram exatamente durante o período do esplendor cultural de Alexandria – sugere que, para Machado, talvez houvesse uma ligação entre os relatos de viagens e os estudos da medicina, ligação tão importante durante o Renascimento” (SÁ REGO, 1989, p. 109). 13

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o criminoso é geneticamente determinado para o mal, por razões congênitas. Ele traz no seu âmago a reminiscência de comportamento adquirido na sua evolução psicofisiológica. É uma tendência inata para o crime (LOMBROSO, 2013, p. 07).

Essa teoria atinge seu ápice, em relação ao conto, quando Herófilo demonstra a Ptolomeu a necessidade e a legitimidade em escalpelar, em nome da ciência, as pessoas que estivessem nas prisões, alegando que “já não são cidadãos, nem mesmo se podem dizer homens, porque a razão e a virtude, que são dois princípios característicos humanos, eles os perderam, infringindo a lei e a moral” (ASSIS, 2007, p. 197). Os criminosos aqui são vistos como ocupantes da última casta da sociedade e, dessa forma, não seriam absolvidos pelos seus crimes, sendo justificado, assim, que era algo inato a eles, que fazia parte de sua natureza. Sá Rego (1989) aponta o conto como “paródia ao Naturalismo e às suas pretensões de literatura científica” (p. 108), ressaltando, inclusive, o romance Thérese Raquin, de Émile Zola, em 1868, considerado um marco no início do Naturalismo literário. Zola apresenta sua obra dizendo que escolheu personagens soberanamente dominadas pelos nervos e pelo sangue, desprovidas de livre-arbítrio, arrastadas a cada ato de sua vida pelas fatalidades da própria carne. (...). Começasse a compreender (espero-o) que o meu objetivo foi acima de tudo um objetivo científico (apud BOSI, 2017, p. 180).

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A partir desse pensamento, é importante ressaltar a crítica que Machado faz ao dizer que “grande foi o assombro do povo; mas, salvo alguns pedidos verbais, não houve nenhuma manifestação contra a medida” (ASSIS, 2007, p. 197). As pessoas, por mais que não concordassem com o que estava acontecendo, permaneciam inertes à situação; muitos por medo, outros por realmente acreditarem que os delinquentes mereciam e que, dessa forma, diminuiriam a possibilidade de crimes, mas tolerando, assim, o crime da tortura. Logo, é possível “perceber que o leitor da época habituava-se a, em nome, por exemplo, da divulgação científica, ler a descrição miúda de algumas práticas médicas experimentais” (GRANJA, 2009, p. 112) no jornal, sendo esse um discurso peculiar ao século XIX, tornando o Conto Alexandrino uma paródia das notícias diárias que eram divulgadas no mesmo veículo de comunicação. O compromisso de Machado era também com a verossimilhança que dá impulso e coerência à obra, porém com a crítica social e política exercida por meio da sátira menipeia em sua composição formal, desviando a atenção do leitor para aquilo que, aparentemente, não tinha importância. Na crítica por meio do humor, o riso é o que importa, e Machado soube utilizá-lo, mesmo ciente de que muitos leitores talvez sequer entendessem. Naquele presente, eram mesmo “o senão” de suas obras, como está claro nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. Por esta razão, cria situações inusitadas, como transformar os animais em criaturas racionais, que comemoram ao se verem livres dos loucos experimentos feitos pelos homens, em nome da ciência, criticando a sociedade que exaltava o cientificismo. E assim

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diziam os alexandrinos que os ratos celebraram esse caso aflitivo e doloroso com danças e festas, a que convidaram alguns cães, rolas, pavões e outros animais mais ameaçados de igual destino, e outrossim, que nenhum dos convidados aceitou o convite, por sugestão de um cachorro, que lhes disse melancolicamente: - “Século virá em que a mesma coisa nos aconteça”. Ao que retorquiu um rato: “Mas até lá riamos!” (ASSIS, 2007, p. 199).

Trata-se de um mundo às avessas, pois os homens se tornaram irracionais e são as cobaias da vez. Isso nos leva à pergunta: os animais fariam experiências com os homens?

Considerações finais Percebemos, neste estudo, que Machado de Assis, por meio da sátira menipeia, apresenta uma crítica mordaz e satírica, não apenas à sociedade, mas também ao Realismo-Naturalismo, movimento literário do seu tempo. Seus autores, influenciados pelas novas ciências, que surgiam no século XIX – darwinismo, positivismo e determinismo –, atribuíam, como afirma Bosi (2017), as mazelas da vida pública e pessoal, a causas naturais (raça, clima, temperamento), ou culturais (meio, educação), que transformavam o homem num joguete das ciências, sem qualquer poder de mudança de sua vida, já que se inviabiliza o livre arbítrio. Mesmo sendo um tema pouco explorado ainda, na literatura brasileira, foi possível entender as razões da utilização da sátira menipeia por Machado de Assis, que acaba por imitar, na composição literária, o mundo no qual vive às avessas. Esse contato com a escrita inovadora do autor nos ajuda a perceber o quanto ainda precisamos refletir para entendermos nosso próprio país. Assim, faz-se importante ressaltar que ele não se limitou ao momento romântico e nem ao realista, mas transformou-os em relação ao que era proposto na época, apresentando-se, dessa forma, como um autor tão singular. É através dessa mudança que observamos o Machado que, de acordo com Brandão (2001), “ ‘andava grego’ quando morreu” (p. 126), pois se reinventou através da literatura grega da Antiguidade Clássica, e por meio dele podemos ver Luciano de uma forma peculiar.

Referências ASSIS, Machado de. Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. v. 1 ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ASSIS, Machado de. Histórias sem data. Rio de Janeiro: Jackson Editores, 1957. ASSIS, Machado de. A nova geração. In:___. Crítica literária. Rio de Janeiro: Jackson Editores, 1946. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 51. ed. São Paulo: Cultrix, 2017. BRANDÃO, Jacyntho Lins. A Grécia de Machado de Assis. KLÉOS, n. 5/6, p. 125-144. 2001. Disponível em: <http://www.pragma.ifcs.ufrj.br/uploads/K5-JacynthoLinsBrandao.pdf.> Acesso em: 15 out. 2018.

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BRANDÃO, Jacyntho Lins. A poética do hipocentauro: literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. São Paulo: Humanitas, FFLCH/USP, 2001. COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles: mímese e verossimilhança. 2. ed. São Paulo: Ática, 2006. FACIOLI, Valentim. Um defunto estrambótico: análise e interpretação das Memórias Póstumas de Brás Cubas. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2008. GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GRANJA, Lúcia. Antes do livro, o jornal: Conto Alexandrino. Luso-Brazilian Review, v. 46, n. 1, 106–114, 2009. Disponível em: <http://lbr.uwpress.org/content/46/1/106>. Acesso em: 10 jun. 2018. LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Tradução e seleção Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2013. MERQUIOR, José Guilherme. Gênero e estilo nas Memórias póstumas de Brás Cubas. Colóquio/Letras, Lisboa, n.8, p. 12-20, jul. 1972. MURACHO, Henrique G. Introdução. In: SAMOSATA, Luciano de. Diálogo dos mortos: versão bilíngue grego/português. 3. ed. Organização e tradução Henrique G. Murachco. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 9-40. SÁ REGO, Enylton de. O Calundu e a Panacéia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense, 1989. SAMOSATA, Luciano de. Diálogo dos mortos: versão bilíngue grego/português. 3. ed. Organização e tradução Henrique G. Murachco. São Paulo: EDUSP, 1996. SILVEIRA, Daniela Magalhães da. Fábrica de contos: as mulheres diante do cientificismo em contos de Machado de Assis. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Campinas, 2009.

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O Sertão contra o Estado: a antropologia política e a problemática do poder em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa Backwords against state: political anthropology and the problematics of the power struggle in the novel Grande sertão: veredas, by Guimarães Rosa Jorge Augusto Batista CONDE1 Ivon Rabêlo RODRIGUES2 Resumo: O romance Grande sertão: veredas, enquanto verdadeiro retrato do Brasil, ressignifica a história de nossa formação social e se abre a novos campos de pesquisa para além dos aspectos mitológicos, religiosos ou mesmo ontológicos presentes na obra. Torna-se relevante entender de que forma os elementos míticos do romance alegorizam os aspectos políticos e sociais da fundação de nossa sociedade e a própria mitologia do Brasil como nação. Esse artigo busca investigar a natureza do poder na obra, valendo-se para isso das pesquisas no campo da Antropologia Política desenvolvidas por Pierre Clastres (2013), assim como da leitura realizada por Willi Bolle (2004). Para isso, pretendemos analisar a recusa inicial do narrador protagonista Riobaldo em assumir a chefia do bando de jagunços e de que forma o exercício desse poder social não coercitivo se transforma em uma forma de poder coercitivo e fundador da violência do Estado a partir do pacto luciferino. Palavras-chave: Literatura Brasileira. Antropologia Política. Crítica literária. Grande sertão: veredas. Abstract: The novel Grande sertão: veredas, by Brazilian author Guimarães Rosa, as a true portrait of Brazil, reaffirms the history of our social formation and opens new fields of research beyond the mythological, religious or even ontological aspects of the novel. It becomes relevant to understand how the mythical elements of the work allegorize the political and social aspects of the foundation of our society and the very mythology of Brazil as a nation. This article seeks to investigate the nature of power into the narrative, using the research of Political Anthropology developed by Pierre Clastres (2013), as well as the sudy conducted by Willi Bolle (2004). For this purpose, we intend to analyze Riobaldo’s initial refusal concerning to assume the leadership of jagunços’ group and how the exercise of this non-coercive social power becomes a form of coercive power and the beginning of State violence originated from the Luciferian pact. Keywords: Brazilian Literature. Political Anthropology. Literary Criticism. Grande sertão: veredas.

Introdução Dentre os mais de 1500 estudos já realizados sobre o romance Grande Sertão: Veredas, uma linhagem especifica se destaca: aquela que se dedica em não apenas estudar o campo político da obra, mas entender sua relação dialética com outros campos, como o mítico e o metafísico, em sua configuração enquanto retrato do Brasil e romance de formação da sociedade brasileira (BOLLE, 2004, p. 195). ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 1 2

Graduado em Letras e Pós-graduando em Literatura Brasileira pela FAFIRE/Recife/PE | E-mail: jorge.conde79@gmail.com Mestre em Literatura e Interculturalidade pela UEPB/Campina Grande/PB | orientador do trabalho. E-mail: ivonrabelo@hotmail.com Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Em conjunto com os aspectos sociais e históricos, essa metodologia de leitura instiga diálogos e inferências que atualizam a obra em face de sua recepção sincrônica e se torna um terreno fértil para novos estudos que busquem a compreensão mais profunda de sua materialidade como uma alegoria da formação de nossa sociedade. Muito mais do que os aspectos mitológicos, religiosos ou mesmo ontológicos da obra, torna-se relevante entender de que forma os elementos do romance alegorizam os aspectos políticos e sociais de fundação da nossa sociedade e a própria dimensão mítica do Brasil, como nação unívoca e integrada. Diante disso, a hipótese que pretendemos legitimar é a de que o narrador Riobaldo é concebido como representante da cisão entre dois Brasis: um Brasil pré-contrato social, no qual a violência é exercida para a guerra de forma exógena e centrípeta, sempre de dentro da sociedade para fora, encarnada nas guerras tribais e de conquista, nos conflitos generalizados do período colonial, os quais, mais tarde, irão despontar como guerras predatórias das Bandeiras e Missões, entre índios e africanos versus os próprio portugueses, caboclos e mamelucos, e que irão se desdobrar no sistema jagunço em uma forma de exercício de poder não-centralizado e hierárquico; e o outro, é o Brasil que se concentra, como nos fala Sérgio Buarque de Holanda (2002), em um acordo para exclusão do povo das decisões sobre o país, fundado entre o nascente estado brasileiro e os assim chamados donos do poder. Um acordo que ignora, além das sociedades indígenas invadidas e as sociedades sequestradas africanas, os marginalizados da terra, como podemos ver na comparação estabelecida por Bolle (2004) entre o papel de Canudos na obra de Euclides da Cunha e o episódio dos catruman na obra de Guimarães Rosa. Nesse sentido, o objetivo do romance em relação à história seria menos o de “harmonizar o discurso do poder, mas revelar seu funcionamento” (BOLLE, 2004, p. 123), a partir da perspectiva do julgamento do personagem Zé Bebelo e do posterior pacto de Riobaldo com o diabo e de sua transformação de “jagunço provisório” a senhor definitivo de terras. Para isso, pretendemos analisar na obra de Rosa não o episódio do julgamento, mas antes, a recusa primeira de Riobaldo em assumir a chefia do bando após a morte de Medeiro Vaz e de que forma o exercício desse poder social não coercitivo, “totalmente separado da violência e exterior a toda hierarquia” de que nos fala Pierre Clastres (2003) acerca das sociedades arcaicas, poder primevo, anterior à história, segundo a conceituação de Benjamin (apud BOLLE, 2004, p.145), mas não proto-histórico, se transforma no romance/ a partir do pacto social luciferino realizado pelo narrador, em uma forma de poder coercitivo e fundador da violência de Estado que transformará nossa sociedade: de uma sociedade para guerra e contra o Estado em uma sociedade policiada e dissimuladamente pacífica.

A antropologia política e o surgimento do poder coercitivo Será o poder apenas exercido pela violência e coerção? Em que ponto do desenvolvimento de uma sociedade o poder deixa de ser uma forma não coercitiva e hierárquica de chefia, como nas sociedades indígenas da América, e se transforma em uma relação de comando-obediência, ou, mais especificamente, na forma do poder social coercitivo? Segundo a hipótese discutida pelo antropólogo Pierre Clastres (2003), a visão clássica da antropologia de que as sociedades indígenas ameríndias são sociedades ausentes de Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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poder, pelo fato de seus chefes não possuírem controle sobre os chefiados, é fruto de puro etnocentrismo e de uma perspectiva deslocada. Ao comentar a ideia de que “o poder político se desenvolve proporcionalmente à importância da inovação social, à intensidade de seu ritmo, à amplitude de seu alcance” (LAPPIERRE, p. 621 apud CLASTRES, 2003, p. 42), o autor nos informa que esse tipo de poder político que surge como advento do processo de inovação social é justamente o chamado poder coercitivo, ou seja, aquele “onde se observa a relação de comando-obediência” (CLASTRES, 2003, p. 42). Para o fundador da Antropologia Política e profundo conhecedor das sociedades indígenas ameríndias (Guaranis, Guayakis, Yanomamis, dentre outras), essa relação de “poder político como coerção ou como violência é a marca das sociedades históricas, isto é, das sociedades que trazem em si a causa da inovação, da mudança, da historicidade” (CLASTRES, 2003, p. 42). O autor, dessa forma, inverte o velho axioma que coloca no mesmo campo as sociedades sem Estado como sociedades sem poder. Esta nova dimensão do poder político implica em uma revisão daquela perspectiva antropológica etnocentrista que, segundo Clastres (2003), “identifica sociedades sem poder e sociedades sem história” (CLASTRES, 2003, p. 43). A partir dessa interpretação, surge uma visão do poder político que reporta: “as sociedades com poder político não-coercitivo são sociedades sem história, as sociedades com poder político coercitivo são as sociedades históricas” (CLASTRES, 2003, p. 43, grifo do autor). No entanto, duas lacunas ainda restam preencher: a primeira, acerca da natureza do próprio poder político ou, mais especificamente, a definição do que seja o conceito de sociedade; a segunda, de “como” e “por que” ocorre a passagem “do poder político não-coercitivo para o poder político coercitivo” (CLASTRES, 2003, p. 43), o que para Clastres implica na própria definição do que seja a história. Descartando a interpretação marxista que identifica o surgimento do poder político com o “conflito entre as forças sociais” (CLASTRES, 2003, p. 43), o antropólogo ressalta “que não se possa compreender o poder como violência (e sua forma última: o Estado centralizado) sem o conflito social, é indiscutível” (CLASTRES, 2003, p. 43). Assim como no marxismo, no entanto, essa interpretação se torna insuficiente para abarcar a passagem da “não-história à historicidade e da não-coerção à violência” (CLASTRES, 2003, p. 43), tendo em vista a limitação deste enquanto “teoria universal da sociedade e da história”. Se na formação das sociedades pré-capitalistas Marx (1975) procura investigar as sociedades proto-capitalistas em seus sistemas de trocas em face de uma suposta economia de subsistência, o seu ponto de observação, conforme afirma Hobsbawn (in: MARX, 1975) ainda é o das civilizações arcaicas ocidentais (gregos e romanos) e os das insurgentes sociedades europeias feudais, em seu assim denominado comunismo primitivo, mesmo já possuindo algum acesso aos dados das sociedades indígenas das Américas, a partir dos estudos da nascente etnologia alemã (MARX, 1975). Por isso que, para Clastres (2003), não é a diferenciação social que implica na constituição do poder político, mas antes o contrário:

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Não seria o poder político que constitui a diferença absoluta da sociedade? Não teríamos aí a cisão radical enquanto raiz do social, a ruptura inaugural de todo movimento e de toda a história, o desdobramento original como matriz de todas as diferenças? (CLASTRES, 2003, p. 44).

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Cabe, diante dessa completa inversão da perspectiva “heliocêntrica” apreendida a partir das sociedades indígenas, perguntar: em que momento ocorre essa ruptura? Será a partir do contrato social, da aliança entre o povo e os seus representantes que o poder se transforma em “monopólio legítimo da violência de Estado?” (WEBER apud CLASTRES, 2003, p. 29). Seria o contrato social um pacto com o mal maior da representatividade hierárquica que algumas sociedades sem Estado e sem poder coercitivo realizariam para se proteger de uma outra ordem maior de violência exógena? Seria a história fundada não no conflito entre classes, mas na luta da sociedade contra o Estado? Infelizmente, as respostas a essas perguntas são tantas quanto à diversidade de culturas e sociedades que esse novo eixo teórico no permite vislumbrar, pois sendo o poder político universal, imanente ao social, quer esse seja determinado pelos laços de sangue ou pelas classes sociais (CLASTRES, 2003, p. 41), definir em que estágio uma sociedade abre mão de um poder político “totalmente separado da violência e exterior a toda hierarquia” (CLASTRES, 2003, p. 40) e se torna uma “sociedade policiada” somente é possível a partir de uma realidade concreta, nunca em abstrato, pela razão de que a forma de poder (relação de comando-obediência) que surge dessa ruptura “não é o modelo do poder verdadeiro, mas simplesmente um caso particular, uma realização concreta do poder político em certas culturas, tal como a ocidental” (CLASTRES, 2003, p. 41, grifos do autor). Nesse sentido, a tarefa de que pretendemos nos revestir é a investigação do poder na sociedade jagunça, ou “sistema jagunço” (BOLLE, 2004), tendo como marco de ruptura o pacto luciferino realizado por Riobaldo nas Veredas-Mortas, partindo não apenas da conceituação de poder da Antropologia Política, como também da leitura realizada por Bolle (2004) sobre o sistema jagunço e o pacto riobaldiano.

A problemática do poder em Grande sertão: veredas No grande sintagma narrativo de Grande Sertão: Veredas, o narrador-protagonista Riobaldo passa por três etapas distintas claramente demarcadas por Guimarães Rosa, até chegar ao status de senhor de terras. Na primeira fase, encontramos um Riobaldo ainda garoto, que passa pelo rito de iniciação junto com o jovem Reinaldo, futuro Diadorim, no episódio da travessia de barco do Rio São Francisco. Essa fase percorre os anos de formação do protagonista nas armas e nas letras até a chegada do episódio de sua admissão como membro do grupo de Joca Ramiro, após a fuga da fazenda de Zé Bebelo. A segunda fase se estende de sua admissão ao grupo de Joca Ramiro e do reencontro com Diadorim até a ascensão a chefe dos jagunços, na esteira do pacto luciferino. A terceira fase segue a partir deste até o momento em que somos introduzidos aos episódios finais da caçada ao Hermógenes e a morte de Diadorim, encontrando-nos novamente no Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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tempo presente da narrativa e perfazendo, dessa forma, um círculo perfeito dentro da superestrutura labiríntica do romance. No âmbito político discursivo, Bolle (2004) divide a narrativa em dois níveis de comentários acerca da natureza da chefia: Num primeiro nível, Riobaldo comenta criticamente os discursos sobre a jagunçagem, principalmente a fala dos chefes – a partir de sua perspectiva de iniciante e raso combatente. Num segundo nível, depois de ter se tornado chefe e empresário, ele mesmo passa a ser um dos porta-vozes do sistema jagunço (BOLLE, 2004, p. 124).

Tal natureza de Riobaldo como comentarista (ou seria analista?) dos discursos de poder do sistema jagunços aparece de forma introdutória e sintetizada na passagem clássica de apresentação dos grandes chefes jagunços, logo no, assim chamado por Bolle (2004), “preâmbulo” da obra: Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para concertar o consertado. Mas cada um só vê as coisas de seu modo. Montante, o mais supro, mais sério – foi Medeiro Vaz. Que um homem antigo...Seu Joãzinho Bem-Bem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar como ele por dentro consistia. Joca Ramiro – grande homem príncipe! – era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. Sô Candelário se endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos era o pelo preço de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antonio Dó, severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja. Andalécio, no fundo um homem-de-bem, estouvado raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hemórgenes foi que nasceu formado tigre, e assassim. E o “Urutú-Branco”? Ah, não me fale. Ah esse... tristonho levado, que foi – que era um pobre menino do destino... (ROSA, 1976, p. 16).

Podemos verificar por essa passagem que os tipos de chefia são tantos e tão diversos como os próprios chefes. Não se pode extrair deles uma característica comum, da mesma forma que não se pode extrair características comuns das sociedades indígenas da América do Sul, conforme teorizado por Clastres (2003), a não ser alguns poucos princípios. Não se quer estabelecer aqui uma analogia pura e gratuita entre o sistema jagunço e tais sociedades primevas, tendo em vista a natureza completamente diversa de sua ordem social. Estaríamos caindo na mesma irresponsabilidade teórica e no mesmo caminho etnocêntrico atribuído por Clastres à etnologia ocidental (2013, p. 36), se assim procedêssemos. O que nos interessa aqui é a diversidade e a natureza do poder da chefia. Se alguns chefes jagunços exercem o poder pela violência e coerção de seus comandados, como Ricardão, Antonio Dó, Hemórgenes e o próprio Urutu-Branco, outros tem no político, na amizade e na justiça sua alçada de chefia sem, no entanto, compartilhar necessariamente das mesmas características. Exceção se faz a Zé Bebelo, que já é visto em toda sua desfaçatez, e Joãozinho Bem-Bem, cuja natureza é indecifrável. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Dessa forma, entendemos juntamente com Bolle (2004) que “ao focalizar o sistema jagunço, Guimarães Rosa não retrata um poder paralelo, mas o poder” (BOLLE, 2004, p. 125, grifo do autor); ou seja, o que Rosa quer nos esclarecer em seu romance “etnopoético” (BOLLE, 2004) é a natureza deste em suas diversas modalidades e acepções, utilizando como sua base antropológica o sistema jagunço do Sertão a partir desse observador-participante que é o narrador Riobaldo.

Riobaldo-Tatarana e a recusa do poder coercitivo O poder que emana das armas de Riobaldo-Tatarana, pré-pacto, ainda não é o clássico poder de comando-obediência, ao qual Clastres (2003) se refere quando fala da visão etnocêntrica da Antropologia sobre o poder nas sociedades pré-estatais: Nossa cultura, desde as suas origens, pensa o poder político em termos de relações hierarquizadas e autoritárias de comando-obediência. Toda forma, real ou possível, de poder é, portanto, redutível a essa relação privilegiada que exprime a priori a sua essência. Se a redução não é possível é por que nos encontramos aquém do político: a falta da relação comando-obediência implica ipso facto a falta de poder político (CLASTRES, 2003, p. 34).

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Aqui estamos diante de uma forma de poder, antes de tudo, não-coercitivo. Um poder que surge exatamente da habilidade em armas e da coragem como guerreiro desse segundo Riobaldo, pós-iniciação. Isso se torna evidente a partir de sua recusa em comandar os homens de Medeiro Vaz logo após a morte deste, após a tentativa frustrada de travessia do Liso do Sussuarão: E Medeiro Vaz, se governando mesmo no remar a agonia, travou com esforço o ronco que puxava gosma de sua goela, e gaguejou: ‘Quem vai ficar em meu lugar? Quem capitanêia?...’ Com a estrapeação da chuva, os poucos ouviram. Ele só falava por pedacinhos de palavras. Mas eu vi que o olhar dele esbarrava em mim, e me escolhia. [...] Coração me apertou estreito. Eu não queria ser chefe! (ROSA, 1976, p. 63).

Mas por que, naquele momento de vacância de poder, Riobaldo, apesar da aceitação de todo o bando de Medeiro Vaz e de Diadorim, se recusa a ocupar o lugar dessa chefia? Aprovavam. Me queriam governando. Assim estremeci por interno, me gelei de não poder palavra. Eu não queria, não queria. Aquilo revi muito por cima de minhas capacidades. [...] Rentemente, que eu não desejava arreglórias, mão de mando. Enguli cuspes. Avante por fim, como que respondi às gasgas, isto disse: - ‘Não posso... Não sirvo... (ROSA, 1976, p. 64).

Observa-se dessa passagem que aquilo que Riobaldo realiza, ao recusar a primeira chefia ofertada, não é um ato de covardia. É um ato de recusa da institucionalização do poder. Pois, para ele, esse poder logo estaria em confronto direto com o seu papel de jagunço, o que, dentro da hierarquia do sistema jagunço, comprometeria, naquele momento, o completo equilíbrio das forças estruturais do próprio sistema. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


O sertão contra o estado: a antropologia política e a problemática do poder em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

Ele não quer, naquele momento, a obediência servil de seus homens, como se vê no Riobaldo pós-pacto que, apesar de ter seus homens ao seu lado, sabe muito bem delimitar a distância entre o seu lugar de dono e o lugar de servidão de seus ex-companheiros, agora comandados. Para Riobaldo-Tatarana, esse lugar de chefia significa justamente a perda de sua liberdade de atuar como guerreiro: “- Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de ser e executar, não me ajusto a produzir ordens...” (ROSA, 1976, p. 64). Diversamente do Riobaldo pactuário, Urutu-Branco, “que recebe e hospeda o jovem doutor da cidade” e que já partilha da mesma prerrogativa de “[...] um latifundiário. Resultado do estratagema do pacto, juntamente com a herança e um casamento vantajoso” (BOLLE, 2004, p. 152), comandante-em-chefe de seus antigos companheiros, expressa-se sobre toda uma relação de servo-senhor, ao se referir aos mesmos e ao seu lugar de chefia, da seguinte forma: Chegassem viessem aqui com guerra em mim, com más partes, com outras leis, ou com sobejos olhares, e eu ainda sorteio de acender essa zona, ai, se, se! É na boca do trabuco: é no té-retê-retém...E sozinho não estou, há de ó. Pra não isso, hei coloquei meu redor minha gente. Olhe o senhor: aqui, pegado, vereda abaixo, o Paspe – meeiro meu – é meu. Mais légua, se tanto, tem o Acauã, e tem o compadre Ciril, ele e três filhos, sei que servem. [...] Deixo terras com eles, deles o que é meu é, fechamos que nem irmãos. Para que eu quero ajuntar riqueza? (ROSA, 1974, p. 21, grifos nossos).

Portador de um discurso dissimulado de narrador não-confiável, uma de suas principais características (BOLLE, 2004, 185), o mesmo atribui a si próprio e à estrutura que representa um viés “democrático” que não se evidencia: “um latifundiário, cuidando da defesa de sua propriedade e tendo a seu serviço um exército particular, cujos integrantes estão às suas ordens como vassalos” (BOLLE, 2004, p.153). Ao contrário do Riobaldo-Tatarana, que rejeita o cargo, mas assume o lugar de chefia após a morte de Medeiro Vaz, e que, nas palavras do próprio Diadorim, abre mão da chefia para escolher o seu chefe: “Foi você, mesmo, Riobaldo, quem governou tudo hoje. Você escolheu Marcelino Pampa, você decidiu e fez” (ROSA, 1976, p. 68). Essa hipótese da chefia de Riobaldo-Tatarana como uma chefia de poder não-coercitivo coaduna-se com a hipótese levantada por Bolle (2004, p. 224), na leitura realizada a partir de Benjamin, acerca de Diadorim, como medium-de-reflexão, na qual o crítico nos brinda com uma identificação desta sociedade como o própria sociedade pré-pacto social luciferino, ou seja, a própria sociedade antes do Estado, ou, à luz da Antropologia Política, sociedade ainda contra o Estado que, por sua própria intencionalidade e coerência interna, não quer se estratificar em um sistema de classes sociais. Portanto, Riobaldo-Tatarana que ainda não alcançou o status pactuário e luciferino de Urutu-Branco, ao torna-se o líder jagunço, de fato e de direito, no meio de uma proto-anarquia que se instala logo após a morte de Medeiro Vaz, ainda se encontra naquele tempo primevo, pré-contrato social, por ainda não ter se encontrado com o demo nas Veredas-Mortas, numa alegoria do contrato social rosseauniano pré-divisão de classes (BOLLE, 2004, p. 169). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Não é por um exercício de poder esvaziado de seu significado de “valia” e “capitânea” que Riobaldo refuta o comando, mas antes, é por saber-se já senhor de um poder político que prescinde da violência para se instaurar, visto que é um lugar de chefia homologado por todos os jagunços, situado entre a obrigação de servir e o ethos de comandar. Tal qual no plano do território físico, as Veredas-Mortas é o lugar de ruptura com a sociedade primeira e de fratura no corpo social de que nos fala Clastres (2003), vindo a ocorrer no momento em que essas sociedades sem poder coercitivo deixam de ser contra o Estado e acabam por fundar a cisão entre o corpo social e o poder, instaurando dessa forma a necessidade do contrato social e a divisão em classes.

Considerações finais

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No romance Grande Sertão: Veredas, o pacto realizado por Riobaldo nas Veredas-Mortas metaforiza a transformação de uma forma de ordem social, na qual o poder político é exercido de forma descentralizada e autônoma, independente de um poder político institucionalizado, na sua forma de Estado. A ascensão de Riobaldo, de jagunço provisório a senhor de fazendas, ressignifica a ambiguidade do próprio sistema jagunço que, de sistema autônomo de organização política, ilustrado pela expressão “lei do cão”, se transforma em uma outra forma de lei, tão violenta quanto a anterior, exercida agora, entretanto, apenas por uma classe de senhores em detrimento do “povo”. Em sua etnografia do sistema jagunço, o que Guimarães Rosa alcança é algo que, apenas vinte anos depois, o antropólogo Pierre Clastres vai teorizar como “poder não-coercitivo”, a partir de exaustivas pesquisas junto às sociedades indígenas da América do Sul. Em sua mira de alcance de longa distância, o que Riobaldo-Tatarana alveja é um Sertão que se recusa a partilhar das mesmas formas de organização social de seu inimigo. Um Sertão que representa, dentro do sistema de organização política nacional, uma recusa ao poder institucionalizado, um Sertão que, para além da perspectiva de poder do Ocidente, coercitivo e hierárquico, se rebela enquanto sociedade contra o Estado.

Referências BOLLE, Willi. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2004. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2003. HOLANDA, Sérgio Buarque. “Raízes do Brasil.” In: SANTIAGO, Silvino. (Coord.) Intérpretes do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. v. 3 MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. 10. ed. Rio de Janeiro: Livraria J. Olympio, 1976.

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“Pra que servem tuas histórias?1”: uma análise acerca da construção do narrador contemporâneo no romance Felicidade, de Wellington de Melo “What are your stories for?”: an analysis of the contemporany narrator’s construction in Wellington de Melo’s ‘Felicidade’ Dayanne Marins GANDIN2 Thiago Henrique Pereira do NASCIMENTO3 Ivon Rabêlo RODRIGUES4 Resumo: Felicidade, do escritor pernambucano Wellington de Melo, é um romance contemporâneo que apresenta de forma peculiar as inquietudes da construção identitária e as tortuosidades dos ambientes familiar e social nos quais a personagem principal está inserida. Neste artigo, tem-se como objetivo compreender o modo pelo qual narradores-personagens se alinham para a composição da trama, embora um deles conduza a diegese ficcional e outro conduza uma linha narrativa qualificada como “vida real”. A análise do romance se deu a partir do suporte teórico de Antunes (1998), Bakhtin (1988), Borgato (2018), Gancho (1998), Ginzburg (2012), Hegel (1980), Lukács (2000), Reuter (1996), Reis e Lopes (2000), Schøllhammer (2009), Ullmann (2007), Wood (2017). Palavras-chave: Wellington de Melo. Narrador. Romance contemporâneo. Abstract: Happiness (Felicidade in Portuguese), by Wellington de Melo, is a contemporary novel that narrates in a peculiar way the concerns regarding identity construction and the obscurities of family and social environments in which the main character is inserted. The objective of this paper is to comprehend how the character-narrators connect to the narrative formation, despite the fact that one of them narrates fiction and the other one narrates “real life”. The analysis of the novel will be held by theoretical support from Antunes (1998), Bakhtin (1988), Borgato (2018), Gancho (1998), Ginzburg (2012), Hegel (1980), Lukács (2000), Reuter (1996), Reis and Lopes (2000), Schøllhammer (2009), Ullmann (2007), Wood (2017). Keywords: Wellington de Melo. Narrator. Contemporary novel.

Introdução A literatura sempre foi um espaço privilegiado de percepção da vida social, tendo em vista a sua maneira de refletir sobre as questões humanas. Assim, torna-se possível observar a relação entre a literatura e a sociedade a partir de várias dimensões, uma vez que muitas obras tomam a realidade por espelho. Isto é, a realidade é algo externo à obra e essa a reflete. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Fala da personagem Ademir, na obra Felicidade, de Wellington de Melo, página 115. Graduada em Letras, Licenciatura em Português e Literaturas pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro | UERJ | pós-graduanda em Literatura Brasileira pela Faculdade Frassinetti do Recife | FAFIRE | E-mail: dayanne.gandin@gmail.com 3 Graduado em Letras, Licenciatura em Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Pernambuco | UFPE | pós-graduando em Literatura Brasileira pela Faculdade Frassinetti do Recife | FAFIRE | E-mail: professornascimento00@gmail.com 4 Mestre em Literatura e Interculturalidade | UEPB/Campina Grande/PB | orientador do trabalho | E-mail: ivonrabelo@hotmail.com 1 2

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Fruto de uma sociedade burguesa, o romance hoje é um gênero indefinível, uma vez que híbrido, já que atribui um novo sentido à ideia de recuperação da totalidade acerca de um mundo visto como fragmentado. Por isso, tal gênero é reconhecido como “epopeia burguesa”, termo cunhado por Hegel (1980). Conforme defende Antunes (1998), o romance é considerado um gênero problemático, tendo em vista que [...] representa a máxima expressão artística de uma época, quando mostra as contradições da sociedade sem tentar soluções conciliatórias arbitrárias, quando penetra na essência das relações burguesas e revela o seu caráter histórico, em outras palavras, quando é realista (ANTUNES, 1998, p. 196).

Por sua vez, a literatura brasileira contemporânea, em suas narrativas, busca capturar e retratar a atual sociedade, pois percebe a necessidade de demarcar tal realidade histórica. A obra Felicidade, de Wellington de Melo, está inserida nesta corrente ideológica, uma vez que autor, narrador e personagens propõem estabelecer relações com a realidade na qual estamos inseridos. O presente artigo busca analisar a estrutura romanesca e o entrelace das vozes que compõem Felicidade, por meio das concepções teóricas de Antunes (1998), Bakhtin (1988), Borgato (2018), Gancho (1998), Ginzburg (2012), Hegel (1980), Lukács (2000), Reuter (1996), Reis e Lopes (2000), Schøllhammer (2009), Ullmann (2007), Wood (2017).

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Da epopeia clássica ao romance contemporâneo Não pertencente à tríade dos gêneros literários clássicos – épico, lírico e dramático – como já definido por Aristóteles, em sua Poética, o romance, por muito tempo, tornou-se algo inclassificável. É um gênero indefinido e que tem laços frouxos com a tradição de que se originou, embora mantenha características similares às do gênero épico. Com o advento de um novo perfil de leitor, houve uma quebra de paradigma na classificação dos gêneros literários, elevando o romance à categoria de gênero novo e distinto. O romance, assim, atingiu o seu ápice, em razão das expectativas desse novo público, visto que a sociedade estava se organizando em torno de um modo de vida burguês. Hegel (1980), ao julgar que no romance, por meio do trabalho estético, manifesta-se uma tentativa de conciliação entre indivíduo e mundo, entre a poesia da totalidade substancial e espontânea do Mundo Antigo e o prosaísmo da burocrática vida burguesa, nomeia o gênero de “epopeia burguesa”. Em vista disso, percebe-se que ao novo gênero não cabem mais as características clássicas, como temas estritamente históricos e mitológicos. Os heróis das epopeias, segundo Borgato (2018), pertencem a um mundo indissociável, não estando em confronto com sua realidade, deixando-se guiar por ela. Dessa forma, “sua ação é regida por deuses que influem diretamente nos rumos dos acontecimentos, seu conflito é contra um mundo diferente do seu” (BORGATO, 2018, p. 59). Assim, os heróis não são considerados indivíduos, visto que, no real significado moderno do termo, eles não se caracterizam pela cisão entre interior e exterior, eu e mundo, alma e ação, mas pela unidade entre a vida e sua essência. De acordo com Lukács (2000), Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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O herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre considerou-se traço essencial da epopeia que seu objeto não é um destino pessoal, mas de uma comunidade. E com razão, pois a perfeição e completude do sistema de valores que determina o cosmos épico cria um todo demasiado orgânico para que uma das suas partes possa tornar-se tão isolada em si mesma, tão fortemente voltada a si mesma a ponto de descobrir-se como interioridade, a ponto de tornar-se individualidade (LUKÁCS, 2000, p. 67).

Por outro lado, o herói do romance é um indivíduo solitário que, ainda segundo o autor citado, vive em uma realidade que mal compreende e dificilmente aceita. Dessa maneira, para Lukács (2000), o romance se desenvolve com a narrativa da condição do herói no mundo moderno e prosaico, sob as contingências do estado do mundo e de suas relações jurídicas, morais, políticas, que criam limites e obstáculos para a sua atuação. O romance, de acordo com Hegel (1980), assemelha-se ao gênero épico, na medida em que reconstrói a realidade por meio de uma representação, com o intuito de atribuir um novo sentido: a recuperação da totalidade de um mundo fragmentado. Enquanto gênero fluido, que até o século XIX era considerado gênero literário desprestigiado, apreciado por leitores com pouca competência, dirigido a um público cujos objetivos eram meramente entretenimento e evasão da realidade, o romance promete muitas possibilidades aos leitores, dentre elas, a busca de conexões com novas experiências de vida. No tocante ao gênero, Lukács (2000) afirma que O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade (LUKÁCS, 2000, p. 55).

Dessa maneira, percebe-se que o romance busca um sentido, uma totalidade. Lukács (2000, p. 60) afirma que “o romance busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida”, sendo esse o ponto que o distingue do gênero épico, uma vez que, ainda segundo o autor, a epopeia se configura de forma fechada a partir de si mesma. Para Bakhtin (1988), o romance é uma forma de conhecimento, visto que nele o herói passa por um processo de autoconhecimento no momento atual, no contato humano e com as opiniões alheias, superando-se como ruptura da representação de um mundo fechado e definido. Ou seja, para esse autor, o romance representa uma manifestação de um mundo incompleto, com diversas problemáticas, que apresenta, por isso, traços distintivos que são a reinterpretação e a reavaliação permanentes do tempo presente, representando a realidade como material de criação artística. Além disso, o romance simboliza a obra de um indivíduo singular e solitário que se dirige a um leitor não identificado, para além de seu alcance, também solitário e isolado. Portanto, pode-se dizer que o que faz o romance se diferenciar dos demais gêneros narrativos, além do indivíduo singular, é a presença de um discurso subjetivo e psíquico, uma vez que o romance pode manifestar a análise psicológica do narrador e das personagens, a voz interior, a linguagem e o discurso de viés introspectivo.

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No romance brasileiro contemporâneo é facilmente perceptível o significativo crescimento quanto ao número de publicações do gênero desde o século XX. Além da quantidade, a qualidade dos autores também cresce, pois cada vez mais o público se faz exigente. Com estéticas textuais mais livres, que consideram a subjetividade do narrador e da personagem, o romance contemporâneo retoma, de certo modo, características do estilo de época realista, tão presente no momento atual da literatura brasileira, além de “demarcar uma realidade específica e histórica”, segundo Assis (2013).

Do narrador

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Componente da narrativa, a figura do narrador é de importância fundamental na ação do narrar. Ele é um elemento ficcional que adquire individuação na obra, a partir da proposta criativa do autor. No entanto, não deve ser considerado como mero recurso discursivo ou linguístico dentro do romance, em virtude de que é ele o elemento inaugural da narrativa, que conhece e tem aproximação total com a história, encontrando-se, por vezes, na posição de personagem. De acordo com Ullmann (2007, p. 9) “o narrador é o elo existente entre o autor e a história narrada, entre o enunciado e o leitor. É ele o ponto organizador entre os demais elementos que compõem uma narrativa”. Sendo assim, pode haver romance sem personagem e sem a presença do autor, todavia sem narrador não há obra romanesca. Conforme Reuter (1996, p. 38), o narrador é aquele que parece contar a história no interior do livro, mas que, no texto, só existe em palavras. Assim, ao narrador cabe o encargo de levar o leitor a observar os aspectos mais significativos da obra, além de apresentar a realidade social e as problemáticas experienciadas pelas personagens, seus temores, dúvidas e questionamentos de modo geral. Lukács (2000) afirma que É indispensável, em toda grande arte, representar os personagens no conjunto das relações que os liga por toda parte, com a realidade social e com seus problemas. Quanto mais profundamente estas relações forem percebidas, quanto mais múltiplas forem as ligações evidenciadas, tão mais importante se tornará a obra de arte (LUKÁCS, 2000, p. 167).

Por muitas vezes confundidos, as figuras do autor e do narrador necessitam de atenção para que se desfaçam possíveis equívocos. Enquanto esse é uma entidade ficcional responsável pela organização da narrativa, aquele é o construtor do enredo da obra. O narrador pode se apresentar em primeira pessoa (“narrador-personagem”, elemento que participa diretamente do enredo) ou terceira pessoa (“narrador observador”, elemento que se mostra fora dos acontecimentos narrados, tendendo a ser imparcial, podendo ser onipresente e onisciente). No que tange ao narrador em primeira pessoa, Gancho (1998, p. 28) afirma que a figura do narrador-personagem pode variar entre “narrador-testemunha”, aquele que narra acontecimentos de que participou, entretanto, não se concebe como personagem principal; ou então “narrador-protagonista”, aquele que é personagem central da trama. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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Em contrapartida, o foco narrativo em terceira pessoa, de acordo em Gancho (1998, p. 28), apresenta duas vertentes: um narrador considerado “intruso”, que fala com o leitor, e um narrador “parcial” que, no que lhe concerne, identifica-se com algum personagem da história, dando-lhe maior destaque e espaço no enredo. Mesmo sendo possuidor da voz enunciadora do discurso, a função do narrador não se esgota na ação de narrar o que presencia. Segundo Reis e Lopes (2000), As funções do narrador não se esgotam no ato de enunciação que lhe é atribuído, pois o narrador é detentor de uma voz, que revela uma determinada instância de enunciação do discurso, a qual é traduzida de acordo com os tipos de narrador. (REIS; LOPES, 2000, p. 258)

Ainda de acordo com Reis e Lopes (2000), o narrador pode ser: “autodiegético”, “heterodiegético” ou então “homodiegético”. O narrador autodiegético é aquele que narra suas experiências de vida; por sua vez, o narrador heterodiegético é o que relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra o universo diegético em questão. No que se refere ao narrador homodiegético, essa entidade veicula informações advindas de sua própria experiência diegética, pois, tendo vivido a história como personagem, este narrador retira daí as informações necessárias para construir o seu relato, como ocorre na obra Felicidade, de Wellington de Melo.

Do romance Felicidade e a contemporaneidade Felicidade é uma obra que está inserida na contemporaneidade não apenas por ter sido publicada em 2017, mas, sobretudo, por veicular uma percepção verossímil do nosso tempo, a ponto de observá-lo, captá-lo e representar, por meio de uma narrativa díspar, o panorama cáustico do atual momento histórico. A despeito disso, a narrativa evidencia as obscuridades da psique humana, descortinando os males das relações sociais e questionando a própria literatura por meio do recurso da metalinguagem. A narrativa é composta por uma obra – escrita por Ignácio – discutida e fragmentada dentro da obra aqui analisada – Felicidade, narrada por Ademir, dividida em três capítulos, assim denominados: “Beleza”, “Julgamento” e “Misericórdia”. No primeiro capítulo, ao narrar o sepultamento do pai de Ademir, o conceito de beleza se subverte do senso comum. O trabalho do coveiro é descrito de forma poética, tratado como admirável. No decorrer da narrativa, Ademir diz: “A beleza é uma escolha, Ignácio” (MELO, 2017, p. 18), sendo possível perceber que, nesse capítulo, o belo será ressignificado. No segundo capítulo, umas das temáticas máximas da obra, a morte, é retomada de diversas formas: o falecimento da mãe, dos ativistas do Movimento Cidade Plana, do Sr. Antônio e de Ignácio. Ademir repensa o processo de verticalização e, em seguida, são narrados seus instantes de angústia, representado pelo trecho: “ninguém te ensinou nada sobre abismos” (MELO, 2017, p. 75). No último capítulo, alguns diálogos são retomados como se tudo estivesse caminhando para o fim do inquietante dia de Ademir. São esclarecidas algumas situações antes obscuras para o leitor, tais como: a causa do roubo do dinheiro do movimento Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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ativista e o difícil processo de desencantamento pela figura materna, já prenunciado em capítulos anteriores. Na obra Felicidade há uma abordagem acerca de assuntos que são negligenciados pela sociedade, seja por repúdio ou por censura. Entretanto, o romance não se resume às diversidades sociais, pois narra de modo peculiar o intrínseco das personagens, transparecendo sensibilidades e, ao mesmo tempo, deixando incógnitas a serem desvendadas pelo leitor. Neste sentido, alinha-se ao que determina Schøllhammer (2009), ao dizer que “a literatura que hoje trata dos problemas sociais não exclui a dimensão pessoal e íntima, privilegiando apenas a realidade exterior; o escritor que opta por ressaltar a experiência subjetiva não ignora a turbulência do contexto social e histórico” (p. 15- 16). O estilo indireto livre é um atributo singular da obra, que, somado às nuances da narrativa, permite uma leitura a partir da ótica dos narradores-personagens e também da personalidade autoral de Wellington de Melo, escritor que, com perspicácia, introduz pormenores repletos de referências externas à obra. Segundo James Wood (2017), tal procedimento é factível à narrativa, pois, Graças ao estilo indireto livre, vemos coisas através dos olhos e da linguagem do personagem, mas também através dos olhos e da linguagem do autor. Habitamos, simultaneamente, a onisciência e a parcialidade. Abre-se uma lacuna entre autor e personagem, e a ponte entre ele – que é o próprio estilo indireto livre – fecha essa lacuna, ao mesmo tempo que chama atenção para distância (WOOD, 2017, p. 25).

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Cabe salientar, ainda, que as narrativas das personagens Ademir e Ignácio, na obra, não devem ser concebidas com confiabilidade, afinal são efetuadas em primeira pessoa. A escrita se apresenta ora na perspectiva intrínseca das personagens, ora sobre o íntimo delas, sendo explorados diferentes ângulos narrativos. Dessa forma, para que seja possível identificar possíveis centralidades temáticas no romance, não se deve resumi-lo a apenas um dos inúmeros temas de que a obra trata, tais como o aguerrido ativismo político-social, o efeito do neoliberalismo despudorado nas camadas sociais menos abastadas, ou a pungente questão dos suicídios em massa, mas tentar compreendê-lo como a aglomeração das peculiares e, ao mesmo tempo, cotidianas minúcias das inter-relações humanas, discorridas por meio de falas compactas e ríspidas das personagens. Considerando a importância dos pormenores para o enredo de Felicidade, Wood (2017) afirma que, “se podemos narrar a história do romance como o desenvolvimento do estilo indireto livre, também podemos narrá-la como o surgimento do detalhe” (p. 77). Sendo assim, o romance, dentre as influências e referências históricas e sociais, possui, como característica, quase que inerente ao gênero, uma narrativa repleta de elementos particularizantes. Outro aspecto levantado por Wood (2017), ao analisar Flaubert e a narrativa moderna, é a “presença” do autor na seleção e no encadeamento dos detalhes, com o intuito de registrar a sua autoria de modo imperceptível. O teórico cita uma frase famosa de Flaubert, no trecho “um autor em sua obra deve ser como Deus no universo, presente em toda parte e visível em alguma parte” (FLAUBERT, 1852, apud WOOD, 2017, p. 48) e elucida: Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


"Pra que servem tuas histórias?" Uma análise acerca da construção do narrador contemporâneo no romance Felicidade, de Wellington de Melo

Parece a vida real – de um modo belamente artificial. Flaubert sugere que esses detalhes, de certa forma, são ao mesmo tempo importantes e insignificantes: importantes porque foram notados e escritos por ele, e insignificantes porque estão todos misturados, como vistos de relance; parecem chegar a nós como “a vida real” (WOOD, 2017, p. 49).

Em Felicidade, por meio da narrativa de Ademir, é possível identificar traços dos demais personagens mencionados, como hábitos e até mesmo temperamentos. No entanto, isso o caracteriza mais como o narrador do que corrobora elementos identificatórios para a construção imagética das outras personagens. A narrativa de Ignácio também se apresenta como recurso de percepção, não só de si mesmo, mas do próprio Ademir. As personagens se engolfam em vida e após a morte de Ignácio, conferindo, em alguns momentos, uma espécie de ligação erotizada entre eles, e, em outros, uma total cisão. Ademir se aproxima de Ignácio por causa de sua vida boêmia. Esse visa sempre se beneficiar das situações, retendo o que lhe interessa para a sua obra literária; mas a ficção – escrita a partir da trágica realidade de Ademir – os separa e gera inúmeros conflitos. Essa ligação entre as personagens principais da trama reverbera na construção da narrativa como uma grande conversa com Ignácio, alguns diálogos de fato ocorridos na época em que estava vivo, outros enquanto já estava morto, configurando um monólogo no qual ele (Ademir) conta diversas situações culpando Ignácio. A literatura de Wellington de Melo se apresenta como inovadora porque ousada; alcança e dialoga com o momento histórico e com os problemas sociais vigentes. Uma obra contemporânea de compleição ficcional tanto veicula mensagens de reflexão no que diz respeito à sua forma quanto ao seu conteúdo. A linguagem e o estilo do autor são talvez herméticos, atribuindo ainda mais alegorias à narrativa já fracionada, formando lacunas nos seus jogos temporais e alavancando fortes indicativos de reminiscências, ao longo da diegese.

Da significância das personagens para a construção do enredo A obra de Wellington de Melo possui inúmeras personagens: os suicidas; a mãe, o pai, a irmã e o irmão transexual de Ademir; Pedro; os amigos boêmios de Ignácio; o próprio Ignácio; e, por fim, Ademir. As personagens são como “peças” de um grande quebra-cabeças que, juntas, vivem momentos inquietantes, mas que arquejam a falsa felicidade, talvez encontrada somente no salto para a morte, conforme se acena ao longo da obra. Alguns episódios são narrados por Ignácio, mas a voz que se sobrepõe é a de Ademir, o qual é identificado como narrador-protagonista. Devido a isso, apesar de muitos fatos narrados serem fruto da memória dessa personagem (Ademir), os relatos sofrem intervenções que podem ocultar, selecionar ou distorcer fatos intencionalmente ou não, já que as histórias despertam lembranças de questões vividas em um passado distante, e são rememoradas em um dia conturbado, como pode ser percebido no trecho a seguir: Me fecho no quarto. Há um morto na casa ao lado e não sei onde está o meu dinheiro. Apago a luz. Não há janelas e a escuridão é absoluta. Há quantos dias não

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durmo? Três, quatro, uma semana, um mês, três, quatro, anos, décadas? A escuridão é absoluta. Adormeço (MELO, 2017, p. 76).

A relação familiar de Ademir é repleta de “não ditos”. Odiava o pai, era frustrado com a mãe, repugnava a irmã obcecada por religião e era apaixonado por Zê, seu irmão transexual. Todas essas questões são relatadas na história, a fim de retratar o que Ademir passou, provocou e sobre o que ele se tornou. No entanto, fica sob a responsabilidade do leitor adjetivá-lo quanto às suas ações, como pode ser observado em: “Quer falar de família? Sério? Você? Essa sua família disfuncional, esse laboratório de ratinhos? Posso ser sincero? Os dramas da sua família, lá onde estavam, naquela caverna, não tinham qualquer importância. Seu pai bêbado, sua mãe puta, sua irmã crente, sua outra irmã-irmão, sua tara. Tudo tão clichê. Agora, são arte, meu amor, podem significar algo algum dia. Ou não, quem se importa? Não estou nem aí com seus traumas. Vá embora.” [...] “Por que tu não escreve sobre esse pessoal bacana que vai nos lançamentos? Eles te arrombariam direitinho se tu mexesse de verdade com eles, tu só usa os fodidos feito eu” (MELO, 2017, p. 115-116).

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Portanto, a partir desse encadeamento de dados, contados dentro de outra história, é que o enredo de Felicidade se constrói e se torna possível assimilar a ideia de que o confronto entre o narrador-protagonista e o escritor Ignácio se dá porque esse último escreve um livro sobre as tramas familiares de Ademir.

Da presença dos narradores na trama romanesca Conforme mencionado anteriormente, em Felicidade foi possível se deparar com a presença de dois narradores, Ademir e Ignácio, sendo eles narrador-protagonista e narrador principal, respectivamente. Assim, os dois são narradores em primeira pessoa, tendo em vista que, além do ato de narrar, ambos participam como personagens na construção do enredo. Ademir é o narrador da obra romanesca aqui analisada, enquanto Ignácio é o autor/ narrador da obra em que se relata a vida da personagem Ademir. Enquanto Ademir, em monólogo com o morto Ignácio, diz “queria te dizer tanta coisa: te amo e te odeio; tu também me atropela dia após dia” (MELO, 2017, p. 72), caracterizando a relação de amor e ódio que há entre eles, Ignácio o trata como um fornecedor de histórias clichês e, também, extraordinárias para a construção de mais uma de suas obras literárias, pois, como sustenta Ignácio “a partir do momento que coloco no livro, não é mais realidade... É só... ficção” (MELO, 2017, p. 113). Durante a construção do enredo, suas vozes se encontram, tendo em vista que suas narrativas se complementam. Ao mesmo tempo em que Ademir expõe seus questionamentos acerca da obra elaborada por Ignácio, com conteúdo falacioso e tendencioso, num segundo plano ele narra suas inquietudes a respeito da construção identitária. Ou seja, as incompreensões de seus ambientes familiar e social. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


"Pra que servem tuas histórias?" Uma análise acerca da construção do narrador contemporâneo no romance Felicidade, de Wellington de Melo

A partir disso, os detalhes dos aspectos físicos, comportamentais e emocionais das personagens, bem como dos momentos compartilhados entre eles, Ademir e Ignácio, são evidenciados durante diálogos ocorridos no passado: “[...] Aqui não é Comala e eu não sou teu Pedro Páramo.” “Tu conhece Pedro?” “Pedro é um personagem, querido. Ficção, não existe. Assim como aí, no livro, não é você.” “Conversa do caralho! Sou eu, não tinha direito!” [...] “Olha, estou ocupado, e essa conversa não levará a nada.” “Tu se acha muito inteligente porque leu mais, não é? Tu acha que esses teus livros são importantes? Pra quem? Quem lê isso aí? Ninguém lê essa porra, não! Limpa teu cu com essa merda! Tu acha que não vai morrer, porque escreve essas histórias, é? Quem quer ouvir? Tem tempo para essa porra, não! Tem que ganhar a vida! Bando de desocupado do caralho! Esse pessoal compra teu livro e lê? Lê porra nenhuma! Tem não, tem tempo não! Pra que servem tuas histórias? Pra porra nenhuma! Tu usa as pessoas e joga fora, por isso, não tem família, não tem ninguém!” (MELO, 2017, p. 115).

Em Felicidade, os narradores podem ser compreendidos como “descentrados”, o que faz deles refratários às desigualdades sociais, à política exclusivista e economicamente supressora, já que não são regidos por costumes e normas de classes dominantes. Tais forças de descentramento são necessárias em uma sociedade na qual historicamente se (re)produzem preconceitos. Conforme afirma Ginzburg (2012), o centro é entendido como um conjunto de campos dominantes na história social – a política conservadora, a cultura patriarcal, o autoritarismo de Estado, a repressão continuada, a defesa de ideologias voltadas para o machismo, o racismo, a pureza étnica, a heteronormatividade, a desigualdade econômica, entre outros (GINZBURG, 2012, p. 201).

O narrador Ademir, em diversos momentos, mostra o quanto esse conjunto de campos dominantes está impregnado na sociedade machista e assolada pela heteronormatividade, haja vista a construção da fala da personagem Pedro, ao ser questionado por Ademir sobre sua orientação sexual: “Não, nunca contei nada, não me respeitariam. Sempre fui muito controlado, viu? Do contrário, já tinha colocado peitos. [...] Como tu conseguiu esconder da tua mulher esse tempo todo? [...] E ela nunca desconfiou?” (MELO, 2017, p. 80). Ademir apresenta-se como um narrador homodiegético, uma vez que relata suas experiências como personagem principal, cujo destaque pode ir da posição de testemunha à personagem secundária. No trecho “outra noite, eu, atrás da porta. O velho ainda vivo, bêbado. O mamute (é assim que tu chamas minhas irmãs no livro?) lhe dá banho. A mãe já se recusava na época” (MELO, 2017, p. 21), pode-se observar um diálogo entre Ademir e Ignácio, personagem com quem estabelece uma espécie de “troca” da voz discursiva que permeia o romance. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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A partir da análise do narrador construído por Ignácio, não se pode afirmar haver uma estética estrutural homodiegética, heterodiegética ou autodiegética, pois não há delimitações, na obra, do que está sendo narrado, de fato, por Ademir, e sobre o que ele está lendo acerca de sua própria vida no livro escrito por Ignácio. Felicidade exibe uma alternância de narradores, mas não os delimita de modo preciso, estruturalmente. Entretanto, cabe ressaltar que a narrativa constituída por Ignácio é subjetiva, pois as personagens são regidas pelo seu ponto de vista, já que as histórias narradas são fatos que foram relatados por Ademir.

Considerações finais

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O romance Felicidade possui, como elemento mais significativo, a complexidade na construção da narrativa; ao descrever os fatos vividos por Ademir, suas inquietações, o desejo pelo seu irmão transexual, sua indignação por ver toda sua vida retratada em uma obra literária escrita por Ignácio, confecciona um enigma sobre quem é, de fato, essa personagem e o que ela vai poder fazer a partir desses dados. Os detalhes, que funcionam com uma espécie de alegorias a serem desvendadas e, ao mesmo tempo, elucidam elementos cruciais da construção do enredo, são permeados pelo estilo indireto livre, defendido por Wood (2017), e por meio do narrador-protagonista, pressuposto por Gancho (1998). Dessa forma, as ações de Ademir se compõem e também deixam lacunas, agregando ao romance de Wellington de Melo o efeito instigante da contiguidade. Baseando-se nas pesquisas bibliográficas e na análise realizada sobre a estruturação da figura do narrador na obra, pode-se afirmar que a compreensão das duas vozes alternadas e as influências subjetivas e sociais que as permeiam contribuem para conceituar a obra como uma narrativa díspar. Uma análise puramente estruturalista não é suficiente para observar o desempenho diegético dos narradores; ou seja, eles não cabem dentro da definição tradicional, por se apresentarem de forma incomum, inovadora, como já foi posto. À vista disso, reside neste espaço a tentativa de compreender a genialidade da obra e o apuro de seu autor, escritor que arquiteta uma narrativa romanesca interdiscursiva, metaliterária, provocativa e engenhosa. Como devem soar os grandes romances na contemporaneidade.

Referências ANTUNES, L. Z. Teoria da narrativa: o romance como epopeia burguesa. In: ANTUNES, L. Z. Estudos de literatura e linguística. São Paulo: FCL/UNESP, 1998. ASSIS, Emanoel Cesar Pires de. Entre homogeneidades e heterogeneidades: o romance contemporâneo brasileiro e suas constantes. Littera, São Luís, v. 4, n. 6, 2013. BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 1988. BORGATO, Raphael. O romance moderno como epopeia burguesa: o realismo inglês setecentista. Odisseia, Natal, v. 3, n. 1, p. 57-73, jan./jun. 2018. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 5. ed. São Paulo: Ática, 1998. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


"Pra que servem tuas histórias?" Uma análise acerca da construção do narrador contemporâneo no romance Felicidade, de Wellington de Melo

GINZBURG, Jayme. O narrador na literatura brasileira contemporânea. 2012. Disponível em: <https://riviste.unimi.it/index.php/tintas/article/viewFile/2790/2999> Acesso em: 14 jan. 2019. HEGEL, G. W. F. Estética: a poesia. Tradução A. Ribeiro. Lisboa: Guimarães, 1980. LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000. MELO, Wellington de. Felicidade. São Paulo: Patuá, 2017. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2000. REUTER, Ives. Introdução à análise do romance. Tradução A. Bergamini, M. Arruda, N. Sette. São Paulo: Martins Fontes, 1996. SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. ULLMANN, Lílian de Araújo. O narrador na obra Amar, verbo intransitivo. 2007. 21 p. (Trabalho de conclusão de curso) – Especialização em Letras. Centro Universitário La Salle, Canoas, 2007. WOOD, James. Como funciona a ficção. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: SESI Editora, 2017.

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parte iI leitura literária, diversidade cultural e humanização

[...] a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. [...] a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. Antonio Candido



A cor da palavra e a poesia da cor: traços humanizantes na literatura de André Neves1 The color of the word and the poetry of color: humanizing traits in the literature of André Neves Liliane Maria JAMIR E SILVA2 Resumo: Este artigo apresenta uma leitura de algumas obras infantojuvenis do autor pernambucano André Neves. Procuramos observar a harmônica relação entre a palavra e o estilo inconfundível de suas ilustrações, dando ênfase a categorias estéticas identificadas em motivos recorrentes e sistematizadas em quatro itens: a imagem-poesia, ora delineada na forma difusa, sugestiva, propulsora de desdobramentos, ora instada pelo jogo sonoro das palavras; o traço regional de essência universal, cuja simbologia possibilita a transposição do locus circunstancial para o campo universal; o desenho da palavra-poesia, em que se destaca a sensibilidade do autor no conhecimento e no trato da palavra poética; e, finalmente, a humanização do humano, categoria também motivada pela temática transversalizada no evento, em que se destaca a dimensão humanística que toda verdadeira obra de arte deve projetar em seu potencial simbólico. Além disso, procuramos fomentar a reflexão e o conhecimento sobre a necessidade do diálogo entre as linguagens literárias e plásticas como elemento de extrema importância no desenvolvimento da sensibilidade estética e a consequente formação humanística dos indivíduos. Palavras-chave: André Neves. Imagem-poesia. Literatura e humanização. Abstract: This article presents a reading of some works of the author from Pernambuco State, André Neves. We try to observe the harmonic relationship between the word and the unmistakable style of his illustrations, emphasizing some aesthetic categories identified in recurring motifs systematized in four items: the image poetry, sometimes outlined in the diffuse form, suggestive, propelling developments, now urged by sound game words and supporting images; the regional trace of universal essence, whose symbology allows the transposition of circumstantial locus for universal field; drawing the word poetry, which highlights the author’s sensibility in the knowledge and treatment of the poetic word; and finally, the humanization of human being, a category also motivated by the theme of the event, which highlights the humanistic dimension that every true work of art must design in its symbolic potential. In addition, we seek to foster reflection and knowledge about the need for dialogue between literary and plastic languages as an element of formation of humanistic subjects. Keywords: André Neves. Image-poetry. Literature and humanization.

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Trabalho apresentado em primeira versão no 16º Encontro de Literatura Infantojuvenil e 16º Encontro de Educação - Humanizar-se para humanizar: desafios na formação de leitores e educadores, eventos realizados conjuntamente nos dias 8, 9, 10 de maio de 2013, na FAFIRE, ocasião em que o autor, convidado para a mesa, fora homenageado pelo conjunto de sua obra. Publicado nos ANAIS do VIVA A PERNAMBUCANIDADE VIVA, 13., Recife: FAFIRE, v. 4, n. 1, 2014. Disponível em: < http://publicacoes.fafire.br/diretorio/vpv/vpv_13_04.pdf> 2 Doutora em Literatura e Cultura pela UFPB | professora FAFIRE | editora científica dos periódicos FAFIRE | E-mail: lilianejamir@uol.com.br. 1

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Introdução Falar sobre a obra de André Neves é um grande prazer, mas também um grande desafio. Na primeira hipótese, simplesmente porque a harmonia e a relação de complementaridade que se estabelece entre o desenho e a palavra escrita torna-se verdadeiro deleite não só para iniciados na leitura do literário, mas para todo o leitor que se deixa levar pela emoção ante a interrelação de signos. O desafio ficou por conta de fazer, da homenagem, na ocasião proposta, frente ao autor3, uma leitura crítica (que inicialmente denominamos “impressões de leitura”), quando propusemos compartilhar nossas impressões de leitura à revelia das pretensões estéticas do autor então presente. Naquele contexto, vali-me, inicialmente, do poema de Sylvia Manzano, desenhado por André Neves, em A caligrafia de Dona Sofia (2011, p. 31) que assim diz: A PALAVRA É COMO UM PASSARINHO QUE VEM COMER ALPISTE NA MINHA MÃO. DEPOIS VOA TÃO ALTO QUE SINTO MEDO NÃO ENCONTRE MAIS O CAMINHO DE CASA.

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De fato, o aceno de André, presente naquele momento, parecia corroborar o sentido dessa inserção poética, pois a cada leitor se concebe a liberdade de desvendar o segredo das palavras utilizando sua própria chave, como lembra Drummond em Procura da Poesia (1987, p. 111, 112). Optamos, assim, por trabalhar com algumas categorias estéticas que, sem exclusividade, revelam-se em temas e motivos recorrentes em algumas obras em foco, a saber: 1. A imagem-poesia; 2. Traço regional de essência universal; 3. O desenho da palavra-poesia; e 4. Humanizando o humano, esta última também motivada pela temática do evento4.

A imagem-poesia Neste primeiro item, enfatizamos a poeticidade emanada do traço inconfundível do ilustrador, notadamente em obras da produção mais recente, fase em que o próprio autor atesta uma definição de seu estilo5 buscada ao longo de sua trajetória.

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Trata-se do evento mencionado na nota 1. Humanizar-se para humanizar: desafios na formação de leitores e educadores. 5 Conforme dispôs em sua fala na mesa de palestras do referido Encontro de LIJ. 3 4

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A cor da palavra e a poesia da cor: traços humanizantes na literatura de André Neves

Nessa perspectiva, Casulos (Global, 2007) é pura poeticidade desenhada, cujas imagens insuflam o movimento livre, leve e fluido da imaginação. O desenho, como o signo poético, é caleidoscópico, repleto de sentidos; é imagem-metáfora delicada, mas também enigmática, provocando-nos o exercício de múltiplos desdobramentos. Diante do olhar inquieto, curioso, abre-se a indescritível aventura de capturar significados nas figuras, como se busca sentidos naquele “it” de “Água Viva”, de Clarice Lispector, na palavra “isca”, que muitas vezes escapa ao leitor no contínuo movimento da rede intertextual. Oportunamente, registram-se, aqui, algumas experiências vivenciadas em oficina realizada com uma turma do Curso de Pedagogia, quando, a partir da poeticidade de Casulos, foram observadas diferentes impressões de leitura. Nessa oficina, tendo ao fundo a suavidade de uma composição musical de Sibélius Donato Tenório, intitulada Elegia para um amor sonhado, os participantes sentiram-se motivados a acompanharem, por repetidas vezes, as páginas ilustradas, ora folheadas nos exemplares que circularam de mãos em mãos, ora visualizadas em slides projetados em data show. Em seguida, a partilha das impressões registradas, em desenhos e/ou em palavras, nos confirmou a profundidade e a riqueza de sentidos que a obra despertara, dos quais destacamos algumas impressões compartilhadas: 1. “a história me remete à importância da liberdade...”; 2. “é maravilhosa a sensação de voar mesmo sem ter asas...”; 3. “casulo é vida, esperança, liberdade”; 4. “onde aparentemente seria o fim..., percebe-se um emocionante recomeço”. O título Casulos também nos remete à ideia de invólucro, de envoltório a abrigar um processo metamorfósico e de proliferação. Do casulo também se desprende algo que certamente ganha liberdade, como consta na contracapa do livro, Na imaginação, há uma liberdade infinita, que permite entrar e sair da realidade, subir, voar, ousar no agora, no antes e no depois.

ainda que nessa liberdade também se possa vislumbrar o infortúnio daquelas borboletas que, flutuantes, alçaram voo de seus casulos para pousarem espetadas num quadro de parede, fato que se compara ao próprio ser humano quando, na conquista de seu livre-arbítrio, leva consigo a responsabilidade de traçar o seu próprio caminho.

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Menino chuva na rua do sol (Paulinas, 2003) apresenta traços de alegria e de espontaneidade através da livre imaginação infantil, e diz muito do velado desejo de toda criança ao brincar na chuva: OLHA A CHUVA!... É AÍ QUE ME ACABO, ME SOLTO ME MOLHO, ME LARGO. (p. 4)

O discurso poético também se reveste de traços da oralidade ao reproduzir a típica próclise da linguagem coloquial – “me solto, me molho, me largo” –, cujo ritmo se faz com o tamborilar do “menino da rua do sol / falando pingos de palavras” (p. 5). A sonoridade peculiar ao jogo poético também se faz presente nas aliterações e nas onomatopeias, marcando um ritmo de cumplicidade entre a chuva intermitente e a inquieta alegria da personagem – PLINC PLAFT... PLINC PLAFT... PLINC PLAFT... PISANDO FIRME COM A BOLA NO PÉ, O MENINO ESPALHA POÇAS DE PENSAMENTOS (p. 8)

A instância poética, revezando-se em tom narrativo, reconstrói o famoso dito popular, reiterando a alegria impetuosa da infância:

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PORQUE MENINO É COMO CHUVA MOLE EM PEDRA DURA, TANTO PINGA ATÉ QUE FURA. NINGUÉM SEGURA. (p. 10) (...)

Seguindo o curso da água em alguns de seus estados – líquido e gasoso –, o menino-personagem vai sendo desenhado ao sabor de múltiplas sensações, cujo efeito sinestésico o projeta, num passe de mágica, da água para o ar, quando ELE PULA FEITO PEIXE PARA FORA D’ÁGUA E SEGUE FLUTUANDO NO AR DE TEMPERATURAS VAPOROSAS, ATÉ AGARRAR-SE EM UMA NUVENZINHA MACIA QUE PASSA. (p. 19) Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A cor da palavra e a poesia da cor: traços humanizantes na literatura de André Neves

Insuflada pelo jogo poético ficcional, num processo de novas combinações morfossemânticas, a trajetória do menino chuva também se perfaz através de termos/objetos que fogem ao lugar comum, como se pode observar no trecho em que o “guarda-chuva na mão de menino / vira barco deslizando / na correnteza da cheia” (p. 13), ou ainda melhor, quando a instância discursiva reinventa significados mediante combinações como: “chover menino” (p. 20), “adeus aguaceiro” (p. 23), ao mesmo tempo em que, mudado o ponto de vista do narrador-ilustrador (ao focar de cima para baixo, p. 20 e 21), oportuniza ao leitor/observador, junto com a curiosidade do menino, desvendar “segredos e mistérios / naquela nuvem que cresce / até o tamanho certo para chover forte. / Chover menino.”, fato que, sutilmente (como tema transversal), poderá ser motivo de uma boa discussão sobre o fenômeno da precipitação das chuvas. Fechando a narrativa, o menino chuva reina belo e triunfante, realçando, nesse efeito composicional (texto e ilustração), uma tendência peculiar à literatura infantojuvenil contemporânea, no que tange à autonomia estética da personagem infantil6.

E ASSIM, QUANDO O SOL DOURA O INFINITO, O MENINO, AGORA MENINO CHUVA, PARECE MAIOR QUE O CÉU.

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Sobre esta questão da autonomia estética da LIJ, ver artigo de nossa autoria, publicado em LIMA, Aldo. (Org.) Reinações da Literatura Infantil e Juvenil. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2011, p. 43-56. 6

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Lino (Callis, 2012, Coleção Itaú de Livros Infantis) nos transporta para uma maravilhosa loja de brinquedos; e numa de suas prateleiras, lá estava o porquinho Lino, convivendo com outros companheiros, principalmente com a coelhinha Lua. Mas, “Naquela manhã, Lino acordou triste. Lua havia desaparecido da loja de brinquedos.” Lua era uma coelhinha branca Com uma luz que acendia na barriga Toda vez que ela dava risadas.

O tempo passou lento, até que Lino fora colocado numa caixa, pelo que se deduz que chegara a sua vez de sair da prateleira e seguir para as mãos de quem o escolhera. E assim,

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Quando a caixa abriu, Lino encontrou uma Menina que se chamava Estrela.

A história prossegue deliciosamente poetizada, deixando entrever traços sutis de questionamentos, de incertezas, como também belas cenas de companheirismo, de amizade e de velada contemplação, como no momento em que Lino olha o céu e lá imagina ter avistado a barriga iluminada de Lua... Ou o sorriso da Lua, como o narrador finaliza a história.

Às vezes, ela até parecia sorrir no céu.

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A cor da palavra e a poesia da cor: traços humanizantes na literatura de André Neves

Traço regional de essência universal... Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia. (Leon Tolstói)7 Falo daquilo que amo e conheço, do que me parece mais profundamente localizado, para ser mais profundamente universal. (João de Melo)8

Como se sabe, ao leitor sempre cabe boa parcela de sentidos elaborados a partir de seu horizonte de expectativas. Sendo assim, diríamos que algumas obras de André Neves deixam-nos entrever uma espécie de transmigração do ser poético, uma errância da enunciação textual possivelmente justificada pelo seu deslocamento de norte a sul9, ou de sua transmutação do continente americano para o africano. Todavia, a presença de elementos circunstanciais (traços regionais) em nada compromete a universalidade da expressão; sejam em motivos nordestinos, gaúchos ou africanos, o que deles emanam são indistintamente sentimentos e valores humanos e universais. E tudo de forma lúdica, poética, envolvente. Três obras de André Neves foram eleitas para demonstrar essa transmigração do poeta/ilustrador: Seca (Paulinas, 2000), Maria Peçonha (Difusão Cultural do Livro, 2004) e Obax (Brinque-Book, 2011), cujos contextos nos remetem, respectivamente, ao sertão nordestino, à desertificação das regiões gaúchas (cidade de Alegrete) e às savanas africanas, onde aldeias isoladas, apesar das dificuldades, ainda mantêm a riqueza de seus costumes e de suas tradições. Além do aspecto cultural, as histórias, notadamente Maria Peçonha e Obax, nos remetem ao mítico, tudo isso com muita magia e encantamento.

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Disponível em:< http://www.rivalcir.com.br/frases/leontolstoi.html>. Acesso em: 10 set. 2013. Apud SERRA, Paulo. O realismo mágico na literatura portuguesa: o dia dos prodígios, de Lídia Jorge e O meu mundo não é deste reino, de João de Melo. Lisboa: Edições Colibri, 1980, p. 84. 9 Sabemos que André nasceu no Recife, mas hoje vive em Porto Alegre. 7 8

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Em Seca, a paleta sensível do ilustrador nos traz crianças (raquíticas) no duro trabalho da aridez do sertão nordestino, na labuta, junto com os adultos, vivendo o drama da falta d’água, não obstante a alegria do brincar com barquinhos de papel, brinquedo artesanal que representa, no contexto, o valor simbólico da esperança, a alegria subsistente na criança, mesmo quando a tristeza se impõe em seu cotidiano. Na dobradura de papel de jornal, são perceptíveis fragmentos da célebre composição de Luiz Gonzaga, a Asa branca, cujos versos aparecem fragmentados nas dobraduras dos barquinhos, juntamente com trechos de notícias sobre a seca que assola os estados nordestinos. Maria Peçonha nos transporta para as terras do sul, também com sua própria aridez. Vê-se, aí, a paisagem e o estilo arquitetônico peculiares. A cultura e a história dessa narrativa representam outro recorte do solo brasileiro. E, como afirma o próprio André, Maria Peçonha conta “a história de uma personagem inserida na cultura do Rio Grande do Sul” [conforme reitera], “Estado onde vivo, desenho e invento histórias.”

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Fundada num princípio mítico, a narrativa cria/inventa uma explicação para um fenômeno incompreensível aos olhos do pensamento racional, prática mantida por todos os povos (principalmente nas culturas primitivas) ao longo do tempo. A contracapa do livro nos diz que “Maria Peçonha foi uma artista popular que, entre agulhas, remendos de tecidos e linhas, costurou bonecas de pano e a própria vida. Dedicada ao artesanato, não foi essa arte que a fez admirada pelos moradores de Alegrete [...], mas uma façanha inexplicável: onde ela passava, nasciam flores. E assim tornou-se Maria Flor. Até que um dia transformou-se em Maria Peçonha...” De Maria, a Maria Flor, e finalmente a Maria Peçonha, a história apresenta certa complexidade em seu enredo, visto que, progressivamente, mas nem sempre de forma linear, introduz elementos temáticos em discursos diversificados (ora em prosa, ora em verso), o que se faz arranjando os motivos em tom de mistério, ora com certo enfrentamento, ou ainda com uma parcela de humor, permeando a narrativa de tonalidades expressivas de vozes distintas. Exemplo representativo dessa diversidade encontra-se na página 15, quando ao Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A cor da palavra e a poesia da cor: traços humanizantes na literatura de André Neves

discurso narrativo se insere um trecho em verso, uma espécie de cantiga popular, onde não falta um toque de humor através da onomatopeia registrada na penúltima linha: Maria Flor. Maria Flor. Flor da cidadela, não espere a primavera, vá na pedra lascada, na areia e na estrada, e faça a paisagem florir. Ouçam! Ouçam! Ouçam! X i i i i i X i i i i i, é o verde que passou a florir.

Outros aspectos estilísticos e estruturais poderiam ser destacados nesta análise de Maria Peçonha (como também de outras histórias aqui destacadas), o que foge ao propósito deste estudo, mais de caráter panorâmico e provocador da experiência literária infantojuvenil. Sendo assim, passemos a mais uma obra primorosa do autor. Em Obax, o eu-poético desenha uma história ambientada no solo africano, numa aldeia situada entre as savanas, como se lê na seguinte introdução: Quando o sol acorda no céu das savanas, uma luz fina se espalha sobre a vegetação escura e rasteira. O dia aquece, enquanto os homens lavram a terra e as mulheres cuidam dos afazeres domésticos e das crianças. Ao anoitecer, tudo volta a se encher de vazio, e o silêncio negro se transforma num ótimo companheiro para compartilhar boas histórias (p. 6). Ali morava a pequena Obax (p. 8).

Obax nos traz o livre imaginário das histórias e a importância de seus contadores, como afirma o narrador, justificando (com certa cumplicidade), os possíveis excessos da imaginação da protagonista, ao causar estranhamento às pessoas de sua convivência: As histórias, como contam os contadores na África, são sagradas. Mas algumas invenções de Obax eram demais. Todos riram (p. 13). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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E foram muitas as histórias inventadas por Obax. Até que um dia ela “contou ter visto cair do céu uma chuva de flores.” Mas..., indagavam incrédulos, “Como poderiam chover flores onde pouco chove água?” (p. 15). E assim a menina decide empreender uma longa aventura para provar a todos que sua história era verdadeira. Obax (flor), montada no elefante Nafisa (pedra preciosa), resolve correr o mundo, pois dizia que, em algum lugar do mundo, haveria de encontrar uma chuva de flores. Não obstante o questionamento supracitado, o que prepondera, na história de Obax, é a harmônica convivência do real com o fantástico, como é próprio das culturas primitivas, cujo contexto reflete um mundo mágico, mítico, povoado de crenças, de superstições, como também se vivencia na incrível sabedoria popular. Nessa perspectiva, a obra reflete uma realidade multifacetada, em que o real e o mítico convivem com parcimônia, a exemplo do que afirmara Kleyton Pereira em estudo sobre os contos do moçambicano Mia Couto, ao observar que os “elementos míticos e históricos vivem em harmonia”, [visto estarem] largamente enraizados no modus vivendi do povo onde, paradoxalmente, o mítico também é real e histórico” (apud SENA, 2012, p. 150). Na história, em foco, a “chuva de flores” que a pequena Obax “contou ter visto cair do céu” (p. 13), assim como a transformação de “uma pequena pedra em forma de elefante” [em] “seu grande amigo, Nafisa, um elefante que havia se perdido da manada e vivia sozinho pelas savanas” (p. 19), são exemplos encantatórios dessa transição do real para o maravilhoso, pois tudo acontece de forma naturalizada, sem causar estranhamento ao leitor. Mesmo diante do desapontamento da protagonista, ao se ver desacreditada pelos companheiros, quando contara ter dado “a volta ao mundo nas costas de um elefante", há uma reversão no final do enredo, pois assiste-se ao belo triunfo do mítico sobre qualquer explicação racional, visto que a pedrinha preciosa (nafisa) que Obax enterrara, “para que ninguém nunca mais zombasse de suas aventuras” (p. 27), transforma-se num majestoso baobá, cuja copa “, repleta de flores coloridas e pássaros nunca vistos por ali” (p. 28), traz finalmente ao enredo a fabulosa chuva de flores que Obax contara ter visto em suas andanças pela planície africana.

Ninguém acreditava no que os olhos viam. Quando a pequena Obax se aproximou da árvore, os pássaros bateram asas numa agitação tão forte que as flores começaram a cair, enchendo os olhos da menina do mais puro brilho (p. 30). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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O desfecho também é belo e significativo, visto reiterar a importância das histórias na formação cultural e humanística de um povo, bem como valorizar a simbologia e os mitos de origem africana.

O desenho da palavra-poesia “Entendeu ou quer que desenhe?”10 Percebeu ou quer que escreva?

Neste item, o principal destaque será A caligrafia de Dona Sofia (Paulinas, 2007), obra em que André Neves não mostra apenas a grandeza de suas imagens, mas, sobretudo, sua sensibilidade com o poético, com palavra-poesia. Antes, porém, vejamos como essa centelha pela poesia já se pressentira em Poesias dão nomes ou nomes dão poesias?, um livro repleto de ludicidade, publicado pela Editora Ave-Maria, em 2001. A ilustração é belíssima. Porém, o que mais chama a atenção é o texto escrito. Poemas brincantes, com trocadilhos, repetições, desafios, e tudo o mais que deve conter a poesia para a infância... Vamos conferir nos três poemas em destaque. VAMOS DAR NOMES AOS BOIS ANTES QUE A BOIADA PASSE VOU DAR NOME AO MEU BOI: BUMBA-MEU-BOI. MAS SE NÃO O ACHAR VOU PROCURAR O BOI-BUMBA, O BOIZINHO, O BOI-DE-MAMÃO, O BOI LINDA FRÔ. E QUEM SABE O BOI VOADOR ME LEVE AONDE FOR. POIS, ACREDITEM, NO MEIO DA BOIADA TEM UM BOI DA CARA PRETA QUE FAZ CARETA. VAMOS DAR NOMES AOS BOIS, QUE A BOIADA VEM VINDO VELOZ. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Esta foi uma das colocações de André Neves (no evento referendado na nota 1), ao falar da relação de complementaridade entre desenho e palavra, momento em que destaca a importância da ilustração na obra literária infantil. A frase seguinte é um trocadilho nosso, criado paralelisticamente (paráfrase ou paródia) para inferir, inversamente, a força da palavra, não obstante o suporte da imagem. 10

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Nesse primeiro, o título já anuncia, com a conhecida máxima – Vamos dar nome aos bois –, os vários bois do folclore e do imaginário popular que emergem alinhados nos vários versos do poema: O Bumba-meu-boi, O Boizinho, O Boi-de-Mamão, o Boi Linda Frô, o Boi Voador e até o Boi da Cara Preta, que rememora a conhecida canção de ninar. Passemos ao segundo. AH, ESSE NOME QUE ME CONSOME DE ONDE VEIO ELI? DE ELIZABETE? MAS ELIZABETE PODE SER BETE! E BIA? SERÁ DE ALGUMA TIA? MAS TIA SÓ TENHO LENICE QUE ALGUNS CHAMAM DE LENI OU NICE. MAS NICE PODE SER CLEONICE.

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É ISSO! CLÉO COM NEIDE, CLEONEIDE MAS QUE NOME ENROLADO, ESTRANHO E ENGRAÇADO: ELIBIACLEONEIDE. É ISSO MESMO! NÃO FAÇA ESSA CARA NEM ME PERGUNTE: ELI O QUÊ?... MEU NOME É ELIBIACLEONEIDE. MAS PODE ME CHAMAR DE ELI, BIA, CLÉO, OU NEIDE! AH, ESSE NOME QUE ME CONSOME

Em Ah, esse nome / que me consome, o eu-poético inicia se interpelando sobre a estranheza de alguns nomes, sobre as insólitas combinações verificadas em alguns nomes próprios. Antes do final do poema, o sujeito da enunciação, após questionar o próprio nome – Elibiacleoneide –, reporta-se, interpelativo e provocativo, ao espanto do interlocutor: “É isso mesmo! / Não faça essa cara / Nem me pergunte: / Eli o quê?...”, para Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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em seguida mostrar-se conformado com os possíveis apelidos que substituiriam a difícil prolação do seu complicado nome: “Mas podem me chamar de / Eli, / Bia, / Cléo, / Ou Neide!” Vejamos ainda o poema PEDRO. PEDRO PEDRO TEM O PEITO DO PÉ PRETO. O PEITO DO PÉ DE PEDRO É PRETO. QUEM DIZ QUE O PÉ DE PEDRO É PRETO TEM O PEITO DO PÉ MAIS PRETO DO QUE O PEITO DO PÉ DE PEDRO. MAS SE PEDRO TEM O PEITO DO PÉ PRETO, QUAL SERÁ O NOME DE QUEM TEM O PEITO DO PÉ MAIS PRETO DO QUE O PEITO PRETO DO PÉ DE PEDRO?

Destaca-se, ainda, o poema Pedro, cuja releitura do emblemático travalíngua denota a intenção do autor em valorizar a oralidade e o ludismo de expressões poéticas populares como o travalíngua, os acalantos, as cantigas de roda, entre outras. Reportamo-nos, agora, a uma obra de André Neves que considero de uma beleza sem igual: A caligrafia de Dona Sofia. Não foi à toa que o escritor mineiro Elias José destacou, no prefácio à obra, e “com uma invejinha positiva: por que não fui eu quem o escreveu?” Quantas “lições”, no bom sentido, o livro nos traz no acervo poético espalhado por todo lugar pela Dona Sofia. Logo na página de apresentação, três ícones da poesia (Fernando Pessoa, Roseana Murray e Fernando Paixão) nos tomam por inteiro. E tantos outros, como Sérgio Caparelli, Elias José, Bartolomeu Campos de Queirós, e os clássicos como Olavo Bilac, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Cruz e Souza, Drummond, Rimbaud, Goethe, entre outros, tomam as páginas da história de uma professora aposentada, cheia de vida e de entusiasmo pala poesia.

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Dona Sofia, a protagonista, em seu desejo de preservar os poemas que conhecera, e que sempre estiveram presentes em sua vida, passa a escrevê-los em todas as partes da casa: nas paredes, nos muros, nos móveis, em todo espaço que coubesse um poema completo ou parte dele. Imagino o trabalho de pesquisa (como se comprova nas 3 páginas de referências no final da obra em foco), mas cheio de prazer e de emoção, para encaixar cada poema, cada excerto no lugarzinho adequado, dialogando com a ambientação criada pela imagem! Eu me deliciei tanto quanto o carteiro, o Seu Ananias, na casa de Dona Sofia. Só experimentando pra ver! Quantas leituras há nesse livro? Os caminhos são infinitos, seguem ao sabor de nossa imaginação, daquilo que temos guardado em nossa memória; enfim, tudo fará muito mais sentido, dependendo, é claro, do que há no horizonte de expectativas de cada leitor.

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Em outras obras de André Neves, tão poéticas e tão expressivas quanto as que elegemos para essa leitura, podemos perceber a dimensão humanística que a verdadeira obra de arte costuma projetar. Nessa perspectiva, destacam-se Malvina (DCL, 2012), Tom (Projeto Editorial, 2012) e Entre nuvens (Brinque-book, 2012), obras mais recentes que também denotam uma renovação/redimensionamento do estilo do autor, em relação à fase inicial, rumo a uma definição estética. Na primeira, registre-se a sutileza de Malvina, “que não era fada, mas tinha nome de feiticeira”; e vivia a inventar coisas surpreendentes, até conseguir amenizar o excessivo estado de preocupação de sua mãe, envolvendo-a numa relação de alegria e afetividade. A trama é farta de inusitadas invenções de Malvina, como “chapéu ventilador para as tardes quentes de verão”, “aparador de sorvete”, “guarda-chuva para não molhar os pés”, “óculos cupido para atrair os olhares dos meninos mais charmosos”, entre outros.

Em meio a todo esse ludismo, o enredo introduz a mãe de Malvina, personagem que, contracenando com a protagonista, deixa entrever pelo menos dois aspectos relevantes e recorrentes no relacionamento familiar: a excessiva preocupação da mãe, o que a torna incapaz de perceber a natureza inquieta e curiosa (experimental) da criança; e a necessidade Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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da filha em estabelecer um canal mais direto com a mãe, de encurtar a distância que habitualmente existe entre crianças e adultos. No decorrer da história, essa aproximação e um consequente aprendizado mútuo vão tomando lugar, até que “... juntas, mãe e filha inventaram muitas alegrias”.

Destaca-se, também, a delicadeza de Tom, cujo foco narrativo situa-se na ótica do irmão dessa personagem, com quem acompanhamos – no texto e na imagem – o perfil de um menino diferente, que vivia “no silêncio a escutar os pássaros que voam para longe, muito longe”. Sobretudo, percebemos a amorosidade no olhar (parado) desse personagem narrador e irmão de Tom, “sentindo o tom que batia em seu peito.” Atente-se, sobretudo, para a combinação extremamente poética entre texto e imagem, aspecto já destacado anteriormente e de caráter predominante na obra de André Neves, e que, nesta, em exame, corrobora o sentido humanístico que ora pontuamos neste estudo. A poeticidade de Tom, “um livro para voar”, além de tocar primorosamente no princípio da humanização, próprio da essência artístico-literária das grandes obras de arte, deixa entrever a questão do autismo, como justificara o autor em seu pronunciamento11. Por fim, observemos Entre nuvens, uma das últimas produções do autor que nos traz... Uma menina. Uma escada. Um sonho. Um sorriso que encanta.12

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Vide nota 1. Na ocasião, o autor revela como fora provocado para criar uma história sobre autismo. Conforme se lê na contracapa do livro. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Trata-se de uma levíssima história que, longe de qualquer ranço de exemplaridade, deixa-nos lições de alegria, mostrando-nos a necessidade que todo ser tem de sonhar, de ser livre, de amar, de ser feliz. A menina protagonista, com sua escada, deliciava-se contemplando a natureza, as nuvens, coisa que muita gente (da história e de nossa realidade) não faz por não ter mais tempo, por conta da atribulada rotina, ou mesmo por pensar que seja uma grande bobagem, como “achavam” “os moradores daquela cidade”, que “não tinham tempo para sonhar” (p. 12). Entre nuvens é mais uma bela narrativa de André Neves que encanta qualquer leitor e, como muitas outras, dissemina, de modo despretensioso, uma maneira lúdica de humanizar o humano.

Considerações finais Finalizamos nossa leitura com a certeza de que nem de perto esgotamos as infinitas possibilidades que o texto literário abriga em sua tessitura. No entanto, acreditamos ter contribuído para alimentar uma prática de leitura crítica que venha colaborar com mediadores de leitura literária infantojuvenil, notadamente sobre a vasta produção do autor pernambucano André Neves, que vem conquistando cada vez mais o reconhecimento do público leitor e o mercado editorial pela grandeza de sua obra. Reiteramos, ainda, o propósito de fomentar uma reflexão sobre o diálogo entre as linguagens literárias e plásticas como elemento de extrema importância no desenvolvimento da sensibilidade estética e a consequente formação humanística dos indivíduos. Em particular, na literatura infantojuvenil, esse diálogo torna-se quase que um fator determinante de sua autonomia e de sua natureza lúdica.

Referências ANDRADE, Carlos Drummond. Nova reunião: 19 livros de poesia. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1987. JAMIR E SILVA, Liliane Maria. Autonomia estética da LIJ e formação de leitores: da imagem à palavra escrita. In: LIMA, Aldo. (Org.) Reinações da literatura infantil e juvenil. Recife: Ed. Universitária/UFPE, 2011. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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LIMA, Aldo. (Org.) Reinações da literatura infantil e juvenil. Recife: Ed. Universitária/UFPE, 2011. LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. NEVES, André. Seca. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2001. (Col. Nordestinamente) NEVES, André. Poesias dão nomes ou nomes dão poesias? São Paulo: Editora Ave-Maria, 2001. (Col. Poetando) NEVES, André. Maria mole. São Paulo: Paulus, 2002. (Col. Arteletras) NEVES, André. Obax. São Paulo: Brinque-Book, 2010. NEVES, André. Lino. São Paulo: Callis, 2011. NEVES, André. A caligrafia de Dona Sofia. São Paulo: Paulinas, 2011. (Acervo básico FNLIJ/2007) NEVES, André. Tom. Porto Alegre: Ed. Projetos, 2012. NEVES, André. Entre nuvens. São Paulo: Brinque-Book, 2012. NEVES, André. Malvina. São Paulo: DCL, 2012. SENA, André de. (Org.) Literaturas fantásticas e afins. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. SERRA, Paulo. O realismo mágico na literatura portuguesa: o dia dos prodígios, de Lídia Jorge e O meu mundo não é deste reino, de João de Melo. Lisboa: Edições Colibri, 1980.

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A natureza humana nos contos infantojuvenis de Clarice Lispector: uma perspectiva alegórica do ser1 The human nature in the children's tales of Clarice Lispector: an alegoric perspective of being Natália Farias Nascimento COSTA2 Liliane Maria JAMIR E SILVA3 Resumo: O presente artigo busca refletir sobre a construção dos personagens nos contos de Clarice Lispector – O mistério do coelho pensante (1999) e A vida íntima de Laura (1999) – , como síntese da natureza humana, a partir de uma perspectiva alegórica, considerando, ainda, a identidade estilística da autora, cujas narrativas buscam representar a inquietude e a contradição do ser. Embasamo-nos, assim, no referencial teórico de Nelly Novaes Coelho (2000), Flávio R. Köthe (1986), Sonia Salomão Khéde (1990), Philippe Ariès (1981), entre outros, buscando mostrar que os contos infantojuvenis de Lispector, muito embora direcionados à infância e à adolescência, recortam com profundidade o ser humano no aspecto comportamental e existencial, levando os leitores a indagações sobre a sua individualidade e suas relações com o mundo em que se se inserem. Palavras-chave: Contos infantojuvenis. Clarice Lispector. Natureza humana. Perspectiva alegórica. Abstract: This article seeks to reflect on the construction of the characters in the short stories of Clarice Lispector – O mistério do coelho pensante (1999) and A vida íntima de Laura(1999) -, as a synthesis of human nature, from an allegorical perspective, still, the stylistic identity of the author, whose narratives seek to represent the restlessness and the contradiction of being. We are based on the theoretical framework of Nelly Novaes Coelho (2000), Flávio R. Köthe (1986), Sonia Solomão Khéde (1990), Philippe Ariès (1981) among others, trying to show that Lispector's although aimed at children and adolescents, deeply cut the human being in the behavioral and existential aspect, leading readers to inquire about their individuality and their relationships with the world in which they are inserted. Keywords: Children's tales. Clarice Lispector. Human nature. Allegorical perspective.

Introdução As produções de Clarice Lispector, em seu viés ideológico, primam pelo questionamento da existência humana, fato que normalmente conduz o leitor a uma leitura subliminar, uma vez que o discurso narrativo, assim como a atmosfera criada, adquire certa dramaticidade configurada na expressão tensa e problematizadora dos personagens. Desse modo, os contos aqui estudados, reunidos na categoria da literatura infantojuvenil, seriam, inicialmente, voltados para o uso doméstico, como afirma Lispector no prefácio da obra O ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Artigo oriundo do trabalho de conclusão de curso – TCC/Letras – desenvolvido em 2017 e concluído em 2018, sob a orientação da professora doutora Liliane Maria Jamir e Silva. 2 Graduanda do Curso de Letras | FAFIRE | pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Iniciação Científica | NUPIC-FAFIRE | E-mail: nataliafncosta@outlook.com 3 Doutora em Literatura e Cultura | UFPB | professora do Curso de Letras | FAFIRE | editora chefe dos periódicos FAFIRE | E-mail: lilianejamir@uol.com.br 1

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mistério do coelho pensante, intenção que extrapola tais limites, visto atenderem, de forma significativa, às expectativas do leitor infantojuvenil (e além dele), dada a ludicidade imprescindível à literariedade do gênero em questão. Assim, diante da hegemonia intimista que caracteriza o estilo de Lispector, não poderíamos deixar de investigar esse marco nas narrativas infantojuvenis em apreço, devido aos traços inquietos e conflitantes dos animais protagonistas que nos parecem simbolizar aspectos e estados da condição humana. O panorama histórico do século XVIII fez com que as obras designadas aos leitores infantojuvenis assumissem o papel hegemonicamente didático-pedagógico-moralizante, pois visavam educar e transmitir valores às crianças numa sociedade que se reorganizava quanto à divisão de tarefas e à moral dos indivíduos. Dessa forma, as obras inseridas na categoria de LIJ, muitas vezes eram adaptações das versões adultas, as quais não atendiam ao período de iniciação literária dos infantes, e serviam apenas como livros didáticos. Durante séculos, esse fora o formato acolhido pelos escritores que se dedicavam às produções infantis. No entanto, no Brasil, a partir de 1821, esse modelo ocidental foi rompido por Monteiro Lobato, que inovou o mercado dos livros infantis, trazendo novo tratamento da linguagem bem como uma nova caracterização dos personagens, refletindo costumes, identidades e comportamentos abrasileirados. O presente estudo busca evidenciar o caráter alegórico no corpus analítico em destaque, com ênfase no processo alegórico das narrativas, cuja composição edificada, mediante personificação de animais, detentores de condutas relativas ao ser humano, não se restringe à natureza tradicional das fábulas, uma vez que as histórias se abstêm de uma moral explícita e, muito pelo contrário, leva os leitores a dialogarem com o enredo e inquerirem uma possível conclusão. Este trabalho tem respaldo teórico em Nelly Novaes Coelho (2000), notadamente em Literatura infantil: teoria, análise, didática; Flávio R. Köthe (1986), evidenciando uma proposta sobre alegoria, visto que a presente abordagem dos contos de Clarice Lispector recai, ainda que sem exclusividade, sobre a personagem e sua dimensão alegórica, respectivamente; Sônia Salomão Khéde (1990), no que tange ao protagonista e sua simbologia no contexto ficcional e social, entre outros estudiosos que subsidiaram esta pesquisa. O artigo se propõe a apresentar, inicialmente, e de forma breve, o percurso histórico da LIJ, seu marco inicial enquanto literatura didática e sua consolidação em solo brasileiro; na sequência, procura defender a importância e a pertinência das obras da autora para o público infantil e juvenil, em face do teor alegórico dos contos e, por fim, tecer uma breve análise dos contos em epígrafe, com ênfase na dimensão simbólica de seus personagens.

Percurso histórico: o didatismo e a LIJ no Brasil A literatura infantojuvenil emerge em meados do século XVIII, a partir de uma política francesa acentuada no reinado de Luis XIV, numa sociedade que reorganizava o sistema educacional norteado pelo novo sistema burguês em ascensão. Nesse contexto se projetaram as obras direcionadas ao público infantil, assegurando-lhes, prioritariamente, um caráter didático-pedagógico. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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Considerando este novo comportamento social, surgiram as primeiras obras: as Fábulas, de La Fontaine (1668), As aventuras de Telêmaco, de Fenelon (1717), e Os contos de mamãe Gansa, de Charles Perrault (1697), entre meados do século XVII e início do XVIII. Muitas delas foram adaptadas a fim de que atendessem ao novo público em foco, como Rosinson Crusoé, de Daniel Defoe (1719) e As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift (1726), entre outros. Conforme alguns estudiosos, duas vertentes procuram esclarecer o nascedouro da LIJ: a primeira enfatiza seu nascimento no século XVIII, atendendo demandas do novo projeto educacional, a exemplo do que justificamos acima; a segunda, ao rastrear a sua origem num passado mais remoto, defende que o ponto em comum a todo processo investigativo se sustenta na oralidade, visto que foi a partir dela que as civilizações se constituíram, ideia refutada por outros, como Brenman (2005, p. 128), que defendem que o surgimento da literatura infantil fora, de fato, no século supracitado, visto que, se atrelada à tradição oral, esse marco estaria alinhado à própria história da civilização humana, que remonta a períodos imemoriais. Por outro lado, nortear a origem da LIJ a partir da primeira vertente não invalida o reconhecimento da importância da tradição oral preservada em lendas e mitos consolidados em várias obras destinadas à infância, traços que ainda hoje se mantêm redimensionados por autores da Literatura Brasileira, como Manuel Bandeira, Ascenso Ferreira, Elias José, entre outros. O gênero chegou ao território brasileiro via metrópole e, por isso, mantendo os moldes e a influência europeia, cujas edições iniciais se efetivaram a partir do século XIX, com a implantação da Impressa Régia4. Todo esse contorno levou a LIJ a ser considerada como literatura menor por estar associada a seu destinatário, a criança, concebido seu status de inferiorização e dependência do adulto, fato que consequentemente evitava certo temas universais que essa literatura pudesse abordar, comprometendo, via de regra, a sua literariedade. No Brasil, os valores tradicionais apregoados pela sociedade foram decisivos no que tange ao papel da criança e da literatura na escola, circunscrevendo, assim, o período no qual o infante foi considerado um adulto em miniatura. Esse pensamento, por sua vez, é questionado por Coelho (2000), pois a educação visava tanto a disciplinar, quanto a punir, a fim de que as crianças assumissem um comportamento precocemente adulto, afastando-as do universo infantil regado a mistérios e descobertas. Antes mesmo de Monteiro Lobato, as aparições literárias infantis já aconteciam, marcadas, muitas delas, por aspectos representativos do cenário brasileiro. Aos escritores incumbiram a tarefa de abrasileirar as obras que movimentavam o comércio de livros, a fim de atingir o público-alvo com recortes que conferissem seu entendimento e que o apresentassem ao mundo circundante.

Os pioneiros da literatura infantil brasileira A princípio, as traduções dos livros correntes no Brasil foram alvo de críticas devido à linguagem e até mesmo às ilustrações. Dever-se-ia considerar, portanto, que os leitores ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 4

Primeira editora brasileira, fundada em 1808, no Rio de Janeiro, filial de editora existente em Lisboa. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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tivessem acesso a um formato que contemplasse seu estágio infante, mas sem prejuízo do potencial estético que incitasse a sua imaginação. Dessa forma, após a tradução dos grandes clássicos da LIJ universal, a franquia de histórias brasileiras surge para dar uma nova roupagem ao que seria a literatura voltada para as crianças (OLIVEIRA, 2008). Em 1894, Figueiredo Pimentel publicou a obra Os contos da carochinha, marco para o campo literário com tendência ao aspecto popular ao invés do metodológico educacional. Alexina de Magalhães Pinto, em 1909, lançou o livro Os nossos brinquedos, cujo enredo buscava valorizar temas populares direcionados às crianças. Segundo Maria Alexandre de Oliveira, “a importância dessa escritora, dentre os precursores da LIJ no Brasil, está nesse espírito que valoriza a terra e sua história, construída na memória daqueles que efetivamente formaram o povo brasileiro” (2008, p. 62), visto que essa autora trazia uma espécie de “sopro nacionalista”, ao conferir, à sua obra, temáticas provindas de experiências das crianças. No entanto, é a partir da aparição de Monteiro Lobato, em 1921, que se percebe maior remodelagem literária acerca desse novo gênero. A Semana da arte moderna em 1922 foi o ponto de encontro das várias tendências que se formavam em São Paulo e no Rio de Janeiro, desde a I Guerra, consolidando, assim, o surgimento de grupos, publicação de livros, revistas e manifestos, o que Bosi (2015) chamou de “viva realidade cultural”, pois a literatura brasileira daria um salto nas produções e passaria a representar o Brasil enquanto país independente. Com isso, em matéria de literatura, Monteiro Lobato abriu os caminhos que começavam a se estabelecer no âmbito da literatura adulta, com o Modernismo, ascendendo as produções literárias infantis.

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O nariz arrebitado lobatiano Tido como marco, agora decisivo, Lobato ofereceu às crianças um novo perfil literário infantojuvenil. Ao fundir o imaginário com o cotidiano real, o autor traz à tona uma efabulação construída a partir do coloquial e do despojado, com tons humorísticos, consolidando nova característica à LIJ no Brasil. No plano da prosa narrativa, o autor inicia a obra Narizinho arrebitado, em 1921. A proposta era produzir obras que estimulassem o imaginário infantil, conferindo leveza e coloquialidade às produções, cuja linguagem acessível ao entendimento das crianças, pudessem expor a realidade, mas sem prejuízo da qualidade estética. Em função desse novo perfil, e ao acreditar que a mudança ocorre de baixo para cima, o estilo lúdico de Lobato abre caminho para as produções que o sucederão, concedendo, à criança, liberdade para se construir enquanto indivíduo. O painel literário do século XX buscava uma nova representatividade do Brasil, libertando-se, portanto, dos metros e do estilo europeu de fazer literatura. Frente a isso, o movimento modernista não só questionava os valores sociais, mas também a identidade cultural e linguística de um povo, que se revela ante um coloquialismo vocabular, por exemplo, e de modo diversificado, o que Lobato já questionava e continuou questionando, após a abertura da Semana5, em As reinações de Narizinho (1931). ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

A Semana de Arte Moderna representou uma verdadeira renovação de linguagem, na busca de experimentação, na liberdade criadora da ruptura com o passado, e até corporal, pois a arte passou então da vanguarda para o modernismo. 5

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A natureza humana nos contos infantojuvenis de Clarice Linspector: uma perspectiva alegórica do ser

E assim, a arte até então vista como “arte menor” vai ganhando terreno e se consolidando enquanto arte literária. Coelho defende que a autenticidade literária se configura tanto pelos questionamentos do mundo, que estimulam o leitor jovem ou adulto a transformá-lo, quanto pela representação que ela carrega, “procurando mostrar (ou denunciar) os caminhos ou os comportamentos a serem assumidos (ou evitados) para a realização de uma vida mais plena e mais justa” (2000, p. 150). A visão analítica da autora corrobora o pensamento do escritor: o espírito inquietante e provocador conduz Lobato a invocar diálogos sobre as formas cultas e populares na escrita, como se vê no excerto a seguir6: – Os gramáticos querem que seja mostrengo - coisa de mostrar: mas o povo acha melhor monstrengo - coisa monstruosa, e vai mudando. Por mais que os gramáticos insistam na forma “mostrengo”, o povo diz “monstrengo”. – E quem vai ganhar essa corrida, vovó? – Está claro que o povo, meu filho [...] (LOBATO, 1994, apud OLIVEIRA, 2008, p. 9).

Verifica-se, então, que o questionamento é o que move o valor literário, e não as diretrizes que ele carrega (infantil ou adulta); por isso, a obra que busca estimular a consciência crítica do leitor e que o leva a desenvolver seu próprio comportamento perante o mundo é aquela que irá inseri-lo como sujeito ativo no processo de transformação da sociedade. A partir de Lobato, muitos outros autores, filiados à concepção literária emergente, passam a circular no cenário literário brasileiro, cujas contribuições, com qualidade e autonomia estética7, vão se consolidar nos anos 70 e 80 do século XX, momento considerado o auge da LIJ brasileira. Paralelamente a essa produção, estudiosos e mediadores de leitura passam a investir em programas e publicações de ordem teórico-metodológica, visando garantir autonomia e credibilidade ao gênero, discutindo/refletindo sobre a sua natureza, sua composição estética (ideologia e estrutura) entre outros aspectos. Nessa perspectiva, autores como Regina Zilberman, Maria Lajolo, Nelly Novaes Coelho, Vera Teixeira Aguiar, Eliane Yunes, Maria Alexandre de Oliveira, entre outros, vêm trazendo excelentes contribuições, orientando e auxiliando docentes e mediadores, em geral, a terem uma percepção mais acurada sobre a instância temática e os componentes estruturais das obras, além de outros que têm difundido estudos direcionados à fortuna crítica dos autores cuja produção está direcionada à infância e à adolescência.

Clarice Lispector para crianças? O itinerário de Clarice Lispector, na produção literária contemporânea, mune-se de vasta complexidade e abstração, conduzindo, via de regra, o leitor à subjetividade, configurando-se como uma literatura de cunho existencial, segundo a percepção de Bosi (2015). Inserida na geração de 45, em suas narrativas é notável a exacerbação do mundo interior, revelando um contato inquieto com o próprio eu, uma esfera psicológica que se repete em todas as suas obras. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 6 7

Diálogo estabelecido entre Dona Benta e Pedrinho, na obra Reinações de Narizinho. Sobre autonomia estética da Literatura infantojuvenil, ver ensaio de JAMIR E SILVA, apud LIMA, Aldo. (Org.), 2011, p. 43-56.

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No entanto, pouco se discute sobre seus contos infantojuvenis, que, muito embora tragam uma linguagem mais compreensiva, à primeira leitura revelam um teor metafórico sobre o indivíduo e seus relacionamentos no contexto em que se insere, o que possibilita que sua leitura e fruição possa ser extensiva a leitores de qualquer faixa etária. Conhecida, principalmente, pelas obras Perto do coração selvagem (1944) e A hora da estrela (1977), Lispector também se dedicou a produções que buscaram atender ao público infantojuvenil. Assim, as obras aqui em análise visam compreender a natureza humana em face de uma literatura destinada às crianças, prevalecendo um estudo sobre as personagens, sob o viés alegórico. Como se percebe, em O mistério do coelho pensante e em A vida íntima de Laura, a proposta da instância autoral não se pretende tão dissimulada a ponto de obliterar a sua intencionalidade, a começar pelos títulos das obras, visto que, em ambas, respectivamente, os personagens assumem conotações humanas, como as de pensar e de ter uma intimidade.

A dimensão simbólica dos personagens nos contos infantis Nesse ínterim, as questões teóricas acerca dos componentes narrativos, segundo Khéde (1990), revelam potencialidades em que se articulam o aspecto ideológico com o formal-estético na construção de um enredo, colocando-se, assim, na perspectiva de que o externo se faz interno, cuja síntese se revela através de análise comportamental dos personagens, entre outros elementos narrativos. Frente a essa visão, postula que,

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Por projeto estético entendemos as relações internas do texto: foco narrativo, personagens, tempo, espaço, jogos de palavras; por projeto ideológico entendemos a relação histórica que pressupõe a chamada visão de mundo do autor. O binômio estético-ideológico não se dissocia, a não ser operacionalmente. Toda linguagem literária pressupõe esse duplo inseparável e inerente à historicidade do fenômeno artístico (ibid, 1990, p. 7).

Dessa forma, os personagens infantojuvenis respondem a uma extensão do caráter humano e, na contemporaneidade, identificam-se desprendidos do teor moralizante de outrora. Nos contos selecionados para esse estudo, os protagonistas (o coelho Joãozinho e a galinha Laura) apresentam questionamentos, inquietações e complexidades característicos do estilo lispectoriano, os quais se revestem de aspectos subjetivos e existenciais inerentes à natureza contraditória e complexa do ser humano. Em matéria literária, os personagens representam a extensão da realidade humana a partir de vários comportamentos e condutas, respondendo, portanto, à ordem da verossimilhança, em que tudo se torna crível desde que coerentemente constituído dentro das possibilidades internas/intrínsecas da criação artística. Considerados em sua dimensão simbólica, os personagens passam a ser o cerne da ação narrativa, condicionando o leitor a uma identificação de valores e atitudes representados pelo persona8, os quais são assimilados, à medida que se lê, criando tensões e/ ou sublimando ansiedades, num verdadeiro processo catártico. Na efabulação narrativa, ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Oriundo do latim, persona é o nome com que os romanos designavam as máscaras usadas pelos atores gregos em suas representações teatrais. 8

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notoriamente nos contos em estudo, percebe-se tal inquietude/perplexidade, supondo-se que o leitor queira descobrir como o coelho de Lispector consegue fugir da casinhola que sempre estava trancada (em O mistério do coelho pensante); ou, ainda, como tanta inteligência poderia fazer parte de uma simples galinha (em A vida íntima de Laura). Tendo em vista o universo ficcional das histórias em destaque, cabe ainda breve investigação acerca de linhas e tendências da literatura infantojuvenil, a fim de compreender as formas de estruturação literária. Dentre as sete categorias assinaladas por Nelly Novaes Coelho (2000)9, é o realismo mágico a que mais se aproxima do corpus desta pesquisa, frente ao que afirma a estudiosa sobre o gênero em questão: Obras em que as fronteiras entre a realidade e o imaginário se diluem, fundindo-se as diferentes áreas para dar lugar a uma terceira realidade, em que as possibilidades de vivências são infinitas e imprevisíveis. Situações centradas no cotidiano comum, em que irrompe algo “estranho”, que é visto ou vivido com a maior naturalidade pelas personagens (2000, p. 158).

Nessa ótica, os protagonistas dos contos em análise atuam de forma peculiar, pois sinalizam condutas que, via de regra, são próprias do ser humano. Nessa ordem, pois, encontramos os termos “natureza”, utilizado por Lispector ao fazer menção às características de Joãozinho, “o coelho pensante”, e “vida íntima”, no que se refere à Laura, a galinha mais simpática, apesar de ter “o pescoço mais feio que já [se viu] no mundo”, apontando ao leitor um realismo lúdico/maravilhoso, que tudo torna possível e crível na efabulação narrativa, até mesmo certos atributos e ações conferidos aos personagens em questão, cujos sentidos tomam fôlego através da inserção da instância leitora no processo simbólico/metafórico da obra. Sobre tal peculiaridade desse gênero ficcional, Coelho assegura tratar-se de Narrativa cuja efabulação atrai por si mesma, isto é, pelo referencial, pela história que transmite ao leitor, mas cuja significação essencial só é apreendida quando o nível metafórico de sua linguagem narrativa for percebido ou decodificado pelo leitor (2000, p. 159).

Assim, o universo ideológico das obras se reflete nos personagens de maneira peculiar e instigante, uma vez que passam a representar uma síntese de possibilidades humanas. Refletindo, portanto, a realidade, e inquiridos como elemento de efabulação, são nos personagens que se concentram os interesses do leitor, cuja potencialidade simbólica, de âmbito universal, poderá ser apreendida de acordo com as circunstâncias e a particularidade de cada receptor em seu contexto. Posto isso, Khéde (1990, p. 11) preconiza o lugar de destaque das personagens nas histórias infantojuvenis, ideia que remonta tanto à perspectiva aristotélica quanto à dos formalistas russos, no que dizem respeito à sua “identificação [...] como a pessoa humana”, ainda que sejam animais ou seres inanimados antropomorfizados. Nesse sentido, urge também caminhar um pouco na vereda da expressão alegórica, cujo efeito, mesmo quando ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 9

Linhas ou tendências da literatura infantil/juvenil contemporânea (p. 155-156).

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venha a causar estranhamento ao leitor, por outro lado, tende a constituir um potencial ad infinitum de significados, a depender do horizonte de expectativa de cada receptor em seu momento circunstanciado de leitura.

O caráter humano nas histórias infantojuvenis: uma leitura alegórica

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É de extrema importância atentarmos para a formação da estrutura do gênero narrativo, haja vista os subgêneros assumirem função variada, a depender da intencionalidade do autor. Assim, quando se fala em conto de teor infantojuvenil, com animais compondo o quadro de personagens da história, é comum se pensar na fábula como subgênero em seu formato específico, tendo em vista a simbologia do enredo e o papel alusivo dos personagens/animais. No que se refere à categoria conto, em geral, tem-se habitualmente um relato de forma breve, com poucos personagens, de assunto único e um enredo constituído em tempo e espaço delimitados (MOISÉS, 1983). A ação dramática se desenvolve mediante uma lógica interna, cuja coerência deverá conceder credibilidade ao leitor, mesmo que os fatos narrados não sejam tão reais quanto se mostrem na realidade concreta. Retomamos, também, o princípio da verossimilhança aristotélica, mencionado anteriormente, cujo conceito indistintamente se aplica a quaisquer processos de caráter ficcional. Nesse sentido, Lígia Militz da Costa (1992), quando esclarece sobre arte literária e verossimilhança, a partir do capítulo XXV da Poética de Aristóteles, sentencia que “ o impossível se justifica pelos efeitos da representação” (ibid, p. 41); e ainda, que “o campo da mimese não se circunscreve ao da verdade, mas ao do possível” (ibid, p. 42). Nos contos em análise, esse princípio se confirma pelo fato de que, insuflado pela imaginação do leitor, cabe a Joãozinho, o coelho pensante, conduzir o leitor a uma atmosfera surreal, em face de suas inúmeras fugas de uma gaiola sempre trancada pelo lado de fora. Por outro lado, e com base nas categorias de Yves Stalloni (2001, p. 120, 121), sobre aspectos que constituem o conto literário10, o eixo narrativo pode denotar um enredo “voltado à direção da fábula ou ao onirismo, que renuncia o real e o fator verossimilhante”, cujos “personagens pertencem ao domínio simbólico”. Em ambas as narrativas de Lispector, percebe-se a dimensão simbólica dos personagens. Com seus mistérios e indagações, tanto o coelho Joãozinho quanto a galinha Laura exibem o que há de humano, bem ao jeito de Lispector, um humano questionador, inquieto e um tanto imprevisível. Nesse sentido, não obstante o protagonismo dos animais e o universo simbólico, os contos transpõem o protótipo da fábula, visto que a abertura do texto tanto refuta uma moral explícita quanto suscita a cumplicidade do leitor, incitado a perquirir possíveis caminhos/significados e a compactuar inquietudes e enigmas de seus arquétipos. Desse modo, quando se reporta a Laura, a galinha quase incomum, o narrador a considera burra, porém não tão burra ao ponto de comer um pedaço de vidro, atitude que também parece denotar um dos hábitos humanos: o comer por pura mania, mas não aquilo que o prejudica.

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O autor traça alguns comentários acerca da estrutura do gênero conto (2001, p. 120-121). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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A riqueza dessas obras de Lispector pode ser avaliada em várias outras dimensões temáticas e estruturais, o que fugiria, em parte, a nossa proposta; no entanto, alguns elementos devem ser considerados, visto que constituem possibilidades a serem trabalhadas pelos mediadores de leitura. No caso de A vida íntima de Laura, o enredo apresenta motivos temáticos como a vaidade, a esperteza, a diversidade, a identidade, entre outros que se revelam na ação dos personagens. Por exemplo: Laura se considera vaidosa e, apesar não raro se perceber na iminência de virar galinha ao molho pardo, ela também se mostra esperta, visto se garantir de que “ninguém tem a intenção de matá-la porque é a galinha que bota mais ovos em todo o galinheiro e mesmo nos da vizinhança.” Já o galo Luís, “passeia o dia todo no terreiro entre as galinhas, de peito inchado de vaidade. [...] pensa que, sabendo cantar de madrugada, manda na Lua e no Sol” (s/p. ). Todos os animais da história mantêm uma boa convivência. As outras galinhas são todas parecidas com ela, “meio ruiva e meio marrom”, apenas uma delas era diferente, “uma carijó”, mas que não era excluída “por ser de outra raça”. Nesse quadro, sem apelar para o tom moralizante, o discurso narrativo, leve e descontraído, declara que “Elas [as galinhas] até parecem saber que para Deus não existem essas bobagens de raça melhor ou pior” (s/p. ). Na estrutura discursiva, destacam-se procedimentos composicionais que também tornam a história fluente, animada e cativante. O narrador descreve ações e ao mesmo tempo toma a palavra em discurso direto – “Laura vive apressadinha. Por que tanta pressa, oh Laura? ” –, inserindo, assim, pequenas doses de discurso indireto livre, recurso que, além de dar dinamicidade ao enredo, alimenta a coloquialidade e a dialogicidade em algumas passagens, como se percebe no citado trecho e em outros, como o seguinte, em que Laura se compraz de ter chocado o seu ovo até nascer o pintinho: “Tudo estava tão bom que nem sei dizer.” Outra característica discursiva que torna o texto estimulante e convidativo é a posição compartilhada e modesta do narrador, que se reconhece incompetente para responder as próprias perguntas: “Eu só queria saber do seguinte: há quanto tempo existe galinha na Terra? Você que me responda porque eu não sei.” Esse recurso também suscita a cumplicidade do leitor, que se vê identificado e interpelado a descobrir mistérios e enigmas, ou a reconhecer certas contradições do ser humano, como se observa na seguinte fala do narrador: “É engraçado gostar de galinha viva mas ao mesmo tempo também gostar de comer galinha ao molho pardo. É que as pessoas são uma gente meio esquisita.” Em O mistério do coelho pensante, a questão da fuga de Joãozinho da gaiola trancada por fora segue insolúvel até o final da trama, e o narrador implícito, de modo distinto, desafia o personagem Paulinho a franzir o nariz, como fazem os coelhos, para solucionar o enigma. No final dessa história, o narrador também deixa a questão em aberto, transferindo para o interlocutor a possibilidade de desvendar o mistério: “É capaz de você descobrir a solução, porque menino e menina entendem mais de coelho do que pai e mãe. ” Resta-nos ainda considerar a leitura alegórica, compreendendo as narrativas como artefatos construídos a partir de discursos/imagens a serem projetados e interpretados em conformidade com o crivo exegético de cada leitor. De acordo com Flávio Köthe, a alegoria é uma figura de linguagem caracterizada pela metáfora continuada, que busca dizer Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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o outro, ou seja, “alguma outra coisa além dele próprio e não aquilo que à primeira vista parece” (1986, p. 7). Assim, a alegoria verbal, como processo retórico ou linguístico de ornamentação metafórica, permite a substituição de palavras de sentido próprio pelas de sentido figurado, procedimento composicional que se identifica nos contos em análise. Todas essas questões sobre a literariedade da obra literária podem parecer, à primeira visa, um entrave para que se compreenda que a qualidade estética de uma obra reside justamente nessa capacidade lúdica de jogar com a fantasia, de ser permeada de recursos que a tornem multissignificante e, por conseguinte, compartilhada em vários sentidos da realidade. Esclarecendo que não há dicotomia entre ficção e realidade num constructo artístico alegórico, Köthe postula: A fantasia é bem mais restrita, bem mais “pé no chão” do que se costuma imaginar. Entre o que ela nos diz “em relação” à realidade (sendo de fato, porém, parte sinedóquica da realidade) e a “própria” realidade (que, jamais, para nós, é em si), há uma proximidade e uma similitude muito moiores com o processo de significação alegórica do que parece à primeira vista (1986, p. 14).

Frente a esses argumentos, cabe justificar que as teorias aqui elencadas, com vistas à abordagem dos contos em pauta, apontam a abertura de possíveis caminhos que visem, enquanto proposta, desvendar que a condição do homem pode ser entendida ou, do ponto de vista mais íntimo, indagada/compartilhada através da LIJ.

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Joãozinho: o coelho que farejava ideias Conversar sobre coelho é muito bom. Aliás, esse “mistério” é mais uma conversa íntima do que uma história.11

Sob um pedido-ordem do filho Paulo, Clarice Lispector escreveu O mistério do coelho pensante para uso doméstico, história que conta sobre um coelho chamado Joãozinho, cuja natureza era cheirar ideias. À medida que se lê, a narrativa progride (com ilustrações de Mariana Massarani que acompanham cada passo da história), incitando o leitor a descobrir o enigma daquele coelhinho misterioso. A narrativa é conduzida por um narrador supostamente identificado com a própria autora, principalmente se a instância leitora se ativer ao prefácio da obra, por ela subscrita com suas iniciais (C. L.). O personagem principal não fala, apenas “pensava algumas ideias com o nariz dele”, coisa que “parece até ideia de menino” (1999). Já no título do conto, e por outro lado no fato de se pôr em dúvida a capacidade de pensamento do coelho, não obstante a leveza do discurso, logo se percebe os traços inconfundíveis do estilo clariciano. Passo a passo, a história sutilmente vai fluindo, enfatizando que a “natureza de coelho” é ”cheirar ideias”, procurando soluções no limite de suas circunstâncias, fato que vai alinhando a esperteza do coelho à curiosidade da criança, um motivo narrativo que naturalmente provocará o interesse do leitor segurando-o até o final do enredo. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 11

Excerto transcrito da página inicial do conto O coelho pensante (LISPECTOR, 1999a).

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No decurso, o narrador questiona o leitor, reiteradas vezes, sobre “natureza de coelho”. Numa das afirmações, ele enfatiza que A natureza dele dá mais filhinhos do que a natureza das pessoas. É por isso que ele é meio bobo para pensar, mas não é nada bobo quando se trata de ter filhinhos. Enquanto um pai e uma mãe têm devagar um só filho-gente, o coelho vai tendo muitos, assim, como quem nada quer (ibid, s/p.).

Interessante notar que, na mesma proporção em que se acentua a natureza de coelho como diferente da natureza de menino, o discurso vai deixando, paralelamente, ou paradoxalmente, a ideia de que o protagonista também representa a natureza do ser criança (ou do ser humano), cujas similitudes vão se firmando, também, em traços delineados nas ilustrações. Por outro lado, Joãozinho, enquanto conduta, difere dos demais coelhos, uma vez que ele pensa, e não é conformado com a ideia de que as pessoas não creiam nessa possibilidade. Assim, em face da ludicidade que permeia toda história, todo o conjunto de valores e verdades humanas emergem de forma sugestiva. Nesse sentido, o estilo literário de Lispector levemente tanto imprime a marca da subjetividade, quanto refuta qualquer possibilidade da eloquência pedagógica e moralizante conferida às primeiras literaturas infantis. Já nas cinco primeiras páginas do conto em foco, em que se conhece a natureza do coelho, a efabulação apresenta circunstâncias que levam o leitor à situação problemática: o coelho fugiria da casinhola todas as vezes que não houvesse comida na mesma. Em termos teóricos, entende-se, por efabulação, a disposição dos fatos que constituem o momento de tensão da narrativa, o que também denota o personagem como sujeito ativo, fazendo com o que o leitor se mantenha atento. A respeito desse elemento, Coelho (2000) preconiza que “A efabulação oscila entre a tendência de se iniciar de imediato com o motivo central e a de começar pelas circunstâncias que preparam o espírito do leitor para o desenvolvimento da situação problemática” (COELHO, 2000, p. 132). No decorrer da história, o narrador deixa entrever uma possível frustração de Paulo, ao constatar que, devido à natureza animal do coelho, sua esperteza só parecia eficaz diante de certas situações, visto que Joãozinho fugia da casinhola sempre que faltasse comida. Contudo, nessa fuga inicial, urge o questionamento de como ele conseguira fazê-lo, tendo em vista as grades estreitas, o tampo de ferro e o protótipo do coelho, que era gordo. Em termos estilísticos, o personagem protagonista também poderia ser identificado como personagem-caráter, uma vez que enseja complexidade, por representar, segundo Forster (apud COELHO, 2000), comportamentos ou atitudes morais, como também certa imprevisibilidade, cuja ambiguidade, não raro, exige do leitor maturidade e capacidade de reflexão em face desse artifício presente no conto em análise. Até o desfecho da história, não se consegue descobrir como e por qual motivo o coelho continuaria fugindo. Inclusive, o narrador cogita uma fuga amorosa, pois Joãozinho tinha uma namorada, e ela, com malandragem, costumava dizer que o esqueceria caso ele não aparecesse. Dessa atitude, associada à esperteza do animal, identifica-se, enquanto malandragem, outra face do personagem da LIJ já recorrente no modernismo literário adulto, a exemplo dos macunaímas e suas ações anti-heroicas que passam a povoar as narrativas. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Não há, portanto, um desfecho previsível, visto que fica a cargo do leitor dar continuidade às buscas para a revelação do mistério, talvez franzindo o nariz, como bem sugere o narrador: “Se você quiser experimentar o mistério, Paulinho, experimente você mesmo franzir o nariz para ver se dá certo. É capaz de você descobrir a solução, porque menino e menina entendem mais de coelho do que pai e mãe” (s/p.). No mais, a leitura alegórica do coelho pensante buscou corroborar a proposta desta pesquisa: a natureza humana nos contos infantojuvenis. Nessa perspectiva, cumpriu-nos entendê-la na relação texto-contexto, tendo em vista que é nesse âmbito que a leitura se perfaz como um processo dialógico. Ao se colocar em questão que coelho não pensa, comportando-se de maneira complexa ao entendimento dos seus donos, caracterizando-se, simbolicamente, como um ser humano frente à realização de seus problemas e anseios, constatamos que, no conto em pauta, não se observa o caráter fabuloso e exemplar da fábula, que via de regra compreende uma moral explícita. Muito pelo contrário, revela-se como narrativa indagadora, que constrói um contexto através da textualidade alegórica, como também com as ilustrações, que, noutro viés, complementam ou desdobram os sentidos do texto-palavra.

Laura: uma galinha quase incomum e sua vida íntima Vida íntima quer dizer que a gente não deve contar a todo mundo o que se passa na casa da gente. São coisas que não se dizem a qualquer pessoa.12

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Meio marrom, meio ruiva, Laura, a galinha burra de Clarice Lispector, tem o pescoço feio, mas é bonita por dentro. A narrativa conta a história de uma galinha peculiar que difere das outras do galinheiro, sendo também casada com o galo Luís. Percebe-se, conforme a leitura, que os adjetivos conferidos à Laura a valorizam em sua natureza animalesca, uma vez que ela é a galinha que mais põe ovos no quintal de Dona Luísa e da vizinhança, mas, por outro lado, no contexto fabular, Laura também sugere alguns aspectos atinentes à condição humana. Quando se analisa a figura da personagem, a construção identitária de Laura é bastante evidente, visto que, além de ser a mais produtiva, é casada com o galo estridente; tida como burra, tem medo das pessoas, vive sempre apressada e é mãe. Por aí se vê que os animais, não raro, se apresentam antropomorfizados, comportando-se como seres humanos, como é mostrado do ponto de vista do narrador: Um dia ela sentiu que ia ser mãe de novo. Cacarejou depressa a novidade para Luís. Luís parecia que ia estourar de tanta vaidade de ser de novo pai. Bem sei que todo ovo nasce. Mas aquele ia ser uma beleza. Era um ovo todo especial (LISPECTOR, 1999, s/p.).

Evidentemente, para cada leitor, os personagens se caracterizam de forma peculiar, correspondendo, por sua vez, à multiplicidade de valores e perfis existentes numa sociedade, pois, como bem preconiza Khéde (1990), ativos na construção da narrativa, os ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 12

Excerto transcrito da página inicial do conto A vida íntima de Laura (LISPECTOR, 1999b).

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personagens denunciam quadros sociais e, por essa razão, têm sua dimensão simbólica atribuída à diversidade social e aos vários status dos indivíduos. No excerto destacado anteriormente, Laura descobre que está grávida e, conduzida pelo instinto materno, cria uma responsabilidade sobre si: cuidar de uma vida que está se formando dentro dela. Por isso, nessa ótica, a estudiosa postula que “A importância do personagem está no mosaico de ações que ele se defronta e que representam o questionamento do indivíduo consigo mesmo e com o universo que o cerca” (ibid, p. 71). Diante desse enfoque, depreende-se que a representação do viés ideológico, notadamente na LIJ, vem se modificando, afastando-se do painel estritamente pedagógico das primeiras produções, abarcando temas até então pouco abordados, como a maternidade, o racismo, o preconceito, entre outros. Com isso, graças ao ludismo da linguagem, ao estímulo à imaginação e à criatividade dos leitores iniciantes (e iniciados), a literatura possibilitará sempre uma representação simbólica da realidade, cujo potencial caberá ao leitor descortinar, refletir, transformar, reconhecer e/ou recriar. Na narrativa em foco, o momento de clímax e tensão não acontece nas primeiras páginas, como no outro conto em estudo, visto que tal estado de desenvolvimento do personagem desvela-se de modo gradativo, com a sucessão dos fatos. Isto posto, Laura, até mesmo antes de descobrir sobre a sua gestação, faz com que o leitor reflita sobre aspectos atinentes à estética e às diferenças, quando, junto a tantas outras galinhas, não desmerece a carijó por ser de raça distinta, como nos revela o narrador: As outras são muito parecidas com ela: também meio ruiva e meio marrom. Só uma galinha é diferente delas: uma carijó toda de enfeites preto e branco. Mas elas não desprezam a carijó por ser de outra raça. Elas até parecem saber que para Deus não existem essas bobagens de raça melhor ou pior (ibid, s.p.).

Tanto as imagens ilustrativas quanto a descrição verbal de Laura tecem a figura de uma galinha quase incomum, cujo pescoço feio e despenado a torna diferente das demais galinhas. Contudo, ao enfatizar que vale mais ser bonito por dentro, o narrador oportunamente põe em evidência mais um aspecto grandioso do caráter humano. Seguindo a vereda analítica do conto, vislumbramos, aqui, uma possível intertextualidade com uma outra personagem de Lispector, no romance A hora da estrela (1977). No conto em foco, o discurso narrativo enfatiza que Laura não pensa, ainda que acredite que sim, devido aos seus “pensamentozinhos” e “sentimentozinhos”. Aqui os termos no diminutivo evidenciam uma possível indiferença (ou desprezo) no que concerne ao mundo interior da personagem, pondo-a, supostamente, em posição inferior. Contudo, não obstante o discurso contrapor a perspectiva de que ela (a galinha) seja também valorizada pelo fato de render benefícios a sua proprietária (porque põe muitos ovos), o leitor poderia estabelecer uma relação com Macabéa13, cuja condição subserviente e ingênua, delineada no contexto do mencionado romance de Lispector, leva a personagem a pensar que era gente. Considerando-se todo o aparato composicional da obra, vemos que ele permite ao leitor transitar naturalmente entre as esferas do real e do imaginário, cuja cumplicidade o ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 13

Personagem de A hora da estrela, romance de Clarice Lispector, publicado em 1977.

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envolve, a ponto de aceitar como verdades até o impossível que o texto edifica de forma coerente. Nessa perspectiva, entra em cena o personagem Xext, o habitante-anão de Júpiter, que escolhe a companhia de Laura, pelo fato de achá-la diferente, “pra frente”, por não “ser quadrada”, como afirmam o narrador e o personagem de Júpiter, respectivamente. A partir do encontro noturno entre Laura e Xext, relatado nas últimas páginas da história, o enredo traça uma crítica aos seres humanos, quando, respondendo à indagação de Xext, Laura cacareja que “os humanos são muito complicados por dentro” e que, inclusive, “Eles até se sentem obrigados a mentir”. Diante disso, reiteramos que, mesmo que a obra em estudo tenha sido direcionada aos leitores infantojuvenis, através do potencial alegórico ela pode transpor os limites dessa categoria, visto que a literariedade e a autonomia estética da obra passam a atender às expectativas de leitores de qualquer faixa etária.

Considerações finais

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Este estudo nos fez rastrear o percurso histórico da literatura infantojuvenil e compreender alguns aspectos e polêmicas que acompanharam a sua trajetória até o momento de consolidação de sua autonomia enquanto gênero literário, já no final do século XX. Como se sabe, devido ao público para o qual se destina, durante muito tempo essa literatura foi considerada literatura “menor”, e, como consequência, teve a sua literariedade questionada. A partir da leitura das obras de Lispector, percebemos que o valor artístico de uma obra é reconhecido, principalmente, pelo efeito causado no leitor, que, a partir da ficção, passa a questioná-la e transpô-la para a realidade, de forma sugestiva e, dependendo do contexto, de modo menos traumático. Por outro lado, as obras investigadas, na perspectiva de suas possibilidades simbólica e alegórica da natureza humana, notadamente em face do contexto lúdico-ficcional em que ações e intenções estão representadas, comprovam, também por esse prisma, que à literatura infantojuvenil não se deve atribuir o rótulo de literatura ‘menor’, em contraponto a obras e gêneros de maior complexidade destinados a leitores mais experientes e detentores de elevado nível de proficiência literária. Ao afirmar que os contos infantis atingem a todo público, e não exclusivamente às crianças, a própria autora parece-nos ratificar que a realidade pode ter seu viés lúdico, sem perder, com isso, a autenticidade estética enquanto representação da realidade, tornando a obra passível de fruição por leitores de qualquer estágio de leitura. No que tange à natureza humana, o caráter alegórico, defendido nesta pesquisa, foi-nos desvelado através dos personagens animais, protagonizando, como nas fábulas, mas indo além delas, em face dos desfechos em aberto, das contradições próprias do comportamento humano nelas representados. No que concerne ao método crítico socioideológico, na esteira de Antonio Candido, consideramos os padrões internos à narrativa (os elementos composicionais), na medida em que representam os elementos externos (a realidade social), apreendidos e captados pelo olhar sensível da autora, em cuja dialética o leitor é lançado com seu horizonte de expectativas. No que se refere às obras estudadas – O mistério do coelho pensante e A vida íntima de Laura –, não obstante os motivos distintos que compõem cada enredo, nelas se Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A natureza humana nos contos infantojuvenis de Clarice Linspector: uma perspectiva alegórica do ser

sobressai o traço inconfundível do estilo de Lispector: a inquietação do ser e uma linguagem que brota de forma surpreendente, levando o leitor a momentos de epifania. Vale a pena a leitura!

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Autorreferencialidade, fluxo de consciência e compromisso social no conto União civil, de Marcelino Freire Self-referentiality, flow of consciousness and social commitment in the short story União civil, by Marcelino Freire Rosembergh da Silva ALVES1 Vilani Maria de PÁDUA2 Resumo: Este artigo pretende analisar o conto União civil, que se encontra na obra Amar é crime, do autor pernambucano Marcelino Freire. O conto discute vários temas, em especial a confecção do próprio conto, por meio dos procedimentos de fluxo de consciência, uma técnica ainda pouco abordada pelos estudiosos de literatura, devido à dificuldade imposta pelo próprio procedimento. Marcelino Freire soube empregar a técnica com muita competência, levando seu leitor ao desafio de compreensão. Sendo assim, o conto ‘União civil’ é metalinguístico, visto que se caracteriza pelo fato de a mensagem estar centrada no próprio código e, neste caso, demonstrada por meio do fluxo de consciência utilizado pelo autor. Técnicas utilizadas e temas escolhidos corroboram o seu compromisso social, visto que os colocam em evidência. Para dar suporte à análise, foram utilizados alguns autores que tratam do referido assunto, a saber: Robert Humphrey (1976), um dos primeiros a abordar esse assunto na literatura; Erich Auerbach (1976); Alfredo Leme Coelho de Carvalho (1981), Gilberto Defina (1975) e Lígia Chiappini Moraes Leite (1985). Palavras-chave: Conto. União civil. Autorreferencialidade. Fluxo de consciência. Diversidade social. Marcelino Freire.

181 Abstract: This article intends to analyze the short story União civil, which is found in the book Love is crime, by pernambucano author Marcelino Freire. The short story discusses several themes, especially the making of the story itself, through the procedures of stream of consciousness, a technique not yet approached by literature scholars, due to the difficulty imposed by the procedure itself. Marcelino Freire knew how to use the technique with great competence, leading his reader to the challenge of understanding. Thus, the short story União civil is metalinguistic, since it is characterized by the fact that the message is centered in the code itself, and in this case, demonstrated through the stream of consciousness used by the author. Techniques used and chosen themes corroborate their social commitment, since they put them in evidence. To support the analysis, we used some authors dealing with this subject, namely: Robert Humphrey (1976), one of the first to approach this subject in the literature; Erich Auerbach (1976); Alfredo Leme Coelho de Carvalho (1981), Gilberto Defina (1975) and Lígia Chiappini Moraes Leite (1985). Keywords: Short story. União Civil. Self-referentiality. Stream of consciousness. Social diversity. Marcelino Freire.

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Graduado em Licenciatura Plena em Português/Inglês| FAFIRE | pós-graduado em Literatura Brasileira | FAFIRE | E-mail: rosemberghalves@bol.com.br 2 Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada | USP | professora de Literatura Brasileira e Portuguesa | FAFIRE | E-mail: vilanip@prof.fafire.br 1

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Introdução

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O escritor pernambucano Marcelino Freire aborda em seus contos assuntos importantes para o cenário da contemporaneidade que até então eram pouco debatidos na literatura canônica. Temas como amor homoafetivo, violência, nostalgia e relações familiares, teatro, problemas sociais e tabus são constantes em suas obras. Entretanto, seus textos ainda são vistos com reserva por uma parcela do cânone acadêmico, bem como por uma boa parte da sociedade reacionária e preconceituosa. Mas, o valor literário desse escritor e seus contos, bem como a importância dos temas levantados, fazem com que sua obra mereça ser estudada, e com isso, colocam em pauta temas relevantes ao momento atual, retratados com veracidade por personagens e configurações homoafetivas nos seus contos da obra Amar é crime, discutindo a importância da obra deste escritor no cenário da literatura contemporânea nacional. No entanto, ainda é escasso um estudo apurado acerca das temáticas e dos procedimentos literários verificados em sua contística. Seus contos sofrem influência de conceitos e questões da Psicologia e suas ramificações, que perpassam os vários estratos da sociedade e da cultura, e que encontraram solo fértil na literatura que se projeta dentro da mente, com a utilização do fluxo de consciência. Em literatura, o fluxo de consciência é um procedimento literário, usado primeiramente por Édouard Dujardin, em 1888, em que se procura transcrever o complexo turbilhão de pensamento das personagens, com o raciocínio lógico entremeado de impressões pessoais momentâneas e exibindo os diversos estados de associação de ideias. A característica não linear deste eixo de pensamento leva, frequentemente, a rupturas na sintaxe e na pontuação. O termo foi usado na área da Psicologia em 1892, pelo filósofo e psicólogo William James. Com o uso deste procedimento, mostra-se o ponto de vista das personagens através do exame profundo de seus processos mentais, misturando-se e confundindo-se as distinções entre consciente e inconsciente, realidade e desejo, as lembranças das personagens e a situação presentemente narrada. A profundidade e a abrangência desse exame é que fazem com que o fluxo de consciência difira de um mero monólogo interior, recurso empregado anteriormente por autores como Fiódor Dostoiévski e Liev Tolstói, e mesmo por Homero, na Odisseia. Diversos autores mundialmente conhecidos, notáveis no século XX, como Virginia Woolf, James Joyce, Samuel Beckett, John dos Passos, Marcel Proust, T. S. Eliot e William Faulkner utilizaram extensivamente essa técnica. E na literatura brasileira, merecem destaque a obra de Guimarães Rosa, Hilda Hilst, Antônio Callado, Autran Dourado e, principalmente, a de Clarice Lispector, sendo ela a que mais desenvolveria essa técnica e estilo literário entre nós. Como procedimento literário, o fluxo da consciência sozinho não se caracteriza como tal; é necessária uma trama que desvele a mente dos personagens. Os vários escritores já mencionados, entre outros autores que adotaram o fluxo de consciência, como Albert Camus, Hermann Hesse, William Burroughs, Milan Kundera, Julio Cortázar, Paulo Leminski e Graciliano Ramos, para citarmos alguns, dentre inúmeros contemporâneos, muniram-se desse mergulho ao íntimo do ser humano e mudaram para sempre o romance, abrindo as portas para uma nova produção ficcional. Eles acrescentaram o funcionamento mental e a existência psíquica, ou seja, dentro da ação do presente da personagem, inserem uma Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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outra realidade, até mesmo, atemporal, enriquecendo a experiência humana, visto que, por meio de associação de ideias, o personagem deixa por segundos o seu presente e mergulha noutro mundo, que pode ser de lembranças ou simplesmente de conjecturas. Escrever em um fluxo de consciência seria como instalar uma câmera na cabeça das personagens, retratando fielmente sua imaginação e suas concepções. Como o pensamento, a consciência não é ordenada, o texto/fluxo de consciência também não o é. Presente e passado, realidade e desejos, anseios e lembranças, falas e ações se misturam na narrativa em um movimento desarticulado, descontínuo, numa sintaxe caótica, apresentando as reações íntimas da personagem fluindo diretamente da consciência, livres, espontâneas e, na maioria das vezes, fora da ordem e do tempo cronológico. É como se o autor abandonasse a personagem, deixando-a entregue a si mesma, às suas divagações, resultando um texto que lembra a associação livre de ideias, de aspecto incoerente, desconexo, sem as coesões ou enlaces sintáticos de um texto comportado e harmônico. A narrativa, através do fluxo de consciência, se apresenta como se fosse um depoimento, a expressão livre, desenfreada, desinibida, ininterrupta, difusa, alógica de pensamentos e emoções, muitas vezes de uma mente conturbada e atônita. No fluxo de consciência, o pensamento simplesmente flui, pois, a personagem não pensa de maneira ordenada, coerente, razão pela qual o texto se apresenta sem parágrafos, sem capítulos ou delimitações, sem aviso prévio, sem pontuação, ininterrupto; num texto caótico. A ficção contemporânea tem trazido nos romances e contos o fluxo de consciência através de narrativas, pensado seu lugar como um espaço de expressão de personagens. Nesse contexto, Marcelino Freire, contista contemporâneo, nordestino, constrói um conjunto incrível e incomparável de obras que representam esse universo ficcional com o fluxo de consciência bem trabalhado e evidente em seu foco narrativo, como na obra Amar é crime, de 2011, mais especificamente no conto União civil, e mais recentemente, na prosa poética Nossos ossos, de 2013. Marcelino Freire, através de sua literatura, expõe temas que conseguem abarcar as diferenças, as multiplicidades excêntricas, por meio do uso frequente da oralidade e da ironia, para representar as angústias e inquietudes diante de uma sociedade que urge por mudança, superação e rupturas (MIRANDA, 2013). Freire mantém seu estilo inquieto, uma literatura ritmada e urgente, repleta de ironia e musicalidade, com histórias banhadas pela oralidade e pelo trágico, elementos constantes em suas narrativas. Algumas características da literatura contemporânea, mais especificamente dos contos, são apresentadas nas obras de Freire: atualidade, aproximação e concisão, realizadas por meio dos diálogos com seu tempo, uma vez que representa personagens que estabelecem discursos contrários à sociedade hegemônica que centraliza e dita as regras; aproxima a obra do leitor, com diálogos vivos e, por fim, escreve contos curtos e densos (MIRANDA, 2012). O autor dá preferência em suas obras à configuração de personagens marginalizados pela sociedade hegemônica e centralizadora. Personagens como as mulheres, as prostitutas, os bandidos, loucos, velhos, gays, travestis (FERRAZ, 2009). Sua obra confronta ação social e realidade cruel, com marcas e posicionamentos bastante dialéticos. As temáticas tendem a ser as que enfocam as disparidades sociais e as personagens são os miseráveis – aqueles com baixa renda ou os marginalizados (SILVA; STACKE, 2014). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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A obra contística mais recente de Marcelino Freire é Amar é crime. O livro é dividido em 18 contos, na qual o autor traz uma reunião de histórias em que o amor flerta com o avesso: a separação, a dor, a morte e o mal. Tudo se revela por meio de explosões e de palavras cortantes, cruas e sangrentas, no seu melhor estilo. Marcados pela oralidade e pelo ritmo, os contos são uma mistura sonora entre prosa e poesia, e têm o poder de trazer para o centro nobre da literatura personagens marginalizados, polêmicos e invisíveis em nossa sociedade. Essa aventura do escritor é pautada por acontecimentos corriqueiros, como os frequentes ataques homofóbicos, a efemeridade dos relacionamentos amorosos, o amor alimentado pelo dinheiro, a recorrência de crimes passionais, enfim, toda essa gama de sentimentos é vivenciada pelos seus personagens, que sofrem na pele a violenta transformação do amor em morte, pecado ou crime. Na literatura contemporânea, ainda é escasso um estudo apurado acerca do foco narrativo e do fluxo de consciência na contística brasileira. Nessa perspectiva, o artigo se deterá no estudo e análise do fluxo de consciência na narrativa do conto com configurações homoafetivas intitulado União civil, sua importância para a literatura e para o conhecimento do mundo, bem como uma busca de compreensão do que venha a ser, em nossos dias, a expressão que dá nome ao conto.

Marcelino Freire e a obra Amar é crime

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O escritor contista Marcelino Juvêncio Freire já possui uma produção literária bem desenvolvida e consolidada, visto que nos últimos 15 anos publicou, quase sem trégua, muitos contos e até um romance. Em 2011, Marcelino Freire lançou Amar é crime, primeiramente pelo coletivo artístico Edith. A segunda edição, revista e ampliada pelo autor, foi publicada pela Editora Record, em 2015, na qual não aparecem alguns dos contos da edição anterior. O livro é iniciado por duas epígrafes, sendo uma identificada por “arrudA”5 e a outra com um trecho de “Música de domínio público”6. Logo depois, há uma dedicatória, seguida de uma breve apresentação da obra. As páginas que seguem estão divididas em 18 contos curtos e dinâmicos, sem subdivisões explícitas ou capítulos, distribuídos em 133 páginas. Após os contos, nas páginas finais do livro, o autor faz citações de outros escritores, dedicatórias e menções gerais. Em Amar é crime, subintitulado de “Contos de amor e morte ou pequenos romances”, o amor torna-se criminoso por ser a manifestação de desejos reprimidos, marginalizados e embrutecidos. Esse amor que, cansado do cativeiro e dos guetos, busca formas agressivas ou não convencionais de se manifestar. Amar é crime tem uma atmosfera e uma escrita simultaneamente amorosa e agressiva; os opostos amor e crime são unificados. O amor impetuoso, violento e intenso está presente nessa obra, como também já havia sido abordado pelo escritor em contos de outras obras. O título do livro de Marcelino Freire pode ser comparado à série de ilustrações que compunham o álbum de figurinhas ‘Amar é...’, sucesso absoluto nos anos 80, criado pela neozelandesa Kim Grove, em 1967, que trazia um casalzinho que representava ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 5 6

Ainda durmo / na cama em que / nos matamos.//O cheiro é cada vez mais forte. // arrudA Você diz que amar é crime / Se amar é crime eu não sei não / Hei de amar a cor morena / Com prazer, com prazer no coração. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Autorreferencialidade, fluxo de consciência e compromisso social no conto União civil, de Marcelino Freire

situações do cotidiano e retratava momentos íntimos desse casal, utilizando-se a frase já mencionada, a qual pedia um complemento que poderia ser algo bom ou ruim, dependendo da situação retratada nas imagens. Os contos iniciam-se com “um poeminha de amor concreto”, que já situa o amor e a violência em uma relação de dependência. Assim como constrói seus contos, nesse “poeminha”, Freire, por meio de assonâncias, aliterações e repetições, brinca com os sons e com a carga semântica das palavras. Através do poema, o autor apresenta ao leitor a temática e a intenção da obra, pois nos contos é notada a pouca utilização ou nenhum uso de vírgulas, a inexistência de capítulos, sendo o livro dividido em pequenas partes sem subtitulação, apresentando textos curtos, rápidos e corridos, expressando um desespero em finalizá-los: “da mesma forma que você dá o pão à mesa dá a mão um abraço da mesma forma que você dá um aviso um acorde dá um choque um chute um salto [...]” (FREIRE, 2015, p. 23). A preposição “da” e o verbo “dá” estão destacados em negrito em todo o conto para demonstrar a diferença morfológica das duas classes gramaticais e seus diferentes usos e significados, enfatizando, assim, a importância do aspecto semântico dessas palavras na construção do texto e os significados que elas carregam. O verbo “dar” aparece sempre no modo indicativo, no tempo presente, como um fato rotineiro ou que pode acontecer com certa frequência: “[...] dá uma bronca um tapa dá um duro [...]” (FREIRE, 2015, p. 23). Já a preposição “da” estabelece uma relação semântica surgindo entre o termo regente (aquele que pede a preposição) e o termo regido (aquele que completa seu sentido): “[...] da mesma forma que você dá uma rosa um beijo dá uma bala uma moeda da mesma forma [...]” (FREIRE, 2015, p. 23). Dezessete contos seguem ao poema inicial. Nesses contos, amar e ser amado são necessidades, muitas vezes sangrentas e cruéis. O amor está imerso em situações cotidianas e violentas, a justificativa para este fato aparece no oxímoro empregado no título da obra Amar é crime; logo, o amor justifica o crime e o mesmo ocorre com o oposto desse processo: o crime justifica o amor. Em Amar é crime, o amor torna-se criminoso por ser a manifestação de desejo reprimido, marginalizado, embrutecido. Um amor que, cansado do cativeiro, busca formas agressivas ou não convencionais de se manifestar. Neste sentido, o procedimento literário do fluxo de consciência está entrelaçado ao tema da obra, e mais especificamente ao conto em análise, demonstrando, assim, o paradoxo do título como a técnica, que nada mais é do que uma tentativa de escrever simulando a ordem – ou desordem – dos pensamentos, utilizando, para isso, a quebra das regras gramaticais e da narrativa tradicional.

O conto União civil e o fluxo de consciência O conto União civil está dividido em quatro partes e tem como temática-chave o próprio conto, e como pano de fundo, a relação homoafetiva e a adoção de uma criança por um casal homossexual. A homossexualidade é um dos temas, mas não é o principal, bem como a união civil, que, mesmo dando nome ao conto, não é discutida, apenas é lançada na primeira página, para fazer o leitor pensar e refletir sobre essa possível união, além da adoção de crianças por casais homossexuais, tudo isso constituído tema transversal, com possibilidade de levantar discussões e debates entre os leitores mais experientes e atentos, ou provocar inquietação Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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e motivação para a escrita de artigos científicos sobre o conto. A escrita do conto, em si mesma, absorveu os outros temas, ficando mais evidente a forma e a estrutura do conto, o procedimento literário utilizado pelo autor, do que as temáticas abordadas na narrativa. O conto é metalinguístico, pois versa e fala de si mesmo o tempo todo, e ainda dá explicações sobre como é escrever um conto. Neste sentido, a principal característica da função metalinguística é o fato de a mensagem estar centrada no próprio código. Cada função tem um foco em um dos elementos da comunicação e, para a função metalinguística, nada é mais importante do que a própria palavra e seus desdobramentos. Ou seja, nela, o código é utilizado para falar sobre o próprio código, explicando-o e analisando-o. Portanto, este conto constitui um código metalinguístico usado para tratar sobre o próprio conto, inserindo, em sua narrativa, outros dois contos. Assim, são dois contos dentro de outro, o principal; construídas narrativas em abismo (mise en abyme). As narrativas em abismo são recursos recorrentes nas mais variadas mídias. No entanto, são poucas as vezes em que de fato toma-se conhecimento de que esses abismos estão presentes. O termo surgiu a partir do francês “mise en abyme”, proposto inicialmente em 1893 pelo escritor André Gide e ampliado por Lucien Dällenbach, que usava a expressão fazendo referência a qualquer “trabalho dentro de um trabalho”, qualquer mídia que trouxesse mídias de mesmo tipo aninhadas em sua estrutura. Neste sentido, a principal utilidade da narrativa em abismo é traçar paralelos com o enredo principal, em que cada camada pode ser encarada como uma releitura, uma sátira ou um simbolismo do que o leitor acompanhará nos outros níveis. Elas adicionam novos sentidos na estrutura, e podem servir para causar estranheza e curiosidade do leitor, incutindo algumas ideias no subconsciente. Tzvetan Todorov, em As estruturas narrativas (1969), destaca o procedimento de encaixe em cadeia, em que uma estória se torna um prolongamento da outra. Dessa forma, o encaixe ocorre quando uma história secundária é englobada na primeira narrativa, ocasionando a interrupção desta pela aparição de uma nova personagem. Assim, uma narrativa alimenta a outra, de modo que cada uma delas remete à outra, numa série de reflexos; e por meio de encaixe e do espelhamento, a narrativa encaixante é a “narrativa de uma narrativa”. A perspectiva da narrativa encaixante, conforme Todorov (1969) é semelhante ao processo de autorreflexão do mise en abyme. A narrativa em abismo, ou procedimento de duplicação especular, é um mecanismo discursivo, que se manifesta nas mais variadas formas. O jogo narrativo por meio do efeito do mise en abyme, ou redobramento especular da narrativa, funciona como um espelho (DÄLLENBACH, 1979). Nesse conto, é apresentado o método narrativo denominado fluxo de consciência, procedimento literário, como mencionado no início, que aborda os pensamentos das personagens explorando-os mais do que a realidade. Segundo Carvalho (1981), esse recurso consiste na “(...) especialização de um determinado modo de foco narrativo. Poderíamos definir o método como a apresentação idealmente exata, não analisada, do que se passa na consciência de um ou mais personagens” (p. 51). Então, é possível dizer que o fluxo de consciência pode ser tratado como um procedimento literário ficcional utilizado para explorar a consciência das personagens, estabelecendo os seus pensamentos de acordo com o inconsciente. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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Segundo Robert Humphrey, um dos primeiros estudiosos de literatura a tratar do tema: [...] fluxo de consciência é uma frase para psicólogos. William James a cunhou. A frase é usada com maior clareza quando aplicada a processos mentais, pois como locução retórica torna-se duplamente metafórica; isto é, a palavra “consciência”, assim como a palavra “fluxo”, é figurativa; por conseguinte ambas são menos precisas e menos estáveis. Se, portanto, o termo fluxo da consciência (continuarei a usá-lo, por já ser um rótulo literário estabelecido) for reservado para indicar um sistema para a apresentação de aspectos psicológicos do personagem na ficção, poderá ser usado com certa precisão (HUMPHREY, 1976, p. 1).

Pela análise do procedimento literário observado, o conto está dividido em três momentos distintos, que não são as quatro partes dadas pelo autor; são tempos ou períodos da percepção dos leitores. Na primeira parte está o conto em si, que é a história do escritor Álvaro, que foi à cidade mineira de São João del-Rei para proferir uma palestra, sendo este o conto principal; o segundo momento é o fluxo de consciência memorialista, que o próprio narrador chama de ‘o tempo’ (p. 86), tempo esse que transcorreu desde o passado até o presente, em que o narrador-protagonista o define voltando ao passado e às suas memórias, reescrevendo sua história para não caírem no esquecimento. Essa é uma estratégia do autor, e faz parte de sua técnica para criar um conto dentro do outro, criando e contando outra história, usando o próprio conto como metalinguagem, utilizando-se de entradas no fluxo de consciência: “A verdade é esta. Essa imagem me pertence faz tempo. Escrever é organizar os sentimentos perdidos. Já creio que posso contar” (FREIRE, 2015, p. 76). O terceiro ponto é o momento da criação do conto (outro fluxo de consciência), estratégia metalinguística, quase um devaneio, um sonhar acordado relembrando episódios, pois o narrador-autor se afasta mentalmente do ambiente da palestra e fica cogitando de que forma criará o conto; faz anotações, escreve-o mentalmente: possibilidades de escrever sob a perspectiva do bebê, o qual seria um conto idealista e fantasioso; de contar a história do próprio narrador, com João procurando Álvaro nas redes sociais, mais especificamente no Facebook, e eles se encontrando também em São João del-Rei, em Minas Gerais, com o bebê de João no carrinho, etc. Há vários indícios deste 2º conto, como os indicativos que seguem: “Reanotei frases para o conto, relembrei” (p. 80). “Segui confabulando. Rabiscando possibilidades, falas, personagens. Misturando realidade e ficção. Loucura e literatura. Memória e invenção” (p. 81). Utilizando do recurso do fluxo de consciência, neste momento do conto, o narrador-autor diz que: “...aquela manhã em que os avistei, poderia ser a primeira vez que eu e João nos reencontrávamos, depois de muitos anos” (p. 81). Ou seja, isso é uma indicação de que a ação não aconteceu, ele está criando um futuro literário, o qual poderá ou não acontecer, em que o verbo, no futuro do pretérito, já indica a pretensão dos acontecimentos, ainda como possibilidades, já que ele está apenas conjecturando, pensando em probabilidades. Todo o conto é narrado em 1ª pessoa por Álvaro, narrador-protagonista do conto, que inicia a história falando da sua experiência ao ver dois homens que empurravam um carrinho de bebê, nos fazendo refletir sobre a adoção por casais homoafetivos. Essa imagem Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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é narrada em uma palestra, com a intenção de instigar a plateia a dar informações sobre o casal, e com o intuito também de, através da argumentação dos espectadores, surgir daí um novo tema para seu próximo livro. A partir deste ponto inicial, verifica-se que, na realidade, existem três contos superpostos ao invés de um, sendo que um deles faz parte do fluxo de consciência e da capacidade do narrador criá-lo enquanto participa de uma palestra. Segundo a classificação de Cleanth Brooks e R. P. Warren, de acordo com os quatro tipos ou sistemas básicos de foco narrativo, tratados por Carvalho (1981), o conto ‘União civil’ pode ser inserido em uma categorização em que a personagem principal conta a sua própria história, chamada também de “narrador-protagonista”, denominação esta preferida por eles. Outra característica marcante neste tipo de foco narrativo é a narrativa em primeira pessoa. Nessa modalidade, como o próprio nome indica, o narrador-protagonista manifesta traços subjetivos, tendo em vista o seu envolvimento emocional mediante o desenrolar dos fatos. Após esta introdução do conto narrada com a imagem dos dois pais, o narrador-protagonista apreende essa imagem e, através de sentimentos perdidos no tempo, começa a escrever seu suposto novo conto, voltando em seguida a suas lembranças do passado. Neste momento da narrativa, percebemos a utilização da técnica do fluxo de consciência através do processo da atividade consciente do narrador-protagonista, que organiza informações de maneira contínua. Quando, por alguma razão, a atividade consciente é interrompida e é retomada em seguida, ela parte do ponto anterior a este intervalo e não há qualquer ruptura qualitativa que possa ser considerada (OLIVEIRA, 2009). Ainda na parte I, logo após a introdução, o “narrador-protagonista” descreve acontecimentos de sua infância, através dos fatos de uma relação homoafetiva pueril e traços de uma passionalidade ingênua: “Eu devia ter uns dez anos, nove. Ele também tinha nove, dez. Morávamos no mesmo Poço, em Pernambuco. E já havíamos notado aquele entusiasmo, maior do que o sol [...] Dois garotos apaixonados” (FREIRE, 2015, p. 76-77). Dois meninos, Álvaro Magdaleno e João Rosa, externam, através dessa amizade muito próxima, seus desejos e aspirações futuras. Por meio de uma encenação infantil atrás da capela, eles simulam um casamento com acessórios e alegorias e os sentimentos são aflorados nessa ação inconsciente: [...] Nossos corações saíram do nosso corpo, eu vi, você não viu, dois corações, voando? [...] As alianças a gente conseguiu numa promoção de chiclete. [...] A gente ficou [...] deitados na grama, depois do matrimônio (FREIRE, 2015, p. 77-78).

De acordo com as teorias psicológicas utilizadas por Humphrey (1954 apud OLIVEIRA, 2009) e as qualidades psíquicas que efetivam na literatura o fluxo de consciência, nesse momento da narrativa é constituído o entendimento de que os aspectos inconscientes também fazem parte de nossa ação no mundo (mesmo que de forma difusa). Há na literatura uma mudança na forma de encarar a palavra consciência, que gradualmente se hiperdimensiona até abarcar estados oníricos e alterados da mente, abrangendo o inconsciente e tudo o mais que escapa à razão (OLIVEIRA, 2009). Mesmo sem entender o que acabou de acontecer e os sentimentos envolvidos nessa relação homoafetiva, Álvaro e João, tratando-se por “marido e marido”, questionam-se se depois desse ato alusivo a uma união, eles irão morar na mesma casa, até a morte, para sempre. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Autorreferencialidade, fluxo de consciência e compromisso social no conto União civil, de Marcelino Freire

Como na literatura se convencionou que o fluxo de consciência é mais do que o fluxo de atividade consciente, as ações na narrativa vão e vêm, com reminiscências e atualizações; o narrador-protagonista retoma a palestra em São João del-Rei, e da plateia surge uma pergunta de um jovem de óculos entre os espectadores, que por um instante ganha a aparência de João e o faz perceber que ele havia esquecido da fisionomia do seu amor da meninice. Nesse momento, Álvaro procura em sua memória pelo aspecto físico de João e faz críticas à memória, comparando-a a uma fábrica que está sempre em funcionamento, mas que pode vir a falhar ou parar de trabalhar. Divaga também sobre o tempo que não pára e é incansável, se distrai da palestra, se questiona sobre como a escrita de um conto também é um trabalho, e passa a escrevê-lo mentalmente para não esquecer. Assim, o tempo é um elemento primordial na narrativa, associado à utilização do fluxo de consciência. É neste sentido, que o fluxo de consciência está ligado à exposição de pensamentos de uma personagem. A personagem é construída na intenção de comunicar uma existência fictícia, e que não precisa parecer com a vida real. Contudo, a função da personagem é simular pessoas, comportamentos e sentimentos reais, sendo elas construídas à imagem e semelhança dos seres humanos. Nessa perspectiva, fazer a distinção entre personagem e pessoa é fundamental durante a análise de uma narrativa. Para não articular o real ao imaginário, devem-se ter bem claros alguns conceitos: a pessoa refere-se ao indivíduo pertencente ao espaço humano; as personagens, por sua vez, representam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção. Segundo Candido (1995), a personagem nos parece real devido à sua capacidade de verossimilhança. Ao referir-se a uma pessoa, pertencente ao espaço extratextual, ela se torna real aos olhos do leitor. Ou seja, a personagem é a imitação congênita do homem. Assim, são essas diferenças e semelhanças entre personagens e pessoas que criam o sentimento de verossimilhança e comunica a impressão da mais legítima verdade existencial. Seu criador se esforça em tornar claras as motivações e os sentimentos, a fim de dar reconhecimento de humanidade. Fundamentalmente, a personagem age dentro da trama e vive o enredo narrado, mas, como criação de existência restrita à obra, apresenta tanto semelhanças quanto distinções ao ser do qual se faz mimese. O ser fictício, em prol da verossimilhança, nos é apresentado a partir de condições que variam das que teríamos no contato real (CANDIDO, 1995). O narrador-protagonista, ao mesmo tempo em que está narrando os fatos presentes, também participa da narrativa através de suas memórias passadas ou ainda está escrevendo um conto, tornando a narrativa confusa e complexa em determinados momentos, pois ela é curta, rápida, multidirecional, com idas e vindas. Entre perguntas durante a participação na palestra e a escrita mental do conto, o narrador-protagonista volta ao passado e recorda as brincadeiras com João, então seu ‘marido’, e o momento em que selam com um beijo aquela união: [...] E trocando os chicletes. João tirava a goma da minha boca e colocava a goma dele na minha boca. [...] Até que João quis tirar com a própria língua a borracha da minha língua. Em um beijo sem jeito. Doce, doce, doce. Nossa lua de mel (FREIRE, 2015, p. 79).

A parte II do conto é iniciada com o retorno ao tempo atual e a obsessão do narrador-protagonista em voltar a ver e encontrar o casal homossexual e o bebê. Ao pensar no Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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casal e no bebê, obcecado por essa ideia, se coloca com João no lugar deles, aspirando ter um neném, com a finalidade de ser o fruto daquele amor da infância. Nesse meio tempo, ele continua anotando fragmentos para seu conto, em que o fluxo de consciência surge tanto com relação ao memorialismo, como com relação à possível escrita do conto, cujas associações de ideias brotam de forma rápida. O tempo do conto, que nem é o mais importante neste caso, é o tempo de uma palestra, provavelmente, entre meia e uma hora; todavia, parece muito mais, porque Álvaro vai e volta no tempo, quase eliminando-o do conto. Nesse jogo de presente-passado, as ações pretéritas são retomadas com a lembrança da mãe de Álvaro questionando-o sobre o suposto casamento e o anel no dedo. Ele percebe, então, que seus atos poderiam comprometê-lo e afetar também a sua relação afetiva com João, pois, não só como sua mãe notara, seus colegas também perceberiam a presença da aliança nas mãos de ambos e eles seriam inquiridos pelos outros meninos, julgados e condenados pela ‘união’, mesmo que falsa. Ainda pensando em João e nos planos para o futuro, Álvaro adormece almejando crescessem logo, para terem carro, piscina e filhos. Contudo, a partir de uma conversa franca, porém muito esclarecedora, João afirma não poder ter filhos com Álvaro. e sim com uma menina, Maitê. Entretanto, logo depois João se retrata após a sua exposição, deixando clara a fragilidade do relacionamento: “[...] Eu não. Nunca teria outra relação. Casamento é coisa sagrada. E a gente deu a nossa palavra. Eterna. Marido e marido. [...] Qualquer coisa, a gente se separa. Para que existe o divórcio?” (FREIRE, 2015, p. 81). Com a intenção de tornar a narrativa mais leve e intuitiva, o narrador-protagonista sugere que a história poderia ser contada pelo ponto de vista do bebê, adotado pelo casal homoafetivo, visualizando criar um novo fluxo de consciência sob sua ótica, possibilidade esta que seria inviável, já que os bebês são desprovidos de consciência e razão. Como ele está criando o conto mentalmente, pois está numa palestra, fica cogitando a quem dará a fala, quem será o narrador, jogando com o leitor, com relação ao foco narrativo. Isso tudo numa perspectiva do próprio fluxo de consciência, pois o narrador está em pleno fluxo de pensamentos e o conto já está escrito, assim como já sabemos a quem ele dera a fala. É nesse instante da narrativa que as histórias se confundem e se misturam mais ainda. E assim, o narrador-protagonista menciona a manhã em que avistou o casal gay e o bebê. Esta é outra possibilidade de Álvaro contar a história, ao imaginar que os dois rapazes são ele próprio, por causa de sua história anterior, João e o filho deste com Maitê, que abandonou o marido e o filho, criando, assim, um novo conto mentalmente, a partir de seu possível reencontro idealizado com João, depois de anos afastados e separados pelas circunstâncias da vida. O narrador-protagonista continua sua ansiedade criando possibilidades, falas e personagens, misturando o real e o fictício, trazendo lembranças legítimas e inspirações inventivas. A imagem dos rapazes e do carrinho de bebê no início do conto principal faz reavivar sua memória afetiva para a criação de outro conto. Tudo isso o faz rememorar e ressuscitar sentimentos, havendo um fluxo de consciência contínuo de idas e vindas, e também para o conto memorialista, recordando a passagem de tempo entre a fase juvenil para a adulta, repassando antigas inquietações e suspeitas, confrontos e confirmações, a perda da inocência, traição e ciúmes, enquanto se encaminhava para a palestra e a leitura teatral baseada em sua ficção na Escola dos Inconfidentes: “[...] eu fui Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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sendo deixado de lado. Marido abandonado, uma criança. [...] Chorei, peguei febre, quis me atirar embaixo de caminhão. [...] Hora ou outra eu via. João e Maitê. Quanto ciúme!” (FREIRE, 2015, p. 81). O narrador-protagonista relata que após a desilusão amorosa, ele e João seguiram adiante. Álvaro tentou uma relação similar com Elisabeth, porém frustrante e desastrosa. E João oficializou seu relacionamento com Maitê, “casando-se de verdade”. Mesmo com a técnica do fluxo de consciência constante e presente em toda a narrativa do conto e toda a sua complexidade, uma das principais características dessa obra é a atitude das personagens. Estas desempenham um importante papel na ação narrativa. Dentro da perspectiva teórica, as personagens são apresentadas e reconhecidas pelo seu papel de enfatizar o momento existencial, a posição social do homem com relação ao meio e ao mundo, além da subjetividade, que se destaca pelo fato de levá-las à sua interioridade ou à individualidade (DEFINA, 1975). No início da parte III do conto, durante sua fala com a plateia, após ser questionado pela segunda vez por Paulo, aluno e espectador durante a apresentação da palestra, e interrogado se havia conseguido escrever o conto sobre os rapazes, o carrinho e o bebê, o narrador-protagonista imagina e remonta como seria vivenciar seu reencontro idealizado com João, que estaria acompanhado com um carrinho preenchido por um filho, voltando à outra história dentro do conto principal: “Fazia uma vida que não se viam. João foi quem chamou Álvaro. Mandou uma mensagem no Face. Vem. E Álvaro pensou tanto. [...] Mas resolveu ir e lá estava” (FREIRE, 2015, p. 83). O narrador-protagonista consegue, com maestria, intercalar a construção do conto à atividade do escritor, visto que, a narrativa se realiza enquanto ele pensa e escreve. As considerações feitas e o próprio enredo criado para as personagens fogem ao clichê das narrativas com a temática da homossexualidade. Como afirma Ivan Marques, prefaciador do livro, “Neste conto metalinguístico e densamente poético, o processo de construção da narrativa se confunde com os percalços da iniciação amorosa e da descoberta de si mesmo” (MARQUES, 2015, p. 16-17). Utilizando a técnica do fluxo de consciência, o autor interpõe elementos, dados e informações variadas desde o início da narrativa, apresentando-nos dois meninos que se casam atrás da capela, mas que, com o passar do tempo, vão seguindo caminhos diferentes, até se reencontrarem anos mais tarde. Na verdade, esse conto vai se construindo em possibilidades, à medida que o vamos lendo, já que vai intercalando algumas atividades da palestra de um escritor de contos, que tem essa imagem na cabeça: dois homens andando na rua com um carrinho de bebê. É por conta dessa imagem que ele vai costurando possibilidades que levam a essa situação imprecisa, com personagens de realidades sufocantes, frustrantes, carregadas de dores, ressentimentos e confusões, percebendo-se que a história é um misto de amor, ódio e alguma sanidade aparente que refaz o equilíbrio das coisas, brindando-nos com um misto de sensações, tirando-nos de nossa zona de conforto do senso comum e fazendo-nos pensar. O clímax do conto é a construção em fluxo de consciência e ocorre no final, com o narrador-autor explicando sobre o próprio conto. A última parte do conto, a IV, é um dos poucos momentos em que o narrador-protagonista está presente fisicamente e Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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mentalmente na palestra, sem distrações; em que seus pensamentos misturam o real e o abstrato, em que ele discorre sobre o nascimento de um conto e a sua concepção, ao mesmo tempo em que promete à plateia da palestra que criará um novo conto a partir das imagens e representações adquiridas e apreendidas durante sua visita a São João del-Rei, fazendo uma última referência à figura inicial do bebê e dos dois rapazes. Contudo, ele reconhece a dificuldade em se conceber uma nova história e seus elementos constituintes, pois, o tempo é o maior obstáculo na vida criativa de um escritor. É nesta parte IV, no final do conto principal, ainda durante a palestra, que Álvaro responde à interrogativa de Paulo, dizendo que vai atrás de responder ao seu questionamento, ou seja, de escrever um conto sobre os dois rapazes do carrinho de bebê, dando explicações convincentes sobre o que é conto, falando com propriedade, já que sabe e só é autor apenas de contos. Enfim, o leitor percebe, toma consciência de que tem, em mãos, o conto prometido, e o rico processo de sua elaboração, porque o que se lê é exatamente o cumprimento da promessa de Álvaro, o escritor de contos.

União civil, família homoafetiva e adoção

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O título do conto nos faz refletir sobre as divergências entre os termos casamento, união estável e união civil, havendo um equívoco na compreensão, entendimento, aceitação social e no sentido legal dessas expressões. Um dos inúmeros motivos que levam casais a formalizarem a união oficialmente é que, com um documento que reconhece a relação do casal, fica mais fácil realizar processos burocráticos como em casos de morte ou separação. É um grande passo para a união; portanto, é importante conhecer todos os processos relacionados à vida conjugal na legislação brasileira, compreendendo-se o significado de casamento, união estável e união civil. Segundo Dias (2005), Diniz (2008) e Gonçalves (2009), o casamento se realiza no momento em que duas pessoas manifestam, perante o juiz, a vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados. E após a formalização, o casal pode escolher qual regime de bens vai prevalecer na relação. Já a união estável é considerada quando duas pessoas estão em uma relação duradoura de convivência com o objetivo de constituição de uma família. Assim, essa união é uma alternativa mais rápida e menos burocrática ao casamento, bem como é igualmente aceita como entidade familiar, de acordo com Dias (2005), Diniz (2008) e Gonçalves (2009). A união civil, explícita e provocativa no título do conto, ocorre quando duas pessoas do mesmo sexo constituem uma unidade familiar, formando uma união homoafetiva. Apesar de ser um registro oficial utilizado em muitos países, no Brasil ela não garante os mesmos direitos que o casamento, em várias questões, como no caso da adoção. A questão da união homoafetiva no mundo atual não se encontra uniforme; há países que assumem uma posição de total aceitação, enquanto outros, principalmente aqueles onde ainda não houve uma libertação em relação às ortodoxas religiões, negaram esse tipo de união. A questão da união homoafetiva no Brasil ainda não está pacificada. Há uma grande discussão acerca do tema e vários projetos de lei ainda não votados que dizem respeito a essas uniões. Neste caso não se pode falar em igualdade de direitos civis, apesar de a igualdade ser almejada por todos e em todos os tempos. A igualdade é o princípio mais reiteradamente Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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invocado na Carta Magna. Não é por outro motivo que está proclamada nas Declarações de Direitos Humanos no mundo ocidental. E no Brasil é consagrada no limiar do ordenamento jurídico pela Constituição Federal de 1988. Mesmo tendo havido uma acentuada evolução da sociedade, a igualdade formal ainda não se tornou igualdade material e real. As normas constitucionais que consagram o direito à igualdade proíbem discriminar a conduta afetiva no que respeita à inclinação sexual. Com efeito, a discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação sexual constitui, precisamente, uma hipótese (constitucionalmente vedada) de discriminação sexual. Rejeitar a existência de uniões homossexuais é afastar o princípio insculpido no inc. IV do art. 3º da Constituição Federal, segundo o qual é dever do Estado promover o bem de todos, vedada qualquer discriminação, não importa de que ordem ou tipo seja (RIOS, 1998). Através do fluxo de consciência memorialista que nos leva ao passado do protagonista, mais precisamente a sua suposta união civil com João, chamada literariamente de casamento, percebe-se que mesmo pueril e falso, o ato afirmativo da relação afetiva mantida por eles, na realidade, não teria validade ou amparo jurídico, se não fosse devidamente oficializada com resguardo legal. Neste caso, não houve uma união civil entre Álvaro e João, mas uma simulação, uma encenação, com troca de falsas alianças, repetições de palavras consagradas nos rituais do matrimônio, e juras e promessas não cumpridas, seladas com um beijo. A principal preocupação dos meninos, além da mãe de Álvaro, que logo o questionou sobre o anel, seriam seus colegas que também perceberiam as alianças e eles seriam indagados, chamados por nomes pejorativos pelos outros meninos, julgados e condenados pela falsa união: “A gente prometeu esconder a aliança. Coisa de veado, a molecada logo iria dizer. Quem iria entender?” (FREIRE, 2015, p. 80). Neste sentido, a sociedade que se proclama defensora da igualdade é a mesma que ainda mantém uma posição discriminatória nas questões da sexualidade. Nítida é a rejeição social à livre orientação sexual. A homossexualidade existe e sempre existiu, mas é marcada por um estigma social, sendo renegada à marginalidade, por se afastar dos padrões de comportamento convencional. Por ser fato diferente dos estereótipos, o que não se encaixa nos padrões, é tida como imoral ou amoral, sem buscar-se a identificação de suas origens orgânicas, sociais ou comportamentais (DIAS, 2009). Em virtude do próprio preconceito, tenta-se excluir a homossexualidade do mundo do direito. Contudo, qualquer discriminação baseada na orientação sexual do indivíduo configura claro desrespeito à dignidade humana, a infringir o princípio maior imposto pela Constituição Federal. Tomando como ponto de partida a união civil ficcional dos protagonistas até a possível união homoafetiva apontada por Álvaro em sua palestra, quando mencionou ter avistado dois homens empurrando um carrinho de bebê, sugerindo também provável uma adoção pelo suposto casal, instigando a plateia a expor se conheciam os rapazes e sua relação, faz-se necessário discorrer sobre a legislação constituinte, que ainda só reconhece como entidade familiar, merecedora da proteção do Estado, a união estável entre pessoas de sexos opostos. No entanto, atualmente não mais se diferencia a família pela ocorrência do casamento. Sendo assim, não se justifica deixar de abrigar sob o conceito de família as relações homoafetivas. Logo, excepcionar onde a lei não distingue é forma perversa de excluir direitos. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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As famílias mudaram. As famílias tradicionais continuam existindo, mas agora também as novas configurações familiares. E essas transformações continuam a acontecer diante de nossos olhos. Deste modo, o conceito de família precisou ser reinventado em face das alterações ocorridas no modelo tradicional dos vínculos familiares. Ainda assim, a evocação da ideia de família remete a um modelo idealizado que não encontra mais proteção exclusiva na legislação. A família nuclear e matrimonializada concorrem com novas formas de realidades familiares (DIAS, 2004). Outra questão sutilmente abordada na construção do conto União civil e ainda pouco explorada é a visão social sobre a adoção homoafetiva, pois, é sabido que muitas pessoas clamam pela igualdade de direitos e pelo direito de todos terem o mesmo tratamento, de modo que as distinções pessoais, como orientação sexual, não afetem em nada no âmbito jurídico, porém não deixa de haver preconceito quando se trata de adoção de uma ou mais crianças por um casal homossexual. Na realidade brasileira, o direito à adoção por casais homoafetivos ainda não é legitimado juridicamente. Todavia, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não há dispositivo que a proíba. E os Ministérios Públicos Estaduais estão agindo em favor dessa adoção. A decisão de permitir a adoção homoparental deve ser compartilhada pelos representantes dos Ministérios Públicos Estaduais, do Poder Judiciário e da Defensoria Pública, atuando em conjunto, segundo sua jurisdição. Todos os operadores do direito devem apresentar a mesma posição jurídica pela adoção, interpretando o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme a Constituição, baseados na prioridade absoluta e proteção integral do adotando. Cada vez mais as uniões homoafetivas crescem, e a vontade de formar uma entidade familiar também. E, é claro, as crianças que forem adotadas por esses casais terão a chance de ter uma vida digna como qualquer outra forma de família, sem nenhum tipo de diferenciação. Neste sentido, todos os casais, independentemente de etnia, cor, sexo e religião, têm direito a formar uma família. Com a evolução da sociedade e a mudança na base familiar, vê-se a união homoafetiva e este novo tipo de união com todo direito de adotar uma criança. Não só casais heterossexuais têm direito de construir uma família, pois todos têm direitos iguais. A esse respeito, vale salientar que há opiniões favoráveis e desfavoráveis em torno da sobredita adoção. Enquanto os defensores desse ato justificam suas posições com base no princípio da dignidade da pessoa humana, igualdade e o oferecimento de melhor condição à criança ou adolescente, os opositores dessa medida alegam que esses casais influenciariam na orientação sexual dos adotandos, tendenciando-os à homossexualidade, além da possibilidade de sofrerem discriminação por parte de outras pessoas. A homossexualidade não é imposta a ninguém, mas inata ao indivíduo, não um defeito, uma perversão ou uma escolha. É uma imprudência pensar na questão da orientação sexual como algo causado pelo ambiente social e livre escolha das pessoas. Pois, impor a alguém uma orientação sexual é, além de uma provável perda de tempo, um sofrimento inútil para os envolvidos nesta tentativa frustrada. É muito provável que a homossexualidade seja algo que foge do controle do querer, a não ser quando se tenta escondê-la devido à pressão social; mas ela continuará lá, relacionada diretamente à via genética e/ou fatores biológicos, da mesma Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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forma que a cor do cabelo e feições faciais, que nascem com o indivíduo, inerentes ou congênitas ao sujeito. Além de não fazer sentido algum julgar alguém pela sua orientação sexual, a homossexualidade pode ser uma ferramenta importante para a evolução da nossa espécie, e por causa de visões muitas vezes religiosas e ignorantes lançamos preconceito e violência ao cerne da nossa própria estrutura social. Um casal homossexual tem tanto direito de adotar uma criança como um casal heterossexual. Sua orientação sexual não interfere na educação da criança, pois um casal homoafetivo também possui o equilíbrio emocional, e a capacidade de amar e educar um filho. Assim, não há base constitucional que possa justificar o indeferimento da adoção. O direito contemporâneo garante a dignidade do ser humano, e o ordenamento jurídico-constitucional garante o reconhecimento e a proteção dos direitos da sociedade. Justifica-se, então, que o direito de adoção por casais homossexuais tem fundamento por ordem constitucional, o que não faz ser possível excluir o direito de maternidade ou paternidade a gays e lésbicas, pois tirar esse direito fere o respeito à dignidade humana (CASTRO, 2008). Permitir a adoção de criança e adolescente para casal homoafetivo foi um grande marco para o direito de família, bem como para a nossa sociedade. E a partir daí os Tribunais pátrios passam aos poucos a reconhecer a adoção advinda da união homoafetiva, fazendo-se prevalecer o melhor interesse da criança e do adolescente. Portanto, todas as formas de união e base familiar têm direito à adoção. Todos os indivíduos têm direito a construir seu futuro e criar seus filhos.

Considerações finais O que mais chama a atenção numa obra como a de Marcelino Freire são seus gritos pela urgência de uma vida plena para todos. Clamar pelos direitos humanos está muito claro na obra e no conto escolhidos. Toda a sofisticação, na busca de uma escrita de qualidade, indo às últimas consequências no ato de escrever, demonstra o respeito à literatura e ao ser humano que a produz e consome, vai além de apresentar a contradição expressa no título da obra, visto que o amor ser um crime é o resultado das mentes perversas e hipócritas, que se incomodam com os vários tipos de amor possíveis entre os seres humanos e não se importam com o sofrimento desses mesmos seres. É neste sentido que Marcelino Freire busca representar, em sua literatura, uma escrita direta e brutal. E isso ele consegue fazer sem precisar distorcer o sentido pleno do texto literário, nem desqualificar seu leitor, aliado nesse percurso da narrativa contemporânea. Na obra Amar é crime, forma e conteúdo se conjugam no sentido de exprimi¬rem, organicamente, os vários sentidos que a vida pode adquirir no plano narrativo, como metaforizações limítrofes de uma realidade social historica¬mente cindida pela exclusão, pela injustiça, pelo preconceito, enfim, por manifesta¬ções mais ou menos definíveis de violência física e moral contra o indivíduo. Analisando-se o conto União civil, conhecemos mais sobre o autor, por meio de sua produção em textos curtos, uma das melhores maneiras de se aproximar dos novos leitores. Isso se deve ao fato de ser um mestre na construção de enredos, através de personagens e linguagem próprias, mesmo que os textos estejam voltados para temáticas específicas, como é o caso do conto em análise, o qual, além de utilizar o procedimento do fluxo Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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de consciência para construção metalinguística tão cheia de peculiaridades, conseguiu também entrelaçar e abordar assuntos como a homoafetividade masculina, as novas configurações familiares através da união homoafetiva e a adoção por um casal homossexual. Estes são assuntos polêmicos, ainda muito pouco debatidos pela sociedade. E mesmo que ainda haja preconceito e invisibilidade de alguma parte, devemos saber que todos os tipos de entidades familiares têm direitos iguais, como adotar uma criança e constituir uma família, através de casamento ou união contratual. O fato de o indivíduo, homem ou mulher, ter uma orientação sexual diferente da considerada normal para parte da sociedade de nada limitará seu desejo de ser pai ou mãe, instituir família, casar-se ou unir-se legalmente a outro. No entanto, as temáticas aqui abordadas merecem uma legislação específica e uma proteção jurídica mais efetiva, para garantir a dignidade humana. Neste sentido, o Direito deve sempre se refazer de acordo com a transformação da sociedade, pois só assim será instrumento eficaz na garantia da igualdade e da harmonia social. Assim, as técnicas literárias utilizadas e temas postos em evidência corroboram o seu compromisso social, visto que os colocam em debate.

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Do racismo à violência contra a mulher: um estudo comparativo entre o conto e o romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto1 From the racism to the violence against women: a comparative study between the short story and the novel Clara dos Anjos by Lima Barreto Maria Luíza Fernandes de Andrade COSTA2 Rute Isabelle Ferreira de Melo DANTAS3 Vilani Maria de PÁDUA4 Resumo: Este artigo se propõe a analisar e entender as obras Clara dos Anjos, de Lima Barreto (18811922) e fazer uma comparação entre a Clara dos Anjos do conto e a do romance. Tendo como personagem principal uma moça negra e pobre, Barreto vem abordar sobre o machismo e a violência contra a mulher. A denúncia do papel da mulher na sociedade, do início do séc. XX, está exposta em ambas as obras, criticando o preconceito, o machismo e até mesmo a visão distorcida sobre as mães solteiras da época e que ainda se reflete nos nossos dias. E, em especial, entender como se dava o preconceito e como Lima Barreto, que criticava o feminismo que se iniciava, lidou com isso em sua obra, já que aparece em defesa das mulheres. Publicado originalmente na coletânea Histórias e sonhos, em 1920, o conto é um microcosmo do que ocorrerá, com mais detalhes, no romance do mesmo nome, de 1922. Para dar suporte à análise, utilizaremos textos de Lima Barreto, além dos seguintes estudiosos Blay (2001), Resende (2012), Schwarcz (2017), entre outros. Palavras-chave: Clara dos Anjos. Lima Barreto. Violência contra a mulher. Literatura. Abstract: The purpose of this research is to analyze and understand the versions of Clara dos Anjos, by Lima Barreto (1881-1922): doing a comparison between Clara dos Anjos from the short story and Clara dos Anjos from the novel. Through the main character, a poor young black girl named Clara dos Anjos, Barreto comes to talk about male chauvinism and violence against women. The role of women in society in the early 20th century is exposed throughout both writings criticizing the prejudice, male chauvinism, and the misrepresented view on single mothers (a view that is still reflected in our modern day society). It is especially important to understand how the bias was given and how Lima Barreto, who had criticized the feminist movement (a movement that was just beginning to increase in strength), dealt with this in his work, since it appears in defense of women. Originally published in the Histórias e sonhos in 1920, the tale is a microcosm of what will occur in more detail in the novel of the same name, finished in 1922. To support the research, besides Lima Barreto’s writings, we will use the following scholars: Blay (2001), Resende (2012), Schwarcz (2017), among others. Keywords: Clara dos Anjos. Lima Barreto. Violence against women. Literature.

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Trabalho oriundo do projeto de pesquisa desenvolvido e apresentado no Núcleo de Pesquisa e iniciação científica da FAFIRE | NUPIC, em 2018, apresentado na nona sessão de comunicação oral do I Congresso Nacional Mulher, Literatura e Sociedade, realizado na UFPE, em março de 2018, e no Simpósio I Mulher e Literatura: Vozes Silenciadas, Misoginia e Noções de Identidade do II Congresso Internacional Línguas, Culturas e Literaturas em Diálogo, realizado na Universidade de Brasília –UnB, em agosto de 2018. 2 Graduanda do Curso de Letras da FAFIRE | E-mail: maluh.andrade@gmail.com 3 Graduanda do Curso de Letras da FAFIRE | E-mail: dantasmelorute@gmail.com 4 Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP | professora de Literaturas Brasileira e Portuguesa da FAFIRE | e orientadora da pesquisa | E-mail: vilanip@prof.fafire.br 1

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Maria Luíza Fernandes de Andrade Costa | Rute Isabelle Ferreira de Melo Dantas | Vilani Maria de Pádua

A vulnerabilidade da mulher negra

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Descendente direto de negros escravizados, Afonso Henriques de Lima Barreto teve a oportunidade de estudar graças ao padrinho, o Visconde de Ouro Preto, um nobre mineiro abolicionista que usou de sua influência para auxiliar Barreto em sua formação. Sua obra é marcada pela denúncia quanto ao preconceito, em especial, o racial e o social. Em Clara dos Anjos, o conto publicado originalmente na coletânea Histórias e sonhos, em 1920, sendo esse um microcosmo do que ocorrerá, com mais detalhes, no romance inacabado e de publicação póstuma, em 1922, não poderia ser diferente. Atrelado a esse fato, e fazendo uso de um narrador onisciente, ou seja, ciente de tudo o que está acontecendo, Barreto emprega em Clara dos Anjos um discurso elucidativo em prol da sobrevivência da mulher negra brasileira. A história em evidência é contada em duas versões, conto e romance, e traz em ambas uma clareza “quanto a realidade feminina, na primeira década do século XX, onde, mesmo que oficialmente libertos, há pouco mais de 30 anos, através da Lei Áurea (Lei Imperial n.º 3.353), os negros ainda eram reféns da mentalidade escravocrata” (COSTA; DANTAS, 2018, p. 67). Resumidamente, no conto, Clara, uma moça de dezessete anos, negra de cabelos lisos, ingênua, resultado da educação, apaixona-se perdidamente por Júlio Costa, um rapaz de classe social semelhante, porém, com um certo status em função das conexões de sua família e cor da pele branca, que não tem o menor interesse por estudos e trabalho, e que se dedica aos deleites da vadiagem. Um homem que, devido ao privilégio da cor da pele, ainda mais aflorado no início do século XX, sai impune de seus atos e responsabilidades. Ao levar em consideração esta perspectiva e a representação de nossa sociedade por meio dos personagens criados por Barreto, é importante enfatizar a reação descrita no conto da mãe e das irmãs de Júlio Costa para com Clara dos Anjos, evidenciando, como expresso anteriormente, o racismo no Brasil daquela época (e que perdura nos dias atuais). Clara vestiu-se rapidamente e foi. Recebida com altaneira por uma das filhas, disse que queria falar à mãe de Júlio. Recebeu-a esta rispidamente; mas a rapariga, com toda a coragem e com sangue-frio difícil de crer, confessou-lhe tudo, o seu erro e a sua desdita. — Mas o que é que você quer que eu faça? — Que ele se case comigo, fez Clara num só hausto. — Ora, esta! Você não se enxerga! Você não vê mesmo que meu filho não é para se casar com gente da laia de você! Ele não amarrou você, ele não amordaçou você.... Vá-se embora, rapariga! Ora já se viu! Vá! (BARRETO, 2010, p. 255).

Refletindo sobre o tema, Schwarcz comenta: “[b]rancos aparecem, pois, como defloradores profissionais, e Lima mostra, por mais esse ângulo, como o racismo do passado se reinscreve no presente” (SCHWARCZ, 2017, p. 410). A temática continua presente no romance, no qual o autor utiliza as mesmas iniciais, mas troca a ordem de JC para CJ, e altera os nomes do antagonista, de Júlio Costa para Cassi Jones, tal mudança indo além do nome, pois que suas características nefastas são exageradas, como aponta Schwarcz, ao Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Do racismo à violência contra a mulher: um estudo comparativo entre o conto e o romande Clara dos Anjos, de Lima Barreto

realizar uma análise crítica sobre o personagem do romance Cassi: “não é um ‘psicopata’, e muito menos ‘cedia a impulsos de doença; fazia tudo muito calculadamente e com todo vagar’. Se era ‘muito estúpido para todo o mais’, na sedução tinha ‘a habilidade consumada dos scrocs’. [...] Cassi era mesmo o vilão de Lima” (SCHWARCZ, 2017, p. 412). Já no romance, a mãe de Cassi, Dona Salustiana, veste mais uma vez o papel de racista sem escrúpulos, enquanto suas filhas e esposo, desta vez, horrorizados com tal desprezo, são coniventes com a situação. Observe o comentário de D. Salustiana quanto ao pedido de Clara dos Anjos para que Cassi casasse com ela “– Casado com gente dessa laia... Qual! Que diria meu avô, Lord Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina – que diria ele, se visse tal vergonha? Qual!” (BARRETO, 2012, p. 292-293). O narrador continua seu discurso, dessa vez, mostrando como o racismo persiste quando o indivíduo é conivente com a situação, com a fala de Seu Azevedo, pai de Cassi: – Minha filha, eu não te posso fazer nada. Não tenho nenhuma espécie de autoridade sobre "ele"... Já o amaldiçoei... Demais, "ele" fugiu e eu já esperava que essa fuga fosse para esconder mais alguma das suas ignóbeis perversidades... Tu, minha filha, te ajoelhaste diante de mim ainda agora. Era eu que devia ajoelhar-me diante de ti, para te pedir perdão por ter dado vida a esse bandido - que é o meu filho... Eu, como pai, não o perdoo; mas peço que Deus me perdoe o crime de ser pai de tão horrível homem... Minha filha, tem dó de mim, deste pobre velho, deste amargurado pai, que há dez anos sofre as ignomínias que meu filho espalha por aí, mais do que ele... Não te posso fazer nada... Perdoa-me, minha filha! Cria teu filho e me procura se... Não acabou a frase. A voz sumiu-se; ele descaiu o corpo sobre a cadeira e os olhos se foram tornando inchados (BARRETO, 2012, p. 292-293).

No conto, após ser conquistada por Júlio Costa e descobrir que está grávida, o medo preenche o coração e os pensamentos de Clara, pois, além da surpresa de uma gestação não planejada, havia a percepção de que seu amado se afastava cada vez mais. Isso porque Júlio Costa já não tinha interesse na moça, afinal, já havia conquistado o que lhe interessava, e, agora, já procurava um novo relacionamento. Outra inferência de tal manifestação é perceptível no romance, embora não haja um relacionamento de fato entre os personagens, uma vez que, após a consumação do ato sexual, Cassi Jones abandona Clara dos Anjos, e o temor pelo futuro continua a assolar a protagonista. Em ambas as obras, como supracitado, a mãe do rapaz evidencia a questão racial, afirmando que não haverá casamento e, muito menos, reconhecimento da criança. Esse comportamento racista e colonialista do homem branco brasileiro é evidenciado na fala de Djamila Ribeiro sobre a desumanização da mulher negra: “[m]ulher negra não é humana, é a quente, a lasciva, a que só serve para sexo e não se apresenta à família. [...] ‘Qual o problema em passar a mão? Elas gostam’ é a ideia reinante” (RIBEIRO, 2018, p. 120). A mãe de Júlio Costa/Cassi Jones sempre ficava ao lado do filho e usava como desculpa para o comportamento leviano do rapaz a ideia de que a mulher se entregou para ele porque quis, e que não foi forçada e nem amordaçada. Além do mais, havia a proteção exagerada dos pais com relação às filhas, deixando-as não só ingênuas, mas desinformadas e vulneráveis, como esclarece Schwarcz: Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Cético, Lima parece mostrar que apenas com educação e bons sentimentos não se ultrapassam preconceitos e amarras criadas pelo sistema escravocrata. Por isso, Clara, desiludida, se pergunta: “Para que seriam aqueles cuidados todos de seus pais? Foram inúteis e contraproducentes, pois evitaram que ela conhecesse bem justamente a sua condição e os limites das suas aspirações sentimentais”. [...] Nos trópicos, a questão racial anulava qualquer idealismo romântico (SCHWARCZ, 2017, p. 411).

É importante lembrar que o “passatempo” de Júlio Costa/Cassi Jones é algo presente em nossa geração, que ainda tem o ideário machista de que o homem deve “experimentar”, enaltecendo o machismo, ou seja, se o homem não “provar”, sua escolha sexual será afetada; bem como a perseguição e condenação das mulheres que não são mais virgens, perdendo seu “valor” perante a sociedade; e racista, no que tange à mulher negra, que muitas vezes não é vista como uma mulher digna de um relacionamento sério, em virtude de sua cor de pele. Ao considerar os referidos aspectos, é importante ressaltar que os valores e princípios são individuais, mas devem ser seguidos sem distinção de cor, raça, sexo ou gênero.

As Claras dos Anjos e um apelo às jovens negras brasileiras

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O autor carioca dedicou vários anos à produção da obra Clara dos Anjos, tendo publicado sua primeira versão, como supracitado, na forma de conto, um costume da época dentre os escritores, para sentir a recepção do público à obra em construção, como diz Schwarcz: O romance Clara dos Anjos foi o livro mais trabalhado e alterado pelo autor. [...] Este foi, em qualquer uma de suas versões, o texto de Lima mais voltado para as especificidades dos subúrbios e também o mais preocupado em delimitar as divisões espaciais e simbólicas que por lá se estabeleciam – com fronteiras criadas internamente a partir da cor. Não biológica, mas a cor como construção social (SCHWARCZ, 2017, p. 411, grifos da autora).

E é como uma forma de alerta para a mulher brasileira negra, em formação em uma sociedade racista e machista, que Lima Barreto expande o universo do conto, transpondo alguns personagens, com suas devidas alterações, e adicionando outros, ainda que sua intenção tenha, também, se alterado um pouco em relação às descrições do ambiente, sendo, no romance e conto, o Rio de Janeiro e seus subúrbios. A densidade psicológica, especialmente de Clara, fica atenuada no romance, ou seja, a Clara do conto, talvez por ser um gênero mais curto, tem um pouco mais a atitude, é mais corajosa, mais complexa que a do romance, como se verá. Há outras diferenças singulares entre as duas obras, pois, para explicar o encontro do casal, Barreto cria novas situações, que dão sustentação e lógica à atração entre eles. Por exemplo, no conto, o casal se conhece no aniversário do pai de Clara, já no romance, o aniversário é da própria personagem, o que deixa mais óbvia a atenção de Cassi Jones à aniversariante. Nota-se, durante a leitura de ambas as histórias, o interesse mútuo que surge quase que de imediato; ele, encanta-a com seus dotes musicais, flores e promessas vazias, repletas de palavras bonitas Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Do racismo à violência contra a mulher: um estudo comparativo entre o conto e o romande Clara dos Anjos, de Lima Barreto

– e Barreto explica o porquê de todo esse encantamento: Clara "crescera cheia de vapores das modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre com os dengues e a melancolia dos descantes e cantarolas" (BARRETO, 2010, p. 250). No romance, observa-se que Clara “foi organizando uma teoria do amor” (BARRETO, 2012, p. 149) pelas histórias contadas nas músicas, sabendo apenas sobre as paixões da vida por meio dessas letras, já que nem a mãe e nem o pai lhe davam espaço para discutir fatores tão importantes para uma adolescente: a primeira paixão, bem como a possível maldade do ser humano, como podemos observar na narrativa: Clara, que sempre a modinha a transfigurava, levando-a a regiões de perpétua felicidade, de amor, de satisfação, de alegria, a ponto de quase ela suspender, quando as ouvia, a vida de relação, ficar num êxtase místico, absorvida totalmente nas palavras sonoras da trova, impressionou-se profundamente com aquele jogo de olhar, com que Cassi comentava os versos da modinha. Ele sofria, por força, senão não punha tanta expressão de mágoa, quando cantava - pensava ela (BARRETO, 2012, p. 136).

Clara era exposta à romantização da vida, deixando-a cega quanto às intenções de Júlio/Cassi e da própria sociedade, fazendo com que a personagem tivesse uma característica de “menina boba”, que “havia de se extravasar em sonhos, em sonhos de amor, de um amor extrarreal, com estranhas reações físicas e psíquicas” (BARRETO, 2012, p. 72). Após analisar os comportamentos e pensamentos de Clara, tanto no conto quanto no romance, observamos uma mudança principalmente nas atitudes tomadas pela jovem. No conto, Clara mostrou-se, mesmo sendo ignorante e ingênua, mais forte em suas tomadas de decisão do que a Clara do romance, que, movida pela paixão e medo, torna-se uma personagem “fraca”, ainda mais silenciada e apagada, apesar de Lima Barreto utilizar dos recursos de linguagem para que possamos ver “o registro de uma realidade” (BRAIT, 1985, p. 17). Barreto passa a “reinventar a realidade, transportando sua visão de mundo ao leitor e fazendo-o, por essa ilusão, reportar-se à chamada realidade” (BRAIT, 1985, p. 19), no romance. Mas, é no conto que Clara dos Anjos tem sua caracterização mais desenvolvida, e não somente do exterior da personagem, mas sua personalidade e pensamentos, pois o autor utilizou de elementos “essenciais para a construção, a função e as interpretações possíveis” (BRAIT, 1985, p. 22) sobre a personagem. Outro ponto importante é que, para Candido (2007), o ser vivo é concretizado e manifestado através do ser fictício, portanto, há a identificação entre o leitor e personagem, o que nos leva a refletir sobre como Lima Barreto conseguiu, de maneira simples e direta, construir uma protagonista que representasse grande parte da população brasileira, tendo essa identificação como uma das qualidades mais altas que a obra pôde e pode oferecer. Já a Clara dos Anjos no romance, não tem descrições tão ricas de pensamentos e força quanto nas que encontramos no conto, como, por exemplo, no momento quando Clara decide, por conta própria, ir conversar com a mãe de Júlio Costa sobre a gravidez e o relacionamento que teve com o homem: “- Mamãe, antes da senhora dizer a papai, deixa-me ir até à casa dele, para falar com a sua mãe? [...] com toda a coragem e com sangue-frio difícil de crer, confessou-lhe tudo, o seu erro e a sua desdita” (BARRETO, 2010, p. 254). O que nos faz refletir sobre como Lima Barreto dedicou-se a focar na construção da personalidade de Clara no conto, enquanto no romance a construção do espaço é mais Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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enriquecida, acabando por tornar-se, também, um personagem. Os subúrbios, nas descrições feitas pelo autor, criam vida, assim como Cassi Jones se torna o personagem principal, aparecendo mais na narrativa, com, praticamente, seu dia a dia sendo narrado e bem explorado. Em contrapartida, Clara passa a ser secundária e com empobrecimento das falas e das características pessoais, como atitude diante dos problemas. Um exemplo claro disso é: quem toma a atitude de ir falar com a mãe de Cassi é Dona Margarida – uma mulher alemã e branca, que era amiga da família e personagem secundária –, tomando a voz que deveria, como fator de construção e desenvolvimento da personagem e da própria história, ser de Clara, e mesmo que a moça tenha se enchido de “raiva, rancor e por aquela humilhação por que passava” (BARRETO, 2012, p. 291), quem rouba a cena é D. Margarida. Devemos citar também o final de ambas as obras, nas quais o autor, estrategicamente, faz uma mudança significativa no discurso: no conto e no romance, as obras “termina[m] com a fala de Clara a sua mãe” (RESENDE, 2012, p. 21), nos quais devemos atentar ao “eu” proferido por Clara, já que esta, entre soluços, declara: “ – Mamãe, eu não sou nada nesta vida” (BARRETO, 2010, p. 255, grifo nosso); no romance, também finalizado pela personagem, contudo, há uma mudança evidente, visto que, agora, a enunciação incorpora um “nós”, abrangendo toda uma população negra, mestiça e pobre, como vemos, ao Clara afirmar,

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– Mamãe! Mamãe! – Que é minha filha? – Nós não somos nada nesta vida (BARRETO, 2012, p. 172, grifo nosso).

Soma-se ainda a isso, a mudança do “eu” para “nós”, expondo a visão amadurecida de Lima Barreto e de sua luta contra o racismo, promovendo Clara como porta voz, dando-lhe a responsabilidade de falar por todas as negras agredidas. Tais denúncias feitas pelo autor nas obras estudadas conversam com o leitor, apontando para a importância do feminismo. Mesmo o autor não concordando com as sufragistas, incomodava-o a condição da mulher, em especial, a negra na sociedade.

A violência contra a mulher: “Não as matem, pelo amor de Deus!” Lima Barreto, mesmo com toda sua controvérsia em relação à mulher e igualdade de gênero, deixa bastante claro em seus escritos, especialmente em suas crônicas, o quanto não era a favor da violência contra a mulher e do "poder" que os homens queriam ter sobre elas, especialmente se estas fossem suas noivas ou esposas, como vemos na crônica Não as matem, escrita em 1915, em que o autor denuncia o que denominamos, em nosso dias, de feminicídio e fala sobre "o domínio, quand même, sobre a mulher." (BARRETO, 1961, p. 18, grifo do autor). Ainda que o escritor não tenha se casado, Barreto expressa bem sua opinião quanto às escolhas e o cuidado que as mulheres deveriam ter ao escolherem seus futuros esposos. O autor, de maneira direta e expressando sua revolta, diz que os homens "se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer" (BARRETO, 1961, p. 18), agindo com violência para mostrar seu poder e sua força sobre a mulher. Para o romancista, Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Do racismo à violência contra a mulher: um estudo comparativo entre o conto e o romande Clara dos Anjos, de Lima Barreto

Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação. O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas, a influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que, só entre selvagens deve ter existido. Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor (BARRETO, 1961, p. 18).

Em Quereis encontrar marido? - Aprendei!..., escrita em 1919, Barreto declara não ser inimigo das mulheres, apesar de concordar que a profissão da mulher é o casamento, pois é desta forma que argumenta contra as mulheres que querem vagas em cargos públicos, manifestando, novamente, seu protesto contra as sufragistas. Lima Barreto é um autor cheio de contradições – essa sendo uma característica positiva, afinal, ele pensava e se contradizia, havendo reflexão e reconstrução do pensamento, em que há afirmações que deixam clara a sua opinião; contudo, há novas e antigas que confundem o leitor quanto aos seus pensamentos. E é desta forma que suas obras se tornam tão ricas e tão interessantes para as análises, pois é através da controvérsia que apreendemos as suas denúncias.

O feminismo no início do séc. XX e cem anos depois As duas primeiras décadas do século XX foram marcadas por um novo modo de encarar a luta pelos direitos da mulher e caracterizadas pelo direito ao voto. Dentre as feministas mais populares estava Bertha Lutz, à qual Lima Barreto proferiu duras palavras, uma vez que era “considerada por ele uma grã-fina rica a viajar pelo mundo às custas do tesouro nacional enquanto as operárias de cabelos brancos continuavam presas aos teares das fábricas” (RESENDE, in: BARRETO, 2012, p. 19). Inspiradas pelos movimentos que aconteciam na Europa e Estados Unidos, essas mulheres lutaram pelo sufrágio feminino e, por isso, ficaram conhecidas como sufragistas. As sufragistas fizeram campanhas junto aos deputados e senadores nas ruas e chegaram a jogar panfletos por avião em pleno Rio de Janeiro, numa ação ousada e precoce. Finalmente conseguiram que Getúlio decretasse o direito ao voto, em 1933, o qual foi ratificado pela Constituição de 34. Com o golpe de 37, as mulheres só começaram a votar em 1945 com a redemocratização do país. Ainda assim votar não significava ser candidata ou ser eleita (BLAY, 2001, p. 91).

Na década de 1960, com o Golpe Militar de 1964, o feminismo tomou um novo rumo, abarcando não apenas as lutas comuns aos outros países, mas, também, “a luta pela redemocratização, a anistia aos presos e presas políticos, além de melhores condições de vida” (BLAY, 1988 apud BLAY, 2001, p. 92). A autora continua e afirma que “[a] luta pela recuperação dos direitos civis marcou o movimento feminista desde 1964, na década de 70 até início da de 80” (idem, p. 92). A história nos lembra ainda que os direitos conquistados desde a década de 60 só foram formalizados na Constituição de 88, quando esta garante no artigo 5º a igualdade entre homens e mulheres como um direito fundamental do país, entretanto, na prática Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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ainda não conquistamos essa liberdade (BRASIL, 1988). E estamos ainda mais distantes quando enxergamos o lugar da mulher negra na sociedade brasileira. Conceição Evaristo reitera a necessidade de falar sobre o feminismo negro, que apesar do caminho árduo, é preciso lutar pelo espaço. Em uma entrevista à Revista Carta Capital, afirma: Aquela imagem de escrava Anastácia (aponta pra ela), eu tenho dito muito que a gente sabe falar pelos orifícios da máscara e às vezes a gente fala com tanta potência que a máscara é estilhaçada. E eu acho que o estilhaçamento é o símbolo nosso, porque a nossa fala força a máscara (EVARISTO, 2017, s/p).

Neste sentido, e levando em consideração as políticas sociais que entraram em vigor no Brasil e que vêm ganhando força desde o início do século XXI, percebe-se um amadurecimento no combate à desigualdade social, mas as igualdades de gêneros ainda não são aceitas em sua totalidade, e a racial tende a ser abafada. Por isso a importância de abrir espaço para a luta do feminismo negro, como informa Djamila Ribeiro:

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Sobre as movimentações em relação às militantes do feminismo negro, Avtar Brah argumenta que o sujeito político do feminismo negro descentra o sujeito unitário e masculinista do discurso eurocêntrico, e também a versão masculinista do “negro” como cor política, ao mesmo tempo em que perturba seriamente qualquer noção de “mulher” como categoria unitária. Isso quer dizer que, embora constituído em torno da problemática da “raça”, o feminismo negro desafia performativamente os limites de sua constituição (RIBEIRO, 2017, s/p).

Hoje, quando falamos em feminismo, falamos na luta por direitos que vão além da política, da não-violência sexual ou de questões salariais. Estamos vivendo e experimentando diariamente a era da desconstrução, na qual os mitos erguidos pelo patriarcalismo branco estão caindo e novas bases sociais são erguidas. “É inegável que no Brasil as questões de gênero conseguiram se desvencilhar do plano da filantropia, da moral e da ética, para adquirir o status político, o que é uma conquista para os direitos de cidadão das mulheres” (ROSA, 2015, p. 125). Sobre o assunto, Reni Eddo-Lodge, compartilha do mesmo pensamento, ao declarar que precisamos ir além, Feminism must demand affordable, decent, secure housing, and a universal basic income. It should demand pay for full-time mothers and free childcare for working mothers. […] Feminism needs to thoroughly recognise that sexuality is fluid […] Feminism needs to demand a world in which racist history is acknowledged and accounted for, in which reparations are distributed, in which race is completely deconstructed. I understand that these demands are utopian and unrealistic. […] Above everything, feminism is a constant work in progress. We are all still learning5 (EDDO-LODGE, 2017, p. 182-183). ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

O feminismo deve exigir moradia acessível, decente e segura e uma renda básica universal. Ele deve exigir pagamento para mães em tempo integral e creches gratuitas para mães que trabalham fora. [...] O feminismo precisa reconhecer que a sexualidade é fluida [...] O feminismo precisa reivindicar um mundo no qual a história racista é reconhecida e explicada, na qual as reparações são distribuídas, nas quais a raça é completamente desconstruída. Eu entendo que essas demandas são utópicas e irreais. […] Acima de tudo, o feminismo é um trabalho constante em andamento. Todos nós ainda estamos aprendendo (Tradução nossa). 5

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Do racismo à violência contra a mulher: um estudo comparativo entre o conto e o romande Clara dos Anjos, de Lima Barreto

Voltando às concepções supracitadas, os valores precisam ser [re]vistos para todos, sem hierarquização étnica, sexo ou gênero, havendo, sempre, respeito pela diversidade de opiniões. A luta contra o machismo e segregacionismo está longe de acabar, mas é preciso estarmos vigilantes e sermos fomentadores de modelo social onde todos terão consciência do passado e, consequentemente, serão cientes de seus papéis em uma sociedade justa.

Considerações finais Lima Barreto é um autor que foi pouco valorizado na época em que mais queria ter voz, passando a tê-la somente após muitos anos da sua morte, bem como do interesse da academia pela sua obra, que continuam a trazê-lo para a luz. Do racismo à violência contra a mulher, o escritor traz assuntos que na época eram escondidos pela indiferença de todos e ignorados pela elite branca e rica. Barreto, de forma direta e crua, revela as facetas da realidade do povo brasileiro e, mesmo com suas controvérsias, expõe fatos que hoje são ainda mais discutidos, como o fato de o homem achar que é dever da mulher permanecer virgem até o casamento ou ser simplesmente “intocada”, para que, assim, a ideia machista de ser o único e primeiro, seja prioridade no relacionamento, enquanto o mesmo já teve relações com outras mulheres. A mulher precisa tomar posse do seu próprio corpo, já que é um indivíduo livre, tal qual os homens. Deste modo, percebe-se que a modernidade e a coragem de Lima Barreto são flagrantes, pois ainda junta a isso a cor de sua pele e a sua condição financeira como motivos de exclusão e invisibilidade na sociedade. Em virtude disso, e levando em consideração que uma das maneiras mais completas de vencer as barreiras sociais é através da educação, em especial, do ensino a partir da leitura crítica de literatura, entendemos que obras como Clara dos Anjos devem ser exploradas no ambiente escolar, conscientizando através da reflexão dos problemas expostos por Lima Barreto, tais como racismo e machismo. A obra, mesmo tendo sido escrita há 100 anos, ainda reflete a dura realidade da mulher negra brasileira, o que evidencia sua importância na educação do Brasil.

Referências BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. BARRETO, Lima. Contos completos. Organização e introdução Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. BARRETO, Lima. Vida Urbana: artigos e crônicas. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000161.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2018. BLAY, Eva Altermann. Um caminho ainda em construção, a igualdade de oportunidades para as mulheres. Revista USP, São Paulo, n. 49, p. 82-97, mar./maio 2001. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/32909/35479>. Acesso em: 13 dez. 2018. BRAIT, Beth. A personagem. 3. ed. São Paulo: Ática, 1985. p. 17-22 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: < http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 12 dez. 2018. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção, 11. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. CARPEGGIANI, Schneider. Para entender contradições de Lima Barreto. Pernambuco: suplemento cultural do Diário Oficial do Estado, s/d. Disponível em: <https://www.suplementopernambuco.com.br/flip-2017/1920-para-entender-contradi% C3%A7%C3%B5es-de-lima-barreto.html>. Acesso em: 14 dez. 2018. COSTA, M. L.; DANTAS, R. Clara dos Anjos e a mulher negra no início do século XX. In: CONGRESSO INTERNACIONAL LÍNGUAS, CULTURAS E LITERATURAS EM DIÁLOGO: IDENTIDADES SILENCIADAS, 2, 2018. Brasília. Anais..., Brasília, IFB, 2018. EDDO-LODGE, Reni. Why I’m no longer talking to white people about race. Londres: Bloomsbury, 2017. EVARISTO, Conceição. Nossa fala estilhaça a máscara do silêncio. Carta Capital. São Paulo: Confiança, 13 de maio de 2017. Disponível em: <https://www.cartacapital.com. br/sociedade/conceicao-evaristo-201cnossa-fala-estilhaca-a-mascara-do-silencio201d>. Acesso em: 08 set. 2018. FORSTER, E.M. Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo, 1974. RESENDE, Beatriz. Em defesa de Clara dos Anjos. In: BARRETO, Lima. Clara dos Anjos [1948]. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. RIBEIRO, Djamila. Feminismo negro: para além de um discurso identitário. Revista Cult. São Paulo: Bregantini, 09 de junho de 2017. Disponível em: < https://revistacult.uol.com.br/ home/feminismo-negro-para-alem-de-um-discurso-identitario/>. Acesso em: 14 dez. 2018. RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018. ROSA, Natália Monique Atanazio. Feminismo e políticas públicas no Brasil Atual. In: VIEIRA, Luiz Vicente. (Coord.) Conquistas coletivas na América Latina: o futuro dos movimentos sociais. Recife: Editora UFPE, 2015, p. 121-146. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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Ideologia e forma na poética drummondiana: Caso do vestido, um caso de machismo1 Ideology and form in the drummondiana poetics: Caso do vestido, a case of chauvinism Adalberon Leocádio SILVA FILHO2 Natália Farias Nascimento COSTA3 Liliane Maria JAMIR E SILVA4 Resumo: O presente trabalho consiste numa análise do poema Caso do Vestido, inserido na obra A rosa do povo (1945), do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, a fim de estudá-lo pelo viés socioideológico observado no tecido poético, com ênfase numa figura feminina submissa frente a uma sociedade predominantemente machista, cujos efeitos ainda se projetam no corpo social contemporâneo. Busca, com esse enfoque, abordar tanto o caráter ideológico quanto o aspecto formal do poema, com embasamento em referencial teórico de Antonio Candido (2000), Janilto Andrade (2013), Salete de Almeida Cara (1989), Angélica Soares (1989), Mikhail Bakhtin (2002), Anatol Rosenfeld (2002), Maria Lúcia Rocha Coutinho (1994), entre outros. Dessa forma, procura comprovar que a obra em análise faz um recorte do contexto societário de maneira verossímil, representando possíveis relações de desigualdade entre homens e mulheres. O trabalho também se apresenta como contribuição à formação de leitores críticos e competentes, capazes de questionar aspectos da realidade e de atuarem como cidadãos conscientes de seu papel transformador no meio social. Palavras-chave: Crítica sociológica. Ideologia e forma literária. Leitura crítica. Machismo. Carlos Drummond de Andrade. Abstract: The present study analyzes the poem Caso do vestido, taken from the work A rosa do povo (1945), by the poet born in Minas Gerais Carlos Drummond de Andrade, in order to study it by the socio-ideological bias observed in the poetic contexture, with emphasis on a female submissive figure in the face of a predominantly male chauvinist society whose effects are still projected in the contemporary social body. It seeks, with this focus, to approach both the ideological character and the formal aspect of the poem, based on a theoretical reference of Antonio Candido (2000), Janilto Andrade (2013), Salete de Almeida Cara (1986), Angelica Soares (1989), Mikhail Bakhtin (2002), Anatol Rosenfeld (2002), Maria Lúcia Rocha Coutinho (1994) among others. In this way, it looks for to proving that the work under analysis makes a cut in the social corporate context in a realistic way, representing possible inequality relations between men and women. The study also presents itself as a contribution to the formation of critical and competent readers, capable of questioning aspects of reality and of acting as conscious citizens of their transforming role in the social environment. Keywords: Sociological criticism. Ideology and literary form. Critical reading. Chauvinism. Carlos Drummond de Andrade.

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Este artigo se originou de uma pesquisa desenvolvida através do Núcleo de Pesquisas e Iniciação Científica da FAFIRE/ NUPIC, em 2017/2018, e publicada nos Anais do 15º Congresso NUPIC, v. 6, n. 1, 2019. 2 Graduado do Curso de Letras | FAFIRE e pesquisador do NUPIC | FAFIRE | E-mail: adalberonf@hotmail.com 3 Graduanda do Curso de Letras | FAFIRE e pesquisadora do NUPIC | FAFIRE | E-mail: nataliafncosta@outlook.com 4 Doutora em Literatura e Cultura | UFPB | professora do Curso de Letras | FAFIRE | e orientadora da pesquisa | E-mail: lilianejamir@uol.com.br 1

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Introdução

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Este artigo busca refletir sobre o contexto social machista expresso nas entrelinhas do poema Caso do vestido, de Carlos Drummond de Andrade, cujo tecido poético representa a postura submissa da mulher perante o homem. Nesse sentido, discute-se a estruturação literária drummondiana, analisando o aspecto ideológico delineado na composição do poema, cujos motivos refletem ocorrências e comportamentos que se perpetuam por meio de certos estigmas sociais. Com o intuito de embasar o aspecto socioideológico recorrente no corpus em estudo, buscamos respaldo em Antonio Candido, por meio da obra Literatura e sociedade (2000), assim como em aspectos do discurso na perspectiva dialógica de Mikhail Bakhtin (2002), apoiando-nos, ainda, em estudos sobre a intergenericidade (fusão de gêneros) que permeia a composição poética em foco, conforme Anatol Rosenfeld (2002), bem como sobre a posição da mulher brasileira nas relações familiares, na ótica de Coutinho (1994), notadamente no capítulo em que disserta sobre a figura feminina na sociedade brasileira. Ademais, para o enfoque formal, debruçamo-nos no aporte teórico de Angélica Soares (1989) e Salete de Almeida Cara (1986), a fim de compreender os perfis dos gêneros literários – lírico, épico e dramático –, tomados em sua dimensão adjetiva, conforme preconiza Rosenfeld (2002). Staiger (1946, apud CARA, 1986) também discute a importância dos gêneros literários através da superação das classificações fechadas e substantivas da herança clássica, as quais sempre buscaram localizar as obras literárias na lírica, na épica e na dramática, como categorias estanques. Assim sendo, os estudiosos defendem que nenhuma composição, em sua essência, seja totalmente lírica, épica ou dramática, pois ela se constrói a partir de vários matizes, caracterizando-se pela sua peculiaridade, tanto em sua forma estética quanto em seu objeto, ofertando ao leitor múltiplas sensações e possibilidades analíticas. Corroboramos a ideia de categorias híbridas, recorrendo a Anatol Rosenfeld, notadamente em O teatro épico (2002), visto que, sem perder de vista as fontes platônicas e aristotélicas, mas sobretudo considerando os significados substantivo5 e adjetivo6 dos gêneros literários, reconhece que “Toda obra literária de certo gênero conterá, além dos traços estilísticos mais adequados ao gênero em questão, também traços estilísticos mais típicos dos outros gêneros” (2002, p. 18, 19). Nessa perspectiva, como reitera o autor, a qual se aplica ao texto em apreço, “Não há poema lírico que não apresente ao menos traços narrativos ligeiros e dificilmente se encontrará uma peça em que não haja alguns momentos épicos e líricos” (ibid, p. 19). O presente artigo se desdobra em sete itens, cuja sistematização procura elucidar aspectos considerados pertinentes que se imiscuem na tessitura da obra, conforme a ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Acepção mais associada à estrutura dos gêneros, como demonstra Rosenfeld, em que, para cada gênero teríamos uma expressão correspondente; por exemplo: ao gênero lírico pertenceria toda obra em que “uma voz central – quase sempre um eu – nele exprimir seu próprio estado de alma” (2002, p. 17). 6 Refere-se essa acepção “a traços estilísticos de que uma obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu gênero (no sentido substantivo) (2002, p. 18). 5

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aplicação de referencial teórico-crítico de estudiosos de considerável relevância no meio acadêmico. Inicialmente, fazemos breves considerações sobre o contexto de produção da obra, visando a uma melhor compreensão do enfoque analítico.

Carlos Drummond de Andrade e o Movimento Modernista Nascido em Minas Gerais (1902) e considerado o primeiro grande poeta mais influente do Modernismo, Carlos Drummond de Andrade exerceu um papel fundamental no painel literário em que a poesia no Brasil se estabeleceu. Isto porque a expressão poética vigente passou a romper os traços acadêmicos, assumindo, portanto, os estilos culturais, linguísticos e ideológicos de um país que, até então, espelhava-se no fazer poético do mundo ocidental. Em face disso, os dois primeiros livros de Drummond, Alguma Poesia (1930) e Brejo das Almas (1934), constituem-se acerca do “conhecimento do fato”, conforme preconizou Antonio Candido, notadamente em Vários escritos, no ensaio Inquietudes na poesia de Drummond (1995, p. 111), o que revelava uma espécie de contenção lírica em relação a temas e motivos consolidados na materialidade de sua produção poética. O período entre 1925 e 1930 foi determinante para a produção da primeira obra de Drummond (Alguma Poesia, 1930), pois, ao reunir quarenta e nove poemas, a estrutura dos mesmos se deu através de teor ora lúdico e irônico, ora pessimista e amargurado, caracterizando, dessa forma, a imagem do autor diante das inquietudes intimistas e mundanas. Posto isso, uma vez que a composição literária rompeu com o modelo estrutural parnasiano-simbolista, tanto a linguagem coloquial quanto a referência ao cotidiano passaram a desvelar uma tendência que se estende até A Rosa do Povo (1945), obra que assume um formato de “poesia política”, como esclarece Alfredo Bosi (2015), cujo amadurecimento vai avançando em obras sucessivas, ostentando, cada vez mais, o envolvimento com o cotidiano e as experiências existenciais e sociais do autor, refletidos na construção poética. De permeio, já entre os anos de 1935 e 1954, Drummond apropriou-se de uma “espécie de desconfiança aguda em relação ao que diz e faz”, como postulou Antonio Candido (1995, p. 112), pois o poeta estava, por sua vez, submerso no mundo que, descrente de sua locação, passou a circunscrever o seu modo de ser; isto é, a poesia drummondiana passou a se configurar como um processo “justificado na medida em que institui um objeto novo, elaborado à custa da desconfiguração, ou mesmo destruição ritual do ser e do mundo, para refazê-los no plano estético” (ibid, 1995, p. 112). Diante disso, a ótica de desconfiguração se dá mediante as inquietudes sentidas pelo poeta, o que reflete, então, um processo duvidoso quanto à sua produção literária, encaminhando-lhe a um ato criador dividido entre as perplexidades em relação ao mundo e ao ser, organizadas, respectivamente, a partir de Sentimento do mundo (1940) e José (1942), indicados como títulos que garantem a maturação do autor. De um lado, a priori, nos anos 1940, há a preocupação com os problemas sociais, uma vez que o poeta testemunha os conflitos armados tanto externos como o apogeu do nazismo, quanto internos, como o advento do Estado Novo, presidido por Getúlio Vargas. Ambos os acontecimentos, portanto, somados aos vividos na infância de Drummond, refletem no aporte literário, compondo sua obra de cunho social. Posteriormente, as objeções pessoais, marcadas em José (1942), garantem o amargor e o pessimismo, comprados Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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pelo poeta como uma taxa de remorso e incerteza que o leva a se evadir, a se questionar, a fugir de si mesmo. Porém, os clímaces desses reflexos estendem-se mais precisamente em A rosa do povo, em que, ao fundir o panorama social com aspectos pessoais, a culminância lírica se estabelece num processo de explosão, como defende Candido: O bloco central da obra de Drummond é, pois, regido por inquietudes poéticas que provêm umas das outras, cruzam-se e, parecendo derivar de um egotismo profundo, têm como consequência uma espécie de exposição mitológica da personalidade (1995, p. 112).

Candido discorre sobre uma postura problemática no que concerne à identidade ou identificação constantes nas obras do poeta, visto que o peso da inquietude se arquiteta a partir da oscilação entre o eu, o mundo e a arte. Nesse viés, a força da poesia drummondiana detém uma lírica natural, explicada através da intensidade dos fatos, hábitos, amores e família, e como o alveja, servindo como inspiração profunda. Logo, embora o poeta anseie mostrar uma face reticente quanto ao seu comportamento, o oposto se verifica pelo toque da pessoalidade, da confissão e da experiência vivida. Para tanto, o “eu todo retorcido”, assinado por “um anjo torto”, com bloqueio ao interagir com o mundo real, mantém-se “torto no seu canto”, “torcendo-se calado”, com “pensamentos curvos” e seu “desejo torto”, capaz de amar de “maneira torcida”. Drummond inicia-se intenso diante de si e, desta forma, prosseguiu amadurecendo sua postura em obras posteriores.

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Tendências contemporâneas: o Modernismo e o Brasil depois de 1930 No período de 1922, a Semana da Arte Moderna marcou a periodização literária, uma vez que o movimento declararia a fé na arte moderna. Porém, embora o ano de 1930 tenha evocado menos significado literário, devido à Revolução de Outubro, o movimento em que nasceram as contradições da República Velha buscava superar esse período, e, como enfatiza Bosi, conseguiu superar, pois uma corrente de esperança emergia em todo o país, lançando a literatura a um estado adulto e moderno. No entanto, ainda que tenha postulado sobre a tendência contemporânea posterior aos anos 1930, o crítico não desmerece o papel da Semana e seu período fértil, uma vez que “há um estilo de pensar e de escrever anterior e um outro posterior a Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira” (ibid, 2015, p. 409), baluartes do período inicial do Modernismo. Outrossim, a poesia, a crítica e a ficção se renovaram no Modernismo, e Mário de Andrade, em seu texto O Movimento Modernista, escrito em 1942, percebeu o que fora deixado: a pesquisa estética, a atualização da inteligência artística e a estabilização de uma consciência criadora nacional. Nesse prisma, contudo, ele limita criticamente a postura da sociedade inserida no Movimento, afirmando, conforme Bosi descreve: Se tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude interessada diante da vida contemporânea. (...) Viramos abstencionistas abstêmios e transcendentes. (...). Nós éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do prazer individual represa as forças dos homens sempre que uma idade morre (2015, p. 409).

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Consequentemente, entre novas e velhas objeções, esteve a cargo dos escritores que amadureceram depois de 1930, como Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo e Carlos Drummond de Andrade, o ofício de fazer o Brasil dar um salto qualitativo na consciência artística, sendo o Modernismo tal qual uma porta aberta para esses autores. Dessa maneira, o Estado Novo (1937-1945) e a II Guerra Mundial passaram a ser momentos que colaboraram com a grande edificação dos escritores, havendo obras-primas como A rosa do povo (1945), de Carlos Drummond, Poesia e liberdade (1947), de Murilo Mendes, e as Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos, intelectuais que, influenciados tanto pela guerra local como pela mundial, tentaram compreender suas razões, transformando indagações e inquietudes em matéria poética. Por isso, as novas configurações históricas exigiram novas experiências artísticas. Esse breve recorte histórico permite-nos identificar a estreita relação texto-contexto como força propulsora da criação artística, como defende Antonio Candido em Literatura e sociedade (2000), visto que, para um composto literário ser estruturado, é necessária a fusão entre texto e contexto, ou seja, é preciso uma associação entre os fatos sociais ocorridos à época dos escritos literários, dando, a esses, um sentido de expressão relevante. A partir dessa comunhão, a obra literária revela, de maneira peculiar, o contexto social no qual o texto foi produzido, sendo possível, através dele, estudar os valores e os costumes sociais vigentes à época de sua produção. Numa outra perspectiva, e admitindo uma convergência entre fatores extrínsecos e intrínsecos que se interligam num objeto estético, Janilto Andrade (2013) considera necessário partir de duas óticas distintas: a do significado-enunciação e do significante-enunciado, ambas definidas em À procura do poético (2013). A primeira (extrínseca) privilegia a condensação da relação do autor, leitor e texto, com o objetivo de analisar a ideologia do composto literário, beneficiando aspectos sociológicos, culturais e psicológicos; a segunda (intrínseca), do significado-enunciado, prioriza as questões linguísticas do poema, com a finalidade de atingir aspectos formais/estilísticos delineados na composição literária. Considerar-se-á, ainda, na análise do poema em pauta, a dimensão adjetiva de gêneros literários, admitindo-se que tais aspectos – lírico, épico e dramático – encontram-se imbricados na tessitura da obra como atributos qualitativos, conforme preceituam autores como Staiger (1997), Rosenfeld (2002), entre outros. A partir dessas proposições, prosseguimos no estudo do poema Caso do vestido, buscando, nesse contorno metodológico, apreender os sentidos textuais e chegar à coerência analítica.

Nas linhas e entrelinhas: uma opção metodológica Para analisar um poema, como preconiza Janilto Andrade, é necessário partir de duas óticas distintas: a do significado-enunciação e do significante-enunciado, perspectivas definidas por ele em À procura do poético (2013). A primeira privilegia a condensação da relação do autor, leitor e texto, com o objetivo de analisar a ideologia do composto literário, beneficiando os aspectos sociológicos, culturais e psicológicos. A segunda, do significado-enunciado, prioriza as questões linguísticas do poema, com a finalidade de atingir as características estilísticas literárias da época em que a obra foi escrita e seu contexto de produção. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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De antemão, convém afirmar que o mencionado poema drummondiano, através dos 150 versos heptassilábicos, organizados em 75 dísticos, expressa a condição submissa de uma mulher enquanto esposa e mãe, diante de um contexto machista. O poema prossegue como uma espécie de enredo, iniciado pelas indagações (das filhas coadjuvantes à mãe protagonista) em relação a um vestido fincado na parede, motivo em torno do qual as vozes emergem em profusão dialógica, perpassando todo o poema, criando uma espécie de tensão, conduzindo o leitor a participar ativamente do quadro narrativo e suas implicações sociais e existenciais. Observemos, logo nos dísticos 01, 02, 03 e 04, a seguir, alguns aspectos temáticos e formais em consonância com as duas dimensões apregoadas por Andrade: Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego? Minhas filhas, é o vestido de uma dona que passou. Passou quando, nossa mãe? Era nossa conhecida? Minhas filhas, boca presa. Vosso pai evém chegando.

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Já no início do texto, nota-se a cena de uma mulher sendo indagada pelas filhas a respeito do vestido pendurado num prego. No diálogo, mais precisamente da segunda fala da mãe para as interlocutoras, ocorre uma interrupção no discurso: a mãe teme que o pai de suas filhas, seu cônjuge, chegue ao recinto e, possivelmente, por alguma razão ainda não conhecida, não aprove o assunto da conversa. Essa interrupção, contudo, repercute ao longo poema, reiterando a ideia de temor e submissão expressa na voz da mãe. Vejamos ainda os dísticos 22 e 72, respectivamente: Minhas filhas, vosso pai chega ao pátio. Disfarcemos, Minhas filhas, eis que ouço vosso pai subindo a escada.

No desfecho (dístico 72), não se constata se de fato o pai estaria se aproximando do recinto em que as mulheres se encontram. Porém, para além disso, esses excertos nos revelam uma colocação hierárquica dos envolvidos no contexto poético. Por essa mostra, vê-se ser notória a condição submissa da mulher, sobretudo da mãe em relação ao marido/ pai, colocado no topo da cadeia ordenatória. Esse, dentre outros aspectos ideológicos delineados nos versos do poema, será analisado nos demais tópicos que compõem este artigo.

A heterogeneidade literária e o fato social: um mundo gauche Sabe-se que toda produção literária não passa ilesa ao contexto social em que foi concebida; e A rosa do povo, em que se insere o poema em foco, sendo o quarto livro publicado por Drummond, é considerado o mais politizado de sua obra literária. A produção dos Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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poemas, que mais tarde viriam a compor o livro, teve início em 1943, finalizando com a sua publicação em 1945, agrupando, por sua vez, ideias sociais de obras pregressas do autor. Destarte, A rosa do povo revela a percepção do eu lírico em relação ao mundo, ao questionamento da esfera social, mas tangendo, de forma simultânea e singular, as questões existenciais. A palavra rosa, designada no título, pode representar a consumação de uma utopia a emergir face ao caos social, como bem expressa o poema A Flor e a Náusea, nos versos: “Sua cor não se percebe/ Suas pétalas não se abrem/ Seu nome não está nos livros/ É feia. Mas é realmente uma flor” (2006, p. 36). Em meio à pouca esperança e ao excesso de frustração, a realidade é vista por um eu-poético que se quer gauche7, peculiaridade que o eu lírico drummondiano atribui a si mesmo, como se apresenta no Poema de Sete Faces, dedicado ao também poeta amigo Mário de Andrade, que abre seu primeiro livro intitulado Alguma poesia: Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.8

Nessa perspectiva, a obra apresenta uma posição político-ideológica de um sujeito que se encontra em condição de enfrentamento do mundo e, diante disso, também desafiado por ele. Por outro lado, longe de paradigmas previamente traçados, a leitura de uma obra, como a de Drummond, enseja sempre uma abertura, um novo olhar aguçado pela curiosidade do leitor frente às expectativas de leitura, como presumimos na seção a seguir.

Intergenericidade na poética drummondiana Apoiamo-nos hegemonicamente no significado adjetivo de gêneros observado na estrutura poética, cabendo analisá-la na confluência dos três gêneros condensados num mesmo objeto estético, num processo híbrido de composição, como defende Rosenfeld (2002), entre outros. Em tal aspecto, recorrente na produção artística e destacado pelos críticos de arte literária – considerando-se que as obras literárias contêm traços estilísticos mais adequados ao gênero de sua essência, mas, além disso, constroem-se de outros –, recai nossa abordagem analítica, o que ora identificamos como intergenericidade na poética drummondiana. No poema Caso do Vestido, percebe-se a presença dos três gêneros literários, sendo ele de essência lírica, posto estar inserido numa Antologia Poética (ANDRADE, 2006), conforme registrado na ficha catalográfica da obra. Contudo, à leitura atenta do poema, logo são percebidos elementos típicos do gênero épico ou narrativo: temos uma instância narradora responsável pela contextualização de fatos (ou de uma história); um enredo no qual se identificam espaço e tempo; e personagens que interagem no decurso da ação dramática, protagonizados por uma mãe/mulher subserviente, da qual emana a voz narrativa recorrente: ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 7 8

Palavra francesa que significa “estranho”, “desajeitado”, “torto”. ANDRADE, 2006, p. 21. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Minhas filhas, escutai Palavras de minha boca. (Dístico 9)

É a partir dessa voz que o leitor viverá uma espécie de drama compartilhado com outras vozes emergentes no discurso, sejam das “filhas” coadjuvantes da protagonista, seja da “dona soberba”, “a dona de longe”, “aquela mulher do demo” que se interpõe no papel de antagonista. Além dessas personagens que falam por si, o contexto poético vai se mostrando paulatinamente, revelando-se como um espaço interno e restrito, onde se destaca um vestido pendurado em um prego. Mostra-se, ainda, como um recinto fechado, cujo acesso, proveniente de um “pátio”, se daria pelos “degraus” da “escada”, de onde o pai, elemento causador da querela, poderia se interpor, como sempre, como figura dominante, temida e castradora. Já ao tempo vivido – o presente da cena inicial – se incorpora um passado recordado na tensão dos diálogos entre mãe e filhas. Nessa remissão, o abandono do pai, o aparecimento da dona de longe, o sacrifício e as perdas da mãe, tudo isso nos é mostrado como marcas indeléveis adquiridas no decurso de uma vida de espera e renúncia, um componente narrativo que, assim como o ambiente acima descrito, sinaliza matizes de epicidade no poema em apreço. O fator tempo, próprio da construção épica, tem ainda lugar em alguns trechos/motivos do poema, como visto no dístico 14,

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me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe,

reiterando-se, adiante, nos dísticos 38 a 42: [...] fiquei de cabeça branca, perdi meus dentes, meus olhos, costurei, lavei, fiz doce, minhas mãos se escalavraram, meus anéis se dispersaram, minha corrente de ouro pagou conta de farmácia. Vosso pai sumiu no mundo.

É perceptível, nesses versos, que o decurso de tempo deixa marcas no corpo da mulher – “de cabeça branca”, “dentes”, “olhos” e “mãos” desgastados –, situação que se agravara com outras perdas, como os “anéis” e a “corrente de ouro” empenhados para a manutenção da família. Além desses aspectos que conferem epicidade à composição drummondiana, outros atributos, de ordem dramática, podem ser observados, notadamente no que se reporta à Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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tensão provocada pelo diálogo instaurado pela alternância de vozes, não obstante a hegemonia da voz da mãe protagonista: Nossa mãe, esse vestido tanta renda, esse segredo! Minhas filhas, escutai palavras de minha boca. Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se.

Nos dísticos 8, 9 e 10, acima, logo após os primeiros versos que abrem o poema, o objeto-motivo (vestido), que desperta a curiosidade das filhas coadjuvantes, dá ensejo a um tenso diálogo, em que mãe e filhas se revezam, gerando momentos de forte dramaticidade em face das emoções despertadas na protagonista, ante traumas e humilhações a que se submetera, como se vê no dístico 21: Nossa mãe, por que chorais? Nosso lenço vos cedemos.

Humilhada pelo ostensivo autoritarismo do marido, a mulher, abandonada como fora, chega ao cúmulo de ser impelida a rogar à dona do vestido que esta voltasse à convivência de seu marido, depois de a mesma (nomeada como “dona ruim”) ter dito que já não mais com ele se satisfazia. O argumento dialogado, agora entre a protagonista humilhada e o deboche da outra, pode ser observado nos dísticos de 24 a 28: Minhas filhas, procurei aquela mulher do demo. E lhe roguei que aplacasse de meu marido a vontade. Eu não amo teu marido, me falou ela se rindo. Mas posso ficar com ele se a senhora fizer gosto, só pra lhe satisfazer, não por mim, não quero homem.

Nota-se, no dístico 13, referido a seguir, que o marido adota uma postura agressiva e rancorosa direcionada à esposa ante a rejeição inicial da “dona ruim”, chegando, a esposa, a sofrer agressão física, além de humilhação, tanto no âmbito privado quanto de forma ostensiva (momento em que foi convencida, pelo marido, a ir ter com a dona, para pedir a sua aceitação, em face de seu desejo): chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu,

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Frente à dilatação das emoções, disseminada no diálogo dos personagens, o poema traz um momento de crispação da tensão provocada. O marido deixa a família e passa a viver com a mulher de fora. Nesse ínterim temporal, do abandono do lar ao regresso, suaviza-se o enredo, vez que a figura opressora estaria ausente da trama. Como se observa, são evidentes as nuances dramáticas que se incorporam à textualidade do poema, visto que os diálogos (ou monólogos) vão tencionando a história. Esse ponto chega a ser passível de uma encenação teatral, ou de uma leitura performática, cujo efeito poderá proporcionar uma nítida percepção do revezamento e da autenticidade de vozes representativas das figuras que transitam na “cena poética”. Em alguns momentos, o texto chega a reverberar uma intensa dramaticidade, a exemplo dos versos em que a personagem central narra a história do vestido (dísticos 9 a 15, entre outros): Minhas filhas, escutai palavras de minha boca. Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se. E ficou tão transtornado, se perdeu tanto de nós, se afastou de toda vida, se fechou, se devorou,

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chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu, me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe, mas a dona não ligou. Em vão o pai implorou.

Nos versos acima, constata-se, como a mulher narra, de forma contrita, o motivo de sua aflição ao ser preterida. E, ainda mais, o vexame de ser trocada por uma outra que se mostra indiferente ante o interesse daquele que abandonara, e que, de modo subserviente, a ela tudo ofertava: mas a dona não ligou. Em vão o pai implorou. Dava apólice, fazenda, dava carro, dava ouro, beberia seu sobejo, lamberia seu sapato. Mas a dona nem ligou. [...]

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Essa carga dramática do discurso (vista nos versos 15 a 18 acima), não obstante conferir-lhe o aspecto da hibridização a que nos referimos anteriormente, vem confirmar, por seu turno, o dialogismo bakhtiniano, também aqui desenhado no discurso poético. Esse fato fica patente através da interlocução estabelecida em vários trechos. Note-se que, além das breves falas das filhas – assinaladas nos dísticos 1, 5, 8, entre outros –, a voz da “dona de longe”, a dona do vestido e pretensa dona do afamado marido, também eclode quando emerge, indiferente, ante a súplica da esposa abandonada, cuidando esta para que ceda aos instintos do macho ferido. Observemos tal contraponto nos dísticos 24 a 28, a seguir: Minhas filhas, procurei aquela mulher do demo. E lhe roguei que aplacasse de meu marido a vontade.

Na sequência, a outra replica desdenhosamente a oferta da mulher, Eu não amo teu marido, me falou ela se rindo. Mas posso ficar com ele se a senhora fizer gosto, só pra lhe satisfazer, não por mim, não quero homem.

Momento em que a enunciação faz retomar o seu discurso narrativo, destacando as posturas abominável do homem e despudorada da “dona ruim”, respectivamente, nos dísticos 29 e 30: Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam. Olhei para a dona ruim, os olhos dela gozavam.

De resto, o discurso dialógico, no poema, também abre canais para o sentido polifônico, que tão bem observara Bakhtin, na construção romanesca, visto que, é nas falas de entidades representativas dos vários estratos sociais, que a textualidade deixa emergir, com autenticidade, os diversos jargões e os infinitos desdobramentos linguísticos provenientes de seu status. Essa polifonia/multidiscursividade pode ser observada em vários trechos do poema, a exemplo do que se percebe no dístico 4, a seguir, em que aparecem expressões como “boca presa” e “evém”, próprias de determinada variante linguística, como também ocorre nos dísticos 60 a 63, em que a expressão “quede” (equivalente a “cadê? ”), resultante da forma sincopada da expressão interrogativa “que é de? ”, “onde está?”, denota a inserção de registros populares para além do padrão considerado culto. Vejamos os trechos com grifo nosso:

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Minhas filhas, boca presa. Vosso pai evém chegando. Olhei para a cara dela, quede os olhos cintilantes? quede graça de sorriso, quede colo de camélia? quede aquela cinturinha delgada como jeitosa? quede pezinhos calçados com sandálias de cetim?

Por fim, e como não poderia deixar de ser, reconhecemos o aspecto lírico no poema, que, via de regra, se consolida através da expressão de sentimentos e emoções de um eu-poético e sua escolha vocabular (CARA, 1989), em uma linguagem predominantemente realçada em sua função expressiva, fazendo uso de pronomes e verbos na 1ª pessoa do singular, além de explorar a polissemia vocabular, a sonoridade e o ritmo assegurado na simetria dos versos heptassilábicos. No poema em estudo, o entrelaçamento dessas características corrobora o teor poético no texto drummondiano.

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O discurso de outrem na poesia: o dialogismo poético Para Bakhtin, “A orientação dialógica do discurso para os discursos de outrem, (em todos os graus e de diversas maneiras), criou novas e substanciais possibilidades literárias para o discurso” (2002, p. 85). Desse modo, observar o enunciado em uma perspectiva dialógica, envolvendo uma linhagem social e linguística como elementos presentes no texto, compõe a lógica bakhtiniana no que diz respeito à natureza do romance, pois, ao se atentar ao viés plurilinguístico de um discurso, no que tange à pessoa que fala, o olhar analítico vai além de uma observação superficial e monológica, uma perspectiva que nos parece próxima ao que nos orientamos em Janilto Andrade (2013) como opção metodológica. Quando de sua ênfase à “estilística do gênero”, a proposta do filósofo e crítico russo seria eliminar a ruptura entre o “formalismo” e o “ideologismo” abstratos no estudo do discurso literário. A forma e o conteúdo estão unidos no discurso, entendido como um fenômeno social – social em todas as esferas da sua existência e em todos os seus momentos – desde a imagem sonora até os estratos semânticos mais abstratos (BAKTHIN, 2002, p. 71).

Embora esse pensamento usualmente se aplique às análises da prosa romanesca, tendo em vista que “a dialogicidade interna torna-se um dos aspectos essenciais do estilo prosaico” (p. 93), numa perspectiva mais aberta (ou por analogia), tenciona-se, aqui, transpô-la ao estudo do texto drummondiano, levando-se, ainda, em conta o que o estudioso Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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russo pondera ao afirmar que “O fenômeno da dialogicidade interna[....], em maior ou menor grau, encontra-se manifesto em todas as esferas do discurso vivo” (p. 92), podendo, assim, ao que nos parece, estar presente em textos poéticos que vão além daqueles gêneros poéticos em sentido restrito, nos quais, segundo o autor, “a dialogização natural do discurso não é utilizada literalmente, [visto que] o discurso se satisfaz a si mesmo, e não admite enunciações de outrem fora de seus limites” (p. 93). Concebendo-se a hibridização de aspectos épicos/líricos/dramáticos em uma mesma tessitura literária, vemos ser possível a inserção da carga ideológica no discurso através do “diálogo vivo” que a teoria bakhtiniana reconhece recorrente na prosa romanesca, desde que a sua estrutura apresente elementos perceptíveis de tal apreciação, considerada como objeto artístico liberto de uma visão clicherizada. Nessa perspectiva, no discurso poético, como o que ora abordamos, insere-se o discurso alheio, ou a ideia plurilíngue como procedimentos composicionais da obra. Como mencionado, quando nos reportamos à nuance dramática do texto, o que se percebe, então, no poema Caso do vestido, é a presença de uma tonalidade dialógica impulsionada a partir de questionamentos de um motivo (o vestido), elemento simbólico que conduz o discurso poético a um clímax, constituindo aquilo que Bakhtin denomina discurso alheio, o qual se dissemina na linguagem de maneira plurilíngue. Ao transpor a teoria de Bakhtin para este estudo, espera-se que estejamos abrindo possibilidades analíticas e acatando a liberdade criadora do artista, para que o texto literário se manifeste de maneira peculiar, distanciando-se, assim, de modelos pré-concebidos. Como observado, a diversidade de vozes que se interpelam em Caso do vestido, comprova que o poema em foco se mune de elementos discursivos reveladores de um discurso dialógico, de uma vigorosa polifonia identificadora dos diversos estratos sociais.

A poesia como recorte da realidade ... é no texto que o poeta real transforma-se em sujeito lírico.9

Como visto no início deste trabalho, o Modernismo, mais precisamente a Semana de 1922, surgiu para caracterizar um novo recorte literário, no qual empreendeu-se a superação dos moldes parnasianos de fazer poesia, destacando-se, por sua vez, a marca coloquial de um país cuja língua passa a se constituir também pelos múltiplos empréstimos linguísticos, buscando-se uma autonomia em relação ao modelo europeu até então imperante. Dessa forma, o recorte da realidade, retratado na poesia moderna, atingiu tanto a forma de estruturação do enunciado, quanto as suas enunciações, o que se percebe nitidamente no corpus dessa pesquisa. Por essa perspectiva, Candido (2000) teoriza que o externo à obra se faz interno para melhor nortear o processo interpretativo do leitor, afirmando que o contexto, ao se fundir no texto, esclarece mais adequadamente a realidade social. Isso, portanto, alude ao pensamento de Cara (1989), no que tange a seu estudo intitulado A poesia lírica, uma vez ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 9

CARA, 1986, p. 48.

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que a poesia passa a desvelar a projeção do mundo no qual o poeta está inserido, partindo de uma tradução parcial da realidade, o que para a citada autora se consolida através das escolhas da linguagem. Em outra perspectiva, o posicionamento de Lucila Nogueira (1997), em relação à poética drummondiana, constitui uma contribuição ao que buscamos enfatizar, visto que considera imprescindível observar o tempo e o meio social em que um determinado texto foi produzido. Para a autora, é de suma importância perceber como o cenário contextual se insere no composto literário, bem como as preocupações sociais do poeta se concretizam na tessitura poética, e ainda quais os efeitos receptivos dessa construção, o que não significa reduzir o vasto painel da literatura a uma percepção estritamente ideológica, na medida em que uma obra literária, via de regra, tende a transcender o dado factual. Sobre Carlos Drummond, a autora pondera: A Rosa do Povo é um livro dotado de exemplaridade, no que concerne à convergência estilístico-ideológica do poeta mineiro. O poeta optou pelo mergulho na realidade, fazendo de seu canto a ponte incessante entre o homem e o mundo. O verso livre, entre outros elementos de poética, vai compreender exatamente a necessidade de representação na escrita das transformações sociais por que passava a civilização humana no período entre as duas guerras, na qual Drummond começou a publicar seus livros Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), José (1942) até A Rosa do Povo, em 1945 (NOGUEIRA, 1997, p. 36).

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No poema em epígrafe, em várias passagens, o leitor perceberá, entre outros motivos, a configuração de aspectos socioideológicos peculiares ao poder hierárquico preservados na estrutura social-familiar da época, conforme descreve Coutinho (1994), no que tange às relações familiares brasileiras; ou seja, o homem que comanda o sistema privado tem como submissa direta a esposa e mãe, que, por sua vez, como se observa no texto poemático, transfere a posição de subserviência às filhas. Nessa perspectiva, podemos objetivar que os fatores externos à obra (fatos sociais) exercem uma função fundamental na estrutura poemática e ideológica do texto, visto que o tecido literário o desvela de modo liminar e/ou subliminar. Outrossim, é na forma, na concretude poética, que a leitura faz sentido e ganha multidimensões e propensões universais.

Considerações finais O poema estudado se encerra com a contemplação da mulher diante do homem que voltara, afirmando para as filhas interlocutoras, que ouviam a história, que tudo não passou de um sonho, afinal de contas, o marido estava de volta. É interessante perceber a escolha da palavra “sonho” ao final do poema, pois, além de sugerir abrandamento da situação posta, leva-nos a acreditar que o perdão da esposa soa como um anúncio de que a sombra do machismo ainda se avulta como uma herança maldita para todas as mulheres. E que serão necessários muitos outros poemas dessa estirpe para que o efeito desse pesadelo não retumbe em nossas vidas. Antes de concluir, observemos ainda os dísticos de 71 a 75: Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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era sempre o mesmo homem, comia meio de lado e nem estava mais velho. O barulho da comida na boca, me acalentava, me dava uma grande paz, um sentimento esquisito de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada. Minhas filhas, eis que ouço vosso pai subindo a escada.

No contexto poemático, apesar de tudo, para a protagonista tudo fora sonho, não um pesadelo, fato que retira do homem qualquer possibilidade de culpa pelo sofrimento das mulheres envolvidas. Eis que, na poética drummondiana, páginas de um passado histórico nos são ofertadas em tons épico-lírico-dramáticos, atingindo-nos com maestria e atualidade. Diante de fatores históricos e sociais, nos quais Drummond esteve inserido, a publicação do livro A Rosa do povo e o corpus deste trabalho muito revelam sobre um homem-escritor, inquieto frente às problemáticas seculares, seja local, seja mundial que marcaram a sua época. Por isso, como afirma Cara (1989), mesmo que o poema lírico moderno seja uma projeção do mundo real em que o poeta esteja inserido, é necessário atribuir relevância à história em que a condição do enunciado possa fazer sentido. Nessa instância, o poema Caso do vestido reflete um contexto pragmático baseado em comportamentos patriarcais, por vezes velados, porém representados por Drummond de modo expressivo e contundente. Sob essa ótica, é a escolha da linguagem que caracteriza o texto como lírico, e não um sujeito confesso como um “eu” que se desvela em sua subjetividade, visto que a significação parte, similarmente, do leitor participativo que se envolve com o enunciado de modo intenso. Nas palavras de Salete Almeida Cara, O sujeito lírico sempre existe através das escolhas de linguagem que o poema apresenta, mas na poesia moderna fica mais evidente que o sujeito lírico é o responsável por esses “atos de denominação”: não pode ser confundido com o poeta em carne e osso porque sua existência brota da melodia, do canto, da sintaxe, do ritmo: o sujeito lírico é o próprio texto, e é no texto que o poeta real se transforma em sujeito lírico (CARA, 1989, p. 48).

Como percebido, Caso do vestido apresenta uma narrativa baseada na tensão da protagonista, uma mulher condicionada ao comportamento silenciador devido a questões morais, que se apresenta como mãe e esposa, e que se desvela a partir das indagações das filhas, cujas vozes se misturam, formando uma espécie de cena teatral, revelando o que há de dialógico e polissêmico no texto poético.

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Com esse enfoque, constatamos, ainda, que o poeta tramitou por um processo gradativo de maturação, revelando suas inquietudes através de formatos e percepções que se diversificam em toda a sua trajetória, e que a obra da qual extraímos nosso objeto de pesquisa sinaliza, com precisão, o seu discernimento diante do pessoal e do coletivo. Diante do exposto, consideramos que o estudo foi relevante, uma vez que tomou como objeto um texto de tema recorrente na realidade social, trazendo à tona uma discussão ainda necessária para a superação de estigmas. É importante asseverar, também, que a literatura desvela contextos e fatos históricos na própria tessitura, mostrando-se, assim, como forma de sensibilização e humanização, bem como forma de denúncia social.

Referências

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ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2006. ANDRADE, Janilto. À procura do poético. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2013. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: HUCITEC, 2002. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Brasil: Cultrix, 2015. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000. CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: ___. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1995. CARA, Salete Almeida. A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1989. COUTINHO, Maria Lúcia Rocha. A mulher no Brasil. In: ___. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. Cap. 4: p. 66-123. NOGUEIRA, Lucila. Ideologia e forma literária em Carlos Drummond de Andrade. Recife: Cia Pacífica, 1997. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. (Col. Debates) SOARES, Angélica. Gêneros literários. 6. ed. São Paulo: Ática, 1989. STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

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Anexo: CASO DO VESTIDO, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE10 1. Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego?

19. me pediu que lhe pedisse, a essa dona tão perversa,

2. Minhas filhas, é o vestido de uma dona que passou.

20. que tivesse paciência e fosse dormir com ele...

3. Passou quando, nossa mãe? Era nossa conhecida?

21. Nossa mãe, por que chorais? Nosso lenço vos cedemos.

4. Minhas filhas, boca presa. Vosso pai evém chegando.

22. Minhas filhas, vosso pai chega ao pátio. Disfarcemos.

5. Nossa mãe, dizei depressa que vestido é esse vestido.

23. Nossa mãe, não escutamos pisar de pé no degrau.

6. Minhas filhas, mas o corpo ficou frio e não o veste.

24. Minhas filhas, procurei aquela mulher do demo.

7. O vestido, nesse prego, está morto, sossegado.

25. E lhe roguei que aplacasse de meu marido a vontade.

8. Nossa mãe, esse vestido tanta renda, esse segredo!

26. Eu não amo teu marido, me falou ela se rindo.

9. Minhas filhas, escutai palavras de minha boca.

27. Mas posso ficar com ele se a senhora fizer gosto,

10. Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se.

28. só pra lhe satisfazer, não por mim, não quero homem.

11. E ficou tão transtornado, se perdeu tanto de nós,

29. Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam.

12. se afastou de toda vida, se fechou, se devorou,

30. Olhei para a dona ruim, os olhos dela gozavam.

13. chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu,

31. O seu vestido de renda, de colo mui devassado,

14. me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe,

32. mais mostrava que escondia as partes da pecadora.

15. mas a dona não ligou. Em vão o pai implorou.

33. Eu fiz meu pelo-sinal, me curvei... disse que sim.

16. Dava apólice, fazenda, dava carro, dava ouro,

34. Sai pensando na morte, mas a morte não chegava.

17. beberia seu sobejo, lamberia seu sapato.

35. Andei pelas cinco ruas, passei ponte, passei rio,

18. Mas a dona nem ligou. Então vosso pai, irado,

36. visitei vossos parentes, não comia, não falava,

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 206-213. A numeração dos dísticos é nossa, com o intuito didático de melhor situar o leitor nos excertos destacados na análise. 10

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37. tive uma febre terçã, mas a morte não chegava.

57. Aqui trago minha roupa que recorda meu malfeito

38. Fiquei fora de perigo, fiquei de cabeça branca,

58. de ofender dona casada pisando no seu orgulho.

39. perdi meus dentes, meus olhos, costurei, lavei, fiz doce,

59. Recebei esse vestido e me dai vosso perdão.

40. minhas mãos se escalavraram, meus anéis se dispersaram,

60. Olhei para a cara dela, quede os olhos cintilantes?

41. minha corrente de ouro pagou conta de farmácia.

61. quede graça de sorriso, quede colo de camélia?

42. Vosso pais sumiu no mundo. O mundo é grande e pequeno.

62. quede aquela cinturinha delgada como jeitosa?

43. Um dia a dona soberba me aparece já sem nada,

63. quede pezinhos calçados com sandálias de cetim?

44. pobre, desfeita, mofina, com sua trouxa na mão.

64. Olhei muito para ela, boca não disse palavra.

45. Dona, me disse baixinho, não te dou vosso marido,

65. Peguei o vestido, pus nesse prego da parede.

46. que não sei onde ele anda. Mas te dou este vestido,

66. Ela se foi de mansinho e já na ponta da estrada

47. última peça de luxo que guardei como lembrança

67. vosso pai aparecia. Olhou pra mim em silêncio,

48. daquele dia de cobra, da maior humilhação.

68. mal reparou no vestido e disse apenas: — Mulher,

49. Eu não tinha amor por ele, ao depois amor pegou.

69. põe mais um prato na mesa. Eu fiz, ele se assentou,

50. Mas então ele enjoado confessou que só gostava

70. comeu, limpou o suor, era sempre o mesmo homem,

51. de mim como eu era dantes. Me joguei a suas plantas,

71. comia meio de lado e nem estava mais velho.

52. fiz toda sorte de dengo, no chão rocei minha cara,

72. O barulho da comida na boca, me acalentava,

53. me puxei pelos cabelos, me lancei na correnteza,

73. me dava uma grande paz, um sentimento esquisito

54. me cortei de canivete, me atirei no sumidouro,

74. de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada.

55. bebi fel e gasolina, rezei duzentas novenas,

75. Minhas filhas, eis que ouço vosso pai subindo a escada.

56. dona, de nada valeu: vosso marido sumiu.

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La gitanilla: a valorização entre culturas e a ruptura de estereótipos e preconceitos na obra de Cervantes1 La gitanilla: la valorización entre culturas y la ruptura de estereotipos y prejuicios en la obra de Cervantes Edilza de MOURA2 Rayane Maria da Silva OLIVEIRA3 Resumo: O presente trabalho se propõe a refletir sobre a importância da interculturalidade para aproximar culturas ricas em diversidades, como a espanhola e a cigana, além de contribuir no sentido de desmistificar estigmas e estereótipos que podem gerar a discriminação entre povos de culturas distintas. Autores como Saz (2009), Schmelkes (2008), Geertz (2008), Maurer (2008), entre outros, contribuíram de forma relevante para essa pesquisa, pois, a partir de seus pressupostos, foi possível identificar possíveis marcas de estereótipos e preconceitos em relação ao povo cigano, na obra La gitanilla, de Miguel de Cervantes (2010). A análise da obra possibilitou identificar elementos da Espanha Medieval, evidenciando uma interação crítica e dinâmica entre tais povos, além de promover a valorização das culturas espanhola e cigana. Palavras-chave: : Interculturalidade. Preconceito. Estereótipo. La gitanilla. Cervantes. Resumen: El presente trabajo pretende reflexionar sobre la importancia de la interculturalidad para aproximar culturas ricas en diversidades, además de contribuir en el sentido de desmitificar estigmas y estereotipos. Para eso, se analizó la obra La Gitanilla, de Miguel de Cervantes (2010) verificando posibles marcas de estereotipos y prejuicios en relación al pueblo gitano. Se utilizó como referencial teórico, autores como Saz (2009), Schmelkes (2008), Geertz (2008), Maurer (2008), entre otros, que contribuyeron de forma relevante a esa investigación. Fue analizada la obra La gitanilla (CERVANTES, 2010) para establecer las realidades de la España Medieval con sus particularidades culturales. Es posible percibir que la interculturalidad posibilita la ampliación de la visión sociocultural, permitiendo interacción crítica y dinámica entre culturas, además de promover la valoración de las culturas españolas y gitanas.. Palabras Clave: Interculturalidad. Prejuicio. Estereotipo. La gitanilla. Cervantes.

Introdução O presente estudo tem como objetivo principal refletir sobre a diversidade existente entre as culturas espanhola e cigana, visando à ruptura de possíveis estereótipos e preconceitos. Daí, a contribuição deste artigo reside na possibilidade de refletir a respeito da importância da educação intercultural para o enfrentamento ao racismo e para o desenvolvimento de atitudes positivas que promovam o diálogo entre as culturas. Para isso, essa pesquisa estrutura-se em três partes. A primeira, o complexo conceito de cultura para a contextualização de interculturalidade, e também define os principais ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Este artigo tem origem numa pesquisa desenvolvida através do Núcleo de Pesquisas e Iniciação Científica da FAFIRE/NUPIC, em 2017/2018, publicada nos Anais do 15º Congresso NUPIC, v. 6, n. 1, 2019. 2 Professora do Curso de Letras | FAFIRE | orientadora da pesquisa | E-mail: letras@fafire.br 3 Graduada em Letras | FAFIRE | pesquisadora do NUPIC | FAFIRE | E-mail: rayanemsoliveira@gmail.com 1

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Edilza de Moura | Rayane Maria da Silva Oliveira

entraves para a formação do pensamento intercultural: o racismo, o preconceito e a discriminação. Na segunda parte, é feito um breve resgate da história do povo cigano. Ainda que sua origem seja incerta, são relatados alguns registros dessa população na Espanha Medieval. Por fim, a terceira parte apresenta a análise da obra La gitanilla, de Miguel de Cervantes, primeira história que retrata com ricos detalhes a sociedade cigana da época. A obra foi analisada levando em consideração os aspectos da interculturalidade e, nesse sentido, ficou evidenciada a possibilidade de a literatura refletir a cultura cigana sem reproduzir estereótipos.

Homogeneidade cultural: racismo, discriminação e preconceito

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A discussão sobre cultura nunca foi tão importante como nos dias atuais. Com o advento da globalização, diversas formas de expressões culturais entram em contato e até convivem no mesmo território, o que gera crises políticas e tentativas inclusive de separação territorial, a fim de formar novas nações. Levando em conta o viés histórico-social, é possível encontrar, pelo menos, duas explicações para a origem do termo cultura. A primeira diz respeito às sociedades agrícolas, que contavam com suas próprias formas de organização social, daí o termo colere, que veio do latim e significa cultivar a terra. A outra se refere às grandes civilizações que, no Oriente Médio, foram conhecidas por preservar a unidade dentro do grupo social e por promover suas crenças, tradições e rituais, que as diferenciavam de outros grupos (STEARNS, 2015). A diferença entre essas duas formas de compreender o conceito de cultura, no entanto, deve-se apenas ao fato de que tais civilizações contavam com avanços tecnológicos distintos que incidiram diretamente em sua forma de organização cultural. O conceito de cultura, no entanto, evoluiu e, hoje, possui diversos significados que estão diretamente ligados às diversas áreas de interesses humanos. De acordo com Tylor (apud KAHN, 1975), cultura envolve uma complexa teia de conhecimentos (crenças, artes, valores morais, direitos, costumes, hábitos, etc.) cultivados pelo homem enquanto parte da sociedade. Já Malinowsky (apud KAHN, 1975) aborda cultura como algo externo, interiorizado mediante um processo de aprendizagem, caracterizado por seu valor social. Por abarcar uma extensão histórica, geográfica, política e intelectual, o termo cultura tornou-se complexo e hoje faz-se necessária uma definição que esteja conectada com os avanços da sociedade. Geertz (2008), um dos principais nomes da antropologia simbólica, por sua vez, considera cultura como uma teia de significados que permite ao indivíduo expressar seus sentimentos e juízos de valores, comunicar-se e desenvolver conhecimentos. Considerando esse sistema como uma série de mecanismos de controle que são aprendidos, esse autor afirma também que o ser humano é guiado, dessa forma, para atuar e compreender o mundo. Na mesma linha de pensamento, o autor aponta a impossibilidade de homogeneidade ou coerência na concepção de cultura, pois a teia de significados pode agir de diferentes formas, e cada sociedade interpretará, por exemplo, de forma distinta, a mesma conduta em um mesmo ambiente (GEERTZ, 2008). Essa definição apontada pelo antropólogo traz um caráter cognitivo de cultura que vai ao encontro dos objetivos do presente trabalho, assim como dialoga com a área da educação, especificamente do aprendizado de línguas. Contudo, não se pode perder de vista que Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


La gitanilla: a valorização entre culturas e a ruptura de esteriótipos e preconceitos na obra de Cervantes

a problemática com o conceito de cultura surgiu a partir do momento em que passaram a utilizá-lo como expressão das belas artes (cultivadas pela elite da sociedade), dando a impressão de que apenas pessoas instruídas fazem parte de uma cultura importante em oposição aos incultos (sem cultura). Nesse sentido, e reafirmando o posicionamento teórico de Geertz (2008), compreende-se que, quando se fala em cultura, não se deve pensar em homogeneidade. Inclusive dentro de uma mesma sociedade há diferenças que podem ser de gênero, classe social, idade, identidade sexual, religiosa entre outras. Essas diferenças implicam, inevitavelmente, estranhamentos e choques culturais entre os segmentos sociais (dentro de uma mesma sociedade ou não). É nesses embates que podem aparecer manifestações de racismo e suas variantes, como a discriminação e o preconceito. Antes de tratar dessas manifestações, é necessário compreender os conceitos de raça e etnia, que são importantes para o presente trabalho. Raça é um vocábulo que se refere ao âmbito da biologia e tenta definir os seres humanos em inferiores e superiores, baseando-se em características biológicas, tanto da constituição física quanto da capacidade mental. Foi um conceito muito utilizado para justificar grandes catastrófes humanas, como a escravidão africana no Brasil e o Holocausto nazista, na Alemanha (LOPES, 2007). Entretanto, hoje em dia, as características fenótipas são insuficientes para a compreensão da complexidade humana. Nesse sentido, o termo etnia vem ganhando destaque e está intimamente ligado ao conceito de cultura. Etnia se refere a [...] um grupo de pessoas com constituição genética semelhante, por ter a mesma origem e que compartilha a mesma cultura, além de identificar-se como grupo diferente dos demais. Nessa identificação, é importante a consciência da origem comum e da vivência de experiências conjuntas e solidárias (LOPES, 2007, p. 36).

Percebe-se que ambos os conceitos são complexos e não escapam das modificações quanto ao seu significado, de acordo com a contínua transformação da sociedade. Nesse sentido, a cultura se torna importante na diferenciação entre os grupos sociais, pois é um fator que mostra a relevância da convivência entre os povos e que não é possível delimitar as fronteiras culturais, pois a cultura, como já dito, é viva, modificando-se e transformando-se constantemente. Racismo seria a ideia de que um povo é superior a outro por conta de suas características físicas ou de sua origem. Esse tipo de pensamento é uma construção social e já existia nas civilizações antigas, como a Grécia, por exemplo, onde os estrangeiros não compartilhavam dos costumes e direitos gregos, pois não eram considerados cidadãos. O racismo manifesta-se de diversas maneiras (xenofobia, sexismo) e constitui-se como um dos principais entraves para a convivência harmoniosa entre as sociedades. Trata-se de um fenômeno complexo, e suas variantes manifestam-se no discurso ideológico e na prática social (ESCUELA INTERCULTURAL, s/d.). A discriminação, por sua vez, manifesta-se no plano da prática social e diz respeito às políticas de segregação e/ou condutas que resultem em prejuízos para determinado segmento social. O apartheid, regime de segregação racial adotado na África do Sul, entre os anos de 1948 e 1994, foi um dos mais notórios exemplos de discriminação baseada em Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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origem étnica. Por fim, o preconceito reside no campo ideológico e trata-se de uma ideia preconcebida a respeito de um indivíduo ou grupo social, baseando-se apenas em estereótipos. Por exemplo, nos séculos de colonização no Brasil, criou-se a imagem do indígena como um ser selvagem. Esse tipo de pensamento ainda sobrevive no imaginário brasileiro e traz consequências nocivas para a convivência harmoniosa com os descendentes dos indígenas (ESCUELA INTERCULTURAL, s.d.). Como dito antes, o racismo é a suposta ideia de superioridade que está ligada ao sentimento de pertencimento a um grupo social supostamente considerado superior. Além do racismo, deve-se levar em consideração a ideia de etnocentrismo, que é uma visão de mundo em que um grupo social considera seus hábitos, valores e condutas como superiores aos de outros grupos étnicos. Nesse sentido, o contato com outra cultura – ainda que dentro do mesmo território – pode parecer uma ameaça a esse sentimento de uniformidade, cristalizando estereótipos e naturalizando preconceitos que podem gerar discriminação e xenofobia.

Pluralidade cultural: interculturalidade e valorização das diferenças

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Com a complexidade do conceito e a existência de diversas culturas, surge a necessidade de uma comunicação que implique um enriquecimento social que vá além do entendimento linguístico e não resulte em atitudes preconceituosas e discriminatórias com base em estereótipos. O Marco Común Europeo de Referencia para las Lenguas (doravante MCERL) (CONSEJO DE EUROPA, 2001), documento relevante para a compreensão do ensino de línguas, traz a relação entre consciência intercultural e competências interculturais. Essa relação aborda a ampliação da consciência de mundo, da diversidade regional e social. Para o MCERL (CONSEJO DE EUROPA, 2001), a interculturalidade é um fenômeno cognitivo e comunicativo que dá suporte para a superação de estereótipos, além de inter-relacionar culturas. A interculturalidade não se limita ao reconhecimento e respeito por outras culturas, visto tratar-se de um processo de comunicação mútua que age para eliminar os preconceitos e a ideia de que uma cultura pode ser superior a outra. Saz (2009) enfatiza a importância da interculturalidade para a sobrevivência do ser humano, apontando que as culturas se constroem em contato com outras, sendo a pluralidade característica fortemente atrelada às sociedades, pois elas estão em constante transformação. Ao referir-se ao modelo intercultural, a autora diz que as diferenças devem ser valorizadas. Contudo, é necessário descobrir os valores e pontos em comum, já que a interculturalidade tem como objetivo “(…) superar la mera coexistencia territorial y busca el diálogo entre personas procedentes de distintas tradiciones culturales y las posibilidades que se abren en ese mismo diálogo” (SAZ, 2009, p. 20). A interculturalidade possibilita, pois, a construção da visão de mundo a partir da visão do outro. Porém, de acordo com Schmelkes (2008), essa aproximação entre visões diversas deve se dar de forma positiva, tendo em conta que a própria cultura não é a única válida. Schmelkes (2008) afirma também que a interculturalidade pressupõe um processo de conhecimento, reconhecimento, valorização e apreço das distintas formas culturais de se construir a realidade e que se mostram eficientes na vida das pessoas. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


La gitanilla: a valorização entre culturas e a ruptura de esteriótipos e preconceitos na obra de Cervantes

A importância do diálogo intercultural para a construção da cidadania reside no fato de que permite a realização de mudanças, buscando uma sociedade mais harmoniosa, que valorize as riquezas das diversas culturas para o crescimento do indivíduo enquanto ser humano, aceitando as diferenças como algo que agrega aspectos relevantes. A partir da concepção intercultural, serão feitas algumas considerações a respeito da cultura cigana, procurando estabelecer pontos em comuns com a cultura espanhola, desmistificando possíveis estereótipos e preconceitos, para, enfim, proceder à análise da obra La gitanilla (CERVANTES, 2010).

Contato cultural entre ciganos e espanhóis: da intolerância à educação intercultural A história não possui documentos suficientes a respeito da vida do povo cigano. Apesar de os historiadores se basearem em hipóteses a respeito da origem desse povo, há um certo consenso que retrata os ciganos como oriundos do noroeste da Índia. Há registro no século IX de invasões do Islam à Índia, o que resultou na migração do povo indiano que ali vivia. Grande parte dos historiadores menciona que o povo indiano que iniciou a migração não era homogêneo; ao contrário, provinha de diferentes tribos com uma diversidade de culturas que deu origem ao povo Rom, como são conhecidos os ciganos. As guerras foram a principal causa da peregrinação do povo Rom para encontrar uma vida melhor em outra terra. A constante migração levou-os para a Europa, no século XIV e, no século seguinte, finalmente para a Espanha (VILLANUEVA, 2002). Por sua condição de povo nômade e a forte tradição oral em sua cultura, os Rom foram recebidos com curiosidade e hospitalidade pelo povo espanhol. A chegada deles ao país está registrada em um documento oficial assinado pelo rei Afonso X (MAURER, 2008). Com o passar dos anos, a presença do povo cigano foi crescendo no território espanhol, o que foi acompanhado pelo crescimento demográfico da população que ali já vivia. A vida boêmia, a dificuldade de estabelecer moradia e trabalho fixo, além dos gastos que traziam pelo fato de muitos sobreviverem de esmolas e doações, foram minguando a atração que os ciganos exerciam nos espanhóis, crescendo, dessa forma, a rejeição que perduraria até os dias de hoje. De acordo com Sancho de Moncada (1974), a opinião geral sobre os ciganos era a seguinte: Ellos son gente vagamunda, ociosa e inútil del Reyno; ellas, públicas rameras, vagantes, habladoras, inquietas, siempre en plazas, y corrillos. Ladrones famosos e impenitentes, apenas hay rincón de España donde no hayan cometido algún grave delito. (...) gente, en fin, ociosa, vagamunda e inútil a los Reinos, sin comercio, ocupación ni oficio alguno; y si alguno tiene es hacer ganzúas y garabatos para su profesión, siendo zánganos que sólo viven de chupar y talar los reinos, sustentándose del sudor de los míseros labradores (MONCADA, 1974, apud VILLANUEVA, 2002, p. 4).

A rejeição pelo povo Rom cresceu a ponto de que qualquer acusação de roubo ou delinquência recaía sobre eles, o que, de certa forma, ainda está inculcado no imaginário espanhol. De acordo com Maurer (2008), a perseguição e expulsão do povo cigano Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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iniciou-se com a vontade dos reis católicos de cultivarem uma homogeneidade religiosa, que se estendia pela cultura espanhola de forma geral. Nesse sentido, os ciganos eram obrigados a assimilar a cultura vigente ou, caso contrário, sofreriam as consequências. Essa assimilação dizia respeito a cultivar a terra, ter trabalho fixo ou ter senhores para servir e ter casa própria, coisas que eram o oposto à vida cigana. Vegas Cortes (apud BRAVO HERRERO; MORENO ESCAMILLA, 2011, p. 13) afirma que o fanatismo religioso acabou com as convivências entre as culturas existentes no território: “ya no hay lugar para la tolerancia, ya no se acepta a los que piensan, hablan, visten o se comportan de forma distinta (...)”. A assimilação da cultura através da força deu início a um dos períodos mais cruéis para a população cigana. Castigos físicos, trabalho forçado, encarceramento, tortura, e até a morte, estavam entre as penas para os ciganos que se negassem a fazer parte da norma social e econômica vigente na Espanha do século XVI (SOLANO CAZORLA, 1997). Esse período de perseguição, expulsão e assimilação forçosa continuou pelos séculos seguintes, através da promulgação de legislações anticiganas que tentavam forçar o povo nômade a aderir a um modo de vida que não era o seu próprio e apenas refletiam a vontade dos reis católicos de ter um Estado centralizado e homogêneo, cerceando, dessa forma, as liberdades e aprisionando as culturas (MAURER, 2008). Com o passar dos anos, a cultura cigana foi paulatinamente “incorporada” e “legalizada” no território espanhol. Segundo Maurer (2008, p. 7), é apenas na Constituição de 1978 que “(…) se puede hablar de verdadera adquisición de la ciudadanía de pleno derecho por parte de los gitanos (…)”, ainda que essa cidadania esteja, muitas vezes, no plano teórico, e não resguarde os ciganos de sofrerem ataques racistas ou condene de forma dura esses atos. Atualmente, no território espanhol, existem cerca de 600.000 ciganos, segundo dados do Portal Unión Romani, sendo metade dessa população localizada em Andaluzia. O povo cigano é formado por grupos heterogêneos, com traços próprios e uma forte tradição oral. Apesar da ausência da escrita, esse grupo étnico possui leis bem severas, não tolerando, por exemplo, o adultério, o concubinato e a prostituição, valorizando a generosidade e a lealdade (SOLANO CAZORLA, 1997). Pode-se perceber, então, alguns pontos em comum com a cultura espanhola, no que diz respeito às normas de moral. Apesar dos avanços no que concerne às questões legais, os ciganos ainda enfrentam muitos problemas, principalmente, nas áreas de educação, emprego, moradia e cultura. Como não figuram no currículo escolar e não possuem uma história devidamente escrita, essa população sofre com o desconhecimento de sua cultura por parte dos outros habitantes da Espanha, o que acaba gerando preconceitos, discriminação e atitudes racistas. É necessário, então, abordar a cultura cigana de uma perspectiva intercultural, sem comparações ou julgamentos, permitindo uma troca de valores que agregue conhecimento e permita a criação de uma consciência intercultural. Não se pode negar que o convívio entre as duas culturas deixou um legado histórico e social na Espanha. No âmbito cultural, o flamenco, conhecido no mundo inteiro como expressão cultural do povo espanhol, na realidade traz consigo marcas do folclore cigano (instrumentos de cordas, palmas, entre outras). O legado dos ciganos também pode ser percebido na ampliação do léxico espanhol, com a introdução de algumas expressões e palavras romanis na fala cotidiana, como adjetivos gili/tonto, chungo/feo; substantivos Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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chaval/jóven, parné/dinero e verbos camelar/engañar, sabar/dormir, currelar/trabajar. A assimilação dessas palavras no léxico espanhol comprova que a cultura cigana estava presente na cultura espanhola, embora muitos sequer se deem conta e utilizem tais vocábulos como se fossem originários do castelhano medieval. É inegável também que a cultura cigana tenha, de certa forma, deixado se influenciar pela espanhola após a legalização e o reconhecimento de sua cultura como parte integrante do território espanhol. O nomadismo/peregrinação das tribos, por exemplo, reduziu bastante a partir do momento em que foram instituídas penalidades para aqueles que vivessem em lugares inadequados. Estabelecidos em determinada cidade, o contato com outros modos de vida, com a educação formal e com o outro, o não cigano, inevitavelmente, obrigou-os a experienciar algumas mudanças na forma como se concebem a si e ao outro na nova configuração social. Talvez a maior influência recebida dos espanhóis seja seu idioma, a ponto do uso do ‘caló’ ser esporádico e reduzido em algumas comunidades, prevalecendo, portanto, a língua espanhola (ROPERO NÚÑEZ, 1989).

Interculturalidade em La gitanilla Na literatura espanhola, a primeira referência feita aos ciganos é na obra La celestina, de 1499. Após isso, durante o período literário do século de ouro espanhol, as referências aos ciganos em obras eram esporádicas e procuravam ressaltar aspectos exóticos e picarescos (SOLANO CAZORLA, 1997). A literatura, por sua função de perenizar o passado de um povo, oferece, até certo ponto, registros que se aproximam mais da realidade cigana na Espanha medieval, ainda que esses relatos estejam perpassados por uma visão preconceituosa a respeito do povo cigano. Em 1631, o romancista espanhol Miguel de Cervantes Saavedra publicou a coleção de relatos Novelas ejemplares, cuja primeira história é La gitanilla. A obra traz o relato de uma jovem cigana de quinze anos chamada Preciosa. Criada por sua avó, também cigana, a jovem vive cantando e dançando para ter o seu sustento. Em certo momento do enredo, um nobre, don Juan, apaixona-se por Preciosa e, para provar o seu amor, aceita viver como cigano. Em dado contexto, é conhecida a verdadeira origem de Preciosa, que fora roubada de seus pais nobres pela cigana que considerava ser sua avó. Após isso, ela deixa a vida que tinha e se casa com seu Juan de Cárcamo (CERVANTES, 2010). A obra de Cervantes é considerada por muitos como um divisor de águas na história dos ciganos na literatura, pois apresenta, como personagens principais, sujeitos integrantes desse grupo étnico tão diversificado e estigmatizado pelo povo espanhol (SOLANO CAZORLA, 1997). Durante o decorrer da história, fica claro que Cervantes conhecia muito bem a cultura cigana, pois ressaltou muitos aspectos que condizem com os poucos registros históricos que existem sobre esse povo, apesar de sua visão ser estereotipada (BRAVO HERRERO; MORENO ESCAMILLA, 2011). Durante a obra, por exemplo, o autor refere-se, em diversas cenas, ao suposto hábito de furtar e roubar dos ciganos, como está claro no primeiro parágrafo do texto:

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Parece que los gitanos y gitanas solamente nacieron en el mundo para ser ladrones: nacen de padres ladrones, críanse con ladrones, estudian para ladrones; y, finalmente, salen con ser ladrones corrientes y molientes a todo ruedo, y la gana del hurtar y el hurtar son en ellos como accidentes inseparables, que no se quitan sino con la muerte (CERVANTES, 2010, p. 1).

No final da citação, o romancista deixa claro que as características pejorativas que estavam associadas ao povo Rom são naturais da raça e vão ao encontro do pensamento racista da sociedade espanhola sobre os ciganos. Ao mesmo tempo, Cervantes deixa indícios para a dúvida, ao usar o termo “parece”, que tanto em português como em espanhol guarda certo teor de incerteza. A partir daí a história se torna contraditória, pois o autor refere-se frequentemente às inclinações dos ciganos para o roubo e, ao mesmo tempo, valoriza muitos aspectos de sua cultura, como a liberdade, a hospitalidade e a lealdade (SOLANO CAZORLA, 1997). Guasch Melis (1998), analisando os grupos sociais na obra em questão, ressalta que existem algumas semelhanças entre os cristãos medievais e os ciganos, principalmente no que diz respeito ao tratamento dado às mulheres. Ambos os povos eram extremamente machistas e tratavam as mulheres como objetos, valorizando apenas o que elas tinham a oferecer:

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Nosotros somos los jueces y los verdugos de nuestras esposas o amigas; com la misma facilidad las matamos, y las enterramos poe La montañas y desiertos, como si fueran animalees nocivos; no hay pariente que las vengue, ni padres que nos pidan su muerte (CERVANTES, 2010, p. 32).

Esse trecho se trata de uma das muitas leis que os ciganos cultivavam em sua cultura e são relatadas no ritual de iniciação feito por don Juan para se tornar Andrés Caballeros, pretendente cigano de Preciosa. Sobre o machismo inerente à sociedade medieval, pode-se citar, como exemplo, a atitude da avó de Preciosa, que pensava em sua suposta neta apenas como um investimento que poderia render bons frutos, já que era bonita, sabia cantar e dançar como ninguém. Essa valorização da mulher como algo de posse se assemelha muito ao casamento medieval, que era um acordo entre famílias nobres para conservar suas riquezas, sendo a mulher apenas um ser passivo, posse do pai e, em seguida, do marido (BRAVO HERRERO; MORENO ESCAMILLA, 2011). A autora Guasch Melis (1998, p. 330) continua sua análise dos grupos sociais, destacando que “el dinero es la principal preocupación de todos, independientemente de la clase social o raza”. Fica claro, em La gitannilla, que o dinheiro é, de fato, a mola propulsora do mundo medieval, à medida que se tornou um instrumento de poder, possibilitando a compra de tudo, até da justiça, como é possível perceber na cena em que o tio do homem que foi morto por don Juan deixa de perseguir a sua vingança pelo assassinato após receber a promessa de “dos mil ducados” (GUASCH MELIS, 1998). Essa abordagem sobre o poder do dinheiro na obra cervantina mostra a hipocrisia da sociedade da época, ressaltando o poder da literatura como crítica social. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


La gitanilla: a valorização entre culturas e a ruptura de esteriótipos e preconceitos na obra de Cervantes

Cervantes destacou um dos estereótipos mais conhecidos a respeito do povo Rom: o caráter picaresco e astucioso. Em verdade, a própria Preciosa relata, em sua fala, ao ser questionada com quem aprendeu sua malícia, a verdadeira natureza do povo cigano que correspondia à imagem retratada na época: Los ingenios de las gitanas van por otro norte que los de las demás gentes: siempre se adelantan a sus años; no hay gitano necio, ni gitana lerda; que, como el sustentar su vida consiste em ser agudos, astutos y embusteros, despabilan el ingenio a cada paso, y no dejan que críe moho en ninguna manera (CERVANTES, 2010, p. 14).

Atentando-se melhor para Preciosa, principal da obra, é possível perceber que a moça não se encaixa no mundo cigano por sua forma de pensar e agir. Um dos elementos principais da obra é a personalidade da pequena cigana, tão inteligente, diferente do povo com quem convive, o que suscita sentimentos como: “lástima es que esta mozuela sea gitana! En verdad, en verdad, que merecía ser hija de un gran señor!” (CERVANTES, 2010, p. 4). A jovem, em muitos momentos, não se sente tão cigana como deveria, valorizando constantemente a sua liberdade e não aceitando certas leis ciganas misóginas, como fica claro no trecho a seguir: Puesto que estos señores legisladores han hallado por sus leyes que soy tuya, y que por tuya te me han entregado, yo he hallado por la ley de mi voluntad, que es la más fuerte de todas, que no quiero serlo si no es con las condiciones que antes que aquí vinieses entre los dos concertamos (CERVANTES, 2010, p. 33).

Ao mesmo tempo, a personagem também não parece se encaixar como cristã, já que valoriza em demasiado seu espírito livre, sua destreza para falar o que pensa e sua astúcia. Preciosa, na verdade, apesar de parecer uma idealização do bom espírito cristão, não está livre da ambição que Cervantes critica na obra. Ao contrário, a moça sabe de seus atributos enquanto mulher e usa seu charme para conseguir o que quer, de forma eloquente, o que não era comum às mulheres da época (ALCALDE, 1997). Um dos pontos positivos em La gitanilla é a construção de uma personagem feminina com personalidade, perseverante e valente, o que dá à obra um teor, de certa forma, vanguardista, pois, em plena época medieval, não era comum ter um romancista retratando personagens femininos com tal ênfase. No entanto, Cervantes quebra um pouco com essa idealização de Preciosa, a partir do momento em que ela se descobre como Constanza, filha de senhores nobres, e deixa de ser a moça que sempre valorizou sua própria liberdade para se tornar a dama que estaria sujeita à vontade de seus pais, papel considerado ideal para as mulheres em uma sociedade patriarcal (GUASCH MELIS, 1998). Talvez essa seja mais uma crítica do romancista sobre o modo como a sociedade da época menosprezava a mulher, não levando em consideração a sua inteligência e nem a tratando como uma pessoa tão digna quanto o homem. Em sua novela, Cervantes traz informações importantes a respeito da cultura cigana, mas é necessário reconhecer que sua escrita está permeada por uma visão estigmatizada, moralmente preconceituosa e, de certa forma, racista a respeito desse povo. A obra, porém, serve aos objetivos da interculturalidade, ao tratar de um tema pouco em voga, Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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retratando um povo tão estigmatizado, valorizando certos aspectos de sua cultura. É possível identificar pontos em comuns entre as culturas ciganas e espanholas, ainda que alguns sejam negativos e criticados pelo autor. Outro ponto importante é a descrição de ambas as sociedades de forma realista, demonstrando que o autor procurou estabelecer semelhanças, descrevendo as falhas na moral de cada povo, o que, de certa forma, desconstrói a ideia de que uma cultura pode ser superior à outra. Não se pode deixar de perceber, entretanto, que há um certo pendor por parte de Cervantes para a crítica social ferrenha à sociedade cristã, destacando seus aspectos hipócritas, o que é comum nas demais obras do autor. Vale destacar também que o romancista espanhol trouxe a crítica a respeito do tratamento dado às mulheres em ambas as culturas. Esse aspecto é interessante para o presente trabalho, pois em momento algum a interculturalidade significa fechar os olhos para as práticas sociais que subjugam outros seres. Ao contrário, conhecer essas facetas de outras culturas permitirá o desenvolvimento de uma crítica social que amplie a consciência de mundo, possibilitando a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Considerações finais

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Após o destaque das características ciganas em La gitanilla, pode-se afirmar que a obra de Cervantes possui aspectos que retratam a comunidade cigana de forma pejorativa, ressaltando traços negativos que foram moldados ao longo dos anos pela sociedade medieval espanhola e ainda persistem no imaginário espanhol. Por outro lado, a obra cervantina é revolucionária ao tratar de temáticas sensíveis, como a submissão feminina e as falhas de moral da sociedade cristã. Preciosa é retratada como uma mulher forte, que, mesmo dentro do machismo da comunidade cigana, não se deixava abater. Porém, ao entrar em contato com sua real origem, submete-se ao modo de vida patriarcal. Durante toda a obra, Cervantes faz críticas que tocam bem no cerne da questão moral na sociedade medieval, expondo a hipocrisia dos espanhóis ao subverter os ensinamentos cristãos. Com o breve panorama histórico sobre o desenvolvimento da comunidade cigana, é possível compreender que a criação de estereótipos a respeito desse povo foi consolidada a partir do desejo de homogeneizar culturas diversas, ignorando a contribuição que cada população, cigana e espanhola, poderia trazer para a convivência no mesmo território. Isso, infelizmente, ocorre até os dias atuais, sendo, pois, urgente a desmistificação de ideias preconcebidas e empobrecidas a respeito dos ciganos (e de tantos outros povos igualmente aviltados, inclusive, na (e pela) história oficial). Os objetivos iniciais dessa pesquisa foram atingidos, mas, devido à complexidade do tema, percebeu-se que ainda seria necessária muita investigação e dedicação a respeito da cultura cigana, sobretudo no que se refere à interculturalidade, como possibilidade de aproximação entre culturas, nesse caso, entre a cigana e a espanhola. A obra aqui analisada pode contribuir, de forma significativa, para repensar a estigmatização de povos que não compartilham a cultura estabelecida como a cultura padrão. A história da ciganinha serve como ponto de partida para a discussão a respeito da interculturalidade e do enfrentamento de preconceitos e estereótipos, rumo à construção de uma sociedade mais humana e fraterna. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


La gitanilla: a valorização entre culturas e a ruptura de esteriótipos e preconceitos na obra de Cervantes

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Literatura infantojuvenil afro-brasileira: caminhos na superação do racismo1 Literatura infantojuvenil afrobrasileña: caminos a la superación del racismo Rayane Maria da Silva OLIVEIRA2 Liliane Maria JAMIR E SILVA3 Resumo: O preconceito racial marcou a sociedade brasileira desde o início da escravidão, através da relação de poder opressor-oprimido, e não cessou após a abolição, tornando-se um dos obstáculos para a equidade social. Nessa perspectiva, o presente artigo busca refletir sobre a importância da literatura infantojuvenil afro-brasileira ao inserir o leitor em uma cultura rica em diversidade, além de contribuir no sentido de desconstruir preconceitos e estereótipos a respeito dessa cultura. Para isso, foram consultados alguns autores influentes nessa discussão, como Zilberman (1998), Bernd (1987), Coelho (2000), entre outros. O trabalho consiste na análise de três obras infantis com destaque para os elementos simbólicos e culturais da literatura negra. Palavras-chave: Literatura infantojuvenil. Cultura afro-brasileira. Racismo. Resumen: El prejuicio racial marcó la sociedad brasileña desde el comienzo de la esclavitud, a través de la relación de poder opresor-oprimido, y no cesó después de la abolición, haciéndose uno de los obstáculos para la equidad social. En esa perspectiva, el presente artículo busca reflexionar sobre la importancia de la literatura infantojuvenil afrobrasileña al inserir el lector en una cultura rica en diversidad, además de contribuir en el sentido de desconstruir prejuicios y estereotipos a respecto de esa cultura. Para eso, fueron consultados algunos autores influyentes en esa discusión como Zilberman (1998), Bernd (1987), Coelho (2000), entre otros. El trabajo consiste en el análisis de tres obras infantiles con destaque para los elementos simbólicos y culturales de la literatura negra. Palabras clave: Literatura infantojuvenil. Cultura afrobrasileña. Racismo.

Introdução O presente estudo visa identificar características que contribuam para a superação do racismo e valorizem o universo cultural negro na literatura infantojuvenil afro-brasileira. A importância dessa pesquisa reside na possibilidade de analisar obras literárias que refletem o universo infantil, valorizando a cultura negra e a africana e repercutindo na construção da identidade cultural dos leitores. Acerca da metodologia adotada, a pesquisa se deu de forma descritiva com abordagem bibliográfica de autores que discorrem a respeito da temática, a partir do qual seguiu-se levantamento, leitura e revisão do acervo selecionado. O trabalho consistiu no estudo das proposições teóricas de Coelho (2000) a respeito da literatura infantojuvenil e suas características, assim como das concepções de Cosson ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Artigo oriundo de pesquisa desenvolvida através do Núcleo de Pesquisa e Inciação Científica da FAFIRE | NUPIC e publicado na Revista Lumen, Recife, v. 26, n. 1, p. 45-65, jan. /jun. 2017. 2 Graduada no Curso de Letras e pós-graduada em Linguística Aplicada a Práticas Discursivas | FAFIRE | E-mail: rayanemsoliveira@gmail.com 3 Doutora em Literatura e Cultura | UFPB | professora do Curso de Letras | FAFIRE e orientadora da pesquisa | E-mail: lilianejamir@uol.com.br 1

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(2012) e Soares (2003) sobre a escolarização da literatura. Lopes (2007) e Skidmore (2012) trouxeram contribuições sobre o conceito de racismo que dialogaram com as ideias apresentadas por Bernd (1987) a respeito da literatura negra. Foi necessário também, à pesquisa, o estudo do posicionamento teórico de Crippa (1975) e Eliade (1972) com relação ao mito. O artigo se estrutura em três itens que abrangem, brevemente, alguns pontos relevantes. O primeiro trata da função da literatura infantil, destacando-se a aproximação da arte literária com a escola. No segundo, são evidenciados os conceitos de racismo e literatura negra, contribuindo para a base teórica do trabalho, destacando a negritude e os aspectos textuais caracterizadores de uma literatura negra. Nesse item também se ressalta a herança mítica, componente importantíssimo da cultura africana. Por fim, o terceiro item traz as análises de três obras literárias escolhidas como corpus da pesquisa: O cabelo de Lelê, de Valéria Belém; O amigo do rei, de Ruth Rocha; e Obax, de André Neves. As obras foram analisadas levando em consideração os aspectos abordados nos itens anteriores, sendo possível perceber que elas possuem características consideradas antirracistas, refletindo a cultura negra e a africana de forma poética, lúdica, sem a reprodução de estereótipos.

Literatura infantojuvenil: natureza e função

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Por muito tempo, quando se falava em literatura para crianças, imaginava-se livros coloridos e com temas pueris, que serviam apenas ao entretenimento dos pequenos. Este pensamento foi se desmistificando à medida que essa arte literária começou a ser igualada à condição da literatura adulta e foram se desdobrando os estudos acerca dos estágios psicológicos de desenvolvimento do ser humano (COELHO, 2000). A literatura infantojuvenil é “o agente ideal para a formação da nova mentalidade que se faz urgente” (COELHO, 2000, p. 16). E isso é possível, porque a literatura possui um papel formador por excelência, podendo atuar como instrumento pedagógico, mas sem deixar de ser arte. Quanto à sua natureza, Coelho afirma que a literatura infantojuvenil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível realização (COELHO, 2000, p. 9).

Analisando as grandes obras da literatura infantojuvenil, percebe-se que a linha que separa a arte literária e a pedagógica é bastante tênue, podendo as obras voltadas para as crianças dar prazer e diversão e/ou instruir, através de sua manipulação para fins educativos (COELHO, 2000). Além disso, a literatura infantojuvenil não é apenas contos de fadas, visto englobar outros gêneros, como a poesia, os contos maravilhosos, as lendas, a ficção científica, romances e histórias do cotidiano (COELHO, 2000). Atualmente, as crianças, quase sempre entram em contato com a arte literária cedo, através das histórias orais, e isso, segundo Abramovich (1989, p. 16), é o primeiro passo no (...) caminho absolutamente infinito de descoberta e de compreensão de mundo. Que o primeiro contato de uma criança com o texto é feito oralmente, ler histórias além de estabelecer estes primeiros passos, é instigar o imaginário. Ouvir histórias ainda pode Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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despertar emoções importantes como: medo, raiva, tristeza, irritação, bem estar, e ainda que através das histórias podem-se descobrir outros lugares.

Sendo assim, ouvir histórias é importante na formação do leitor, desenvolvendo sua apreciação crítica, permitindo que a criança expanda o seu campo de conhecimento, tanto na escrita quanto na oralidade. A importância da literatura, porém, não se restringe apenas à expectativa de adquirir conhecimento, mas à possibilidade de ampliar a consciência de mundo, pois, como afirma Candido, “a obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e, em consequência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo” (CANDIDO, 1995, p. 179). E é essa função humanizadora da literatura que a torna um bem incompreensível para a humanidade, assim como é a comida, o abrigo, a água. Essa humanização permeia o universo do ser humano e permite que ele esteja aberto à possibilidade de perceber o outro, de compreendê-lo (CANDIDO, 1995). Função perfeitamente aplicável à literatura infantojuvenil, seja ela fantástica ou realista, dependendo do contexto social, a obra infantil pode preparar a criança para os desafios da vida, ao trabalhar o senso crítico, a imaginação, a criatividade e o caráter.

A literatura infantojuvenil escolarizada Sendo a literatura um fenômeno que explora as possibilidades e potencialidades da linguagem, por meio da leitura, é natural, já que antecede a escola como matéria educativa, que ela seja parte do currículo educacional. A partir de mudanças sofridas pela sociedade moderna nos séculos XVIII e XIX, a criança torna-se alvo de preocupações sociais e é estimulada, então, a criação de novos ramos da ciência (psicologia infantil, pedagogia e pediatria), de objetos industrializados (brinquedo) e de objetos culturais (livro) (LAJOLO; ZILBERMAN, 1988). Essa nova percepção de infância impulsionou a inserção do livro literário no ambiente escolar, com o objetivo de contribuir para a formação das crianças, de acordo com Zilberman: A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente os meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e a manipulação de suas emoções. Literatura infantil e escola, inventada a primeira e reformada a segunda, são convocadas para cumprir esta missão (ZILBERMAN, 1987, p. 13).

A história da arte literária infantil mostra claramente a sua aproximação com a escola, iniciando o procedimento de escolarização, conforme Soares (2003). A escolarização, então, é o processo no qual a escola apropria-se da literatura infantojuvenil para fins didáticos (SOARES, 2003). De acordo com Soares (2003, p. 18) “atribui-se à literatura infantil (como também à juvenil) um caráter educativo, formador, por isso ela quase sempre se vincula à escola, a instituição, por excelência, educativa e formadora de crianças e jovens (...)”. Nesse sentido, a escola, então, é o espaço onde o encontro do leitor com o livro deveria se dar de forma privilegiada. Para Zilberman (1998, p. 27),

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A justificativa que legitima o uso do livro na escola nasce, de um lado, da relação que estabelece com seu leitor, convertendo-o num ser crítico perante sua circunstância; e, de outro, do papel transformador que pode exercer dentro do ensino, trazendo-o para a realidade do estudante e não submetendo este último a um ambiente rarefeito do qual foi suprimida toda a referência concreta.

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Nesse sentido, a literatura, em sala de aula, vem para romper com o modelo tradicional de ensino, com seu sistema rígido e disciplinador, permitindo, ao educando, chegar ao mundo da cultura, do (auto) conhecimento, da promoção de igualdade. Segundo Coelho (2000, p. 16), os estudos literários “estimulam o exercício da mente; a percepção do eu em relação ao outro; a leitura do mundo em seus vários níveis (...)”. Entretanto, o processo de escolarização, muitas vezes, não tem sido positivo ou adequado. A literatura, tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio, está sendo inadequadamente escolarizada (COSSON, 2006). Há um pensamento de que, se a literatura foi incorporada ao currículo escolar, os alunos passaram a ler; mas ultimamente os textos literários têm sido utilizados em sala de aula apenas como auxiliares nos processos de aquisição e decodificação da linguagem, tornando-se um ato obrigatório (ABRAMOVICH, 1989). A respeito da escolarização inadequada, Soares (2003) destaca que a escola, por ser uma instituição formal e rígida, inevitavelmente formaliza o processo de escolarização de três formas: através da biblioteca, onde o aluno não possui, na maioria das vezes, liberdade para transitar e escolher seus livros; no estudo da literatura, geralmente, orientado pelo professor; e na leitura de texto em aulas de língua portuguesa, onde se dá ênfase à mera decodificação dos textos. Essas três formas não proporcionam o deleite pela leitura, a liberdade de escolha e de pensamento. Por conseguinte, é essa escolarização inadequada da literatura que não permite que seja cultivado o hábito de leitura e a formação de leitores competentes nas salas de aula, transformando a arte literária em algo forçado, criando aversão nos alunos. Zilberman (1998) diz que a literatura infantil, no espaço educacional, tem servido como instrumento de propagação do sistema normativo escolar, manipulando a criança e disseminando padrões de comportamento adulto. Apesar disso, a literatura não deve ser retirada do currículo escolar, e sim, estimulada, no sentido de fazer uma reflexão a respeito do papel social da criança. De acordo com Cosson, A questão a ser enfrentada não é se a escola deve ou não escolarizar a literatura, como bem nos lembra Magda Soares, mas sim como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu poder de humanização (COSSON, 2006, p. 23).

Após essa breve explanação sobre o surgimento da literatura infantojuvenil e seu envolvimento com a escola, iniciando o processo de escolarização, não há, segundo Soares (2003, p. 21), como “(...) evitar que a literatura, qualquer literatura, não só a literatura infantil e juvenil, ao se tornar ‘saber escolar’, se escolarize (...); não se pode criticá-la ou negá-la, porque isso significaria negar a própria escola”. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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Nesse sentido, Coelho (2000) diz que os textos utilizados em sala de aula devem ser adequados às várias faixas etárias dos leitores, e também ao desenvolvimento da criança. Além disso, o uso da literatura no ambiente educacional deve obedecer a estudos programados e/ou atividades livres (COELHO, 2000). Essa divisão, então, corresponderia ao objetivo principal do papel formador do texto literário e também ao estímulo das possibilidades do leitor, pois, como aponta Cosson, “no exercício da literatura, podemos ser outros, podemos viver como outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos” (COSSON, 2006, p. 17). Deve-se valorizar a escolarização adequada da literatura, pelas infinitas possibilidades que ela permite ao interagir com cada leitor de forma única, permitindo a expansão do conhecimento de mundo e do pensamento crítico do aluno em formação. Como bem define Candido (1995), essa expansão da criticidade é primordial ao ser humano, pois promove o desenvolvimento do respeito às diversidades de gênero, sociais e de raça.

Transitando por alguns conceitos Racismo, uma mácula histórica Na sociedade brasileira há diversidades raciais que dão origem ao racismo e à discriminação em relação às pessoas negras. Essas diversidades, fortemente atreladas à identidade do sujeito negro e suas consequências, como o racismo, afetam seu desenvolvimento, devendo, então, ser superadas para se atingir a equidade entre as pessoas. Com possibilidade de abordar temas sociais e interagir com os indivíduos de forma única, a literatura é forte aliada na visibilização dessa luta e no fomento ao respeito às diversidades. O racismo pressupõe a ideia de que um indivíduo, por pertencer a um grupo diferente, seja considerado inferior. Ele se manifesta através do preconceito, que seria um julgamento antecipado, baseado em características físicas, estereótipos, ou por pertencer a algum grupo social considerado inferior; e da discriminação, forma de tratamento humilhante e desigual. O racismo é uma construção individual, como aponta Lopes (2007, p. 13): “o indivíduo racista parte de uma idealização de si mesmo para desvalorizar a pessoa ou o grupo que ele considera inferior”. O racismo existe desde a antiguidade e manifestava-se através de discriminação de pessoas, baseado em suas características, físicas ou de origem. Por exemplo, na Grécia antiga, os povos estrangeiros não eram considerados cidadãos e não partilhavam dos costumes e direitos gregos (LOPES, 2007). No Brasil, o racismo contra pessoas negras é uma construção histórica que teve respaldo na escravização de africanos na época da colonização. Para entender essa construção, é necessário compreender as principais concepções que tentaram justificar o racismo. O termo racismo é originário da palavra raça, que vem do italiano razza, vocábulo das ciências naturais que se referia à classificação de espécies animais. Anos depois, o termo também abarcaria “grupos de pessoas com as mesmas caraterísticas físicas, mesmas origens geográficas e mesmos hábitos culturais” (LOPES, 2007, p. 20). Essa ideia do racismo, baseado em características biológicas, surgiu com o desdobramento das teorias racistas no século XIX, principalmente as formuladas pelo Conde Gobineau que, em seus estudos, defendia a superioridade da raça branca (LOPES, 2007). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Os estudos do Conde deram origem ao “racismo científico” que, além de estabelecer a superioridade de raças, inevitavelmente, justificava a superioridade de culturas, ligando o desenvolvimento e o progresso à Europa, e o primitivo e inferior aos povos não europeus (LOPES, 2007). Esses argumentos foram amplamente utilizados para justificar a colonização e escravização de africanos. No Brasil, o racismo científico deu suporte à escravização de africanos pelos portugueses para a colonização do país. Por serem considerados pessoas inferiores, mesmo após a abolição, os negros não tiveram seus direitos à cidadania reconhecidos por muitos anos (SKDIMORE, 2012). Diante do exposto, será irrefutável o reconhecimento de uma literatura negra para servir à superação do racismo, já que é inegável a presença deste nas relações sociais, atualmente, e também dado o fato de que as teorias racistas deram sustentação a mais de 300 anos de escravidão no Brasil.

Literatura negra e negritude: a emergência da voz negra

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Por volta do ano de 1850 não havia uma literatura propriamente brasileira. Foi apenas com o Romantismo que a arte literária passou a exaltar as características nacionais do país e de seus habitantes, nela incluindo a hospitalidade, a benevolência e o alto padrão da população brasileira (FACIOLI, 2001). Entretanto, segundo Facioli (2001), essa imagem não correspondia à realidade nacional da época. A economia da Nação era à custa do trabalho escravo e a taxa de alfabetização era apenas de 15 a 20%, entre outros fatores. A literatura da época, então, restringia-se à Corte, localizada no Rio de Janeiro. Na primeira geração do Romantismo, predominou o nacionalismo e o patriotismo, e havia a preocupação de definir a literatura como genuinamente brasileira. O índio é abordado, nessa geração, como “elemento formador do povo brasileiro”, apesar de ser idealizado ao extremo por alguns autores românticos (FACIOLI, 2001). O negro, mesmo sendo também um elemento formador do povo brasileiro, foi ignorado nas primeiras obras que tinham como objetivo utilizar um ponto de vista nacional, ressaltando as diferenças entre a Europa e o Brasil. Com o fortalecimento do movimento abolicionista e republicano, a terceira geração do Romantismo teve um cunho mais social, destacando-se Castro Alves com sua poesia mais liberal com denúncia da escravidão (FACIOLI, 2001). Tratando-se da literatura voltada para o público infantil, Sousa (2005) aponta o aparecimento de personagens negros no final da década de 20 e início da de 30. Contudo, nessa época, os personagens eram estereotipados, ficando em segundo plano nas narrativas literárias. O conceito de literatura negra vai além do fato de o texto tratar sobre personagens negros. Segundo Bernd (1988), a chamada literatura negra surge a partir da enunciação de um eu que se admite negro, que usa sua voz para desconstruir estereótipos e assume certos posicionamentos perante a realidade. Nesse sentido, entende-se que há, então, uma literatura sobre o negro e uma do negro. Essa última se preocupa em resgatar a história e a cultura africana e afro-brasileira, por muitos anos negada na história nacional. Ianni (1998, p. 91) diz que “a literatura negra é um imaginário que se forma, articula e transforma no curso do tempo”, e que o negro é o tema principal dessa literatura.

Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Literatura infantojuvenil afro-brasileira: caminhos na superação do racismo

Podemos sintetizar literatura negra nas palavras da autora Bernd (1988, p. 22), que a reconhece quando houver (...) a presença de uma articulação entre textos, determinada por um certo modo negro de ver e de sentir o mundo, e a utilização de uma linguagem marcada, tanto no nível do vocabulário quanto no dos símbolos, pelo empenho em resgatar uma memória negra esquecida que legitima uma escritura negra vocacionada a proceder a desconstrução do mundo nomeado pelo branco e a erigir sua própria cosmogonia.

Nesse sentido, a linguagem utilizada na literatura é de suma importância, pois ela é que distingue, por exemplo, um texto com marcas racistas de outro antirracista. Para conceituar de forma mais específica, Proença Filho (2007) esclarece que a caracterização dos personagens, além de abranger o tipo físico e antropológico, apoia-se também no nome que levam. Por exemplo, uma história em que os personagens negros não possuem nomes, ou possuem apelidos pejorativos, poderia ser considerado um texto com marcas racistas. Para aprofundar o conceito de literatura negra, faz-se necessário explanar acerca da negritude. Segundo Bernd (1987, p. 24), a negritude “traz em seu bojo a vontade de reencontrar uma identidade perdida, o desejo de opor ressureição à assimilação”. A autora refere-se ao fato de que povos africanos colonizados costumavam incorporar a cultura dos europeus, alienando-se de suas próprias culturas. A ressureição seria, então, o despertar da consciência negra. Nesse sentido, a negritude é um conceito mais amplo do que a literatura, e também diz respeito à valorização da história e da cultura negra. Ainda de acordo com Bernd (1987), a literatura negra não é aquela produzida somente por autores negros. Segundo a autora, é “cientificamente falso e ideologicamente negativo” vincular a escrita à cor da pele, pois não há ligação entre cultura e raça. Não são as características físicas de uma raça que contribuem para uma cultura mais rica ou para uma maior sensibilidade às artes (LEVI-STRAUSS, apud BERND, 1987). Proença Filho (2004, p. 185) defende que, Em um sentido restrito, será negra a literatura feita por negros ou descendentes de negros reveladora de ideologias que caracterizam por uma certa especificidade. Em um sentido lato, será negra a arte literária feita por quem quer que seja, desde que reveladora de dimensões peculiares aos negros ou aos seus descendentes.

Desse modo, o tema da negritude independe de o autor ser negro ou não, uma vez que o cerne da questão deve ser a exaltação dos elementos negros nos personagens e na expressão poética, ou seja, no eu enunciador que se quer negro e na aceitação de sua cultura de forma positiva. Após a definição de racismo e literatura, o presente estudo fará breves considerações a respeito do mito, visto que há uma relação intrínseca entre a herança mítica dos povos africanos e a desmistificação de estigmas na literatura infantil.

Herança mítica No século XIX, o mito era tido como fábula, ficção, de acordo com Eliade (1972), com o intuito de subestimar a cultura de um povo, artifício muito usado pelos europeus Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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em suas conquistas e colonizações. Atualmente o mito ainda possui um tom pejorativo quando relacionado a histórias que não têm vínculo com a realidade (CRIPPA, 1975). Esse conceito vem se transformando aos poucos, e o mito já é visto a partir da ótica das sociedades primitivas, sendo considerado um resgate da história dos povos, fornecendo modelos para a conduta humana na época em que surgiram, conforme Eliade (1972). O autor também destaca que os mitos, em algumas culturas, são considerados “histórias verdadeiras”, que geralmente tratam das origens dos mundos e costumes, diferente das fábulas e das “histórias falsas”, que possuem tom cômico ou sórdido (ELIADE, 1972, p. 11). Sobre a definição de mito, Eliade (1972, p. 9) diz ser “uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares”. A complexidade da definição está no fato de que o mito, como dito anteriormente, está sendo visto a partir do pensamento das primeiras sociedades, podendo ser considerado uma tentativa de representar simbolicamente a realidade do ser humano ou de dar sentido a ela através dos eventos principais que produziram o homem como ele é hoje. Por outro lado, Malinowski (apud CRIPPA, 1975, p. 16) diz que “o mito é um ingrediente vital da civilização humana". Nesse sentido, ele não deve ser encarado como produto de uma cultura considerada inferior, pois permeia o contexto social do ser humano desde os tempos primórdios, estando presente, por exemplo, nas raízes dos povos africanos que foram trazidos ao Brasil, fazendo parte da cultura atual daquele país. Tratando-se da literatura brasileira que abarca o contexto africano, é necessário ressaltar que ela naturalmente contempla o mito, revelando considerável representação da história e da consciência africana. Antes da criação da escrita, a língua falada dominava e era o principal meio de comunicação. A oralidade faz parte da linguagem mítica a partir do momento em que propicia uma forma singular de expressar a visão de mundo dos povos africanos. O mito possui, nesse sentido, uma função peculiar na sociedade, que seria a de explicar as coisas, a origem delas e a sua finalidade, destacando ainda o poder dos elementos da natureza (do divino) sobre os humanos. De acordo com Helena Theodoro (2005, p. 85), “os mitos, as lendas, os contos populares, sempre foram vias de acesso ao inconsciente de um povo”. Nessa perspectiva, os mitos da África mantêm vivas as tradições e as culturas dos povos africanos em solo brasileiro, pois eles estão espontaneamente referindo-se à realidade. A partir da breve discussão de conceitos básicos e motivos recorrentes nos textos literários selecionados como corpus da análise nesta pesquisa, ver-se-á de que modo eles se apresentam na tessitura das obras, e de que forma representam possibilidades de superação do racismo.

Nas linhas e nas entrelinhas, a superação do estigma A análise das obras que compõem o corpus da pesquisa tem como objetivo compreender de que forma essas valorizam o universo cultural, estético e simbólico das culturas afro-brasileira e africana. Na medida do possível, estabelecemos um diálogo com os referenciais teóricos levantados nos itens anteriores, obras que tratam da literatura infantil contemporânea e seus principais aspectos, além de abordar a criança como um ser em desenvolvimento, com todas as potencialidades e possibilidades de um adulto (COELHO, 2000). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Literatura infantojuvenil afro-brasileira: caminhos na superação do racismo

O cabelo de Lelê O cabelo de Lelê, escrito por Valéria Belém e ilustrado por Adriana Mendonça, trata da aceitação dos traços físicos marcantes característicos das pessoas com ascendência africana. O enredo conta a história de uma menina chamada Lelê, inicialmente insatisfeita com a aparência de seu cabelo cacheado. Curiosa, a garotinha vai pesquisar o porquê de ter esse tipo de cabelo e descobre, no livro sobre a história da África, que ele é uma herança genética e cultural daquele continente. Assim, a menina passa a aceitar a sua aparência e se torna mais feliz. A tendência estética da obra encaixa-se no realismo cotidiano, mais precisamente o lúdico, que, de acordo com Coelho (2000, p. 157), são “obras que enfatizam a aventura de viver, as travessuras do dia a dia, a alegria ou conflitos resultantes do convívio humano”. A história tem sua motivação nos conflitos internos da menina a respeito de sua aparência física, assemelhando-se aos questionamentos que as crianças enfrentam ao se perceberem diferentes dos outros ou do que é hegemonicamente visto como belo. A obra flui numa narrativa linear curta em prosa poética, na qual a voz do narrador segue entrecortada e interpelada pela voz da personagem principal. A narrativa gira em torno de uma problemática: “Lelê não gosta do que vê. – De onde vêm tantos cachinhos? Pergunta, sem saber o que fazer/ Joga pra lá, puxa pra cá/ Jeito não dá, jeito não tem. / De onde vêm tantos cachinhos, a pergunta se mantém” (BELÉM, 2007, p. 5). O descontentamento da personagem com a própria aparência, além da preocupação com a construção da própria identidade, demonstra que há uma diferença em relação ao que é socialmente aceito.

Figura: retirada de O cabelo de Lelê, 2007

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Em seguida, a personagem encontra um meio de solucionar seu problema: “Toda pergunta exige resposta / Em um livro eu vou procurar! / Pensa Lelê num canto a cismar” (BELÉM, 2007, p. 10). No contexto da história, a narrativa ganha um aspecto formativo, estimulando a natureza curiosa da criança a procurar o livro como fonte de conhecimento. A linguagem predominante é a poética, com rimas externas e internas, sonoridade, adjetivação, recursos que ressaltam a plasticidade e aproximam muito o público infantil, como se pode observar no trecho a seguir: Depois do Atlântico, a África chama E conta uma trama de sonhos e medos De guerras e vidas e mortes no enredo Também de amor no enrolado cabelo. Puxado, armado, crescido, enfeitado Torcido, virado, batido, rodado São tantos cabelos, tão lindos, tão belos! (BELÉM, 2007, p. 14)

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Ao utilizar esses recursos, a autora transmite um olhar atento ao seu leitor, para passar a mensagem de forma lúdica, clara e acolhedora. É importante destacar que a linguagem utilizada na história faz com que ela seja direcionada ao leitor que está sendo iniciado no mundo da leitura, que, de acordo com Coelho (2000, p. 34), corresponde ao “início do processo de socialização e de racionalização da realidade”, que normalmente ocorre por volta dos 6/7 anos de idade. Pode-se também observar, no excerto destacado acima, que há referências históricas e culturais aos povos africanos, revelando, dessa forma, que a literatura negra ou afro-brasileira promove um resgate de suas raízes por muito tempo negadas, revelando, assim, a essência da negritude (BERND, 1987). O texto continua mostrando o processo de aceitação da personagem: Lelê gosta do que vê! Vai à vida, vai ao vento Brinca e solta o sentimento. Descobre a beleza de ser como é Herança trocada no ventre da raça Do pai, do avô, de além-mar até (BELÉM, 2007, p. 18, 19, 23).

Nesse momento, pode-se perceber que o processo de aceitação não envolve apenas sentir-se belo ou bonito; ele vai além, ao promover a construção da identidade da pessoa negra a partir do conhecimento de seus antepassados, tornando o cabelo um elemento simbólico da cultura negra, como se pode ver no texto a seguir: “Lelê já sabe que em cada cachinho / Existe um pedaço de sua história / Que gira e roda no fuso da terra / De tantos cabelos que são a memória” (BELÉM, 2007, p. 26, 27). Ao se aceitar como é, Lelê se torna, de acordo com Bernd (1987), o eu enunciador que se quer negro, e a história acompanha essa evolução ao mostrar, através das gravuras, os diversos tipos de penteados que a garota faz em si mesma para valorizar seus cachos. A protagonista é representada de forma positiva, muito diferente do estereótipo de feiura ou inferioridade. Lelê é uma personagem dinâmica, que evolui durante a narrativa. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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A construção da personagem denota o que Brait (1985, p. 48) destaca como “forma própria de existir, sentir e perceber os outros e o mundo”. Isso se percebe no momento em que Lelê não se sente feliz com o próprio cabelo e externa seus sentimentos em relação a ele, indo atrás das respostas para o seu problema. Após descobrir através do livro de história da África o porquê de sua aparência física, ela se torna uma personagem com outra visão de mundo, com outra forma de perceber a si mesma (BRAIT, 1985). É importante ressaltar que as imagens da obra dialogam com o texto e não perpetuam estereótipos; pelo contrário, tratam a curiosidade sobre o cabelo crespo ou cacheado, assim como a descoberta de suas origens, de forma natural e bela. O tema da aparência física é relevante para ser tratado com crianças através da literatura, pois se sabe que é na fase da infância que inicia a formação de uma identidade própria, tornando-se inevitável o surgimento de dúvidas e de inseguranças a respeito do próprio corpo (COELHO, 2000). Entende-se, também, que o cabelo é uma parte importante da identidade dos indivíduos, como um elemento de beleza, força ou fascínio. Entretanto, com o resquício da escravidão, a marginalização da população negra teve como consequência a negação da identidade afro-brasileira, além da necessidade de absorver a cultura branca europeizada (BERND, 1987). O cabelo, por fazer parte da identidade da pessoa negra, foi visto, por muito tempo, de forma estereotipada, sendo característica de uma condição inferior, dando origem a estigmas como “cabelo ruim”, “duro”, “pixaim” e outras variantes. É nesse sentido que a literatura afro-brasileira vem para desmistificar e, de certa forma, completar lacunas deixadas pela negação daquela cultura em épocas anteriores.

O amigo do rei O amigo do rei, escrito por Ruth Rocha e ilustrado por Eva Furnari, conta a história da amizade entre um garoto branco e um garoto negro, na época da escravidão. Os personagens formam um laço afetivo, apesar das diferenças entre negros e brancos naquele tempo. Essas distinções, como já discutidas, foram baseadas nas teorias raciais de superioridade de uma raça em relação à outra, que culminou com a escravização de africanos no Brasil pelos portugueses (LOPES, 2007). No contexto narrativo, a amizade entre os dois garotos passa por mudanças, ao longo da história, superando barreiras raciais. A sequência narrativa é linear, com início, meio e fim bem definidos, cujo enredo gira em torno de uma situação-problema resolvida no final. A história inicia com o narrador situando o leitor no contexto histórico dos personagens principais e seus respectivos papéis sociais: Era uma vez um menino, mais ou menos do seu tamanho, de nome Matias. Isso foi há muito, muito tempo... naquele tempo ainda existia a escravidão. E Matias tinha nascido escravo. Matias era escravo de Ioiô. Ioiô era menino também. Do tamanho de Matias. Quando Ioiô nasceu na casa da fazenda, Matias estava nascendo na senzala (ROCHA, 1999, p. 2-5).

O narrador inicia mostrando as diferenças entre os personagens dadas às suas origens, mas em seguida enfatiza que cresceram brincando juntos, criando, assim, a amizade. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Apesar disso, como o seguinte trecho ressalta − “mas quando brigavam, como todo menino briga, Ioiô tinha sempre razão. Ioiô era o patrão” (ROCHA, 1999, p. 7) −, fica claro que mesmo o afeto entre as crianças era abalado pela ordem vigente, demonstrando que a superioridade de raça era incutida desde a primeira infância, dividindo injustamente a sociedade daquela época entre senhores e escravos (DEL PRIORE, 2012). A respeito do cenário que serve de pano de fundo ao enredo, Coelho (2000, p. 76-77) aponta que, em uma história infantil, o espaço “determina as circunstâncias locais, espaciais ou concretas, que dão realidade e verossimilhança aos sucessos narrados”, assemelhando-se com o contexto da vivência no mundo real, que também é relevante para o ser humano. No caso do texto analisado, há três cenários que possuem sua importância: a fazenda e o quilombo, como espaços sociais, onde se desenrolam as relações de poder, e a mata, como espaço natural, onde não há intervenção do homem. A fazenda serve de cenário para o desenrolar da história, dando um toque de realidade aos fatos narrados, além de ser o local onde Ioiô possui certa superioridade em relação a Matias. Já a mata desempenha o papel de neutralizar a ordem dos acontecimentos, pois, ao fugir da fazenda, os garotos não sabem o que os espera, não há distinções de classes, eles se tornam iguais na busca pela sobrevivência. Finalmente, o quilombo representa o local onde os papéis sociais são alterados, mas não invertidos, já que Matias, após tomar o seu lugar como rei, não transforma Ioiô em seu escravo. A obra tem características do realismo crítico cotidiano, conforme Coelho (2000), pois trata da realidade social a partir de uma perspectiva histórica. Na história, pode-se perceber que a autora retrata, de maneira fiel, o Brasil escravocrata, destacando as relações de poder entre brancos e negros, assim como as formas de resistência dos escravos que almejavam a liberdade. Rocha faz isso utilizando uma linguagem acessível para as crianças, com a presença de períodos simples, curtos e diretos, adequando o texto aos leitores em formação, aqueles com aproximadamente 8/9 anos, que já ordenam o pensamento de forma lógica, questionando, com frequência, o que está estabelecido, possuindo também um interesse maior pelo conhecimento do mundo, assim como pelas aventuras que a leitura oferece (COELHO, 2000). O texto também mostra a crença de Matias na liberdade, quando o menino conta ao seu amigo que um dia seria rei, mencionando a sua ascendência real, não aceitando, dessa forma, o destino que lhe fora imposto: “é o que os escravos dizem… Que lá na nossa terra meu pai era um grande Rei. E eu vou ser Rei, também. Ioiô não acreditava: Só vendo. Matias insistia: Vai chegar o meu dia” (ROCHA, 1999, p. 10). A princípio, Ioiô não acreditava no amigo, demonstrando, talvez, o pensamento estabelecido pela elite branca da época, de que os negros nasceram para ser escravos. No trecho seguinte (p. 15), o narrador revela que os garotos fizeram alguma coisa errada e foram castigados pelo pai de Ioiô. Matias, por ser escravo, não se abalara com a surra, o que prova ser comum, à época, que os negros fossem espancados e torturados ao fazerem algo considerado errado. Ioiô, porém, sentira-se ressentido e resolveu fugir junto com o amigo para a mata (ROCHA, 1999, p. 15). Provavelmente, por ser escravo, Matias tinha facilidade de andar no mato, sobrevivendo com o amigo até se depararem com guerreiros que saúdam Matias como rei e os levam ao quilombo (ROCHA, 1999, p. 16-20). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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No quilombo, os garotos são recebidos com honrarias, especialmente Matias: “o povo da aldeia saudava seu Rei: Dunga lá! Salve o Rei! Saruê! E Matias sorria e pensava: Chegou o meu dia…” (ROCHA, 1999, p. 21). Ioiô fica no quilombo por algum tempo, sendo tratado como o amigo do rei (ROCHA, 1999). Nesse momento, a história de Rocha reforça o diálogo com a realidade brasileira colonial, pois era comum, nos quilombos, haver a presença de brancos que se sentiam rejeitados pela sociedade. Após um tempo no quilombo, Ioiô decide voltar para a fazenda, ao que Matias não interfere: “Matias e seus guerreiros levaram Ioiô pelos mesmos caminhos. E quando viram ao longe a fazenda de Ioiô, Matias se despediu: um dia a gente se encontra, quando meu povo não for mais escravo” (ROCHA, 1999, p. 28-29). É interessante observar, nesse ponto, que o personagem Ioiô passou por uma transformação, percebendo que não era superior a Matias, tanto que dentro do quilombo foi tratado como um amigo, e não como alguém inferior por pertencer a outra raça. Esse fato fez com que Ioiô tomasse para si a luta pela liberdade dos negros: “muitos lutaram também, lado a lado. Muitos negros, mulatos e brancos. E entre eles: Ioiô, O Amigo do Rei” (ROCHA, 1999, p. 32), reiterando mais uma vez a motivação histórica. Coelho (2000) defende que a literatura infantojuvenil do século XIX possuía características ufanistas; no século XX, devido à diversidade existente no país, os autores buscaram expressar não apenas a contribuição indígena, mas também a africana, para a construção da identidade brasileira, numa espécie de busca da “consciência nativista”. Como visto, a trama em tela tem como pano de fundo a escravidão dos negros africanos. Os elementos culturais estão presentes na obra, destacando-se, por exemplo, a organização do quilombo, com resquícios da organização política da África, demonstrando, assim, que as sociedades africanas não eram incivilizadas como procuravam provar as teorias racistas do século XIX.

Figura 2: capa do livro O amigo do rei, 1999.

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Sobre as personagens principais, pode-se apontar características bem interessantes. Matias, o garoto negro, é retratado, a princípio, em posição de servidão por conta de seu status social; apesar disso, ele tem em mente que sua vida não é apenas a escravidão. Outro ponto interessante é o fato de o personagem ter um nome, e não um apelido pejorativo. Como já dito neste trabalho, o nome é importante na caracterização de um personagem literário, pois demonstra a sua importância no contexto social (PROENÇA FILHO, 2007). Também era comum as crianças negras, na época em que a história transcorre, não possuírem nomes, apenas apelidos que os distinguiam dos demais. Assim, predominou, por um tempo, como enfatiza Andrade (1983), que os personagens negros em histórias infantis recebessem apelidos pejorativos ou que não tivessem nome, o que revelou mais uma forma de apagar a identidade da pessoa negra, negando-lhe a cidadania. A respeito de Ioiô, pode-se dizer que ele é um personagem que muito evoluiu na trama, saindo de sua cômoda situação de filho de senhor de escravo, para uma posição abolicionista, ao presenciar uma outra forma de organização social, que seria a do quilombo. É um personagem que representa uma forma de superação do racismo, pois fica implícito, pelas suas atitudes, não haver fundamento na crença da superioridade de um ser perante outro com bases nas suas diferentes raças. É importante ressaltar que a ilustração da obra em foco dialoga muito bem com o texto escrito, pois retrata, de forma significativa, o Brasil colonial. A inspiração para a arte ilustrativa de Eva Furnari foram as pinturas do francês Jean-Baptiste Debret, e do pintor alemão Johann Moritz Rugendas. Ambos retrataram o cotidiano brasileiro do século XIX através de cenas típicas, dando ênfase ao trabalho escravo e às relações sociais. As imagens em O amigo do rei também retratam a vivência dos negros escravizados, assim como as moradias e os objetos comuns àquela época. O tema da escravidão projeta na obra o valor do saber histórico, aproximando o ser negro da realidade de seus antepassados. A narrativa demonstra que os negros não reagiram passivamente à escravidão, e que houve formas de resistência; isso fica claro na obra de Rocha, tanto pela crença de Matias na liberdade, quanto pela referência ao quilombo, um dos maiores símbolos da resistência negra. Outro ponto desmistificado é o fato de que o processo de abolição não foi apenas uma conquista dos brancos, como uma forma de benfeitoria, mas uma luta em que os negros se destacaram bravamente.

Obax Obax, escrito e ilustrado por André Neves, é protagonizado por uma menina solitária que morava numa savana africana e gostava de inventar histórias, mas não era levada muito a sério pelas outras crianças da aldeia. Por não ser acreditada, a garota resolve ir em busca de aventuras e provar a veracidade de suas histórias. Nesse texto, a linguagem metafórica se identifica facilmente com o pensamento mágico natural das crianças. A narrativa é conduzida por um narrador onisciente, que além de descrever cenários com uma linguagem poética repleta de metáforas – “Quando o sol acorda no céu das savanas, uma luz fina se espalha sobre a vegetação escura e rasteira” (NEVES, 2010, p. 6) –, interfere nos diálogos (discurso direto), descrevendo reações e Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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comportamentos dos personagens, como visto em: “ – caçoavam as crianças”, “ – duvidaram os mais velhos” (NEVES, 2010, p. 13), entre outros.

Figura 3: capa do livro Obax, 2010.

A pequena Obax adorava inventar histórias para preencher sua solidão, ao que era constantemente contestada pelas outras crianças, visto seus relatos parecerem inverossímeis. Dentre tantos, um deles causa espanto geral, quando Obax afirma ter visto uma “chuva de flores” cair do céu, conforme indaga a instância narradora: “como poderiam chover flores onde pouco chove água? ” (NEVES, 2010, p. 15). Para provar a veracidade do que afirmara, Obax empreende uma viagem nas costas do elefante Nafisa, “que havia se perdido da manada e vivia sozinho pelas savanas” (NEVES, 2010, p. 19). Nessa viagem, a menina se depara com “chuva de água, chuva de pedras, chuva de estrelas, chuva de folhas (...), chuva de flocos de algodão”, mas nada de chuva de flores. Obax, depois de ter “dado a volta ao mundo” (NEVES, 2010, p. 22), retorna à savana e tenta mostrar aos outros o animal com quem empreendera sua viagem, mas encontra apenas com uma pedra em formato de elefante. Triste, por não ser compreendida, a menina a enterra. No outro dia, aquela pequena pedra transforma-se num grande baobá, que não era como os outros: “(...) era grosso e forte como um elefante. Seu tronco enrugado parecia estar desenhado com pequenos detalhes. Sua copa estava repleta de flores coloridas e pássaros nunca vistos por ali” (NEVES, 2010, p. 28). Finalmente, a história traz a tão desejada “chuva de flores”: Quando a pequena Obax se aproximou da árvore, os pássaros bateram asas numa agitação tão forte que as flores começaram a cair, enchendo os olhos da menina do mais puro brilho. Era uma chuva de flores que forrou a aldeia com um tapete de pétalas perfumadas (p. 30-31).

Destaca-se, nessa história, o elemento maravilhoso, explorado pelo autor a partir das vivências de uma garota com imaginação fértil, em uma realidade africana. De acordo com Rodrigues (1988), o termo maravilhoso vem do latim mirabilia e significa coisa Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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maravilhosa ou admirável. A autora também diz que no realismo maravilhoso os fenômenos são aceitos de maneira natural dentro da narrativa e convivem em harmonia com o cotidiano dos personagens (RODRIGUES, 1988). A obra de André Neves revela consideráveis elementos que fazem referência ao realismo maravilhoso, ao romper fronteiras entre realidade e imaginação, em que situações do cotidiano da menina dão lugar a algo maravilhoso que é tratado com naturalidade, não causando estranhamento no leitor. Pode-se destacar, dentre os elementos maravilhosos, a chuva de flores, a transformação de uma pedra em elefante e o crescimento de um baobá de um dia para o outro. Nessa perspectiva, vale notar a contribuição de Pereira (2012) a respeito do realismo mágico nas literaturas africanas de língua portuguesa. O autor identifica que o continente africano é terra fértil para o conceito de realismo maravilhoso, porque é nesse local que o mito faz parte da vivência diária das pessoas: “os elementos míticos e históricos vivem em harmonia, pois estão largamente enraizados no modus vivendi do povo onde, paradoxalmente, o mítico também é real e histórico” (PEREIRA, 2012, p. 150). É importante ressaltar que o elemento mágico, na literatura infantojuvenil do século XX, ganhou uma nova face quando foi inserido por Lobato, tendo como objetivo mostrar a diferença entre o mundo da criança e o do adulto (COELHO, 2001). Antes disso, de acordo com Coelho (2001), as histórias tradicionais, com elementos maravilhosos, geralmente tinham um personagem principal que esperava pelo maravilhoso para resolver seus problemas e receber alguma lição ao final. Já nas narrativas contemporâneas, o fantástico perde o papel moralizador, estimulando a personagem a solucionar seus próprios conflitos, saindo da posição de passividade. Em Obax, por exemplo, a garotinha, a fim de provar a veracidade de sua história, resolve, por si própria, empreender uma viagem, mostrando uma postura de superação diferente da dos personagens das narrativas tradicionais frente às suas dificuldades. Coelho (2001) afirma que um dos caminhos para a renovação da literatura infantojuvenil brasileira é o retorno às origens. E uma maneira interessante de fazer esse retorno é explorando o elemento mítico. O mito, como dito anteriormente, e dentro do contexto africano, representa a história e a consciência de um povo. Sendo assim, fica claro que o real e o mítico, por serem vitais para a vivência humana, convivem em harmonia desde tempos primórdios. Dessa forma, a história de Obax explora bem esses elementos quando os insere de modo natural no contexto da narrativa. Vale observar que o próprio autor de Obax diz que sua história não é um reconto, mas uma ficção criada a partir de pesquisas, na qual faz alusão ao ambiente e às características das tribos africanas. A história de Obax, assim como a sua postura diante de seus problemas, faz com que o leitor consiga assimilar valores que vão ajudá-lo a compreender o mundo ao seu redor, já que a natureza mágica presente na narrativa atrai espontaneamente as crianças. O texto, que tem como tema central as vivências de uma garota na planície africana, trata também da fauna e da flora, ao apresentar animais e plantas tipicamente africanos. A história desmistifica alguns estereótipos em relação ao continente africano, geralmente entendido como local seco, sem vida, onde impera a miséria. Na narração em análise, vê-se uma África viva, como pano de fundo para histórias maravilhosas, com uma cultura diversa, rica e repleta de manifestações artísticas, costumes e belas vestimentas distintas da Ocidental. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Literatura infantojuvenil afro-brasileira: caminhos na superação do racismo

A importância da história de Obax para a literatura infantojuvenil afro-brasileira reside no fato de valorizar a herança mítica e histórica dos povos africanos, como fica evidente no texto de Obax: “as histórias, como contam os contadores na África, são sagradas” (NEVES, 2010, p. 13), destacando a relevância da tradição oral e da contação de histórias, componentes inerentes às tribos africanas. A obra de Neves também vai ao encontro das características da literatura negra citada por Bernd (1988), conforme visto anteriormente, como a utilização de uma linguagem simbólica livre de estereótipos e preocupada em resgatar a cultura africana.

Deixando o caminho aberto... Após a verificação de características da literatura infantojuvenil afro-brasileira, pode-se afirmar que essa literatura contribui para a valorização do universo cultural, estético e simbólico das culturas africanas e afro-brasileira, ao tratar, sem estereótipos, temas como a beleza negra, a escravidão e o imaginário mítico africano, contribuindo, dessa forma, para a superação do racismo. Os objetivos iniciais dessa pesquisa foram atingidos, em sua maioria, visto que em seu percurso sentiu-se a necessidade de certos desdobramentos, os quais não puderam ser tratados nesse estudo, dada a extensão e a complexidade do tema. Sendo assim, esse trabalho não buscou esgotar o debate a respeito da literatura infantojuvenil afro-brasileira, mas, pelo menos, espera ter contribuído para ampliá-lo e suscitar maiores reflexões sobre o tema. Nesse breve percurso, percebeu-se a necessidade de um maior aprofundamento, a ser feito em outras instâncias da formação acadêmica; contudo, ficou um saldo positivo e uma motivação suficiente para o reconhecimento do valor dessa literatura, que humaniza à medida que envolve os leitores em um mundo de cultura diversa e com identidade própria. As dificuldades encontradas no transcorrer da pesquisa foram parcialmente superadas, na medida em que se buscou expandir a bibliografia inicial, em face de questionamentos emergentes e demandas a serem atendidas na consecução das metas traçadas no projeto de pesquisa. A literatura infantojuvenil encontrou muitos percalços ao longo dos anos para estar no patamar que ocupa atualmente. Foi possível perceber que a escola tem um papel fundamental na formação do gosto pela leitura, e também na manutenção de uma literatura antirracista, isenta de estereótipos. E se o racismo está arraigado na sociedade brasileira, desde a construção colonial do país, é preciso que a sociedade, como um todo, e a escola, de modo eficiente e planejado, sejam espaços formadores de cidadãos, combatendo, assim, as diversas formas de desigualdades. Como visto, durante muitos anos, a ciência procurou desvalorizar as características físicas e culturais dos negros, o que culminou numa visão racista e estereotipada. Nesse sentido, as obras aqui analisadas poderão contribuir, de forma significativa, para repensar o racismo e, no caso específico do público infantil, apresentar um novo olhar para a questão da negritude, seja em relação ao status do negro, durante a escravidão, seja referente ao debate sobre os novos padrões de beleza, ou ainda, desmistificando a ideia de uma África pobre e sem encanto. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Esse tipo de literatura contribui para a elevação da autoestima do leitor afro-brasileiro, que se verá representado de forma positiva, e, devido ao forte valor simbólico do seu discurso no texto, são abertos caminhos para o enfrentamento do racismo, ao romper com estereótipos e estigmas estabelecidos, propiciando, dessa forma, uma literatura para a diversidade.

Referências

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Literatura infantojuvenil afro-brasileira: caminhos na superação do racismo

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Literatura infantojuvenil: uma prática contra o bullying em sala de aula1 Children and youth literature: a practice against bullying in the classroom Fransuely Araújo de FREITAS2 Liliane Maria JAMIR E SILVA3 Resumo: Neste artigo, buscamos apresentar o laço existente entre a literatura e o ser humano, através de uma possível contribuição para a resolução de problemas existentes na sociedade. Focalizamos, então, a literatura infantojuvenil e os transtornos do fenômeno bullying, frequentes em sala de aula, com base em referenciais teóricos de Coelho (2000) e Fante (2005). Além disso, foram investigados os métodos de leitura em sala de aula, de acordo com os estudos de Zilbermam (2008), e idealizadas leituras e atividades sugestivas, com base nas teorias de Cosson (2007). Tendo como objeto de estudo obras literárias de Graciliano Ramos, Fernanda Lopes de Almeida e Ruth Rocha, seguimos as propostas do letramento literário em prol da construção de um novo pensamento e do bom relacionamento no ambiente escolar. Palavras-chave: Literatura infantojuvenil. Bullying. Letramento literário. Convívio social. Abstract: In this article we introduce the link between literature and the human through a possible contribution to solve existing problems in society. We focus on children and youth literature e and bullying disorders in the classroom, based on theoretical references of Coelho (2000) and Fante (2005). Besides that, classroom reading methods were investigated according to Zilbermam (2008) studies, and reading tasks and activities were planned and designed, based on theories of Cosson (2007). Having as the object of study, literary works by Graciliano Ramos, Fernanda Lopes de Almeida and Ruth Rocha we take as a frame of work the proposals of literary literacy in favor of the construction of new ways of thinking and good relationships in the school ambience. Keywords: Children and youth literature. Bullying. Literacy literary. Social life.

Introdução Esta pesquisa teve como objetivo investigar a importância da leitura literária nas turmas do ensino fundamental II, com uma proposta sensibilizadora voltada para os transtornos causados pelo bullying em sala de aula, dialogando e sensibilizando os alunos, através de obras focadas no respeito às diferenças. A partir da percepção do papel social que a literatura infantojuvenil exerce como instrumento humanizador e de compreensão da realidade, além de contribuir para a formação de uma nova mentalidade, levando em consideração o crescimento do número de casos de bullying nas escolas brasileiras, os ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Este trabalho foi originalmente apresentado como TCC, desenvolvido entre 2017.2 e 2018.1, sob a orientação da professora doutora Liliane Maria Jamir e Silva, publicado na Revista FAFIRE, Recife, v. 11, n. 1, p. 83-99, jan./jun. 2018. 2 Graduada do Curso de Letras-Licenciatura em Português e Inglês | Faculdade Frassinetti do Recife | FAFIRE | E-mail: fransuelyaraujo@yahoo.com.br 3 Doutora em Literatura e Cultura | UFPB | Professora do Curso de Letras | FAFIRE | Editora-chefe dos periódicos FAFIRE | e orientado da pesquisa | E-mail: lilianejamir@uol.com.br 1

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professores devem estar atentos e abordar o assunto em sala de aula, de maneira que possam contribuir para a redução dessa forma de violência. Desse modo, buscamos trazer propostas de leituras para que os professores possam trabalhar a aceitação das diferenças e estabelecer harmonia e sensibilidade entre os alunos, sendo escolhidas, para a vivência pedagógica, as seguintes obras: A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos; O dono da bola, de Ruth Rocha e Janjão, o fortão e Pinote, o fracote, de Fernanda Lopes de Almeida, que apresentam, de forma sugestiva, traços do bullying, representados em seus respectivos contextos ficcionais.

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Através da leitura, podemos conhecer não só a nós mesmos, mas ao outro, fazendo novas descobertas, desvelando novas visões de mundo, criando um diálogo permanente com a realidade. A literatura nos traz traços da sociedade, seus valores, costumes e ideologias, transformando-se em consonância com os avanços históricos e sociais, possibilitando ao leitor um diálogo constante com o contexto em que se insere. A humanidade sempre teve o hábito de contar histórias, sejam elas reais ou fictícias, uma prática que passava de geração a geração, através da oralidade. Essa tradição vem desde muito tempo atrás, como forma de preservação das culturas, de firmar na memória acontecimentos cotidianos ou históricos, de criar explicações para fatos e fenômenos que o ser humano não consegue explicar de forma racional, como é o caso dos mitos. O tempo muda e as gerações também, e muitas das histórias dos ancestrais caíram no esquecimento. Mas com o surgimento da escrita, esses relatos foram registrados de maneira que conseguiram alcançar os dias atuais. Através da criação artística, os relatos escritos ganharam outras formas, foram estilizados, moldados, a ponto de ganharem característica peculiar como linguagem: a literária. De acordo com Eagleton (2006, p. 7), “[...] a literatura é uma forma “especial” de linguagem, em contraste com a linguagem comum”; sendo assim, podemos considerar literários os textos construídos com palavras elaboradas e diferenciadas da fala comum, com certa erudição e repleta de artifícios, a fim de prender a atenção do leitor. Sobre literatura, Todorov afirma: Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro (2009, p. 76).

Dessa forma, a literatura pode representar cada sociedade através dos séculos de maneira fictícia, nos trazer problemáticas sociais e existenciais, mesmo sem ter a função principal de resolver problemas. O que existe, na verdade, é uma troca de experiências em que há uma expressão de ideias e pensamentos do próprio autor através de uma escrita imaginativa para expor seu ponto de vista enfatizando ou criticando a realidade de forma implícita ou explicita. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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Referindo-se a esse reflexo social literário, Candido (2000, p. 101) afirma que, “Pode-se chamar de dialético esse processo porque ele tem realmente consistido numa integração progressiva de experiência literária e espiritual [...]”; dessa forma, cria-se um diálogo entre autor e leitor. O autor expõe o seu modo de pensar, a sua opinião para que o leitor possa contemplar, aceitar ou discordar, visto Candido (2011, p. 177) também afirmar que “A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.” A partir desse ponto de vista, podemos considerar que a literatura, de modo específico, transmite ideias e nos ajuda a refletir sobre algo, já que podemos perceber que ela dialoga e reflete características sociais; logo, mesmo sem ter função primordial de cuidar do ser humano, de certa forma ela transmite ideias e opiniões e nos faz pensar sobre aspectos da condição humana. Podemos perceber esses aspectos também na literatura infantil, que possibilita a construção do processo criativo do ser humano e, através de um mundo mágico, aborda questões sociais de forma implícita, como é o caso dos contos de fadas, que representam aspectos do bem e do mal, a ascensão social, o destino do humano e os sentimentos universais. Inicialmente, a literatura infantil era considerada um gênero literário menor, apenas com utilidade pedagógica, já que as obras poderiam trazer conceitos de bons costumes e lições de moral, assim como as fábulas, como forma de ensinar à criança o certo e o errado, além de servir como instrumento de aprendizagem da forma culta da linguagem. Refletindo sobre situações observadas no trato com a LIJ4 em contextos de leitura, Palo e Oliveira ponderam: Dentro do contexto da literatura infantil, a função pedagógica implica a ação educativa do livro sobre a criança. De um lado, relação comunicativa leitor-obra, [...] de outro, a cadeia de mediadores que interceptam a relação livro-criança [...] agentes controladores de usos que dificultam à criança a decisão e a escolha do que e como ler (2006, p. 13).

Dessa forma, podemos compreender que é necessária a criação de um espaço que leve a criança a um diálogo com o texto literário e, para isso, os mediadores devem guiá-la, facilitando o acesso aos livros, dando-lhe liberdade de escolha para que ela possa descobrir a si mesma e o mundo. Como afirma Zilbermam, A leitura do texto literário constitui uma atividade sintetizadora, permitindo ao indivíduo penetrar o âmbito da alteridade sem perder de vista sua subjetividade e história. O leitor não esquece suas próprias dimensões, mas expande as fronteiras do conhecido, que absorve através da imaginação e decifra por meio do intelecto (2008, p. 17).

Ou seja, através da linguagem, cria-se um mundo compreensível, mantendo uma comunicação entre autor e leitor. Sendo assim, ativa a imaginação do leitor e o leva a um posicionamento intelectual que dialoga com o texto, refletindo e obtendo novas experiências. Através de uma linguagem peculiar e uma estrutura plena de ideologias, a literatura infantojuvenil não deve ser considerada um gênero menor, já que pode mostrar valores ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 4

Leia-se literatura infantojuvenil.

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sociais inseridos no contexto, sensibilizando a criança e melhorando as relações sociais. Ela é primordial para a formação social e cultural da criança. A leitura é um processo individual, mas ao mesmo tempo pede uma interação social, a partir do momento em que dela nos apropriamos, sendo possível obter novas concepções de mundo. De certa forma, como destaca Coelho, [...] a literatura aparece ligada a essa função essencial: atuar sobre as mentes, nas quais se decidem as vontades ou as ações; sobre os espíritos, nos quais se expandem as emoções, paixões, desejos, sentimentos de toda ordem... (2000, p. 29).

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Assim, podemos entender que a literatura é uma maneira de representar o próprio ser humano, é a representação da vida, seus questionamentos e sentimentos, e se apresenta de modo peculiar, de acordo com o seu público-alvo. Dessa forma, para as crianças, cria-se um mundo fantástico em que pode acontecer o diálogo entre fantasia e realidade, de modo que a imaginação e a sensibilidade possam ser estimuladas. Em sala de aula, segundo Cunha (1991, p. 47), “Seria, pois, muito importante que a escola procurasse desenvolver no aluno formas ativas de lazer – aquelas que tornam o indivíduo crítico e criativo, mais consciente e produtivo. A literatura teria papel relevante nesse aspecto.” Sendo assim, apesar de a literatura infantojuvenil ainda ser considerada mais pedagógica do que artística, devem ser criados caminhos que façam com que sua leitura se torne uma prática significativa, desde cedo, não só no contexto escolar, mas que também seja fruída em outras situações de leitura. O contexto escolar é uma das maiores referências da infância, já que é nele que se iniciam alguns dos nossos primeiros contatos sociais. Em relação à leitura em sala de aula, quase sempre não existe liberdade de escolha sobre “o que ler”, visto que o professor acaba sempre impondo um determinado livro, que, por vezes, causa desinteresse no aluno e, a partir disso, tem-se uma ideia de que a criança ou jovem não gosta de ler. Cavalcanti (2002) afirma que a formação de leitores na escola ainda se prioriza num sistema mecânico, fazendo com que o aluno não tenha a oportunidade de refletir e ser criativo, pois o professor impõe a leitura e depois avalia o aluno, fazendo com que ele não tenha, ou perca, o gosto pela leitura. Os professores demostram maior preocupação em quantidade de leitura e não com a qualidade, focalizando no aprender a ler e escrever bem, e não no real sentido da leitura. O processo de leitura não é apenas a decifração de códigos linguísticos, mas uma decodificação de sentidos transmitidos através da escrita, através da participação/expectativas do leitor. Cosson (2007, p. 29) afirma que, “Ao professor cabe criar as condições para que o encontro do aluno com a literatura seja uma busca plena de sentido para o texto literário, para o próprio aluno e para a sociedade em que todos estão inseridos”; ou seja, o professor deve agir como mediador em busca da formação de leitores críticos e sensíveis aos possíveis sentidos do texto. Por outro lado, se a escolarização da literatura é ponto pacífico, a exemplo de todos os conteúdos inseridos nos currículos escolares, e como destacam Souza e Cosson, devemos estar cientes de

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[...] que essa escolarização pode acontecer de maneira inadequada quando a escola utiliza um texto literário, deturpando-o, falseando-o, transformando o que é literário em pedagógico. Para se evitar esta inadequação, alguns cuidados devem ser tomados, tais como privilegiar o texto literário e prestar atenção ao escolher um texto do livro didático, pois esse pode estar fragmentado, além do mais já se trata da transposição de um suporte para o outro (2011, p. 103).

Dessa forma, deve haver uma preocupação maior dos educadores em relação ao que e como se está lendo em sala de aula. Para essa formação de leitores críticos, há necessidade de se planejar estratégias de leituras, a partir da escolha de textos de qualidade estética, criando-se discussões, fazendo-se com que os alunos exercitem o diálogo criado entre texto e autor, promovendo, assim, uma maneira significativa de desenvolver a criticidade e a descoberta na conexão entre o mundo real e o fictício. Por esse prisma é que devemos reiterar a importância do professor como mediador da leitura em sala de aula, cabendo-lhe criar situações que envolvam o aluno, desenvolvendo a criticidade e o gosto pela leitura.

Bullying: brincadeira ou coisa séria? Um mal muito recorrente nas escolas, além de outros fatores, é a violência entre os alunos, o bullying. A famosa “brincadeira de mal gosto”, presente na vida de crianças e adolescentes, pode não ser apenas mera brincadeira, mas uma ação a ser observada e evitada o quanto antes. Segundo Fante (2005), gozações que podem magoar, intimidações, insultos e apelidos cruéis, que podem causar danos físicos e morais, são manifestações do bullying. A partir dessa definição, podemos compreender que esse tipo de comportamento é mesmo preocupante, visto que agressões diretas e indiretas podem causar traumas irreversíveis e muitas vezes irreparáveis. A família é a principal responsável pela formação das relações sociais do indivíduo, é o modelo principal que a criança segue desde cedo. De acordo com Ristum (2010, p. 113), “o contexto familiar tem sido apontado, nas pesquisas, como relevante para a ocorrência de bullying e não se relaciona apenas aos autores como também às vítimas e testemunhas”. Dessa forma, a maneira como os pais interagem com seus filhos pode trazer uma certa contribuição, tanto para a formação do caráter de agressores, como pais agressivos que formam filhos agressivos, quanto a de agredidos, muitas vezes crianças ou jovens que vivem isolados sem participar de atividades próprias a sua idade, sendo pressionados a fazer somente deveres escolares e domésticos, criando, dessa forma, um sentimento de impotência e de frustração. De acordo com Silva, No contexto familiar, os bullies crescidos e mais experientes podem ser identificados na figura de pais, cônjuges ou irmãos dominadores, manipuladores e perversos, capazes de destruir a saúde física e mental, e a autoestima de seus alvos prediletos (2010, p. 22).

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Podemos compreender que os “valentões” não estão apenas na escola, mas em qualquer lugar; e quando estão no contexto familiar, a situação pode ficar ainda mais delicada. As crianças se espelham nos adultos: o modo de falar, como se comportam em suas relações socioafetivas. Os pais tornam-se modelo para elas, construindo, assim, de forma positiva ou negativa, a sua personalidade, já que é a partir de suas primeiras experiências sociais que a criança constrói a sua visão de mundo. Lacan (2008) faz uma abordagem sobre complexos familiares que seriam o desenvolvimento do psíquico, dominando fenômenos integrados à personalidade na consciência do indivíduo, ou seja, esse fenômeno constrói e organiza o psicológico do indivíduo, fazendo com que ele internalize as relações familiares desde criança até a fase adulta. É dessa maneira que a criança cria sua personalidade, a partir de suas experiências familiares, internalizando-as e criando um caráter de acordo com o ambiente em que está inserida. Os pais desempenham um papel importantíssimo na formação de seus filhos, cabendo-lhes bastante atenção e cautela na hora de educá-los. O fenômeno bullying é muito comum em sala de aula, e muitas vezes acontece diante dos professores, que por vezes não percebem tanto por estarem muito atarefados em atividades corriqueiras, quanto por não terem conhecimento sobre o assunto. Por outro lado, o professor é considerado uma autoridade em sala, mas nem sempre é respeitado. De acordo com Silva (2010, p. 147), “Infelizmente muitos professores são humilhados, ameaçados, perseguidos e até ridicularizados por seus alunos”; alguns professores não conseguem manter o controle dos alunos em sala de aula, e acabam entrando, também, nesse ciclo de violência. Muitos têm medo de procurar os gestores e serem mal interpretados, além de sofrerem pressões e ameaças vindas dos pais e superiores, entre outras formas de pressão. Contudo, e infelizmente, não são apenas como vítimas que os professores se destacam. Silva (2010, p. 148) afirma que “Muitos alunos são intimados, coagidos, humilhados e até mesmo perseguidos por professores”, e a partir do momento em que o professor expõe o aluno de forma desrespeitosa, este, consequentemente, torna-se mais uma vítima de bullying. Esse tipo de comportamento pode contribuir para o desenvolvimento de um quadro de desmotivação e sensação de impotência. Nesse caso, cabe à instituição tomar medidas necessárias, de acordo com o quadro específico em que se encontram inseridos professor e aluno. É de suma importância que os professores criem uma relação de respeito e amizade com os alunos, já que, segundo Beaudoin e Taylor, a tarefa torna-se mais fácil na medida em que [...] os educadores puderem estabelecer uma relação pessoal com as experiências dos alunos – quer seja recordando parte de suas vidas como alunos, ou fazendo uma associação com a atual percepção que esses alunos têm da pressão que sofrem na escola (2006, p. 76).

Dessa forma, através da exposição de sua vivência escolar, cria-se um ambiente agradável e um laço de confiança entre educador e alunos. Já que existe um convívio diário com o professor, nesse contexto, é necessário que ele atue como um modelo, sendo importante trabalhar a diversidade, abordando temas que façam o aluno refletir e criar uma nova percepção acerca das diferenças. O convívio escolar é fundamental para o processo Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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de aprendizagem e formação do estudante. Sendo assim, o professor pode contribuir para evitar conflitos e manifestações agressivas em sala de aula. O educador deve ficar atento quando, segundo Fante (2005), o aluno vive isolado ou procura ficar próximo do professor ou de algum adulto; mostra-se inseguro ou ansioso; quando é o último a ser escolhido; quando apresenta um aspecto triste ou aflito; mostra desleixo nas tarefas escolares; apresenta feridas, cortes ou arranhões, sendo estes, em geral, os sinais do agredido. A observação também serve para os agressores: quando fazem brincadeiras ou gozações de maneira hostil; quando colocam apelidos ridicularizando; ou fazem ameaças e dão ordens; pegam materiais escolares e outros pertences sem consentimento dos colegas, entre outras atitudes agressivas e que causam constrangimento. Sendo assim, é de extrema importância que os educadores se conscientizem de que suas atitudes podem contribuir de forma direta ou indireta para as agressões do bullying, além de ser necessário a conscientização dessas ações, não só para que os professores possam evitar e intervir, mas também para que os alunos reconheçam e se sensibilizem acerca desse problema. De acordo com Fante, [...] a escola deve estimular o ensino e o desenvolvimento de atitudes que valorizem a prática da tolerância e da solidariedade entre os alunos. O diálogo, o respeito e as relações de cooperação precisam ser valorizados e assumidos por todos os envolvidos no processo educacional (2005, p. 93).

Seria necessário ensinar os alunos, desde cedo, a lidarem com os sentimentos, estimulando comportamentos menos agressivos, despertando a sensibilidade humana. Acerca disso, Boeaudoin e Taylor (2006) sugerem uma promoção dos vínculos entre os alunos e professores, afirmando que tal relacionamento pode trazer várias vantagens, como: capacitar os alunos a tentar dar o melhor de si mesmos; construir a autoestima e permitir que façam tentativas e cometam menos erros; proporcionar uma sala de aula segura; encorajar os alunos a assumirem o seu próprio “eu”; aumentar o desempenho escolar e inspirar os alunos a serem adultos melhores. Antes de tudo, é necessário investigar se existe esse tipo de violência na escola em questão, para que possam ser tomadas as medidas necessárias. Sendo assim, de acordo com Cléo Fante (2005), criadora do programa “Educar para a paz”, a partir do diagnóstico positivo, seria necessária uma modificação na realidade escolar. Seguindo a proposta do programa, a escola deveria criar um serviço de denúncias em que a vítima pudesse denunciar o seu agressor; atividades de redações como “minha vida escolar” e “minha vida familiar”; entrevistas com as vítimas e os agressores; desenvolvimento de projetos solidários, além de encontros e orientações para os pais. Os danos causados pela violência do bullying não são algo irreversível, mas podem ser evitados e tratados de maneira eficaz; necessita-se apenas de pessoas dispostas e preparadas a se dedicarem a essa causa tão humanitária. Tendo em vista todas as propostas de prevenção e combate em sala de aula, o professor de língua portuguesa pode inserir, em suas aulas, leituras que dialoguem com os alunos sobre o assunto, principalmente de uma forma sugestiva, sendo a leitura literária um importante suporte na superação das dificuldades geradas pelo bullying no ambiente escolar. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Da leitura crítica à prática pedagógica: possibilidades metodológicas

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Tendo em vista o poder de informação e a possibilidade de despertar a reflexão e a criticidade, serão propostas atividades de leituras literárias que tratem do assunto de forma sugestiva. Para a proposta, foram selecionadas três obras: A terra dos meninos pelados (RAMOS, 2000), O dono da bola (In: Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias, ROCHA, 1999) e Pinote, o fracote e Janjão, o fortão (ALMEIDA, 2006). A terra dos meninos pelados conta a história de Raimundo, um menino que era diferente dos outros, pois tinha um olho azul, o outro preto e a cabeça pelada, sendo motivo suficiente para que os outros rissem dele. Cansado das gozações, encontra como refúgio o país de Tatipirun, lugar por ele imaginado, onde todos são iguais. Após algumas aventuras nesse local, Raimundo decide voltar e ensinar para os outros meninos o caminho para Tatipirun, um lugar onde todos os caminhos são certos, todas as pessoas são amigáveis e não se importam com as aparências. Apesar de publicada em 1939, A terra dos meninos pelados, como toda grande obra de arte, dada a possibilidade de ser transposta a outros contextos, permite dialogar, por exemplo, com situações do bullying, a partir das gozações sofridas por Raimundo e questões do próprio ser humano, como a convivência, a aceitação das diferenças e as formas de tratamento para com o outro, servindo de reflexão sobre a própria sociedade. De acordo com Pádua (2011, p. 68), “todos esses ensinamentos serão percebidos por leitores infantis e juvenis, cada um no seu tempo e modo”. Dessa forma, após a leitura realizada, as crianças poderão perceber os conceitos inseridos na obra, de maneira que possam se sensibilizar e entender que ser diferente é ser normal. Essa obra pode ser trabalhada em sala de aula da seguinte maneira: inicialmente, o professor apresentaria o livro para os alunos e daria início à leitura dos dois primeiros capítulos, perguntando o que puderam perceber, como, por exemplo, a situação de Raimundo (os garotos sempre riam dele, e ele estava sempre solitário). Assim, pediria para que os alunos refletissem sobre estas questões e continuariam a leitura do livro. Em um segundo momento, após a leitura completa do livro, o professor retomaria o diálogo inicial, perguntando sobre o que puderam compreender sobre a obra (a exclusão por causa da aparência, as diferenças de personalidade, etc). Depois dessa discussão, o professor colocaria, em uma cestinha, bexigas da mesma cor, e apenas uma de cor diferente, de acordo com a quantidade de alunos, e pediria para que cada um pegasse um balão e enchesse. Após isso, os alunos se sentariam no chão e observariam os balões soltos. O professor seria o mediador dessa observação: cada balão possuiria a mesma cor, e apenas um teria cor diferente. Embora de cor diferente, todos os outros, apesar da mesma cor, possuiriam tamanhos distintos (e possivelmente formatos diversos), já que cada aluno encherá a sua maneira. Diante disso, os alunos poderão perceber com mais clareza, ou retomar o entendimento já obtido através da leitura do livro, de que ser diferente pode ser algo normal, e que, mesmo que todos tivéssemos a mesma aparência, teríamos, certamente, características peculiares, sejam externas ou internas. Em um terceiro momento, o professor mostraria a animação em curta metragem da Pixar For the birds, que pode ser encontrado no YouTube ou no DVD Pixar short films Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Literatura infantojuvenil: uma prática contra o bullying em sala de aula

collection, vol. 1, o qual mostrará vários pássaros iguais que estão juntos em cima de um fio, mas, com a chegada de outro pássaro, com uma aparência totalmente diferente, começam a rir e cochichar sobre ele. O pássaro tenta se enturmar, mas os outros tentam retirá-lo do fio e, ao conseguirem, acabam sendo lançados no ar e caindo sem suas penas, fazendo com que, dessa vez, o motivo de risadas sejam eles próprios. O curta não possui falas, mas pode ser compreendido perfeitamente. Assim, o professor poderá pedir para que eles observem alguns aspectos semelhantes à história de Raimundo (como, por exemplo, o começo do curta e do livro que trazem gozações acerca de uma aparência diferente), visando, também, à importância de dar espaço ao outro, à necessidade do acolhimento. Depois, os alunos poderão produzir um texto em que possam construir uma história que tenha a mesma problemática, sugerindo uma solução agradável para esse tipo de problema, através do que foi compreendido durante a leitura, a discussão sobre o livro e o curta metragem. Através dessas atividades, os alunos poderão perceber a importância das diferenças, visando ao respeito e à aceitação, não só em sala de aula, mas também em outros contextos, podendo desenvolver, assim, um ambiente mais agradável e acolhedor. O texto O dono da bola, que pode ser encontrado no livro Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias, de Ruth Rocha, também traz alguns aspectos relacionados ao bullying e às diferenças sociais. O texto conta a história de Carlos Alberto, conhecido como o dono da bola. Ele era um menino que tinha tudo, mas não tinha amigos. Os meninos do time de futebol do bairro, insatisfeitos com suas atitudes, resolveram tirá-lo do time, deixando-o sozinho. Infeliz com a solidão e tendo que brincar sozinho, Carlos Alberto decide convidar alguns meninos para brincar em sua casa, coisa que normalmente não fazia, aprendendo a conviver de uma maneira agradável com os outros, visto perceber que era muito ruim ficar sozinho. Até que resolve ceder a bola para o time, mostrando que realmente tinha se tornado outra pessoa, passando a ser chamado de Caloca, não sendo mais o dono da bola. Através desse conto, Ruth Rocha traz, de uma maneira simples e sugestiva, ensinamentos sobre convivência, mostrando que o melhor caminho para um bom relacionamento é ser gentil e não desvalorizar os demais ao seu redor. Para trabalhá-lo em sala de aula, incialmente, o professor pediria para que os alunos se levantassem em um semicírculo, então daria a eles uma flor de papel, como sugere Cosson5 (2007), e pediria àquele que tivesse com a flor no momento que dissese seu nome, sua origem, quem escolheu, e perguntaria como é chamado com mais frequência. Caso seja chamado mais pelo apelido, o professor perguntaria se existe alguma circunstância em especial que ele seja chamado pelo nome, ao invés do apelido, e como se sente quando isso acontece. Logo, o professor apresentaria o livro Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias e iniciaria a leitura do texto O dono da bola para toda a sala, pedindo para que prestassem bastante atenção. Depois da leitura, o professor pediria aos alunos que fizessem um breve comentário sobre o texto, apontando as dificuldades vividas pelo personagem, o que poderiam dizer sobre suas atitudes e a diferença entre quando os garotos o chamavam de ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Após a conclusão da obra em questão, o autor reserva um capítulo intitulado “Oficinas”, que traz sugestões pedagógicas de como trabalhar o letramento literário em sala de aula. 5

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Carlos Alberto e passaram a chamá-lo de Caloca. Em seguida, dividiria a sala em grupos e pediria para que um aluno representasse cada grupo. Os alunos representantes iriam socializar a ideia geral do grupo sobre como Caloca se sentia diante de toda a situação desenrolada no texto, notadamente algo que não foi mostrado pelo narrador. Após a socialização, o professor retornaria ao final do livro em que a própria autora sugere uma atividade: “Faça de conta que Caloca tinha um diário. Escreva o diário de Caloca. E conte como é que Caloca se sentia, desde que ganhou a bola até que deu a bola ao time. Você já deu alguma coisa sua a seus amigos?” (1999, p. 60). A partir dessa sugestão, os alunos escreveriam um breve texto contando a trajetória de Caloca, seus sentimentos, considerando-se o momento em que ganhou a bola, até quando a oferece para o time. Depois de feito, os alunos socializariam os textos e fariam um breve comentário sobre se alguma vez eles já foram “o dono da bola”, ou seja, se já passaram por uma situação semelhante na qual queriam mandar só porque possuíam algo que os outros não tinham e precisavam, ou em uma situação contrária, fazendo perguntas, como, por exemplo: Como se sentiram diante disso? Esse tipo de atitude é correto? Como poderiam resolver esse problema? Essa atividade pode ser dividida em várias aulas, dependendo da quantidade de participantes. Através dela, os alunos serão capazes de refletir sobre suas atitudes para com o outro, podendo compreender as consequências que elas podem trazer, de forma que possam desenvolver uma boa convivência dentro e fora da sala de aula. Por fim, o livro Pinote, o fracote e Janjão, o fortão, que conta a história de Pinote, o garoto fraquinho da turma, e Janjão, que, por ser o garoto mais forte, gostava de mandar em todos. Ele dava ordens aos demais e todos tinham que obedecer; sempre se aproveitava para bater em todos, e judiava até dos animais, além de se achar no direito de possuir tudo sem dividir com os companheiros. Certo dia, brincando de Rei dos piratas, começou a contar piadas sem graça e ordenou que todos rissem; mas Pinote, o menino fraquinho da turma, não ria. Então, percebeu que Pinote não fez nada do que ele mandou e foi tomar satisfação por não estar rindo como os outros. Pinote respondeu que, se quisesse, ele poderia rir apenas com a boca. Janjão sorriu e disse que só se pode rir com a boca. Mas Pinote, usando de sua esperteza, disse seria possível rir pelo pensamento, fazendo com que Janjão o obrigasse novamente, fato que, ainda assim, acabara o intrigando, pois como ele iria saber se o pensamento de Pinote estava de fato rindo como ele ordenara? Assim, começou a chorar, pois não adiantava ser o garoto mais forte da turma se não podia descobrir o pensamento de Pinote e muito menos subjugá-lo. Apesar de muito simples e curta, a história traz aspectos mais fortes e mais perceptíveis do bullying, podendo fazer com que o leitor entenda, de uma forma mais fácil, e compreenda os danos causados, além de demonstrar que esse tipo de atitude não é a melhor opção para se conseguir alguma coisa. Para que possa ser trabalhado em sala de aula com o objetivo de informar e despertar o bom senso dos alunos ou até mesmo diminuir o bullying existente, o professor poderá iniciar a leitura para toda a sala, mostrando também as imagens (ilustrações), depois estimular os alunos, perguntando sobre o que acharam, verificando, assim, se perceberam alguns aspectos importantes na história, como, por exemplo, as atitudes de Janjão para com os outros, etc. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Literatura infantojuvenil: uma prática contra o bullying em sala de aula

Depois da discussão, o professor informará aos alunos que Janjão levou Pinote para o tribunal, alegando que o pensamento de Pinote fez mal a ele, já que perdeu três quilos e não conseguia mais brincar de Rei dos Piratas. Mas será que ele fez mal mesmo? A partir disso, seria criado um júri simulado, como sugere Cosson6 (2007). O professor dividiria a sala em grupos. Cada grupo iria exercer uma função no julgamento (defesa, jurados, etc.). Dois alunos representariam Janjão e Pinote; cada um iria interpretar seu personagem, ou seja, defenderia as atitudes dele, mesmo que não concordasse. O professor informaria as tarefas desenvolvidas em cada grupo do julgamento. Dessa forma, os alunos transmitiriam o seu ponto de vista em relação às atitudes dos personagens, decidindo, assim, qual dos dois estava realmente com a razão. Durante o processo, o professor deverá analisar se os alunos realmente compreenderam o real sentido do texto, se as opiniões foram adequadas a ele, e a forma como agem na discussão de problemas. No final do processo, o professor poderia pedir também para que escrevessem um texto, dando um novo final para a história, ou até uma continuação, além de retomar a discussão, orientando os alunos a estabelecerem sempre relações amigáveis com os outros colegas. Assim, os alunos poderiam expor e discutir seu ponto de vista em relação ao assunto e compreender que as atitudes retratadas na obra não são adequadas, cujo sentido, sem dúvida, seria a redução do comportamento agressivo.

Considerações finais Compreendemos, então, que, através da literatura, podemos conhecer o outro e a nós mesmos, por meio da troca de experiências que ela pode nos proporcionar, visto que a literatura infantojuvenil também nos oferece essa possibilidade. Por outro lado, ela pode ser usada não apenas com uma função formativa, mas de uma maneira humanizadora, em busca da construção da sensibilidade. Formando crianças leitoras, podemos contribuir para o seu futuro na sociedade, já que é na infância que temos nossas primeiras experiências e é a partir delas que será desenvolvida a nossa personalidade. Além disso, percebemos que pais agressivos formam filhos agressivos, entre outros fatores que podem contribuir para a formação de um caráter bully, sendo de extrema importância que os pais, em primeiro lugar, preocupem-se com a formação socioafetiva dos filhos, contribuindo para a construção de um caráter positivo, desenvolvendo uma relação respeitosa com todos. As leituras e as atividades aqui sugeridas são apenas alguns exemplos de como vivenciar a literatura infantojuvenil em busca da diminuição dos casos de bullying. Acreditamos que, através do desenvolvimento dessas sugestões, foi possível confirmar os pressupostos da pesquisa, mostrando que é viável desenvolver a compreensão da leitura através do letramento literário, despertando a criticidade dos alunos. Espera-se que esse trabalho possa contribuir, de alguma forma, para a conscientização sobre os benefícios da literatura infantojuvenil no espaço escolar, não apenas no caso específico do tema em apreço, mas, também, em relação a outros temas ou situações, já que a leitura literária sempre nos apresenta um mundo de possibilidades. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 6

Conforme nota anterior. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Referências

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O sonho como rito de passagem e aprendizado em A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos The dream as a rite of passage and learning in Graciliano Ramos's A terra dos meninos pelados Vilani Maria de PÁDUA* Resumo: Neste ensaio analiso o conto A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos. Mesmo sendo dos anos 30 do século XX, a obra mantém-se atualizada e viva para discussões instigantes, tanto sobre bullying como a respeito da capacidade humana de encontrar meios para sair de situações difíceis. Mostra o respeito à alteridade como um dos meios para construir e desenvolver o ser humano, valorizando as relações interpessoais. Palavras-chave: Graciliano. Raimundo. Sonho. Crianças. Aprendizado. Abstract: In this essay I analyze Graciliano Ramos's tale A terra dos meninos pelados. Even from the 1930s, the work remains current and alive for thought-provoking discussions, both about bullying and about the human capacity to find ways out of difficult situations. It shows respect for otherness as one of the means to build and develop the human being, valuing interpersonal relationships. Keywords: Graciliano. Raimundo. Dream. Children. Learning.

I A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos, é um texto que sempre provoca inquietação e encantamento, não apenas por ser considerada literatura infantojuvenil, mas por mostrar, de forma agradável, o desenvolvimento das relações interpessoais, o crescimento humano diante das atribulações da vida, das quais não se pode fugir, bem como o aprendizado e a força individual que se manifesta em cada ser, na busca da sobrevivência dentro das adversidades. Além de tratar das diferenças entre as pessoas, mantém-se atualizada por não ser obra datada, ou seja, que trate de algo específico de uma época, mas de assuntos vivos que sempre estarão em pauta onde houver seres humanos. Assim, é eterna e sempre jovem, visto que faz parte do universo fabular e maravilhoso, que não a deixa envelhecer, pois o desenvolvimento humano não muda, mesmo com tanto progresso tecnológico, que sequer atenuou o alto índice de bullying no mundo, nestes tempos de tanta intolerância entre as pessoas, e de certo descaso das escolas e das autoridades em geral, ao não intervirem, deixando, muitas vezes, esta responsabilidade apenas para os pais, que sequer sabem do que ocorre na escola, causando danos, quase irreparáveis, a todos. Por isso, A terra dos meninos pelados é um conto também para os adultos. Foi escrito em 1937, quando já arrebatou um prêmio do Ministério da Educação. Também foi ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP | professora de Literaturas Brasileira e Portuguesa da FAFIRE | E-mail: vilanip@prof.fafire.br *

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adaptado para TV, tornando-se um musical, em 2003. Tem mesmo uma vida longa, pois o frescor temático o mantém vivo e atual, ao tratar da maturidade humana, consequência da busca incessante do ser pela compreensão de si e do outro; a luta diária para entender o que é estar no mundo. Sua atualidade é inversamente proporcional ao atraso de alguns seres humanos, que ainda não conseguem viver em comunidade.

II Nesse conto, Graciliano nos apresenta um menino que passa por situações complicadas, apenas por ter algumas características diferentes dos demais, e por isso é obrigado a suportar as provocações dos colegas. Aprender a conviver com as diferenças é fundamental, pois não há seres essencialmente iguais. O autor abre a história com a seguinte frase: Havia um menino diferente dos outros meninos: tinha o olho direito preto, o esquerdo azul e a cabeça pelada. Os vizinhos mangavam dele e gritavam: – Ó Pelado! (RAMOS, 2004, p. 111).

Logo depois, ainda demonstra:

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– Quem raspou a cabeça dele? Perguntou o moleque do tabuleiro. – Como botaram os olhos de duas criaturas numa cara? Berrou o italianinho da esquina. – Era melhor que me deixassem quieto, disse Raimundo baixinho (RAMOS, 2004, p. 112).

É deste modo que Graciliano Ramos apresenta o tema já no primeiro trecho e o desenvolve mostrando novos episódios de preconceitos e intolerância, enquanto também demonstra como fica a criança que sofre com os insultos. Ainda apresenta os mecanismos criados pelo menino para continuar vivendo na dificuldade, como escrever com carvão nas paredes: “Dr. Raimundo Pelado”, ou seja, atribuir um grau de importância àquilo que o chateia, na tentativa de sentir-se melhor, já que não consegue se livrar do incômodo. Mas isso não é suficiente, não lhe dá a segurança almejada, pois continua acuado, todos os outros meninos riem dele, deixando-o sempre na berlinda. É um doutor sem amigos e sem o menor valor. A literatura de Ramos é comprometida com os valores humanos, assim, ao denunciar e mostrar caminhos, ajuda ao leitor a superar certas dificuldades, ainda que não tenha a pretensão nem a obrigação de resolver os problemas da humanidade. Do contrário, anularia os deveres das autoridades, no caso pais e sistema de ensino. No entanto, o escritor não pode viver numa “torre de marfim” e ignorar o mundo ao seu redor. Como dizia Mário de Andrade, falando do seu tempo, mesma época em que viveu Graciliano, a arte deve ser social e interessada (ANDRADE, 2006, p. 6), isto é, precisa também estar ligada à vida, com assuntos que humanizem, que aprofundem relações, que desenvolvam o espírito. Principalmente, num país em eterna formação, como era o caso do Brasil nos anos de 1920/30, e que, infelizmente, não mudou tanto como deveria. Neste sentido, Antonio Candido também aponta Graciliano Ramos como um dos poucos, dessa época, que souberam juntar forma e conteúdo, apresentar os problemas sociais e Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


O sonho como rito de passagem e aprendizado em A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos

ao mesmo tempo manter a qualidade da literatura, ou seja, “soube unir crítica adequada à realização correta” (CANDIDO, 2000, p. 197), sem virar um panfleto de partido político. Assim, Graciliano consegue fazer com que Raimundo busque sair de sua agonia, criando mundos de carvão e areia, enquanto brinca sozinho. Um dia, fecha os olhos e resolve entrar em seus desenhos e sonhos. O fechar de olhos de Raimundo quer mostrar muito mais. Ele sai desse universo do dia a dia e entra no fabuloso criado por sua mente fértil. É uma fuga da realidade para um lugar ficcional, que lhe proporciona paz. E sai pelo quintal de casa e começa a andar sem rumo, morro acima. Acaba encontrando coisas estranhas na terra de Tatipirun, as quais havia criado riscando no chão e modelando a areia, por isso são “coisas que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto” (RAMOS, 2004, p. 112). Raimundo sonhava que pudesse existir tudo aquilo para se sentir mais adequado e com seu lugar no mundo. E passa a encontrar árvores, pedras e animais que falam; carros simpáticos que não atropelam; rios que se movimentam para facilitar a passagem dos pedestres, tudo muito funcional e prático, mas sem qualquer desafio. E crianças, muitas crianças sem cabelos, com os olhos da mesma cor dos dele, e que não passam dos 10 anos de idade. Raimundo foge delas porque acha que está sendo observado, devido às suas roupas muito diferentes das demais. Problema resolvido pela aranha costureira, que acha sua roupa “medonha” e, praticamente, o obriga a se vestir com uma nova, do seu ateliê, semelhante às usadas pelos meninos pelados. Ter que se adequar parece ser um transtorno para o homem. No entanto, respeitar a cultura do outro também faz parte do aprendizado humano. Assim, quando encontra as muitas crianças outra vez, percebe que todas têm a mesma roupa e o mesmo aspecto físico dele; está tão igual que não causa qualquer estranhamento e sente-se mais integrado ou adequado. Mesmo assim, ainda há diferenças. Este convívio, mais uma vez, cria dificuldades na cabeça de Raimundo. Naquela multidão de crianças há uma menina que não gosta do nome dele e o chama sempre de Pirundo, para seu desespero. No entanto, como tudo é relativo, o nome dela é Talima e não causa estranhamento nem em Raimundo. Há também um anão que todos chamam de “nanico” e tem sua opinião sempre rejeitada, por isso choraminga, então recebe o carinho dos companheiros e rapidamente se recupera. E um sardento que se sente tão esquisito, por ser único com manchas no rosto; e, ainda que não seja perseguido nem importunado pelos companheiros, quer obrigar todos a terem as mesmas manchas. Esse desejo de ser igual aos demais, de se assemelhar aos companheiros é um traço do comportamento humano, e talvez daí venham as dificuldades do convívio com as diferenças. Deste modo, Graciliano apresenta variados aspectos físicos de crianças iguais, porém, diferentes, e esta convivência e aceitação cria dificuldades pessoais contornáveis, visto que não há outra solução senão aprender a lidar com elas. Um é agredido, mas tem uma capacidade maior de entender e aceitar a fala dos companheiros; já o outro não tem qualquer problema de relacionamento devido à própria aparência, mas preferiria ser igual aos demais. Essa insatisfação dos seres humanos diante de si mesmos e da realidade é uma característica que pode gerar, se bem orientados, criatividade, pois tais inquietações ajudam a pensar, a responder aos questionamentos e a solucionar problemas. Perguntar, se chocar, voltar atrás, ser contraditório, mudar, concluir são características das mais humanas, e buscar respostas leva a soluções úteis para todos. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Raimundo, o menino tímido e arredio de Cambacará, é quem faz as mediações dos conflitos em Tatipirun. Sugere bons caminhos, pois o problema do outro é sempre menor e mais fácil de encarar que o nosso. Assim, o “nanico” vai continuar a ser chamado de “nanico”, mas tem o carinho de todos; o “sardento” esquece as manchas e vai viver sua vida. E Raimundo fica entre os dois, reclama do nome Pirundo algumas vezes, mas, no final, ele já nem se importa mais e aceita o novo nome. É fértil e fecunda tal convivência. Raimundo, digo, Pirundo está bem vivo e participativo, sua voz é ouvida e, não se sente diferente dos seus pares. Começa a gostar muito dali, mas não esquece que precisa voltar, pois tem uma lição de Geografia para fazer. De vez em quando sua memória o devolve para a vida real. Funciona como um aviso de que tem que voltar, ali não é seu lugar de permanência.

III

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Há outros momentos nos quais Raimundo se vê em situações parecidas com as do seu mundo. Um deles é quando as crianças vão pedir a Guariba que os conte uma historinha, porém a macaca está muito velha, a própria se autodenomina: Paleolítica. Deste modo, seu discernimento está confuso e ela mistura os assuntos, conta a história de um menino que foi diminuindo de tamanho até virar mosquito e voar, e fica repetindo as últimas palavras até adormecer. Enfim, surge outra face da memória, pois traiçoeiramente deixou-a na mão. Os meninos pelados se irritam e zombam dela. Raimundo, cada vez mais maduro, sai em defesa da Guariba, pois os mais velhos e, consequentemente, mais sábios, não podem ser tratados daquele jeito, e arremata: Meu tio é aquilo mesmo, sabido que faz medo. Mas não fala direito. Resmunga. E engancha-se nas perguntas mais fáceis. A gente quer saber uma coisa, e ele sai com umas compridezas, que dão sono. Vai resmungando, resmungando, e muda no fim, acaba dizendo exatamente o contrário do que disse no princípio (RAMOS, 2004, p. 131-132).

E encerra a questão, colocando a experiência e o saber dos mais velhos em evidência. Em outro momento, Raimundo convida as crianças para brincarem de vários jogos infantis, mas os amigos imaginários não os conhecem e não querem brincar com ele, que já estava parecendo excêntrico com estas novidades e com tantas perguntas. Veja-se que a própria mente de Raimundo cria estas pequenas dificuldades, que são resolvidas por ele, sem dramas, pois já está percebendo que seu mundo não é aquele. Os meninos apenas andavam, cantavam, saltavam e dançavam. Comiam o que lhes era oferecido pela natureza. Não adoeciam e eram muito felizes. “Isso é um fim de mundo!” (RAMOS, 2004, p. 124), reage Dr. Raimundo Pelado, que está ficando enjoado com tudo muito igual e, ao mesmo tempo, diferente demais daquilo que ele conhecia. Muitas outras ocorrências daquele lugar causam-lhes estranhamento. Por exemplo: andar muito com os meninos pelados, à procura de uma princesa, sempre caminhando para frente, pois foi informado que ali ninguém nunca volta; e mais, não havia adultos, somente crianças, com idades entre 05 e 10 anos; não chovia e o dia ficava sempre naquela hora, fresca e agradável. Não havia noite, portanto. Casas nem pensar, se estivessem cansados, deitavam-se onde estivessem, naquela relva macia e confortável, Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


O sonho como rito de passagem e aprendizado em A terra dos meninos pelados, de Graciliano Ramos

e dormiam; obrigações e desafios para o crescimento humano, como ir à escola, fazer lição, obedecer aos adultos, nem ouviu falar. Cada ocorrência dessa tem seu significado, pois o menino está acostumado com outro mundo de hierarquias, horários, tarefas de casa, dia e noite, sol e chuva, ir e vir. Aliás, a atitude deles de nunca voltarem, sempre andar para frente, é muito sugestiva. Raimundo pergunta se não vão voltar pra casa e o menino sardento o informa que em Tatipirun nenhum deles volta a lugar algum. Tudo que querem ou procuram está para frente, nunca para trás. Graciliano pode estar mostrando tanto o valor da tradição, de se apoiar no passado para construir o futuro, como a fatalidade desse futuro. E que o ser humano é movido por ilusões que devem se realizar no futuro, por isso tantas buscas. Deixa de viver bem o presente, que é real, para se importar com o que não sabe se existirá. Todavia, muitas vezes precisamos parar e reconsiderar para retomar de outra forma ou por outro caminho, pois nem toda decisão é acertada. Porém, ali em Tatipirun “todos os caminhos são certos” (Ramos, 2004, p. 114), como disse a d. Laranjeira, confirmando o sonho bem sonhado de Raimundo, que lhe aponta ou lembra as vantagens de não desistir, de ter o que fazer, da responsabilidade de realizar suas tarefas, de poder voltar atrás, de errar e poder corrigir, de ser contraditório, vendo tudo isso como qualidades humanas. Como sua memória continua lhe avisando da lição de Geografia, ele resolve voltar, ainda que todos os meninos lhe peçam o contrário, ou que, pelo menos, retorne um dia. Raimundo promete voltar e trazer seu gato estranho, com os dois olhos verdes e medo de ratos. Faz um enorme discurso, no qual lembra cada um dos garotos; depois, vai ao local onde deixou suas roupas “medonhas”, e, como num rito de passagem, tira o roupão de Tatipirun e veste as suas, numa demonstração de aceitação de si mesmo e da sua realidade. Despede-se e volta do mundo dos sonhos, um ser humano diferente e melhor. Todos os garotos acham estranho esta volta e não o acompanham por todo o caminho, pois não sabem voltar

IV Esse espaço fictício e de aparente tranquilidade lembra o mundo de Emílio, criado por Rousseau, onde as crianças não deveriam sofrer influências dos adultos e viver entregues à Natureza, sob pena de serem deformadas ou degeneradas pela educação (ROUSSEAU, 1990). Esta concepção Naturalista do homem e da sociedade é, subliminarmente, criticada por Graciliano Ramos, quando faz sua personagem ficar chocada com a falta de administração de algum adulto; e ao mesmo tempo, também ressalta algo de positivo, que é um dos fundamentos da obra do filósofo, educar com e para liberdade. Tantos “encantos” servem exatamente como contrapontos à realidade anterior e verdadeira, de Raimundo. Somente assim é possível comparar os dois mundos, o real, de onde Raimundo fugiu, e o dos sonhos, onde ele foi se esconder, mas não quis ficar. Há, portanto, o respeito à alteridade, pois os seres, mesmo iguais, são sempre diferentes um do outro; além da distinção entre os lugares, o real e o imaginário. Aprender a lidar com isso é uma batalha diária. Distinguir o eu do outro e aprender a respeitá-lo é uma obrigação.

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Mesmo o garoto achando tudo aquilo uma maravilha, pois todos o respeitavam, o tratavam como igual, sente-se incomodado com a monotonia daquela felicidade sem limites, não há dificuldades ou desafios a serem vencidos, portanto, não há aprendizados. Tanta liberdade sem serventia alguma, isso o deixa agoniado, fazendo-o, de vez em quando, lembrar-se de que precisa voltar para fazer sua lição de Geografia. Ou seja, a memória e o sentimento de obrigação, de responsabilidade, sempre o jogam de volta à sua realidade, no cotidiano anterior, pois não adianta fugir dos problemas e querer permanecer neste espaço-sonho, onde crescer não seria possível. O mundo de Peter Pan não é o que Raimundo quer viver. É preciso lembrar-se dos deveres, assumi-los e resolver as pendências. Mesmo gostando, como está claro nesta afirmação: “Isto é agradável... Tudo alegre, cheio de saúde...” (RAMOS, 2004, p. 126), ele não deseja ficar em Tatipirun, não quer continuar sonhando, quer voltar para casa e, necessariamente, para o outro convívio, que tanto o desagradava. Saber voltar do sonho é saudável. A trama da escrita de Graciliano apresenta-nos uma literatura de alta qualidade. É importante que as histórias sejam bem escritas e estimulantes, para que a leitura não caia no vazio. Bruno Bettelheim trata da importância de um bom livro nas mãos de uma criança, e de como é preciso respeitar o leitor, sem subestimá-lo e, assim, ajudá-lo a crescer: Para que uma história realmente prenda a atenção da criança – afirma o psicanalista –, deve entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida, deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e tornar claras suas emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que a perturbam. (BETTELHEIM, 1980, p. 13).

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E foi isso que o autor propôs a seus leitores, uma literatura que leva a pensar, que coloca os problemas sem dramatizá-los, apresenta a vida sem rodeios, com a complexidade que lhe é inerente, sem esconder suas contradições. Não é porque se escreve para crianças ou jovens que se vá simplificar a ponto de deixar a literatura oca. Um conto como esse pode, perfeitamente, se não ensinar, pelo menos alertar ao leitor sobre a convivência harmônica entre as pessoas, e deveria fazer parte da lista de indicações de leituras nas escolas, a fim de provocar situações que levem ao debate, à troca de ideias. Todos esses ensinamentos serão percebidos por leitores infantis e juvenis, cada um no seu tempo e modo, pois uma obra não se lê apenas uma vez, e a cada leitura é possível que se avance no aprendizado e na percepção das coisas. A criança e a humanidade em geral precisam desse alimento lúdico, que, segundo Jesualdo Sosa, tem “a finalidade de instruí-la, educá-la e diverti-la, quando não as três coisas ao mesmo tempo” (SOSA, 1978, p. 29).

Referências ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 4. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006. BETTELHEIM, Bruno. Psicanálise dos contos de fadas. 20. ed. Tradução Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. 3. ed. São Paulo: Ática, 2000. RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. 45. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou da educação. Lisboa: Publicações Europa-América, 1990. SOSA, Jesualdo. A literatura infantil: ensaio sobre a ética, a estética e a psicopedagogia da literatura infantil. Tradução James Amado. São Paulo: Cultrix,1978.

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Viva eu, viva tu: a oralidade como expressão literária em Lenice Gomes1 Yay me, viva tu: orality as literary expression in Lenice Gomes Nelma Menezes Soares de AZEVÊDO2 Resumo: No presente artigo, pretende-se discorrer sobre a escrita de Lenice Gomes, escritora pernambucana consagrada pela crítica por sua obra poética de vertente popular, que tanto sucesso vem alcançando junto ao público infantil. Destacamos a obra Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, que neste ano de 2018 completa 25 anos de sua primeira publicação. Africanos, asiáticos, europeus e americanos: as pessoas do mundo todo transmitem o seu conhecimento por meio da palavra falada através do tempo. Não raro, às vezes esses conhecimentos espalhados pelos continentes se encontram e se fundem, adquirindo uma variedade de riquezas culturais ímpares. Com base nas tradições orais, abrindo caminhos para o mundo mágico, maravilhoso e poético das histórias, a autora e contadora de histórias Lenice Gomes contribui para esse encantamento com mais de trinta e sete obras publicadas. É durante a sua experiência de vida que ela, a contadora, ouviu ou vivenciou essas histórias para recordá-las e contá-las. Palavras-chave: Lenice Gomes. Histórias. Tradição. Contador. Oralidade. Popular. Abstract: This article is intended to discuss the writing of Lenice Gomes, Pernambuco writer critically for your consecrated poetic work of popular aspect, that success comes both reaching next to children. We highlight the work Alive I, alive you – live the tail of Armadillo, which in this year of 2018 complete 25 years of your first publication. Africans, Asians, Europeans and Americans: the people of the world transmit your knowledge by means of the spoken word through time. Not infrequently, sometimes this knowledge spread across continents meet and fuse, acquiring a variety of unique cultural riches. Based on oral traditions, opening paths to the magical world, wonderful and poetic stories, the author and storyteller Lenice Gomes contributes to this enchantment with over 37 published works. Is during your life experience that she, the accountant, heard or experienced these stories to remind them and count them. Keywords: Lenice Gomes. Stories. Tradition. Counter. Orality. Popular.

Introdução Se você vir um tatu, Tatutando por aqui, Tatu-peba ou tatu-bola, Corra, esconda o pobrezinho, Caçador já vem aí. (Lenice Gomes, 1993, p. 3) ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

O artigo é o resultado de uma palestra pronunciada pela autora, no XI Encontro de Literatura Infantojuvenil na Universidade Católica de Pernambuco | UNICAP | em 2018, em colóquio comemorativo ao aniversário da obra e em homenagem a Lenice Gomes. 2 Mestre em Educação, Culturas e Identidades | UFRPE/FUNDAJ | Especialista em Literatura infantojuvenil | FAFIRE| Coordenadora do Curso de Especialização em Literatura infantojuvenil e Literatura Brasileira | FAFIRE | Professora da educação básica da Prefeitura da Cidade do Recife; Professora e Pesquisadora da Faculdade Frassinetti do Recife | FAFIRE | E-mail: azevedonelma@yahoo.com.br 1

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O contador de histórias é um pescador de momentos únicos cheios de significação. Ele transforma, dá vida àquilo que ouviu, transmitindo com encantamento, envolvendo com paixão os seus ouvintes. Contadores de história são comuns em todas as regiões brasileiras. A variedade de lendas, contos, fábulas e anedotas é incalculável. Essas verdadeiras manifestações culturais aparecem por todo o mundo. Africanos, asiáticos, europeus e americanos – as pessoas transmitem o seu conhecimento por meio da palavra falada através do tempo. E o importante, na arte de contar histórias, é saber despertar emoções. E com a autora Lenice Gomes não é diferente. Se considerarmos o conjunto da obra da escritora e contadora de histórias Lenice Gomes, pelo menos dois aspectos chamam a atenção: a tradição oral e a cultura popular. A linguagem oral está presente no nosso cotidiano, possibilitando comunicarmos nossas ideias, pensamentos e estabelecer relações interpessoais. Já sobre cultura popular, de acordo com a Constituição Federal, no art. 216, entende-se por cultura todas as ações por meio das quais os povos expressam suas “formas de criar, fazer e viver”. A cultura engloba tanto a linguagem com que as pessoas se comunicam, contam suas histórias, quanto à forma como constroem suas casas, preparam seus alimentos, rezam e fazem suas festas. É preciso reconhecer que não existem culturas mais importantes, ou melhores que outras, mas culturas diferentes. Conforme Cascudo (2006), o Brasil é um país de grande diversidade cultural. A cultura brasileira formou-se das contribuições de indígenas, africanos e europeus, que aqui, neste território, criaram uma cultura distinta. Ela é composta de bens de natureza material e imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro. Mediante essas considerações, organizamos o artigo em quatro partes. Na primeira parte, apresentamos uma minibiografia da autora Lenice Gomes. Na segunda, tratamos sobre a definição de literatura oral e sua importância de ser recuperada nas linhas escritas, para então, na terceira parte, analisarmos a obra Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, 25 anos de publicação e sucesso. Na última parte, trazemos nossas conclusões com algumas palavras finais.

Conhecendo um pouco sobre Lenice Gomes

Fig. 1 A autora Lenice Gomes3 ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 3

Foto disponível em: < https://blogdalenicegomes.blogspot.com>. Acesso em: 24 set. 2018. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Viva eu, viva tu: a oralidade como expressão literária em Lenice Gomes

Maria Lenice Gomes da Silva estreou na literatura infantil depois que se aposentou como professora. Desde então, tornou-se uma escritora mais atuante na área de literatura infantil. Autora de muitos livros, alguns premiados, tem como elementos constantes, em sua obra, as adivinhas, as parlendas, os trava-línguas e outros elementos linguísticos, valorizando sempre a cultura popular brasileira, vinculando literatura escrita e literatura oral. Natural de Japi, no agreste pernambucano, é formada em História e especialista em Literatura Infantojuvenil; também é pesquisadora e contadora de histórias. É durante a sua experiência de vida que ela, a contadora, ouviu ou vivenciou essas histórias para recordá-las e contá-las. Publicou mais de 37 livros. Ministra cursos e oficinas que são muito concorridas e frequentadas por leitores de todas as idades. Atualmente, está à frente do projeto Cia Palavras Andarilhas, que leva as pessoas ao Teatro Joaquim Cardozo, desde 2010, para celebrar o universo dos contadores. Ler e ouvir uma boa história sempre encantou e prendeu a atenção das pessoas. O leitor e o ouvinte são estimulados em sua imaginação a abrir uma porta para o mundo da fantasia, dos mistérios e segredos. A autora Lenice Gomes consegue promover o ato de ouvir e contar histórias em momentos de gostosuras, de divertimento. Sabemos que o contador é aquele que preserva a história e não a deixa morrer, não vulgariza a palavra, mas, com simplicidade e sutileza, cria, empresta o corpo e a voz para dar vida a mais uma nova história. E Lenice Gomes é uma artista que traz na alma a emoção que contagia a todos, com suas histórias folclóricas e cheias de mitologias trazidas pelas culturas indígenas, portuguesa e africana, responsáveis pela formação literária do nosso povo. Como diz Bruno Bettelheim (1999), os contos tradicionais falam ao ego em germinação, oferecem estrutura e força para lidar com as adversidades da vida cotidiana. E para nós, o fundamento do conto é a oralidade, quer dizer: a palavra falada. Para transformar em arte, a palavra, aqueles que se pretendem contadores de histórias devem aproximar-se dos velhos contadores de histórias tradicionais, e é isso que percebemos no trabalho da autora Lenice Gomes. Ela com certeza bebeu nessa fonte. Para entendermos melhor essa autora que se dedica à tradição oral, passemos agora ao item a seguir, que tratará sobre a oralidade e a cultura popular.

A trajetória da literatura oral: a oralidade nos textos escritos Os camponeses da Europa do século XVIII pertenciam a uma categoria de ouvintes que ainda não haviam se transformado em “leitores”. Os livros ainda eram bem raros. Eles se dedicavam a um modo tradicional de leitura, integrados em uma cultura oral. A literatura oral é mantida e movimentada pela tradição. Segundo Cascudo, sobre a literatura oral, O termo foi criado por Paul Sébillot (1846-1918) no seu Littérature orale de la Haute Bretagne, 1881, e reúne o conto, a lenda, o mito, as adivinhações, provérbios, parlendas, cantos, orações, frases-feitas tornadas tradicionais ou denunciando uma estória, enfim todas as manifestações culturais, de fundo literário, transmitidas por processos não gráficos (CASCUDO, 2006, p. 399).

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Casscudo (2006) apresenta quatro características fundamentais da literatura oral: a antiguidade, uma vez que é impossível identificar a data de seu surgimento; a persistência, pois são transmitidas de geração a geração através dos séculos, sendo reformuladas, mas não esquecidas; o anonimato da autoria, o que a faz de todos e de ninguém; e a oralidade, voz anônima do povo que tem na sonoridade, na entonação e no ritmo, além dos gestos, os grandes aliados que reforçam o significado da mensagem. A trajetória da literatura oral no Brasil, segundo Cascudo (2006), teve a contribuição das três raças que formaram o povo brasileiro. Com os índios, que são os povos mais antigos do Brasil, as influências foram incontáveis, apesar de serem pouco valorizadas. Suas histórias foram conservadas através da memória dos mais antigos, que, por tradição, costumavam narrar tudo quanto se passou desde tempos imemoriais. O autor afirma que o idioma tupi foi o maior divulgador da literatura oral, significando que várias histórias indígenas foram narradas no contato entre indígenas e brancos. Os missionários, os bandeirantes, o mameluco (filho de português e indígena) foram os divulgadores da narrativa indígena conhecida como Poranduba, que é a expressão oral da odisseia indígena. O povo africano possui variados idiomas e dialetos, e com isso fica impossível calcular a riqueza da literatura oral negra. São histórias fictícias, verdadeiras, instrutivas, narrativas históricas transmitidas oralmente. Para sobrevivência da literatura oral africana, algumas negras velhas contavam histórias para os filhos dos colonizadores adormecerem. Eram conhecidas como “Akpalô”, as fazedoras de conto. Com essa grandiosa contribuição, de acordo com Cascudo (2006), as negras se tornaram, entre nós, ótimas contadoras de histórias. Já a influência europeia nos chega através das avós coloniais. O português emigrou com seu mundo na memória, com um acervo vastíssimo de histórias. Enfim, a literatura oral brasileira sofreu contribuições trazidas pelas três raças para a memória e uso dos leitores de todos os tempos. Não há povo que possua uma só cultura; porém, para que esta transmissão se sustente, faz-se necessário que garantias mínimas de sociabilidade aconteçam, começando no convívio do lar, da escola e em outros espaços que promovam essa oportunidade. Estimular a contação de relatos, experiências e histórias, permitindo que o discurso oral seja recuperado nas linhas escritas, possibilitará o reconhecimento da importância da oralidade no processo interativo, no sentido de aproximar as pessoas e tornar o relacionamento entre elas mais humano.

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Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, 25 anos de publicação e sucesso!

Fig. 2 – Capa da obra Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, Lenice Gomes, 1993

A obra Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, de autoria de Lenice Gomes, tem ilustrações de Paulo Rocha e é o livro de estreia da autora. Foi publicado pelas Edições Bagaço no ano de 1993. O livro apresenta oito composições poéticas, que trazem em seu corpus parlendas, assegurando o encantamento de uma literatura oral. De acordo com Debus (2006, p. 49), as parlendas “são um conjunto de versos rítmicos que podem rimar ou não, recitados ao longo de um jogo, brincadeira”. A autora ainda afirma que, por esse viés, “a criança se constitui leitor do texto literário a partir do momento que tem acesso a essas narrativas por meio da oralidade, bem antes de ser inserida no contexto da oficialidade do mundo letrado” (DEBUS, 2006, p. 54). Na obra analisada de Lenice Gomes, percebemos o diálogo da poesia escrita com as formas poéticas da oralidade. Cada poema divide texto e ilustração em página única. O texto escrito se apresenta com força e as imagens são pontuais e relevantes. Como sabemos, a ilustração não deve reproduzir mecanicamente o que o texto diz, mas enriquecer o universo significativo do texto. A autora lida com toda uma ludicidade verbal, sonora, às vezes musical, às vezes engraçada, juntando palavras e fazendo com que se distribuam pela página de forma cadenciada, provocando no leitor a visualização do que está escrito (cf. figura 3):

Fig. 3 - Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, Lenice Gomes, 1993, p. 1. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Podemos verificar que o texto privilegia a ludicidade, a brincadeira, o diálogo com a criança. O leitor é convidado para o interior do texto, no momento em que a autora utiliza uma linguagem criativa e íntima: “Que alô amalucado! Vou tirar um cochilinho e mandar um recadinho...” (cf. figura 4) ou no seguinte trecho:

Se você vir um tatu, Tatutando por aqui, Tatu-peba ou tatu-bola, Corra, esconda o pobrezinho, Caçador já vem aí. (cf. figura 4)

Fig. 4 - Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, Lenice Gomes, 1993, p. 3.

A autora sabe dosar o simbólico e o realismo com estilo próprio, de modo a articular a tonalidade oral ao código escrito.

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Fig. 5 - Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, Lenice Gomes, 1993, p. 2.

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Conforme a figura 5, Lenice Gomes instiga o leitor a se identificar com os versos poéticos. As estripulias e as travessuras vividas pelo personagem da parlenda são as mesmas que as crianças do mundo inteiro vivenciam, promovendo, assim, uma identificação entre leitor e personagem: “Cuidado! Olha o macaco! Na certa, vai trelar...”. A incorporação da oralidade no texto literário é posta de uma forma criativa, através de jogos sonoros e repetitivos, como as onomatopeias, os diálogos direto / indireto, que são recursos utilizados para capturar o leitor-criança, ampliando a sua imaginação criadora, dando movimento à prosa poética (cf. figuras 6, 7 e 8):

Era uma vez Uma bela arara De Araraquara Iara amarra A arara rara A rara arara De Araraquara. (A arara rara, excerto, p. 4)

291 Fig. 6 - Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, Lenice Gomes, 1993, p. 4.

Pinto Pia Pipa Pinga Quem quiser... Que pinte o pinto! (Pinto que pia, excerto, p. 6)

Fig. 7 - Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, Lenice Gomes, 1993, p. 4.

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Seguindo o princípio da comunicação oral, a autora não dispensa criatividade, imaginação e dinamismo, pois assim a narração se torna mais interessante e agradável ao espírito infantil:

O que aconteceu na panela de pipoca? Hum!... Hum!... Hum!... Pula que pula Pula sem parar Toda requebrada Toda assanhada Se solta no ar Plic – plic – plic – ploc... (Rebenta Pipoca!, excerto, p. 7)

Fig. 8 - Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, Lenice Gomes, 1993, p. 7.

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Concordamos com Zilberman (2005) quando analisamos os poemas Ói o galo do patrão e Quem saiu foi tu, cara de tatu (cf. figuras 8 e 9). A autora comenta que muitas vezes o mérito do poema não se situa na história relatada, mas na observação de situações insólitas, decorrentes da mistura entre fatos próprios ao cotidiano dos seres humanos e o comportamento ou a reação dos animais, como se percebe nos versos a seguir:

Ora, ora Veja essa! Que galo gabola O galo do patrão Lá vai ele dizendo: - Vê se não amola! (Ói o Galo do Patrão, excerto, p. 5)

Fig. 8 - Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, Lenice Gomes, 1993, p. 5.

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Viva eu, viva tu: a oralidade como expressão literária em Lenice Gomes

A galinha pintadinha E o galo carijó. A galinha veste saia E o galo paletó. A galinha ficou doente, Mas o galo não se incomodou Foi chamar logo o doutor. (Quem saiu foi tu, cara de tatu, excerto, p. 8)

Fig. 9 - Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, Lenice Gomes, 1993, p. 8.

Como vemos, os versos de abertura em ambos os textos (fig. 8 e fig. 9), por exemplo, utilizam recursos desencadeadores do humor e da comicidade, que não decorrem apenas da ênfase conferida ao ângulo engraçado das personagens. Os textos permitem-se a redundância, os desvios das normas linguísticas, a informalidade das expressões populares (trocadilhos), características do discurso oral. Tendo o poder de se desvincular do convencionalismo da linearidade, pois a linguagem oral proporciona mais liberdade ao narrador. Já no texto “Pinto que pia” (cf. figura 7), a ação avança com rapidez, sendo a agilidade narrativa reforçada pela intercalação da parlenda e pelo procedimento poético escolhido pela autora, que se vale da aliteração, ou seja, a repetição de um fonema vocálico ou consonântico, igual ou parecido, para descrever ou sugerir sonoramente um pensamento, um recurso sonoro bem peculiar ao texto poético. Nos outros poemas, vistos anteriormente, notamos que, ao dar voz aos personagens animais (macaco, tatu, galo, galinha, galo, pavão), a autora utiliza outro recurso empregado na linguagem poética, a personificação, reconhecida notadamente no texto de língua portuguesa, segundo Zilberman (2005), oportunizando a incorporação de recursos sonoros propícios à expressão que provoca a graça, o riso ou a piada, além de se aproximarem da oralidade e se mostrarem adequados à memorização e à repetição, imprimindo-se, como coisas agradáveis, nas lembranças do leitor. Com o recurso da parlenda, utilizado pela autora Lenice Gomes, percebemos como é possível incorporar uma forma tradicional e adicionar-lhe conteúdo, significado ou procedimentos originais. Ao se apropriar das formas populares, conhecidas do público, a obra de Lenice estará ajudando a preservá-las e, ao mesmo tempo, inovando-as.

Considerações finais Ao lermos os textos da autora Lenice Gomes, podemos nos imaginar sentados aos pés de uma contadora de histórias. Os textos exploram a sonoridade das palavras e do ritmo poético, seja empregando uma linguagem simples e lúdica, seja valorizando a investigação sensorial e o domínio da fantasia. A autora usa criatividade aliada à mais pura emoção. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Enquanto uma narradora contemporânea, a autora utiliza vários tipos de “ferramentas” possíveis para atrair o leitor, assim como o antigo contador de histórias fazia para conquistar o seu público. O resgate da linguagem popular, da literatura oral através dos poemas aqui analisados, é uma forma de divulgar e preservar ou, antes de tudo, de valorizar essas composições poéticas que atravessam gerações. Reavivar e trazer para as crianças pequenas essa atmosfera rítmica e sonora do poético, não é tarefa fácil. Porém, é um desafio que devemos ter como meta enquanto educadores e pais. Precisamos continuar contando as nossas histórias, planejando e desenvolvendo oportunidades para que a criança se interesse pelo rico universo que tem para desvendar, que é o mundo da leitura.

294 Fig. 10 - Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, Lenice Gomes, Editora Cortez, 2009.

O trabalho apresentado não esgota as análises realizadas, até porque outra edição da obra Viva eu, viva tu – viva o rabo do tatu, publicada em 2009 (cf. figura 10), incorporou novos poemas aos que foram analisados neste estudo. Esperamos que o artigo seja uma modesta contribuição aos mediadores de leitura, no sentido de instigar a curiosidade do leitor, e que seja um convite à leitura de outras obras de Lenice Gomes, ampliando seu repertório de leitura numa perspectiva reflexiva e crítica.

Referências BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 13. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. BIOGRAFIA de Lenice Gomes. Disponível em: <http://blogdalenicegomes.blogspot. com/>. Acesso em: 30 set. 2018. CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2. ed. São Paulo: Global, 2006. DEBUS, Eliane. Festaria de brincança: a leitura literária na educação infantil. São Paulo: Paulus, 2006. GOMES, Lenice. Viva eu, viva tu viva o rabo do tatu. Recife: Bagaço, 1993. GOMES, Lenice. Viva eu, viva tu viva o rabo do tatu. São Paulo: Cortez, 2009. ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


parte iII MEDIAÇÃO DE LEITURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

[...] o que eu pediria à escola, se não me faltassem luzes pedagógicas, era considerar a poesia como primeira visão direta das coisas e, depois, como veículo de informação, prática e teórica, preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo, que se identifica basicamente com a sensibilidade poética [...]. Carlos Drummond de Andrade



A formação do professor e as práticas da leitura literária1 Teacher training and the literary reading practices Nelma Menezes Soares de AZEVÊDO2 Resumo: Este trabalho desenvolve uma reflexão crítica sobre a competência literária do professor em sua prática pedagógica e a relevância que assume no processo da escolarização adequada da literatura infantil. Partimos da hipótese de que um maior investimento na formação continuada do docente possibilita a reconstrução de sua identidade como professor leitor, capaz de estimular o gosto pela leitura e, consequentemente, a melhoria de sua formação como cidadão crítico e atuante. Fundamentamos nossa pesquisa em Alarcão (1996), Schön (2000), Soares (2003), Zilberman (1998, 2009), entre outros. Numa abordagem qualitativa, a metodologia empregada teve respaldo na análise dos questionários aplicados a professores do Ensino Fundamental (anos iniciais) da Prefeitura da Cidade do Recife, permitindo a confirmação da hipótese levantada. A pesquisa possibilitou a investigação do tratamento a ser dado ao texto literário no âmbito escolar, visando a uma reflexão sobre sua importância e sua influência na formação do professor em sua prática docente. Palavras-chave: Leitura literária. Professor leitor. Formação docente. Abstract: This article develops a critical reflection on the literary competence of the teacher in their pedagogical practice and the relevance that takes the process of proper schooling of children's literature. We set out the hypothesis that greater investment in continuing training of the teacher enables the reconstruction of their identity as professor reader, capable of stimulating a taste for reading and, consequently, improving their training as a critical and active citizen. We base our research on Alarcão (1996), Schön (2000), Soares (2003), Zilberman (1998, 2009), among others. In a qualitative approach, the methodology employed was supported by the analysis of the questionnaires applied to teachers of elementary school (early years) of the city of Recife, allowing confirmation of the hypothesis raised. The research allowed the investigation of the treatment to be given to the literary text under schools, seeking a reflection on their importance and their in fluence in the teacher training in their teaching practice. Keywords: Literary reading. Professor-reader. Teacher training

Introdução Partimos do princípio de que a leitura proporciona o crescimento pessoal e transformações sociais. A palavra, revestida de carga semântica, ideológica e de simbologia, componentes questionadores e críticos, age sobre a razão, as emoções e o imaginário dos leitores. Vista nessa dimensão, a leitura pode facilitar a tarefa dos professores no sentido de ajudar os alunos em sua aprendizagem. Auxiliar o aluno a tornar-se um leitor autônomo, crítico e sensível é o primeiro compromisso de nosso ofício como educador. Aqueles que se envolvem com a educação de crianças e jovens precisam estar cientes da importância de sua atuação na formação de leitores e, principalmente, de serem também leitores. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Artigo apresentado no 7º Encontro de Pesquisa Educacional em Pernambuco | EpePE/2018 e publicado na Revista FAFIRE, Recife, v. 11, n. 2, p. 65-73, jul./dez. 2018. 2 Mestre em Educação, Cultura e Identidades | UFRPE/FUNDAJ | professora da Faculdade Frassinetti do Recife | FAFIRE e da rede de ensino municipal do Recife | E-mail: azevedonelma@yahoo.com.br 1

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Foram essas reflexões que, em seu conjunto, nos levaram à formalização da hipótese de que um maior investimento na formação continuada do docente possibilita a reconstrução de sua identidade como professor leitor, capaz de estimular em seus alunos o gosto pela leitura e, consequentemente, a melhoria de sua formação como cidadão crítico e atuante. Nossa preocupação com a formação do professor-leitor surge do entendimento de que a leitura da obra literária ainda precisa ser cultivada com maior ênfase em seu potencial estético, tendo em vista que, em face de um pedagogismo exacerbado, que sabemos ainda exercido por muitos professores, acaba empobrecendo-se a leitura na escola, o que traz sérias repercussões para além do recinto escolar. O objetivo geral do nosso trabalho foi desenvolver uma reflexão crítica sobre a competência literária na formação do professor em sua prática pedagógica, assim como compreender as causas do processo da escolarização inadequada da literatura, buscando uma superação do problema, no sentido de construir-se uma acepção que a conduza eficazmente como prática social de leitura. Nessa perspectiva, situamos, desde já, o fio condutor de nossa leitura crítica filiando-nos às ideias de Magda Soares (2003), Zilberman (1998), Lajolo (2000), Rosing (2001), entre outros que discutem e apontam práticas reflexivas na ação pedagógica do professor-leitor. Recorremos ainda a outras contribuições importantes no cenário do desafio da formação docente, visando a um professor pesquisador, reflexivo e crítico na sua prática pedagógica, como Alarcão (1996) e Schön (2000). Para desenvolver nossa pesquisa, fizemos a opção pela pesquisa teórico-empírica, com aplicação de questionários a professores do Ensino Fundamental (anos iniciais) da Prefeitura da Cidade do Recife, adotando uma metodologia de cunho qualitativo. Ao longo deste artigo irão ser tecidas algumas reflexões, procurando responder às questões orientadoras da pesquisa: a) Existem motivações e interesse por parte dos professores para a leitura literária? b) Por que o professor usualmente incorre numa escolarização inadequada do texto literário? c) Será que o professor tem consciência da necessidade de (re) significar seus fazeres pedagógicos com a leitura? E, sendo assim, dividimos o texto em quatro itens: no primeiro item, apresentamos algumas considerações sobre o trajeto histórico do processo de formação do professor, no qual encontramos importantes contribuições nas ideias de educadores brasileiros e estrangeiros mais atuantes no cenário da formação docente. Em seguida, no outro item, tratamos sobre a concepção de leitura, a função do texto literário, que vai além do prazer/emoção estéticos, visando alertar ou transformar a consciência crítica de seu leitor/receptor e a prática leitora no espaço escolar. No terceiro item, analisamos os resultados obtidos no desenvolvimento do trabalho investigativo, combinamos teorias que nos permitiram compreender os dados da pesquisa, cujos argumentos teóricos ajudaram a (re) dimensionar a prática de forma significativa, e no último item, trazemos as considerações finais.

Dos jesuítas à LDB (Lei 9.394/96): professor-pesquisador, novas exigências no cenário educacional Na história da educação brasileira, pelo menos nos primeiros 200 anos de sua colonização, o monopólio era dos Jesuítas, que estabeleceram escolas e começaram a ensinar a ler, escrever, contar e cantar. Toda a educação era modelada pela metrópole portuguesa.

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O manual de estudos, o Ratio Studiorum, que organizava os estudos da Companhia de Jesus, estabelecia em pormenores o currículo do colégio. Apesar de, inicialmente, o colégio ter sido pensado para os índios, atendia também aos filhos dos colonos, excluindo as mulheres e os filhos primogênitos, esses últimos porque iriam assumir os negócios paternos. Nessa fase colonial, a ação escolar é o instrumento que a sociedade da época vai utilizar, segundo Romanelli (2002, p. 23), “para impor e preservar a cultura transplantada”. Os padres eram portadores das formas dogmáticas de pensamento, reafirmação da autoridade, a tradição escolástica, literária e, sobretudo, o desinteresse total pela ciência, mantendo-se fechados à criticidade, pesquisa ou experiências. E foi essa a educação dos Jesuítas que perpassou todo o período colonial, imperial e atingiu o período republicano, impregnada de uma cultura intelectual transplantada, alienada e alienante, sobrevivendo à própria expulsão dos jesuítas, ocorrida no século XVIII, na era do Marquês de Pombal, cuja ideologia estava estreitamente vinculada ao enciclopedismo. O ensino foi conservado à margem, sem utilidade prática visível para a sociedade da época. No Brasil, o professor desde sempre esteve muito longe da produção de conhecimento e mais próximo da imposição. De acordo com Guedes, “Nunca houve no Brasil nenhum esforço pela qualificação de professores; pelo contrário, a regra de toda política educacional desde a submissão do professor aos minuciosos ditames da Ratio Studiorum até hoje tem sido o achatamento intelectual, acadêmico, profissional e salarial” (GUEDES, 2006, p. 19). Para prover as escolas públicas, o Governo resolve instituir concursos, nos quais não fazem maiores exigências. Desse modo, pessoas despreparadas assumem o magistério e muitas delas já detinham a vaga garantida por “apadrinhamento”. Em relação às necessidades didático-pedagógicas, o professor continua sem investigar ou discutir novos conhecimentos, limitando-se a comentar os assuntos, e o livro didático viria apenas reforçar a submissão do professor ao direcionamento contido nos materiais impostos. O século XX traz a expansão capitalista, como também a luta de classes e, consequentemente, necessidades sociais que provocam a expansão escolar. A década de 1980 representou, para os educadores, o marco da reação ao pensamento tecnicista (60 / 70) em que o professor re cebia treinamento a partir de métodos, para transferir conhecimento. A escola começa a avançar para a democratização das relações de poder em seu interior e para a construção de novos projetos coletivos. Os anos 90 foram marcados pela centralidade no conteúdo da escola no sentido de desenvolvimento de habilidades e competências escolares. Novas medidas são tomadas pelo Governo Federal para a reforma educativa, tendo a avaliação como eixo para todas as políticas de formação, de financiamento, de descentralização e gestão de recursos. O papel do professor começa a ser modificado devido às exigências da nova LDB, Lei 9.394/96 - Título VI dos profissionais da Educação, no art. 61, conforme apresentado por Carneiro (1998, pp. 148-149), na qual ficou determinado que A formação de profissionais da educação, de modo a atender aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de ensino e as características de cada fase do desenvolvimento do educando, terá como fundamentos:

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I – a associação entre teorias e práticas, inclusive mediante a capacitação em serviço; II – aproveitamento da formação e experiências anteriores em Instituições de ensino e outras atividades.

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Dessa forma, com essas novas deliberações, segundo as quais os profissionais em exercício deveriam também ter uma formação em nível superior, surge a preocupação do padrão de qualidade na formação docente, tanto inicial como continuada, pois bom professor seria aquele que transforma sua prática e os respectivos resultados em matéria de reflexão. É no exercício da docência que o professor se constrói e participa da construção do processo educacional da sociedade em que está inserido. O desejável e necessário é que todos os envolvidos na educação, e não apenas o professor, se tornem cada vez mais responsáveis pelo resultado do trabalho de toda a escola. Isso exige a revisão da estrutura organizacional da instituição, um esforço de atualização permanente e de acesso ao conhecimento, além de um tipo de prática que está se tornando menos discursiva e mais consistente, hoje em dia, que é a reflexão sobre a prática. Quando comprometido com o exercício da docência, o professor sente necessidade de rever o que constitui o fundamento de sua prática e de criar novos meios de conhecer e de relacionar-se com o conhecimento. Alarcão (1996, p. 177) afirma que “ser professor implica saber quem sou, as razões pelas quais faço o que faço e consciencializar-me do lugar que ocupo na sociedade”. Ao estudar a atuação dos profissionais, Schön, cujos estudos contribuíram bastante para a reforma educacional americana e trouxeram suas contribuições a partir do paradigma da formação artística, centra sua concepção de desenvolvimento de uma prática reflexiva em dimensões (reflexão na ação, a reflexão sobre a ação e o conhecimento na ação), que compõem o pensamento prático do profissional ao desenvolver as suas atividades em busca de uma intervenção eficaz. O processo de reflexão poderá ser o início de novos conflitos, à medida que coloca em questão os limites burocráticos e os valores que a instituição educacional assume. O professor reflexivo estabelecerá relações entre a prática pedagógica e sua participação nos contextos sociais que afetam a sua atuação. A formação docente, tanto a inicial quanto a contínua, precisa ser consistente, crítica e reflexiva, capaz de fornecer suportes teóricos e práticos para o desenvolvimento das capacidades intelectuais, direcionando o professor ao seu fazer pedagógico. Ao ter domínio do conhecimento dos aportes teóricos relativos às concepções de aprendizagem, o professor aclara sua decisão de escolher as melhores formas de trabalhar. No processo de formação contínua, o estímulo à formação docente e à de futuros professores como leitores não pode ser esquecido. Um professor sem o devido suporte teórico e paradigmático para conduzir pedagogicamente a leitura fica praticamente impossibilitado de melhorar seu desempenho. Segundo Rosing (2001, p. 6), “Discussões teóricas sustentam práticas reflexivas cujo objetivo é tão significativo como o que busca formar leitores a partir da formação do professor leitor”. Desse modo, aos docentes, cuja responsabilidade é formar e produzir leitores por meio da educação escolarizada adequada, a necessidade da leitura se impõe mais forte ainda, isto porque, caso ele próprio Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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não seja um leitor assíduo, rigoroso e crítico, tornam-se mínimas ou nulas as chances de que possa fazer um trabalho proveitoso na área da educação e do ensino da leitura, pela ausência do exemplo.

A escolarização do texto literário: adequando a experiência estética ao contexto escolar A inserção da literatura no ensino exige que, no seu processo de formação, o professor possa reconhecer que há um conjunto de saberes específicos sobre leitura e literatura a ser apreendido. Só assim se poderá desconstruir o antigo paradigma de que a literatura infantil guarda estreita relação com a tradição estabelecida de que a educação não concebe a fruição da arte (ou a escolariza), provocando práticas pedagógicas inconciliáveis. Segundo Calvino, sobre a função formativa da leitura literária, as obras podem ser (...) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelo, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude (CALVINO, 1993, p. 10).

O autor coloca em relevância a função formativa/educativa que os textos literários assumem, no processo de sua escolarização, como obras de linguagem e em relação ao efeito estético, significando que é preciso ultrapassar a noção conteudista do ensino para compreender que a leitura literária só pode ser exercida numa relação lúdica de construção e reconstrução de sentidos. O professor deve, então, confrontar o aluno com a diversidade de leituras do texto literário, para que reconheça que o sentido não está no próprio texto, mas na construção mediada pelos leitores em interação com a obra lida. É justamente a partir dessa interação que o estudo da literatura se torna significativo. Nesse sentido, buscando ampliar o enfoque sobre a leitura literária no tocante a sua escolarização, Soares, em estudos realizados em 1997, comenta que a escolarização da literatura seria inevitável, “pois é da própria essência da escola a escolarização” (in EVANGELISTA et al., 2003, p. 21), propondo-nos repensar o papel do professor na formação de leitores literários e a viabilidade de uma “escolarização adequada”, no sentido de propiciar ao leitor a vivência do literário, de conduzi-lo a práticas de leituras literárias significativas e frequentes. Assim, além de formar leitores assíduos, tal medida minimizaria a tensão existente entre o discurso pedagógico e o discurso estético no processo de escolarização. Na visão de Soares, é importante distinguir entre uma escolarização adequada, “aquela que conduza mais eficazmente às práticas de leitura que ocorrem no contexto social”, e uma escolarização inadequada, “(...) aquela que desenvolve resistência ou aversão à leitura” (SOARES, 2003, p. 25). As atividades que envolvem a leitura precisam ser apresentadas à criança/leitor como ato estimulante, atraente, interessante, prazeroso, dando ênfase ao ludismo e à versatilidade. O professor que planeja seu trabalho com a leitura, tendo conhecimento dessa concepção de escolarização adequada, estará contribuindo para que o aluno participe da Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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descoberta do real que o poder imagético do texto desencadeia, e do prazer da exploração dos recursos da linguagem, que todo texto estético mobiliza. Soares traz à tona as principais instâncias de escolarização da literatura infantil, a saber: a biblioteca escolar, a leitura e o estudo de textos nos livros didáticos e a leitura de livros de literatura como tarefa ou dever escolar. Na primeira instância, diferentes estratégias são utilizadas para escolarizar a literatura na biblioteca. À inadequação da prática de leitura (acesso e seleção dos livros, socialização da leitura) junta-se à do espaço. Ao invés de espaços convidativos, atraentes, interessantes, o público infantil encontra sisudez, seriedade e rituais de leitura ultrapassados. A leitura e o estudo de textos nos livros didáticos de Português, ao lado da biblioteca escolar, constituem outra instância de escolarização da literatura. Uma característica comum encontrada nos livros, e que marca a escolarização da leitura didática, é a fragmentação dos textos literários. Nas palavras da autora: “a literatura se apresenta na escola sob a forma de fragmentos que devem ser lidos, compreendidos, interpretados. Certamente é nesta instância que ela tem sido mais inadequada” (SOARES, 2003, p. 25). A autora ainda afirma que a escolarização da literatura se torna inadequada devido a vários fatores, tais como: a seleção de gêneros, autores e obras; a transferência do livro literário para o material didático; a má utilização das propostas de estudos a partir das leituras dos textos, entre outros. No momento em que a transferência inadequada da literatura se concretiza no livro didático, ocorre o sufocamento do texto como sendo literário, para dar espaço, tão somente, à gramática. Assim, morre a obra como obra literária e, consequentemente, como arte. Lembremo-nos, inclusive, de que, nos livros didáticos, os questionários são dirigidos de maneira a cobrar apenas este ou aquele aspecto textual. Se o aluno estiver interessado em outro aspecto, e o professor resolver se limitar àquele relacionado pelo livro didático, ou escolhido por ele mesmo, o interesse do educando será sufocado, quando o melhor seria aproveitar a ocasião para discutir a produção de sentidos efetuada na própria interpretação em aula, com suas possibilidades e nuances. A leitura e o estudo de livros de literatura também escolarizam a literatura por diferentes estratégias, formando outra instância distinta de escolarização por parte da escola. A leitura escolarizada é sempre determinada e orientada por um professor e vem seguida de avaliação francamente explícita ou velada. Perrotti (1990, pp. 71-72) lembra que colabora com o desinteresse da criança pela obra literária “o autoritarismo explícito das práticas escolares”, que fornecem “modelos pedagógicos baseados na obediência do aluno a regras definidas pelo professor”. Assim, não se lê por prazer, mas por dever. Sabemos que o aluno é, ao mesmo tempo, elo transmissor e receptor de uma cadeia significativa contínua. Quando o professor oferece um texto ao aluno, a recepção não será passiva e isolada. Por outro lado, o texto é, ele próprio, detentor de identidade e autonomia, cujos múltiplos sentidos dependem de sua contextualização, cabendo ao professor estimular a percepção dessa multiplicidade, a partir da interação entre o texto e o aluno, bem como entre ambos e a situação de aula. O docente deve evitar intervir sempre como “a última palavra”; deve ouvir e respeitar, também, a recepção do texto pelo aluno, certamente determinada em grande parte por um horizonte de expectativa estética e ideológica peculiar. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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Esta última instância, a leitura de livros de literatura (configurando-se como tarefa ou dever escolar), juntamente com a prática docente e sua atuação no trabalho com a leitura, será verificada a partir de dados investigados no capítulo a seguir. Como sabemos, as práticas de leitura escolar não nascem do acaso e nem do autoritarismo ao nível da tarefa, mas de uma programação envolvente e devidamente planejada, que incorpore, em seu trajeto de execução, as necessidades, as inquietações e os desejos dos alunos-leitores. Simplesmente “mandar o aluno ler” é bem diferente de envolvê-lo significativa e democraticamente nas situações de leitura, a partir de temas interessantes. O leitor, à medida do seu desenvolvimento e no ambiente em que vive e que frequenta, pode escolher textos a partir de seus interesses. Sem dúvida, há textos literários e não literários. Ambos circulam pela sala de aula, no entanto, o professor, por meio de uma mediação consciente, precisa saber discernir qual é o momento para cada um. A escola precisa cultivar o poder do leitor, em especial do leitor que discorda e argumenta, pois, na mania de fazer tudo “prazeroso”, alguns professores caem na tentação das facilitações encurtadas, superficiais e passageiras, que nada contribuem para a formação do aluno. A relação literatura e escola pode ser estimulante, criativa e crítica, desde que o excesso de pragmatismo não comprometa a função estética do texto literário. Então, antes de perguntar o que os alunos leem, é sempre imprescindível perguntar o que os professores leem, pois o que ocorre é que um professor mal preparado forma mal o aluno. Se ele não aprendeu a ler, não fará os alunos aprenderem a ler. E, consequentemente, atividades inadequadas serão realizadas dentro da sala de aula. A literatura, como fenômeno artístico, linguístico e histórico-social, calcado na liberdade de criação e na fantasia, proporciona ao seu leitor um olhar diferenciado sobre os diversos ângulos da realidade, daí que a maneira de a abordar, em sala de aula, apareça como questão emergente.

A leitura literária nas práticas cotidianas escolares: resultados obtidos Para Lajolo (2000, p. 108), “os profissionais mais diretamente responsáveis pela iniciação na leitura devem ser bons leitores. Um professor precisa gostar de ler, precisa ler muito, precisa envolver-se com o que lê.” Essa afirmação de Lajolo fundamenta o pressuposto que nos levou a desenvolver uma reflexão crítica sobre a competência literária na formação do professor em sua prática pedagógica e a relevância que assume no processo da escolarização adequada ou inadequada da literatura, aspectos que serão demonstrados a partir de dados investigados em nossa pesquisa. Pensando na escola como o lugar em que se aprende a ler (no sentido amplo da palavra), ou o local em que se pode desaprender isso para sempre, elaboramos uma pesquisa para averiguar os conhecimentos dos professores da Prefeitura da Cidade do Recife sobre literatura infantil e a metodologia utilizada por esses professores em relação ao texto (obra) de literatura. A pesquisa foi organizada em quatro etapas. A primeira foi a formulação do questionário, estruturado com 15 questões abertas, abarcando aspectos conjunturais necessários à análise. Na segunda etapa da pesquisa, definimos o quantitativo da amostra para uma caracterização pormenorizada da relação do professor com a leitura e sua formação. A Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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amostra abrangeu, a princípio, 30 questionários, distribuídos entre professores do Ensino Fundamental (anos iniciais) da rede municipal de ensino do Recife. Porém, outros docentes das instituições em que os questionários foram aplicados se propuseram a colaborar, perfazendo, no final, um total de 36 professores entrevistados. Tivemos somente a participação de professores do sexo feminino, e todas as docentes colaboradoras atenderam ao critério/perfil estabelecido de ter no mínimo 5 anos de docência na rede municipal do Recife, visto que nosso foco foi o de verificar se, no decurso de sua atuação profissional, tais docentes investiram numa formação continuada ou se mantiveram alheias às transformações sociais que, consequentemente, exigem mudanças educacionais. A terceira etapa da pesquisa se constituiu na aplicação do questionário. Para garantir a neutralidade dos resultados, houve abstenção de esclarecimentos sobre o conteúdo das perguntas. A quarta etapa foi a categorização e a tabulação dos dados. Optamos por não nomear professores, identificando-os por números. Nessa etapa, definimos os critérios de classificação e interpretação dos dados referentes à prática e à formação leitora e profissional dos entrevistados. Pelos dados coletados, obtivemos uma visão de conjunto das informações prestadas pelos docentes pesquisados. Apresentamos, em seguida, em torno de sete eixos, as respostas dos professores: 1) formação acadêmica; 2) formação leitora; 3) conceitos básicos de leitura literária infantojuvenil; 4) implicações relativas às práticas docentes; 5) oportunidades de socialização das atividades na instituição em que ensina; 6) participação em formações continuadas; 7) conteúdos e atividades sobre formação de leitor e vivência literária. Pudemos constatar que, na formação acadêmica dos professores investigados, predomina a licenciatura em Pedagogia, seguida do Curso de Letras, com especialização (a maioria) na área de Educação. Para as perguntas relativas à formação leitora dos professores, obtivemos as seguintes informações: os primeiros contatos, através da família, constituem uma memória particular de leitura. Porém, se esse momento não for estimulado em outra instituição social (como escolas, livrarias, bibliotecas, entre outras), através da convivência contínua e despretensiosa com textos literários e com as artes em geral, para alimento da fantasia e construção de outras visões da realidade, possivelmente não teremos leitores para a vida toda. Nessa perspectiva, quando questionados sobre a prática constante (ou não) de leitura, obtivemos um percentual bem otimista. Apesar de um maior percentual corresponder aos leitores assíduos (61%), os professores destacam, em suas respostas, que leem apenas para ficarem atualizados na profissão e por necessidade. Quanto à leitura de ordem estética, vê-se um sensível decréscimo (14%), visto os percentuais acusarem que, na vida cotidiana, as leituras dos jornais e das revistas se sobrepõem à vivência literária. No posicionamento de alguns professores, frente ao conceito e entendimento do que seja literatura infantojuvenil e sua função, assim como o que caracterizaria um bom livro para ele (professor) e para criança, encontramos os seguintes resultados: os percentuais apontam para a função e não para a natureza da literatura infantojuvenil, acontecendo uma distorção entre conceito e função. Segundo Zilberman (1998), embora seja um tipo de texto literário que traz a peculiaridade de se definir pelo Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A formação do professor e as práticas da leitura literária

destinatário, a obra infantil tem sua dimensão artística assegurada quando rompe com o normativo, com o pedagógico, enfim, com o ponto de vista adulto, e, por meio de um exercício de qualidade com a linguagem, leva o leitor a uma abrangente compreensão da existência. É importante ter clara essa definição do gênero literatura infantil, que ajuda na compreensão do seu valor e da sua importância para a criança. Numa outra parte do questionário, indagamos às professoras que atividades de literatura infantojuvenil elas têm realizado na sala de aula, quais os gêneros mais trabalhados, e que propostas e dificuldades são apresentadas na realização das atividades de leitura literária. O que chamou nossa atenção, nas respostas das professoras, foi que a leitura literária (gêneros lendas ou fábulas, por serem textos curtos) era trabalhada apenas no momento da hora da história ou na biblioteca, que é responsabilidade da bibliotecária, segundo as professoras. Constatamos, com isso, que a leitura com o objetivo de formar leitores não deve ser um trabalho esporádico, ou como alguns professores colocam em seu planejamento, realizado uma ou duas vezes por semana. Ela deve ser vivenciada diariamente, sempre na perspectiva de que uma leitura suscita outra e um comentário sobre um livro sempre estimula a leitura de outro. Como afirma Zilberman (2009, p. 36), “Já que a leitura é necessariamente uma descoberta de mundo, procedida segundo a imaginação e a experiência individual, cumpre deixar que este processo se viabilize na sua plenitude”. Os últimos eixos analisados referem-se às oportunidades que as instituições escolares oferecem para socialização das atividades desenvolvidas pelos professores, à participação dos docentes nas formações continuadas e ao que constituem essas formações em relação à leitura e à vivência literária. Um aspecto importantíssimo do magistério é exatamente o compromisso com o estudo e com a pesquisa. E o professor-pesquisador precisa de um instrumento básico a seu ofício, ou seja, precisa da leitura. Isso exige que os professores se situem na condição de leitores, pois, sem o testemunho de convivência com os textos ao nível da docência, não existe como alimentar a leitura junto aos alunos. Pelos dados apresentados, identificamos que, no momento, não é prioridade da instituição, da qual fazem parte os docentes investigados, proporcionar oportunidades para discutir e socializar a dinamização da prática da leitura literária. Esse resultado vai de encontro ao que recomendam os Referenciais para Formação de Professores (1999, p. 131), ao disporem que É preciso garantir espaços e tempos reservados na rotina de trabalho na escola, para que os professores e coordenadores pedagógicos (também chamados de orientadores ou supervisores, dependendo do sistema de ensino) realizem práticas sistemáticas de análise das ações desenvolvidas, discussão de observações, criação e planejamentos coletivos de propostas didáticas.

Nessa perspectiva, é notório que não se forma um leitor se as condições sociais e escolares, subjacentes à leitura, não forem consideradas e transformadas. A aprendizagem inicial e continuada deve levar o docente a uma criticidade e coerência permanentes, ao tomar decisões pedagógicas no encaminhamento dos discentes. A leitura, pela importância que tem na educação dos indivíduos, não tem merecido a devida atenção em termos Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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de estudo e pesquisa na área do magistério brasileiro, pois, infelizmente, neste campo, constatam-se, ainda, uma série de lacunas e de imprecisões conceituais. Se cabe ao professor o papel de ensinar, implicitamente cabe às instituições responsáveis por esses professores oferecer e rever condições de planejamentos, períodos de formações mais frequentes, atualização de conteúdos e atividades sobre formação de leitor e vivência literária, aspectos que não são priorizados, conforme os dados levantados em nossa pesquisa, para que o “ensino” se torne mais expressivo, consoante determinam os referenciais. Ao mergulhar no universo dos dados, foi possível perceber a força dos detalhes, os focos singulares e as pistas para uma dimensão além das estatísticas. Os resultados mostraram uma rede de informações que envolve aluno-professor-texto literário.

Considerações finais

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A reflexão que ora concluímos parte da convicção de que incentivar a leitura e trabalhar de forma adequada, propondo atividades práticas e diálogos críticos do que se lê, exige do professor uma atuação dinâmica, envolvente e reflexiva em suas ações. É ter o conhecimento de que ser leitor de literatura na escola é mais do que fruir um livro de ficção ou se deliciar com as palavras da poesia; ser leitor é também posicionar-se diante da obra literária, questionando ou afirmando valores culturais, elaborando e expandindo sentidos. A análise dos dados apresentados permitiu-nos destacar que é imprescindível que professores e alunos leiam sempre, diariamente, com objetivos significativos, utilizando estratégias de leitura variadas, refletindo e opinando sempre. O professor precisa fazer de sua sala de aula um espaço permanente de pesquisa. Poucos profissionais têm consciência de que as soluções para os problemas e os impasses de seu cotidiano docente podem ser vislumbradas por meio da observação crítica e constante de suas práticas na utilização dos textos literários. Comprometidos em realizar um trabalho sério no campo da leitura, os professores devem procurar manter-se atualizados no tocante à leitura de obras literárias como uma prática permanente. O mais importante, nesse processo, é reservar um momento para planejar essas atividades e compreender, em profundidade, a natureza da literatura infantil, conhecer a diversidade de seu acervo e dominar meios de intervenção que garantam uma prática eficaz. Sem uma direção teórica e metodológica estabelecida, podem até entreter os alunos e diverti-los, mas certamente não acontecerá a interação entre a criança e a obra literária. Como mediador de leitura, o professor é o especialista que precisa conhecer, selecionar e indicar a leitura de livros para a criança, mas não pode esquecer que é preciso que ele mesmo seja um usuário assíduo da literatura. Constatamos, em vista do exposto, que é necessário investir e incentivar a formação do professor, empregando alternativas as mais diversas, entre as quais a realização de cursos modularizados, numa dinâmica de intervenção no próprio meio em que atuam, como também conhecimento de sites que enfocam a leitura, acesso a revistas especializadas, participação em oficinas, minicursos, todas essas ações que ajudam a inserir a leitura no universo dos docentes. Em todas as instâncias de governo, e também nas escolas privadas de Ensino Superior, é essencial iniciar ou ampliar ações de disseminação (ou apoio) de cursos, em vários Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A formação do professor e as práticas da leitura literária

níveis de formação, de gestores para a leitura, cursos de formação continuada com uma carga horária expressiva, na área de leitura e literatura, produção e, sobretudo, divulgação e aquisição de obras técnicas e de pesquisa sobre o assunto, para esses profissionais. Tudo isso fundamenta o pressuposto que nos levou a desenvolver uma reflexão crítica sobre a competência literária na formação do professor em sua prática pedagógica e a relevância que assume no processo da escolarização adequada da literatura. Cremos, portanto, ter confirmado nossa hipótese de que um maior investimento na formação continuada do docente possibilita a reconstrução de sua identidade como professor leitor, capaz de estimular, em seus alunos, o gosto pela leitura e, consequentemente, a melhoria de sua formação como cidadão crítico e atuante.

Referências ALARCÃO, Isabel. (Org.) Formação reflexiva de professores: estratégias de supervisão. Porto: Editora Porto, 1996. CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. CARNEIRO, M. A. LDB fácil: leitura crítica compreensiva artigo a artigo. Petrópolis: Vozes, 1998. GUEDES, P. C. A formação do professor de português: que língua vamos ensinar? São Paulo: Parábola, 2006. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed. São Paulo: Ática, 2000. PERROTI, Edmir. Confinamento cultural, infância e leitura. São Paulo: Summus, 1990. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Referenciais para formação de professores. Brasília, 1999. ROMANELLI, Otaiza de Oliveira. História da educação no Brasil. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. RÖSING, Tânia. M. K. A formação do professor e a questão da leitura. 2. ed. Passo Fundo: UPF, 2001. SCHÖN, Donald A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2000. SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, Alves Martins; BRANDÃO, Heliana Maria Bruna; MACHADO, Maria Zeleci Versiane. (Orgs.) A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantojuvenil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil na escola. 10. ed. São Paulo: Global, 1998. ZILBERMAN, Regina.; RÖSING, Tânia. M. K. Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009.

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A literatura em quadrinhos e os multiletramentos: uma construção possível na formação do indivíduo social1 Comic literature and multiliteracies: a possible construction in the formation of the social individual Alison Medeiros de Mendonça SANTIAGO2 Liliane Maria JAMIR E SILVA3 Resumo: Este trabalho se propõe a desenvolver uma reflexão sobre a literatura em quadrinhos associada à teoria dos multiletramentos. Ao notificarmos que as metodologias atuais não abarcam novas formas de aprendizado, e que a práxis docente reproduz segregações, ao valorizar em um espaço plural como a sala de aula elementos de um único grupo social, objetiva-se refletir sobre um método diferenciado que ressignifique as práticas tradicionais do ensino literário, como também reiterar o reconhecimento dessa pluralidade citada anteriormente, defendendo um trabalho que esteja em consonância com a realidade do educando. Através de pesquisas bibliográficas, parte-se da tríade linguagem, cultura e sociedade até a imersão da literatura em quadrinhos no contexto dos letramentos visual e literário, apontando como esta relação contribui positivamente na formação do indivíduo social. Para mais, busca-se resgatar o caráter humanizador da literatura, democratizando o acesso ao saber literário, através da utilização de um suporte didático atrativo, motivador e habitual aos jovens leitores. Nesta análise, são utilizados, como aporte referencial, os achados em Candido (2004), Soares (2004), Rojo (2009), Vergueiro (2012), Nascimento (2014), entre outros. Palavras-chave: Literatura em quadrinhos. Multiletramentos. Indivíduo social.

309 Abstract: This paper aims to develop a reflection on the comic literature associated with the theory of multiliteracies. By notifying that the current methodologies do not include new forms of learning, and the teaching praxis reproduces segregations, by valuing in a plural space such as the classroom, elements of a single social group, the objective is to present a different methodology that re-signifies the practices literary teaching, as it also reiterates the recognition of this plurality mentioned above, defending a work that is in line with the reality of the student. Through bibliographical research and qualitative methods, we start from the triad language, culture and society to the immersion of comic books in the context of visual and literary literacy, pointing out how this relationship contributes positively to the formation of the social individual. Moreover, we seek to rescue the humanizing character of literature by democratizing access to literary knowledge through the use of an attractive, motivating and habitual teaching support for young readers. In this analysis, are used, as a reference, the findings in Candido (2004), Soares (2004), Rojo (2009), Vergueiro (2012), Nascimento (2014), among others. Keywords: Comic literature. Multiliteracies. Social individual.

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Este artigo é oriundo de trabalho de conclusão de curso | Letras | FAFIRE, desenvolvido e aprovado em 2019. O trabalho também foi apresentado no I ENLIJ, realizado pela UERJ, de 4 a 6 de junho de 2019, em forma de comunicação oral. 2 Graduando do curso de Letras | FAFIRE | E-mail: okallison@hotmail.com 3 Doutora em Literatura e Cultura pela UFPB. Professora, editora científica da FAFIRE e orientadora de pesquisa | E-mail: lilianejamir@uol.com.br 1

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Introdução

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A temática desenvolvida neste trabalho relaciona-se à associação da literatura com a teoria dos multiletramentos, a partir do gênero quadrinhos, abarcando a utilização deste suporte didático na promoção dos letramentos visual e literário, simultaneamente. Esta proposta origina-se da inquietude em apresentar alternativas didáticas que ressignifiquem o ensino literário. Mesmo com os avanços que se sucederam ao longo do tempo, no que se refere às metodologias didáticas, o processo ensino-aprendizagem não tem apresentado grandes mudanças, sobretudo em um aspecto cultural, pois ainda se vê a valorização daquilo que é hegemônico, reproduzindo, no espaço escolar, uma espécie de segregação, à medida que os indivíduos nele inseridos compõem os diversos estratos sociais. Por esta razão, este artigo inicia apresentando a tríade linguagem, cultura e sociedade, a fim de elucidar ao leitor que o discurso docente, através da prática, está associado a questões culturais e sociais. Em seguida um estudo acerca dos multiletramentos é estabelecido, uma vez que, nesta construção, essa teoria reitera a importância da valorização multicultural no ambiente escolar. Por conseguinte, apontam-se as características dos quadrinhos frente à sua historicidade: como se deu o surgimento, sua evolução e a aceitação deste gênero nos estudos científicos, sobretudo no trato com a verbovisualidade e com a tradução intersemiótica. Tais características, portanto, direcionam esta produção à teoria do letramento visual e, concomitantemente, literário, refletindo como a literatura, no formato em quadrinhos, pode agregar positivamente na formação crítica e educacional do sujeito deste processo.

A literatura como prática social: linguagem, cultura e sociedade Na constante modernização em que as práticas docentes estão localizadas, a literatura ainda se vê nos bastidores das estratégias didáticas para a formação do indivíduo social. As metodologias contemporâneas pouco se diferem das anteriores: carregam traços do ensino transmissivo, tratando o saber literário pelo viés conteudístico, informando épocas, obras e utilizando fragmentos destas para questões gramaticais. Este passado tão presente na atualidade contribui para o processo de escolarização inadequada que a literatura tem sofrido, singularizando-a como uma disciplina escolar. Este quadro – nada promissor – inquieta-nos a desenvolver uma alternativa que ressignifique a abordagem literária dentro do espaço escolar, por meio de perspectivas enriquecedoras que resgatam seu caráter humanizador. Ao iniciarmos o processo que relaciona a literatura aos multiletramentos, consideramos importante uma imersão acerca da tríade linguagem, cultura e sociedade. Para tal, salientamos que, neste contexto, a linguagem é analisada em nível discursivo e, por esta razão, incide diretamente nas relações sociais. Assim, o discurso emana do âmbito escolar, originado nas práticas docentes, associadas ao trabalho com a literatura na sala de aula, caracterizando as nuances de tradicionalismo que ainda permeiam a práxis do ensino na contemporaneidade. Porém, antes de chegarmos à problemática deste tópico, vale ressaltar algumas questões referentes ao distanciamento entre o papel social que exerce a literatura e sua abordagem no contexto escolar. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A literatura em quadrinhos e os multiletramentos: uma construção possível na formação do indivíduo social

Conforme apresenta Candido (2004, p. 180), [...] a literatura expressa uma necessidade universal e um direito dos indivíduos em qualquer sociedade. Ela é fundamental ao processo de humanização que confirme no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor [...].

Tem-se, então, a função humanizadora da literatura, atrelando-se à formação cidadã e educacional do indivíduo, em virtude da pluralidade de saberes que, em si, abarca, corroborando a percepção crítica e a compreensão da realidade e suas entrelinhas. Entretanto, erroneamente, a literatura está inserida em lugares vazios, com um ensino restrito à transmissividade e à pseudoapropriação dos períodos literários, sob um modus operandi que não atribui valores significativos a essa experiência. As abordagens que valorizam esta modalidade de ensino também utilizam o corpus literário como objeto metalinguístico, servindo, tradicionalmente, ao estudo de aspectos gramaticais da Língua Portuguesa, junto à obrigatoriedade do trabalho com obras e formatos, tomados como válidos e únicos, na pseudoformação do sujeito. Esta obrigatoriedade, portanto, leva-nos ao ponto crítico da relação entre as três esferas, pois a valorização referida ao final do parágrafo anterior emana de uma cultura engendrada no tradicionalismo docente, que reconhece, unicamente, os elementos da cultura hegemônica como aporte à constituição do indivíduo social. Neste reconhecimento único, ancora-se um conflito, já que em determinados universos sociais, tais elementos distanciam-se da realidade do sujeito, fazendo com que o discurso docente, através da prática, esteja relacionado à supressão cultural e às questões sociais que permeiam o universo do educando. Logo, tais considerações subsidiam-nos na compreensão da tríade apresentada, ao associarmos o discurso docente com a não valorização dos outros lugares sociais e suas respectivas culturas, nos quais estão imersos os sujeitos desse processo. Ao tomarmos a literatura como um mecanismo de prática social, a práxis docente precisa estar em consonância com as múltiplas culturas e linguagens situadas em outras esferas sociais, uma vez que, através deste contato múltiplo, a criticidade e as percepções são construídas, favorecendo a leitura do mundo por parte do educando. Um método pelo qual pode ser alcançada essa multiplicidade simultânea ancora-se nos multiletramentos. Além de promover um olhar de equidade, frente às diversas formas culturais e linguísticas, presentes nas variadas esferas sociais, possibilita o indivíduo a observar o espaço escolar como um lugar passível à valorização do meio a que pertence, junto à possibilidade de conhecer outros universos, oferecendo-lhe uma experiência positiva e enriquecedora durante sua formação.

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Conceituando letramento, letramentos e multiletramentos Para estabelecermos um estudo introdutório acerca do letramento, importa frisar sua concepção contemporânea, a fim de compreender em qual perspectiva o tomamos neste contexto. Esta abordagem é válida, pois, em um passado não tão longínquo, este termo confundia-se com alfabetismo, apresentando “significados muito semelhantes e próximos, sendo, por vezes, usados indiferentemente ou como sinônimos nos textos” (ROJO, 2009, p. 98). No entanto, na “necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e escrita, mais avançadas e complexas que as práticas do ler e escrever” (SOARES, 2004, p. 5), pesquisadores linguísticos, em meados da década de 80, distinguiram ambas as práticas. Consolidou-se, portanto, que “alfabetizar é ensinar o código alfabético; letrar é familiarizar o aprendiz com os diversos usos sociais da leitura e escrita.” (CARVALHO, 2007, p. 65). Desde então, a amplitude teórica deste conceito fomentou estudos associados ao processo de aprendizagem da leitura e da escrita, como munição à atividade social do indivíduo. Por meio destas abordagens, podemos elencar aspectos relevantes que reiteram esta perspectiva, como aponta Street (apud ROJO, 2009, p. 9), ao apresentar os enfoques autônomo e ideológico do letramento:

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[...] o enfoque autônomo vê o letramento em termos técnicos, tratando-o como independente do contexto social, uma variável autônoma cujas consequências para a sociedade e a cognição são derivadas de sua natureza intrínseca (...) Ao contrário do modelo autônomo dominante, o enfoque ideológico vê as práticas de letramento como indissoluvelmente ligadas às estruturas culturais e de poder da sociedade e reconhece a variedade de práticas culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos [...].

Em outras palavras, o primeiro refere-se a técnicas de meta-apropriação, considerando as atividades de ler e escrever – por si mesmas – autossuficientes, integradas ao indivíduo apenas pelo contato escolar, permitindo o alcance gradativo dos níveis de alfabetização. Em contrapartida, o viés ideológico engloba-o num contexto cultural, reconhecendo tanto a realidade em que o individuo está imerso, quanto as práticas de leitura e escrita situadas extraescola, importantes neste processo. Outra classificação que Soares (apud ROJO, 2009, p. 99-100) aponta são as versões fraca e forte do letramento: a primeira localiza-se nos métodos qualitativos de habilidades e competências, mensurando-as mediante o domínio da normatividade padrão, como requisito de lugar social válido; a segunda distancia-se deste tecnicismo adaptativo, considerando-o como ferramenta de resgate cultural e de construção identitária do indivíduo, uma vez que valoriza letramento(s) inserido(s) nas múltiplas realidades. Através destes apontamentos, notifica-se uma pseudoconcepção no que diz respeito à validade de alguns letramentos na constituição do sujeito. Hamilton (apud ROJO, 2009, p. 102) aponta as características relacionadas à sua natureza e estrutura:

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A literatura em quadrinhos e os multiletramentos: uma construção possível na formação do indivíduo social

[...] os letramentos dominantes estão associados a organizações formais tais como a escola, as igrejas, os locais de trabalho, o sistema legal, o comércio, as burocracias. Os letramentos dominantes preveem agentes (professores, autores de livros didáticos, especialistas, pesquisadores, burocratas, padres e pastores, advogados e juízes) que em relação ao conhecimento, são valorizados legal e culturalmente, são poderosos na proporção do poder da sua instituição de origem. Já os chamados “letramentos vernaculares” não são regulados, controlados ou sistematizados por instituições ou organizações sociais, mas têm sua origem na vida cotidiana, nas culturas locais. Como tal, frequentemente são desvalorizados ou desprezados pela cultura oficial e são práticas, muitas vezes, de resistência (destaques do autor).

A pseudoconcepção citada anteriormente se ancora na supervalorização dos letramentos associados ao enfoque autônomo. Todavia, importa ressaltar que, institucionalizados ou locais, estes não divergem entre si, havendo a possibilidade de construir um sujeito social a partir do trabalho com ambas as esferas, à medida que as mudanças nas formas comunicativas e na circulação das informações promovem uma abordagem para além da fala e da escrita, numa perspectiva multissemiótica, conforme aponta Rojo (2009, p. 105): [...] já não basta a leitura do texto verbal escrito – é preciso relacioná-lo com um conjunto de signos de outras modalidades de linguagem (imagem estática, imagem em movimento, música, fala) que os cercam, ou intercalam, ou impregnam; esses textos multissemióticos extrapolaram os limites dos ambientes digitais e invadiram também os impressos (jornais, revistas, livros didáticos) [...].

A importância desta abordagem relaciona-se, também, ao analisarmos o espaço escolar sob a ótica multicultural, na qual seus atores – docentes e educandos – compõem estratos sociais diferentes, trazendo consigo práticas de letramento que se fundem e divergem, num lugar simultâneo de aproximação e conflito. Esta associação entre multilinguagens e multiculturas possibilita ao indivíduo participar dos eventos sociais que envolvam a leitura e a escrita como fatores primordiais à ação, inserindo-o no contexto dos multiletramentos, cabendo à instituição escolar potencializar este trabalho, através de uma abordagem plural. Portanto, como alternativa prática, abordaremos, no próximo item, as Histórias em Quadrinhos, as quais, mediante o que foi apresentado nos parágrafos anteriores, podemos classificar como aportes de letramento vernacular com enfoque ideológico e de versão forte. Embora comumente desvalorizadas pelos docentes, elas estão no cotidiano extraescolar e podem ser bem aproveitadas pelos profissionais do ensino, contribuindo positivamente na leitura crítica dos educandos, valorizando uma realidade em que possam estar inseridos. Além disso, a multissemiose presente na verbovisualidade configura o aspecto da multilinguagem neste estudo, enquanto a multiculturalidade se presentifica aos aproximarmos as HQs dos objetos de estudo considerados dominantes.

Quadrinhos: breve contexto histórico e algumas características Quem não conhece a Turma da Mônica? Quem não se encantou com os heróis da Marvel? E quem não ouviu falar de Maurício de Sousa? As HQs sempre fizeram parte Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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do meio popular e, desde a sua origem, passaram por modificações, aperfeiçoaram-se e ganharam outros espaços, como a releitura de algumas obras da literatura brasileira para esse formato, a fim de aproximar os jovens educandos do universo incrível de nossa história. No entanto, este suporte didático que contempla a formação do leitor e do trabalho multissemiótico, prescritos nos textos oficiais4, está distante do aprender literário, pois, de modo geral, os docentes ainda estão apegados a métodos tradicionais5 de ensino, não valorizando outros recursos também importantes na formação educacional e cidadã do indivíduo. Antes de estabelecer algumas considerações sobre a literatura em quadrinhos na sala de aula, traçaremos, inicialmente, um breve panorama sobre a historicidade e as características gerais dos quadrinhos. No formato em que se apresentam na atualidade, os Quadrinhos são datados do final do século XIX, quando dois jornalistas americanos, a fim de obter liderança de mercado, desenvolveram histórias por meio de imagens. Estas narrativas eram chamadas de comics, pelo teor humorístico que possuíam, e destinavam-se tanto aos cidadãos nativos quanto aos imigrantes, numa tentativa de elucidá-los quanto ao uso da língua inglesa. Foi numa destas comics que o personagem Yellow Kid (garoto amarelo) surgiu, provocando uma mudança na rotina das publicações, tornando-as semanais, alavancando as vendas do jornal New York World. Com todo esse sucesso, o desenhista Richard Outcault passou a desenvolver “pequenas histórias distribuídas em quatro ou mais imagens. Em alguns momentos, o garoto amarelo falava em balões” (XAVIER, 2017, p. 4). Desta forma, consolidou-se a primeira história em quadrinhos, pelo fato de “ter evoluído da imagem única (lâmina) para a sequência de imagens e ter sido produzida de forma contínua com personagem fixo” (FEIJÓ, 1997, p. 14). Após o surgimento, e com o passar das décadas, as HQs sofreram diversas adaptações. As temáticas foram se renovando, e os heróis, que atualmente conhecemos fazem menção a momentos históricos respectivos, como Tarzan, Super-Homem e Batman, representando a “idade de ouro” dos Quadrinhos, nos anos 30; Capitão América, Mulher Maravilha e o Capitão Marvel, como alegoria à força e ao poderio dos Estados Unidos, ao entrar na Segunda Guerra Mundial, nos anos 40; dentre outros. No Brasil, “as produções de histórias em quadrinhos brasileiras imitavam as produções de originais estrangeiros, principalmente os americanos” (MACEDO, 2015, p. 15). Na década de 30, por exemplo, as primeiras publicações chegavam às bancas inclusive a obra Gibi, datada de 1939, acabou por denominar amplamente as HQs no país. Nos anos 60, já com o gênero consolidado, a principal característica foi a abordagem de temas revolucionários, época, portanto, em que Ziraldo lançou Pererê, “o primeiro personagem nacional a ter um título próprio a alcançar grande sucesso” (XAVIER, 2017, p. 5). ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Fazemos menção à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que nas práticas de linguagem do campo artístico – literário cita: “Para que a experiência da literatura – e da arte em geral – possa alcançar seu potencial, transformador e humanizador, é preciso promover a formação de um leitor que não apenas compreenda os sentidos dos textos, mas também que seja capaz de fruí-los [...]”. Além disto, nas habilidades, apresenta: “Aqui também a diversidade deve orientar a organização/progressão curricular: diferentes gêneros, estilos, autores e autoras (...) devem ser contemplados; o cânone, a literatura universal, a literatura juvenil, a tradição oral, o multissemiótico, a cultura digital e as culturas juvenis, dentre outras diversidades, devem ser consideradas [...]”. (BNCC, 2017). 5 Leem-se tradicionais como práticas consolidadas no âmbito do ensino. 4

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A literatura em quadrinhos e os multiletramentos: uma construção possível na formação do indivíduo social

Na década de 70, vários artistas e obras compunham os lançamentos no mundo dos Quadrinhos. Maurício de Sousa apresentou Mônica e ganhou notoriedade. Foi neste período, também, que importantes quadrinistas vieram ao conhecimento do grande público, a citar Laerte e os Irmãos Caruso. Já no início do século XXI, “incentivadas por programas governamentais de apoio à leitura, várias editoras começaram a publicar grandes clássicos da Literatura para as HQs” (XAVIER, 2017, p. 6). Mesmo com toda modernização e aprimoramento, os quadrinhos mantiveram-se afastados da sala de aula, seja no meio acadêmico, seja no âmbito escolar. O fato de ter sido originado em um veículo de comunicação de massa trouxe aos críticos um olhar hostil para este tipo de leitura, associando-a mais ao entretenimento do que aos estudos propriamente ditos. Porém, no início dos anos 50, houve a Primeira Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos, tratada pelos teóricos como um marco histórico para os estudos científicos deste formato, “buscando o aporte de teorias de análise de imagem utilizadas no cinema e identificando características da produção brasileira” (VERGUEIRO, 2017, s/p). Os primeiros estudos deste formato no universo acadêmico “foram coordenados por José Marques de Melo na Faculdade Cásper Líbero, de São Paulo” (FIGUEIRA, 2017, p. 03), o fundador do Centro de Pesquisas da Comunicação Social, que “conduziu com os alunos pesquisas sobre temas que na época eram novos para a Academia, como a telenovela e os quadrinhos” (FIGUEIRA, 2017, p. 03). Daí, então, o interesse pelos quadrinhos ganhou tamanha força, que nos anos 90 foi criado por Antônio Luiz Cagnin, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade São Paulo (ECA – USP), o Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos, com enfoque para o estudo das características da linguagem. A exemplo disto, temos os estudos da verbovisualidade. Esta, por sua vez, é uma característica peculiar aos quadrinhos, pois é um gênero textual/discursivo que contempla a relação palavra-imagem em um só formato, fazendo com que na constituição interpretativa das histórias o signo verbal e não verbal, mesmo de naturezas distintas, complementem-se para uma única finalidade: produzir sentido. Eguci esclarece que [...] a narração de fatos procura reproduzir uma conversação natural, na qual os personagens interagem face a face, expressando-se por palavras e expressões faciais e corporais. Todo o conjunto do quadrinho é responsável pela transmissão do contexto enunciativo ao leitor. Assim como na literatura, o contexto é obtido por meio de descrições detalhadas através da palavra escrita. Nas HQs, esse contexto é fruto da dicotomia verbal / não verbal, na qual tanto os desenhos quanto as palavras são necessárias ao entendimento da história [...] (2001, p. 45)

A partir desta definição, podemos apresentar as considerações de Xavier (2017) à luz dos escritos de Ramos (2010), que observou, em ampla ótica, características em comum aos quadrinhos: linguagem autônoma, mecanismos próprios para representar os elementos narrativos, organização narrativa, simulação do discurso direto e oralidade por meio da fala e do pensamento em balões, personagem fixo ou dinâmico que conduz a ação e riqueza de metáforas visuais. Além disso, importa ressaltar que a unidade mínima de uma HQ é a vinheta, também chamada de quadrinho, sendo esta a ilustração de um momento Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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“ou de uma sequência interligada de instantes, que são essenciais para a compreensão de uma determinada ação ou acontecimento” (VERGUEIRO, 2012, p. 35). No tocante aos elementos constitutivos, os principais são “o balão, a onomatopeia, a representação do movimento, a gestualidade e a legenda” (XAVIER, 2017, p. 12), importando ressaltar que, embora possuam características e elementos praticamente iguais, as histórias em quadrinhos contemplam “uma diversidade de gêneros, nomeados de diferentes maneiras” (XAVIER, 2017 p. 09). Gêneros como tirinhas, cartuns, charges estão atrelados aos quadrinhos como hipergênero. Logo, ao tomarmos como referência a literatura no formato em questão, podemos notificar, também, um gênero pertencente aos quadrinhos, possibilitando um trabalho simultâneo entre a literatura com os multiletramentos, como apresentado a seguir.

A literatura em quadrinhos como forma de multiletramento

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Como tratamos inicialmente, a literatura em quadrinhos nada mais é do que textos de prosa adaptados à ilustração. Podemos encontrar, nesse formato, obras da literatura brasileira e histórias mundialmente conhecidas, a exemplo de Dom Quixote (2005), Os Lusíadas (2013), Odisseia (2013), entre outras. No tocante às características, todas do hipergênero a que pertencem são contempladas, seja em estrutura, seja em elementos constitutivos, podendo servir, também, de aporte aos mais variados fins didáticos, os quais, neste tópico, relacionam-se à prática dos letramentos visual e literário. Importa ressaltar que a principal diferença desse gênero para as outras HQs está na tradução intersemiótica, termo que denomina a adaptação do texto para o formato quadrinístico. Conforme cita Nascimento (2014, p. 250), [...] A adaptação para os quadrinhos requer prática e técnica, pois a literatura em quadrinhos procura transformar as palavras em imagens. Essa tarefa não é mecânica e requer criatividade do adaptador, porque deve haver um enredo, uma sequência narrativa que deve ser semelhante ao original, a fim de que o leitor reconheça visualmente a relação com a obra literária [...].

Essa adaptação pode ser global quando “abrange o texto-fonte como um todo, reformulando-o de acordo com fatores externos a ele e operando mudanças profundas em seu conjunto” (NASCIMENTO, 2014 p. 249), ou locais, quando “restringe-se a partes isoladas do texto-fonte e não engloba o produto da tradução como um todo” (ALVES, ANCHIETA E FRASÃO, 2013, p. 100). Global ou local, a literatura em quadrinhos sempre apresenta cores, traços, elementos artísticos que levam o leitor a compreender, de uma forma mais realística, a história, o espaço em que se desenvolve os acontecimentos, o tempo, fazendo da obra um suporte didático que contempla o uso do texto visual para retratar ao leitor detalhes que o texto verbal não apresenta. Este uso, portanto, faz-nos considerar alguns aspectos do letramento visual, caracterizando uma das finalidades pedagógicas da literatura em quadrinhos nesta pesquisa. Podemos definir essa categoria de letramento como uma habilidade desenvolvida para a compreensão dos efeitos de sentido, originados em textos imagéticos ou nos que Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A literatura em quadrinhos e os multiletramentos: uma construção possível na formação do indivíduo social

contemplam a multimodalidade. No contexto atual, o uso de imagens pressupõe informações, sobretudo com as mídias sociais e suas facilidades de comunicação. Diante disto, é necessário que o trabalho desenvolvido na sala de aula esteja em consonância com essa realidade atual, pois, mesmo sendo característica do meio tecnológico, a interpretação de signos não verbais está além do meio digital. As próprias HQs são um exemplo disto, pois, por meio da compreensão de suas características visuais, o educando poderá aplicar este conhecimento em outras esferas de percepção, contemplando a leitura e a análise das qualidades lexicais, sintáticas, semânticas e pragmáticas das imagens, “com o propósito de construir interpretações socialmente significativas” (SCHENEIDERMAN apud OLIVEIRA, 2006, s/p.). Assim, podemos perceber que o texto visual é estruturado como qualquer outro sistema linguístico, que produz significado e pode embasar uma formação crítica. Ressaltando que os aspectos do texto visual não se esgotam nos seguintes apontamentos, elencaremos breves características acerca das funções de representação, orientação e organização do texto visual, à luz dos estudos de Lemke (1998), presentes em Oliveira (2006, s/p.): [...] a função representacional indica o que nos está sendo mostrado, o que se supõe esteja “ali”, o que está acontecendo, ou quais relações estão sendo construídas entre os elementos apresentados. A função orientacional posiciona o espectador em relação à cena (ex. intimidade, distância, superioridade, subordinação, credibilidade, importância), estabelecendo algum tipo de orientação avaliativa do produtor/intérprete em relação à cena propriamente dita (trágica, cômica, normal, surpreendente) e o faz também em função do espectador/leitor (ex. solidariedade, antagonismos, deferência, condescendência), bem como em relação a outros possíveis pontos de vista e imagens semelhantes da comunidade intertextual (opositor, aliado, complementaridade). A terceira função – organizacional – segundo Lemke, ocorre quando a construção do significado cria um “sistema de relações que organizam o texto visual em elementos e regiões por meio de aspectos tais como cores e textura que interagem definindo partes e unindo-as dentro de uma rede de ecossistemas onde os objetos são vistos e usados” [...] (destaque em aspas do autor).

Deste modo, conforme apresenta Riesland (apud PROCÓPIO; SOUZA, 2010, p. 102), “o letramento visual é algo aprendido, assim como a leitura e a escrita, e o conhecimento dos possíveis caminhos dos efeitos de sentido gerados pela integração de linguagens – verbal e visual”, sendo necessário o aprimoramento das competências de produção e interpretação por parte dos alunos. Assim, ao imergirmos a literatura em quadrinhos neste contexto, objetivamos que, para além do saber literário, os educandos possam aprimorar suas competências na leitura daquilo que não é dito. Dessa forma, humanizamos o indivíduo com a literatura e o preparamos para um lugar crítico dentro da sociedade, pois, mediante o contexto sociocultural em que o leitor está inserido, a perspectiva de interpretação poderá promover a abertura de diálogos tanto numa esfera global quanto local. Por esta razão,

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[...] é cada dia mais evidente que precisamos preparar nossos alunos para construir significados que vão além do simplesmente denotativo (decodificar). De fato, do aluno será exigido também ler o conotativo (interpretar); ler o dito, mas saber perceber o valor do que foi omitido, apontar motivos (avaliar), perceber intenções (fazer inferências) e, tirar conclusões acerca do que foi lido, com a clara intenção de atuar sobre situações, visando à sua transformação [...] (OLIVEIRA, 2006, p. 07).

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Nesta interpretação visual, concomitantemente, notifica-se certa influência no letramento literário, outra finalidade pedagógica para a qual trabalhamos o gênero proposto. Segundo Bianchini et al. (2015, p. 327), “baseia-se no ensino da leitura literária como forma de interação e desenvolvimento de uma consciência crítica do indivíduo perante o mundo que o cerca”. Desta maneira, “o foco não deve estar somente na aquisição das habilidades de ler gêneros literários, mas também no aprendizado da compreensão e ressignificação dos textos” (SILVA E SILVEIRA apud VIEIRA, 2015, p. 121). Importa ressaltar que a própria natureza da literatura leva-nos a inseri-la no âmbito dos multiletramentos. Sendo este um estudo que contempla, além de outros aspectos, a multiculturalidade, observamos, conforme os escritos de Scheffel (2015, p. 06), que, no percurso de constituição da literatura brasileira, foi relativizada a polarização entre as culturas dominantes e não dominantes, por meio do olhar à cultura do outro. Elementos que faziam parte do popular, da massa, foram sendo imersos nas obras, reduzindo as fronteiras de segregação. Esta pluralidade cultural, assim como nos textos visuais, também permite que as interpretações sejam múltiplas, a depender do conhecimento e da vivência de cada um. Da mesma forma que é possível, através de um aprimoramento visual, a leitura do que está implícito, no trabalho com a literatura em quadrinhos, enquanto obra literária, “o autor direciona o leitor, porém os espaços vazios, as lacunas, são preenchidos conforme a experiência de leitura que este possui” (SENKO E SOARES, s/d, s/p), fazendo com que haja um diálogo com o texto, tornando o leitor ativo e desenvolvendo sua percepção crítica, à medida que se insere no universo da obra. No entanto, para que isto seja possível, é necessário repensar as práticas comuns da transmissão de conteúdo e de informações literárias, a fim de promover no aluno uma experiência estética com a literatura. Esta experiência é profundamente estudada por Hans Jauss6, que desenvolveu as teses da Estética da Recepção7. Considerando, mais uma vez, que a abordagem deste tema não se esgota nos seguintes apontamentos, trazemos, a esta discussão, uma breve compreensão acerca das atividades simultâneas e complementares de poesis, aistheses e katharsis, respectivamente.

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Crítico literário e escritor alemão que se utilizou do estudo das teorias marxistas e socialistas, a fim de propor uma relação mais intrínseca e transformadora entre o leitor e a literatura. 7 De modo simples, “A estética da recepção descrita por Hans Robert Jauss, fundamenta-se teoricamente no relativismo histórico e cultural. Jauss reflete sobre o impasse entre a história e a estética e propõe uma história da arte e da literatura fundada no princípio de que as análises literárias deveriam centralizar-se no que denominou de “terceiro estado”, o leitor, deixando para segundo plano o texto e o autor (SENKO; SOARES, s/d, s/p). 6

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A literatura em quadrinhos e os multiletramentos: uma construção possível na formação do indivíduo social

Segundo Senko e Soares (s/d, s/p), a poesis “ocorre no preenchimento dos vazios do texto na interação do autor e leitor/receptor”. Aisthesis é o momento de recepção, quando “a obra causa um efeito sobre o leitor, agindo por meio do reconhecimento dos elementos apresentados, transformando em uma nova percepção de mundo”. Por fim, a katharsis acontece na subjetividade que perpassa esta experiência, quando “o prazer proveniente da recepção ocasiona, tanto a liberação, quanto a transformação das convicções do leitor, mobilizando-o para novas maneiras de pensar e agir sobre o mundo” (COSTA, s/d, s/p). Assim, ao estabelecermos a relação da literatura em quadrinhos com os letramentos visual e literário, convergimos estas duas habilidades para o âmbito do letramento crítico, que se resume, grosso modo, na percepção de determinados aspectos socioculturais, não antes conhecidos pelo indivíduo, porém trazidos à tona no momento de diálogo, promovido na sala de aula, a partir do trabalho destas esferas de letramento. Na colisão entre os horizontes de possibilidades8 do aluno e da obra literária, e na socialização das múltiplas interpretações entre os pares, a inquietação é inevitável. É neste diálogo que se dá a construção do indivíduo social, pois possibilita, nas variadas visões de uma mesma obra, que certos estigmas sociais sejam repensados. Desta forma, o aprendiz poderá apropriar-se não só dos aspectos visuais da obra ou da gama de características que não se limitam a informações de cunho literário e dos principais autores, mas também de conceitos e pontos de vista que podem favorecê-lo enquanto cidadão, configurando uma alternativa de escolarização adequada da literatura, por meio de um recurso didático atrativo e facilitador, que pode estar inserido na realidade do educando.

Considerações finais O desenvolvimento do presente estudo sugeriu uma forma diferenciada no ensino da literatura, através da teoria dos multiletramentos. Foi possível notificar que a literatura em quadrinhos, além de ser um suporte didático facilitador, abrange questões de valorização cultural, fazendo com que o educando utilize a própria realidade para a sua formação enquanto indivíduo social. Além disso, inserindo este formato nas aulas de literatura, o acesso ao saber literário é promovido, e volve ao seu caráter humanizador. Outrossim, confirmamos que esta prática fará do espaço escolar um lugar democrático, uma vez que não atende às demandas de um único grupo social. Esta construção, portanto, procura trazer, ao meio acadêmico, uma discussão bastante pertinente, pois, embora os tempos sejam passados, as práticas docentes ainda continuam similares às de outrora. As considerações aqui apresentadas também objetivaram o incentivo à elaboração de outras estratégias que estejam em consonância com mundo de hoje, sem anular a riqueza que possui a literatura, visto que o formato da obra utilizada neste trabalho contempla, ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Segundo Costa (s/d, s/p), “o conceito de horizonte de expectativas é um dos postulados básicos da teoria de Jauss (1994) e engloba o limite do que é visível e está sujeito a alterações e mudanças, conforme as perspectivas do leitor. O horizonte de expectativas é responsável pela primeira reação do leitor à obra, pois encontra-se na consciência individual como um saber construído socialmente e de acordo com o código de normas estéticas e ideológicas de uma época. A terceira tese postula que o texto pode satisfazer o horizonte de expectativas do leitor ou provocar o estranhamento e o rompimento desse horizonte, em maior ou menor grau, levando-o a uma nova percepção da realidade.” 8

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Alison Medeiros de Mendonça Santiago | Liliane Maria Jamir e Silva

além do saber literário, possibilidades de extensão a outras instâncias, exemplificando a habilidade da leitura de textos visuais, recorrente no meio tecnológico, como figurinhas, gifs, memes e afins, que também estabelecem a relação verbovisualidade presente no gênero tratado no percurso deste projeto. Assim, através desta abordagem, constatamos que o docente beneficia o educando com a competência de uma prática social ativa e consciente, emanada do trabalho com a literatura, sendo refletida além dos muros da escola. Importa ainda ressaltar que as considerações apontadas ao longo desta pesquisa não se esgotam nestas páginas; tanto o método quanto a obra servem de aporte a outras propostas construtivas.

Referências

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A literatura infantojuvenil e sua contribuição para a formação de professores de língua materna: uma reflexão teórico-metodológica a partir do texto de Elias José, Uma escola assim, eu quero pra mim1 The literature for children and its contribution to the formation of mother language teachers: a theoretical and methodologic reflection on Elias José text, Uma escola assim, eu quero pra mim Maria Lúcia RIBEIRO DE OLIVEIRA2 Resumo: O objetivo deste estudo é chamar a atenção dos docentes que trabalham na formação de professores de língua materna, notadamente nos cursos de pedagogia e letras, para a função didática da literatura infantojuvenil. Em Uma escola assim, eu quero pra mim, publicada em 1997, Elias José, formado em letras e pedagogia, aborda problemas e soluções de caráter sociolinguístico que podem ocorrer no contexto da sala de aula. Ele conta a trajetória escolar de um menino que falava diferente por ser da zona rural e que, graças a uma professora cheia de criatividade e intuição pedagógica, consegue transformar o inferno em que ele vivia na escola, inicialmente, com uma professora bastante repressora e cheia de preconceito, num verdadeiro paraíso em que estudar era algo prazeroso, lúdico e transformador. Dessa forma, o estudo teórico sociolinguístico aliado à narrativa de Elias José evidenciou claramente duas práticas pedagógicas bastante diferentes: uma transmissiva e repressora e outra reflexiva e libertadora, levando em consideração as diferenças sociais, linguísticas e culturais dos educandos,ou seja, uma prática pedagógica voltada para o letramento. Palavras-chave: Prática pedagógica. Letramento. Literatura Infantojuvenil. Estudos sociolinguísticos. Abstract: This article aims to make a sociolinguistic reading of Uma escola assim, eu quero pra mim, by Elias José (1997) and, at the same time, to get the attention of those who deal with the formation of teachers in the mother language (L1), Elias José, graduated in Letters and Education, deals with socioliguistic problems and solutions which may occur in classroom contests. He tells the story of a student who used a different variety of language owing to his country origin. At the beginning of his school life he suffered different kinds of prejudice. But when another teacher arrived at school with a different pedagogic approach, he discovered the pleasure and happiness of studying. Thus this theoretical and solciolinguistic study joined to the narrative of Elias josé showed clearly two different pedagogical practices: one highly transmissive and repressive and the other reflexive and free, taking into account social, linguistic and cultural differences, that is, a literacy pedagogical practice. Keywords: Pedagogical practice. Plural literacy. Literacy for children. Sociolinguistic studies.

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Artigo publicado originalmente na Revista Saber e Educar - Cadernos de Estudo 15, 2011, ISSN 1647-2144. Mestre em Linguística pela UFPE | Professora de Linguística da Faculdade Frassinetti do Recife | FAFIRE | E-mail: ribeirodeoliveiraml@gmail.com 1 2

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Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira

Introdução

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O objetivo deste estudo é, a partir da formação acadêmica e profissional do escritor, professor e contador de histórias Elias José, chamar a atenção dos professores que trabalham na formação de professores de língua materna, notadamente nos cursos de pedagogia e letras, para a função didática da literatura infantojuvenil. Este estudo fundamenta-se em alguns preceitos dos estudos sociolinguísticos descritos em Marcos Bagno (1997; 2004), Bortoni-Ricardo (2004), Gomes de Matos (1984), Magda Soares (1991; 2003), bem como nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997; 1999). Referimo-nos também ao conceito de letramento defendido por Kleiman (1995) e Soares (2003). Nosso estudo tem como cenário a obra infantojuvenil de Elias José, Uma escola assim, eu quero pra mim, que conta a trajetória escolar de Rodrigo, um menino da zona rural que não falava como menino da cidade, em cuja escola era proibido falar de forma diferente e que, um belo dia, conheceu uma professora que trouxe para a sala de aula histórias, desenhos, poesia, música e uma porção de diferentes gêneros e atividades, despertando a criatividade e o interesse dos alunos. Inicialmente, este artigo apresenta um breve histórico dos estudos sociolinguísticos, no Brasil e no mundo, desde o seu nascedouro, na Universidade da Califórnia. Em seguida, fazemos alguns recortes da narrativa de Elias José, no sentido de evidenciar e reiterar alguns fundamentos teóricos e metodológicos, numa perspectiva sociolinguística, chamando a atenção para a importância da obra de Elias José com sua proposta pedagógica transformadora e inclusiva, ou seja, uma proposta de letramento plural.

Breve histórico dos estudos sociolinguísticos A Sociolinguística teve seu nascedouro no ano de 1964, na Universidade da Califórnia, em Los Ângeles (UCLA), ocasião em que houve um grande encontro de estudiosos da linguagem e da sociedade em geral, ou seja, filósofos, sociólogos, psicólogos, antropólogos e linguistas preocupados com a diversidade linguística e social. Em 1966, foi publicado um documento assinado por alguns participantes desse evento, estabelecendo as bases da Sociolinguística, ou seja, relacionando as variações linguísticas observáveis em uma comunidade às diferenciações existentes na estrutura social desta mesma sociedade. Como afirma Bright (1966, citado por Alkmin, 2001), a Sociolinguística deve demonstrar a covariação sistemática das variações linguística e social. Vejamos algumas afirmações de sociolinguistas, voltados principalmente para os problemas sociais e linguísticos em sala de aula. Para William Labov (1972), participante desse encontro, os professores tendem a ter expectativas mais modestas em relação aos alunos falantes de variedades estigmatizadas do que em relação aos alunos falantes de variedades de prestígio e, segundo o estudioso americano, essa expectativa interfere no rendimento escolar dos alunos. E é exatamente isso que podemos observar com o personagem Rodrigo, em Uma escola assim, eu quero pra mim (1997). Magda Soares afirma: Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A literatura infantojuvenil e sua contribuição para a formação de professores de língua materna: uma reflexão teórico-metodológica a partir do texto de Elias José, Uma escola assim, eu quero pra mim

No caso específico do ensino da Língua Portuguesa, o acesso à escola das crianças pertencentes às camadas populares trouxe para as salas de aula a inusitada presença de padrões culturais e variantes linguísticas diferentes daqueles com que essa instituição estava habituada a conviver (SOARES, 2003, p. 100).

Para a pesquisadora, a partir do momento em que há uma mudança de clientela da escola, há a necessidade de uma mudança metodológica em sua prática pedagógica. Marcos Bagno (1997, p. 30) afirma ainda que “nosso sistema educacional valoriza aquelas crianças que já chegam à escola trazendo na sua bagagem linguística o português-padrão e expulsa as que não o trazem.” E é exatamente isso que observamos no texto de Elias José (1997, p. 9): Rodrigo chegava na casa da avó, com quem estava morando agora, triste e arrasado. Sentia-se menor, mais magrinho e ignorante. Queria desistir da escola, voltar para o sítio. Seria um retireiro feliz, como o seu pai. Bobagem da mãe, um luxo achar que quem não estuda sofre muito e não sabe quase nada da vida. Ele não sabia falar como doutor. Mas sabia tirar leite, cuidar das vacas, separar os bezerros, plantar e colher.

Segundo Gomes de Matos (1984), cabe à Sociolinguística contribuir para uma renovação atitudinal e conteudística no ensino de português. Segundo o linguista, todo professor deve tentar desenvolver três sensos: o de relativismo linguístico, o senso de autoconfiança ou de segurança linguística e o de identidade linguística. Ou seja, essa mudança atitudinal consiste em mostrar ao educando que tudo é relativo na linguagem, no sentido de levar em consideração a adequação da linguagem ao contexto da enunciação; todo educando deve tentar desenvolver uma confiança na sua competência linguística de falante nativo; e todo educando deve se orgulhar de sua história linguística e, ao mesmo tempo, procurar ampliar e atualizar seu conhecimento linguístico. O autor afirma ainda ser o livro didático com uma proposta sociolinguística uma das fontes mais adequadas para esse trabalho de conscientização atitudinal dos docentes em língua materna. Por analogia, podemos afirmar que, sem sombra de dúvida, alguns livros infantojuvenis também se mostram como excelente fonte para esse trabalho de conscientização atitudinal dos docentes em língua materna, como o texto em foco de Elias José. Atualmente temos também o respaldo dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997; 1999) no caso da necessidade de uma formação atitudinal dos professores, como podemos observar na afirmação a seguir, referente ao respeito às diferenças: O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença (BRASIL, 1999, p. 46).

Outra estudiosa, também voltada para o ensino da língua materna numa perspectiva social, é Stella Maris Bortoni-Ricardo (2004), cuja obra investiga a língua, as redes Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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sociais e a cultura específica dos migrantes da zona rural que enfrentam uma sociedade altamente preconceituosa em decorrência de suas variantes rurais. A autora afirma que seu livro foi escrito “visando criar oportunidades para que os professores que o lerem possam refletir sobre o português brasileiro e sobre o trabalho com a nossa língua materna em sala de aula” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 105). Ou seja, uma preocupação com o respeito à diferença linguística e social dos educandos. Voltando aos Parâmetros Curriculares Nacionais, desta vez àquele dedicado aos primeiros anos do ensino fundamental, podemos observar a afirmação segundo a qual “desde o primeiro ciclo é preciso que os alunos leiam diferentes textos que circulam socialmente” (1997, p. 70). Tal afirmação nos leva ao conceito de letramento, bastante difundido atualmente, notadamente nos estudos de Soares (2003) e Kleiman (1995), como o estado em que vive o indivíduo que não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive. Kleiman afirma ser a escola a mais importante das agências de letramento que, infelizmente, preocupa-se, na maioria das vezes, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, que consiste no processo de aquisição de códigos. Segundo a autora, uma concepção equivocada e reducionista de letramento, denominada modelo autônomo por Street (1984), que se contrapõe ao modelo ideológico, que “afirma que as práticas de letramento, no plural, são social e culturalmente determinadas” (KLEIMAN, 1995, p. 21). Vamos, a seguir, analisar, à luz dos estudos linguísticos, alguns trechos do texto de Elias José e conhecer um pouco a trajetória de Rodrigo, um menino da zona rural que veio do sítio para a escola “... doidinho para aprender a descobrir os segredos que havia no encontro das letras” (p. 7).

Elias José e sua escola Escritor, professor e contador de histórias, Elias José nasceu em Santa Cruz da Prata e viveu em Guaxupé (MG); formou-se em letras e pedagogia e sempre trabalhou com textos literários; morreu aos 72 anos, em 02 de agosto de 2008, deixando um belo legado de publicações voltadas para o público infantojuvenil. Em Uma escola assim, eu quero pra mim, Elias José conta a história de Rodrigo, um menino criado na zona rural, que estava ansioso para aprender a ler e a escrever. “De cara, levou um susto com a professora. [...] Ninguém podia errar que ela virava galinha choca. E os meninos e meninas, sabichões e bem vestidinhos, estavam sempre prontos para tirar sarro da cara de Rodrigo” (p. 8). E os problemas se acumulavam, somavam com o ódio da escola, da professora e da turma. Ele não conseguia ler, escrever ou entender porque “Ivo viu a uva. A Eva viu a uva. Didi deu um dado ao Dodó. A bola bateu bem na boca do Beto” (p. 8-9).

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A literatura infantojuvenil e sua contribuição para a formação de professores de língua materna: uma reflexão teórico-metodológica a partir do texto de Elias José, Uma escola assim, eu quero pra mim

Mas havia nessa escola uma diretora iluminada e sempre presente que, ao ver a tristeza de Rodrigo, disse que ele estava acostumado no sítio, onde tudo era diferente, daí ter estranhado a escola. “Isso é muito normal. Sempre aconteceu e vai acontecer. Com o tempo, arrumará amigos. Vai aprender a falar dos dois jeitos. Vai amar a escola e aprender bem” (p. 11). Essa afirmação da diretora: “Vai aprender a falar dos dois jeitos” nos remete a Magda Soares (1991, p. 76), com sua proposta de bidialetalismo linguístico para a transformação da escola e da sociedade, ao afirmar: O bidialetalismo que uma escola transformadora sugere não é, por isso, uma proposta apenas para o ensino da língua materna, mas para todas as atividades escolares em que a língua é o instrumento básico de comunicação – e estas constituem a quase totalidade das atividades da escola.

A diretora disse a Rodrigo que a professora, dona Marisa, estava para ter um bebê, por isso estava tão nervosa e sem paciência, e que logo viria uma professora para substituí-la. – Dona Marisa anda nervosa porque tem sempre partos muito difíceis. Só que isso não dá a ela o direito de zombar de você. Não liga não. Amanhã ela vai sair de licença e vem substitui-la a dona Celinha, uma professora nova, bonitinha e muito alegre (p. 11).

E um belo dia, dona Celinha chegou. Chegou e “foi tirando da caixa vários livrinhos de histórias. Mostrava as capas, falava um pouco de cada um, deixando a classe curiosa” (p. 14). “E nos outros dias todos, dona Belinha lia histórias e poemas. Inventava sempre mil formas de ensinar” (p. 15). Vejam como dona Belinha tinha toda uma postura sociolinguística quanto ao respeito à diferença, na diversidade de atividades desenvolvidas com as crianças, bem como no processo de letramento em que as crianças foram envolvidas. Observamos, nesse caso, um letramento plural, como preceitua Kleiman: “as práticas de letramento, no plural, são social e culturalmente determinadas”(KLEIMAN, 1995, p. 21). Certo dia, “(...) dona Belinha apareceu com um violão e cantou bonito duas ou três músicas. A sala cantou em coro outras três.” (p. 19). Em seguida ela perguntou quem sabia cantar e tocar sozinho. Rodrigo ficou quieto, calado, com medo de cantar errado. Como ele mesmo falou: ‘– Eu só sei cantá errando. Coisa de caipira, que professora e genti da cidadi num gosta’” (p. 20). Mas, com a insistência e o apoio de todos, Rodrigo “pegou o violão, acertou as cordas do jeito dele e soltou a voz no Menino da porteira” (p. 21). Foi um sucesso! “Na outra sexta de contar histórias, ele soltou a língua. Contou histórias vividas com caboclos, vacas, bezerros, família e plantas” (p. 21). “Mas o que deixava o menino mais louco de alegria é que lia, escrevia e amava muito a escola.” (p. 22). Podemos observar, claramente, como a mudança pedagógica e atitudinal da nova professora influenciou todo um ensino e aprendizagem voltados para o respeito às diferenças, seja através da diversidade de atividades orais e escritas e de uma multiplicidade de gêneros textuais apresentados em sala de aula. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Após os seis meses de licença de dona Marisa, a professora titular, dona Belinha teve que deixar a turma. “Não adiantaram choros, reclamações na diretoria...” (p. 23). Mas ela, com certeza, plantou sua semente transformadora. Dona Marisa voltou e descobriu que a turma estava diferente. “E ela foi descobrindo e trazendo para a sala muitas histórias encantadas, muitos poemas gostosos, desenhos, quadrinhos, coisas coloridas e engraçadas” (p. 25). Observamos que dona Marisa, ao voltar à sala de aula, encontrou as crianças acostumadas a ler e a escrever, a desenvolver muitas atividades diversificadas, muitas “invencionices”. Ou seja, ocorrera, em sua ausência, uma grande transformação que ela teria que dar continuidade: uma nova proposta de trabalho voltada para o letramento fora iniciada e ela “viu que teria de inventar outros caminhos“ (p. 25). Interessante observar que esses outros caminhos não só ela, a professora, inventava. “Inventava e inventavam” (p. 25). Ou seja, as próprias crianças já haviam tomado consciência dessa nova postura metodológica centrada nos preceitos da sociolinguística e participavam ativamente desse processo de letramento plural em que as práticas são social e culturalmente determinadas.

Considerações finais

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A partir do que foi apresentado anteriormente, tanto nos preceitos da Sociolinguística observados em Bagno (1997 e 2004), em Bortoni-Ricardo (2004), em Gomes de Matos (1984), em Soares (1991; 2003) e nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997; 1999), bem como no texto de Uma escola assim, eu quero pra mim, podemos observar que Elias José, tanto no papel de escritor para crianças como no de educador para adultos, mostra-se como um grande batalhador por uma escola mais democrática e transformadora, lúdica e eficiente; ou seja, uma grande agência de letramento. E é essa proposta transformadora que observamos em Uma escola assim, eu quero pra mim, em que temos duas práticas pedagógicas distintas, duas atitudes diferentes frente à linguagem e ao ensino, duas escolas diferentes: uma voltada para a pedagogia do erro, altamente estigmatizante, preconceituosa e excludente, e outra fundamentada nos preceitos sociolinguísticos descritos nos Parâmetros Curriculares Nacionais defendidos por nossos estudiosos. Ou seja, uma proposta de letramento reducionista e outra plural e transformadora. Dessa forma, Elias José nos apresenta uma proposta pedagógica transformadora que vê a escola como um espaço de inclusão social pela linguagem. Vemos, ainda, que a Sociolinguística vem se transformando, desde o seu nascimento, em 1964, num instrumento de luta contra toda forma de discriminação e de exclusão social pela linguagem. Assim, a partir dessa reflexão teórico-metodológica centrada no texto de Elias José, podemos afirmar que, muitas vezes, a literatura infantojuvenil pode funcionar como suporte na formação didática de nossos atuais e futuros professores de língua materna, sejam eles educadores das séries iniciais, do ensino fundamental, médio ou superior.

Referências Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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A poesia memorialista em Guriatã, um cordel para menino, de Marcus Accioly1 La poesía memorialista en Guriatã, um cordel para menino, de Marcus Accioly Maria Iêda Justino da ROCHA2 Liliane Maria JAMIR E SILVA3 Resumo: Este estudo objetiva investigar a presença da memória na obra Guriatã: um cordel para menino, do poeta pernambucano Marcus Accioly, ressaltando a importância da literatura de cordel como fonte de preservação da memória de nossos antepassados, valorizada pelo poeta em foco, que a elege como gênero apropriado a seu canto memorialista. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, de natureza qualitativa, cuja caracterização se dá de forma descritiva. Nesse caminho, é possível confirmar a importância da memória como forma de criação e preservação do cordel, como resgate das vivências mais significativas que constituem o ser humano, percebendo-a, de modo especial, como fio condutor de toda a narrativa desta obra de Accioly. Além disso, destaca-se o valor inesgotável da poesia memorialista como uma forma de construção da identidade cultural. A pesquisa se fundamenta em alguns autores influentes na discussão temática, como Batista (1977), Tavares (2016), Halbwachs (2003), Santos (2005) e Hohlfeldtp (1991), entre outros. Palavras-chave: Poesia. Memória. Literatura de cordel. Marcus Accioly. Resumen: Este estudio busca investigar la memoria en la obra Guriatã: um cordel para menino, del poeta pernambucano Marcus Accioly, subrayando la importancia de la literatura de cordel, como fuente de preservación de la memoria de nuestros antepasssdos, apreciada por el poeta destacado, que la elige como un género adecuado para su himno memorialista. Se trata de una investigación bibliográfica, de naturaleza cualitativa, cuya caracterización sucede de forma descriptiva. De esta manera, es posible reafirmar la importancia de la memoria como una forma de creación y preservación del cordel, como un rescate de las experiencias más significativas que constituyen el ser humano, percebiéndola, de modo especial, como el hilo que conduce la narrativa de esta obra de Accioly. Además, el valor inagotable de la poesía memorialista se acentúa como una forma de construcción de la identidad cultural. La investigación se fundamenta en algunos autores expertos en el tema, como Batista (1977), Tavares (2016), Halbwachs (2003), Santos (2005) y Hohlfeldtp (1991) entre otros. Palabras clave: : Poesía. Memoria. Literatura de cordel. Marcus Accioly.

Introdução A poesia memorialista apresenta várias possibilidades de ressignificação das narrativas de vida a partir de uma imersão no tempo, que é infinito e pode ser comparado à eternidade, cuja representação oferece um movimento de renovação. A poética das memórias, além de ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Este artigo é um recorte da monografia apresentada ao Curso de Especialização em Literatura Infantojuvenil, em setembro de 2019. 2 Graduada em Letras e Pós-graduada em Literatura Infantojuvenil | FAFIRE | E-mail: rochaieda28@gmail.com 3 Doutora em Literatura e Cultura | UFPB | professora do Curso de Letras | FAFIRE | e orientadora da pesquisa | E-mail: lilianejamir@uol.com.br 1

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fazer presente um passado finito, sugere um presente ressignificado pelas lembranças que funcionam como elos e conduzem as histórias com nova performance e novo sentido. Para este estudo, selecionamos a obra de Marcus Accioly, Guriatã, um cordel para menino, evidenciando alguns dos 91 poemas que a compõem, e destacamos o país da infância como o da memória, refletindo a respeito da liberdade que identifica o ser menino, expressão que, de acordo com o próprio Marcus Accioly, vai além de ser criança, porque “menino é dentro”, independentemente de fases da vida. A pesquisa foi desenvolvida através de um estudo de cunho bibliográfico, cuja caracterização se deu de forma descritiva, com base em autores como Sebastião Nunes Batista (1977), Braulio Tavares (2016), Neide Medeiros Santos (2005), entre outros que discorrem a respeito da temática. O recorte teórico-metodológico buscou investigar as características inerentes à poesia memorialista na obra Guriatã, um cordel para menino, do poeta pernambucano Marcus Accioly, enfatizando a importância e a força desse artifício como mecanismo de preservação do cordel e da cultura de um modo geral. O artigo está estruturado em quatro partes: a primeira parte, Literatura de cordel: fonte de preservação da memória de nossos antepassados, apresenta brevemente o cordel enquanto meio pelo qual é possível conservar a memória dos antecessores de nossa história. A segunda, A poesia memorialista em Guriatã, um cordel para menino, identifica aspectos memorialísticos na obra em foco. A terceira, O poeta pernambucano Marcus Accioly, apresenta brevemente a biografia do autor, bem como alguns aspectos de sua atuação. E a quarta, O país da infância: memória que vive em nós, analisa alguns poemas selecionados da obra, procurando relacionar o país da infância de Accioly com nossas vivências infantis, ressaltando a possibilidade de ressignificação de nossas experiências.

Literatura de cordel: fonte de preservação da memória de nossos antepassados A literatura de cordel é um gênero poético que chegou ao Brasil com a colonização, no século XVIII, aportando na Bahia, então capital do país, para, em seguida, se espalhar pelos outros estados, a exemplo dos estados Paraíba, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte, nos quais encontrou solo fértil e foi bastante divulgada, chegando, posteriormente, a outras regiões brasileiras. Com a chegada dos primeiros cordéis ao Brasil, foi possível perceber traços importantes de perpetuação da memória cultural e histórica dos países europeus, pelo fato de apresentarem histórias já famosas e tradicionais, como as narrativas sobre Carlos Magno e outras figuras de reis, rainhas, princesas, santos, dragões entre outras, além de temas próprios daquele período. A literatura de cordel funciona como mecanismo de preservação da memória dos antepassados, uma vez que toda a sua escritura, via de regra, está impregnada de uma história repleta de aspectos memorialistas. Essa memória se prolonga por meio de novas significações recebidas na tessitura de cada texto poético. Desse modo, a importância da memória se dá pela sua função de suporte de sobrevivência e preservação de manifestações culturais em geral, notadamente, para o nosso enfoque, do cordel como poesia do povo e para o povo. Segundo Batista (1977), o folheto de cordel exerceu papel fundamental na transmissão das notícias sobre acontecimentos de determinadas localidades, a fim de que se

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tornassem conhecidos por todas as pessoas, pois eram lidos em feiras e mercados, memorizados e transmitidos às comunidades. O autor assinala que, Se a memória popular vai conservando e transmitindo velhas narrativas e acontecimentos recentes, esta transmissão está sempre marcada pelo espírito desta sociedade. O que se verifica na literatura de cordel do Nordeste: sua manifestação em torno de temas tradicionais ou recentes, como exprimindo a própria sociedade. E não é por outra razão que a memória popular vai conservando os fatos narrados, transmitindo com as adaptações de cada narrador aquilo que foi ouvido (BATISTA, 1977, p. 18).

Assim, a literatura de cordel, poesia marcada pelo cotidiano, revela-nos, em sua singularidade, os segredos mais profundos do ser, ao ressignificar a memória dos antepassados e as vivências pessoais, possibilitando o encontro com a nossa própria história e sua reconstrução de forma significativa. Segundo o poeta Elias José, todos nós, crianças ou adultos, aprendemos com as pessoas mais velhas “que viveram, leram, observaram e ouviram mais. A memória dos velhos é documento vivo, que pulsa, tem sentimentos, lembranças, e muito nos pode passar de sabedoria e vivências” (JOSÉ, 2012, p. 43). Desse modo, a constituição da poesia de cordel está permeada de aspectos memorialistas4, pois, geralmente, os poetas recorrem a lembranças e fatos ligados ao passado de sua vida pessoal e de seus contemporâneos, compondo sua poética com ênfase em suas recordações, com a criatividade imprescindível ao processo de criação. Para Zumthor (2018), há um memorial da vida humana no cordel, o qual precisamos visitar no decorrer de nossa caminhada, para aprendermos a fazer uma ponte entre o passado e o futuro, numa relação de cooperação; não para a repetição de vivências, nem para alimentar saudosismos, mas para resgatar o nutriente que impele caminhar em direção ao futuro, com os pés ancorados no presente, a fim de que as ações atuais tenham novos significados. O autor ressalta que, É preciso, pois, religar os objetos de memória (homens e tempos) e fazer uma leitura desse memorial da vida humana, inserido num conjunto de lugares de memória, tendo em mente que todo documento é verdadeiro ou falso, não concomitantemente, mas dependendo de três aspectos que concordamos serem os responsáveis pela significação do objeto de memória no universo sociocultural humano: o sujeito, o local e o tempo (ZUMTHOR, 2018, p. 222).

Compreendemos, então, que o religamento desses objetos de memória funciona como um resgate de nossa própria essência enquanto seres humanos que se formam e evoluem na relação com o outro, o que envolve tempo e lugar, deixando marcas indeléveis, doravante carregadas de significados.

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A memorialística é um gênero literário que se destina a relatar eventos passados no intuito de preservar a história de determinado povo ou grupo social, colaborando para a construção de sua identidade pessoal e coletiva, ressignificando os acontecimentos de modo a possibilitar uma nova percepção da realidade e do contexto em que se inserem. 4

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Assim como as tradições orais se mantêm vivas pela força da memória, o cordel, pelo fato de ter sido difundido, em primeira instância, pela força da voz, através da transmissão entre as gerações passadas, conserva essa seiva fortalecedora de preservação de nossos antepassados, uma vez que o vivido e o sonhado permanecem em nossa memória.

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As histórias contadas poeticamente constituem-se um grandioso acervo da memória, essencial à existência, de modo que o conteúdo de um poema é composto por fragmentos de recordações vividas ou idealizadas por alguém em determinado contexto histórico. Para Octavio Paz, “la poesía es la memoria de los pueblos y una de sus funciones, quizá la primordial, es precisamente la transfiguración del pasado en presencia viva. [...] El poema es la casa de la presencia” (PAZ, 1993, p. 19). Desse modo, a força da memória transforma o passado em presença viva e nos transfigura, possibilitando a presentificação de tudo que vive em nosso ser como essência vivificante. A poesia memorialista de Accioly oferece ao leitor a oportunidade de um encontro com suas origens, ao mesmo tempo em que resgata um sentimento de pertença ao passado, não com saudosismo ou repugnância às experiências sofridas de outrora, mas com a convicção de que ele é a base de uma vida de sonhos, como uma possibilidade de acessar uma força interior, oferecendo a oportunidade de nortear passos presentes e futuros. Esse passado faz renascer o poeta criança que ficara perdido na solidão de uma vida sem avô, falecido quando tinha 10 anos de idade e residia no engenho Laureano, seu país-paraíso (SANTOS, 2005). Foi na região dos engenhos que Accioly viveu toda a sua infância, e nessa realidade ele “ouviu contar histórias de Trancoso, leu folhetos de cordel, ouviu cantorias. Como ele mesmo confessa em alguns depoimentos, o seu mundo infantil foi povoado por histórias de papa-figo, lobisomem e bicho-papão” (SANTOS, 2005, p. 45), um ambiente propício ao desenvolvimento da imaginação da criança que vivera em contato com um mundo mágico e possibilitador de sua formação poética, como nos afirma Neide Medeiros Santos: Guriatã: um cordel para menino é o último livro ligado à terra. Composto de 91 poemas e cinco notas que explicam a gênese do livro, o poeta procura resgatar a infância perdida, o ‘país-paraíso’ do engenho Laureano. [...]. Modalidades de cantoria (martelos, toada-alagoana, canções suspirosas, desafios, mourões); poemas dialogados (de um Guriatã de coqueiro, da volta do Guriatã, do retorno do Guriatã, do Guriatã que volta, dos dois Guriatãs e do Guriatã por último) e poemas independentes, de grande expressividade lírica (do trem-de-ferro, dos elementos), tornam esse livro o mais intrinsecamente preso ao elemento terra (SANTOS, 2005, p. 27, grifos da autora).

Segundo a citada autora, a terra é um elemento indissociável da memória, uma vez que ambas estão permeadas de substâncias subjetivas essenciais à vida e ao desenvolvimento, num processo de ligação e continuidade. No caso do poeta em estudo, a palavra terra pressupõe uma questão de apego, de afeto às origens, ao local de nascimento, enfim, ao “país-paraíso”. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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O poeta pernambucano Marcus Accioly Assim como o personagem Carlinhos, de José Lins do Rego, Marcus Accioly foi um “menino de engenho”, que nascera e vivera no engenho Laureano, município de Aliança, região da mata de Pernambuco, até os 11 anos de idade (SANTOS, 2005), quando então se transfere para o Recife. Marcus viveu cercado de poesia, pois no berço familiar foi acolhido pelo universo poético: “Seu avô, José Pedro Bezerra (Dedé), era um homem dedicado às artes” (SANTOS, 2005, p. 25). Além do avô, ele admirava Luiz Gonzaga, o rei do baião, que exaltou a cultura nordestina e colocou o sertão como matéria-prima de sua obra poética. Assim como muitos meninos nordestinos, Accioly teve a felicidade de passar os melhores anos de sua vida em um paraíso chamado casa dos avós, lugar onde a liberdade é sem limites e o universo se reinventa nos sonhos e nas peraltices da infância. Ali no engenho constituíram-se as memórias essenciais para a trajetória do poeta. Foi no aconchego familiar que ele recebeu toda a motivação de sua infância, fase das descobertas e de esbanjamentos, livre de outras preocupações pragmáticas e competitivas do mundo dos adultos. No entanto, como as fases do desenvolvimento humano são finitas, Accioly teve seu sonho no paraíso interrompido com a morte do avô. “Esse avô, tão querido e admirado, morreu enfartado na estação ferroviária, quando Accioly tinha dez anos. Com a morte do avô, acabou-se também a infância do neto e o mundo encantado do engenho Laureano” (SANTOS, 2005, p. 25). E, a partir desse marco, tudo mudara em sua vida, sendo preciso seguir nova rota, descobrir novos mundos, abandonando o que ficara registrado em sua memória. Marcus Accioly foi professor, advogado, escritor, mas o que lhe fazia uma pessoa feliz era ser poeta, ofício que abraçou acima de todas as outras ocupações. Santos afirma que “Accioly é tão convicto de sua profissão que considera os títulos de advogado e professor universitário insignificantes diante do título maior – poeta” (SANTOS, 2005, p. 26). Nessa profissão/vocação, Accioly se realizou e se imortalizou na grandeza de sua poesia, presenteando-nos, e particularmente à infância, com o seu Guriatã, um cordel para menino.

O país da infância: memória que vive em nós A infância, enquanto fase de desenvolvimento humano, pode ser considerada como um paraíso no qual as crianças vivem e desfrutam do que há de melhor e mais importante. Muitas vezes, por não ter consciência, ou pelas circunstâncias impostas pelas condições sociais, algumas crianças não armazenam as melhores lembranças que possam impulsionar seu futuro. Contudo, levando em consideração a infância a que todos têm direito, podemos considerá-la como um paraíso, porque possibilita uma experiência grandiosa de descobertas e a criação de um mundo particular, que se constitui como base para as demais etapas da vida. Nessa perspectiva, encontramos em Guriatã, um cordel para menino um resgate da infância perdida no engenho Laureano, pois, como nos afirma Antônio Hohlfeldtp, “mais que memória de guriatã, o poema é também a memória do poeta, que transfigura acontecimentos da infância” (HOHLFELDTP, 1991, p. 119). Esses acontecimentos constituem um elo com o espaço terreno, o locus de origem, uma relação telúrica que perpassa toda Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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a narrativa. Percebemos, assim, a presença de uma energia interna guiando as relações e alimentando a vocação poética a partir do seio familiar. Guriatã constitui um “mundo mágico real” (SANTOS, 2005, p. 19) por meio do qual podemos passear na infância do poeta Marcus Accioly e, através dela, redescobrir o encanto de nossa própria infância. A obra nos oferece uma viagem ao passado, para recuperar experiências que vão além das lembranças do autor, tornando-se uma realidade construída, um mundo de possiblidades criadas pela linguagem literária. Assim, podemos perceber, no decorrer da obra, que é a realidade do poeta que dá sustentação à narrativa. Guriatã, com todo o seu encanto de menino, traz à tona a memória de uma vivência repleta de infância, esquecida pela dor da perda, da morte, tudo ressignificado através do canto que ecoa na voz de um pássaro, o Guriatã. Essa poesia vivificadora esteve presente desde a infância de Accioly até a sua morte. Publicado em 1980, o livro é composto por 91 poemas e cinco notas de caráter autobiográfico, cujo personagem principal é Leunam, de apelido Ocen, amigo de Sucram, ou seja, Manuel amigo de Marcus, ambos escritos em forma de anagrama, um dos quais podendo representar o alter ego do escritor. Além das notas, epígrafes e dedicatórias, o livro contém xilogravuras do poeta e xilógrafo Dila. Os poemas são apresentados seguindo o ritmo do cordel, vindo todos eles separados por algarismos romanos, acompanhados de uma didascália junto a cada poema, cuja finalidade é especificar o tema que será desenvolvido. À moda dos textos antigos. Santos assinala que o poeta busca uma recuperação da infância “através de um texto que é a junção do épico com o lírico; do erudito com o popular; do real com o imaginário” (SANTOS, 2005, p. 28), ao que acrescentaríamos uma nuance dramática. Sendo assim, a composição textual denota, a exemplo de várias produções contemporâneas, uma condensação de aspectos, a saber: do gênero épico, por constituir uma narrativa em versos, com a presença de personagens, em torno das quais os fatos acontecem em determinado tempo e espaço; do lírico, em que sobressai a expressão de afetividade e subjetividade, exteriorizando o mundo interior do eu lírico a partir de poemas breves, lúdicos, repletos de ritmo e sonoridade; e do dramático, pelo seu caráter dialógico, interpelativo e performativo, a ponto de a obra já ter sido encenada em palcos pernambucanos. A obra recupera, como nos afirma Nelly Novaes Coelho, não apenas a infância do poeta, mas a do Brasil, que também se transfigura. Inegavelmente, uma das obras mais importantes destes últimos anos, GURIATÃ – UM CORDEL PARA MENINO de Marcus Accioly recupera (e liberta da destruição do tempo) uma “infância” que não é só dele. Pelo sopro épico-lírico com que conseguiu impregnar todas as realidades ali “encantadas” para sempre, em um universo poético, é a ‘infância’ do Brasil que ali se transfigurou também (COELHO, 1981, p. 168).

Percebemos a grandeza de uma obra que abarca diversas realidades a partir de um ponto de vista inusitado, cujas recordações têm o poder de reconstrução de tudo o que o tempo paulatinamente tende a apagar. Guriatã: um cordel para menino traz uma história de dois meninos estruturada à maneira de um poema épico, com prólogo, invocação à Musa, episódios e epílogos. Todos os poemas são introduzidos por uma didascália, prenunciando o motivo de cada canto. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A poesia memorialista em Guriatã, um cordel para menino, de Marcus Accioly

O primeiro poema, um dos mais longos, traz o subtítulo do prólogo e contém nove estrofes distribuídas em sextilhas, em versos heptassilábicos, ou redondilha maior, aqui transcrito até sua quinta estrofe:

do prólogo

I MUSA, canta um destino para a viola e o cordel: Era uma vez um menino que rodava o carrossel da sua vida sem tino, com muito mel, pouco fel. A mãe dele mais seu pai, Dona Zefinha e Seu Tiba, falavam torto: ‘Nói vai subi um dia pra riba do Su e num vorta mai pra qui nem pra Paraíba’. Que sítio bom de trocá-lo por outra terra que preste – pensavam eles – São Paulo e não esta Mata-Agreste. A gente é boi, é cavalo, ou árvore do Nordeste? Se a vida fosse pra sempre a morte não era peste. Quem vai ficar de semente dentro da roupa que veste? Se a gente lembrar da gente esquece o sol do Nordeste. É de janeiro a janeiro seca batendo na cara. Se a gente planta dinheiro e apanha os olhos da cara, por que não senta o traseiro num banco de pau-de-arara? (ACCIOLY, 2006, excerto, p. 15-17)

Este poema é escrito em sextilhas, estrofes compostas por sete sílabas poéticas, cujas rimas seguem o estilo aberto, rimando os versos pares e deixando livres os demais. A partir dele, é possível ter uma ideia dos motivos que serão abordados em toda a obra. O prólogo, além da invocação às musas, para cantar “um destino/para a viola e o cordel”, faz um apanhado geral da origem do poeta/cantador, cujo jargão e a esperança de exílio bem caracterizam a simplicidade e as agruras do povo nordestino. Além do aspecto memorialista, percebemos a inquietude do eu poético em face de situações dramáticas que assolam a Região Nordeste; contudo, vislumbra a possibilidade de Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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saída em busca de melhores condições. Assim, no decorrer das estrofes do poema inicial, constatamos que o aspecto memorialista guiará toda a obra, que soa como um retrato da realidade vivenciada pelas pessoas de uma época, mas que se perpetua, transcendendo-a e se projetando no presente da enunciação poética. Já no prólogo (p. 15-18), percebe-se um narrador-Guriatã que conta a história dos dois meninos, um dos quais também se converte numa ave da mesma espécie, visto que desaparece levado pelo bicho-papão, pelo que se presume a representação do sofrimento do pequeno Sucram com a ida do amigo Leunam com os pais para São Paulo, fugindo da seca. O segundo poema, com o subtítulo da família de Sucram, é formado por quatro estrofes com oito versos hexassílabos. Além de retomar aspectos da ancestralidade de Sucram, a memória histórica coletiva nele aparece claramente, ao trazer a presença dos avós, que são a representação mais fiel e sábia dos antepassados, a impulsionar as futuras experiências em momentos mais significativos e decisórios da existência. Observemos as três primeiras estrofes:

da família de Sucram

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II Sucram tinha um avô chamado José Pedro, que se deitava tarde, mas acordava cedo para cuidar do engenho que fabricava açúcar, caldo, vinagre, mel, cachaça e rapadura. A sua avó, Idília, cuidava dos porquinhos, chamados de leitões, suínos, bacorinhos, também de umas galinhas que punham no quintal, além de ovelhas, cabras e vacas-de-curral. Jafé era o pai dele e a mãe dele era Eunice, viviam na cidade (moravam no Recife) mas iam ao engenho de trem ou de vapor, levando o outro filho de nome de Nestor. (ACCIOLY, 2006, excerto, p. 19-20).

O panorama histórico que aqui se desenha, a partir do elo constituído pelos avós, permanecerá na lembrança da infância até o declínio da vida, na velhice, cujas impressões ficarão registradas na tessitura poética. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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Aqui se confirma o pensamento de Halbwachs: “a criança também está em contato com seus avós, e através deles remonta a um passado ainda mais remoto. Os avós se aproximam das crianças, talvez porque, por diferentes razões, uns e outros se desinteressem pelos acontecimentos contemporâneos em que se prende a atenção dos pais” (HALBWACHS, 2003, p. 84). Essa aproximação das crianças com os avós provavelmente se dá porque ambos tendem a não se prenderem aos acontecimentos contemporâneos, situando-se num mundo mágico, atemporal; ou seja, um mundo mágico real; passado para os avós e mágico para as crianças. São dois mundos que se fundem num mesmo universo poético. No terceiro poema, intitulado de um Guriatã-de-coqueiro, confirma-se o caráter presentificador da memória nesse ínterim também revestido do aspecto dialógico que se mantém entre o eu-poético e a ave Guriatã, reiterando, mais uma vez, que o que a memória poética presentifica, nem o tempo nem a distância geográfica poderão apagar: III – Guriatã-de-coqueiro, quem você viu por primeiro, o cavalo ou o cavaleiro, responda, Guriatã? – O cavalo de Sucram. – Me diga, meu passarinho, Sucram estava sozinho, me diga, Guriatã? – Estava com seu amigo porém corria perigo por causa do Papa-Figo. – Voe logo, Guriatã, Vá avisar a Sucram e Leunam, vá, minha ave, senão não há quem se salve da morte, Guriatã! – Quando a vontade é de lei é feito ordem de rei, já fui, já disse e voltei. – Espere, Guriatã, peça a Leunam e Sucram o fio inteiro da estória. – Fui, vim, trouxe na memória. – Me conte, Guriatã. (ACCIOLY, 2006, p. 22-23)

Neste terceiro poema, a dinâmica poética, intensificada no intercâmbio das vozes, convoca o leitor a vivenciar momentos de tensão frente ao perigo iminente suscitado pela presença de mitos medonhos perpetuados nas crenças populares, como a história do Papa-Figo, figura tão temida em nossa infância. No poema também se percebe resquícios de ditos populares, principalmente na última estrofe, em que o diálogo também concede Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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à memória a capacidade de guardar fatos e relatos a serem transmitidos através da oralidade: “– Espere, Guriatã,/ peça a Leunam e Sucram / o fio inteiro da estória./ – Fui, vim, trouxe na memória./ – Me conte, Guriatã.” Assim, a memória histórica e cultural está representada em vários poemas do livro, com destaque no décimo oitavo, intitulado do improviso, como veremos a seguir, cujo diálogo se mantém a exemplo do que acontece na cantoria, em que os poetas desenvolvem um tema a pedido da plateia, improvisando-o por um tempo determinado para a peleja (no caso de desafio), ou quando um deles desiste de responder às investidas do oponente: XVIII – Vamos rimar pé quebrado? – Rima o pé que eu rimo a mão. – Começa a dar seu recado. – Eu comprei um caminhão de lata e outro de flandre, era um pequeno e outro grande, mas depois... – Eu vim e comprei os dois, tirei as latas de doce, cortei o arame e acabou-se tal estória...

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– Nasceu outra da memória: meu canário de gaiola negociei numa bola de jogar... – E quando ela se furar, corto da bola a borracha faço um badoque de caça e com um seixo... – Ele se parte em teu queixo, tu ficas de cara inchada sem mais badoque nem nada. Ainda rimas? – Rimo rimas com meninas, meninas feias com belas. Vamos brincar nas janelas de mangar? (ACCIOLY, 2006, p. 47-48).

Experiências do limiar da vida, na simplicidade da infância da maioria dos meninos e meninas com bastante vivacidade nas estrofes do poema. Crianças nascidas atualmente talvez jamais soubessem o que significa um caminhão de lata de doce, ou um badoque feito de borracha, se não fosse o que rememora o cordel. Assim, o poeta também resgata Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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a antiga infância brasileira para as crianças de hoje, envolvida em tantas novas invenções, de modo que a simplicidade, a essência do ser criança, muitas vezes se perde na celeridade dos novos inventos. Esse poema também nos remete ao sonho das crianças pobres ou das que viviam nos engenhos, pois muitas delas desejavam uma bola para jogar, o que nem sempre era possível em sua realidade. Desse modo, a fantasia possibilitava, numa espécie de compensação, a troca do “canário de gaiola” por uma “bola de jogar”, o que poderia também representar o desejo de liberdade em oposição à representação da ave confinada. O vigésimo poema, da louvação, trata da memória pessoal afetiva que é enaltecida em versos pentassilábicos, ou redondilha menor, como podemos conferir: XX Prende no teu grampo ai, morena, avenca, buganvília em penca, bogari do campo, prende o pirilampo de fogo pequeno que à luz do sereno teu olhar acende ai, morena, prende teu visgo e veneno! Tive um grande amor que era feito o vento, já faz tanto tempo que ele virou flor, jasmim-a-vapor, corbelha cheirosa, minha melindrosa se chamava orquídea, dália, margarida, violeta ou rosa? Se no amor fiz artes pago do que devo quando achei um trevo tinha quatro partes fui um Malasartes não fui um qualquer enganei mulher desde muito cedo desfolhando bredo mal e bem-me-quer (ACCIOLY, 2006, p. 51-52).

Muitas infâncias estão entrelaçadas nos versos que compõem estas estrofes. São retratos das casas dos avós, nos engenhos ou nos sítios, nas matas do agreste ou do sertão nordestino. Em cada elemento mencionado nas estrofes, como as plantas/flores: avenca, Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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buganvília, bogari, orquídea, dália, margarida, trevo e bem-me-quer, há muito do que que foi eternizado no arquivo indelével da memória pessoal e afetiva. Estão aí os amores prenunciados já na infância ou no início da adolescência, em que o eu poético adulto recorda e contemporiza através de metáforas e comparações. Além disso, percebemos a relação lúdica com a natureza, cuja beleza das flores se faz transparecer na afetividade do eu lírico, não obstante a insinuação picaresca do eu poético, na última estrofe, ao se comparar a Malasartes, figura típica dos contos populares da Península Ibérica, caracterizado pela astúcia e pelo comportamento enganoso sem escrúpulos e sem remorso. O trigésimo segundo poema, do trem-de-ferro, composto de cinco estrofes em sétima, precedidas de um verso, como os demais, pentassilábico, tal como um refrão de função interpelativa, instiga o leitor, independentemente da idade, a encontrar a criança que vive dentro de si e almeja viajar nas trilhas do trem da vida em busca de uma realização; viagem esta que culmina com a morte, ou o encantamento final, cujo destino é desconhecido e, muitas vezes, temido, mas inevitável. Nos versos a seguir, podemos verificar essa inquietação do eu lírico para saber quem grita na noite, e acaba percebendo ser apenas o trem dos fantasmas: XXXII Quem grita na noite?

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Não vejo ninguém, é o eco do grito do apito do trem, é a boca-da-noite que grita também, é o eco do eco que ecoa no além. Quem grita na noite? Não vejo ninguém, é o grito da ponte debaixo do trem, é o vento que chora por morte de alguém, é o coro das almas que dizem amém. Quem grita na noite? Não vejo ninguém, é a boca-do-túnel na frente do trem, é o grito sem grito de um eco que vem dos montes que aos montes ecoam mais cem. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A poesia memorialista em Guriatã, um cordel para menino, de Marcus Accioly

Quem grita na noite? Não vejo ninguém, é o sonho-barulho das rodas do trem, é a luz de uma estrela que tange Belém no sino-silêncio que a noite não tem. Quem grita na noite? Não grita ninguém, é o trem dos fantasmas nos trilhos sem trem, é a voz dos dormentes que às vezes contém o grito da vida que a morte detém (ACCIOLY, 2006, p. 75-76).

O trem aparece como uma realidade subjetiva, um “sonho-barulho” que desperta inquietação no eu lírico tocado pelas experiências passadas e, no final do poema, revela que na noite não grita ninguém, mas os fantasmas que povoam a mente das crianças, o que é um fato muito comum na realidade infantil. O poema culmina com a melancolia, fazendo menção à morte que levara o avô e o amigo (Leunam) do poeta, deixando uma lacuna irreparável em sua infância. O quinquagésimo sexto poema, da gemedeira, “sextilha com toada própria, e com estribilho ‘ai, ai, ui, ui...’ intercalado entre a quinta e a sexta linhas” (TAVARES, 2016, p. 93), apresenta um estilo da cantoria em que os versos comumente são formados para justificar o estribilho e falam de tristeza. No entanto, é possível abordar vários temas nesse gênero, até o gracejo pode aparecer, dando sutileza ao tom nostálgico que o estribilho suscita: LVI – Por que choras, meu menino? Menino, não chores não, teu choro comprido e fino é de cortar coração e o teu gemido é mais fundo ai, ai, ui, ui, que um poço de solidão. – Papão pegou meu amigo meteu num saco de couro como quem leva um tesouro ele levou-o consigo e agora corre perigo nem sei se ele é vivo ou não,

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se é fora ou dentro do chão se sofre morte ou castigo dos dentes do Papa-Figo, das mãos do Bicho-Papão... Se sente a morte ou o castigo nas unhas do Papa-Figo, nos pés do Bicho-Papão. (ACCIOLY, 2006, p. 112)

Segundo Neide Medeiros Santos (2005), com esse poema começa a luta de Sucram para libertar Leunam das garras do Bicho-Papão; por isso o gemido tão triste como um poço de solidão sinaliza quão forte é a ausência de seu amigo, causando preocupação por não saber onde ele está realmente. Ao mesmo tempo, vemos a preservação de mitos populares como o Bicho-Papão e o Papa-Figo, que ainda hoje habitam o imaginário das crianças e as assustam. No septuagésimo terceiro poema, do mourão que-você-cai, temos uma modalidade da cantoria em que acontece o revezamento dos cantadores em uma mesma estrofe, por ser um estilo dialogado e intercalado por estribilho. “É um dos estilos de estrutura mais original da cantoria” (TAVARES, 2016, p. 93), em que as estrofes são compostas de doze versos heptassilábicos:

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LXXIII Meus cachorros, meu cavalo, o que for que venha logo! Lá vai uma, duas, três... – Peço a vocês e ao céu rogo porque o Bicho é muito malo! Lá vai quatro, cinco, seis... – Briguem macho feito galo que ele se dana mas sai! – Caso Deus queira ele cai! – Cai na terra e se esborracha, se estrompa, papoca ou racha, se for por punhal lá vai! (ACCIOLY, 2006, p. 144)

Esta modalidade também é um exemplo de preservação da memória histórica e cultural do povo nordestino, principalmente dos primeiros poetas populares que se imortalizaram em sua poesia. No citado poema, Accioly modificou as rimas fixas: “você cai” por “– Caso Deus queira ele cai” e “se for por dez pés lá vai” por “se for por punhal lá vai”, diferenciando da composição do repente, justificando, assim, a temática do poema, que é a busca pela libertação de Leunam das garras do “Bicho malo”, que eu lírico assegura ser o responsável pela morte de seu amigo. O septuagésimo oitavo poema, dos dois Guriatãs, apresenta um diálogo em que o pássaro Guriatã fala da perda do amigo de Sucram, o qual pode ser associado ao avô que Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A poesia memorialista em Guriatã, um cordel para menino, de Marcus Accioly

morreu e ali ficou encantado. É a lembrança da relação de amizade com o avô que vem à tona, quando o eu lírico o recorda na realidade de um tempo distante: LXXVIII – Guriatã-de-coqueiro, fomos lá, vimos primeiro o cavalo e o cavaleiro não foi não, Guriatã? – Sim, foi sim, vimos Sucram com Ouro-Fino e Roberta. — Mas esta estória está certa, explique, Guriatã? – Era uma vez o exato, como dois mais dois são quatro, perna de pinto de pato... – Brinque não, Guriatã, pergunto por que Sucram deixou Leunam só na Ilha com toda aquela matilha, responda, Guriatã. – Digo sem falha nem erro: ferido de pau e ferro, o sangue do Bicho-Fero... – Que Bicho, Guriatã? – O Bicho-Mau que Sucram chamou Papão, Lobisomem... –Talvez seja o Bicho-Homem, mas conte, Guriatã. – Conto o sim e conto o não: o sangue cresceu no chão e em-be-be-dando o surrão... – Gaguejas, Guriatã? – Fez com-que, com-que Sucram perdesse o amigo buscado, que ali ficou encantado como eu, Guriatã! (ACCIOLY, 2006, p. 151-152)

Aqui, entende-se que tudo o que ficou gravado na memória retorna em distintas ocasiões. Esse encontro memorialístico com as origens, com o passado, ajuda a ressignificar o momento presente pela força interior que a lembrança de tais vivências desperta. O aspecto lúdico da linguagem utilizada na construção poética nos possibilita a percepção da criatividade como uma nova forma de ver a realidade a partir do diálogo que se tece entre Sucram e Guriatã, deixando espaço para o simbolismo e para a imaginação. Ludicidade e humor também aí se imiscuem entre os interlocutores, trazendo certos jargões da oralidade pronunciados pelos contadores de histórias – “Era uma vez...”, “perna de pinto de pato” – reconstruídos e encaixados no poema de modo inusitado. Ou ainda recorrendo a uma construção reveladora de efeito assustador, causada ao pássaro Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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interlocutor, como o ato de ficar gago – “o sangue cresceu no chão / e em-be-be-dando o surrão.../ – Gaguejas, Guriatã?” (grifo nosso). O octogésimo quarto poema, do Guriatã por último, relata que Sucram queria se transformar em pássaro encantado, tão forte era sua dor por conta da marcante experiência de perda na infância: LXXXIV – Guriatã-de-coqueiro, conte agora o derradeiro do cavalo e cavaleiro da infância, Guriatã. – Conto e canto que Sucram ficou sabendo depois que eu e Leunam somos dois, não duas... – Guriatã!

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– Sim, contei o meu passado de menino transformado em passarinho encantado. – Mas por que, Guriatã? – Porque a dor de Sucram era de tanto penar que ele queria virar menino-Guriatã. – Mas ele está bem agora ou Leunam canta e chora a mágoa que se demora no peito, Guriatã? – Não-sabe-que que Sucram tem sentimento pesado? – Pois ele é mais conformado ou menos, Guriatã? (ACCIOLY, 2006, excerto, p. 159-160)

Seguindo a estrutura de um poema épico que apresenta prólogo, invocação às musas, episódios, epílogos, “Guriatã é um poema de afirmação, constituindo-se num duplo rito de passagem: passagem da vida para a morte (aparente) e desta para a vida (verdadeira, pela ressurreição) e, ao mesmo tempo, um rito de passagem da infância para a idade adulta” (HOHLFELDTP, 1991, p. 121). Como mencionado no início deste estudo, é através do canto do pássaro que se revela o sumiço de Leunam que virou Guriatã, o que fica evidente no poema LXXXIV, identificado pela didascália do guriatã por último, quando a ave responde à interpelação do narrador, enfatizando “que eu e Leunam somos dois” (p. 159), fato que, como afirma a ave, o menino Sucram só “ficou sabendo depois”. Vejamos: – Sim, contei o meu passado de menino transformado em passarinho encantado. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A poesia memorialista em Guriatã, um cordel para menino, de Marcus Accioly

– Mas por quê, Guriatã? – Porque a dor de Sucram era de tanto penar que ele queria virar menino-Guriatã. (ACCIOLY, 2006, p. 159).

O nonagésimo poema, do epílogo dos epílogos, apresenta o término da história de Sucram e Leunam, assinalando que a vida é como um pássaro, mas o mundo, com todas as circunstâncias que a passagem por ele oferece, transforma-se em gaiola que poda o voo: XC Ó Musa do Siriji, sereia, mulher-menina, moça de rio-Zumbi, Mãe-Dágua de verde crina, me inspiraste até aqui e agora o cordel termina. Terminou a história/estória de Leunam e de Sucram, que o mundo inteiro é gaiola e a vida Guriatã, pode levar a viola que hoje eu só canto amanhã. (ACCIOLY, 2006, p. 168)

Nessa estrofe, a viola, instrumento usado pelos poetas para cantar a vida é mencionada, e verificamos, mais uma vez, a forte presença da cultura popular que embasa toda a obra. Cada estrofe que compõe a obra traz a marca da fantasia poética e a singeleza de um poema que nasce a partir de uma realidade concreta, ou seja, a vida é poetizada de maneira que qualquer criança seja capaz de perceber a beleza de cada verso e captar o seu sentido. A obra termina oferecendo uma reflexão acerca da liberdade, marca peculiar à infância, pois somos como pássaros presos na gaiola do mundo que, com suas artimanhas, podam as asas da liberdade que ganhamos ao receber a luz da vida, e, ao mesmo tempo, toda a vida é um pássaro, um guriatã que canta as dores e alegrias ao som de uma viola seguindo o compasso que a experiência terrena oferece até que se concretize a passagem ou a volta às origens. Em uma das notas no final do livro, o poeta assinala que, Menino não é criança nem adulto e, sendo todas as idades, é sem idade. Por fora se conhece a criança ou o adulto. Menino é dentro. Contando dez anos em cada dedo, menino às vezes vive duas mãos. Menino é tempo, tempo para frente e para trás, eco e assovio, sombra dupla, espelho onde a imagem cresce ou diminui. Menino (ACCIOLY, 2006, p. 186).

Sendo assim, entendemos que ser menino é muito mais do que ser criança, fase cronológica da vida de uma pessoa, ou adulto, experiência que também é finita. Menino é o que vive dentro, na essência da gente. É a grandeza da liberdade de sonhar e acreditar na possibilidade de realização, acreditar que o sonho é real. É nunca desistir de algo, não temer Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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perigo algum e viver plenamente o presente. Ser menino é ver-se a si mesmo como num espelho, que retrocede no tempo das vivências em plenitude e nos leva ao futuro que habita os sonhos. Ser menino é ser poesia que retira do passado e da memória o direito de viver.

Considerações finais

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A memória da poesia popular é exaltada ao longo de toda a obra Guriatã, um cordel para menino, do poeta pernambucano Marcus Accioly, pois todos os poemas estão impregnados de sua essência, inclusive apresentam modalidades utilizadas pelos poetas repentistas. A partir do recorte teórico-metodológico, chegamos à conclusão de que o poeta apresenta, em sua poesia, uma possibilidade de resgate de nossas memórias mais remotas, permitindo um retorno às nossas origens, a fim de ressignificar o nosso presente, e podemos confirmar a grande relevância da memória para a criação e a preservação do cordel, funcionando como um mecanismo de resgate das vivências mais significativas que constituem o ser humano e, ao mesmo tempo, impulsionando a sua vida nas mais diferentes circunstâncias. Desse modo, Guriatã, com toda sua fascinação de menino, traz à tona a recordação de uma vida repleta de infância, não mais esquecida pela dor da perda, da morte, mas ressignificada, pois a mesma poesia que acompanhou o poeta Accioly desde a mais tenra idade também é companheira de muitas pessoas que, em sua realidade, encontram nela o entusiasmo para seguir a caminhada. Este trabalho trouxe-nos vários subsídios em nível teórico e prático, e esperamos que ele também possa contribuir para o conhecimento sobre o autor e sua obra, notadamente sobre Guriatã, um cordel para menino, objeto de estudo nesta pesquisa, identificando o aspecto memorialista que a caracteriza, além de vislumbrar possibilidades de sua vivência em contextos de leitura, principalmente junto a estudantes do Ensino Fundamental das redes públicas e privadas, que poderão desfrutar da grandeza poética do poeta pernambucano. Esperamos, ainda, que este estudo possa ser ampliado em outras instâncias de nossa formação acadêmica, visto estarmos cientes de que o assunto aqui não se esgota, uma vez que pode também suscitar o interesse de outros pesquisadores a adentrar tanto no universo poético de Marcus Accioly, como também no sentido de discorrer sobre a relação de proximidade entre a literatura de cordel com o gênero literário das memórias.

Referências ACCIOLY, Marcus. Guriatã, um cordel para menino. Recife: Bagaço, 2006. ASSUNÇÃO, Luiz; MELLO, Beliza Áurea de Arruda. (Orgs.) Paul Zumthor: memórias das vozes. São Paulo: Assimetria, 2018. BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da literatura de cordel. Natal: Fundação José Augusto, 1977. COELHO, Nely Novaes. A literatura infantil: história, teoria, análise: das origens orientais ao Brasil de hoje. São Paulo: Quíron, 1981. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2003. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


A poesia memorialista em Guriatã, um cordel para menino, de Marcus Accioly

HOHLFELDTP, Antônio. Guriatã: um cordel (religioso) para menino. Letras de Hoje: Estudos e Debates em Linguística, Literatura e Língua Portuguesa, Porto Alegre, v. 26, n. 3. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1991. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/16109/10582. Acesso em: 03 fev. 2019. JOSÉ, Elias. Memória, cultura e literatura: o prazer de ler e recriar o mundo. São Paulo: Paulus, 2012. PAZ, Octavio. La casa de la presencia: poesía e historia. México: Fondo de Cultura, 1993. SANTOS, Neide Medeiros. Guriatã: uma viagem mítica ao país-paraíso. João Pessoa: Ideia, 2005. TAVARES, Bráulio. Arte e ciência da cantoria de viola: cantoria, regras e estilos. Recife: Bagaço, 2016.

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Aspectos conceituais e relevância da literatura infantil para a criança1 Conceptual aspects and relevance of children’s literature to the child Mariana de Souza ALVES2 Maria Lúcia RIBEIRO DE OLIVEIRA3 Resumo: Este artigo aborda alguns aspectos teóricos da literatura infantil. Busca entender e refletir sobre como se configura a leitura literária infantil em termos teóricos e qual a relevância da linguagem literária para a criança. Utiliza a pesquisa exploratória e bibliográfica para discutir o tema a partir da literatura científica de autores (as) e críticos (as), sobretudo no contexto brasileiro durante os anos de 1970 até os anos 2000. Apresenta um resgate teórico dos estudos iniciais sobre leitura e literatura infantil, com o intuito de apreender a temática e como tais conceitos se relacionam entre si. Conclui que, apesar da instabilidade que permeia os conceitos, é possível entender como eles se relacionam e como operam, no sentido de compreender o desenvolvimento do imaginário e da autonomia da criança. Palavras-chave: Leitura. Literatura. Literatura infantil. Aspectos teóricos. Abstract: This article deals with some theoretical aspects of children's literature. It seeks to understand and reflect about how the child literary reading is arranged in theoretical terms and what the relevance of literary language to the child. It uses exploratory and bibliographic research to discuss the topic from the scientific literature of authors and critics, especially in the Brazilian context from the 1970s to 2000s. It presents a theoretical rescue of the initial studies on reading and children's literature in order to seize the theme and how these concepts are related to each other. It concludes that, despite the instability that permeates the concepts, it is possible to understand how they relate and how they operate in the development of the child's imaginary and autonomy. Keywords: Reading. Literature. Children's literature. Theoretical aspects.

Introdução Este artigo apresenta algumas considerações teóricas a respeito da literatura infantil. Para fundamentar nossas questões, iniciamos uma discussão em torno da polissemia/complexidade do conceito de leitura e das variantes culturais, históricas e políticas que estão associadas ao seu contexto de produção, tendo como princípio a natureza ampla, contextual, historicista e criativa do ato e dos modos de ler. Além disso, serão apresentadas algumas considerações acerca da literatura para infância, seu histórico e suas inevitáveis polêmicas, no que tange, sobretudo, ao conceito de ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Artigo adaptado da monografia apresentada ao Curso de Especialização de Literatura Brasileira da FAFIRE, em 2018, e publicado na Revista FAFIRE, Recife, v. 11, n. 2, p. 75-81, jul./dez. 2018. 2 Graduada em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Pernambuco | 2014 | Universidade Federal de Pernambuco, IFPE | 2014 | Mestre em Ciência da Informação | UFPE | 2019 | Especialista em Literatura Infantojuvenil | FAFIRE-PE | 2018 | Mediadora de Leitura pelo CCLF/FUNCULTURA | 2017 | Formação em Contação de Histórias, PRONATEC | 2014| e Zumbaiar | 2018 | Doutoranda em Ciência da Informação, UFPE | 2019 | ORCID ID= http://orcid.org/0000-0002-34529629 | E-mail: mdsa24@gmail.com 3 Mestre em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco | 1986 | Professora da Faculdade Frassinetti do Recife | FAFIRE | e orientadora do trabalho | E-mail: ribeirodeoliveiraml@gmail.com 1

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infância, a sua relação com a pedagogia e seu agenciamento pelos adultos. Para sustentar os nossos pressupostos, recorremos a teóricos e teóricas como Yunes (1979; 1980), Meireles (2016), Cunha (2004), Zilberman e Magalhães (1987), Cademartori (2010), Coelho (2000), Hunt (2010), entre outros.

Leitura literária infantil Refletir sobre a leitura literária infantil é compreender que a leitura é um conceito amplo que envolve a ativação de diversos sentidos e que ocorre de modo diferente para cada leitor (MARTINS, 1982; ABREU, 2006). Essas diferenças nos modos de ler acontecem devido aos contextos sociais de produção e da história de cada sujeito, os quais definirão a sua relação com a linguagem e a realidade (ORLANDI, 1998; FREIRE, 2011). Também é importante saber que a leitura é antes de tudo um processo de criação e construção de sentidos (CHARTIER, 1998; LAJOLO, 1998). Tratar de leitura literária infantil implica reconhecer a polissemia e peculiaridade do conceito de infância, como expressa Peter Hunt: A criança é um conceito infinitamente variado, de uma casa para outra, e de um dia para o outro. Ao falar sobre livros para criança, algumas generalizações devem ser feitas, ou a linguagem torna-se incontrolável, porém não se pode esquecer o fato de que o conceito de criança é um problema sempre presente para a crítica da literatura infantil (HUNT, 2010, p. 291).

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Nesse sentido, no universo da criança, a leitura literária surge como um caminho para compreensão do mundo, atuando na sua formação de um modo adequado às suas capacidades infantis. Destarte, a literatura infantil se apresenta como uma modalidade artística que tem o potencial de configurar um horizonte de expectativas na criança, na medida em que oferece ao pequeno (a) leitor (a) a oportunidade de questionar o universo representado. “Por isso, ela é necessariamente formadora, mas não educativa, no sentido escolar do termo” (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1987, p. 134), já que permite ao leitor interrogar seu lugar no mundo e promover rupturas e renovações típicas da natureza literária. Numa perspectiva humanizadora da literatura, concebendo-a como uma forma de nos entendermos enquanto humanos e compreendermos os dilemas e os conflitos do nosso cotidiano, asseguram María Teresa Andruetto e Antonio Candido: Nós, os leitores, vamos à ficção para tentar compreender, para conhecer algo mais acerca de nossas contradições, nossas misérias e nossas grandezas, ou seja, acerca do mais profundamente humano [...][a ficção] vem para nos dizer sobre nós de um modo que as ciências e as estatísticas ainda não podem fazer (TERESA ANDRUETTO, 2012, p. 54). Entendo aqui por humanização [...] o processo que confirma no homem aquelas trações que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (CANDIDO, 2012, p. 29). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Aspectos conceituais e relevânciada literatura infaltil para a criança

Conforme enfoca Queirós (2009, p. 1), “a leitura literária é um direito de todos e que ainda não está escrito” que é “capaz de abrir um diálogo subjetivo entre o leitor e a obra, entre o vivido e o sonhado, entre o conhecido e o ainda por conhecer”. Desse modo, a literatura infantil, enquanto uma obra de arte, contém uma estética que proporciona uma sensação de beleza ao leitor, desencadeando emoções e sentimentos. Por isso, “criar uma obra de arte infantil com valores estéticos é produzir textos em que a linguagem inventa e carrega em si o seu sentido, abdicando dos sentidos e estilos configurados a priori, vinculados a esquemas pedagógicos que se deseje ver assimilados” (YUNES, 1980, p. 5). O mundo ficcional também promove emancipação e autonomia à criança, além de fazê-la elaborar e prospectar simbolicamente seus conflitos, a partir das situações lidas, especialmente nos contos de fadas ou populares. “Então, ao ouvir ou ler uma história, algo que existia apenas dentro de mim pode transpor essa interioridade e ser localizado exteriormente, como situação vivida por outras pessoas que, é possível, respondam a ela de diferentes maneiras” (CADEMARTORI, 2010, p. 63). A simbologia, as figuras de linguagens são bem recebidas pelas crianças no período inicial de seu desenvolvimento, porque, ao contrário da racionalidade, que é facilmente dominada pelo medo e pela ansiedade, não sendo capaz de ser instrumento de entendimento e conexão com a realidade, o simbólico ajuda-as a compreender o mundo e os conflitos (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1987, p. 145). Daí temos toda a relevância histórica, educacional e social da literatura infantil.

Literatura para infância O pesquisador inglês Peter Hunt, na década de 1990, problematiza a questão da literatura infantil com algumas perguntas/proposições: os bons livros são bons livros para crianças e adultos, mas os livros para adultos são livros bons apenas para adultos. Dessa forma, interpela o autor: os critérios de avaliação da literatura infantil devem ou não ser os mesmos que os da literatura adulta? Ao considerarmos critérios diferentes, quer dizer que a literatura infantil é inferior? Ou seria diferente? Para a escritora e teórica brasileira Cecília Meireles, em um dos trabalhos pioneiros sobre o tema no Brasil, Problemas da literatura infantil, escrito em 1951, são as crianças que na verdade deveriam delimitar e classificar sua preferência, conforme utilidade e prazer que determinadas obras lhe proporcionam. Não havendo, assim, “uma literatura infantil a priori, mas a posteriori”. A autora defende que, [...] em lugar de se classificar e julgar o livro infantil como habitualmente se faz, pelo critério comum da opinião dos adultos, mais acertado parece submetê-lo ao uso – não estou dizendo a crítica – da criança, que, afinal, sendo a pessoa diretamente interessada por essa leitura, manifestará pela sua preferência, se ela a satisfaz ou não (MEIRELES, 2016, p. 19).

Os casos de obras para adultos que começaram a ser apreciadas pelas crianças nos indicam e comprovam que as escolhas das preferências só são possíveis após uma experiência com o objeto lido. Dessa maneira, a literatura infantil “em lugar de ser a que se escreve às crianças, seria a que as crianças leem com agrado” (MEIRELES, 2016, p. 57). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Há também posições mais radicais, ou poderíamos chamar de neutras ou equilibradas, como a de Crouch, que defende que não existem livros para criança, pois eles são um conceito criado pelo interesse comercial e pela ânsia da humanidade em classificar. Para ele, o verdadeiro autor escreve o que lhe é interno, e tal escritura pode agradar ora às crianças, ora aos adultos. Na verdade, o que deve acontecer é a classificação de livros bons e ruins, decreta. Ele ainda continua colocando que a diferença entre livros para criança e para adultos está apenas na abordagem. Os primeiros devem ser analisados segundo os mesmos critérios da literatura adulta, com a adição do critério da acessibilidade (CROUCH, 1972). É também o que pensa Coelho (2000, p. 27-29): A literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível realização [...] Em essência, sua natureza é a mesma da que se destina aos adultos. As diferenças que a singularizam são determinadas pela natureza do seu leitor/receptor: a criança.

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Isso implica debater outra questão primordial, que é saber o que existe de infância no adulto e o que existe de adulto na criança, para efetivar essa comunicação de oferecimento e recepção, bem como saber também até que ponto os adultos têm razão, “se às vezes, não estão servindo a preconceitos, mais que à moral [...] se a criança não é mais arguta, e sobretudo mais poética do que geralmente se imagina...” (MEIRELES, 2016, p. 18). A moralização, por sinal, é nitidamente vista nos livros infantis, ao se verificar que os temas mais presentes eram liderança masculina, obediência cega, a valorização do estudo, o trabalho como caminho para a riqueza, a beleza física, o nacionalismo. Em contrapartida, os temas poucos vistos e frequentemente tratados como negativos eram: iniciativa própria, a curiosidade sobre o mundo, a transgressão, o feio, a ambiguidade e a fantasia (YUNES, 1979). Ademais, dentre os principais conceitos e padrões de pensamento e conduta que caracterizam a literatura infantil tradicional, podemos citar, conforme Coelho (2000) destaca: o espírito individualista; obediência absoluta à autoridade; sistema fundado na valorização do ter; moral dogmática; sociedade sexófoba; reverência pelo passado; visão transcendental da condição humana; racionalismo; racismo e a consideração da criança enquanto um adulto em miniatura. Historicamente, com o novo status adquirido pela criança no seio da sociedade burguesa oitocentista, em função da emergência da família burguesa, agregada à obrigatoriedade do ensino e às novas concepções pedagógicas e psicológicas nos estudos da família e da infância, a concepção de criança transmuta-se radicalmente (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1987). Sabe-se, porém, que essa relevância só foi adquirida com o passar dos séculos, e que ainda hoje a literatura infantil enfrenta desafios no que respeita a sua legitimação enquanto manifestação artística e, sobretudo, diante dos dilemas que se referem ao agenciamento do livro para criança. Sobre isso, afirma Cademartori (2010, p. 22) que, embora seja “escrito para criança [...] e lido por ela, [...] é escrito, empresariado, divulgado e comprado pelo adulto”. Tal mudança representou um novo olhar da psicologia e da sociologia da infância, promoveu o avanço dos estudos da área, bem como formou um novo imaginário familiar e Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Aspectos conceituais e relevânciada literatura infaltil para a criança

social da criança. Tudo isso trouxe consequências positivas em termos de saúde, educação e cultura, e negativos em termos de consumo e indústria cultural. Além de ter proporcionado uma renovação da literatura para crianças, e ocasionado uma sensibilização maior dos produtores dessa modalidade literária, fez com que a editoração e a produção intelectual das obras se tornassem cada vez mais elaboradas artisticamente, tanto no trato plástico da arte, como na linguagem. Prova dessa mudança nos é apresentada por Coelho (2000), quando traz os conceitos e padrões de pensamento e conduta que caracterizam a “nova” literatura infantil em detrimento dos valores da literatura infantil tradicional, tais como: o espírito solidário; questionamento da autoridade; sistema social fundado na valorização do fazer e do ser; moral da responsabilidade ética; sociedade sexófila; redescoberta e reinvenção do passado; concepção de vida fundada na visão mutante da condição humana; intuicionismo fenomenológico; antirracismo e consideração da criança como um ser em formação. Sobre isso, assim opina Yunes (1980, p. 7): O equilíbrio, expressão-conteúdo atuando com certo rigor e adequação de linguagem; os recursos linguísticos significativos a nível plástico e sonoro; a fluência narrativa sem ocorrências forçadas e enxertos “estranhos” à proposta primeira; a escritura harmônica capaz de resgatar uma prática racional do uso da realidade e da fantasia, são elementos que parecem viabilizar o estético especialmente para crianças.

Em defesa da escola, enquanto lugar privilegiado para o encontro do leitor com o livro, Coelho (2000) orienta que os estudos literários na escola, por seu turno, devem ser oferecidos tanto em forma de “estudos programados (sala de aula, bibliotecas para pesquisa” como por meio de “atividades livres” (sala de leitura, recanto das invenções, laboratório da criatividade), pois o contato com a literatura permite, de forma mais abrangente do que qualquer outra modalidade, aquisições como: o exercício da mente, a percepção do real, a leitura de mundo, o conhecimento da língua, cujos valores possibilitam a plena realidade do sujeito (COELHO, 2000). Cademartori (2010), em seu livro O que é literatura infantil, traz uma análise profunda da relação entre alfabeto, fonética, letra, sons com a recepção da criança, imaginação, sonhos e como o uso adequado da poesia e de obras literárias podem potencializar o desenvolvimento da criança, ao invés de cerceá-la, como a escola faz geralmente, rompendo o vínculo com a oralidade que a criança possui e introduzindo-a no mundo da escrita de maneira abrupta. Da mesma maneira, temos como algumas características de obras adequadas ao público infantil, aquelas que fazem uso especial da linguagem, no sentido de potencializar a dimensão lúdica e estética dela; uso dos processos linguísticos de modo diferente como emprega-se comumente; obras cujas possibilidades permitam uma ampliação do repertório referencial do leitor/a; obras que causem renovação do olhar, estimulem novas conexões e alarguem as expectativas (CADEMARTORI, 2010). Para Meireles, de maneira geral, a literatura é uma atividade intelectual que se manifesta por meio da palavra escrita ou oral. Ela é anterior ao alfabeto e ao letramento, fazendo-se por meio de cânticos, lendas, histórias, provérbios, adivinhações, representações dramáticas transmitidas ao longo das gerações e perpetuadas por meio da memória (MEIRELES, 2016, p. 14). Hunt (2010, p. 43) coloca que: Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Mariana de Souza Alves | Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira

Do ponto de vista histórico, os livros para crianças são uma contribuição valiosa à história social, literária e bibliográfica; do ponto de vista contemporâneo, são vitais para a alfabetização e para a cultura, além de estarem no auge da vanguarda da relação palavra e imagem nas narrativas, em lugar da palavra simplesmente escrita.

Coelho (2000, p. 29, grifo da autora) afirma que é no “encontro com a literatura (ou com a arte em geral) que os homens [e mulheres] têm a oportunidade de ampliar, transformar ou enriquecer sua própria experiência de vida, em um grau de intensidade não igualada por nenhuma outra atividade”. Considerada indispensável em todos os espaços onde circula a infância, Queirós (2009) acredita que a presença da literatura propicia liberdade, espontaneidade, afetividade e fantasia, que são elementos fundamentais para o crescimento da criança. Conforme destaca Meireles: A Literatura não é, como tantos supõem, um passatempo. É uma nutrição. A Crítica, se existisse, e em relação aos livros infantis, deveria discriminar as qualidades de formação humana que apresentam os livros em condições de serem manuseados pelas crianças. Deixando sempre uma determinada margem para o mistério, para o que a infância descobre pela genialidade de sua intuição (MEIRELES, 2016, p. 20).

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Dessa maneira, boas obras de literatura infantil, ou seja, aquelas que respeitam seu público, permitem ao leitor/a “possibilidade ampla de atribuição de sentido àquilo que lê”, estimulando a criança a vivenciar uma “aventura com a linguagem e seus efeitos” (CADEMARTORI, 2010, p. 17). Por isso, acreditamos que esse tipo de literatura – veiculada em sua maioria por meio de livros, mas não restrita a eles – é a porta de entrada que estabelece o diálogo cultural das novas gerações para com o mundo, oferecendo uma experiência artística e estética aos pequenos e pequenas (COLOMER, 2017). A literatura democratiza o potencial imaginativo e recreativo dos sujeitos “é como entretenimento, aventura estética e subjetiva, reordenação dos próprios conceitos e vivências que a literatura oferece, aos pequenos, padrões de leitura do mundo” (CADERMATORI, 2010, p. 8). Para Riter (2009), a leitura literária é sempre possibilidade de imaginação e fantasia; conhecimento e sabedoria; empatia e vivência de outra cultura; conhecer novas experiências reais ou impossíveis, conhecer-se.

Considerações finais Por fim, este artigo teve como objetivo compreender como se configura a leitura literária infantil em termos teóricos, e qual o significado e a importância da linguagem literária para a criança. Para isso, buscamos fazer um resgate teórico dos estudos iniciais sobre a literatura infantil, sobretudo, no contexto brasileiro, da década de 1970 até os anos 2000, aliado a um arcabouço conceitual sobre concepções de leitura e literatura. Incialmente, é necessário compreender que a leitura é um conceito amplo que envolve a ativação de diversos sentidos, e que ocorre de modo diferente para cada leitor. Essas diferenças nos modos de ler acontecem devido aos contextos sociais de produção e da história de cada sujeito, os quais definirão a sua relação com a linguagem e a realidade. Também é importante saber que a leitura é antes de tudo um processo de criação e construção de sentidos. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Aspectos conceituais e relevânciada literatura infaltil para a criança

É relevante destacar que o conceito de literatura não se trata de definição consensual, concreta e universal, pois a literalidade não é inerente ao texto/imagem, mas também compreende a forma, por quem, onde e quando o texto é lido ou a imagem é vista. Compreende-se por literatura infantil a literatura oral ou escrita que se faz por meio de cantigas, parlendas, lendas, contos, imagens, entre outros gêneros que utilizam a linguagem de forma tal a engendrar determinadas experiências com a mesma e com os sentidos que favorecem a ativação da imaginação e criatividade da criança. Dessa forma, podemos concluir que, em que pesem os percalços e dilemas pelos quais passou e ainda passa a literatura infantil, e apesar de a literatura ser um conceito cultural e temporal, felizmente hoje temos um panorama bem mais animador, no que tange à valorização das habilidades e competências da criança, do que quando esta literatura se originou.

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Em cada criança, uma Alice: o País das Maravilhas em sala de aula1 In every child, an Alice: the Wonderland in classroom Claudiane Jurema de SOUSA2 Laíza de França Carneiro LEÃO3 Nelma Menezes Soares de AZEVÊDO4 Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar o resultado de uma atividade didática, cujo propósito foi de estimular a imaginação e o letramento literário nas crianças, utilizando a obra Alice no País das Maravilhas, do autor Lewis Caroll, como recurso para formação de leitores. Sendo assim, a pesquisa teórico-empírica, com metodologia de cunho qualitativo, foi desenvolvida em uma escola pública do município de Recife/PE, cujos sujeitos envolvidos foram crianças na faixa etária de 7 anos, alunos do Ensino Fundamental I. Utilizamos como aporte teórico, Cosson (2009), Khéde (1990), Souza (2010), entre outros. O trabalho evidenciou que, o quão antes a prática da leitura for inserida na vida do indivíduo, maior a possibilidade de a criança construir sua identidade de leitor literário, sendo possível explorar o imaginário infantojuvenil com a obra trabalhada. Palavras-chave: Imaginação. Alice no País das Maravilhas. Formação de leitores. Letramento literário. Abstract: The aim of this article is to present the result of a didactic activity, whose purpose was to stimulate the imagination and literary literacy in children using the literary word Alice in Wonderland, by author Lewis Caroll, as a resource for the formation of readers. Thus, the theoretical-empirical research, with a qualitative methodology, was developed in a public school in the city of Recife/PE, whose subjects involved were children in the age group of 7 years, elementary school students I. Use as theoretical contribution, Cosson (2009), Khéde (1990), Souza (2010), among others. The study showed that, as before the practice of reading is inserted in the life of the individual, the greater the possibility of the child building his identity as a literary reader, being possible to explore the childhood imagination with the book worked. Keywords: Imagination. Alice in Wonderland. Readers development. Literary literacy.

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Este trabalho originou-se de uma pesquisa desenvolvida no NUPIC (2017/2018), desenvolvido de acordo com critérios do Comitê de Ética, com cadastro na Plataforma Brasil com a seguinte aprovação: CAAE: 81001417.3.0000.5586. 2 Professora de inglês em curso livre, graduanda do curso de Letras (Português/Inglês) na Faculdade Frassinetti do Recife, bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) da CAPES e Pesquisadora do NUPIC (Núcleo de Pesquisa e Iniciação Científica da FAFIRE) | E-mail: claudianesousa@live.co.uk 3 Professora de inglês em escolas particulares, graduanda do curso de Letras (Português/Inglês) na Faculdade Frassinetti do Recife, onde foi Monitora de Língua Inglesa, bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) da CAPES e pesquisadora do NUPIC (Núcleo de Pesquisa e Iniciação Científica da FAFIRE | E-mail: laizafcleao@gmail.com 4 Mestre em Educação, Cultura e Identidades UFRPE/FUNDAJ. Professora da rede municipal de ensino do Recife e FAFIRE. Orientadora do NUPIC (Núcleo de Pesquisa e Iniciação Científica da FAFIRE) e orientadora da pesquisa | E-mail azevedonelma@yahoo.com.br 1

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Claudiane Jurema de Sousa | Laíza de França Carneiro Leão | Nelma Menezes Soares de Azevêdo

Introdução

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A leitura faz parte do ambiente escolar desde a primeira infância, mesmo que não executada pelas crianças ainda muito novas para o contato com as letras. No entanto, a magia da leitura não está só em ler, mas em imaginar, criar e viver a história. É papel do professor, como também dos pais, a inserção da criança neste universo, começando desde a contação de histórias, passando por livros ilustrados e chegando ao letramento literário, de forma a incorporar, à vida da criança, a leitura como prática prazerosa. Sendo assim, entra em foco a questão da Literatura Infantojuvenil. Por que não utilizarmos livros considerados clássicos nesse gênero para estimular desde os primeiros anos a leitura literária? Diante desse questionamento, para o presente trabalho, escolhemos Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, aclamado desde a sua publicação, e que envolve os leitores desde as mais tenras idades. Trata-se de uma obra criada para o público infantojuvenil, vista da perspectiva de uma criança, em um mundo criado por ela, trazendo fantasia e imaginação aos leitores. Acreditamos que esse projeto se valida pela importância da leitura literária nos anos iniciais da escola, uma vez que é a experiência da leitura literária que nos permite conhecer outras formas de existência e refletir significativamente; daí, a necessidade de leitura e interpretação de textos literários, assim como do estímulo pela leitura em si. Sabemos que, às vezes, uma simples leitura basta; mas é válido ampliar o prazer que uma leitura oferece e aprofundar a compreensão leitora, desenvolvendo atividades que explorem aqueles aspectos mais marcantes do texto literário. Nessa perspectiva, cremos que o presente trabalho seja relevante para a área da leitura, especificamente a literária, pela proposta de investigar o letramento literário nos anos iniciais do Ensino Fundamental e difundir a Literatura Infantojuvenil clássica, com interesse na formação de leitores. Organizamos o trabalho em três partes. Na primeira, apresentamos algumas definições sobre o letramento literário. Na segunda, a temática sobre Literatura Infantojuvenil e a imaginação é discutida, para. Então, na terceira parte, apresentarmos a nossa contribuição com a Literatura Infantil em sala de aula, relatando a vivência proposta.

Afinal, o que é letramento literário? O cenário do letramento tem suscitado inúmeras pesquisas no campo educacional nos últimos anos, desde suas primeiras utilizações que concebiam as diferenças entre alfabetização e letramento, até as mais atuais manifestações, como, por exemplo, o advento da concepção de multiletramentos. No que infere ao universo literário, temos a modalidade do Letramento literário, e é a esta forma de letramento que damos ênfase por sua relação direta com a literatura. Para que adentremos no universo da leitura literária e do imaginário infantil, é necessário compreender o que seja Letramento Literário e como este está diretamente envolvido nas práticas sociais de leitura e escrita. Deste modo, é possível dizer que, resultante dessas diversas práticas, tem-se o Letramento Literário, que, segundo Bonfim, Silva e Souza (2016), surge como um conjunto de ações e eventos sociais que envolvem Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Em cada criança uma ALice: o país das maravilhas em sla de aula

a interação leitor e escritor, produzindo o exercício socializado na escola por meio da leitura de textos literários, tendo por finalidade principal a construção e a reconstrução de significados em relação ao texto lido. Para Cosson (2009), letramento literário é o processo de apropriação da literatura enquanto linguagem. O autor explica que, neste sentido, a apropriação refere-se ao ato de tomar algo para si, de fazer alguma coisa se tornar própria, de fazê-la pertencer à pessoa, de internalizar ao ponto de algo tornar-se seu. Cosson (2014) ainda esclarece que é isso que sentimos quando lemos um poema e ele nos dá palavras para dizer o que antes não conseguíamos expressar. Como acréscimo, Silva e Silveira (2013, p. 96) afirmam que o letramento literário "é visto com estado ou condição de quem não apenas é capaz de ler o texto em verso e prosa, mas dele se apropriar efetivamente por meio da experiência estética, saindo da condição de mero expectador para a de leitor literário". A posição de leitor literário faz-se através da interação leitor, leitura, texto literário e autor. Sendo assim, o leitor literário é aquele indivíduo capaz de apropriar-se do texto, dialogar com o autor, e, além disto, é aquele que cultiva o ato de ler, o prazer pela leitura e desenvolve-a como uma prática inerente a sua vida. A literatura, então, faz-se presente nessa forma de letramento, em que o indivíduo se constitui concretamente como leitor ao aproximar-se e apoderar-se do texto literário. Esse indivíduo, chamamos de leitor, desenvolve seus sentidos com a linguagem literária, linguagem esta que o conduz a experiências, a mundos e a conhecimentos, desenvolvendo a capacidade de conhecer a si, o outro e o contexto social através da leitura literária.

Literatura infantojuvenil e imaginação Antes de estabelecer um paralelo entre a literatura infantojuvenil e a imaginação, vale revisitar a historicidade do público para o qual essa literatura está destinada e suas relações com a mesma, isto é, a criança, indivíduo que antes da Idade Moderna não era encarado como um sujeito com estrutura psicológica diferenciada, mas como um "adulto em miniatura", sendo visto em todas as civilizações "como um ser potencial para se adaptar à sociedade e servi-la" (SOUZA, 2010, p. 33), sem diferenciação dos adultos, seja trabalhando, quando pobres, ou sendo educadas para prosseguir com os negócios familiares, quando nobres. Como não havia a figura social chamada criança, não havia uma literatura específica para ela e, por consequência, não era poupada de ter acesso às mesmas informações e aos mesmos ambientes que os adultos, inclusive ao trabalho, como mencionado anteriormente. Dessa forma, a concepç ão de infância seria uma invenção burguesa que, com o advento do capitalismo, passou a ser um público-alvo para a elaboração de livros, cujos recursos ilustrativos e gráficos atraíssem ao máximo seus novos leitores. Toda essa necessidade mercantil fez com que a literatura dita infantil, por muitas vezes, fosse mal considerada de fato literatura, havendo, consequentemente, controvérsias a respeito de sua natureza. Acerca dessa dubiedade, segundo Souza (2010), autores como Benedetto Croce e Drummond expõem diferentes pontos de vista. Benedetto Croce acredita não haver uma literatura infantil, pois afirma "que 'o sol esplêndido da arte não pode ser suportado pelos olhos ainda débeis da criança e do adolescente' [...]"(ibidem, p. 11). De acordo com Coelho Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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(apud Souza, 2010), Drummond refuta que, ao resguardar em uma boa obra os cuidados da boa linguagem, ela poderá ser lida com vantagens, tanto pelas crianças, quanto pelos adultos. Outrossim, a literatura infantojuvenil alcança uma variedade maior de públicos, visto que pode ser apreciada não somente pelas crianças, como também por jovens e adultos. Mesmo assim, ainda há uma problemática: livros mal elaborados em termos históricos, estéticos, pedagógicos, artísticos e desprovidos de fantasia e imaginação, características essenciais para um livro ser considerado, de fato, como literatura. Quanto aos paradidáticos para serem , por sua vez, são os mais utilizados por grande parte das escolas, ocasionando um efeito contrário à atração pela leitura literária no ambiente escolar, havendo, assim, um processo de escolarização inadequada da leitura (cf. SOUZA, 2010). É justamente a ausência desses elementos estéticos/lúdicos que não permite que os pequenos leitores se aproximem do mundo literário de forma efetiva, pois essas características são as que mais os atraem e os desenvolvem em inúmeros aspectos, dentre eles, a imaginação.

Alice no País das Maravilhas: um estímulo à prática da leitura literária

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Alice no País das maravilhas, do escritor inglês Lewis Carroll, escrita na segunda metade do século XIX, é uma obra clássica infanto-juvenil. Todavia, sua complexidade e subjetividade trazem questionamentos acerca de seus leitores alvo, pois é considerado difícil delimitar que público essas obras clássicas infantojuvenis atingem. Afinal, o que costura essas narrativas? Eis aí o que nos interessa: "A possibilidade de o leitor identificar-se com a personagem e poder viajar com ela, por meio da imaginação" (SOUZA, 2010, p. 15), tornando, assim, a leitura fascinante e prazerosa para qualquer público. Contudo, em se tratando de identificação, não se pode deixar de considerar que, como destaca Sônia Salomão Khéde, Muito se discute se Alice no País das Maravilhas é um livro para crianças ou para adultos, principalmente em razão de seus complexos jogos que põe em cheque a questão do sentido. Mas os personagens deste livro singular se movimentam em situações de extrema semelhança com a lógica infantil. Por exemplo, a ausência de limites precisos entre realidade e fantasia; o jogo do faz-de-conta dos personagens – a criança que berra desesperadamente é um porco disfarçado de bebê; o jogo de críquete com a Rainha de Copas que não obedece às regras convencionais (1990, p. 45).

Assim, tais aspectos são de grande valia no desenvolvimento das crianças, além das aventuras, fantasia misturada com a realidade, humor, personagens exóticos e, principalmente, o fato de a protagonista ser uma criança inteligente com forte espírito de curiosidade e questionamento. Sônia Salomão Khéde (1990, p. 41) esclarece algumas características fundamentais a uma narrativa adequada ao leitor infantojuvenil, a saber: enredo de aventuras; combinação de fantasia e realidade; questionamento dos valores adultocêntricos; crítica social, principalmente das instituições voltadas para a infância; estilo humorístico, que trabalha com jogos de palavras, non-sense, ironia, absurdo e demais recursos inerentes ao cômico; atitude de seriedade em relação à infância que resulta, na prática, em textos literários de indiscutível valor e com trânsito garantido entre os adultos. Finalmente, a presença de personagens-crianças com um tipo específico de comportamento: o espírito crítico e transgressor, além do extremo bom senso aliado à inteligência. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Em cada criança uma ALice: o país das maravilhas em sla de aula

Considerando essas características, é facilmente perceptível o conflito vivido pela protagonista Alice em relação ao mundo, tanto o real quanto o próprio País das Maravilhas, uma vez que está em constante confronto por não se identificar por completo com os dois mundos. Essa falta de identificação, ocorre com as crianças que estão no processo de formação de sua identidade e nem sempre compreendem o que os adultos querem delas, como em determinadas situações em que são consideradas pequenas demais, pelos adultos, enquanto em outras são vistas como grandes demais. De fato, o que elas precisam não é de livros que as digam de forma direta o que deve ser feito ou não, mas de estímulo para refletir, aguçar seus sentidos, a fim de procurar compreender elas mesmas e o mundo a sua volta, e até embaralhar um pouco seus pensamentos e conhecimentos quando necessário. Essa seria uma verdadeira literatura. Acerca desse fenômeno paradoxal, Khéde afirma que [...] a criança é um ser cuja identidade precisa ser formada para que ela se constitua como sujeito, a pseudoliteratura de cunho pedagógico tentará passar-lhe uma idéia linear da ordem do mundo, pensando, assim, estar contribuindo para a ausência de conflitos. No entanto, a criança, mais do que qualquer ser, é o espaço do conflito no mundo burguês. Ao mesmo tempo que lhe dizemos “você é grande demais para fazer tal tolice”, retrucamos, “você é pequena demais para desejar tal coisa”. A criança vive o paradoxo de ser, ao mesmo tempo, “grande” e “pequena” para as ações do mundo (KHÉDE, 1900, p. 42-43).

Percebemos, portanto, como esse paradoxo, difícil de ser entendido pela criança, causa, novamente, maior identificação da criança leitora com a personagem Alice, por vivenciarem problemáticas semelhantes, como a não compreensão total das lógicas e das cobranças do universo adulto, como exemplifica Khéde em uma de suas aventuras pelo País das Maravilhas: "[...] para entender o que se passava ali seria necessário se colocar no lugar do outro, ou seja, precisava compreender a lógica do Chapeleiro e da Lebre de Março" (1990, p. 44). Tal ato não é realizado só por Alice ou pelas crianças que estavam diante da contação daquela história incomum, com acontecimentos bastante exóticos, mas também por muitas crianças na tentativa de compreenderem o mundo externo, em especial, o mundo adultocêntrico. Diante das considerações expostas até o momento, com o intuito de investigar e atuar sobre o estímulo da leitura literária e a imaginação no âmbito escolar por intermédio da obra Alice no País das Maravilhas, as crianças do segundo ano do Ensino Fundamental I foram o público-alvo. A escolha por esse nível de escolaridade foi devido ao fato de que, o quanto antes se instigar a imaginação e o prazer pela leitura, mais eficaz será o seu desenvolvimento. Além disso, essas crianças, que estão entrando em maior contato com o universo das palavras escritas, têm a mesma idade da protagonista Alice, em foco (7 anos), cuja mente propicia feitos de muita criatividade que, por sua vez, não tem sido aguçada nas escolas com frequência, conforme observamos. A fim de intervir nessa realidade, foi necessário, primeiramente, selecionar a adaptação mais adequada da obra, realizar observações na sala de aula, conversar com a professora regente, pedir autorização dos pais dos alunos e idealizar as etapas da vivência literária. O locus foi uma escola municipal localizada em Recife, onde a orientadora dessa pesquisa lecionava. A adaptação da obra adotada foi a da Ciranda cultural, uma vez que possui uma linguagem de acordo com a faixa etária em questão e imagens que iriam atraí-los, com Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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pop-us5 e toda uma ludicidade, como abrir portas e fazer personagens crescerem e encolherem, desaparecer e reaparecer, recurso que serviu de grande inspiração para a idealização das etapas da vivência. Durante as observações e a conversa com a professora, foi possível notar a dificuldade de os alunos executarem atividades que envolvessem um maior esforço de sua imaginação. A partir de então, a vivência literária foi concretizada em quatro encontros descritos a seguir. No primeiro encontro, a vivência foi dividida em pré-leitura, leitura e pós-leitura. No início da pré-leitura, as professoras pesquisadoras (PP) perguntaram aos alunos se existia algo que eles desejavam mudar no mundo. Em suas respostas iniciais, não havia nenhuma criatividade, como: não precisar ir para a escola, não haver os dias de segunda, não chover ou o sol não ser tão quente. Entretanto, após as PP darem exemplos6 de possíveis mudanças de acordo com seus desejos pessoais, os educandos conseguiram elaborar/expressar respostas mais criativas, pois compreenderam que os tipos de mudanças a que a pergunta se referia fugiam do padrão da realidade. A partir dessa compreensão, passaram a exercitar e exteriorizar a imaginação com respostas que denotavam um mundo em que eles pudessem se teletransportar, voar ou caminhar na lua. Nesse ínterim, o despertar de sua imaginação deixou-os tão empolgados que não queriam parar de expor suas ideias da forma mais inusitada possível. Dando prosseguimento à atividade desenvolvida, foi distribuído um cupcake de pelúcia para representar o poder da fala, isto é, o indivíduo que o tinha era o único que poderia falar. Em seguida, os olhos dos alunos foram vendados (cf. fig. 1) para eles poderem experimentar, tocar ou cheirar objetos misteriosos7 e identificá-los, a fim de estimular a imaginação. Na realização desse momento, os alunos mostraram-se bastante envolvidos com a dinâmica. Curiosos para identificar os objetos que tocavam, cheiravam ou provavam. Os objetos eram, de fato, bastante exóticos, tornando-se difícil descobrir do que se tratava. Entretanto, mesmo a maioria não conseguindo identificá-los, suas tentativas de acerto foram bem criativas. O último objeto apresentado foi um alimento com gosto bastante atípico, e a partir desse contexto de “comer”, as PP perguntaram se os aprendizes conheciam a história de uma menina que crescia e diminuía no mesmo instante em que comia, isto é, a personagem de Alice no país das maravilhas. De todos os alunos (26 matriculados), somente um conhecia a protagonista da obra em questão. Com a ligação estabelecida entre as dinâmicas de pré-leitura e a protagonista Alice, as PP iniciaram a leitura propriamente dita da história (cf. fig. 2). Apesar de ser uma história longa e considerada complexa, como mencionado anteriormente, todos se demonstraram concentrados e entusiasmados durante a leitura. No começo, alguns estranharam os acontecimentos que fugiam ao “comum”, mas pouco depois, todos foram aceitando de forma bem natural, pois compreenderam que naquele mundo qualquer coisa poderia se tornar possível. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Livros chamados pop-up’s são conhecidos por possuírem esculturas tridimensionais em papel e elementos móveis interativos no seu interior. 6 Tais como a chuva ser feita de chocolate, as pessoas, ao abrir livros, pudessem entrar nas histórias, ou que os objetos e personagens desejados saíssem, e que quando fechassem os olhos escolhessem para onde ir. 7 Tais como borracha gigante, objetos de massagem, tampa tudo, dado de pelúcia e casaco peludo. 5

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Em cada criança uma ALice: o país das maravilhas em sla de aula

No momento pós-leitura, por intermédio de um jogo de tabuleiro com um mapa ampliado do país das maravilhas, as PP puderam avaliar que de fato houve bastante concentração por parte das crianças, uma vez que souberam responder as perguntas de forma satisfatória. Neste jogo, havia dois dados com diferentes lugares da história, fichas com 6 cores distintas por equipe, crachás com cores e personagens diferenciados também por equipe (amarelo=Alice; azul=Lagarta Azul; branco=Coelho Branco; preto=Gato Risonho; verde=Chapeleiro Maluco; e vermelho=Rainha de Copas), para que, à medida que jogassem os dados, respondessem perguntas referentes às cenas dos locais do País das Maravilhas, marcando seus pontos no mapa quando acertassem, até que a equipe que acumulasse mais fichas no mapa tornar-se-ia o vencedor. Contudo, de qualquer forma, todos ganharam algo, assim como ocorreu na "Corrida Eleitoral" da história.

Figura 1: adivinhação através do tato

Figura 2: contação de história

Na segunda parte, foi estabelecido um momento de recapitulação do que fora feito na primeira vivência. As PP fizeram questionamentos a respeito do que os educandos vivenciaram no encontro anterior, e o que havia acontecido na história. A partir desse incentivo das PP, os alunos, com a oportunidade de fala, recontaram brevemente a história. O momento seguinte contou com a contextualização da história, numa tentativa de aproximar a leitura da realidade dos alunos. Ainda neste momento, as PP procuraram despertar o interesse dos alunos com questionamentos diretos, tais como: “Vocês gostariam de entrar em algum país assim? Como Alice entrou lá? (pela toca do coelho). Existe outra forma de entrar lá, sabiam? ” Tais perguntas conduziam uma próxima atividade, um jogo que revelaria a outra forma de se chegar ao país das maravilhas. Nessa vivência, os alunos iriam trabalhar com a dramatização, releitura dos personagens e o acesso ao país das maravilhas. A atividade foi conduzida inicialmente com a recordação dos personagens; à medida que os alunos citavam os personagens, eram coladas imagens ampliadas deles no quadro branco. Em seguida, foi realizado um jogo de mímica/caça ao tesouro em que os alunos sorteavam, de dentro de uma caixa, uma miniatura do personagem; após isso, ele deveria imitar algo que lembrasse o personagem para que seu grupo adivinhasse; ao acertar, o aluno receberia uma chave. As chaves/brinde eram compostas por sílabas que formavam a frase “Em seus sonhos”, o que iria mostrar aos alunos a outra possibilidade de se entrar no país das maravilhas. Com essa informação, as PP anunciaram que cada um poderia visitar seu próprio país Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Claudiane Jurema de Sousa | Laíza de França Carneiro Leão | Nelma Menezes Soares de Azevêdo

das maravilhas à hora que quisesse, e que iríamos, naquele momento, fazer essa visita. As PP convidaram, então, os alunos para um momento relaxante, quando eles puderam se deitar num colchão disposto no meio da sala, com almofadas, luzes apagadas e um jogo de luzes festivas coloridas, e ao som de uma música relaxante com sons da natureza. Após os alunos imaginarem o seu próprio país das maravilhas, foi dada a proposta para eles darem vida a essa ideia. Assim, iniciaram a primeira etapa do processo de criação do livro o País das Maravilhas de cada criança, composto de: capa (nome da criança nos País das Maravilhas); no meu País das Maravilhas eu posso...; Meu lugar favorito no País das Maravilhas; Minha personagem favorita no País das Maravilhas (cf. figs. 3 e 4); Algo que só acontece no País das Maravilhas (cf. fig. 5); e Minha comida favorita País das Maravilhas (cf. fig. 6). No momento da dramatização, todos os alunos participaram de forma voluntária. Nessa dinâmica, eles exprimiram a interpretação que tiveram das personagens. A interação foi surpreendente em cada momento, assim como os resultados na criação dos livros. Pode-se observar a utilização do conceito do non-sense, como demonstrado nas figuras abaixo:

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Figura 3: Leurso

Figura 4: Lelho

Figura 5: Liberando caminhos

Figura 6: Milkshake com todos sabores

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Em cada criança uma ALice: o país das maravilhas em sla de aula

Na terceira parte, a vivência literária foi conduzida para uma segunda etapa e finalização da produção do livro, com a socialização das histórias de cada país das maravilhas dos alunos. Para demonstrar como seria a atividade, as PP guiaram os alunos no processo, contando suas próprias histórias e mostrando seus respectivos livros no País das Maravilhas. Após este momento, os alunos expuseram seus desenhos, comentando sobre o que haviam desenhado em cada página de seu livro, mostrando, assim, como seria o seu país das maravilhas para os seus amigos de sala. Os alunos participaram de forma voluntária e, a partir desse momento, perceberam as diferenças no país de cada um. A interação foi muito dinâmica, dando espaço para que eles próprios explicassem seus desenhos e respectivos significados. A vivência literária, em sua quarta parte, contou com o retorno das PP para a entrega dos livros produzidos (cf. fig. 7), em uma sacola decorada com fita, contendo lápis, borracha, doces e etiqueta informando: Leia-me e Saboreie-me. A entrega do material produzido foi a última etapa da vivência. Os alunos já antecipavam esse momento, porém não tinham conhecimento de que seria a etapa final. Foi um momento de animação e descontração, ao qual seguiu-se a entrega dos Kits com o livro produzido e alguns brindes. Logo após a entrega, foram tiradas fotos para o registro da participação de todos os envolvidos. O entusiasmo dos alunos era cativante e, em todo o momento, perguntavam sobre o retorno à sala de aula para a contação de uma outra história e novas atividades.

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Figura 7: entrega dos livros

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Claudiane Jurema de Sousa | Laíza de França Carneiro Leão | Nelma Menezes Soares de Azevêdo

Considerações finais A pesquisa buscou despertar a criatividade dos discentes através da leitura literária da obra Alice no País das Maravilhas, haja vista que é um livro bastante instigante para o imaginário do leitor. Em se tratando do leitor-alvo, os resultados esperados para a vivência foram alcançados de forma satisfatória, tanto nos momentos de pré-leitura e pós-leitura, quanto na leitura propriamente dita, denotando entusiasmo, curiosidade, concentração, postura mais criativa e ativa dos alunos e inserindo, dessa forma, no contexto escolar, a leitura com um caráter propício à formação de leitores críticos e imaginativos. Fica evidente a importância da leitura literária nos anos iniciais do ensino fundamental, pois quanto mais cedo forem inseridos o literário, o hábito de ler e a possibilidade de encantamento com a leitura será mais provável que a criança seja capaz de construir uma identidade de leitor literário, sem a pressão de deveres escolares, sem o tédio e o aborrecimento decorrentes da leitura imposta, mas como algo que reitere o prazer de ler por ler, concebendo-se, assim, a possibilidade real do letramento literário na escola, tendo o professor como mediador da leitura literária e as crianças como leitores ativos, desde os anos iniciais do Ensino Fundamental.

Referências

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BONFIM, Fernanda Rocha; SILVA, Ana Paula da; SOUZA, Renata Herwig Moraes de. Letramento Literário: uma prática de incentivo à leitura e à escrita. In: SEMANA DE INTEGRAÇÃO, 5. Goiás, 2016. Anais...UEG, 2016, p. 530-539. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009. COSSON, Rildo. Letramento literário: termos de alfabetização para educadores. Glossário Ceale. Disponível em: <http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/ letramento-literario>. Acesso em: 12 jan. 2018. SILVA, Antonieta Mírian de Oliveira Carneiro; SILVEIRA, Maria Inez Matoso. Letramento literário: desafios e possibilidades na formação de leitores. Revista Eletrônica de Educação de Alagoas, v. 1, n 1, p. 92-101, 2013. Acesso em: 07 fev. 2014. SANTOS, Jéssica Messias Goss dos; LICHESKI, Laís Cristina. Livros POP-UP: novas formas de contar histórias. In: GRAPHICA, 7. 2017. International Conference on Graphics Engineering for Arts and Design, 12. Araçatuba, UNIP, 2018. Anais...Araçatuba, 2018. Disponível em: <https//www.even3.com.br/anais/graphica2017/49699-LIVROS-POP-UP--NOVAS-FORMAS-DE-CONTAR-HISTORIAS>. Acesso em: 01 set. 2018. SOUZA, Ana A. Arguelho de. Literatura infantil na escola: a leitura em sala de aula. São Paulo: Autores Associados, 2010. KHÉDE, Sonia Salomão. Personagens da literatura Infanto-Juvenil. 2. ed. São Paulo: Ática, 1990.

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Extensive reading e a leitura de contos fantásticos: abordagens prazerosas no processo de aprendizagem e aquisição da língua inglesa1 Extensive reading and the reading of fantastic short stories: pleasurable approaches in the learning and acquisition process in the english language Rute Isabelle Ferreira de Melo DANTAS2 Liliane Maria JAMIR E SILVA3 Resumo: Este artigo se propõe a abordar a leitura de contos fantásticos como gênero literário motivador da leitura e incentivador no processo de aquisição da língua inglesa como língua estrangeira, adotando-se o extensive reading como abordagem metodológica apropriada para se chegar a essa prática. Percebe-se, na realidade atual das salas de aula e fora delas, que a leitura está sendo preterida, afinal, com tantos meios de comunicação e informação, os jovens, em sua maioria, preferem assistir a vídeos, conectar-se às redes sociais ou jogar games, em seus celulares, a ler um bom livro. Desta forma, além de os professores de língua inglesa terem os conhecimentos necessários acerca dos materiais a serem usados para atrair a atenção dos educandos, compreende-se que o conto fantástico, como gênero literário, pode ser um meio para maior motivação na prática de leitura, indo muito além do prazer e do entretenimento, visto que os alunos podem ser levados à reflexão sobre a sua própria identidade e o seu papel no contexto social, desenvolvendo o pensamento crítico, bem como assimilando valores que passam a carregar para o resto de suas vidas. Outrossim, poderão compreender que estudar uma língua estrangeira não é algo tedioso e/ou difícil, mas um processo prazeroso e enriquecedor, que vai além da formação do indivíduo para o mercado de trabalho. Para dar suporte à análise, utilizaremos referenciais de estudiosos como Castro (2014), Todorov (2004), Marinello (2009), Edgar Allan Poe (2002), Wolk (2009), Levy (2017), entre outros. Palavras-chave: Contos fantásticos. Leitura prazerosa. Extensive reading. Aprendizado de língua inglesa. Abstract: This article proposes to approach the reading of fantastic short stories as a motivating and encouraging literary genre for reading and for the acquisition process of the English language as a foreign language, using the extensive reading as an applicable methodological approach to reach this practice. We notice that, in and out the classroom reality, the reading has been overlooked, after all, with so many means of communication and information, the young adults, in majority, prefer to watch videos, connect themselves to the social medias or play games on their mobile phones to read a good book, digital or physical format. Therefore, beyond the english teachers having the necessary knowledges about the materials to be used to attract the students attention, it is comprehensible that the fantastic short-story, as a literary genre, can be a mean to get bigger motivation in the reading practice, going beyond the pleasure and entertainment, since the students can be guided to make reflections about their own identity and their own role to the social context, developing the critical thinking, as long as assimilating values that they can keep with them for the rest of their lives. Consequently they can comprehend that studying a foreign language is not tedious or hard, but a pleasurable and enriching process, which goes far from ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Este artigo é oriundo de trabalho de conclusão de curso, desenvolvido e apresentado na FAFIRE, em 2019. O trabalho também foi apresentado no I ENLIJ, realizado na UERJ, de 4 a 6 de junho de 2019, em forma de comunicação oral. 2 Graduanda do Curso de Letras da FAFIRE | E-mail: dantasmelorute@gmail.com 3 Doutora em Literatura e Cultura | UFPB | professora do curso de Letras | FAFIRE | e orientadora da pesquisa | E-mail: lilianejamir@uol.com.br 1

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just an individual development to the labour market. To support this analysis, we use referencial of the following researchers as Castro (2014), Todorov (2004), Marinello (2009), Edgar Allan Poe (2002), Wolk (2009), Levy (2017), among others. Keywords: Fantastic short stories. Pleasurable reading. Extensive reading. English language learning.

A literatura, os jovens e a sociedade: uma interação necessária Destacando a relevância da leitura literária para o sujeito e para a sociedade, Bamberger (2004) defende que a literatura é necessária para o desenvolvimento do senso crítico do indivíduo e de sua formação como cidadão. Ou seja, A boa leitura é uma confrontação crítica com o texto e as ideias do autor. Num nível mais elevado e com textos mais longos, tornam-se mais significativas a compreensão das relações, da construção ou da estrutura e a interpretação do contexto. Quando se estabelece a relação entre o novo texto e as concepções já existentes, a leitura crítica tende a evoluir para a criativa, e a síntese conduzirá a resultados completamente novos (BAMBERGER, 2004, p. 10).

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Segundo Wolk (2009), a leitura tem um papel que vai muito além de apenas melhorar uma certa habilidade na língua, aprender assuntos que estão no currículo escolar ou preparar os aprendizes para o mercado de trabalho; por isso deve ser vista como uma prática prazerosa, para manter o indivíduo motivado e informado sobre os acontecimentos ao seu redor ou, como defende o autor, para consolidar seus saberes políticos, morais ou identidades culturais. Esse impacto que a leitura traz se baseia em não conceber a prática apenas como um método de ensino ou, como dito, para melhorar certa habilidade, mas com o propósito de formar o educando para que exerça ativamente o seu papel na sociedade. Candido (2006) faz uma análise acerca do envolvimento entre a literatura e a própria sociedade, afirmando que “a arte é expressão da sociedade; [...] interessada nos problemas sociais” (2006, p. 29). Sem literatura não há reflexão ou o exercer da própria filosofia de vida. Não há conhecimentos novos ou trocas de opinião, porque é a partir de leituras que surgem debates e, como dito anteriormente, o desenvolvimento do senso crítico. Sobre os objetivos das instituições de ensino, Wolk (2009) afirma que, supostamente, o principal deveria ser o de “to help students learn knowledge, skills, and dispositions needed to participate in the daily governance of our nation” (p. 665)4. Nessa perspectiva, o ativismo político, responsabilidade social que vai além do ser apenas um cidadão e d questão partidária, envolve ações que possam superar os vários problemas sociais, especialmente no que tange à cultura, ao gênero, à classe econômica e à orientação sexual, visando preparar o ser humano, com a curiosidade intelectual, a pensar no bem comum da sociedade em que vive, aprendendo a fazer escolhas em benefício próprio como também ao próximo. Ainda de acordo com Wolk (2009), professores e escolas devem diferenciar um ensino que transmite informações de um ensino que incentiva o questionamento e faz com que os alunos sejam imersos na experiência escolar que “values listening to multiple perspectives ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Ajudar os alunos a aprenderem o conhecimento, habilidades e disposições necessárias para participarem da governança de nosso país no dia a dia. (Tradução nossa). 4

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and thinking for themselves” (p. 666)5, um ensino em que o professor seja o mediador e que as experiências sejam vistas como troca de conhecimento. Contudo, nem sempre essa é a realidade de instituições educacionais, especialmente das brasileiras, cuja obsessão em preparar o aluno apenas para o mercado de trabalho ou provas de vestibular acaba ofuscando o verdadeiro significado do porquê os alunos vão para os ambientes educacionais e do porquê estudam. Wolk (2009), sobre aulas de literatura em sua época escolar, diz que não via sentido em ler livros, pois já “[...] I already knew how to read and write. School just kept having me read and write year after year to torture me in the name of… nothing” (p. 664)5. Segundo o autor, professores ordenavam que alunos lessem clássicos da literatura sem expor o verdadeiro propósito daquela leitura, sem refletir ou mesmo sem considerar o gosto pessoal do aluno por determinado gênero literário, fato que mais desmotivava do que incentivava a prática leitora. A reação dos estudantes, obviamente, será de rejeição e tédio, pois eles não concebem o verdadeiro propósito de se ler uma obra que não entendem. A leitura, então, passa a ser vista como obrigação curricular para obtenção de notas e de mera verificação no final de cada unidade escolar. Wolk (2009) argumenta que, “the time is urgent for all schools and teachers to awaken their student’s consciousness to the world and help them develop the knowledge and inspiration to make a better world, from local to global” (p. 665)7, e isso diz muito sobre o papel do professor como mediador na sala de aula, considerando ainda que o ambiente escolar deve ser um espaço de acolhimento, de reflexão, de prazer e troca de informações sempre explicitadas e discutidas, não apenas vagamente apresentadas. Abordando sobre a leitura de livros de literatura juvenil, visto que o enfoque do trabalho é para aprendizes entre 12 e 25 anos de idade, Wolk (2009) diz que “using young adult literature is one of the most meaningful and enjoyable ways for students to inquire into social responsibility because we can situate this content in the wonderful stories of good books” (p. 667)8. Desta forma, Kaplan (2005) discute que a maior parte dos adolescentes veem os personagens literários como seres vivos e que passam por dificuldades reais, sendo próximas às suas próprias experiências e, “at the center of all these themes are questions of character and identity and values” (p. 16)9; ou seja, temos a identificação entre leitor e personagem, fator que é muito necessário para que a leitura possa fluir e o aluno possa entender os fatos que estejam sendo representados nas histórias narradas e a possível semelhança com o que ocorre em sua realidade. Resta-nos, então, questionamentos como: por que é importante discutir com os alunos sobre a relação entre literatura e sociedade? Qual a importância da literatura para a sua ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Valoriza o escutar perspectivas múltiplas e pensar por eles mesmos. (Tradução nossa). Sabia como ler e escrever. A escola só me fazia ler e escrever ano após ano para me torturar em nome de… nada. (Tradução nossa). 7 O tempo é urgente para todas as escolas e professores para despertarem a consciência de seus alunos para o mundo e ajudá-los a desenvolver o conhecimento e a inspiração para fazerem um mundo melhor, de sua região local ao global. (Tradução nossa). 8 Usar a literatura juvenil é um dos meios mais significativos e prazerosos para os alunos investigarem mais sobre responsabilidade social, porque podemos contextualizar os assuntos com maravilhosas histórias em bons livros. (Tradução nossa). 9 No centro de todos esses temas estão perguntas sobre caráter e identidade e valores. (Tradução nossa) 5 6

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formação? Nessa breve reflexão, percebe-se que a literatura, especificamente a juvenil, está ligada a todos os âmbitos da vida humana e, especialmente, na fase da adolescência. Portanto, é necessário utilizar livros que auxiliem no desenvolvimento do pensamento crítico e, ainda, tragam o prazer desejado e experienciado durante a leitura, afinal, ler empodera. Por conseguinte, considerando-se a importância de se saber o perfil do aluno e seus interesses de leitura, e partindo-se da premissa de que muitos adolescentes têm interesse por histórias fantásticas que mexam com o seu imaginário, seja servindo como escape de sua realidade ou como fonte de divertimento, tomamos esse gênero literário como fonte motivadora nesta proposta de leitura.

O conto fantástico como incentivador da imaginação e do senso crítico Partindo do pressuposto de que o conto oferece a melhor oportunidade em prosa para a demonstração do talento narrativo em seu mais alto grau (POE, 2016), Nádia Gotlib (1985) faz um estudo das teorias do conto, explorando a evolução do gênero e os conceitos sobre ele elaborados no decurso da historiografia literária. Segundo esta autora,

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no século XIX o conto se desenvolve estimulado pelo apego à cultura medieval, pela pesquisa do popular e do folclórico, pela acentuada expansão da imprensa, que permite a publicação dos contos nas inúmeras revistas e jornais. Este é o momento de criação do conto moderno quando, ao lado de Grimm que registra contos e inicia o seu estudo comparado, um Edgar Allan Poe se afirma enquanto contista e teórico do conto (GOTLIB, 1985, p. 7).

Referindo-se ao conto literário, Gotlib (1985) discute que a criação do conto foi a partir de sua transmissão oral, tornando-se, depois, o seu registro escrito, “quando o narrador assumiu esta função: de contador-criador-escritor de contos, afirmando, então, o seu caráter literário” (GOTLIB, 1985, p. 13), tendo assim “todo um repertório no modo de contar e nos detalhes do modo como se conta”. Segundo Julio Cortázar (apud GOTLIB), há três acepções da palavra conto: o relato de um acontecimento; a narração oral ou escrita de um acontecimento falso; a fábula que se conta às crianças. E, para Poe, em seu texto Review of Twice-told tales, originalmente publicado em 1842, Se nos pedissem para designar a classe de composição que, ao lado do poema, pudesse melhor satisfazer as exigências de grande genialidade, que pudesse oferecer a esta o mais vantajoso campo para o seu exercício, deveríamos falar sem hesitação do conto em prosa [...] Referimo-nos à narrativa em prosa curta, que exige de meia hora até uma ou duas horas de leitura atenta (POE, 2016, p. 4).

Nessa perspectiva de definições, Angélica Soares (2007, p. 54) se reporta ao conto como “forma narrativa de menor extensão e [que] se diferencia do romance e da novela não só pelo tamanho, mas por características estruturais próprias”, enfatizando, em sua composição, que “vai ocorrer algo, e esse algo será intenso” (CORTÁZAR, 1974, p. 122), pois, como também assegura Eikhenbaum sobre o gênero, “short story é um termo que subentende sempre uma estória e que deve responder a duas condições: dimensões reduzidas Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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e destaque dado à conclusão. Essas condições criam uma forma que, em seus limites e em seus procedimentos, é inteiramente diferente daquela do romance” (apud GOTLIB, 1985, p. 40). Sobre a composição do conto, Poe (2016, p. 3, grifo nosso) defende que “a unidade de efeito ou de impressão é um ponto da maior importância”, isto é, importa a reação que o conto consegue provocar no leitor ou o efeito que a leitura irá lhe causar (GOTLIB, 1985, p. 32), sendo ambas características subjetivas, pois cada leitor tem uma experiência única com a leitura. Por conseguinte, o contista deve se acautelar, porque, ainda na esteira de Poe, a brevidade excessiva é censurável tanto no conto quanto no poema, mas a excessiva extensão deve ser ainda mais evitada [...] Em resumo, o escritor do conto em prosa pode levar seu tema a uma vasta variedade de modos ou inflexões de pensamento e expressão (o de raciocínio, por exemplo, o sarcástico, o humorístico) (POE, 2016, p. 5).

Para Poe, “está claro que esta unidade não pode ser totalmente preservada em produções cuja leitura não possa ser feita de uma assentada” (POE, 2016, p. 3), pelo fato de uma composição mais extensa acabar sofrendo interrupções e o efeito esperado se perdendo a cada retomada da leitura. Contudo, isso não quer dizer que um conto muito curto sempre cause algum efeito ou reação no leitor. Poe também alerta quanto ao tempo que a leitura deve durar – de meia hora até uma ou duas horas, isso não sendo, obviamente, uma regra, pois cada leitor possui seu próprio ritmo de leitura –, pois é a partir da leitura atenta que o efeito será realmente produzido. Por outro lado, o contista deve utilizar estratégias que prendam a atenção do leitor, uma vez que, como alude Cortázar, “um conto é uma verdadeira máquina literária de criar interesse” (apud GOTLIB, 1985, p. 37), mantendo a alma do leitor nas mãos do escritor, durante o momento da leitura. Por sua vez, sobre a composição do conto, Tchekhov garante que, “quanto mais objetivo, mais forte será o efeito” (TCHEKHOV, 1966, p. 22), integrando-se aos estudiosos que distinguem o conto literário dos demais gêneros narrativos, principalmente por sua menor extensão, entre outros aspectos estruturais. Com esses conceitos e discussões quanto à natureza e à composição do conto, chegamos a três características do conto moderno: a unidade de construção; o efeito principal no meio da narração; o forte acento final, devendo haver um plano ou design preestabelecidos antes mesmo de se escrever o conto (GOTLIB, 1985, p. 40), visto tratar-se de uma construção. Tomemos agora a literatura fantástica, conforme Castro (2014), cujo período entre os séculos XVIII e XIX é apontado como o nascimento dessa modalidade, apesar de se saber que histórias sobre deuses, heróis e mitos sempre foram narradas oralmente e, com o passar do tempo, estas histórias puderam ser redescobertas e preservadas para além do imaginário popular, tendo o seu amadurecimento apenas no século XX. Segundo Todorov (2004, p. 179-180), esse é o período de diferenças explícitas entre o fantástico dos séculos anteriores e do momento contemporâneo, pois agora suas características são identificadas no contexto narrativo, uma vez que, primeiro [...] é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, a hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem (TODOROV, 2004, p. 39).

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Por ser essa característica tão forte na narrativa, como explica Selma Calazans Rodrigues, “o texto deixa a ambos, protagonista e leitor implícito, em suspenso, pois o enunciado só provê o leitor das informações obtidas pelo personagem que vive a história” (RODRIGUES, 1988, p. 35). Quanto aos aspectos principais de obras da literatura fantástica, Castro (2014) também enfatiza que, apesar de abordar temas fantasiosos e mundos que são completamente diferentes do nosso, observa-se a utilização de eventos reais, com certas adaptações ou não, para que assim o enredo se localize num determinado espaço-tempo, explorando conceitos de ‘bem e mal’, que trazem, portanto, reflexões acerca dos valores morais e culturais, elucidando o que seria o ‘certo e o errado’. Tudo isto acontecendo a partir da relação criada entre o leitor e a personagem, seja a protagonista ou a personagem secundária, além da ligação com o enredo, quando “retrata [...] algo real e já vivenciado por qualquer um de nós, sejam locais parecidos, conflitos, pessoas ou sentimentos associados à nossa vida normal” (CASTRO, 2014, p. 11). Referindo-se ao conto fantástico, Coelho (2003) elucida como surgiram as ideias fantásticas, tendo como justificativa o “estágio em que o pensamento mágico dominava a humanidade” (p. 174), sendo esse estágio, conforme enfatiza Vera Beatriz Oliveira, marcado pela “dificuldade e a escassez do alimento, as variações climáticas e as doenças que levavam à morte geravam no homem o temor e o respeito às forças que ele não podia controlar nem entender” (OLIVEIRA, 2008, p. 154), e por isso as crenças nos deuses e os demais mitos que até hoje conhecemos. Quanto à evolução cronológica da literatura fantástica e do conto fantástico, Castro explicita que,

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No fim do século XVIII e início do século XIX o gênero exigia a presença do sobrenatural, com monstros e fantasmas; durante o século XIX houve uma maior exploração do lado psicológico, inserindo elementos de loucura, alucinações e sentimentos de angústia dos personagens; no século XX, o gênero fantástico começou a criar incoerência entre os elementos do cotidiano, adicionando elementos fantasiosos a coisas normais (CASTRO, 2014, p. 12).

Nesse ínterim, o gênero fantástico contemporâneo entrelaça o imaginário com a realidade, trazendo, como típico, o sobrenatural, seres como fadas, bruxas, varinhas mágicas, entre outros elementos, e a narrativa com “o fantástico como solução para os problemas existenciais enfrentados pelos personagens” (SACRAMENTO; RODRIGUES, 2011, p. 33). E é a partir de sua evolução que o fantástico vai sendo transformado em sua composição, seguindo as complexidades do próprio indivíduo, pois, como trata Karin Volobuef, A constante transformação por que passa a literatura fantástica deve-se ao fato de ela sempre constituir uma resposta ao complexo de preceitos, hábitos e convenções dominantes no meio social em que foi criada: pode-se entender essa categoria literária como um instrumento a serviço da rebeldia espiritual, social e artística. Assim, nascida numa época (século XVIII) que descobriu a importância do indivíduo e viu despontar diversos elementos basilares para a modernidade – como a declaração dos direitos humanos, o acesso universal à educação e consequente ampliação do público leitor, a transformação da arte em mercadoria e o surgimento da literatura de massas – a narrativa fantástica impõe-se como veículo de expressão do sujeito (que se sobrepõe aos ditames de classe) e mecanismo de crítica e transgressão da situação vigente (VOLOBUEF, 2002, p. 3).

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Consequentemente, temos aqui, então, um gênero incentivador à prática da leitura, pois, com a fantasia, “cria-se, assim, um clima de suspense e dúvida que envolve o leitor, e este é desafiado a encontrar a sua própria explicação para o que está observando” (MARINELLO, 2009, s/p). Para Todorov (2004), o fantástico acontece nessa incerteza, em que “a ambiguidade se mantém até o fim da aventura: realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? [...] O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2004, p. 30). Para além do fantástico, Todorov (2004) também faz distinção entre o maravilhoso e o estranho que abrange o conto fantástico. Segundo este autor, o maravilhoso “corresponde a um fenômeno desconhecido, jamais visto, por vir” (p. 49); quanto ao estranho, trata-se do inexplicável que se reduz a fatos conhecidos, “a uma experiência prévia, e daí ao passado” (p. 49); ficando entre esse futuro e passado, o fantástico em si, a hesitação que se situa durante o presente da leitura. Num geral, O estranho realiza, como se vê, uma só das condições do fantástico: a descrição de certas reações, em particular do medo; está ligado unicamente aos sentimentos das personagens e não a um acontecimento material que desafie a razão (o maravilhoso, ao contrário, se caracterizará pela existência exclusiva de fatos sobrenaturais, sem implicar a reação que provoquem nas personagens) (TODOROV, 2004, p. 53).

Considerando a faixa etária que estamos enfocando na pesquisa, a qual abrange adolescentes de 12 anos completos até jovens em seus 25 anos de idade, vê-se que, por influência do cinema, do teatro e da televisão e suas adaptações de obras de literatura fantástica, os jovens se interessam cada dia mais pelo mundo fantasioso e suas diversas formas de entretenimento e desenvolvimento da criatividade. Desse modo, podemos utilizar o gosto cinematográfico do aluno não leitor ou que não teve boas experiências com a leitura dos clássicos, para incentivá-los a ler livros do gênero textual que mais lhe chama a atenção, considerando-se ser o gênero fantástico o mais preferido por grande parte dos educandos. Segundo Marinello, “Geralmente, os alunos gostam de assistir a filmes de suspense, e o conto fantástico aproxima-se desse gênero cinematográfico por criar no leitor uma sensação de insegurança e perplexidade, marcada pela surpresa, estranhamento, dúvida, incômodo, angústia ou aversão” (MARINELLO, 2009, s/p). Enfim, o professor deve estar consciente de sua finalidade como mediador de leitura e apresentar propostas que tenham impacto na vida do estudante, em sua formação como cidadão ativo na sociedade e, especialmente, no desenvolvimento de seu senso crítico através da leitura de obras significativas. Deve, também, entender que é aos poucos que o aluno se tornará um leitor ávido e curioso, tendo em vista suas motivações e questionamentos quanto ao que lê, como bem lembra Wolk, visto que o docente, na medida em que mantém uma estreita relação com a literatura, “can help students to see vital purpose for reading and thinking about what they read” (WOLK, 2009, p. 667)10 e, consequentemente, melhorar o vocabulário e a fluência na língua estudada.

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Pode ajudar os alunos a verem o propósito vital da leitura e sobre seus pensamentos acerca do que leem. (Tradução nossa). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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O fantástico no conto The tell-tale heart, de Edgar Allan Poe: breve análise crítica Levando em consideração a teoria do próprio Poe, um dos precursores da literatura de ficção científica e fantástica moderna, veremos aqui, sobre o gênero em foco, um exemplo do que seria a criação de um conto autêntico e instigante, o conto The tell-tale heart. Sobre os contos de Poe, Cortázar (1974) enfatiza que o contista norte-americano compreendeu que a eficácia de um conto depende de sua intensidade como acontecimento puro, isto é, que todo comentário ao acontecimento em si [...] deve ser radicalmente suprimido [...] cada palavra deve confluir para o acontecimento, para a coisa que ocorre e esta coisa que ocorre deve ser só acontecimento e não alegoria [...] ou pretexto para generalizações psicológicas, éticas ou didáticas (CORTÁZAR, 1974, p. 122).

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O conto The tell-tale heart, de Edgar Allan Poe (2002), com uma das traduções para o português como “Coração revelador”, vem aqui caracterizado pelo fantástico-estranho, uma vez que, e segundo Corrêa (2011), “em seus contos, [Poe] provoca o sentimento de estranheza e de medo, a partir dos temas evocados, quase sempre relacionados a antigos tabus, frequentemente escrevendo sobre personagens doentios, obsessivos, com vocação para o crime e para a morte” (CORRÊA, 2011, p. 70). A narrativa também possui a hesitação como um dos principais fatores para prender a atenção do leitor, sendo essa hesitação derivada do efeito da técnica do suspense perante um enigma e “da falta de sentido de acontecimentos do cotidiano, de imagens aterrorizantes oriundas de delírios, loucuras ou pesadelos” (MARINELLO, 2009, s/p). Ainda sobre a técnica do suspense, Roland Barthes (apud GOTLIB, p. 38) afirma que esta “retarda a resolução da ação e, assim, causa “perturbação lógica”, que é consumida com angústia e prazer”, cujo teor fantástico “propõe uma forma de reavaliar a realidade, provocando questionamentos acerca de sua identidade e, por conta disso, apresenta a dúvida quanto ao que realmente significa compreendê-la através da percepção de sentidos” (CORRÊA, 2011, p. 66). Voltando ao enredo do conto em análise – The tell-tale heart (2002) –, vimos tratar-se de um jovem que, por impulso e obsessão psicótica, assassina um velhote por conta de seu olho que o incomodava por lhe parecer estranho. Posteriormente, o rapaz começa a sofrer com delírios, em decorrência do remorso que carregava. Sem ser identificado, o protagonista narra a história em primeira pessoa, conversando e tentando convencer o leitor sobre sua sanidade e sobre o seu plano de assassinato, justificando suas ações e explorando a loucura que o perseguia: “very, very dreadfully nervous I had been and am; but why will you say that I am mad? [...] I heard all things in the heaven and in the earth. I heard many things in hell” (POE, 2002, p. 199)11. Acompanhamos a angústia do personagem ao tentar lidar com os delírios, e começamos a sentir as mesmas emoções do jovem, que escutava as batidas do coração do falecido debaixo de seus pés, sob o assoalho, local onde escondeu o corpo do velho, ao que “pergunta a si mesmo (e o leitor com ele) se o que lhe está acontecendo é verdadeiro, se o que o cerca é de fato realidade” (TODOROV, 2004, p. 30). ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Muito, muito nervoso eu estava e estou, mas por que dirias que que sou louco? [...] Escutei todas as coisas no céu e na terra. Escutei muitas coisas no inferno. (Tradução nossa). 11

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É assustador, mas ao mesmo tempo estranho, excitante e fantástico, pois intuímos que são elementos imaginários, especialmente do protagonista. Contudo, ainda assim, a hesitação experimentada pelo próprio personagem e a ambiguidade fazem com que a leitura seja impulsionada pela ansiedade de encontrar o inesperado ao final da trama, e começamos a duvidar dos acontecimentos narrados, se são reais ou fantasiosos; além de, em certas partes da história, começarmos a duvidar se o protagonista, de fato, seria louco. Como Todorov (2004, p. 41) afirma, “o medo está frequentemente ligado ao fantástico”, e esse sentimento se faz presente no conto, tanto por parte do personagem quanto do leitor, que se vê lendo uma narrativa carregada de suspense, num contexto sombrio. Edgar Allan Poe conseguiu elaborar um enredo no gênero fantástico com maestria, abordando emoções humanas de maneira fria e bizarra, enaltecendo, assim, um tema como a culpa e suas consequências, além da dualidade do homem, afinal, o personagem de The tell-tale heart deixa claro que amava o velhote, e que não tinha desejo algum pelo seu dinheiro, apenas o matou porque o seu olho esbugalhado o incomodava, o enlouquecia, enfatizando que, “whenever it fell upon me, my blood ran cold; and so by degrees – very gradually – I made up my mind to take the life of the old man, and thus rid myself of the eye for ever” (POE, 2002, p. 199)12. Nota-se, portanto, bondade e crueldade misturando-se na trama, levando o leitor a refletir sobre a sua própria natureza contraditória.

Extensive reading: o que é e o porquê de utilizar essa abordagem nas aulas de língua inglesa As razões para que se aprenda, pratique e ensine a língua inglesa estão estritamente ligadas ao fato de que “today English is used on all seven continents, is an official or second language in more than 100 countries, and is used as an official language in more than 85% of international organizations” (SELVI; YAZAN, 2013, p. 2)13. A língua inglesa como língua estrangeira, hoje em dia, não é somente requisitada para empregos ou estudos, mas para a própria comunicação universal entre as populações e grupos sociais. Porém, mesmo que o Inglês tenha se tornado uma das línguas mais estudadas em todo o mundo, precisamos, como docentes, entender a realidade vivenciada pelos aprendizes desse idioma, especialmente quando se trata de escolas públicas brasileiras. Para Vera Lúcia Menezes (apud LIMA, 2009, p. 33), os alunos não são motivados a aprender além da gramática analisada em sala de aula, trazendo consequências como a depreciação da língua Inglesa, visto que os educandos “já perderam a esperança de ter uma aula que faça sentido”. Desse modo, como podem entender uma língua em que o docente apenas transmite a estrutura desta e nem ao menos explica as razões para tais aulas? Como o estudante se manterá motivado se apenas estuda gramática a cada ano escolar, vendo os mesmos assuntos até que, quando chegam no ensino médio, estão ainda mais desmotivados que a maioria dos alunos em outras séries escolares? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Em qualquer momento que seu olhar caía sobre mim, meu sangue esfriava; e então, pouco a pouco – muito gradualmente –, tomei a decisão de tirar a vida do velho, e assim, me livraria daquele olho para sempre. (Tradução nossa). 13 Hoje o Inglês é usado em todos os sete continentes, é oficial ou segunda língua em mais de 100 países, e é usado como língua oficial em mais de 85% de organizações internacionais. (Tradução nossa). 12

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Sabendo-se que “um bom método deveria oferecer oportunidades para o aprendiz” (MENEZES apud LIMA, 2009, p. 33), e pensando no incentivo à prática da leitura em língua Inglesa, com foco na literatura juvenil, é preciso entender o método de Extensive Reading e sua relação direta com a leitura prazerosa e enriquecedora. Sendo assim, para Day e Bamford (2005), a definição para extensive reading (ER), em tradução livre leitura extensiva, é de uma abordagem em que os professores podem encorajar seus alunos a lerem, para que assim possam adquirir fluência na língua estudada, sendo, esta, a Língua Inglesa. A ER promove a aprendizagem autônoma do educando, tendo um grande impacto na motivação deste para aprofundar seus conhecimentos dentro e fora do ambiente escolar. Conforme Bell (1998), a ER expõe adequadamente o aluno à língua em estudo com materiais interessantes, guiando-os num processo de ensino-aprendizagem sem tensão e sem pressão de provas ou testes (DAVIS, 1995, p. 329). De forma geral, Bell (1998) argumenta sobre as áreas às quais a ER está intrinsecamente ligada: a leitura extensiva pode ser uma auxiliar no contato do aprendiz com a língua estudada, havendo um aumento na exposição do aluno ao inglês e, consequentemente, complementando o conhecimento vocabular, melhoria do desenvolvimento da habilidade de escrita e na construção da confiança do aluno em sua capacidade de ler obras ou textos mais extensos, melhorias que vão além das discussões no âmbito escolar, como a de motivar alunos a se tornarem leitores ávidos, por uma vida inteira. De acordo com Levy (2017), o fundamento principal para a ER é o de ter a leitura como melhor caminho para aprender a ler, levando alunos a muito além de benefícios linguísticos, aumentando o conhecimento sobre o mundo ao seu redor e sobre outras culturas. E, através dessa abordagem, “students benefit in a number of ways. For instance, they are able to capture the overall meaning of a particular text while at the same time finding great pleasure as well as enjoyment in reading” (LEVY, 2017, p. 70)14. Ainda segundo Levy (2017), a ER tem várias características, sendo uma delas a de incluir a “reading for pleasure, general understanding, and acquisition of information” (p. 70)15, assim como oferecer materiais de fácil compreensão aos alunos, levando em consideração os níveis individuais, de acordo com a competência leitora de cada estudante. Contudo, há certas barreiras envolvendo o perfil de cada turma que podem determinar um resultado de insucesso da abordagem em foco, como, por exemplo, a visão tradicional de que o professor é o único a compartilhar experiências, bloqueando a autonomia do aluno no processo de aprendizagem, pois o docente se torna a prioridade em sala de aula, não guiando ou sendo o mediador, mas apenas se impondo como autoridade máxima a transmitir informações sobre o objeto de aprendizagem. Há, também, a questão de tempo e planejamento, porque mesmo sabendo dos vários benefícios da leitura que vão além dos textos lidos no livro didático, docentes não incluem essa abordagem em seus programas de ensino e planos de aula, pois alegam que o tempo é restrito (WATKINS, 2018), bem como não haver acervo de livros disponíveis o suficiente, ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Estudantes são beneficiados de diversas maneiras. Por exemplo, eles são capazes de capturar o significado geral em determinado texto enquanto ao mesmo tempo encontram muito prazer tanto quanto divertimento na leitura. (Tradução nossa). 15 Leitura por prazer, entendimento geral e aquisição de informação. (Tradução nossa). 14

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sendo difícil, tratando-se especificamente de determinados contextos das escolas brasileiras, notadamente as públicas, disponibilizarem fontes e materiais necessários ao incentivo da leitura em língua inglesa. Nessa perspectiva, devemos lembrar que programas de extensive reading, [...] although they do require a significant investment in time, energy and resources on the part of those charged with managing the materials, the benefits in terms of language and skills development for the participating learners far outweigh the modest sacrifices required (BELL, 1998, p. 7)16.

É necessário que haja um empenho maior do professor em todo o processo da preparação de material didático e do entendimento do uso da ER, ainda mais educadores que querem mudar a realidade dentro da sala de aula, preferindo escolher métodos diversificados e inovadores a métodos tradicionais que só tornam os alunos cada vez mais desmotivados. Dessa maneira, o papel do professor, como mediador e motivador, será fundamental para que a abordagem de ER traga bons resultados que sejam um marco na vida de cada aluno no aprendizado de língua estrangeira e em sua formação geral como indivíduo atuante em seu contexto social.

Propostas de atividades para grupos e projetos de leitura em língua Inglesa A realidade da sala de aula, especialmente em escolas públicas, é bem complexa na sociedade brasileira. Turmas superlotadas, espaços pequenos, professores sem qualificação necessária para lidar com o ensino de língua estrangeira, e tantos outros fatores constitutivos dos maiores desafios que os docentes enfrentam e que, muitas vezes, não encontram saída por não terem autonomia para mudar o currículo escolar ou desenvolverem projetos que auxiliem no processo de ensino e aprendizagem. Pensando nessa realidade, refletimos acerca de algumas propostas que podem ser utilizadas e que envolvem o programa de extensive reading, incentivando a prática de leitura – o que pode influenciar os alunos a lerem até mesmo em sua língua-mãe – e, compreendendo que, para planejar programas de ER, é importante começar com textos de menor complexidade, sendo, como proposta principal deste estudo, a utilização de contos fantásticos, pois, em relação ao estudante, acreditamos que este gênero literário ampliará a “sua compreensão da realidade e suas possibilidades de participação social como cidadão, através do uso da linguagem” (MARINELLO, 2009, s/p). Assim, Bell (1998) diz que, antes de começar de fato o programa de ER, pode-se aplicar questionários para analisar interesses, hábitos e atitudes dos alunos em relação à literatura, para que o docente tenha ideia de quais livros selecionar e apresentar aos aprendizes, fazendo com que eles se sintam motivados a ler tais obras. Segundo Menezes (apud LIMA, 2009), uma boa opção para turmas numerosas é direcionar trabalhos em grupo que promovam a colaboração entre seus integrantes, cujas ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Mesmo que exijam um investimento significativo de tempo, energia e fontes na parte daqueles que são responsáveis em organizar os materiais, os benefícios em termos do desenvolvimento da linguagem e habilidades dos aprendizes participantes ultrapassam os modestos sacrifícios requeridos. (Tradução nossa). 16

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atividades sejam estabelecidas de forma peculiar e significativa para cada educando, a fim de que todos tenham chance de participar ativamente do processo; por outro lado, as aulas devem ser “usadas de forma a despertar no aprendiz o desejo de ultrapassar os limites de tempo e espaço da sala de aula, em busca de novas experiências com a língua” (apud LIMA, 2009, p. 35). Trazendo essa proposta para o âmbito de extensive reading, pode-se pedir para que os alunos leiam contos de determinados autores e, ao fim da leitura coletiva, que apresentem o enredo por meio de teatro, exposição oral ou de maneira criativa, através de outras linguagens, sempre focando na prática comunicativa da língua – o speaking –, um dos skills que muitos alunos afirmam ser o estágio mais difícil em relação ao desenvolvimento, uma vez que não há momentos de prática com exercícios contextualizados de seu uso, ainda mais tratando-se de um país em que a língua inglesa, como língua estrangeira, não é tão valorizada. Escolas, sejam estas privadas, públicas ou de idiomas, muitas vezes apenas apresentam a leitura para dizer que “incentivam” a prática leitora, não trabalhando com esta durante um período significativo, pois, se o aluno escolhe um livro numa aula e apresenta na próxima e essa experiência não marca a sua memória por se tratar de apenas duas aulas, o professor não estará de fato exercendo seu papel como mediador, visto que o aprendizado de uma língua é muito mais do que o ensino de gramática. Sendo assim, para auxiliar o mediador no processo do programa de ER, é recomendável que o docente adote certas formas de desdobramento que vão além de cada uma aula semanal, para o que poderá se organizar através de um modelo de sequência didática. Por exemplo, podemos utilizar o conto The tell-tale heart (2002), analisado neste trabalho, para o contexto de um programa de leitura extensiva, sendo a sequência apresentada em cinco etapas, a saber: 1. Num primeiro momento, o professor poderá fazer uma introdução sobre o programa de leitura e discutir com os alunos sobre seus gêneros textuais favoritos, entre outras questões; 2. Em seguida a apreciação, momento em que os alunos farão a leitura do conto e socializarão suas impressões, havendo também a problematização através de perguntas que possam levá-los a refletir sobre a leitura; 3. contextualização, podendo fazer referência ao autor da obra, à obra em si, ao enredo e demais elementos composicionais; 4. Em seguida a produção/o fazer artístico, sendo esta a primeira atividade proposta, deixando fluir o lado criativo dos aprendizes quanto à interpretação, à crítica sobre a história trabalhada; 5. e por fim, a continuidade, mediante proposição de atividades que tenham repercussão durante o semestre, quando os alunos poderão fazer maior imersão no contexto da leitura através de filmes, sites, entre outros suportes, incentivando-os a buscarem mais conhecimentos sobre o que leram. Outro ponto a ser discutido e que entra no âmbito da leitura extensiva é a leitura em voz alta, seja por parte do professor responsável pela contação de histórias, seja pelo próprio aluno, que durante as rodas de leitura poderá praticar sua pronúncia e ter um maior aprendizado do vocabulário em determinado trecho. Nessa perspectiva, Mckay destaca que, hen read aloud, literature also offers an excellent context for developing global listening skills. The many books available on audiotape can be used as a basis for an extensive listening library. One clear advantage of encouraging students to listen to literature read

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by professionals is that such material exposes students to a variety of dialects and voice qualities” (MCKAY, 2001, p. 326)17.

O educador deve deixar os alunos livres para falarem sobre o que gostaram, o que não gostaram, o que a história os ensinou, se acharam certos acontecimentos semelhantes às suas próprias experiências de vida (MCKAY, apud CELCE-MURCIA, 2001, p. 322), lembrando-os, também, de que não precisam ter receio de falar em inglês, de cometerem erros, sendo também dever do professor mostrá-los que há diferentes sotaques, e que cada um pode ter os seus próprios. O docente deve até incentivá-los a serem autênticos quanto a isso, não deixando, contudo, de evidenciar o idioma quanto à pronúncia adequada, mostrando que há um padrão culto/normativo a ser aprendido. Por fim, também não devemos ignorar o uso da tecnologia como ferramenta para a realização dos programas de extensive reading, afinal, com o novo perfil de leitor – sendo este leitor-navegador ou digital –, como aluno encaixado no século XXI, os profissionais da educação devem adotar os meios de comunicação e informação como aliados, e não como algo negativo ao processo educacional.

Considerações finais Após compreendermos a relevância da leitura literária para o sujeito e para a sociedade, assim como para a aquisição da língua inglesa, faz-se necessário, quanto ao papel do docente e de sua prática, a reflexão diária sobre metodologias que possam tanto abarcar as dificuldades individuais de cada aluno, quanto oferecer aulas que vão muito além da “bolha” em que o ensino de língua estrangeira está inserido na realidade das escolas públicas brasileiras, tornando este meramente repetitivo e vago, sob a única justificativa de que “falta alguma coisa no aluno da escola pública que o impede de aprender e que, por isso, seu rendimento escolar será sempre deficitário” (SIQUEIRA, 2011, p. 93). A partir dessa perspectiva e do entendimento de que a aquisição da linguagem é o que “refers to the process of natural assimilation, involving intuition and subconscious learning, which is the product of real interactions between people where the learner is an active participant”18 (SCHÜTZ, 2002, s/p), entendemos que os programas de extensive reading têm uma relação intrínseca com a aquisição natural/espontânea de uma língua estrangeira, visto que o método em questão “it develops familiarity with the phonetic characteristics of the language as well as its structure and vocabulary”19 (idem, s/p), constituindo uma abordagem que propõe um processo de aprendizagem prazeroso, sendo este o principal aspecto discutido durante o presente trabalho. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Quando se lê em voz alta, a literatura também oferece um excelente contexto para se desenvolver a habilidade de escuta global na língua. Muitos livros disponíveis em áudio podem ser usados como base para uma biblioteca de extensive listening. Uma vantagem bastante clara de incentivo para os alunos escutarem literatura lida por profissionais, é a de que o material expõe os alunos a variados dialetos e qualidades vocais (Tradução nossa). 18 Refere-se ao processo natural de assimilação, envolvendo intuição e a aprendizagem subconsciente, no qual é produto das interações reais entre pessoas, onde o aprendiz é um participante ativo. (Tradução nossa). 19 Desenvolve a familiaridade com as características fonéticas da língua assim como sua estrutura e vocabulário. (Tradução nossa). 17

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Como argumentado, é preciso que o professor tenha a noção de que, para ser e fazer a diferença no ensino de língua inglesa no Brasil, os sacrifícios se tornam parte de todo o processo do desenvolvimento pessoal do profissional. Não adianta apenas ficar nas teorias e planejamentos; é essencial que, o que se escreve em artigos, em livros, entre outras formas de socialização de estudos, faça parte da prática de cada docente, o que também sinaliza para a necessidade de formação continuada desses profissionais da educação, para o entendimento de práticas inovadoras atinentes às novas demandas sociais. A junção da leitura significativa com o ensino de línguas sempre fará parte de um processo árduo e com dificuldades a serem enfrentadas, especialmente para os educadores. Contudo, é pensando numa educação melhor e de qualidade para os alunos que os obstáculos serão vencidos, trazendo a esperança de um ensino que deve, [...] proporcionar aos aprendizes oportunidades de compreender e explorar diferentes visões de mundo e formas de expressão, cultivando as possibilidades de uma perspectiva multicultural crítica de ensino de línguas, que não neguem as diferenças e que desafiem os discursos que perpetuam hierarquias linguísticas e raciais (JORGE, 2009, p. 167).

Em síntese, é a partir da reconstrução do pensamento que a língua estrangeira passará a ser mais valorizada, sendo vista para além de oportunidades profissionais, como meio de conhecimento de novas culturas e de comunicação mundial, e, principalmente, com um processo de aprendizagem repleto de motivação e prazer.

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Iniciativas de incentivo à leitura literária sua influência no comportamento leitor do brasileiro1 Initiatives to promote the literary reading and its influence in the behaviour of the brazilian reader Ana Cristina Dubeux DOURADO2 Resumo: Pesquisas recentemente realizadas no Brasil mostram que as taxas de penetração da leitura – ou do número de livros lidos por indivíduo – são maiores nas faixas etárias da escolarização obrigatória. Esses indicadores são o resultado de décadas de investimento na universalização do ensino e de políticas públicas como o Programa Nacional do Livro Didático e do Programa Nacional Biblioteca na Escola. Este artigo pretende discutir como outras iniciativas – muitas delas desenvolvidas pela sociedade civil – vêm contribuindo para ampliar ainda mais a intimidade com a leitura entre os brasileiros, associando o hábito ao prazer e garantindo a leitura como direito de todos e parte fundamental na construção da cidadania. Palavras-chave: Comportamento leitor do brasileiro. Políticas públicas de leitura e escrita. Letramento no Brasil. Leitura literária. Abstract: Recent surveys made in Brazil have shown that rates relating to the insertion of reading (or the number of books read by individuals) – are higher within all age groups when schooling is compulsory. These indicators are the result of decades of investment in the generalization of education and they are a reflection of public policies such as the National Programme of School Books and the National Programme of Libraries in School. This article intends to discuss how other initiatives, – many of them that have been developed by the Brazilian Civil Society, have contributed even further to widen the intimacy with reading among Brazilians and helped to develop the idea of reading for pleasure might ensure the access to reading as an overall right and as a fundamental step towards creating positive citizenship. Keywords: Behaviour of the Brazilian reader. Public policies on reading and writing. Literacy in Brazil. Literature and reading.

Introdução Gostar de ler, ter prazer com a leitura, entregar-se a uma viagem pelos livros são expressões que nos inspiram sentimentos semelhantes. Fazem-nos pensar que a leitura é um processo que depende, principalmente, de uma vontade inicial ou de uma experiência vivida de forma livre, espontânea, que, para acontecer, precisa apenas de dois elementos: o livro e o leitor. No entanto, a formação para a leitura envolve variáveis subjetivas que mudam conforme o contexto social em que cada leitor está inserido. Para muitas pessoas, a relação com a leitura se constrói a partir da escola, pautada em rotinas que se consolidam mais pelo hábito que pelo prazer. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Artigo publicado na Revista FAFIRE, Recife, v. 11, n. 1, p. 72-82, jan./jun. 2018. Doutora em Teoria da Literatura | UFPE | Professora dos Cursos de Letras e de Pedagogia | FAFIRE | E-mail: a.dourado25@gmail.com 1 2

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Este artigo pretende discutir as atuais iniciativas, no Brasil, que têm associado esforços para desenvolver a leitura por meio de estratégias que convocam o leitor a se envolver com prazer numa relação de intimidade com livros de literatura, principalmente. Após o processo de universalização do ensino que se estendeu no Brasil a partir da década de 90, várias políticas públicas foram desenvolvidas para tornar o livro mais presente no cotidiano do brasileiro. Entre elas, destacam-se os Programas Nacionais do Livro Didático (PNLD) e da Biblioteca Escolar (PNBE). No entanto, percebe-se a importância de ir além de uma relação escolarizada com a leitura, ampliando as possibilidades de relação com o livro desde uma idade precoce. Por meio de várias iniciativas realizadas sobretudo pela sociedade civil, a ideia de que a intimidade com a leitura só se consegue por meio do hábito deixa de ser o único paradigma, abrindo novas possibilidades para despertar, desde cedo, o prazer na relação com os livros.

Penetração da leitura ainda é maior na escola

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Não é difícil descobrir as razões da permanência da associação que geralmente se faz entre leitura e hábito. Nas mais recentes pesquisas de análise do comportamento leitor da população brasileira, revela-se o paralelo existente entre escolarização e acesso ao livro e à leitura. As várias edições da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” revelam que é durante a trajetória escolar que a taxa de número de livros lidos por entrevistado aumenta. Os resultados da última pesquisa, realizada em 2015, confirmam uma tendência percebida desde 2007: é entre os estudantes que a taxa de penetração da leitura é maior, sobretudo de livros indicados pela escola3. Ainda que as pesquisas apontem que cerca de um terço da população brasileira leia com frequência – supostamente pelo contato com livros facilitado em escolas, bibliotecas, livrarias ou pela família – é interessante observar que os leitores que são considerados como mantendo uma relação ainda mais frequente com os livros são os que estão na faixa etária de 11 a 17 anos, justamente por receberem estímulos à leitura por parte do sistema educacional. Também, segundo um estudo sobre uma das edições da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, as crianças e jovens são o público que mais consome livros; mas percebe-se uma queda na taxa de penetração da leitura à medida que se avança em idade. Até 17 anos, os entrevistados responderam ler até três vezes mais livros que as pessoas com mais de 18 anos, tanto no que se refere a livros em geral, como aqueles indicados pela escola (FAILLA apud AMORIM, 2008, p. 97). São dados que revelam a necessidade de proporcionar à população brasileira – sobretudo às pessoas com acesso limitado ao livro – uma maior exposição à palavra, para que todos possam criar intimidade com a leitura e, a partir da aquisição de habilidades à fluência na leitura, possam também conquistar maior autonomia e um olhar mais crítico diante da realidade que os circunda. Dessa forma, a leitura poderá se constituir como uma prática que vai além do hábito adquirido na escola, o que é fundamental num momento em que, com o uso das Redes Sociais, a relação de intimidade com a escrita se faz necessária. Segundo Rildo Cosson, para ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 3

http://prolivro.org.br/home/images/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Brasil, 2015.pdf, p. 69.

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Iniciativas de incentivo à leitura literária e sua influência no comportamento leitor do brasileiro

que os processos de leitura e escrita que vêm sendo realizados na escola se transformem em práticas significativas que tenham sustentação ao longo da vida, seria fundamental fomentar o que o autor chama de “letramento literário”, que seria um processo de exposição a textos de literatura, de forma organizada e sistemática (COSSON, 2007, p. 46). Felizmente, há fortes indícios que mostram que essa mudança para melhor no comportamento leitor do brasileiro parece estar em curso. Na última década, aumentou em muito, no Brasil, a ampliação de ações de incentivo à leitura de livros de literatura – e não apenas em escolas. São iniciativas que ocorrem nos mais variados espaços, promovidas por professores, mediadores de leitura, bibliotecários, entre várias instituições e profissionais. São avanços de uma forma de relação com a palavra por meio de projetos de leitura dos mais variados matizes.

O espaço da leitura de literatura Um dos aspectos positivos de tais iniciativas é a incorporação de alguns conceitos e práticas que têm sido amplamente discutidos no Brasil, sobretudo a partir do processo de criação do Plano Nacional do Livro e da Leitura, em 2006. Entre os princípios que têm inspirado ações bem-sucedidas na área de promoção da leitura, está o desenvolvimento de estratégias para que os livros se tornem elementos permanentemente presentes nos processos educativos e no cotidiano das pessoas nos mais variados espaços, desde a escola até equipamentos de cultura e lazer diversos. Assim, hoje em dia, projetos de leitura encontram-se, em geral, inseridos em processos de aquisição e qualificação da relação com a língua, mas também incorporam objetivos relacionados ao ensino da literatura ou podem mesmo ter como foco o desenvolvimento do gosto, do prazer, da fruição estética e tudo que envolva a relação lúdica com os livros. No entanto, a opção por priorizar o desenvolvimento do gosto pela leitura não implica espontaneísmo. Ao contrário, são os marcos teóricos, os instrumentos pedagógicos, o investimento na formação de educadores e a construção de indicadores de acompanhamento de projetos que dão identidade a um bom projeto de promoção da leitura. Como afirma Maria Beatriz Medina, A tarefa de formar leitores supõe um trabalho permanente que supera o circunstancial e implica um acompanhamento contínuo. Um trabalho que requer a definição de objetivos, o planejamento de estratégias, a avaliação permanente das ações, a revisão contínua dos objetivos iniciais, seja para reafirmá-los ou para ajustá-los à realidade e assim concretizar novas estratégias necessárias para a consecução das metas traçadas (MEDINA, 2006, p. 4).

Muitas das atuais iniciativas de promoção da leitura no Brasil também têm colocado em prática suas ações partindo dos princípios de que não basta distribuir livros, como também não é suficiente ter o espaço físico da biblioteca, nem mesmo ter um profissional que assuma a missão de formar leitores com a competência para a prática da mediação. Nada disso funciona sem o impulso para que as pessoas se sintam parte dos projetos ou práticas de incentivo à leitura, de modo a fazer das bibliotecas espaços vivos, abertos aos interesses e perfis dos seus usuários. E soma-se a esse conjunto de elementos o papel essencial que o leitor desempenha na leitura de um texto literário. Ao contrário da leitura de textos informativos, talvez o processo Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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que melhor descreva a leitura literária seja a diferença de intencionalidade. Ao invés de sairmos cheios de respostas para as dúvidas que temos, como fazemos ao ler sobre algo objetivo, na leitura literária quase sempre saímos com perguntas nas quais nem havíamos pensado antes. Como diz Gabriel Perissé, O próprio ato da leitura consiste em aprender a perguntar. Lendo, estamos automaticamente perguntando a nós mesmos, ao livro, à linguagem, à cultura, a tudo e a todos, estamos formulando perguntas que nem sempre temos ocasião de fazer, que nem sempre temos consciência de que precisamos fazer (PERISSÉ, 2005, p. 6).

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Na leitura literária, essa interação do leitor com o livro por meio de perguntas de forma nem sempre consciente é algo ainda mais evidente. Na entrega ao deleite, ao prazer, à ludicidade, além da sensação de prazer, podem surgir outras relações entre leitor e narrativa. Nos estudos de teoria literária, algumas das perspectivas mais recentes se reúnem em torno do campo da “Estética da Recepção”. Segundo Teresa Colomer, a origem desses conceitos se deu a partir da aplicação de postulados pedagógicos centrados na participação do aluno no processo de ensino-aprendizagem ao campo dos estudos literários. Tal perspectiva, segundo Colomer, tende a destacar que “o leitor literário compreende as obras segundo a complexidade da sua experiência de vida e da sua experiência literária” (COLOMER, 2003, p. 133). Pode-se dizer que tudo se inicia a partir de um novo olhar sobre os livros e a leitura. Alguns elementos da nossa cultura e alguns fatores socioeconômicos que ainda hoje influenciam na relação dos brasileiros com o livro e a leitura foram extremamente determinantes para que, até bem pouco tempo atrás, sobrevivessem resquícios de uma visão funcional, utilitária e mesmo superficial da leitura literária. E isso não é algo exclusivo das classes menos privilegiadas. São ainda recentes, mesmo nos espaços culturais e educacionais frequentados pela elite, as iniciativas que buscam garantir lugar de privilégio à leitura literária por meio de estratégias de apreciação estética. O modelo educacional brasileiro até bem pouco tempo atrás mantinha a presença da literatura nos currículos e salas de aula de forma fragmentada, aliada a padrões de interpretação vinculados à cobrança de aprendizagem de conteúdos gramaticais ou para o ensino da sintaxe. Na leitura literária ocorre um processo muito distinto da leitura para aprender algo ou para comprovar conhecimentos concretos. Na verdade, muitas vezes, a leitura literária coloca o que é conhecido num contexto estranho, diferente, para confrontar sentidos estabelecidos, brincar com as palavras, de forma a fazer o leitor entrar num processo de criação de seus próprios sentidos. Por isso se fala que a literatura deve provocar a sensação de “estranhamento” com relação à realidade. Assim, ampliamos nossa forma de ver, saindo dos padrões de organização do conhecimento útil, científico, real, mas sem nos distanciarmos inteiramente dele, apenas expandindo nossa forma de compreender. Como diz Jorge Larrosa, a leitura literária está imbuída, de um “gesto às vezes violento de problematizar o evidente, de converter em desconhecido o demasiado conhecido, de devolver certa obscuridade ao que parece claro, de abrir uma certa ilegibilidade no que é demasiado legível” (LARROSA, 2004, p. 16). E Michèle Petit segue a mesma lógica de Larrosa, ao afirmar que,

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Iniciativas de incentivo à leitura literária e sua influência no comportamento leitor do brasileiro

[...]se a leitura desperta o espírito criativo, que é a chave de uma cidadania ativa, é porque permite um distanciamento, uma descontextualização; mas porque também abre um espaço para o devaneio, no qual outras possibilidades são cogitadas... (PETIT, 2009, p. 28).

Existe, assim, um caráter transgressor na literatura. Os livros que são produzidos por escritores de ficção, em geral, não têm como função confirmar o que é dito de maneira sistematizada pelas ciências ou por áreas do conhecimento que tenham como princípio a confirmação de verdades. Porém, são outros tipos de “verdades” que surgem na literatura, pois cada escritor faz sua leitura de mundo e a compartilha com o leitor, para que novos sentidos sejam construídos.

O papel do mediador de leitura Vale a pena destacar o papel dos mediadores de leitura que hoje atuam em diversos projetos sociais pelo Brasil afora. São esses profissionais que têm colaborado para que muitos leitores desenvolvam relações positivas com a leitura, a partir, sobretudo, da construção de um ambiente de troca de ideias, para que todos possam ser capazes de indicar livros, contar de sua forma a narrativa, de modo a mergulhar na história e a encontrar seus próprios sentidos em sua trajetória de leitores. Muitas vezes, a mediação é refletida exclusivamente a partir do planejamento de atividades diárias que um educador elabora para “animar” um espaço de leitura. Nesses casos, a mediação engloba, sim, momentos coletivos que acontecem de formas diversas. Nesses momentos se incluem saraus, roda de histórias, manipulação coletiva de acervos, circulação de bibliotecas itinerantes, como as malas de leitura, por exemplo, entre tantas outras formas de juntar pessoas ao redor de livros. No entanto, uma biblioteca deve ser também um espaço de busca individual. Além de organizar o espaço de maneira a garantir a autonomia do leitor em fazer suas próprias descobertas, o mediador também pode contribuir no processo mais íntimo de cada leitor, quando este quer algo para ler de maneira mais isolada, discreta, fora do olhar dos demais. Por isso, uma biblioteca deve ser também um local onde o silêncio permita esse distanciamento do mundo agitado, tornando possível o mergulho na leitura como experiência totalmente individual, pois a leitura é também uma forma de: “...escapar do tempo e do lugar em que supostamente se deveria estar; escapar desse lugar predeterminado, dessa vida estática e do controle mútuo que uns exercem sobre os outros ” (PETIT, 2010, p. 28). Um mediador de leitura tem funções múltiplas. É um profissional que vai se constituindo como referência inicial para qualificar a relação das crianças, adolescentes, jovens e adultos com a literatura. Sua relação próxima com o universo literário é o terreno a partir do qual ele pode vir a exercer vários papéis nas vidas dos leitores que frequentam a biblioteca. A ação de um mediador de leitura, como afirma Michèle Petit, vai muito além de atividades de leitura que tenham um teor puramente objetivo. Na grande maioria das vezes, os educadores mediadores de leitura criam vínculos duradouros com os usuários. Ouvem suas sugestões, ampliam o acervo a partir delas, criam situações que façam o leitor ter vontade de voltar a visitar o espaço, ampliando, assim, o público inicialmente planejado para ser atendido pelo Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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projeto de leitura. Além disso, a mediação feita a partir de encontros individuais entre o leitor e o educador pode se transformar em momentos de cumplicidade e de troca afetiva. Ambos podem compartilhar de descobertas nesse processo que serão reveladoras, impulsionadoras de novas reflexões, de maneira a transformar a mediação no que Michèle Petit denominou uma “relação personalizada”. Nesses casos, o mediador é alguém que acolhe, que recolhe as palavras do outro e com ele estabelece um vínculo afetivo, sem deslizar-se para uma mediação do tipo pedagógico. Muitas ações de incentivo à leitura atualmente em curso no Brasil colocam em prática esses princípios que buscam construir novas formas de relação com o livro. São projetos que hoje reeditam a aprendizagem dialógica proposta por Paulo Freire, para quem “A leitura de mundo precede a leitura da palavra”. São projetos de leitura em que a figura do mediador é central não para direcionar um hábito, mas para estar junto, estimular o leitor na muitas vezes árdua trajetória de criar seus próprios sentidos na relação que estabelece com os livros. São projetos sociais que concretamente contribuem para que a leitura seja uma prática social capaz de ampliar as condições de cidadania. São, por exemplo, bibliotecas especialmente desenhadas para receber públicos diversos e que disponibilizam uma diversidade de acervos para atender a interesses diversos, acessibilidade para pessoas com deficiência, além de se integrarem às iniciativas da comunidade na democratização do conhecimento. Para que isso aconteça, atualmente, no Brasil, governos e sociedade civil vêm investindo no quadro pessoal das bibliotecas, valorizando os profissionais nelas inseridos e estimulando-os para que tenham acesso à formação em mediação de leitura e em outras habilidades necessárias à ressignificação da biblioteca como organismo vivo e dinâmico.

Considerações finais Acolher todas essas mudanças não é um processo rápido. Mas é fato que, em todo o país, proliferam iniciativas públicas e privadas que mostram enorme criatividade no desenvolvimento de práticas de leitura. São pontos de venda de livros em metrô, minibibliotecas em paradas de ônibus, troca-troca de livros em meio a bancas de feirantes, bibliotecas que ganham mobilidade por meio de todo tipo de veículo, além de iniciativas de modernização, dinamização e extensão das atividades das bibliotecas públicas de vários municípios e estados. O que vem se conquistando por meio da ampliação do acesso ao livro e à leitura vai muito além da melhoria de oportunidades para a aquisição do conhecimento. Projetos de leitura têm um potencial muito mais profundo, pois, como afirma Michèle Petit, criam a possibilidade de construção de um mundo interno, de uma subjetividade vital às pessoas no enfrentamento das mais diversas situações e contextos que compõem o viver em sociedade. O contexto brasileiro tem se mostrado propício à consolidação de conceitos e práticas que podem, efetivamente, contribuir para o fortalecimento de processos de promoção da leitura que incorporam princípios e procedimentos metodológicos aqui discutidos. Tais processos estão diretamente relacionados à construção de uma sociedade leitora como pressuposto para a democracia. A aprovação recente do primeiro marco legal sobre formação de leitores, a Lei Castilho ou a Política Nacional de Leitura e Escrita (lei nº 13.696, de 12

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de julho de 2018), pode representar a base para a criação de uma Política de Estado na área, dando ainda maior impulso às ações de indivíduos e instituições envolvidos na luta pela garantia da leitura e do acesso ao livro como direitos de todos.

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Leitura literária no 5º ano do Ensino Fundamental: o letramento literário na formação do leitor crítico1 Reading literature in the 5th year of Fundamental School: literary literacy in the development of the critical reader Leila Regina Siqueira de Oliveira BRANCO2 Leila Britto de Amorim LIMA3 Resumo: Este artigo foi desenvolvido a partir da pesquisa realizada para a conclusão do curso de Especialização em Literatura Infantojuvenil e teve por objetivo investigar de que forma se dá o trabalho com leitura literária e quais tipos de atividades promovidas estão de acordo com a perspectiva do letramento literário nas turmas do 5º ano do Ensino Fundamental de três escolas da rede estadual de ensino. As escolas investigadas estão jurisdicionadas à Gerência Regional de Educação Metropolitana Sul. A pesquisa teórico-empírica, de cunho qualitativo, foi realizada através de entrevista semiestruturada, com as professoras das referidas turmas, no intuito de conhecer o que pensam e o que propõem sobre leitura literária. Esta investigação nos apresenta pontos de extrema relevância para o trabalho docente: a contribuição da escola para a formação de leitores críticos e reflexivos; a importância da formação continuada para o desenvolvimento de um prática docente embasada teoricamente e lastreada em metodologias mais adequadas para o desenvolvimento das competências leitora e escritora dos alunos, e a importância do registro das atividades, bem como o papel do professor nesse processo; a importância do registro da atividade docente como forma de assegurar e comprovar a participação docente nos processos de ensino e aprendizagem. Todos esses resultados foram observados a partir do embasamento teórico em autores como Cosson (2016), Solé (1998), Silva (2002), Zilberman (2003), Soares (2014), Kleiman (2002), Abramovich (2003), dentre outros. Palavras-chave: Leitura literária. Letramento literário. Estratégias de leitura. Formação de leitores críticos. Abstract: This article was developed from the research carried out for the conclusion of the Specialization Course in Children Literature and aimed to investigate how work happens with literary reading and what types of activities promoted are in the line with a literary literacy perpesctive in classes of the 5th year of fundamental school that took place in three schools of the state school system. The investigated schools are subordinated to the Regional Management of Metropolitan South Education of Recife. The theoretical-empirical research, of qualitative nature, was carried out through a semi structured interview with the teachers of the referred classes in order to know what they think and what they propose about literary reading. This investigation presents us points of extreme relevance for the teaching practice the school contribution to the formation of critical and reflective readers, the importance of continuing

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Este artigo teve origem na monografia apresentada no Curso de Especialização em Literatura Infantojuvenil da Faculdade Frassinetti do Recife | FAFIRE, em 2019, inicialmente publicado na Revista FAFIRE, Recife, v. 12, n. 1, p. 35-45, jan./ jun. 2019. 2 Pedagoga pela UPE | Especialista em Gestão Escolar e Coordenação pedagógica pela UFPE | Especialista em Literatura Infantojuvenil pela FAFIRE | Professora do Curso de Pedagogia da UNIFG | Técnica Pedagógica dos Anos Iniciais da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco | E-mail: leila.branco@hotmail.com 3 Doutora em Educação pela UFPE | E-mail: lbalima@yahoo.com.br 1

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Leila Regina Siqueira de Oliveira Branco | Leila Britto Amorim Lima

education for the development of a teaching practice based on theoretical and methodological approaches more adequate for the development of he students' reading and writing skills and the importance of a record of activities and the role of teachers in this process; the importance of a record the teaching practice as a way to ensure and prove the teaching participation in the teaching/learning process. These results were observed from the theoretical basis of authors such as Cosson (2016), Solé (1998), Silva (2002), Zilberman (2003), Soares (2014), Kleiman (2002), Abramovich (2003). Keywords: Literary Reading. Literary literacy. Reading strategies. Developing of critical readers.

Introdução

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Atualmente, diversos autores enfatizam a importância do trabalho com a literatura nas salas de aula, uma vez que possibilita o desenvolvimento da capacidade criativa, crítica, impulsionando novas percepções sobre a realidade, o mundo e sobre si mesmo. Trata-se da oportunidade de as crianças ampliarem não apenas seus horizontes, mas organizarem suas experiências existenciais e, a partir das vivências com os textos literários, terem a oportunidade de desautomatizar os olhares sobre o mundo. Para embasamento dessas abordagens, nos vinculamos a alguns teóricos como Cosson (2016), Solé (2009), Kleiman (2002), Abramovich (2003), Zilberman (2003), Soares (2014), que discorrem e problematizam não apenas acerca da relevância da literatura, mas também sobre tratamento qualitativo das interações que se estabelecem entre a língua e a linguagem nas diversas mediações de leitura literária. Destacamos que essa é uma questão que também depende de como o professor se vê enquanto leitor, uma vez que “[...] é um sujeito leitor que tem sua própria leitura do texto. É também um profissional que precisa vislumbrar, em função de diferentes parâmetros (idade dos alunos, expectativas institucionais), que leitura do texto poderá ser elaborada na aula” (ROUXEL, 2013, p. 29). Atrelado a esse fato, observa-se que muitos professores não desenvolveram, ao longo de sua escolarização, o hábito e o gosto pela leitura, o que dificulta seu trabalho no sentido de despertar nos seus alunos interesse pelas leituras necessárias à compreensão do mundo, dentre elas, a leitura literária. Outro aspecto que destacamos são os resultados das avaliações externas sobre leitura e escrita que apontam dados preocupantes, principalmente no 5º ano, etapa final dos anos iniciais de escolarização, o que nos leva a perceber a urgência na realização de um trabalho mais efetivo com a leitura na escola. Os dados das avaliações em larga escala revelam que o desempenho insuficiente acompanha os estudantes até o final do Ensino Fundamental, apresentando proficiência abaixo do nível considerado ideal para o ano de escolarização, em Língua Portuguesa, nas avaliações locais e nacionais, como no Sistema de Avaliação da Educação de Pernambuco - SAEPE4 e no Sistema de Avaliação da Educação Básica - SAEB5, respectivamente. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

O SAEPE foi criado em 2000, com o objetivo de fomentar mudanças na educação oferecida pelo Estado, e atualmente avalia a proficiência em Língua Portuguesa e Matemática dos estudantes do 2º e 5º ano do Ensino fundamental I, além do 9º ano do Ensino Fundamental II e 3º ano do Ensino Médio. 5 O Saeb foi instituído em 1990, sendo composto por avaliações externas de larga escala, com o objetivo de diagnosticar o desempenho da educação básica e produzir informações úteis para a formulação, reformulação e o monitoramento de políticas públicas. As avaliações são aplicadas aos estudantes do 5º e 9º ano do Ensino Fundamental e 3º ano do Ensino Médio. 4

Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Leitura Literária no 5º ano do Ensino Fundamental: o letramento literário na formação do leitor crítico

Em 2017, os resultados apontaram que os estudantes do 5º ano da rede estadual encontram-se no nível básico, apresentando uma proficiência média de 203,6, na escala de Língua Portuguesa, que vai até 500, definido como desejável. Isso significa dizer que estes alunos apresentam um nível de desempenho “[...] caracterizado por um processo inicial de desenvolvimento das competências e habilidades correspondentes à etapa de escolaridade avaliada. Para esses estudantes são necessárias estratégias de reforço” (SAEPE, 2016, p. 26). Dessa forma, dada a importância do desenvolvimento das competências leitoras e escritoras no Ensino Fundamental, a partir da observação dos dados em relação ao desempenho dos estudantes do 5º ano nas avaliações externas e internas, e da experiência como técnica educacional da Gerência Regional Metropolitana Sul – GRE –, com o acompanhamento do trabalho docente em três escolas da rede estadual, surgiu o problema que esta pesquisa busca desvelar: até que ponto os professores trabalham a leitura literária na escola de forma sistematizada? A importância da presente pesquisa se justifica a partir da análise de dados das avaliações externas e metas estabelecidas aos estados e municípios pelo Ministério da Educação. Nossa hipótese se baseia na afirmação de que os professores sabem da importância do ensino de literatura, mas investem pouco nesse tipo de atividade, ou ainda não possuem clareza sobre a formação do leitor literário e as condições necessárias para o desenvolvimento de atividades mais significativas. O objetivo geral dessa pesquisa é investigar o que professoras do 5º ano do Ensino Fundamental pensam sobre o ensino de literatura e quais atividades propõem para favorecer o desenvolvimento do leitor literário. Nessa perspectiva, apresentamos quatro tópicos que discutem o trabalho com leitura literária em sala de aula: no primeiro apresentamos discussões teóricas voltadas para o letramento literário e a importância da formação do leitor que opina sobre suas leituras, constrói sentidos ampliando seus parâmetros de comparação e tecendo seus horizontes de expectativas sobre os textos. No segundo, discutimos o ensino de literatura nas escolas, as concepções e práticas que fomentam a formação do leitor competente. No terceiro, reafirmamos a importância da formação literária do professor e sua íntima ligação com o tipo de trabalho priorizado/desenvolvido por ele em sala de aula. No quarto tópico, analisamos os resultados da pesquisa. No quinto e último tópico, apresentamos as considerações finais. Portanto, partimos da necessidade de investigar o trabalho de 04 (quatro) professoras de 5º ano, de 03 (três) escolas estaduais jurisdicionadas à Gerência Regional de Educação Metropolitana Sul, com leitura literária na escola, para discutir as práticas e as possibilidades de trabalho. A análise do trabalho dessas professoras se deu a partir da pesquisa teórico-empírica, de cunho qualitativo, com realização de entrevista semiestruturada, da qual destacamos três questões que consideramos de maior relevância para o desenvolvimento de um bom trabalho com leitura literária. Ludke e André (1986, p. 34) destacam que “a grande vantagem da entrevista sobre as outras técnicas é que ela permite a captação imediata e corrente da informação desejada, praticamente com qualquer tipo de informante e sobre os mais variados tópicos”. Tal instrumento pode nos ajudar a identificar as concepções de leitura subjacentes ao trabalho pedagógico dos sujeitos entrevistados; procuraremos, ainda, justificar e interpretar suas Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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compreensões sobre a necessidade da sistematização do trabalho com a leitura literária na escola e seu processo de letramento literário. Assim, nos referiremos às professoras investigadas como professora 1, professora 2, professora 3 e professora 4, para preservar suas identidades.

O letramento literário e a construção do leitor

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O caráter formador (ZILBERMAN, 2003) e libertador da leitura é indiscutível, salvo quando não passa de mero determinismo ou obrigação; quando, na maioria das vezes, o texto não pode ser escolhido pelo leitor e “[...] tem que ser lido num determinado período, com data marcada para término da leitura e entrega de uma análise, e não conforme a necessidade, a vontade, o ritmo, a querência de cada criança-leitora” (ABRAMOVICH, 2003, p. 140). Nesta direção, destacamos a importância e a necessidade de compreensão da concepção de leitura apresentada pelos professores, uma vez que está diretamente ligada à concepção de ensino que se dá a partir da utilização do texto literário na escola. Dentre as mais diversas concepções de leitura e alternativas de trabalho com textos que se apresentam para a escola, há que se considerar a necessidade de análise dos tipos de leitura que são oferecidos pelos professores. Sendo assim, a escolha de determinado tipo ou gênero, dependerá em grande escala, do conhecimento literário que esse professor carrega consigo, uma vez que “É função e obrigação da escola dar amplo e irrestrito acesso ao mundo da leitura [...]” (SOARES, 2014, p. 33). O letramento literário, compreendido como “[...] o processo de letramento que se faz via textos literários [...]” (COSSON, 2016, p. 12), indica um redimensionamento das práticas usuais realizadas na escola, concebendo o texto literário como elemento primordial para a formação do leitor crítico e de uma comunidade de leitores que vai além da sala de aula e proporciona a construção e reconstrução da visão de mundo dos estudantes. É um processo que precisa da mediação do professor, uma vez que precisa ser direcionado, já que o letramento não se resume ao fato de saber ler e escrever, mas se refere ao uso da leitura e da escrita com frequência e competência, nas práticas sociais de linguagem (SOARES, 2003). É importante reconhecer os esforços que vêm sendo feitos no âmbito da educação pública, através de projetos de incentivo à leitura e da aquisição de acervo literário para as bibliotecas escolares. Em 2018, por exemplo, foi lançado o edital do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD – na versão literária, ou seja, foi garantida às escolas públicas municipais e estaduais a escolha de obras de literatura para composição de seus acervos. Embora muitas vezes a estrutura física das escolas não colabore para o trabalho efetivo de letramento literário, uma vez que não há espaço nem local adequado para organização desse acervo e grande parte das escolas não possuia bibliotecas nem profissional que organize esse espaço e o torne vivo, ainda assim, a criação de programas de incentivo à leitura apresenta-se como um indicador de que o poder público começa a compreender que o mundo do conhecimento através do texto escrito é um caminho necessário, indispensável e, felizmente, sem volta, que traz benefícios imensuráveis para a vida dos estudantes. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Leitura Literária no 5º ano do Ensino Fundamental: o letramento literário na formação do leitor crítico

O ensino de literatura na escola: concepções e práticas A relação que se estabelece entre escola e literatura está longe de ser tranquila. Por um lado, existe uma crítica à escola por “escolarizar” a literatura e, por outro, o reconhecimento da necessidade desse processo que, se realizado de forma inadequada, desconfigura a arte literária. Nesse sentido, Paiva e Maciel (2014) apontam duas perspectivas de análise do processo de escolarização da literatura: uma literatura infantil escolarizada, da qual a escola se apropria para atender aos seus propósitos educacionais, e uma literatização da escolarização infantil, que observa como se dá o processo de produção de uma literatura direcionada aos objetivos pedagógicos da escola, ou seja, um movimento de dentro para fora e outro de fora para dentro da escola. Na primeira, analisa-se o processo através do qual a escola se apropria da literatura, tornando-a pedagógica, de acordo com seus objetivos. Na segunda, considera-se a produção literária destinada à escola, literatizando essa escolarização. As autoras defendem que, seja a partir de uma ou de outra análise, o mais importante no processo é a escolha adequada das obras, que podem fomentar o nascimento do leitor literário, perpetuando o processo de apropriação do conhecimento para além da escola. Nessa direção, se faz necessária a análise das práticas de leitura literária em sala de aula. Entretanto, nos deparamos com as dúvidas mais frequentes entre os professores dos anos iniciais: o que trabalhar? De que forma explorar atividades que fomentem a formação do leitor literário? São alguns dos questionamentos inerentes ao ofício docente, uma vez que, para a escola, tornou-se corriqueiro estar diante de textos fragmentados ou com atividades não planejadas, no sentido de explorar as significações do texto literário, ou ainda, distanciadas do próprio contexto em que se inserem os alunos, em relação aos textos lidos ou apresentados pelo livro didático. Essa questão torna-se ainda muito mais grave se pensarmos que ainda existem situações em que o livro didático não é apenas mais um recurso pedagógico, mas a única fonte de pesquisa de alunos e professores. Essas situações colaboram para a desconfiguração do texto literário e, consequentemente, deficiência no desenvolvimento da fruição do gosto pela leitura e do senso crítico, além de pouco favorecer o desenvolvimento das competências leitoras e escritoras. Uma das formas de trabalho com leitura mais comuns nesse processo de escolarização da literatura é a apresentação de um texto que sirva de base para o desenvolvimento das competências que podem ser desenvolvidas a partir dos seus temas. Muitos professores já se utilizam das estratégias de leitura (SOLÉ, 1998), outros ainda trabalham de forma descontextualizada, muitas vezes, sem o conhecimento prévio da obra e, o que é pior, com pouco ou nenhum planejamento a respeito. Cabe destacar que tão ou mais importante do que conhecer o texto é ter definidos os objetivos em relação à leitura, para, a partir daí, fazer a escolha mais coerente da obra a ser apresentada para as crianças, inclusive colocando como critério de escolha a questão estética. É na seleção desses critérios de escolha que reside o papel crucial do professor, uma vez que este precisa reconhecer o texto literário como um “alargador de horizontes” e que não pode ser reduzido a um conteúdo retificado, já que apresenta visões diversificadas de mundo e das coisas que o constituem, além de dar margem a interpretações também diversas, que se complementam no processo de interação entre o leitor e o texto. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Para além dos muros da escola, a literatura assume um papel de transformação na vida do leitor, pois recria referências, reorganiza pensamentos, renova concepções não só no encontro do texto com o leitor-aluno, mas também, indiscutivelmente, do professor-leitor, cuja intencionalidade precisa estar cada vez mais clara e bem definida, uma vez que este “[...] assume papel de destaque, ciente de que colocar-se nesse lugar exige, antes de tudo, saber porque ensina literatura. Tendo-se clareza disso, com certeza, abrem-se perspectivas de como ensinar” (MARTINS; VERSIANI, 2014, p. 19). Nessa direção, Rouxel (2013) também enfatiza que a escolha das obras e os critérios que se estabelecem nessa escolha são primordiais para a formação de “sujeitos leitores”. A autora elenca algumas reflexões que podem nortear esse processo, uma vez que considera que literatura precisa ser ensinada e, além disso, pressupõe aspectos metodológicos que precisam ser considerados. O pensamento de Paiva e Maciel (2014) corrobora com o de Rouxel (2013) quando apontam que o repertório de leituras do professor precisa aliar-se ao conhecimento que tem dos seus alunos, a fim de observar as necessidades de leitura que determinarão suas escolhas e práticas. O desconhecimento, tanto da leitura enquanto fruição, quanto sobre os diferentes gêneros e autores, por parte do professor, pode ser um dos grandes entraves ao desenvolvimento de práticas de leitura mais prazerosas, uma vez que nos anos iniciais é de sua responsabilidade a escolha de títulos considerados importante para estas práticas, pois “[...] ao produzir ou selecionar textos, transforma-se, necessariamente num co-responsável pelo ensino e encaminhamento da leitura” (SILVA, 2002, p. 33). O professor assume, portanto, principal papel no sentido do encaminhamento adequado, necessário e orientado ao aluno sobre as práticas de leitura que possam desenvolver as competências necessárias para a compreensão e o posicionamento diante da cultura escrita.

A formação literária do professor A leitura literária na escola tem se mostrado, em alguns casos, como um dos obstáculos ao trabalho do professor, uma vez que muitos deles ainda não conhecem alternativas metodológicas àquelas pelas quais tradicionalmente aprenderam conceitos relativos à literatura. Ainda assim, muitos professores tendem a realizar com pouco planejamento, que apenas requer um produto final, sem que haja a preocupação da fruição, da reflexão ou da troca de impressões sobre o texto lido, o que condiciona os estudantes a associarem a leitura literária à realização de uma tarefa posterior que envolve a utilização do texto apenas como pretexto para aprender regras gramaticais. Paiva e Maciel (2014) destacam a importância de haver “[...] desde as séries iniciais, uma relação literária com os textos, que transcenda suas limitações e inadequadas escolarizações” (p. 116). Lajolo (2002) destaca que “O texto em sala de aula é geralmente objeto de técnica de análise remotamente inspirada em teorias literárias [...] Na escola anula-se a ambiguidade, o meio-tom, a conotação – sutis demais para uma pedagogia do texto [...]” (LAJOLO, 2002, p. 15-16). Essa “pedagogia do texto”, segundo a autora, nos revela problemas sabiamente apontados quando se refere às afirmações sobre o desinteresse dos estudantes pela leitura Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Leitura Literária no 5º ano do Ensino Fundamental: o letramento literário na formação do leitor crítico

literária poder ser resultante de um desencontro de expectativas no que diz respeito ao processo de construção do sujeito leitor: alunos que não leem e não escrevem bem e professores que também se apresentam nesta mesma situação, ou seja, “Um professor precisa gostar de ler, precisa ler muito, precisa envolver-se com o que lê. E esse não é, infelizmente, o perfil comum do professor” (LAJOLO, 2002, p. 108). Para além desse desencontro, é de extrema necessidade ressaltar a importância das concepções sobre leitura e formação leitora que acompanham os professores em suas salas de aula. De que forma ele “professor-leitor” – que se não o é, deveria – se constituiu? Quais leituras o formaram? Com quais leituras ele costuma alimentar sua sede de conhecimentos, sua imaginação? De que forma procuram atualizar seus conhecimentos sobre o trabalho pedagógico com a literatura? Cabe destacar que todas as professoras entrevistadas mencionaram a falta de tempo para a realização de leituras-deleite que possam alimentar sua sede de conhecimentos. Quando indagadas sobre “se gostavam de ler e quais livros de literatura haviam lido”, todas elas afirmaram gostar de ler, embora apontem clássicos, mas não lembrem de textos literários significativos recentes. Apenas a professora 1 alegou estar lendo um livro de literatura no momento da realização da entrevista. As leituras que podemos considerar recentes, em sua maioria, têm sido direcionadas às atividades que realizarão em sala de aula. As falas nos remetem à necessidade da atualização do professor em relação às suas próprias leituras, à reconstrução e à construção de novas competências que fortalecerão sua atuação em sala de aula enquanto modelo de leitor competente e representante da cultura letrada. Essa também é uma das preocupações que o professor precisa ter em relação às avaliações externas, que não podem ser utilizadas como parâmetro único, mas que também não podem ser ignoradas, uma vez que se utilizam da avaliação de habilidades de leitura também necessárias em situações reais. Talvez essa preocupação tenha tomado lugar mais amplo do que deveria, visto que as habilidades avaliadas em alguns instrumentos de avalição externa fazem pouca referência ao letramento literário. Assim, Paiva e Maciel (2014) sugerem a superação da escolarização da arte literária para que haja um diálogo possível entre as expectativas dos dois lados: “leitor-professor” e “leitor-aluno”. Segundo elas, a escola precisa “apropriar-se” da literatura e o professor precisa ser o mediador desse processo, seja concebendo a literatura como produto destinado à escola, seja pela forma como a escola dela se apropria, pois [...] as escolhas que fazemos dos livros de literatura infantil a serem apresentados às nossas crianças é que vão determinar a contribuição desse tipo de texto para o processo de alfabetização e iniciação de um processo de leitura literária, com chances de durar para além do processo de escolarização (PAIVA; MACIEL, 2014, p. 115).

É consenso entre os vários autores já mencionados, a necessidade de uma atuação mais efetiva do professor em relação ao trabalho com o texto literário, muitas vezes apresentado fragmentado ao aluno no próprio livro didático. Além disso, cabe destacar a importância do planejamento que contemple os conteúdos e objetivos clara e sistematicamente definidos, o que dirá com mais propriedade sobre a concepção de leitura concebida pelo professor, e concederá ao seu trabalho maior eficiência e eficácia no sentido de apresentar qualidade prática, teórica e metodológica. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Nesse sentido, para que haja a aproximação das crianças com a leitura literária, é necessário que o professor se apresente como modelo de leitor, com um repertório amplo de leituras, uma vez que as dificuldades de leitura dos alunos em fase de alfabetização podem, de certa forma, criar equívocos em relação ao processo de fruição e até mesmo sobre a compreensão do texto.

O que pensam as professoras sobre o ensino de literatura: análise dos resultados

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Pensar sobre a importância da leitura, assim como todo e qualquer tipo de estratégia ou recurso para a intervenção mais adequada na sala de aula, é avaliar a própria capacidade de se reinventar, pois “refletir, planejar e avaliar a própria prática em torno da leitura constituem requisitos para otimizá-la, para modificá-la quando for necessário e no sentido conveniente” (SOLÉ, 1998, p. 173). Após o levantamento do perfil profissional das participantes da pesquisa, buscou-se identificar o que pensam as professoras sobre o ensino da literatura nas turmas dos 5º anos. Os questionamentos propostos visaram à compreensão do processo de trabalho pedagógico com a leitura e a relação das professoras com a leitura literária e sua influência nesse processo. Na análise do perfil, percebemos que as professoras possuem experiência docente de, no mínimo, 15 anos, o que pode ser considerado como uma experiência vasta e significativa. A maioria delas está vinculada à rede através de contrato temporário, o que nos remete à questão da rotatividade desses profissionais na escola, uma vez que esses contratos têm um tempo de vigência de até dois anos, além da falta de investimentos do governo estadual em concursos públicos para pedagogos, já que a rede não tem obrigação legal com esse nível de ensino e o está extinguindo em suas escolas. Nenhuma das quatro professoras possui curso de especialização, o que consideramos necessário, uma vez que a formação continuada se configura um processo vital para a docência, apresentando aos profissionais novas pesquisas e metodologias que resultam na ampliação e qualificação do fazer pedagógico. Nessa perspectiva, nos apoiamos nos autores aqui já mencionados para a realização da análise das concepções das professoras entrevistadas sobre seu trabalho com leitura literária em sala de aula. Discutiremos os dados das entrevistas, desvelando o que as docentes pensam sobre o ensino da literatura e suas implicações para a formação do leitor literário. Quando indagadas sobre “as leituras que realizam no dia a dia e sobre sua relação com a leitura”, todas as entrevistadas afirmaram que gostam de ler textos diversificados, de circulação diversa. A professora 1 revela o gosto pela leitura literária, destacando os gêneros fábula e conto, mais especificamente os contos de fadas. Essa fala nos remete à importância do conto nos anos iniciais do ensino fundamental, uma vez que os contos de fadas, por exemplo, “[...] estão envolvidos no maravilhoso, um universo que denota a fantasia partindo sempre de uma situação real, concreta, lidando com emoções que qualquer criança já viveu” (ABRAMOVICH, 2003, p. 120). Ou seja, o texto literário oferece a ludicidade necessária ao enfrentamento das questões que a cercam, fazendo-a compreendê-las e buscar soluções de forma lúdica e prazerosa. No que concerne à “importância da literatura na escola”, todas as entrevistadas afirmaram considerar muito importante. Em suas falas, destacamos a presença de algumas Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Leitura Literária no 5º ano do Ensino Fundamental: o letramento literário na formação do leitor crítico

concepções de leitura necessárias ao professor para o desenvolvimento do trabalho com a leitura, defendidas por vários autores. Na fala da professora 1, destacamos a leitura como desenvolvimento do imaginário, o que, para Abramovich (2003, p. 17), trabalhar com a leitura literária “É também suscitar o imaginário, é ter a curiosidade respondida em relação a tantas perguntas, é encontrar outras ideias para solucionar questões [...]”. A autora destaca, ainda, a importância das emoções provocadas pelo texto literário, o que leva a criança a descobrir e compreender melhor o mundo. A leitura como favorecedora da ampliação do vocabulário aparece na afirmativa da professora 3, que destaca também a produção e interpretação textual. A professora 4 menciona o incentivo ao hábito de leitura, que se dá pelo próprio exercício efetivo desta em sala de aula. Nesse sentido, a professora 4 nos leva à percepção de mais um dos objetivos da leitura citados por Solé (1998), a leitura por prazer. Esta é considerada a forma mais eficaz de desenvolvimento do hábito de leitura, segundo diversos autores. Embora todas as entrevistadas tenham feito referência aos diversos usos da leitura na sala de aula, no momento da entrevista suas respostas sobre a importância da leitura não se apresentam de forma explícita. O fato de não justificarem a importância do trabalho com a leitura literária pode indicar que essa justificativa, de alguma forma, pode estar internalizada na ação dessas professoras, o que não podemos afirmar, visto que não houve acompanhamento da prática de sala de aula. Ainda assim, consideramos que não basta afirmar que a leitura é importante para a vida das pessoas. É indispensável pensar a leitura para além da escola e compreender as implicações e ampliações que surgem do ato de ler, e que o professor analise as obras e questione suas intenções, bem como sua eficácia diante da tarefa de colaborar no processo de aquisição das habilidades de leitura e escrita. Nesse sentido, Machado (2014, p. 48) pondera que não se trata de pensar as obras apenas para que a criança aprenda a ler e escrever, mas [...] de ver se existiriam livros que cumprem a necessidade de formação para a literatura, e aqui já estou no âmbito do letramento, livros que configuram uma proposta que supõe um leitor que inicia o seu contato com as letras. Parto, então de uma pergunta: no conjunto do que designamos indistintamente literatura infantil, encontraríamos livros que se preocupam com o nível de proficiência das crianças sem abrir mão do jogo ficcional ou poético que os caracterizam como literatura? (MACHADO, 2014, p. 48)

Entendemos que essa deve ser uma preocupação constante por parte do professor, uma vez que não se pode abrir mão da função social da leitura literária, nem desconsiderar seu poder de atrair e encantar leitores, tendo, portanto, a missão de analisar criticamente as obras e sua capacidade de promover o letramento literário. A respeito dos “tipos de atividades propostas pelas professoras para o trabalho com leitura literária”, observamos, no momento da entrevista, que há uma prevalência da leitura para a produção de texto na fala das professoras 1, 2 e 3, que varia entre resumo (oral ou escrito), e resenha, enquanto a professora 4 destaca o preenchimento da ficha literária. Nenhuma das professoras menciona a fruição como objetivo para a leitura de textos literários. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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É imprescindível que o professor esteja ciente da metodologia mais adequada para o trabalho com a ficha de leitura, pois um dos aspectos importantes se refere ao objetivo a ser alcançado com a ficha, que, segundo Solé (1998), deve ser “[...] convenientemente planejada e que, mesmo assim, permite-nos trabalhar apenas determinados objetivos e aspectos da leitura” (p. 100). Sobre a produção escrita a partir do texto lido, o que se vê, muitas vezes, é a solicitação de gêneros textuais, como a resenha e o resumo, inclusive sem a devida orientação aos alunos sobre sua produção. A metodologia utilizada pelas professoras para o trabalho com a leitura literária, a partir de suas falas, pode ser considerada ainda inadequada, na perspectiva do letramento literário, o que supõe atividades significativas e sistematizadas, visto que não apresentam, por exemplo, a troca de ideias ou comparação entre outros textos do mesmo autor ou de autores diferentes. Embora não tenhamos assistido às aulas mencionadas, as professoras, no momento da entrevista, revelaram-se um tanto inseguras quando à sistematização das atividades realizadas em sala, o que nos aponta um provável desconhecimento de etapas importantes do processo de leitura, segundo Solé (1998) e Cosson (2016). Nos relatos das professoras 1, 2 e 4, fica claro que a escolha do livro para um trabalho mais sistematizado parte delas, e não das crianças, o que supõe o planejamento das estratégias mais adequadas para o trabalho com o texto literário. Na contramão da suposição, as falas nos revelam que essas professoras ora iniciam o trabalho com a leitura silenciosa, pelo aluno, ora em voz alta, pelo professor, mas não apresentam indícios da sistematização desse processo, nem os motivos ou objetivos que as levam a realizar as atividades de uma ou de outra forma. Assim, é preciso que o professor conceba a leitura como algo que se ensina, que pressupõe formas adequadas de promoção do leitor com a literatura, visando não só à aprendizagem de conteúdos preestabelecidos, mas, antes de tudo, ao desenvolvimento do gosto e do hábito de leitura, do prazer de ler e de se tornar um leitor crítico, para que possa se tornar senhor de suas escolhas, inclusive lançando mão de estratégias adequadas, que incluem, talvez, a mais importante delas: se apresentar como modelo de leitor. Além disso, no momento da entrevista, nenhuma das professoras mencionou a necessidade de realização de um trabalho sistemático com a leitura, o que nos leva a concluir que as atividades são realizadas de acordo com o que cada uma conhece sobre leitura, seja literária ou não. Kleiman (2002) destaca que “O ensino da leitura é um empreendimento de risco se não estiver fundamentado numa concepção teórica firme sobre os aspectos cognitivos envolvidos na compreensão de texto.” (p. 61), mas que também não deve apenas se prender a uma mera sequência ou roteiro de atividades que não imprimam sentido ao momento da leitura. Esse roteiro aparece na fala de algumas professoras, embora não na mesma ordem e, principalmente, sem a mesma frequência, pois os passos apresentados nem sempre são realizados ou, quando são, nem sempre acontecem na mesma ordem. Percebemos que, no momento da entrevista, não há segurança em relação à realização de uma sequência de atividades sistematizadas para o trabalho com literatura, uma vez que as atividades ora se iniciam com comentários sobre um texto já lido, ora com inferências sobre o que vai ser lido e que geralmente é escolhido pelo professor. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Leitura Literária no 5º ano do Ensino Fundamental: o letramento literário na formação do leitor crítico

É sabido que a escola não pode se furtar do trabalho com os demais eixos da Língua Portuguesa e que, em alguns momentos, o texto será utilizado para o reconhecimentos das questões gramaticais, assim como uma forma de avaliar a fluência de leitura, mas também é necessário atentar para as diversas estratégias que proporcionem um trabalho pedagógico significativo, pois Sabe-se, pelas pesquisas recentes, que é durante a interação que o leitor mais inexperiente compreende o texto: não é durante a leitura silenciosa, nem durante a leitura em voz alta, mas durante a conversa sobre aspectos relevantes do texto. Muitos aspectos que o aluno sequer percebeu ficam salientes nessa conversa, muitos pontos que ficaram obscuros são iluminados na construção conjunta da compreensão. Não é, contudo, qualquer conversa que serve de suporte temporário para compreender o texto (KLEIMAN, 2002, p. 24).

É esse momento da interação que precisa ser cada vez mais significativo, sendo conduzido pelo professor da maneira mais adequada, validando os conhecimentos apresentados pelos alunos a partir do texto, considerando suas conjecturas, seus questionamentos sobre as intenções do autor, sua compreensão diante do que é colocado pelos colegas, suas conclusões. Tais conclusões devem, inclusive, ser consideradas, mesmo que estejam em divergência com a opinião do professor, e por isso reforçamos a importância de uma formação que proporcione o seu constante contato com a produção literária, ou seja, que esteja constantemente alimentado de novas e diversificadas leituras. Nesse sentido, podemos afirmar a importância do conhecimento do professor acerca das estratégias mais adequadas para o trabalho com a leitura literária. O pensamento da autora corrobora com o de Cosson (2016) e Solé (1998), uma vez que destaca a necessidade da ativação dos conhecimentos prévios do aluno para a elaboração de hipóteses, pois suas predições se tornam mais substanciais à medida em que se apresentam seguros diante daquilo que sabem. Assim, percebemos, através das falas das docentes, que as concepções subjacentes ao trabalho sistemático com leitura literária na escola se voltam de forma mais contundente ao “desenvolvimento da imaginação da criança”, muitas vezes desconsiderando o seu “ser e estar no mundo”, o que leva alguns professores a deixar de reconhecer na literatura uma função muito maior: o seu papel humanizador. Esse papel está intimamente ligado ao desenvolvimento da criticidade em relação ao que se lê e, consequentemente, em relação a como nos vemos diante do mundo, pois, para Solé (1998, p. 158), “[...] as crianças devem relacionar informações do texto, devem efetuar inferências e, nas perguntas de “elaboração pessoal”, devem emitir um parecer, uma opinião, ou aportar conhecimentos relacionados ao conteúdo do texto, que apelam à sua bagagem cognitiva mais ampla.”, ou seja, precisam interagir com o texto, emitindo opinião construída a partir de sua leitura e de seus conhecimentos prévios, situações nas quais questionamentos simplórios e óbvios não ajudam as crianças a desenvolverem as competências leitora e escritora.

Considerações finais No desenvolvimento desta pesquisa, buscamos compreender como se dá o trabalho com leitura literária nas turmas de 5º ano do Ensino Fundamental, a partir das concepções de leitura apresentadas pelas professoras, e de um breve olhar sobre os registros dos planos de Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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aula, com base em vários estudiosos da leitura e do letramento literário, dentre eles, autores como Rildo Cosson, Isabel Solé e Ângela Kleiman. Na análise do perfil das professoras, percebemos que existe uma lacuna na formação continuada, uma vez que a maioria ainda não realizou nenhum curso além da graduação em Pedagogia, o que consideramos de suma importância para o desenvolvimento de uma prática docente teoricamente embasada e socialmente comprometida com a constante evolução do conhecimento. No que se refere ao trabalho pedagógico com leitura literária, evidenciou-se que o trabalho docente ainda apresenta uma carência considerável de conhecimento sobre a temática do letramento literário e das metodologias mais adequadas para o trabalho com a literatura em sala de aula, de forma a não descaracterizar o seu papel crítico, reflexivo e, acima de tudo, humanizador. Destacamos da fala das entrevistadas, além da alegação da falta de tempo para o fortalecimento do próprio gosto pela leitura literária, a ausência da formação continuada que contemple o trabalho com a literatura, uma vez que é uma temática que vem sendo bastante difundida mundialmente como de relevância significativa para a compreensão das demais áreas do conhecimento por parte dos alunos. Sobre o trabalho com a literatura, concebemos que não há como fugir da pedagogização ou didatização da leitura literária na escola, mas vale destacar que essa ação não pode, sob nenhuma hipótese, descaracterizar o texto literário, muito menos impedir nossos alunos de conhecerem o caráter humanizador da leitura literária. É importante que fique claro, para o professor, que leitura e compreensão são habilidades que precisam ser desenvolvidas na escola e, portanto, precisam ser ensinadas pelo professor; este, por sua vez, não pode se furtar à responsabilidade de conhecer e se aperfeiçoar, a fim de realizar seu trabalho da melhor forma possível, garantindo os direitos de aprendizagem dos alunos. Por outro lado, cabe também às redes de ensino o acompanhamento das fragilidades e redirecionamento das ações, no sentido de sanar as necessidades formativas do seu corpo docente, uma vez que ainda há um grande desconhecimento sobre os eixos da Língua Portuguesa e suas implicações no aprendizado da língua materna. Para além dos diversos usos da leitura, como fonte de conhecimento ou prazer, é importante que se “leia para criticar” e se posicionar diante do que foi lido e, ao contrário do que muitos pensam, essas competências precisam ser trabalhadas na escola, desde os anos iniciais, para que o leitor possa exercer, de fato, a cidadania, com respaldo para defender ou criticar qualquer ponto de vista que se apresente em linguagem escrita, o que certamente contribuirá para o desenvolvimento das demais competências em leitura e escrita.

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Leitura Literária no 5º ano do Ensino Fundamental: o letramento literário na formação do leitor crítico

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP. Sistema de avaliação da educação básica – SAEB. Disponível em < http://portal.inep.gov. br/educacao-basica/saeb> Acesso em: 20 abril 2018. BRASIL Resultados - Boletim de desempenho por escola Disponível em: < http://portal. inep.gov.br/educacao-basica/saeb/resultados>. Acesso em: 20 nov. 2018 COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2016. EVANGELISTA, Aracy Alves Martins; BRANDÃO, Heliana Maria Bruna; MACHADO, Maria Zélia Versiani. (Orgs.) A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas: Pontes, 2002. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed. São Paulo: Ática, 2002. LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli, D. A. Pesquisas em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. MACHADO, M. Z. V. Literatura e alfabetização: quando a criança organiza o caos. In: PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.) Literatura: saberes em movimento. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. MARTINS, A.; VERSIANI, Z. Leituras literárias: discursos transitivos. In: PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.) Leituras literárias: discursos transitivos. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. PAIVA, Aparecida; MACIEL, F. Discursos da paixão: a leitura literária no processo de formação do professor das séries iniciais. In: PAIVA, Aparecida et al. Leituras literárias: discursos transitivos. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. ROUXEL, A. Aspectos metodológicos do ensino de literatura. In: DALVI, Maria Amélia; REZENDE, Neide Luzia; JOVER-FALEIROS, Rita. (Orgs.) Leitura de literatura na escola. São Paulo: Parábola, 2013. SAEPE. Sistema de avaliação educacional de Pernambuco. Disponível em: <http://www. saepe.caedufjf.net/avaliacao-educacional/o-saepe/>. Acesso em: 16 jan. 2018. SILVA, Ezequiel Teodoro de. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2002. SOARES, Magda. Ler, verbo transitivo. In: PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.) Leituras literárias: discursos transitivos. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artmed, 1998. ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil da na escola. 11. ed. São Paulo: Global, 2003.

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Literatura de cordel: uma face encantadora da literatura infantojuvenil1 Literatura de cordel: una faz encantadora de la literatura infantil y juvenil Maria Iêda Justino da ROCHA2 Nelma Soares de AZEVÊDO3 Resumo: O presente estudo busca apresentar brevemente a natureza e a função da literatura infantojuvenil no Brasil, percebendo a literatura de cordel como uma face de grande importância para a disseminação da literatura no meio infantojuvenil. Para isso, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, a fim de compreender os conceitos de literatura infantojuvenil e de literatura de cordel, observando algumas características do cordel pelas quais podemos dizer que este gênero poético se enquadra na literatura infantojuvenil no Brasil. Foram, então, consultados autores influentes na discussão, como Batista (1977), Coelho (2000), Lajolo (2011), Lajolo e Zilberman, (1998), Bráulio Tavares (2005), entre outros, que muito contribuem para a reflexão e apreciação da temática, e analisadas as obras Pássaros & bichos na voz de poetas populares, organizada por Hélder Pinheiro, e Canção dos povos africanos, do poeta Fernando Paixão. Palavras-chave: Literatura infantojuvenil. Literatura de cordel. Poesia. Resumen: Este estudio presenta brevemente la naturaleza y función de la literatura infantil y juvenil en Brasil, percibiendo la literatura de cordel como una faz muy importante para la diseminación de la literatura entre los niños y jóvenes. Por esa razón, se realizó una investigación bibliográfica a fin de comprender los principales conceptos de tales literaturas y, al observar algunas características del cordel brasileño, fue posible afirmar que este género poético se enmarca en la literatura infantil y juvenil en Brasil. Se consultó a algunos autores expertos en el tema, como Batista (1977), Coelho (2000), Lajolo (2011), Lajolo e Zilberman, (1998), Bráulio Tavares (2005), entre otros, que contribuyen para la reflexión y apreciación de la temática y, además, fueron analizadas las obras Pássaros & bichos na voz de poetas populares, organizada por Hélder Pinheiro y Canção dos povos africanos, del poeta Fernando Paixão. Palabras clave: Literatura infantil y juvenil. Literatura de cordel. Poesía.

Introdução O presente estudo busca apresentar brevemente a natureza e a função da literatura infantojuvenil no Brasil, fazendo uma relação com a literatura de cordel como gênero poético considerado uma face encantadora da literatura infanto-juvenil, por enriquecê-la de maneira grandiosa. Essa literatura de folhetos chegou ao nosso país no coração e na bagagem dos colonizadores portugueses e espanhóis, instalando-se na Bahia, então capital do Brasil e, posteriormente, espalhando-se para outros estados, no entanto, sua divulgação se deu com

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Artigo oriundo de trabalho apresentado à disciplina Literatura infantojuvenil: aspectos teóricos, publicado na revista Lumen, Recife, v. 28, n. 1, p. 53-63, jan./jun. 2019. 2 Graduada em Letras e Pós-graduanda em Literatura Infantojuvenil | FAFIRE | E-mail: rochaieda28@gmail.com 3 Mestre em Educação | Professora do curso de Letras e de Pós-graduação em Literatura Infantojuvenil | FAFIRE e orientadora do trabalho | E-mail: nelma1507@gmail.com 1

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mais intensidade nos estados da Paraíba, de Pernambuco, do Ceará e do Rio Grande do Norte, atuando como instrumento de comunicação e fonte de informação para o povo, sobretudo para quem habitava os sertões. Funciona como divulgadora da arte do cotidiano, das tradições populares e dos autores locais, com grande importância para a manutenção do folclore nacional, das identidades locais e tradições regionais. É uma poesia marcada pelo cotidiano, pois nasce da experiência de observação da realidade e serve como inspiração para a vida. Diferente de Portugal, que geralmente recontava as histórias já famosas dos reis, rainhas e princesas, o cordel brasileiro apresenta sua fisionomia própria, não abandona essas características herdadas dos colonizadores, mas as aperfeiçoa com aspectos do cotidiano, pois a quantidade de temas abordados no cordel é infinita e tudo o que acontece na vida pode se transformar em poema de cordel. E assim como a literatura infantojuvenil, o gênero em foco é uma arte repleta de criatividade para representar o ser humano por meio da palavra, do humor e da alegria que o poema de cordel pode despertar. A pesquisa se deu de forma descritiva, com abordagem bibliográfica, a partir de alguns autores que discorrem a respeito da temática, além da análise de dois livros de literatura de cordel destinados ao público infantil: Pássaros e bichos na voz de poetas populares, organizado por Hélder Pinheiro, e Canção dos povos africanos, de autoria do cordelista Fernando Paixão. Portanto, o presente trabalho fará breves considerações acerca da história do cordel, sua chegada ao Brasil e consolidação no Nordeste, como um gênero poético de grande relevância para a nossa cultura, bem como apresentará alguns aspectos da natureza e função da literatura infantojuvenil no Brasil, evidenciando a possibilidade de o cordel ser considerado uma face da literatura infantojuvenil, podendo ser ofertado de maneira tranquila e alegre às crianças e adolescentes, a exemplo das obras em destaque.

Literatura infantojuvenil: um pouco de sua natureza e função A literatura infantil, conforme evidencia Coelho (2000), é um “fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível realização” (COELHO, 2000, p. 27). Desse modo, compreende-se que a palavra literária tem um poder renovador e unificador que alcança a vida como um todo, à medida que estabelece comunicação entre o exercício da vivência cotidiana e os sonhos que embalam o grande desejo de uma vida plena. A literatura representa o ser humano em sua mais singela expressão, pois toca o coração e o coloca diante da vida de uma maneira lúdica e significativa. Assim, cada povo em sua época produziu determinado tipo de literatura e o deixou como legado às gerações posteriores, seja de forma escrita ou transmitida por meio da voz, como no princípio, quando a narrativa oral era o único meio pelo qual as pessoas tinham acesso à literatura. Isso se percebe desde os tempos antigos, quando as narrativas eram perpetuadas antes de serem compiladas em livros, tanto na literatura infantojuvenil, com suas primeiras histórias que chegaram ao Brasil desde a época colonial, como no cordel, que foi disseminado primeiro pela oralidade através da recitação, visto que poucas pessoas tinham acesso às letras, e por isso um folheto percorria as regiões na memória e na voz de recitadores com grande aceitação do público. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Literatura de Cordel: uma face encantadora da literatura infantojuvenil

De acordo com Nelly Novaes Coelho, Literatura é uma linguagem específica que, como toda linguagem, expressa uma determinada experiência humana, e dificilmente poderá ser definida com exatidão, cada época compreendeu e produziu literatura a seu modo. Conhecer esse ‘modo’ é, sem dúvida, conhecer a singularidade de cada momento da longa marcha da humanidade em sua constante evolução (COELHO, 2000, p. 27).

Assim, a literatura se transforma e transforma, numa movimentação constante e infinita como a experiência humana, e por isso dificilmente será definida com exatidão, em sua natureza, posto que é evolução ad infinitum. Nessa dinâmica, a literatura é produzida conforme a necessidade e a realidade concreta de cada contexto, com a sua peculiaridade, cujo resultado também se consolida em razão do estilo de cada autor que imprime singularidade. Nessa perspectiva, a arte de narrar, de contar histórias, segundo Machado (2001), possibilitou às pessoas a oportunidade de poderem proclamar “a subjetividade e a objetividade, a linearidade, a casualidade, a simultaneidade, a condicionalidade e tantos outros conceitos fundamentais à transmissão dessa sabedoria acumulada, tão essencial para a preservação da espécie” (MACHADO, 2001, p. 130). Em outras palavras, pode-se dizer que a literatura é intrínseca ao ato de viver, pois possibilita externar a grandiosidade da vida em suas mais diversas representatividades. Candido (1995) corrobora que a literatura possui a capacidade de ampliar a visão de mundo de todas as pessoas que se deixam tocar por ela, além de expandir também o horizonte de conhecimentos tanto de si como dos outros e do mundo que ela apresenta. A literatura desperta o ser humano para a humanização no decorrer da existência, pois “desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 1995, p. 249). Desse modo, compreende-se que a função humanizadora da literatura permite à criança e ao adolescente, em se tratando de literatura infantojuvenil, um prazeroso encontro consigo mesmo e com as mais diversas circunstâncias da vida, tornando-os mais capazes de enfrentar os desafios de sua própria realidade. À medida que a criança degusta um texto literário e sente-se representada nele, ela passa a olhar para si mesma com um novo olhar e a enxergar muito mais possibilidades para o desabrochar de sua criatividade e da capacidade de perceber o mundo e as situações de maneira mais amadurecida. Neste sentido, Cavalcanti ressalta que a literatura pode ser para a criança o espaço fantástico para a expressão do seu ser, exercício pleno da sua capacidade simbólica, visto trabalhar diretamente com elementos do imaginário, do maravilhoso e do poético. Amplia o universo mágico, transreal para que esta se torne adulto mais criativo, integrado e feliz (CAVALCANTI, 2002, p. 39).

Assim, além de humanizanizadora, a literatura é integradora, pois os elementos dos quais ela é constituída favorecem que a criança sinta-se elevada a um mundo mais tranquilo, onde ela possa se sentir feliz e, muitas vezes, encarar a sua realidade, os seus medos e desventuras de maneira mais equilibrada. Contudo, Lajolo e Zilberman observam que foi entre o final do século XIX e início do XX que o aparecimento da literatuta infantil se tornou propício em decorrência da acelerada Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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urbanização do Brasil. E, “nesse contexto cultural, e no horizonte de um país que se urbanizava e modernizava, começam a sistematizar-se os primeiros esforços para a formação de uma literatura infantil brasileira” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p. 27). Assim, a prática do hábito de ler passou a ser estimulado pelo fato de a leitura ser considerada importante para a formação do cidadão. No entanto, a literatura infantil que chegava era proveniente da Europa, adaptando-se posteriormente para servir melhor às crianças do Brasil, por meio de uma produção mais condizente com a realidade. Conforme as autoras acima mencionadas, a literatura infantil brasileira foi construindo, de maneira peculiar, seus próprios modelos narrativos e heróis, de modo a criar um mundo imaginário baseado em duas direções específicas. “De um lado, reproduz e interpreta a sociedade nacional [...], de outro lado, dá margem à manifestação do mundo infantil, que se aloja melhor na fantasia, e não na sociedade” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p. 67). Coelho (2000) ressalta que, ao voltarmos o olhar para o percurso das histórias infantis que vieram do passado, deparamos com o fato de que, em suas origens, elas surgiram destinadas ao público adulto, e com o tempo, através de um misterioso processo, se transformaram em literatura para os pequenos (COELHO, 2000, p. 40).

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Desse modo, no decorrer de tal processo também houve a evolução na compreensão da natureza e da função da literatura infantil, que não se limitará a passar uma lição de moral, mas possibilitar uma experiência humanizadora por meio do divertimento e da reflexão a respeito da vida e de tudo o que a cerca, de modo a transformar a rotina dos seus leitores.

Literatura de cordel: uma face encantadora da literatura infantojuvenil A literatura de cordel chegou ao Brasil com a colonização, no século XVIII, instalando-se, principalmente, na região Nordeste, demonstrando, assim, que a conquista e a colonização do Brasil foram marcadas pelo predomínio e pela imposição não somente de políticas, mas também de aspectos culturais dos colonizadores. Os primeiros cordéis do Nordeste apresentavam as histórias já famosas e tradicionais, como narrativas sobre Carlos Magno e outras figuras de reis, rainhas, princesas, santos, dragões, Pedro Malazarte, João Grilo e tantos outros, além dos temas da época, grandes acontecimentos ou notícias de impacto para a população. Desse modo, a literatura de cordel, além de possuir uma temática riquíssima a respeito de histórias tradicionais, aventuras de heróis e anti-heróis, possuía também papel de periódico escrito e falado, relatando acontecimentos do cotidiano, secas, enchentes, fatos políticos e de repercussão social, além de críticas e sátiras (BATISTA, 1977). Assim como a literatura infantil, a literatura de cordel chegou ao Brasil e precisou ser adaptada, pois os romanceiros tinham inspiração nos trovadores portugueses. Cantavam histórias de amor, guerras, lutas, princesas, príncipes entre outros temas (HAURÉLIO, 2010). Nessa perspectiva, a importância da literatura de cordel se justifica pela relevância na transmissão de conhecimentos e tradições que formaram o povo brasileiro, além de ajudar financeiramente muitos poetas e vendedores ambulantes. No Nordeste, consagrou-se como Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Literatura de Cordel: uma face encantadora da literatura infantojuvenil

poesia do povo e para o povo, tratando de temas caros à cultura popular, além de temas de grande impacto para o público, indo desde notícias nacionais até as internacionais. Segundo Tavares (2005), os versos de muitos poetas são verdadeiros relatos históricos, porque não fogem da realidade social, mas a colocam numa linguagem que desperta interesse, permitem o encontro do leitor com ele mesmo e com a concretude de sua vida, possibilitando-lhe um novo olhar em relação ao mundo no qual está inserido. Já para Lajolo (2011), os versos são ideias produzidas numa perfeição capaz de tocar a alma de quem se deixa encantar com a beleza da literatura, pois a criação literária, ainda que envolvida com o mundo do possível e não com o real, nasce de uma fantasia (imaginação) ancorada na realidade. O mundo que a literatura concebe surge a partir de uma experiência que aquele que escreve tem da realidade histórica e social em que está inserido; por mais que seja simbólico, o texto poético inspira-se sempre no concreto da existência. Assim, o universo que escritor e leitor compartilham “corresponde a uma síntese – intuitiva ou racional, simbólica ou realista – do aqui e agora da leitura, ainda que o aqui e agora do leitor não coincidam com o aqui e agora do escritor” (LAJOLO, 2011, p. 47). O cordel é um tipo de poesia envolvente, tem uma força sublime que é capaz de transformar e lapidar o pensamento. Conforme Tavares, os poetas Reproduzem com palavras as emoções mais complicadas que sentimos ou que podemos imaginar alguém sentindo. Usam a linguagem poética para discutir ideias filosóficas, conceitos abstratos que conseguem transpor para uma linguagem mais acessível. Conseguem contar histórias, provocar gargalhadas, emocionar, produzir excitação sensual, usando apenas as palavras (TAVARES, 2005, p. 22).

Essa dinâmica se dá em decorrência da força renovadora da poesia. Conforme Coelho (2000), a força da poesia produz um novo olhar, a capacidade de extrair encanto de tudo o que se vê, a partir da experiência pessoal, intransferível e inexplicável. A literatura de cordel “é um tipo de poesia metrificada e rimada” (CARVALHO, 2013, p. 51). Não se pode fugir a essas regras para escrever cordel, pois, conforme o citado autor, todo cordel é poesia, mas toda poesia não é cordel. Cabe ao poeta escolher o estilo que deseja seguir; ele é livre para usar sua sensibilidade e capacidade criativa para poetizar a vida, conforme a inspiração e seu dedicado esforço lhe permitam enveredar por este caminho tão abstrato como a essência da vida; porém, quando não segue rigorosamente a regra, um texto não deixará de ser poesia, mas não poderá ser categorizado como literatura de cordel. A literatura de cordel desempenha um papel importante na preservação da cultura e apresenta uma riqueza preciosa para a vida do povo nordestino, que, através dela, sente-se valorizado, exprime suas alegrias e angústias, ao mesmo tempo em que reforça sua resistência e traduz a experiência da humanização cotidiana que a força da poesia possibilita. Como é possível perceber, em sua origem, o cordel não tem um destinatário-alvo, mas é um tipo de literatura que chega a todas as pessoas dos mais longínquos recantos do Brasil em processo de colonização e desenvolvimento. Com isso, tem-se conhecimento também de que muitas crianças no passado aprenderam a ler a partir da escuta dos folhetos de cordel que os adultos compravam nas feiras e liam para todos da casa. E como evidenciou Coelho (2000), ao se observar as origens das histórias infantis que vieram do passado, elas também não são destinadas às crianças, mas ao público adulto. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Literatura de cordel infantojuvenil: conhecendo algumas obras As obras escolhidas para análise possibilitam a compreensão de que a literatura de cordel pode ser considerada como uma face da literatura infantojuvenil, pois valoriza o aspecto cultural, estético e também simbólico da literatura infantojuvenil. Desse modo, o cordel pode, sim, ser considerado como uma face luminosa da literatura infantojuvenil, e ser consumido tranquilamente pelas crianças e adolescentes, pois assume singular importância na formação daquelas pessoas que se encontram em processo iniciativo de leitura. A seguir, apresentaremos dois livros em literatura de cordel destinados ao público infantil e que oferecem diversas possibilidades de se ofertar o cordel como literatura infantojuvenil às crianças.

Pássaros & Bichos na voz de poetas populares

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Pássaros & bichos na voz de poetas populares é uma antologia organizada por Hélder Pinheiro, com xilogravuras de Antônio Lucena. O livro apresenta trechos de poemas de cordel de vários cordelistas, cujos títulos foram atribuídos pelo organizador. Todos os poemas do livro apresentam a temática voltada para animais e pássaros, como bem sugere o título, e de maneira alegre, por meio da utilização das rimas próprias ao gênero cordel, apresentam informações acerca de alguns animais que são bem interessantes e despertam a curiosidade para saber mais a respeito de cada animal descrito nas estrofes poéticas. A modalidade escolhida pelos poetas é a sextilha, considerada a forma mais simples, tanto do cordel quanto da cantoria. Para alguns poetas, essa estrutura é considerada a mais fácil, tecnicamente, cuja complexidade reside, talvez, na maneira de abordar o assunto, de modo que a oração seja coesa e não fuja ao que foi proposto. É uma modalidade que facilita a compreensão e, sobretudo, a memorização das estrofes, por isso se torna mais atraente, pois assim facilita às crianças, muitas vezes, a repetição de maneira lúdica e divertida, sem, contudo, deixar de apresentar um conteúdo importante para o processo de conhecimento que ela está desenvolvendo. Cada estrofe que compõe a coletânea traz a marca da fantasia poética e a singeleza de um poema que nasce a partir de uma realidade concreta, ou seja, a vida é poetizada de maneira que qualquer criança é capaz de perceber a beleza de cada verso e captar o seu sentido. É o que podemos conferir na seguinte estrofe intitulada Peru, tão simples e singela, mas capaz de fazer a criança desabar em gargalhadas ao ouvir ou ler, pois de imediato a imaginação alcança um gatinho montado no peru e a ave dando risadas a valer ao redor da casa. O peru fazia roda No terreiro da morada E o gatinho seu amigo Era muito camarada Montava-se no peru E o peru dava risada (José Francisco Borges. In: PINHEIRO, 2004, p. 22).

A partir da concepção de Lajolo e Zilberman (1998), compreende-se que a estrofe apresentada reproduz, de um lado, uma realidade rural da sociedade brasileira que se dedica Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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ao cuidado da terra e dos animais necessários ao seu sustento, como aves que existiam em quantidade nos terreiros das mais diversas famílias que se mantinham da agricultura. Por outro lado, também se vê na estrofe citada uma manifestação do mundo infantil, por meio da fantasia e da imagem do gato nas costas do peru e o peru dando risada. Sabemos que um peru não dá risada, mas na fantasia infantil isso é possível e se torna um elemento verossímil e importante para diversão da criança. Assim, também se confirma o que ressalta Cavalcanti (2002), quando lembra que a literatura pode ser uma expressão do ser da criança, além de ser um exercício para o desenvolvimento de sua capacidade simbólica, pelo fato de trabalhar com elementos do mundo poético. Com isso, a criança poderá se tornar uma pessoa integrada à realidade circundante. Vejamos outra estrofe que apresenta a borboleta como uma dançarina no teatro da natureza. Naquele tempo existia Teatro da natureza Borboleta era querida Por sua grande beleza Era a melhor dançarina Que se via na redondeza. (Zé Vicente. In: PINHEIRO, 2004, p. 15).

Na estrofe do poeta Zé Vicente, recolhida por Hélder Pinheiro para compor a antologia em foco, percebe-se a movimentação que a linguagem poética sugere, além da beleza do ritmo e da rima, que são características próprias do cordel; percebe-se a imagem da borboleta como uma dançarina a embelezar a vida. A estrofe pede ao imaginário que se transporte para um campo florido da natureza, cheio de borboletas em festa, ao mesmo tempo em que a criança pode se sentir conduzida a este mundo de alegrias, de flores e encantos, e até se sentir convidada a dançar como a borboleta, leve pelos caminhos da vida. No excerto a seguir, o poeta faz analogia ao nascimento de Jesus, o salvador, fato que se deu na presença dos animais, anunciado pelo galo. O galo foi quem cantou Quando o salvador nasceu, O boi perguntou, aonde? A ovelha respondeu: Em Belém, Belém, Belém E o pastor compreendeu. (Manuel Batista. In: PINHEIRO, 2004, p. 39).

A estrofe do poeta Manuel Batista remete a uma festa tradicional, que é a celebração do Natal, quando se tem a tradição de que houve o cantar do galo para anunciar o nascimento do salvador, em Belém. Assim, além de deleitar-se com a beleza poética dos versos que compõem a estrofe, a criança também se remete a um tempo e um lugar bem distantes, que se fazem presentes hoje na história por meio da transmissão através das gerações. Assim, o livro Pássaros e bichos na voz de poetas populares é um exemplo de que a literatura de cordel chega tranquilamente e de maneira lúdica às crianças e adolescentes, podendo ser considerada uma importante face da literatura infantojuvenil, a partir das diversas possibilidades de experiências que este gênero poético permite que sejam vivenciadas. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Canção dos povos africanos Canções dos povos africanos, do poeta cordelista cearense Fernando Paixão, apresenta, de modo simples e poético, uma fagulha da cultura dos povos africanos com suas belezas singulares. Trata-se de um livro também escrito em sextilhas que, por sinal, são elaboradas com uma singular perfeição, tanto a rima como a métrica, sendo capazes de inspirar emoção em qualquer leitor que se dispuser a mergulhar nesse mundo mágico do cordel. O livro destaca valores e princípios da convivência em comunidade na cultura dos povos africanos e ressalta a importância da música nos momentos mais importantes da vida. Vejamos a seguinte estrofe. Em determinada tribo Das paragens africanas, Um costume mostra o brilho Das atitudes humanas, Que tem o mesmo teor Das essências soberanas. (PAIXÃO, 2010, p. 07)

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Nesta estrofe, consolida-se a teoria de Coelho (2000), ao salientar que a literatura infantil é uma arte, um fenômeno de criatividade que representa a vida meio da palavra; essa palavra que é som e é silêncio ao mesmo tempo, pois há coisas que não se explicam, apenas se experimentam, como é o caso da poesia em sua função humanizadora. Por meio da experiência da palavra, acontece uma movimentação interior capaz de causar uma fusão entre o sonho e a vida real, ou o simbólico e o vivenciado. No cordel Canção dos povos africanos, a efabulação se dá a partir da história de uma tribo africana que se mostra como pano de fundo em toda a narrativa. A voz narradora é confessional e testemunhal, buscando fortalecer a vontade de conhecer. Na história se apresenta apenas um aspecto da cultura africana, que é a tradição da música nos ritos de passagem de determinados povos, fato que certamente desperta o desejo de busca de novas descobertas. É uma obra que vem transformar uma ideia estigmatizante construída em relação ao continente africano, pois geralmente o que se vê nas mídias é que na África só tem miséria. A partir da leitura desta obra, é possível perceber que, além do sofrimento e da dor, existe uma cultura que fortalece a vida do povo e o faz viver. A beleza da linguagem poética desvenda uma nova face que encanta o público leitor, como é possível perceber na seguinte estrofe. E quando a criança nasce Canta o povo em louvação, Também quando ela inicia Seus passos na educação O povo outra vez se junta E lhe canta sua canção. (PAIXÃO, 2010, p. 08)

Com uma construção acessível, além de enaltecer valores humanos, o poema também apresenta valores que são inatos à cultura. Desse modo, cumpre-se a função social, além de Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Literatura de Cordel: uma face encantadora da literatura infantojuvenil

estética da literatura infantojuvenil, visto entreter e ao mesmo tempo ensejar um jeito diferente de celebrar a vida e seus eventos, pois a canção pode ser utilizada em todas as ocasiões importantes do curso da caminhada de uma pessoa, até para repreender sem constrangê-la, mas de maneira que se sinta elevada e motivada a abraçar novas formas de comportamento, inclusive em se tratando de temas como a morte, mais difíceis de serem vivenciados com as crianças. Como no seu nascimento Sua canção é ouvida, Assim ela o acompanha Na hora da despedida Quando ela faz a “viagem” Desta para a outra vida. (PAIXÃO, 2010, p. 12)

A canção é um marco da vida e acompanha o povo em todas as ocasiões. E como salientou Machado (2001), também serve à transmissão da sabedoria acumulada na vida do povo e essencial para a preservação da espécie. No poema em tela, por meio de uma história pertencente ao universo folclórico do povo africano, percebem-se traços de uma cultura que carrega valores essenciais a serem compartilhados com gerações futuras. O que também se confirma na estrofe que finaliza o livro: Essa história é uma herança De um povo que tem grandeza, De um povo que ensina ao mundo Gestos de paz e nobreza Na “canção” que representa Sua própria natureza. (PAIXÃO, 2010, p. 21)

Considerações finais Após um breve caminhar entre as belezas da literatura infantojuvenil e no gênero cordel, conclui-se que esta modalidade literária muito tem a contribuir para a iniciação e a formação do leitor, notadamente no âmbito nacional brasileiro, e que, tanto na antologia Pássaros & bichos na voz de poetas populares (de Hélder Pinheiro), como em Canção dos povos africanos (de Fernando Paixão), percebe-se que a riqueza da literatura infantojuvenil se faz presente e que é possível chegar da maneira mais estimulante e significativa às crianças e adolescentes, de forma que eles percebam o curso das histórias e se deleitem no encontro com o universo poético que ambos apresentam. É possível confirmar a ideia de que o cordel de fato representa uma face encantadora da literatura infantojuvenil, justamente porque abre novos caminhos rumo ao conhecimento, mostrando-se um campo vasto de experiência humana, oferecendo novas perspectivas de compreensão e deleite a cada contato com uma nova história ou com um novo poema.

Referências BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da literatura de cordel. Natal: Fundação José Augusto, 1977. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Maria Iêda Justino da Rocha | Nelma Menezes Soares de Azevêdo

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. CARVALHO, Ernando Alves de. Noções de literatura de cordel. Recife: Coqueiro, 2013. COELHO, Nely Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. . CAVALCANTE, Joana. Caminhos da literatura infantil e juvenil: dinâmicas e vivências na ação pedagógica. São Paulo: Paulus, 2002. HAURÉLIO, Marco. Breve história da literatura de cordel. São Paulo: Claridade, 2010. LAJOLO, Marisa. Literatura: leitores & leitura. São Paulo: Moderna, 2011. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história & histórias. 4. ed. São Paulo: Ática, 1988. MACHADO, Ana Maria. Texturas: sobre leitura e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. PAIXÃO, Fernando. Canção dos povos africanos. Fortaleza: IMEPH, 2010. PINHEIRO, Hélder. (Org.) Pássaros & bichos na voz de poetas populares. Campina Grande: Bagagem, 2004. TAVARES, Bráulio. Contando histórias em versos: poesia e romanceiro popular no Brasil. São Paulo: Edições 34, 2005.

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“Não esmaguem as palavras nas entrelinhas”: a obra literária de Clarice Lispector para a infância1 “Do not crush the words between the lines”: Clarice Lispector's literary work for childhood Maria das Graças Vieira LINS2 Resumo: A obra de Clarice Lispector é fonte inesgotável de pesquisas, estudos, interpretações, artigos, teses e inúmeros eventos acadêmicos. Trata-se de uma escritora que sempre esteve no palco de abordagens das grandes linhas do conhecimento, com especialidade, a Literatura e a Psicanálise. Clarice envolve o leitor com o mesmo encantamento diante das múltiplas leituras que são realizadas sobre a sua obra, quer sejam dirigidas ao público infantil ou adulto. Este trabalho surgiu, inicialmente, de uma inquietação sobre o fato de perceber que sua obra raramente é indicada pelas escolas privadas para seus alunos, e nem sempre são adquiridas pelos grandes programas governamentais de compra de livros encaminhados às escolas públicas. Seria desconhecimento de sua obra dedicada ao público infantil? A ausência de práticas de leitura literária em oficinas e mediação de leitura com crianças e adolescentes? As abordagens que definimos buscam, portanto, indicar caminhos para essas práticas com foco na “escuta” do texto e do “leitor”, assim como a própria Clarice nos sugere nas obras que analisamos. Para o presente trabalho foram selecionadas duas obras: O mistério do coelho pensante e Quase de verdade para exemplificarem os estudos sobre o conceito de “escuta do texto”, através de duas abordagens que iluminam a leitura dos referidos livros: as considerações de Cecília Bajour, em seu livro Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura (2012), na perspectiva da leitura literária. Num segundo momento, discutiremos o conceito de “escuta do texto”, pelo viés de uma leitura psicanalítica, a partir dos estudos de Danny A. Kanaan, especialmente em seu livro Escuta e subjetivação: a escritura de pertencimento de Clarice Lispector (2002). Palavras-chave: Literatura. Psicanálise. Mediação de leitura. Clarice Lispector. Abstract: Clarice Lispector’s work is na inexhaustible source of research, studies, interpretations, articles, theses and numerous academic events. She is a writer who has always been on de stage of approaches of the great lines of knowledge, especially Literature and Psychoanalysis. Clarice surrounds de reader with the same enchantement at the multiple readings that are taken about her work, whether directed at children or adults. Initially, this work arose froma concernabout the realization that his work is rarely indicated by private schools for his students and is not always acquired by the larg e government book purchase programs sent to public schools. Was it unaware of his work dedicated to children? The absence of literary reading practices in workshops and reading mediation with children and adolescents? The approaches we define seek, therefore, to indicate paths for these practices with a focus on “listening” to the text and the “reader”, just as Clarice herself suggests to us in the works we analyze. For the preent work, two books were selected: O mistério do coelho pensante and Quase de verdade to exemplify the sudies on the concepto of “listening to the text”, through two approaches that iluminate the reading of the referred books:

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Este artigo é a reelaboração de uma palestra proferida na Jornada Psicanálise e Literatura, realizada pelo Traço Freudiano Veredas Lacanianas em 23 de março de 2019. Para o título, a expressão entre aspas é da própria Clarice Lispector, em A descoberta do mundo: Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 302. 2 Graduada em Letras, Especialização em Literatura Brasileira/UNICAP, Especialização em Políticas Culturais Fundaj/ UFPE | Mestrado em Psicanálise/UNIDERC | E-mail: mgracavlins@gmail.com 1

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the considerations of Cecília Bajour in his book Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura (2012). In a second moment, we will discuss the concept of “listening to the text”, though the bias of a psychoanalitic reading from Danny A. Kanaan’s sudies especially in his book Escuta e subjetivação: a escritura de pertencimento de Clarice Lispector (2002). Keywords: Literature. Psychoanalysis. Reading mediation. Clarice Lispector.

Introdução Falava em língua de ave e de criança. Sentia mais prazer de brincar com as palavras do que de pensar com elas. [...] Aprendera [...] que a palavra tem que chegar ao grau de brinquedo. Poeminha em língua de brincar (excerto) Manoel de Barros

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Para iniciar este trabalho instigante e prazeroso sobre a escritora Clarice Lispector, definimos como tema a “escuta do texto” de duas narrativas dirigidas ao público infantil: O mistério do coelho pensante (1967) e Quase de verdade (1978). Além das obras citadas, a autora também escreveu para o mesmo público: A mulher que matou os peixes (1969), A vida íntima de Laura (1973) e Como nascem as estrelas (reconto de doze lendas brasileira) publicado em 1987. A perspectiva de um olhar para Clarice, enquanto mediadora da leitura de seus próprios textos, conduziu-nos a uma intersecção entre o leitor infantil e uma Clarice que conta histórias, com exato domínio da linguagem e do universo da criança. Este trabalho busca mostrar que as marcas linguísticas da oralidade, expressões denotativas do universo da criança, recursos estilísticos no uso de onomatopeias, sugestões de brincadeiras e adivinhas, informalidade nas falas dos diálogos, conteúdos que estão presentes em suas obras de Literatura Infantil, configuram-se como estratégias utilizadas pela autora com a nítida intenção de aproximar o leitor infantil de sua obra, enquanto mediadora de leitura. A leitura analítica dos livros Quase de verdade e O mistério do coelho pensante serve de suporte para confirmar, através da análise, que o discurso estilístico de Clarice aproxima-se da figura de uma “contadora de histórias”, ao utilizar marcas linguísticas da oralidade e se colocar inteiramente à vontade para criar e recriar ideias ao longo das narrativas, convidando o leitor para partilhar das entrelinhas, numa interlocução rica com um imaginário fecundo e brincante. Para consolidar essas observações, buscamos o aporte teórico de Cecilia Bajour (2012) e Danny Kanaan (2002) no que se refere à “escuta do texto”, uma vez que a mediação da leitura é visível no convite que a autora faz à criança para compartilhar, apreciar e identificar nas entrelinhas o desenvolvimento do enredo das histórias.

Livros infantis de Clarice: uma “legião estrangeira” no percurso da Literatura infantojuvenil brasileira Os livros de Clarice para a infância surgem quando um dos seus filhos lhe pede que escreva um livro de histórias. Posteriormente, ela comenta, em entrevista, que “O adulto é triste e solitário. A criança tem a fantasia solta.” E complementava que era bem mais fácil Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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escrever para crianças do que para adultos, pois teria que se comunicar com o que havia de mais secreto em si mesma. Nas décadas de 20 a 40, as obras infantis privilegiavam o espaço rural e, a exemplo de Lobato, outros autores também contextualizaram suas obras no espaço do campo, como é o caso de Viriato Correia em Cazuza, José Lins do Rego em Histórias da velha Totônia e Graciliano Ramos em Histórias de Alexandre. Sabe-se que, a obra literária de Clarice Lispector inquietou a crítica literária desde a década de 40, contudo só a partir da década de 60 a autora dedica-se ao público infantil. Na década de 50, as obras passam a projetar o meio rural, mas como espaço de visita e não da ação das protagonistas, uma vez que se pretendia mostrar um Brasil urbano e progressista, a exemplo de A ilha perdida, de Maria José Dupré, que ainda hoje consta nas listas de indicação das escolas. Entretanto, esse ideário progressista encobre a presença estrangeira, sobretudo norte-americana, que reproduz uma ideologia comprometida com a camada dominante. Ainda nessa década, ocorrem mudanças na vida cultural, reivindicações de uma arte engajada que representasse os problemas sociais, mas a Literatura Infantil ainda não se envolve com essas questões, nem mesmo com a recuperação de uma linguagem literária mais acessível ao público infantil. Foi no contexto dos anos 60 que surgiram as primeiras obras de Clarice dedicadas ao público infantil. Nesse período, o Estado investe numa política cultural que valoriza autores e obras, ou seja, a instauração do capitalismo moderno: patrocínio, coedições, e destinação de verbas para as publicações. Quando houve a instauração de um governo estabelecido pelo golpe de 64 com seu projeto político e econômico, ocorreu a modernização da indústria e então, a atualização do livro, com boa apresentação física, incentivo à propaganda, distribuição maciça de livros, mas, em contrapartida, a Literatura sofre num contexto de censura política e ideológica intensa. Assim, há uma intervenção no processo criativo do escritor, e em nome de uma destinação pedagógica exigia-se glossários e inclusão de perguntas fechadas em fichas de leitura. A compra de livros era patrocinada pelo Estado, mas a leitura era um recurso de inculcação de valores, comportamentos e atitudes. Daí a literatura infantil era usada como “porta-voz”. Nesse contexto, Clarice publica seus primeiros livros dedicados à infância, com a intenção de que sejam lidos como fonte de fruição e prazer, e não uma literatura utilitária e pedagogizante. Em suas obras para a infância há uma preocupação com o lúdico, o humor, o poético, a estética e, ao tematizar as questões pessoais dos personagens, geralmente protagonistas animais domésticos que estimulam os pequenos leitores à reflexão e à crítica. Só nas próximas décadas, autores como Ruth Rocha, Ana Maria Machado e João Carlos Marinho ousam discutir em suas obras o abuso do poder totalitário a exemplo da série O Reizinho Mandão, O Rei que não sabia de nada, o que os olhos não veem, (Ruth Rocha), História meio ao contrário (Ana Maria Machado), O Gênio do crime (João Carlos Marinho), entre outros (abordando) que abordam a mesma temática.

Dois pequenos-grandes personagens: um coelho e um cachorro Em seus livros dedicados ao leitor infantil é visível uma Clarice voltada aos interesses da criança, onde não há espaço para a angústia, a introspecção e a verborragia incontrolada, tão presentes em sua narrativa para o adulto. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Assim, distancia-se de seus propósitos estilísticos presentes nas narrativas dirigidas a esse público, quando se apresenta como um sujeito sem linguagem e incapaz de tratar sobre o seu modo de ser, enigmática e impenetrável. Em obras como Água Viva, A cidade sitiada e, sobretudo, em A paixão segundo GH, a estética clariceana expressa uma forma de incomunicabilidade da sua intimidade, sentimento presente na ação das personagens que confirmam essa falta de superação e comportam-se como se soubessem demais sobre a vida e ao mesmo tempo fossem incapazes de traduzir a angústia do viver. E, dessa forma, representa ficcionalmente a falta da linguagem e a linguagem da falta, a exemplo do fragmento de A paixão segundo GH: estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. [...] Não confio no que me aconteceu. A isso prefiro chamar desorganização, pois não quero me confirmar no que vivi – na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro (LISPECTOR, 2009, p. 9).

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Em sua obra para o adulto há uma densidade filosófica que não está presente nas obras para a criança, uma vez que apresenta uma escrita divertida, como um jogo de faz de conta que envolve o leitor infantil, diferente da escritora que expõe um sofrimento avassalador por não encontrar na linguagem como expressar a sua angústia interior, em seus textos dirigidos ao leitor adulto. Nas obras para a infância convida o adulto para desfrutar das histórias, até mesmo como mediador de leitura, sugerindo que realize as complementações orais implícitas nas entrelinhas para melhor interatividade com a criança, ou seja, valoriza a presença do adulto na condução oral da narrativa, como percebemos no paratexto da apresentação do livro O mistério do coelho pensante: Como a história foi escrita para exclusivo uso doméstico, deixei todas as entrelinhas para as explicações orais. Peço desculpas a pais e mães, tios e tias e avós, pela contribuição forçada que serão obrigados a dar. Mas pelo menos posso garantir por experiência própria, que a parte oral desta história é o melhor dela (LISPECTOR, 1999, p. 1).

Nessa obra, as marcas linguísticas enunciam uma referência subjacente aos contos de fadas, como ao conto João e Maria, ao nomear o coelho, usando o diminutivo Joãozinho e, na sequência narrativa, o coelho é preso numa casinhola de grades estreitas, assim como o menino, personagem do referido conto, foi preso pela bruxa. O coelho também realiza, ao longo da história, uma série de espertezas que remontam ao coelho do conto Alice no país das maravilhas, trata-se de um coelho que pensa a cada momento que mexe o focinho, mas não pode pensar além do que a sua natureza animal permite. Daí a narrativa apresenta mistérios a desvendar, oferecendo ao leitor várias hipóteses como possibilidades interpretativas sobre o comportamento, por vezes humanizado do coelho, como nas expressões: “lembrou-se de fugir cada vez que faltasse comida na casinhola”, “Mas Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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ele sentia uma saudade muito grande de fugir”, “É porque ele compreende as coisas com o nariz” (LISPECTOR, 1999, s/p). A partir da constituição do personagem coelho e sua forma de pensar o mundo, Clarice propõe ao leitor infantil mistérios a desvendar ao longo da narrativa, lançando ao leitor indagações do tipo: “Que é que você acha que Joãozinho fazia quando fugia?”. Ela mesma, entra numa espécie de jogo de adivinhas, convidando o leitor a se envolver com os mistérios em busca de uma solução. O coelho, embora sendo um animal frágil, conseguia levantar uma tampa de ferro e fugir da gaiola sempre que desejava. A narrativa propõe hipóteses para essa fuga frequente, utilizando expressões que aguçam a curiosidade do leitor: Às vezes penso que fugia para ver a namorada dele... ‘Acho também que Joãozinho fugia porque cada vez ele tinha mais filhinhos e gostava de ir fazer carinho nos filhinhos... ’ Ás vezes também Joãozinho fugia só para ficar olhando as coisas, já que ninguém levava ele para passear. Nessa hora é virava mesmo um coelho pensante (LISPECTOR, 1999, s/p).

Assim, leitor e narradora buscam desvendar mistérios ao longo da história: o leitor nas tentativas de descobrir o motivo das fugas do coelho; a narradora, diante da construção escrita de um mistério que deve ser mantido mesmo após o final da história. Enfim, O Mistério do coelho pensante se constitui como uma permanente brincadeira, cujo maior mistério é ser capaz de imaginar, criar vínculos entre o que se escreve e o que se ler, “ouvir” com atenção o que as entrelinhas desvelam. A história apresenta uma dialética entre a fantasia e a realidade. A metáfora das fugas do coelho da gaiola nos induz a pensar na fuga para o universo da fantasia, assim como o coelho de Alice no país das maravilhas também fazia. Clarice leva o leitor infantil a questionar, não só o fato de o coelho conseguir sair da prisão, mas o que fazer quando se encontra em liberdade. Essa proposição pode ser conformada por uma estratégia de leitura ou contação de história que permitem um exercício de imaginação e assimilação da realidade pela criança. Em Quase de verdade temos a narrativa da viagem feita por um cachorro ao quintal do vizinho que, ao retornar, relata para sua dona Clarice, através de latidos, que ela compreende e traduz: “Eu fico latindo para Clarice e ela – que entende o significado de meus latidos – escreve o que eu lhe conto” (LISPECTOR, 1985, s/p.). O cachorro Ulisses é o protagonista da história que, de forma criativa, apresenta dois narradores, sendo Clarice o narrador secundário que traduz para o leitor os relatos de Ulisses. O mundo ficcional da narrativa, ao apresentar um cachorro falante, torna a recepção mais lúdica e divertida para a criança. Nesse conto, a autora utiliza construções linguísticas inusitadas e mesmo inexistentes na Língua Portuguesa, transformando substantivos em verbos, numa estratégia lúdica de aproximar-se do universo infantil: “Os homens homenzavam, as mulheres mulherizavam, os meninos e meninas meninizavam, os ventos ventavam, a chuva chuvava, as galinhas galinhavam, os galos galavam a figueira figueirava, os ovos ovavam. E assim por diante” (LISPECTOR,1985,s/p.). Compreende-se essa construção linguística como uma forma lúdica de aproximar-se do universo infantil. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Trata-se de uma narrativa que se aproxima da composição organizacional de uma fábula e utiliza, no início, as expressões próprias do conto tradicional: “Era uma vez... Era uma vez: eu! Mas aposto que você não sabe quem eu sou. Prepare-se para uma surpresa que você nem adivinha. Sabe quem eu sou? Sou um cachorro chamado Ulisses e minha dona é Clarice” (LISPECTOR, 1985, s/p.). Em todo contexto da narrativa, há convites para “ouvir o texto” através do uso de onomatopeias, uma vez que Ulisses latia, os galos e galinhas cacarejavam, os passarinhos cantavam , além dos ruídos que ocorriam no quintal que o cachorro visitava. “E toca os ovos a caírem. Cada ovo que caía, fazia no chão o seguinte barulho: Pló-quiti, pló-quiti, pló-quiti!” (s/p.) A história contada por Ulisses a sua dona, por vezes também apresenta marcas de oralidade, que aproximam a narrativa de um conto que os pais improvisam para fazer a criança dormir. Há o uso de onomatopeias indicativas de que o contador da história está construindo o que vai dizer a seguir: – Está ouvindo agora mesmo um passarinho cantando? Se não está, faz-de-conta que está. É um passarinho que parece de ouro, tem bico vermelho-vivo e está muito feliz da vida. Para ajudar você a inventar a sua pequena cantiga, vou lhe dizer como ele canta. Canta assim: pirilin-pin-pin, pirilin-pin-pin, pirilin-pin-pin. Esse é o pássaro de alegria. Quando eu contar a minha história, vou interrompê-la às vezes quando ouvir o passarinho (LISPECTOR, 1985, s/p.).

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A frequente interlocução entre o cachorro Ulisses e sua dona Clarice também convida o leitor infantil a partilhar da narrativa em vários momentos, estratégia estilística que é possível observar, até mesmo no final da história: [...] Você criança, pergunte isso à gente grande. Enquanto isso eu digo: – Au, au, au! E Clarice entende o que eu quero dizer: – Até logo, criança! Engole-se ou não se engole o caroço? Eis a questão. (LISPECTOR, 1985, s/p).

Perto do coração do leitor infantil: um convite para “ouvir o texto” Cecilia Bajour, pesquisadora argentina, em seu livro Ouvir nas entrelinhas : o valor da escuta nas práticas de leitura (2012), discute a concepção dialógica da leitura que necessita de uma “escuta atenta às entrelinhas” através da mediação da leitura, estratégia imprescindível à formação do leitor, quer seja em ambientes escolares ou não. Para ela, o professor, enquanto mediador, deve, além de escutar o texto, nutrir-se de leituras várias para, junto ao aluno, formular perguntas instigantes, acompanhar o pensamento do leitor e construir os sentidos do texto. Um aluno que tem um histórico de oportunidades de mediação de leitura de textos é capaz de “ouvir” as entrelinhas e expor a sua apreciação sobre si mesmo e sobre o outro. “Escutar”, para a autora, é uma prática que se constrói, que se aprende. E o que depreendemos da leitura dos dois contos de Clarice que abordamos, neste trabalho, é exatamente esse Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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convite que ela faz, para que a criança ouça suas narrativas e delas participe, intervindo e interagindo durante toda história, ora formulando hipóteses sobre a ação da personagem, como é no caso das fugas do coelho, ora “ouvindo” os latidos do cachorro, traduzidos por sua dona. Para Cecilia Bajour, uma conversa literária, tomando como exemplo, a que Clarice desenvolve com o leitor, nas obras infantis supracitadas, estimula perguntas, silêncios, gestos, impressões pessoais que partem da real “escuta das entrelinhas”. Cecilia Bajour também critica a “espetacularização” da leitura que muitas vezes é apresentada através de “animação”, usada como “show”, “performances e adereços” e acrescenta que a leitura, dentro ou fora da escola, deve sim, valorizar esteticamente o texto. Retomando os contos infantis clariceanos, percebemos que os recursos estilísticos usados mantêm o leitor numa permanente conversa com a narradora que partilha as palavras num encontro intersubjetivo, que aceita o outro em suas diferenças e visão de mundo, construindo significados sem necessidade de concluí-los. Para Bajour, essa é a condição fundamental da escuta. Ainda nessa linha de discussão de “escuta do texto”, trazemos as considerações de Dany A. Kanaan, em seu livro Escuta e Subjetivação: a escritura de pertencimento de Clarice Lispector. Para esse autor, a “escuta psicanalítica” é a que se estabelece de inconsciente para inconsciente, na relação analítica: “[...] um saber inconsciente é transferido para um outro sujeito ao qual se supõe o saber; sujeito este que deve colocar-se num estado de disponibilidade (garantida pela atenção flutuante) para escutar o que lhe é comunicado [...] (KANAAN, 2002, p. 30). A partir dessa constatação, o autor estabelece uma comparação que interessa ao nosso estudo. Em sua investigação sobre a escuta do texto, o crítico literário considera que o leitor escuta o texto literário e o interpreta, enquanto que o psicanalista escuta o analisando e o interpreta, ou seja, ambos os movimentos se inscrevem na noção de escuta do texto. Poderíamos, aqui, retomar os contos infantis analisados anteriormente e pensar que a narrativa clariceana produz sentido não apenas pelo que está implícito nas entrelinhas, mas nas entrelinhas da interação com o leitor infantil, ou ainda, pelas múltiplas interlocuções que a leitura propicia. Kanaan é um estudioso da obra de Clarice Lispector e recolhemos, dele, este fragmento que reafirma as considerações que fizemos ao longo deste trabalho: Clarice, desse modo, rompe com o pacto literário, segundo o qual um texto deve ser apenas lido. Para ela, o texto, como texto de uma existência, deve ser escutado no ato da leitura, recuperando suas marcas orais, aquelas que colocariam os signos em movimento contínuo. É somente nessa dimensão que o sujeito poderia se reconhecer-realizar como tal (KANAAN, 2002, p. 169).

Assim, para Kanaan, Clarice amplia a dimensão do ato de ler para a escuta do texto, sobretudo porque as marcas da oralidade passam a ser visíveis e enriquecem a sua compreensão.

Considerações finais Impossível considerar este trabalho como conclusivo, uma vez que Clarice Lispector é uma fonte perene e inesgotável de leituras. Trata-se, portanto, de mais um texto acadêmico, Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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não sobre a extensa obra clariceana, mas, especificamente sobre os dois contos infantis, nos quais abordamos aspectos, muitas vezes desconhecidos por educadores, quais sejam, pais e professores, que poderiam mediar as referidas histórias dirigidas ao público infantil. As obras analisadas sugerem um espaço de convivência leitora entre adulto e criança, promovendo um encontro com um universo ficcional lúdico e brincante. As personagens coelho e cachorro permitem a recriação da infância, que também é a infância de Clarice, num permanente jogo do faz de conta, atraindo o leitor infantil para situações inusitadas e que exigem a sua intervenção crítica e reflexiva diante da fantasia e da realidade. O aporte teórico, sobre a concepção de “escuta do texto”, dirige o leitor para desvendar os sentidos implícitos nas entrelinhas, através da mediação de leitura aludida por Cecília Bajour, bem como a leitura psicanalítica explicitada por Dany Kanaan, dão consistência aos propósitos deste estudo ao tempo em que nos conduz a perceber a desconstrução da relação de poder do adulto diante da criança, invertendo papéis e privilegiando o olhar infantil sobre a história narrada. Deste modo, a narradora investe-se de criança, aproxima-se do leitor infantil e distancia-se do papel hegemônico do adulto. Enfim, a obra de Clarice, dedicada à criança, apresenta uma autora que não tem a pretensão de adultizar as crianças, mas de conduzi-las a experimentar um universo ficcional que a fantasia permite e é permanentemente recriado pela imaginação.

Referências

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BAJOUR, Cecilia. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. São Paulo: Pulo do Gato, 2012. KANAAN, Dany Al-Behy. Escuta e subjetivação: a escritura de pertencimento de Clarice Lispector. São Paulo: Casa do Psicólogo, EDUC, 2002. LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. LISPECTOR, Clarice. Quase de verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. LISPECTOR, Clarice. O mistério do coelho pensante. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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Práticas de mediação de leitura em bibliotecas escolares1 Reading mediation practices in school libraries Érica Maria Silva MONTENEGRO DE MÉLO2 Lourival Pereira PINTO3 Resumo: Este trabalho corresponde à discussão de resultados de uma pesquisa exploratória, cujos aspectos qualitativos e quantitativos foram analisados para discutir elementos das práticas de mediação de leitura em bibliotecas esolares. O objetivo foi analisar como acontecem essas mediações, categorizando algumas atividades e destacando elementos estruturais dessas práticas. O referencial teórico se baseia nos estudos de Cosson (2007), Colomer (2007), Riter (2009) e Lerner (2008), dentre outros, cuja produção teórica circula entre a literatura e a biblioteconomia. A pesquisa foi realizada com as professoras de biblioteca de sete escolas da Rede Municipal do Recife. Para a coleta dos dados foram realizadas entrevistas semiestruturadas e observação de mediações de leitura. Os resultados indicam que o trabalho de mediação de leitura realizado nas bibliotecas escolares reúne estratégias que favorecem a formação de leitores na perspectiva do direito humano. O desenvolvimento dessa temática pode contribuir para traçar um perfil das professoras de biblioteca e nuances das práticas de mediação de leitura, bem como sobre as estratégias utilizadas para a formação de leitores na escola. Palavras-chave: Biblioteca escolar. Direitos humanos. Mediação de leitura literária. Professoras de biblioteca. Abstract: This paper corresponds to the discussion of results of an exploratory research whose qualitative and quantitative aspects were analyzed, to discuss elements of reading mediation practices in school libraries. The objective was to analyze how these mediations happen, categorizing some activities and highlighting structural elements of these practices. The theoretical framework is based on the studies of Cosson (2007), Colomer (2007), Riter (2009) and Lerner (2008), among others, whose theoretical production circulates between literature and librarianship. The research was conducted with library teachers from seven schools of the Recife Municipal Network. For data collection were conducted semi-structured interviews and observation of reading mediations. The results indicate that the reading mediation work carried out in the school libraries brings together strategies that favor the formation of readers in the perspective of human rights. The development of this theme can contribute to draw a profile of library teachers and nuances of reading mediation practices, as well as the strategies used to train readers in school. Keywords: School library. Human rights. Mediation of literary reading. Library teachers.

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Artigo originado de monografia apresentada ao Curso de Especialização em Literatura Infantojuvenil da FAFIRE, aprovada em 2019. 2 Mestre em Ciências da Linguagem | UNICAP, 2010 |. Especialista em Literatura Infantojuvenil | FAFIRE, 2019 | Pedagoga | UFCG, 2002 | Mediadora de Leitura, escritora e contadora de histórias | Professora de Biblioteca na EM do Coque em Recife | E-mail: emontemelo@gmail.com 3 Doutor em Ciência da Informação pela USP (2009), Mestre em Ciências da Comunicação pela USP (2005), Bibliotecário pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1993). Professor Associado no Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco | UFPE | E-mail: joaolori@yahoo.com.br 1

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Érica Maria Silva Montenegro de Melo | Lourival Pereira Pinto

Introdução

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A biblioteca é um dos lugares mais encantadores da escola, porque lá são guardados os elementos mágicos que permeiam a imaginação das crianças. É nesse cantinho onde estão mergulhados os tesouros da literatura, a alma de leitor de cada autor e também os melhores traços dos ilustradores. Diante desse cenário, este trabalho tem como objetivo compreender e discutir como se dão as práticas de mediação de leitura literária pelos professores de biblioteca escolar, considerando a sua formação inicial, as demandas e as condições de trabalho de seu ambiente escolar. Para responder a ele, observamos momentos de mediação de leitura em bibliotecas escolares da cidade do Recife, bem como realizamos entrevistas com as professoras, correlacionando esses dados com um referencial teórico que tomou como base a observação do cotidiano desses sujeitos, a escuta de suas falas e o registro das práticas de leitura literária. Este artigo está organizado em quatro itens: A literatura como direito humano, que discute a necessidade de garantir o acesso à literatura para todos e todas, a partir de Candido (2012) e Riter (2009), dentre outros. No segundo, A biblioteca como espaço da leitura literária: para além do livro, abordamos as questões das bibliotecas escolares com base em Campelo (2010; 2016), Lajolo (2000) e Milanesi (2013). A seguir, Mediação de Leitura na Biblioteca Escolar traz importantes reflexões sobre o funcionamento da biblioteca escolar. Por fim, reunimos as observações descorrentes da pesquisa de campo no item Análise de práticas de mediação de leitura na biblioteca escolar, que reúne nossos olhares para esse universo. Para atingir o objetivo de compreender e discutir como se dão essas práticas, delimitamos como corpus os registros do trabalho de sete professoras, as demandas da biblioteca escolar e as estratégias elencadas para as mediações de leitura com as crianças, nesse espaço. A escolha da Rede Municipal do Recife se deu pela existência de um setor que se destaca pela dedicação às bibliotecas escolares e seus partícipes. Nossos sujeitos foram professoras que realizassem um trabalho sistemático há pelo menos um ano e que viessem participando regularmente da formação continuada. Nosso corpus foi constituído pelas observações de momentos de mediação de leitura, bem como pelas respostas às questões da entrevista semiestruturada, além de anotações decorrentes das observações. Para o tratamento dos dados, fizemos uma análise qualitativa, com os dados descritivos, o que foi relevante para responder aos nossos objetivos. Os procedimentos adotados permitiram responder à pergunta de pesquisa: o professor de biblioteca se coloca no papel de mediador de leitura? Os resultados desse estudo nos mostram que a biblioteca escolar continua sendo um lugar de extrema importância. No entanto, há muitos entraves, entre os quais, ausência de investimentos na formação continuada e parcerias dentro das instituições, fatores primordiais para o cumprimento da missão de formar leitores e promover o letramento literário.

A literatura como direito humano e letramento literário: políticas públicas de democratização e universalização da literatura A literatura é, certamente, uma das maiores riquezas da humanidade e, desde que foi incorporada ao cotidiano das pessoas, vem cumprindo, nos lugares mais longínquos ou mesmo em nossas casas e escolas, o papel de humanização. Assim, “pensar em direitos humanos Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo” (CANDIDO, 1995, p. 172), ou seja, o literário nos coloca como iguais em acesso, mas diferentes em pensamento e reflexões, porque é também a partir da literatura que vamos nos constituindo como sujeitos de direito e, como tal, temos que pensar na premissa de que “aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo” (CANDIDO, 2018, s/p.). No contexto da garantia desses direitos, a literatura se constitui relevante à infância, especialmente às crianças em idade escolar que, pela negação desses mesmos direitos, não conseguem (sobre)viver diante dos infortúnios a que são expostas cotidianamente. Quando o acesso à literatura é garantido, ampliamos as possibilidades de formação, oferecendo-lhes a possibilidade de ser e estar no mundo, ampliar suas ideias e formas de participação na coletividade. Quando tomamos o acesso à literatura como direito, compreendemos o quão importante são as políticas públicas de universalização e democratização dos livros. Bom exemplo dessa questão é o Programa Nacional de Bibliotecas Escolares – PNBE, cujas obras literárias compunham acervos destinados ao apoio pedagógico dos professores e também por meio de programas de distribuição de livros para a biblioteca particular dos estudantes. De 1998 a 2013, houve distribuição de milhares de livros que compunham acervos diferentes para as Bibliotecas, entre obras literárias para estudantes e acervo de livros técnicos, para consulta dos professores, além de dicionários e enciclopédias, entre outros. As ações não consideram apenas a distribuição de obras para os estudantes, mas também as que se fazem necessárias para a formação de leitores, ainda que nas escolas não se tenha a biblioteca. Por isso, as políticas públicas devem ocupar-se, além da garantia de universalização do acesso ao livro, com a devida qualidade das obras que são oferecidas. Desse modo, corroboramos a importância do acesso aos materiais relativos à formação de leitores, de modo que, mesmo que na escola não tenha biblioteca, as crianças tenham acesso a esses materiais. Cavalcanti (2002) destaca a relação da escola com o literário, fazendo-nos refletir sobre a ideia de a literatura ter um fim em si mesma, não um fim pedagógico do processo de leitura, e esclarece: A Literatura não deve ter o papel de educar ou servir aos contextos de interdisciplinaridade escolar. A Literatura é a Literatura. A experiência simbólica experimentada no texto literário já justifica sua utilização, pois a função essencial do conto na educação é dar alegria, na alegria e pela alegria, exercitar e alimentar o espírito (CAVALCANTI, 2002, p. 77).

Em contrapartida ao que defendemos com base no trecho destacado, vemos professores se utilizarem das obras complementares como um caminho para o didático/pedagógico, sem de fato priorizar a formação estética das crianças. Em 2018 o MEC adotou uma política de inclusão da escola nas escolhas dos livros literários para o acervo das salas de leitura e bibliotecas escolares. Docentes foram convidados a analisar e selecionar as obras, a partir de um documento norteador disponibilizado na plataforma on line. Assim, enquanto o Estado garante a universalização e o acesso ao livro, Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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a escola, enquanto instituição e agência de letramento, trabalha com a diversidade de estratégias, e aí, mais uma vez, se sustenta a importância do trabalho dos docentes para formar leitores e garantir o direito humano à literatura. A literatura é uma poderosa ferramenta para a educação e, por esse motivo, deve ser também considerada uma importante forma de alcançar as pessoas, de fazê-las refletir e se posicionar perante os eventos sociais. Garantir o direito à literatura é dar acesso à obras de qualidade, ricas em diversidade de gêneros e de formas gráficas, que permitam a apreciação estética ao livro enquanto objeto e lhes garanta o tempo necessário à fruição e ao prazer de ler. O contato precoce com os livros pode construir no sujeito o desejo de ler, desde que se tenha experimentado a leitura em suas mais diversas possibilidades. Coelho (2000) destaca a importância dessa relação e afirma que “estamos com aqueles que dizem: Sim. A literatura, e em especial a infantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta sociedade em transformação: a de servir como agente de formação” (COELHO, 2000, p. 15). Riter (2009) e Cosson (2007), entre outros, discutiram sobre o letramento literário na perspectiva da formação de leitores, nas duas instituições primárias de letramento: a família e a escola. Cunhamos o termo instituição primária por acreditarmos que existem outros espaços onde se pode, de fato, tornar-se leitor, mas acreditamos que essas duas instituições têm suas possibilidades ampliadas por dois fatores: o tempo e a sistematização. O tempo que a criança permanece nesses espaços contribui para a questão do letramento, porque aprendem a conviver com todas as pessoas, e nesse espaço também há tecnologias que a criança precisa aprender a utilizar. Logo, desde a preensão do lápis até a leitura, está tudo lá. A sistematização se refere à capacidade que as pessoas inseridas nessas duas instituições têm para organizar as aprendizagens das crianças, pois aprender a se alimentar é tão importante para o ser humano quanto ler, haja vista estarem numa sociedade que necessita da leitura e da escrita. Quanto à escola, seja nos currículos cheios, ou no acesso a determinados materiais, as crianças convivem com o material mais diverso: o ser humano e sua infinidade de formas de ler. Para resgatar a oportunidade de formar leitores com sentido e prazer, foi criado o termo letramento literário: que “é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola (COSSON, 2007, p. 23). Esse termo acompanha as práticas de mediação de leitura na escola. Ou deveria. Apesar de a família ter um importante papel na formação dos leitores e leitoras, é na escola que o ensino sistematizado acerca dos gêneros literários e as relações que se estabelecem entre eles se efetiva, pois, conforme defende Cosson (2007), nesse sentido, é preciso unir a necessidade curricular à formação de leitores, tanto na escola, como na família, pois a forma como lemos fora da escola é o resultado da forma como ela nos ensinou a viver (com) a literatura. O texto literário precisa circular na vida dos estudantes, independente da ação da escola, uma vez que a escolarização é uma ação com tempo e um fim previstos, por isso, a devida importância ao espaço e ações da biblioteca escolar.

A biblioteca como espaço da leitura literária: para além do livro Negado durante séculos para grande parte das pessoas, e motivo de mortes e guerras, durante toda a história a humanidade, hoje o saber circula livremente entre as prateleiras e pode caminhar com o usuário da biblioteca para outros espaços, por meio de qualquer Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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pessoa, desde que ela detenha habilidades para ler, de algum modo. Seja no celular, na palma de sua mão, até nos livros mais antigos, a informação circula a todo instante e, dependendo do meio em que o usuário esteja inserido, poderá se utilizar desses recursos para pensar e agir. Como bem observou Milanesi (2013, p. 37), “se o meio for generoso e oferecer oportunidades, o indivíduo poderá, com a educação formal, com as leituras e demais fontes de informação, ter mais autonomia para pensar e agir”. As bibliotecas brasileiras são poucas, mas cumprem importante papel na construção de uma nova ordem social. As três principais categorias de bibliotecas que atendem ao público são as comunitárias, as públicas e as escolares. Neste artigo focamos a biblioteca escolar e vamos discutir um pouco sobre esse universo e sua importância para a garantia do direito humano à literatura e bens culturais materiais e imateriais, no âmbito escolar. As bibliotecas escolares surgiram na Europa. No Brasil, desde o período colonial, quando serviram de guarda para os livros nas escolas jesuítas, elas acompanharam o crescimento do país, com acervos que serviam à causa religiosa e seus saberes e que, portanto, apenas pessoas autorizadas teriam acesso a esses materiais (LINO; OLIVEIRA, 2016). O estudo de Lino e Oliveira (2016) destaca que foi o movimento da Escola Nova que alavancou a ideia das bibliotecas escolares. Anos depois da criação do PNBE, mais um esforço pretendia a ampliação do número de bibliotecas escolares, e somente a partir de 2010, quando foi criada a “Lei das Bibliotecas”, é que esses esforços pareciam ter atingido o objetivo. No entanto, o prazo para implementação foi ampliado e quase dez anos depois ainda temos um país em que o número de escolas sem biblioteca cresce a cada dia, seja pela sua não existência, desde a criação das escolas, seja porque as bibliotecas são as primeiras instalações a serem desativadas quando se faz necessária a ampliação do número de salas de aula. A biblioteca escolar, segundo Pimentel, Bernardes e Santana, [...] é organizada para integrar-se com a sala de aula e no desenvolvimento do currículo escolar. Funciona como um centro de recursos educativos, integrado ao processo de ensino-aprendizagem, tendo como objetivo primordial desenvolver e fomentar a leitura e a informação (PIMENTEL; BERNARDES; SANTANA, 2007, p. 23).

Segundo dados da União Nacional dos Dirigentes Municipais da Educação – UNDIME –, cerca de 55% das escolas brasileiras não possuem biblioteca ou sala de leitura. Uma das justificativas para esse dado são as condições estruturais das escolas, especialmente nos grandes centros urbanos, onde falta espaço e sobram crianças para estudar. A Lei nº 12.244/ 20104 prevê a universalização das bibliotecas nas escolas, algo que pretende reformular toda a proposta de trabalho com leitura, pesquisa e atividades afins. Ao mesmo tempo em que a lei surge, observamos o descaso com as bibliotecas escolares, visto que grande parte das escolas brasileiras não têm, sequer, espaço para que o acervo seja armazenado. Para Carvalho (2008), “a escola que pretenda investir na leitura como um ato verdadeiramente cultural não pode ignorar a importância de uma biblioteca aberta, interativa, espaço livre para expressão genuína da criança e do jovem” (CARVALHO, 2008, p. 23). Nesse ínterim, vimos também bibliotecas abarrotadas de livros e vazias de leitores, cheias de histórias que poderiam ser lidas e relidas, mas vazias de crianças, simplesmente porque ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 4

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12244.htm.> Acesso em: 10 jun. 2016. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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desconhecem o lugar ou o mágico poder da literatura, ou porque os próprios professores das salas de aula não se disponibilizam a apresentar esse universo às crianças. Seja nos prédios adaptados, nas salas improvisadas, nos acervos distribuídos criativamente, para que não mofem nos armários, a biblioteca se materializa nos ambientes escolares, mas está muito distante de ser constituída como deveria. Além de todas as questões que justificam a necessidade da biblioteca, temos como essencial a ideia de que estamos formando pessoas para atuar nesse universo que impõe uma série de exigências para aquilo que chamamos de “sucesso”. Para tanto, faz-se necessária a aquisição de “competências fundamentaisà vivência em sociedade” (IFLA, 2006, p. 4) A competência informacional se estabelece quando o sujeito é capaz de se utilizar da biblioteca, ou do livro, ou da internet, ou de quaisquer outras fontes para ampliar sua compreensão de mundo (CAMPELO, 2012). Também é papel da biblioteca, segundo Lino e Oliveira (2016), a formação da competência cultural dos estudantes, que os ajuda a conviver com a cultura para a formação de sua cidadania e, essencialmente, para o fortalecimento de sua identidade. O universo da biblioteca escolar é o chão para a construção da competência para a formação de leitores. Esta é, certamente, a que mais se evidencia no cotidiano, mas é a que mais sofre pela forma equivocada de compreensão sobre o que é a leitura e como ela precisa caminhar para o hábito, ação cotidiana e prazerosa. Além da questão do espaço e das atividades realizadas na biblioteca, a ausência de bibliotecários também prejudica o desenvolvimento das atividades nesse espaço, cuja presença desse profissional poderia contribuir significativamente com a organização dos espaços e acervos, além de oferecer apoio adequado ao desenvolvimento das competências adotadas pelo IFLA (2006) Quando falta a biblioteca na escola, as crianças passam pelos anos da educação básica sem desenvolver aspectos relevantes para a sua formação, porque se distanciam do literário ou se aproximam dele apenas para fins pedagógicos, conforme já discutimos nesse trabalho. Nessa perspectiva, há que se pensar também na presença de sujeitos que possam assumir o lugar de leitores, provocar a curiosidade e a inteligência e descobrir o deleite. Cientes da importância da biblioteca escolar, discutiremos a necessidade de se pensar as práticas de mediação de leitura para a escola e para a vida dos estudantes.

Mediação de leitura na biblioteca escolar O universo do imaginário é o lugar para onde as crianças se mudam quando mergulham no livro. A escola se configura como lugar potencialmente importante, no qual a interação com materiais escritos, a convivência com os pares e a mediação dos professores se tornam elementos importantes para a entrada da criança nesse mundo. Na medida em que alguém lê, apresenta, comenta, indica ou refuta uma obra, está mediando uma forma de ler esta obra para outrem. Sobre isso, Zilberman diz que a palavra mediação “aponta para a ação de um interlocutor [...] convocado para proceder à introdução [...] ao conhecimento e à apreciação do universo ficcional” (ZILBERMAN apud RAMOS; PANOZZO, 2011, p. 16). A mediação de leitura é, assim, um espaço significativo para tomar a palavra e sua presença humanizadora como caminho para a garantia de acesso aos direitos humanos. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


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O lugar da mediação de leitura na biblioteca merece destaque para a formação cidadã dos estudantes, uma vez que, como enfatiza Santos, O acesso ao livro e formação leitora deve ser um direito básico de cidadania, de inclusão social e de desenvolvimento. É nessa perspectiva que o agente de leitura deve agir. Sua ação cultural é, por excelência, uma ação de transformação da realidade onde ele está inserido. Numa dimensão mais ampla, todo agente de leitura é um agente cultural e social (2009, p. 38).

Desse modo, não faz sentido a leitura na biblioteca acontecer como muitas vezes acontece na sala de aula, atendendo apenas aos objetivos curriculares, uma vez que esse lugar de agente de leitura deve servir, prioritariamente, à formação humana. Na perspectiva descrita, faz toda diferença a presença de alguém que seja capaz de mediar as falas, a escrita e a construção do individual e do grupo. Portanto, o professor e a professora de biblioteca que realiza esse tipo de atividade traz para a escola uma perspectiva humanizadora da mediação de leitura, para a qual se “escolhe um viés, um caminho” (RAMOS; PANOZZO, 2011, p. 49). O espaço da biblioteca escolar precisa estar atrelado às rotinas de leitura estabelecidas pelos professores, a fim de complementá-las ou mesmo apresentar outras formas de fazê-la. Vargas (2008) adverte para a necessidade de incluir a biblioteca no cotidiano da escola, não apenas para o trabalho com a leitura, mas para o desenvolvimento de outras questões. Quando se tem uma escola leitora, a biblioteca passa a ser o coração dessa instituição, porque todos os projetos podem partir dela ou contar com esse espaço para se concretizarem. Além do mais, a leitura é a grande impulsionadora das mudanças na aprendizagem e no comportamento dos estudantes. Não raras vezes percebemos que estudantes inquietos e desinteressados pelos estudos vão às bibliotecas e se encontram com a leitura nos HQs, nos livros de poemas ou nos livros de imagens, por exemplo. Então, se discutimos sobre a importância das concepções de leitura, há que se tratar também do acervo, da importância de conhecer as obras e de ter critérios de escolha bem definidos, e da parte mais importante para a efetivação desse conjunto de ações: o profissional da biblioteca precisa se colocar no papel do mediador de leitura, o que discutiremos a seguir.

Professoras na biblioteca: mediação de leitura e formação de leitores no cotidiano A questão da leitura na escola não é relativa apenas à quantidade e à intensidade de acesso aos textos, pois, conforme diz Solé (1998), essa problemática não se situa apenas na metodologia adotada pelos professores, mas, sobretudo, nas suas concepções sobre a leitura. Assim, o fazer pedagógico da leitura, enquanto conteúdo que precisa ser ensinado, deve transcender a ideia de que, dominadas as convenções da língua, forma-se o leitor. Se a escola é um lugar para a formação humana, também é o locus ideal para a formação de leitores. Sobre isso, Lerner (2008, p. 17) nos adverte para a necessidade de “fazer da escola uma comunidade de leitores que recorrem aos textos buscando resposta para os problemas que precisam resolver” e, assim, a leitura cria sentidos distintos. Para instrumentalizar um trabalho dessa natureza, os professores de biblioteca, que não são bibliotecários, precisam planejar práticas que deem conta das necessidades cotidianas, Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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como a organização do acervo, apoio aos professores, e todas as demandas das mediações de leitura, e também compreender o funcionamento desse espaço. Conforme Morais (2013, p. 39), “a biblioteca escolar deve funcionar como campo profícuo para o desenvolvimento de práticas de incentivo à leitura, como lócus privilegiado para a formação de leitores e em um núcleo ligado ao esforço pedagógico dos professores”. Mas a fertilidade desse campo está atrelada à forma como o profissional enxerga o cotidiano e as possibilidades da biblioteca, que vai desde a organização do espaço, às atividades realizadas em parceria com os professores e a forma como se relaciona com os estudantes e demais usuários. Uma vez que essa relação leitor/livro é coesa, os livros deixam de se tornar pretexto para o sucesso na escola e se tornam objeto indispensável à vida. E ainda que leiam em outros suportes, sempre encontrarão tempo e lugar para o mergulho no literário, no objeto simbólico da leitura, que é o livro. Nessa relação se estabelece o tempo para ler, os propósitos de leitura – na escola, geralmente didáticos – a escolha do texto literário e tantos outros que compõem esse universo. Os estudantes necessitam do cuidado dos mediadores de leitura para a construção do comportamento leitor, tal como defendido por Lerner (2008), quando aponta a importância do professor como modelo para os estudantes. Outro aspecto determinante para o sucesso da formação leitora é o estabelecimento de políticas de formação continuada que sejam capazes de fomentar um olhar mais apurado para o literário. Desse modo, a criação de uma rotina de leitura com as crianças, a busca pela diversidade de gêneros literários e a organização de momentos de mediação de leitura de menos técnicos e mais interativos poderão contribuir com a formação de leitores em via dupla: estudantes afetados pelas práticas docentes, e docentes que retroalimentam seu trabalho com as experiências vivenciadas pelos leitores, na sala de aula. Assim, quem está à frente da biblioteca precisa reunir competências ligadas à didática, mas é essencialmente o conjunto de hábitos ligados à leitura que vai fazer a grande diferença. E talvez, mais importante que ter hábito de leitura, seja a concepção de mediação de leitura que essa pessoa sustenta, e na qual se apoia para realizar o seu trabalho, pois é a partir dela que serão estabelecidas relações entre práticas de leitura e a garantia do direito humano à literatura, de ser agente de formação e transformação, conforme diz Coelho (2000). Aspectos relevantes como a escolha do livro e a sustentação de uma concepção de mediação de leitura que valorize a palavra e o livro como pontos de partida para uma prática humanizadora são competências importantes para os professores e professoras de biblioteca escolar e devem ser ponto de pauta na formação continuada desses profissionais. Uma vez que sua identidade profissional é fortalecida e as práticas de mediação de leitura vão sendo reinventadas, aproximando-se das necessidades reais dos grupos aos quais esses profissionais atendem. Outro ponto de destaque nessa forma de mediar a leitura é que, aos poucos, quando a formação de leitores vai se fortalecendo, a figura do mediador de leitura vai deixando de se fazer necessária. O objetivo primordial da biblioteca escolar é formar leitores que caminhem sozinhos quando o chão da escola não for mais a sua estrada, e, progressivamente, o leitor-iniciante internaliza o diálogo com o texto, solta a mão dos mediadores e a leitura se torna autônoma (MOLLO; NÓBREGA, p. 2011). Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Práticas de mediação de leitura em bibliotecas escolares

Todo esse universo da mediação e a compreensão que temos dele nos ajudou a ver a biblioteca escolar como o cerne da leitura literária, como propulsora da formação de seres humanos melhores, e não apenas como lugar para o atendimento a fins didáticos. Partimos, assim, para mostrar como esse estudo fomentou a análise das situações observadas nas bibliotecas escolares.

Análise de práticas de mediação de leitura na biblioteca escolar Depois de dar sentido ao que se faz com a leitura na escola, de discutir sobre os aspectos relativos à mediação de leitura e sobre o contexto da biblioteca escolar, vamos focar nas práticas de mediação de leitura realizadas pelas professoras por nós observadas. Destacamos a importância do número de bibliotecas visitadas, uma vez que o universo de nossa pesquisa é muito abrangente e, mais que apenas visitar as bibliotecas, vimos, nesse caminho metodológico, a possibilidade de observar de perto o universo representativo. As informações coletadas foram analisadas à luz de Bardin (1977) e nos permitiram organizar nossos achados a partir de cruzamentos de dados das entrevistas e dados em alguns quadros, uma vez que essa forma de sistematização facilita nossa compreensão. O primeiro passo para a pesquisa foi a identificação de bibliotecas que realizassem um trabalho efetivo com os estudantes dos anos iniciais. Nesse critério residiu um aspecto eliminatório, uma vez que muitas bibliotecas e/ou salas de leitura existem, no entanto, praticamente não funcionam ou não dão conta de realizar um trabalho de formação de leitores. Tal situação se efetiva por motivos diversos, que vão da ausência de um professor ou mesmo pelas condições estruturais, fator que se distribui também nas que foram selecionadas para sediar esse estudo, e assim, buscamos profissionais que realizassem um trabalho efetivo nas bibliotecas, conforme descrevemos na metodologia. Para atender ao critério de uma escola por Região Político Administrativa – RPA –, procuramos diversos caminhos e sujeitos e, por fim, localizando em todas elas profissionais que atendessem aos critérios e aceitassem participar da pesquisa, nos dirigimos às unidades educacionais. Temos 7 (sete) professoras a quem denominamos “P”, seguido do número de ordem de coleta dos dados. As professoras têm entre 44 e 67 anos, todas com formação em nível superior e apenas uma delas não possui pós-graduação. Nenhuma tem formação específica para atuação em biblioteca, como curso técnico ou superior em Biblioteconomia, ou mesmo pós-graduação na área de literatura. Ainda assim, ficamos gratos por termos trabalhado com esse grupo que atendeu plenamente às nossas demandas de estudo e muito nos ensinou com suas práticas. O ambiente da biblioteca representa um espaço de grande relevância para o tipo de trabalho a ser realizado. É preciso garantir o mínimo de estrutura nesse espaço, pois a forma como ele está organizado permite ou dificulta a realização de atividades em grupos. Para discutir os resultados e chegar a esta categoria, utilizamos dados das entrelinhas das entrevistas e observações do local, pois não tínhamos contemplado, em nosso instrumento de coleta, questões que dessem conta dos espaços, uma vez que não conhecíamos tais locais antes da pesquisa. Considerando as 6 (seis) RPAs, há escolas em que a estrutura física não favorece o trabalho das professoras. Contudo, a firme identidade profissional destas pessoas faz com que o trabalho de mediação de leitura seja realizado com afinco. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Muitas bibliotecas funcionam em espaços adaptados, ou mesmo inexistem, no real sentido do termo aqui aplicado. Ausência de mobiliário adequado, condições insalubres, como acústica, calor e umidade, além da inexistência de espaço para acomodar os usuários, são algumas das situações enfrentadas pelos profissionais usuários nas bibliotecas escolares. Essas condições físicas constituem fator relevante, uma vez que o trabalho das professoras acontece essencialmente em função da organização do espaço da biblioteca. No entanto, mesmo com todas as situações adversas, as professoras realizam atividades diferenciadas, com foco no universo literário para além do currículo escolar, perspectiva defendida por diversos autores (COLOMER, 2007; CADEMARTORI, 2009). Assim, essas professoras trabalham para que as crianças tenham acesso ao mundo literário por meio da leitura e também da escuta de histórias, pois compreendem, conforme Cademartori (2009, p. 24), que a “leitura é algo capaz de provocar mudanças, pra lá do mero entretenimento”. Como escreveram Côrte e Bandeira (2011, p. 19), “a biblioteca, por mais simples e pequena que seja, deve ser um local agradável onde as pessoas gostem de estar”. Em nosso estudo, encontramos dois tipos de bibliotecas escolares: as que estão (sobre)vivendo à base de ajustes cotidianos, e as que foram requalificadas pela gestão municipal, entre os anos de 2012 e 2018. As primeiras não têm espaço suficiente para circulação dos usuários, tampouco mobiliário adequado. No entanto, as professoras realizam, nesses ambientes, empréstimos de livros e produção de textos com pequenos grupos. As leituras para as crianças são feitas nas salas de aula ou no pátio das escolas, muitas quando o espaço não acomoda o grupo, o que é destacado por Côrte e Bandeira (2011), quando discutem sobre planejamento e organização, e, depois de fazerem uma detalhada orientação sobre como esse espaço deve ser pensado, levam-nos a refletir no quão distante está a nossa realidade dessas orientações quase utópicas. Do outro lado estão as bibliotecas requalificadas, equipadas com o que há de melhor para aproveitamento de cada canto da sala. Todas as professoras destacaram a importância da requalificação, mas relataram que não participaram do planejamento, nem conheciam o projeto antes de sua execução. Sabemos que a professora não tem conhecimentos técnicos para intervir em um projeto, mas é necessário fazer um reconhecimento dos saberes construídos por essas profissionais no exercício cotidiano de sua função, e que, portanto, elas poderiam ter sido ouvidas quanto às suas necessidades. Todas as professoras falaram da importância dessa requalificação, embora sintam falta de elementos destacados, discretamente, em suas falas, como espaço para acomodação das crianças (P7), espaço para cartazes e quadro para anotações (P4 e P5). No entanto, reconhecem e são gratas pela oportunidade de ter essa estrutura, pois sabem que essas bibliotecas vêm atendendo às orientações gerais para o pleno funcionamento, tal como se vê neste trecho de Côrte e Bandeira (2011, p. 20): O espaço físico deve ter uma dimensão adequada, garantindo a disposição do acervo em seus diversos suportes: livros em diferentes formatos, jornais e revistas, obras de referência, acervo de multimídia, mapas, gravuras, dentre outros. [...] um metro quadrado da área pode comportar até cinquenta volumes (CÔRTE; BANDEIRA (2011, p. 20).

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Práticas de mediação de leitura em bibliotecas escolares

Outras bibliotecas, no entanto, conforme destacado pelas professoras, apesar de ter um bom mobiliário, tem problemas no espaço destinado aos estudantes, de modo que, para que uma turma seja acomodada, é necessário dividi-la, no mínimo, em duas partes, como acontece no cotidiano de P1, P2, P5, P6 e P7, ou seja, para cinco, das sete professoras observadas, é necessária a divisão de turmas em grupos, para que o trabalho seja realizado nas bibliotecas. Portanto, mais que reformas, é preciso mais empenho para a implementação de bibliotecas, qualificação de seu funcionamento e valorização dos profissionais envolvidos nesse setor.

Professoras mediadoras de leitura: olhando as práticas na biblioteca No universo das professoras que estão em bibliotecas, muitas foram readaptadas de função por questões psicológicas, como depressão e síndrome do pânico, e outras por problemas na coluna e na voz e por isso estão impedidas de desempenhar suas funções como docentes. No entanto, mesmo com todas as limitações, essas professoras realizam trabalhos que transpõem o espaço da biblioteca e, como função primordial da literatura, contribuem para a formação de seres humanos que possam transitar nos diversos espaços sociais. Os encontros com as professoras, nas bibliotecas, aconteceram entre os meses de setembro e novembro/2018, combinados previamente entre as partes. Foram observados momentos com os estudantes, onde eram realizadas mediações de leitura e, em seguida, as professoras foram convidadas a participar de uma pequena entrevista semiestruturada, cujas questões tratavam das experiências vivenciadas no espaço da biblioteca escolar e/ ou sala de leitura. Essa experiência foi de grande valia porque nos oportunizou adentrar na biblioteca escolar para conhecer o seu cotidiano, mas também para correlacionar aquilo que se faz com o que se registra, ou mesmo com o que parece ser realizado, mas não o é, efetivamente. A questão 1 de nosso instrumento – Quem participa das atividades realizadas na Biblioteca Escolar? – levantou um ponto de destaque: há pouca participação de outros sujeitos, que não sejam as crianças, no cotidiano da biblioteca. Todas as professoras relataram que as crianças são as participantes das atividades cotidianas e que, inclusive, muitas só vêm porque os professores trazem a turma toda. Essa é uma situação comum nas bibliotecas. De modo geral, os professores se sentem sozinhos para planejar e realizar as atividades. Roca (2012) destaca a relevância do trabalho de toda a equipe da escola para que a biblioteca cumpra sua função pedagógica, e especifica que ele é resultado de ações, planejadas, executadas e avaliadas permanentemente. Ou seja, Essa trama deve ser executada como uma estratégia projetada e impulsionada pelas equipes diretora e pedagógica. É um requisito indispensável. A função de apoio da biblioteca escolar pode desenvolver-se unicamente com o impulso contínuo das direções executiva e pedagógica da escola. Ela deve considerar [...] a equipe de pessoas que realiza esse trabalho como um recurso humano indispensável para poder gerar processos de melhoria no ensino (ROCA, 2012, p. 37).

Em contrapartida, em nenhuma das 7 (sete) bibliotecas observadas há participação de outros membros da comunidade escolar. Isso é comum porque, inclusive, as próprias Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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pessoas que trabalham na escola, como os funcionários de alimentação e serviços gerais, entendem que a biblioteca existe para servir apenas aos estudantes e professores das turmas. Uma forma de superar essa visão seria a realização de projetos voltados para a comunidade, ou mesmo o fomento ao empréstimo de livros para esse público, transformando-os em usuários da biblioteca. Outra questão versava sobre o cotidiano da biblioteca, seus entraves e organização das atividades de rotina com as crianças. As respostas a essa questão funcionaram como válvula de escape para as professoras, pois elas trouxeram muitas falas de insatisfação com algumas situações cotidianas, especialmente relacionadas à falta de interesse dos docentes em apoiar as atividades. Também mencionaram a tristeza de ver as crianças desmotivadas para ler, e também destacaram a solidão do cotidiano. Os entraves relacionados à biblioteca são diversos e vão desde a questão do espaço físico, mencionado especialmente por P2 e P6, que estão em Salas de Leitura muito pequenas, e por P1, P5 e P7, que estão em bibliotecas que não comportam uma turma inteira, e que, por isso, precisam realizar o mesmo trabalho duas vezes, para atender a cada turma. Organizamos as respostas no quadro abaixo: Quadro 1: entraves que se impõem sobre o cotidiano da biblioteca escolar

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Fonte: elaboração da autora

Categorizamos em cinco pontos essenciais e fomos organizando o que foi destacado por cada uma. Outro ponto que merece destaque é a falta de apoio dos professores. P7 relatou que teve, inclusive, situações de desconforto com uma professora da escola, que não só se recusou a acompanhar a turma, como também proibiu as crianças de irem à biblioteca. Esse tipo de situação evidencia a relevância da parceria entre a sala de aula e a biblioteca, pois, do contrário, algo se perde, e as crianças deixam de usufruir da biblioteca, criando uma lacuna na sua formação acadêmica, desde a escola. O tempo para as demandas também foi mencionado por P1, P2, P4 e P7 como um empecilho, especialmente por quem trabalha em bibliotecas que atendem a um grande número de turmas. As professoras citaram, ainda, a necessidade de participação nos encontros de formação continuada, e outras demandas das quais participam nas escolas, como serviços de secretaria e de apoio à coordenação pedagógica das escolas. Nesse ponto reside também a insatisfação de algumas delas que confessaram não terem reconhecimento pelo trabalho que fazem na biblioteca. Fomos surpreendidos pelas professoras quando perguntamos sobre seus roteiros de trabalho, cadernos de planejamento e afins. As respostas revelaram que elas não têm o Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Práticas de mediação de leitura em bibliotecas escolares

hábito de registrar seus planejamentos, de forma sistemática, tampouco as atividades realizadas com as crianças. Quando responderam à questão “Considerando o seu planejamento, como é organizado o cotidiano da Biblioteca?”, verificamos que apenas duas professoras mantêm seus registros. P7 tem um caderno de planejamento das atividades a serem realizadas nos dois turnos de trabalho, na mesma biblioteca. Além do planejamento, há outros registros ligados às ações cotidianas, como seleção de histórias e anotações da formação continuada. P4 registra tudo que realiza e também outras ações não previstas no roteiro inicial e, em blocos de papel, sistematiza as ações de cada projeto, mas confessa que desse modo perde muitas coisas, porque estão em “um monte de papel, no armário” (sic). As posturas de P4 e P7 são diferenciadas, pois mantêm algum tipo de registro que as diferencia das outras cinco professoras pesquisadas. Ou seja, se precisarem retomar algumas atividades, as demais professoras precisam recorrer à memória, recurso que, nos dias de hoje, em que as informações chegam de forma intensa, pode se perder. Quanto ao registro das práticas, questão que surgiu nas entrelinhas da entrevista, as professoras responderam que às vezes tiram fotos, mas acabam não sistematizando suas práticas em relatórios, portfólios, banners e outros instrumentos. Outro ponto relevante das visitas foi perceber que existe um trabalho sistemático de leitura literária nas bibliotecas e salas de leitura atrelado ao campo da sala de aula. Todas elas procuram adequar o trabalho da biblioteca ao cotidiano das salas de aula, por isso, trabalham com projetos didáticos, com ações estruturadas a partir da leitura literária. Contudo, é clarividente a relação didática que se impõe sobre o fazer da biblioteca escolar, embora não se tenha na biblioteca a “gramatiquice aguda” (LAJOLO, 2000, p. 70) que domina o exercício do literário na maioria das salas de aula. Corroborando a discussão de Lajolo (2000), percebemos nessa pesquisa que as professoras planejam seu cotidiano a partir dos projetos didáticos da escola ou da rede de ensino, modelo que “persiste até hoje, convivendo com propostas de leitura que desembocam em desenfreado ativismo” (LAJOLO, 2000, p. 70). Em outras palavras, o trabalho das professoras da biblioteca reside, essencialmente, em contribuir com os docentes das salas de aula com textos literários que se enquadrem nos aspectos do currículo ora vivenciados. Então, é comum se ver, nas práticas, atividades relacionadas a temas específicos e que tendem a se voltar para a questão do texto literário apenas como pretexto. Compreendemos, portanto, que a biblioteca escolar precisa existir mais em função do literário do que do pedagógico, e que ela precisa ajudar professores e estudantes a conviverem com os conhecimentos que a escola lhes acrescenta, sem descuidarem da leitura como deleite. Ou seja, estabelecer dentro da rotina a leitura como atividade formativa, não apenas informativa. Pensando nessa perspectiva, solicitamos às professoras que assinalassem as estratégias que utilizam em seu cotidiano na biblioteca. Nossa ideia era atrelar as respostas ao que fosse observado in loco, durante a realização da atividade de mediação de leitura, para a efetivação dos achados nesse estudo. A partir das práticas realizadas pelas professoras, foi possível perceber que, de modo geral, a articulação com a sala de aula acontece. Ela se evidencia na escolha das estratégias Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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de mediação de leitura e nos projetos realizados na biblioteca pelas professoras. As respostas, na entrevista semiestruturada, foram confirmadas no acompanhamento da mediação de leitura que cada uma realizou, conforme observamos no quadro a seguir: Quadro 2: estratégias utilizadas pelas professoras de Biblioteca

Fonte: elaboração da autora, a partir de dados coletados neste estudo

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Atentando ao quadro, percebemos o quanto as professoras priorizam a leitura literária e atividades que decorrem desse momento. Apenas P2 registrou que realiza muitas contações de história para as crianças, pois “gosta de dar vida às histórias com fantoches manipulados pelas crianças”. As demais disseram que não se sentem à vontade para contar histórias, por isso apenas leem, sem se prenderem a outros elementos da narrativa. Importante destacar que P2 realiza um trabalho sistemático em que as crianças são protagonistas na produção e na apresentação das histórias. Ou seja, o centro da atividade é a contação livre. Na ocasião, presenciamos uma contação de histórias de autoria realizada pelas crianças, com fantoches. Os textos estavam organizados em pequenos livros que foram escritos e ilustrados na biblioteca e impressos na própria escola. As produções de texto das crianças revelam algo importante na perspectiva de trabalho na biblioteca adotada por esse estudo: para além da leitura, a palavra escrita torna-se um importante aliado na garantia dos direitos humanos, uma vez que a criança passa a ter voz. Observamos que P1, P2 e P3 produziram textos, em decorrência da leitura realizada. Colomer (2007, p. 33) se reporta a Gianni Rodari para nos ensinar que, mais importante que ensinar a produzir textos, a presença da literatura na escola serve para, apesar de nem todos os estudantes se tornarem escritores, temos a certeza de que “nenhum seja escravo”, o que corrobora os estudos de Candido (2012) e Colomer (2007). Chamou nossa atenção a estratégia utilizada por P1 para viabilizar a produção de texto das crianças. A professora reuniu as crianças na sala de leitura – anexa à biblioteca – e exibiu uma história animada , retirando o volume. As crianças foram desafiadas a articular as ideias vistas nas imagens e criar, em duplas, um texto sobre aquilo que estavam lendo/vendo. Só ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 5

Para este item, consideramos o que acontece no cotidiano da biblioteca, não apenas no dia da coleta. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Práticas de mediação de leitura em bibliotecas escolares

no segundo momento, após a leitura de cada texto produzido, os estudantes puderam rever o vídeo, agora com som e imagem. Ao final, uma roda de conversa sobre a história e sobre a importância da produção de texto. As crianças gostaram da atividade e disseram que gostam muito quando há histórias em vídeo. Esse aspecto poderia ser demasiadamente discutido, mas como não é o foco de nosso estudo, nos reservamos apenas a comentar que a televisão e seus correlatos têm se constituído grandes entraves à presença literatura e, por esse motivo, precisamos ampliar nosso olhar sobre a leitura literária em casa e na escola. Assim como P1, P2 mobilizou os conhecimentos dos estudantes para produzirem suas histórias sem nenhuma preocupação com o acerto ou com o sucesso do texto. Inclusive P2 realiza um projeto de valorização da autoria dos estudantes, quando, em parceria com uma professora, publica anualmente livros dos estudantes, o que oportuniza a valorização da autoria e a validação dos textos produzidos com simplicidade e colaboração de todos. Em outros trabalhos discutimos sobre a autoria, compreendida aqui como a “inscrição do autor no texto, trabalho que envolve a atividade psíquica, consciente de quem escreve” (MÉLO, 2010, p. 14). Uma vez compreendido pelos professores de sala de aula e de biblioteca, esse conceito pode impulsionar a produção de textos com a identidade dos estudantes e, portanto, mais criativos. Esse aspecto é bastante relevante, uma vez que produzir textos não é, certamente, o foco da biblioteca. No entanto, é uma interessante forma de propiciar a compreensão textual, fator primordial para a produção de textos autorais. Todas as professoras cuidaram da organização do espaço, antes de iniciar as atividades de mediação, mas nenhuma se utilizou de recursos como tapetes, almofadas e iluminação. A maioria fez sua mediação a partir do livro literário, seguindo critérios de escolha que vão desde o pedido das professoras regentes das turmas, até seu planejamento pessoal para a biblioteca. Os gêneros escolhidos para a mediação também foram variados. De modo geral, as crianças se envolveram nas atividades, e ficou claro que as professoras estão focadas na formação de leitores, uma vez que, além de escolherem textos literários para suas mediações, todas partiram para o trabalho com a leitura das entrelinhas, envolvendo as crianças na conversa sobre o texto e relacionando a leitura ao seu cotidiano, envolvendo-as de maneira que, mesmo quem não participava da leitura colaborativa do texto, acabava chegando a ele de outras formas, pelo olhar e pelas palavras das professoras. Como coloca Debus (2019), isso é muito importante, porque ouvir já é uma forma de ler. Assim, A criança que ainda não sabe ler convencionalmente pode fazê-lo por meio da escuta da leitura do professor, ainda que não possa decifrar todas e cada uma das palavras. Ouvir um texto já é uma forma de leitura. É de grande importância o acesso, por meio da leitura do professor, a diversos tipos de materiais escritos, uma vez que isso possibilita às crianças o contato com práticas culturais mediadas pela leitura (DEBUS, 2019, s/p.)

Destarte, resta-nos enfatizar o quanto as professoras de biblioteca escolar vêm contribuindo para a formação de leitores, ultrapassando barreiras diariamente. Os saberes e fazeres dessas professoras vêm qualificando o as vivências com a literatura e ampliando os horizontes das crianças. E essa foi, certamente, a contribuição mais significativa desses dias de coleta de dados para a nossa formação. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura

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Sobre a (in) conclusão desse estudo

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Esse estudo resulta de um longo caminho para compreender como as mediações de leitura, realizadas pelas professoras de bibliotecas escolares, da Rede Municipal do Recife, podem contribuir para a garantia do direito humano à literatura. Adentramos na discussão mais específica sobre a biblioteca, situando-a como um espaço para a leitura literária, o que rompe com a concepção arcaica de que a biblioteca é apenas lugar para pesquisa ou estudo e, portanto, espaço sagrado do silêncio. Focamos nosso olhar no caminho que ressignifica o trabalho realizado pela escola e nos debruçamos sobre as concepções dos professores acerca da mediação de leitura, estabelecendo relações entre o sujeito que está na biblioteca e o funcionamento deste espaço, numa perspectiva humanizadora. Traçamos um caminho metodológico que nos permitiu observar mais de perto o cotidiano das bibliotecas escolares e espaços de leitura. Munidos da questão o professor de biblioteca se coloca no papel de mediador de leitura?, fomos às escolas para conhecer as concepções das professoras, compreendendo seu lugar dentro do universo da biblioteca, situando suas práticas no contexto da mediação de leitura como forma de garantia do direito humano à literatura. Mapeamos as estratégias de mediação de leitura utilizadas pelas professoras e, observando momentos de trabalho, identificamos as atividades mais comuns entre as bibliotecas. A realização das entrevistas semiestruturadas nos permitiu ampliar nossa visão, na medida em que as professoras traziam em suas falas elementos que corroboravam nossas observações ou situações que vinham a justificar alguns achados. A identificação dos entraves que se impõem sobre o cotidiano das professoras trouxe diversos elementos legítimos de preocupação dessas pessoas. Ficou claro o quanto o trabalho dessas profesoras é solitário, haja vista não haver muito envolvimento de outros sujeitos na biblioteca. Destacamos, neste resultado, o quanto é importante a participação da comunidade escolar, visto que se faz necessário o envolvimento de todos para a consolidação do trabalho de formação de leitores, a partir do pleno funcionamento da biblioteca. As [grandes] mulheres que abriram suas portas para que pudéssemos realizar esse estudo representam um grupo importante, fazendo um trabalho minucioso para ampliar o letramento literário, a partir das mediações de leitura. Ao analisar todos os dados obtidos neste estudo, concluímos que o trabalho realizado no espaço das bibliotecas e das salas de leitura se configura como importante recurso para que as crianças possam transcender suas formas de ver o mundo. Os livros e a mediação de leitura das professoras são capazes de oferecer esse caminho diferente, que pode se constituir uma ferramenta de superação das desigualdades. Esperamos que esse trabalho possa contribuir para se pensar em políticas públicas de implementação e apoio às bibliotecas escolares. Pretendemos ampliar esse estudo em outras oportunidades, discutindo possibilidades de promover a leitura como centro de toda e qualquer forma de desenvolvimento do sujeito humano. Compreendemos que, só a partir dessa perspectiva, aquilo que chamamos de direito humano se efetivará, e teremos, portanto, a igualdade de oportunidades como garantia para uma vida melhor para todos.

Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Práticas de mediação de leitura em bibliotecas escolares

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Foto de Ismael Holanda. Da esquerda para a direita, professoras Nelma Azevêdo, Vilani de Pádua, Graça Lins e Liliane Jamir.

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Sendo a linguagem passível de opacidade, cuja significação é (re) construída pela confluência de aspectos que extrapolam a simples relação entre o enunciado e o fato, a abertura a diferentes interpretações é, consequentemente, constitutiva dela, estando o direcionamento do entendimento atrelado às circunstâncias de uso do enunciado. Essa característica se faz mais notada no contato com a literatura, pois esta abre espaço para discussões interessantes sobre eventos comunicativos presentes nos textos, cabendo a nós, professores de língua materna, explorar os prévios conhecimentos e as experiências sensoriais dos discentes, a fim de que, pelo processo cognitivo da inferência, ele, como leitor, possa estabelecer uma conclusão, um novo conhecimento, a partir do lido. Isso implica dizer que o cálculo inferencial permite que se façam presentes significados transcendentes ao dito, reconhecidos pelo outro com base em seu universo sociocultural. Indiscutivelmente, uma leitura proficiente exige a necessária exploração desse mundo de informações não expressas, e, por vezes, imprescindível à compreensão do significado pretendido pelo autor do texto literário. Para captar essas informações ocultas, o leitor deve desenvolver a habilidade de fazer inferências, ou seja, de concluir uma informação, ainda que omitida, a partir de outras informações fornecidas, e esse discernimento deve ser orientado, a fim de permitir o completo alcance das variáveis significativas de um texto, literário ou não. Não há como negar a seara de informações implícitas nos discursos que se fazem presentes nas obras de literatura, cuja interpretação deve ser devidamente orientada, sedimentando a leitura do não dito como prática necessária à proficiência interpretativa de atos linguísticos e, consequentemente, dos fatos sociais que os subsidiam. Prof.ª Dr.ª Angela Maria Torres Santos Estudos sobre leitura e literatura: uma proposta para a formação de educadores e mediadores de leitura


Um dos grandes desafios dos professores é ensinar leitura para os alunos. Mas não se trata apenas de ensinar a decifrar o código linguístico, e sim – e principalmente – de estimular o hábito revolucionário da leitura. Nesse sentido, esta obra de fôlego, engenho e arte representa uma grande conquista para todos os docentes que acreditam na leitura como instrumento de (trans)formação do ser humano. Dividida em três grandes eixos, a obra abrange desde a reflexão crítica sobre a palavra escrita até a formação do ser humano através da leitura literária, passando pelo papel mediador da leitura e a formação de leitores. Esse livro é a culminância de um esforço tremendo de organização e edição da Prof.ª Liliane Maria Jamir e Silva, pelo qual a congratulamos com o nosso mais festivo aplauso. Por fim, vale dizer que, como toda boa obra de pesquisa séria, este trabalho não pretende esgotar a temática, até mesmo porque ela é, sem dúvida, um campo de estudo fértil, com muitas veredas a explorar. Ele vale como um convite, sedutor e irresistível, a novas e instigantes explorações nos caminhos da leitura. Prof.ª e M.ª Rosa Maria da Silva Pinto ............................................................................................................................................. O livro ESTUDOS SOBRE LEITURA E LITERATURA: UMA PROPOSTA PARA A FORMAÇÃO DE EDUCADORES E MEDIADORES DE LEITURA é o resultado do esforço e da dedicação de docentes e discentes dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da FAFIRE. Inestimável contribuição que reúne atividades diversas em prol da leitura. Um livro ousado, original e didático! Eduardo Fonseca Coordenador do Núcleo de Pesquisa e Iniciação Científica | NUPIC

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Reunir pessoas, comungar ideias e construir conhecimentos é um feito memorável. Quando essas vontades e ações são em prol da leitura, através da literatura, estamos construindo um mundo melhor para que pessoas melhorem. Parabéns a todos que se envolveram e traduziram em realidade esse sonho, com a edição deste livro, ESTUDOS SOBRE LEITURA E LITERATURA: UMA PROPOSTA PARA A FORMAÇÃO DE EDUCADORES E MEDIADORES DE LEITURA. Gildo Galindo Coordenador Geral de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão da FAFIRE

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O trabalho sistematizado neste livro é fruto da busca constante, do desejo de crescer, de conhecer e de compartilhar experiências de educadores e educandos comprometidos com a formação de professores. As diferentes contribuições apontam na direção da profissionalidade docente como um processo interno que se dá a partir das vivências do próprio cotidiano educacional, enfatizando a relevância da interação profissional e da apropriação de novos conhecimentos em torno da leitura e da literatura. Maria das Graças Soares da Costa Diretora Geral da FAFIRE

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