Revista CEPIHS 2
Coimbra
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2012
Ficha Técnica Diretora Conselho de Redação Conselho Editorial
Adília Fernandes
Conselho Científico
Adriano Vasco Rodrigues, Fernando Machado, Fernando de Sousa, José Marques, José Viriato Capela, Maria Norberta Amorim, Norberto Cunha
Propriedade
CEPIHS – Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social Tás-os-Montes e Alto Douro
Edição Direção gráfica e Capa
Palimage
Fotocomposição
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Apoio
CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar – Cultura, Espaço e Memória – UM); Cordeiros Galeria; Município de Torre de Moncorvo
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CEPIHS – Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social 961833810; e-mail: cepihs@gmail.com Terra Ocre - edições Apartado 10032 3031-601 Coimbra Tel./ Fax 239 087 720 e-mail: palimage@palimage.pt site: www.palimage.pt
ISSN Depósito legal
2182-0252
Data de edição
Outubro de 2012
Impressão
Artipol – Artes Tipográficas, Lda.
Adília Fernandes, Maria da Assunção Carqueja Rodrigues, Odete Paiva, Otília Lage Adília Fernandes, Albano Viseu, Antero Neto, António Pimenta de Castro, Anunciação Matos, Arnaldo Duarte da Silva, Carlos d’Abreu, Emilio Rivas Calvo, Carlos Sambade, César Urbino Rodrigues, Cristiana Madureira, Delfim Bismarck Ferreira, Fernando Machado, Fina d’Armada, João de Castro Nunes, José Eduardo Firmino Ricardo, José Luís Lima Garcia, Manuel Daniel, Maria da Assunção Carqueja e Adriano Vasco Rodrigues, Maria Otília Pereira Lage, Ricardo Silva, Rita Fernandes, Virgílio Tavares
Isabel Caldeira. Capa sobre fotografia, in Hernâni Carqueja, Papoilas e outras cores de Trás-os-Montes
322287/119
Nota – A opção pelo uso, ou não, do novo acordo ortográfico, assim como o conteúdo dos artigos publicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.
Palimage é uma marca editorial da Terra Ocre – edições
Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social Trás-os-montes e Alto Douro
Revista CEPIHS 2 Coordenação Adília Fernandes
Coimbra
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Editorial A Revista CEPIHS, tal como o CEPIHS, é um projeto concebido para construir um vínculo de caráter científico de estudos e de pesquisas e referenciar a discussão, a promoção e o desenvolvimento do conhecimento. Este número é consagrado a Abílio Adriano Campos Monteiro, ilustre conterrâneo e incontestado impulsor cultural, cuja obra congrega, aqui, um conjunto de abordagens relevantes e de matizes inovadores recorrendo, algumas delas, a material inédito facultado pela família, e com as quais se abrem os trabalhos. É inquestionável que se trata de um pequeno gesto face à necessidade de um profundo tratamento da obra deste escritor, patente num valioso legado literário multiplicado nas inúmeras modalidades do seu talento maior. Daí, felicitarmos José Eduardo Firmino Ricardo pelo consistente estudo que lhe dedica – Campos Monteiro - Domus Mea est Orbis Meus – de grande qualidade e pertinência, méritos amplamente reconhecidos. A decisão de transformarmos a apresentação da Revista CEPIHS 2 e a do livro citado, na oportunidade de uma legítima homenagem a Campos Monteiro, foi saudada e acolhida, em nome do Município de Torre de Moncorvo, pelo Senhor Presidente, Engenheiro Aires Ferreira. Consideramos ser este momento oportuno para lhe manifestarmos a imensa gratidão pelo apoio e pela presença, interessada e culturalmente significativa, em todas as nossas iniciativas. E sendo a cultura a área em que melhor nos podemos pronunciar, é de toda a justiça louvar os importantes empreendimentos que tomou sob a sua responsabilidade, CEPIHS | 2
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relevante herança de que as gerações futuras se vão orgulhar e saber usufruir para valorização própria e da região a que pertencem. Uma segunda parte da revista é composta pela heterogeneidade de temas, esmerados na apresentação teórica e científica e oferecidos por conceituados autores. O interesse que cada assunto aporta é inestimável e compõe um importante repositório de dados e de reflexões. Trazem-se contributos que vão para além dos que, até agora, partiam do habitual grupo de colaboradores e investigadores do CEPIHS. Tal facto, torna mais abrangente e rico o leque da informação aqui registada e espelha a aceitação do projeto do Centro de Estudos. Ao disponibilizarmos mais este número, fazemo-lo com elevado sentido de responsabilidade e alto grau de satisfação pelas realizações positivas em torno do nosso património histórico. Desejamos que constituam um incentivo à investigação e à sensibilização futuras para o engrandecimento da história local e regional e da memória coletiva. Aos autores, o nosso muito obrigado pela abnegação e empenho na definição histórica de uma região com um passado riquíssimo, que com eles se salvaguarda e projeta no futuro, fins que almejamos e que estão preceituados nos objetivos do CEPIHS. Estendemos tal gratidão àqueles que levaram esta publicação a bom termo, nomeadamente ao editor, Dr. Jorge Fragoso, e aos elementos da sua equipa, que a desenvolveram com aturado cuidado e qualidade, e Arquiteta Isabel Caldeira que a revestiu de uma primorosa conceção estética. Dirigimos uma palavra de igual sentir ao Agostinho Cordeiro, pela indispensável ajuda para a sua materialização. Endereçamos à família Campos Monteiro uma palavra de especial reconhecimento pela sua generosidade e claro sentido cívico, ao ceder um núcleo de valiosos documentos que integrará o já existente Fundo Campos Monteiro. Este passo, fundamental para uma melhor aproximação à obra e vida do notável escritor por parte dos interessados, faz, paralelamente, mais rico o Centro de Memória de Torre de Moncorvo.
A direcção da Revista CEPIHS 8
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AbĂlio Adriano de Campos Monteiro
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Campos Monteiro Carlos Sambade* “Tal como de antes, no fulgor das tardes” Verso dos seus últimos versos, O RaioVerde, 1933
Cidades. Lá longe, aqui perto a aldeia. Em S. Mamede de Infesta uma ribeira de águas límpidas passou, um castelo, um arco. O Campos advém-lhe, porém, de Torre de Moncorvo. Pelas escolas não vamos lá. De um modo geral ignoram-no. Dá que pensar o porquê, ainda que não seja caso único. Há quem edite um livro e fique para muitos, há quem edite cem e fique para poucos. Peneirar, sim, está bem. Neurastenia. O médico. O escritor. A partir de certo ponto, pão de pena e tinteiro, ele o confessa. Palavras registadas para aqui e para ali, jornal, revista, gazeta, espaço cénico habitado, prosa, poesia, drama, graça, melancolia, que alma, que abismos acenando em terreno direito. Uma pasta cheia para guardar. O passar dos dias comuns de par em par com uma poética e uma metafísica peculiares. Ares de serra, quartos de sentinela, pátrias de incessante procura. Girândola de anagramas, brisa que se enreda ou, para não ser bruta, alcança ao de leve o plano da rotativa e seus efeitos perscrutados, ora num acomodar, ora num rebelar. Tradição e modernidade. Traduções. Moncorvo.Viana do Castelo e seu termo. Porto e um seu arredor. Lisboa presente nem sempre pela maior razão. Abílio Adriano de Campos Monteiro. Pode ser assim, se formos na senda do seu pundonor.
___________________ * Professor; mestre em educação. CEPIHS | 2
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Campos Monteiro – diálogo com a ciência Adília Fernandes*
Resumo – A fecunda exaltação de Campos Monteiro como escritor tende a esbater as demais práticas, como se fora seu desígnio afirmar-se, apenas, enquanto talento literário. Inscrevemo-lo, aqui, na sua trajetória como médico e privilegiamos a abordagem que faz da neurastenia (tema da sua dissertação inaugural) na mesma linha de George Beard, isto é, submetendo a compreensão desta categoria nosológica a fenómenos essencialmente sociais e culturais. A “enfermidade de Beard”, que emerge nas duas últimas décadas do século XIX e é marcada pelo sintoma da exaustão mental e física, individualiza-se da doença única que a alienação mental até então representa. Nela se desenha o próprio Campos Monteiro (e também Pessoa, ou Quental). Palavras-chave – Campos Monteiro; Escritor; Médico; Neurastenia. Abstract – The prolific glorification of Campos Monteiro as a writer tends to attenuate his other practices, as if it was his fate to assert himself only as a literary genius. We mention him here in his course as a physician and we privilege his approach to neurasthenia (the topic of his doctoral dissertation) in the same line as George Beard, by submitting the understanding of this pathological category to phenomena essentially social and cultural.The “sickness of Beard”, which appears during the last two decades of the 19th century, is marked by symptoms of physical and mental fatigue and distinguishes itself from the one only illness which mental insanity represents until then. Campos Monteiro fits in it (as well as Pessoa, ou Quental). Keywords – Campos Monteiro; Writer; Physician; Neurasthenia.
______________ Nota – Este texto corresponde à comunicação apresentada nas I Jornadas de História da Medicina e da Farmácia em Portugal, Torre de Moncorvo, 2009, coordenadas pelo Professor Doutor Norberto Cunha e patrocinadas pela Câmara Municipal de Torre de Moncorvo. * Investigadora do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória / Grupo de História das Populações / Universidade do Minho. CEPIHS | 2
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Fig.1 – Abílio Adriano de Campos Monteiro, A Neurasthenia, 1902
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Abílio Adriano de Campos Monteiro ingressa na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em 1897. Termina o curso de medicina em 1902. Subordina a dissertação inaugural ao tema da neurastenia, que “tão seductoramente namorara”1 o seu espírito, e como tal a designa. Justifica esta escolha por ter sido neurasténico, doença que o afeta no ano anterior à finalização do seu curso, isto é, em 1901. Elabora o estudo, acamado. Paralelamente, em “péssimas disposições de espírito e de saúde, dispondo (...) de acanhados dotes intellectuais”, escreve Filhos de Minerva, peça de teatro em verso pensada para “solenizar formatura”, no quinto ano de Medicina, e para obter receitas com o intuito de ser fundado um sanatório para tuberculosos2. De acordo com as suas palavras, a tese é escrita sem método, sem ordem, sem unidade, tendo como desculpa não só o brevíssimo prazo em que é redigida (seis semanas) como, ainda, o estado mental em que o faz, com o cérebro “asthenisado e ferido por mil outras preocupações”3. Traz-nos, no capítulo, “Symptomatologia”, o seu próprio caso clínico, que denomina de nevrose de Beard, começando por se identificar como “A…, transmontano”4. A obra, pelo interesse que este assunto desperta na época, rapidamente esgota. É, ao mesmo tempo, atrativa na escrita e na exposição e de uma qualidade paralela à dos seus outros trabalhos.
Cf. Abílio Adriano de Campos Monteiro, A Neurasthenia – Apontamentos e opiniões, Porto, Typographia Universal, 1902, p. 19 da “Introdução”. 2 Cf. Heitor de Campos Monteiro, Campos Monteiro – o homem e o escritor (visto pelo seu filho), texto da conferência proferida na Casa dos Jornalistas e Homens de Letras, em 4 de Dezembro de 1950, p. 5. Documento gentilmente cedido pela família do escritor. Para o centenário da Escola Médico-Cirúrgica, celebrado em 1925, compõe o Auto das Três Barcas, também em verso. Idem, p. 21. Filhos de Minerva, que vem a obter sucesso, é levada à cena no Teatro de S. João, no Porto. Cf. Abílio Adriano de Campos Monteiro, Os Filhos de Minerva, Porto, Tipografia Universal, 1909, “Introdução”. 3 Cf. Abílio Adriano de Campos Monteiro, A Neurasthenia – Apontamentos e opiniões, op. cit., p. 21 da “Introdução”. 4 Idem, p. 137. 1
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A neurastenia, como entidade nosológica, é difundida a partir dos Estados Unidos, em 1869, pelo médico George Beard5. Batizada de Nervosidade Americana impõe-se contra a cultura dominante da histeria, la maladie du siècle, de passado europeu, e contra o apostolado dos médicos franceses. Em contraste com a histeria que confina, muitas vezes, com a loucura e é conotada como uma afeção essencialmente feminina, a neurastenia aponta para um quadro de exaustão física e mental e integra uma sintomatologia repartida por homens e por mulheres. A construção do conceito de neurastenia torna-se essencial para a compreensão contemporânea dos fenómenos ansiosos, que marca toda uma geração de alienistas do século XIX, preocupada com as enfermidades sine materia. Beard traz contributos precisos a este domínio, reorganizando a explicação dos mecanismos em causa à revelia dos modelos médicos tradicionais. Uma proposição importante e audaz da sua teoria é ter destacado aquela doença como resultado, sobretudo, das imposições sociais e culturais inerentes às sociedades desenvolvidas – das quais os Estados Unidos constituem como que o seu representante. Esse contexto exige um gasto adicional de energia nervosa, cuja força dinâmica não é aumentada na mesma proporção. Da “moderna” civilização (diferente das dos gregos ou romanos, daí, ser uma expressão relativa), e com impacto sobre o sistema nervoso, sucedem os adensamentos humanos, o barulho, a vida fervilhante e as exigências em relação ao tempo, fracionado em múltiplos tempos. Dela decorrem, ainda, o incremento das ciências, a condescendência com as paixões, a atividade mental das mulheres e a difusão veloz de diferentes ideias. Todos estes fatores alteram, profundamente, a configuração do mundo e o lugar do homem nele. Fazem substituir os valores tradicionais, definidos e estáveis, por novos e não confiáveis valores, traduzindo-se, também, numa obstinada sensação de despertença Georges Miller Beard, neurologista novaiorquino, difunde a neurastenia como diagnóstico. Cf. George Miller Beard, “Neurasthenia, or nervous exhaustation”, in Boston Medical and Surgical Journal, vol. 80, Boston, pp. 217-221, 1869. A designação de neurastenia é, contudo, atribuída a Edwin H. Van Deusen, diretor do Michigan Asylum for the Insane. Cf., do autor, “Observations on a form of nervous prostation (neurasthenia) culminating in insanity”, in American Journal of Insanity, vol. 25, NewYork, Utica State Hospital Press, 1869, pp. 445-461. 5
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e de perda da identidade individual e histórica6 que abala a estabilidade psíquica e todas as esferas da expressão humana. A literatura é, especialmente, afetada. A tradição literária ajusta-se à inquieta perceção dessas mudanças e da insegurança que geram. Para os escritores do século XIX, a modernidade é tensão e o ambiente urbano o seu mote e discurso. Esta diferente manifestação recebe a influência de Baudelaire, precursor da linguagem moderna, que deixa uma obra construída sobre a experiência da vida na cidade, simultaneamente sedutora, em especial os seus mauvais lieux, e repulsiva. Colhe-a transmudado no flâneur, caminhante solitário que deambula entre a multidão e a observa aleatoriamente7. Ao épouser la foule, gesto que se repete em Balzac ou Victor Hugo, Baudelaire capta as pressões desse cenário e critica o progresso que a urbanidade comporta, porque atira para o turbilhão uma sociedade em desvario e sem referências8. Transpõe para a sua poesia os “êxtases febris” do universo instantâneo, caótico e transitório que o envolve, em imagens carregadas de spleen9, volúpia, luxúria, doença e morte, que a obra poética Les Fleurs du Mal (1857) tão arrebatadoramente retrata. A estes temas acomodam-se os escritores e os poetas10 que enfileiram no decadentismo, esteticismo com estreitas ligações ao simbolismo (de que Baudelaire é, igualmente, precursor) e impressionismo, produtos da mesma atmosfera sociocultural. Cf. George Miller Beard, “A nervosidade americana”, in Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 5, S. Paulo, Associação Universitária de Psicopatologia Fundamental, 2002, (pp. 176-185), p. 176. 7 Cf. Walter Benjamin, Libro de los Pasages, Madrid Akal, 2007, p. 422. 8 Idem, p. 47. 9 Tal como o blasé do sociólogo urbano Georg Simmel, presente na obra A metrópole e a vida mental (1903), o spleen (melancólico), ou “L´Ennui, fruit de la morne incuriosité”, adota uma atitude de desinteresse pelo que o rodeia, como forma de preservar a sua autonomia face à sombria realidade urbana. Charles Baudelaire, “Spleen”, in Las flores del mal, Madrid, Nórdica Libros, 2007, p. 165. 10 Fernando Pessoa, entre Novembro de 1905 e Fevereiro de 1906, escreve poesia sob a influência de Baudelaire, para além da de Maurice Rollinat, autor de Les Nevroses (1883). Este autor apresenta-se como discípulo de Baudelaire e alinha no movimento literário decadente. Cf. Jerónimo Pizarro, Fernando Pessoa: entre génio e loucura, Edição Crítica de Fernando Pessoa – Coleção Estudos, vol. III, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2007, p. 35. 6
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A apropriação da “enfermidade de Beard” – como ficou conhecida a neurastenia – ocorre em Portugal, simultaneamente, com o desassossego de muitos intelectuais face à decadência nacional. A consciência da ruína cultural instalada, em estreita relação com a descrença no progresso e na felicidade e com o declínio do poder político, arrasta mal-estares, neuroses e desesperos, transferidos para uma intrincada imagística e para um vocabulário extravagante, rico e fechado, compondo o decadentismo. Esta corrente literária caracteriza-se pelo cansaço da civilização e pelo sentimento de pessimismo. Dela comunga Fernando Pessoa e a seu propósito elabora, na época do Orpheu (1915), algumas reflexões. Diz, por exemplo: “Temos a decadência proveniente da falência de todos os ideais passados e mesmo recentes. Temos a intensidade, a febre, a atividade turbulenta da vida moderna. Temos, finalmente, a riqueza inédita de emoções, de ideais, de febres e de delírios que a flora europeia nos traz”11. E, segundo Luís de Montalvor, também um autor decadentista: “A vida não vale pelo que é mas pelo que dói”12. A diferente atitude literária decorre, por tal, de uma particular sensibilidade na apreensão e vivência da nova e complexa realidade desenhada pela modernidade. Revela-se em Antero de Quental (1842-1891) e em Fernando Pessoa (1888-1935), entre outros, numa reconhecida componente histérica neurasténica, vertida na emotividade, na falta de sentido para viver, no pendor para a morbidez, particularidades que as suas produções denunciam. Antero, na sua carta autobiográfica, de maio de 1887, confessa ter-se deixado abater por uma enfermidade nervosa, em 1874, que o havia colocado perante um fim próximo, uma existência incompreensível e um passado vazio13. No ensaio intitulado, Os dois Anteros (1934), António Sérgio dá dele uma visão dualista, seguida de forma mais ou menos matizada por outros críticos que abordam a sua vida e obra. Identifica-o como Cf. Jacinto do Prado Coelho, “Decadentismo”, in Jacinto do Prado Coelho (dir.), Dicionário de Literatura, vol. 1, 3.ª ed., Porto, Figueirinhas, 1987, p. 249 12 Cf. Luís de Montalvor, “Tentativa de um ensaio sobre a decadência”, in Centauro, n.º 1, Lisboa, Contexto Editora, 1982 [1916], pp. 7-8. 13 Cf. Antero de Quental, Cartas, Lisboa, Comunicação, vol. II, 1989, p. 837. 11
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um ser patológico, dividido em dois personagens incompatíveis14. Na Nosografia de Antero (1894), Sousa Martins fala do filósofo de “alma ancestralmente escandinava” e do poeta de “temperamento maternalmente histérico”. A sua histeria é confirmada por Charcot, o grande mestre desta enfermidade no século XIX, que Antero visita em 1877, em Paris, em Salpêtrière, asilo e laboratório de enfermidades nervosas (igualmente procurado por Zola, pelos Goncourt e outros). Esse episódio acontece, tal como a sua carta autobiográfica comprova, depois de ter caído “num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungente quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crêr placidamente e obedecer sem esforço a uma regra conhecida”15. Sousa Martins completa aquele diagnóstico. Estando a par das realizações de Beard, não hesita em chamar neurastenia à perturbação que afeta Antero, sem nome e confundindo-se com as espécies afins até à intervenção daquele 16. O diagnóstico de Antero é o antecedente mais importante da “auto-interpretação” de Fernando Pessoa e vem, paralelamente, na sequência do seu interesse pelos temas sobre génio e loucura e pelo temor de ser atingido por esta17 (analisa Antero como um caso notável da relação entre o génio e uma constituição nervosa18). Assume-se como histérico neurasténico ao ter em conta os fundamentos psiquiátricos dos seus heterónimos. Sobre a sua origem, regista na carta a Casais Monteiro, datada de 13 de janeiro de 1935: “Não sei se sou simplesmente hysterico, se sou, mais propriamente, um hysterico-neurasthenico. Tendo para esta Cf. António Sérgio, “Os dois Anteros (o luminoso e o nocturno)”, in Ensaios, vol. IV, Lisboa, Tipografia Seara Nova, pp. 151-189. 15 Cf. Jerónimo Pizarro, Fernando Pessoa: entre génio e loucura, op. cit., p. 136. 16 Cf. Sousa Martins, “A Nosografia de Antero”, in In Memoriam, ed. facsimilada, Edição Presença/Casa dos Açores, 1993, pp. 218-314. 17 Em 1908, Pessoa diz: “One of my mental complications – horrible beyond the words – is a fear of insanity, wichw, itself is insanity”. Cf. Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, edição de Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1966, p. 6. De 1911 a 1935, ano da sua morte, escreve sobre génio, loucura, evolução e degenerescência, depois de inúmeras leituras que faz na área da psicopatologia. O interesse por esta área relaciona-se com a preocupação pela sua saúde mental e o temor da demência. Cf. Jerónimo Pizarro, Fernando Pessoa: entre génio e loucura, op. cit., p. 47. 18 A Jaime Cortesão também interessa Antero, como o prova a dissertação que apresenta, em1910, à Escola Médico-Cirúrgica. Cf., do autor, A arte e a Medicina. Antero de Quental e Sousa Martinz, Coimbra, Tip. França Amado, 1910. 14
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segunda hypothese (…) a origem mental dos meus heteronymos está na minha tendencia organica e constante para a despersonalização e para a simulação. (...) Álvaro de Campos, [é] (o mais hystericamente histérico de mim)”19. Com Campos, projeta-se para o alto modernismo. Em 1907, diagnostica já, em si, um fundo traço de histeria e sugere que a neurastenia transtorna a sua organização mental20. Torturado pela ausência de ideias, confessa a Mário Beirão, em 1913, que a literatura não flui, antes “vae da bruma – para a bruma – pela bruma”21. Para Pessoa, “O histerismo é basicamente emotivo. A epilepsia é basicamente impulsiva. A neurastenia é basicamente intelectual”22. Os estados neurasténicos favorecem, portanto, os indivíduos dotados para o pensamento. Deduz que, associados aos histéricos, e quando concorrem com a superioridade intelectual, facultam a aparição dos grandes génios, como Shakespeare23. Pessoa, diz ser “um temperamento feminino com uma inteligência masculina”24, expressão que nos remete para a presença das questões de género quanto aos “males nervosos”. Estes são entendidos de modo distinto, quer nas suas causas, quer nas manifestações e tratamento, quando são remetidos para um sexo ou para o outro25. Cf. Jerónimo Pizarro, Fernando Pessoa: entre génio e loucura, op. cit., p. 118. Idem, p.74. 21 Cf. Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, op. cit., p. 29. 22 Idem, “De la histeria a la neurastenia (Quental y Pessoa)”, in Literatura: teoria, história, crítica, n.º 6, Rio de Janeiro, Universidade do Rio de Janeiro – Faculdade de Ciências Humanas, 2004, (pp. 221-233), p. 229. 23 Pessoa analisa, entre outros, o temperamento de Shakespeare (com o qual revela ter afinidades, o mesmo acontecendo com Rousseau), um temperamento histérico-neurasténico, como conclui. A coexistência de génio e de neurose, neste autor inglês, está patente na sua poesia dramática e “do mais alto grau”, segundo Pessoa. Cf. Jerónimo Pizarro, Fernando Pessoa: entre génio e loucura, op. cit., pp. 157-158. 24 Idem, p. 230. 25 Beard, que acrescenta a atividade mental das mulheres às razões que arrastam os males nervosos da população e que é fruto, ainda, da civilização, aponta um tratamento diferente para elas e para os homens: para estes, exercícios, para as mulheres, o descanso, vida doméstica e afastamento de ocupações mundanas e intelectuais. As causas também são distintas: as dos homens ligam-se ao excesso de trabalho e aos vícios; as delas, ao frágil equilíbrio nervoso. Os homens são tratados como tendo a doença interrompido, apenas, a sua vida produtiva, a cura para as mulheres representa a acomodação ao eterno decoro feminino, através de um regime de quietude e de reclusão que lhes é prescrito, afastando-as do espaço público. Esta terapêutica “género-divergente”, face a uma doença decorrente dos novos papéis que a ambos os sexos se oferece, agora, desempenhar, vai ser objeto dos 19 20
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A abordagem sociocultural introduzida por Beard no campo da neurastenia, enquadrada na omnipresença da civilização (determinante sobre outras causas que não exclui, como as endógenas), é visível em Freud, em 1908, no artigo “Moral sexual civilizada e nervosidade moderna”. Afirma que a civilização é intrinsecamente patogénica, em resultado, sobretudo, da restrição social que a moral sexual impõe. Estes argumentos vão ser amplamente desenvolvidos nos seus grandes textos posteriores, Futuro de uma ilusão (1927) e Mal-estar na civilização (1930). Também Campos Monteiro refere, no seu trabalho, que a neurastenia é uma doença “essencial e immediatamente derivada da civilização moderna, producto da intensa e vibrante elaboração mental do século dezenove”26. Neste século, “(...) horisontes vastíssimos se abriram aos olhos dos investigadores. A Fé (…) foi cedendo terreno, recuando passo a passo deante da inflexível Razão. A Sciencia, livre de peias e de entraves, lançou-se abertamente no caminho das descobertas. A natureza, o evangelho eterno e verdadeiro, (…) abriu a arca santa dos seus mysterios aos olhos ávidos dos investigadores. Armado do escaphandro do raciocínio, o sábio immergiu no seio do desconhecido, e trouxe á luz da analyse esses monstros ignorados e temerosos: as Causas, os Effeitos e as Origens...”27.
Com o recurso a um excerto do poema, A Morte de D. João, de Guerra Junqueiro, reafirma que
estudos de género. A produção literária contempla-a, do mesmo modo. Exemplo disso é a obra The yellow wallpaper (1892), da escritora Charlotte Perkins Gilman, também ela paciente e a quem se prescreve “uma vida o mais doméstica possível” e “nunca mais tocar a pena, pincel ou lápis”. A autora condena, nesta e em outras obras, a terapêutica que lhe é aplicada através da trama que cria, colocando a protagonista à beira da insanidade, sufocada pelo isolamento a que é sujeita. Cf. Rafaela Teixeira Zorzanelli, “Neurastenia”, in História, Ciência, Saúde – Manguinhos, vol. 17, Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Instituto de Medicina Social, 2010, (pp. 431-446), p. 439. 26 Abílio Adriano de Campos Monteiro, A Neurasthenia (Apontamentos e opiniões) – Dissertação inaugural, Porto, Typographia Universal, 1902, p. 23. 27 Idem, p. 33. CEPIHS | 2
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“O pensamento humano Mergulhou como um Deus nas grutas do oceano, Embebeu-se no azul, andou pelo infinito, Interrogou a historia, os ventos e o granito, Todas as creações, todas as creaturas, Vermes, religiões, abysmos, sepulturas”28.
Depois de enumerar algumas das principais descobertas e invenções no âmbito das diversas ciências, Campos Monteiro assegura que a energia intelectual dispendida em cem anos bastaria para aniquilar o universo se ele fosse destrutível. Contudo, acrescenta, “trabalhou-se muito depressa e muito intensamente”. A luta pela sobrevivência é acompanhada pelo empenho em saber mais, fatores etiológicos cuja fusão resulta na exaustão e na astenia profunda dos cérebros. Assim, a histeria, a nevrose mediévica alimentada na sombra dos claustros pela hiperemotividade afetiva, cede o passo à neurastenia, a nevrose moderna, ou do “esfalfamento”, criada nos laboratórios pela hiperemotividade mental29. Acrescenta que esta se enraíza nos primórdios da Humanidade. É esquematizada por Buda, inativo e incapaz, elevando o não-ser à categoria de modelo perfeito e supremo e, também, por Jesus Cristo que, impossibilitado de alcançar o glorioso ideal de paz e de justiça, entrega o seu corpo à vingança da ordem e da religião ultrajadas. Induz, que se em “todas as epochas houve obreiros do pensamento”, em todas elas deve ter havido neurasténicos. São, contudo, casos que de forma alguma vão tomar o caráter de generalização da civilização moderna que, mais do que nunca, afasta a Humanidade do fantástico ideal de felicidade assente na saúde. Afirma que já nos tratados de Hipócrates, “o velho repositório de coisas sempre novas”, se encontra descrita uma doença que representa o sentir mórbido que veio a chamar-se neurastenia. Atravessa séculos associada a outras neuroses, pois todas cabem nos seus limites sintomáticos, apesar das tentativas para se isolar cada uma delas30.
Ibidem. Idem, p. 39. 30 Idem, pp. 41-42. 28 29
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Campos Monteiro apresenta as conceções dos especialistas quanto às diferentes designações, sintomas e etiologias, que ora esclarecem, ora entenebrecem a confusão estabelecida, multiplicando até ao infinito as modalidades clínicas. Cita os nomes mais ilustres. Entre a maioria deles é comum a referência ao tipo de indivíduos predispostos à neurastenia, isto é, les gens de lettres, os que se dedicam a grandes meditações, os que correspondem a espíritos nervosos, desordenados, irrequietos, os de exercício intelectual excessivo. Só em 1869, quando Beard a despe de sintomas que não lhe pertencem e a batiza de neurastenia, é que esta enfermidade adquire a pureza da individualidade autónoma. Para Campos Monteiro, este aspeto é o seu maior título de glória31. No capítulo Etiologia discorre quanto à sua própria classificação dos agentes da doença, depois de depurar os que os diversos médicos e reformadores, no decurso do tempo, apontam. Começa pela hereditariedade que considera “o phantasma negro, summa biologica da transmissão biblica do pecado original, o qual nos leva a erguer um brado de revolta contra a fatalidade do destino, que nos força a compartilhar dos estados pathologicos dos ascendentes”. Assim, continua, perpetuar os estados patológicos através dos filhos é prolongar na sombra o crime de os ter, pois já trazem consigo, muitas vezes, os germens da morte32. Assegura, pela análise que desenvolve, que a neurastenia ataca, de forma indiferente, ambos os sexos. Admite, contudo, que o sexo masculino é, naturalmente, mais atingido, porque “Emquanto o feminismo não vencer o preconceito que relega as mulheres para o segundo plano da civilisação, o trabalho intellectual dos homens há de ser muito mais intenso” que o delas. Daí, “achando trancada nas mulheres a porta da Intelligencia”, a doença só consegue atingi-las através do sentimento. “Antes assim”, remata. O estudo, na idade em que melhor se percebe a necessidade de preparação para a vida, e as profissões que exigem a concentração da atenção e da vontade, podem levar a neurastenia a irromper com todo o seu 31 32
Idem, pp. 43-53. Idem, p. 60.
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“cortejo de horrores”33. O excesso de fadiga intelectual é responsável por noventa por cento dos estados neurasténicos, asserção que nenhum sábio ou ignorante refuta e que está incutida, mesmo, “na plebe, que não estuda pathologias, mas em cuja alma de vidente brilha a intuição de muitas verdades”34. Nas notas que deixa sobre a educação, assevera que esta tem uma significativa influência no aparecimento de neuroses, responsabilizando as mães pelas muitas enfermidades que atacam os filhos quando se tornam adultos. No entanto, diz não conhecer nada de mais lastimosamente depauperador que os colégios, que funcionam segundo rotineiros processos que “imperam soberanamente” nos costumes. E enquanto lá fora as educações sadias e bem “methodisadas” criam homens, a rotina em Portugal gera “mostrengos”, lamentável contraste que Eça tão bem narra nos Maias35. Percorre as raças com propensão para a neurastenia. Destaca os ingleses, os alemães, os norte-americanos e os russos como os povos com que mais neurasténicos devem contar, porque estão na vanguarda do progresso com uma enérgica atividade nas ciências e nas artes. Conclui que passados cem anos, a partir da data em que escreve, os patologistas talvez registem que os “japonezes são muito dados á neurastenia”36. Passa em revista as teorias sobre a atuação dos diferentes agentes “(tantas como as estrellas do céo!)”. Elege a de Beard, que faz consistir “na fadiga intensa, acompanhada de fraqueza persistente, de perversões da sensibilidade e desiquilíbrio nutritivo-funccional do systema nervoso”, como a que mais o satisfaz37. Finalmente, divide os sintomas da neurastenia em três categorias: perturbações “cerebro-psychicas”, da vida vegetativa e da vida de relação. É à primeira categoria que correspondes o seu quadro clínico, caracterizado por um conjunto de indícios que o fazem passivo e inútil para a sociedade e lhe imergem o espírito em pressentimentos funestos e suIdem, p. 65. Idem, p. 72. 35 Idem, p. 75. 36 Idem, p. 68. 37 Idem, p. 86. 33 34
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perstições ridículas. Expõe esse quadro na observação “(pessoal)”38 que faz, respeitante a um momento em que “a natureza mórbida do phenomeno” mais duramente se declara. Dá a conhecer que “A..., transmontano” descende, pelo lado do pai, de uma velha família fidalga, entroncando, pelo lado materno, na raça judaica. Os avós paternos e maternos assistem à perda de grande número dos seus “muitos” filhos. A morte dizima-os, furiosamente, ignorando-se, na maior parte dos casos, a doença que a tal conduz. Um deles vem a morrer de lesão cardíaca, tal como Campos Monteiro. Tem uma irmã que a neurastenia afeta. “A” sai aos oito anos da sua terra natal com o diploma da instrução primária. Entra num colégio onde fica enclausurado durante seis anos e que lhe deixa uma má memória. Regressa ao lar paterno, enfezado e anémico. Revigora “n´uma doce preguiça intellectual”, durante um ano, no fim do qual vai para um grande centro frequentar um curso superior. Estuda pouco mas devora toda a literatura nacional e estrangeira e, ao longo de muito tempo, “n´um desvario de demente”, prodigaliza a sua inteligência nos jornais, no livro, no teatro e em outras artes. Depois de quatro anos, cansado e com a alma abalada por uma paixão amorosa, conforta-se com a doce serenidade burguesa de um lar sossegado e feliz. Casa aos vinte anos e prossegue o curso com entranhada aplicação, dada a responsabilidade que agora incumbe à sua condição de chefe de família. A literatura continua a atraí-lo, lê muito, trabalha excessivamente. No final do curso surgem alterações cardíacas, perde a alegria de que a puberdade o reveste (fora melancólico na infância), invade-o um tédio soberano e preguiça mental, não se lembrando à noite do que aprende de manhã e, principalmente, tem uma sensação de vazio. Esta é situação que mais o apoquenta, porque fica impedido de assimilar o que ouve e lê. Tenta entender o que se passa através da consulta de livros de medicina, devorando todos os que lhe vêm à mão, sem critério, desordenadamente. Perde-se neste mare magnum de considerações que se contrariam entre si, não o conduzindo a conclusão alguma.
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Cf. Observação, op. cit., pp. 137-153.
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Na esperança da cura, muda de ares “deixando a família, quasi sem pena, feliz e radiante”. Regressa a casa depois de um mês passado no campo com a irmã, que, insistentemente, interroga sobre a doença de que padecera. Os sintomas agravam-se e cada dia adota um diagnóstico diferente. Arrasta os seus passos, durante meses, pela longa via dolorosa de um estranho sofrimento, acredita estar perto do fim, ideia que o invade pungentemente e que lhe arrasa os olhos de lágrimas pela incerteza do futuro dos filhos perante a sua falta. O pensamento rodopia, nas longas vigílias noturnas, entre propósitos e “castellos no ar”, idealizando-se saudável no seio dos afetos familiares. Raciocina argutamente, talha projetos e esboça obras grandiosas, extraordinárias faculdades que o novo dia anula. Escreve muito, apesar de doente, com a consciência de que o faz sem as antigas capacidades de trabalhador e de intelectual. Dotado de uma certa facilidade oratória, demora, agora, a frase por não encontrar facilmente o termo adequado, numa amnésia que vai alastrando-se a outras esferas. Torna-se tímido e supersticioso. Acredita nos pressentimentos como num dogma e aterra-o ter nascido numa terça-feira. Desvia o olhar ao passar por um campo santo e o encontro com um enterro, ou com um caixão mortuário, provoca-lhe a impressão de um desastre irremediável. Evita ver fotografias de familiares desaparecidos, não se deita de costas, não põe as mãos sobre o peito nem paraleliza as pernas no terror que lhe causa a semelhança, ainda que fortuita, com a posição de um defunto. No auge do desânimo, deposita na divindade toda a esperança de cura, com uma devoção especial pela Virgem. Faz votos ardentes, promessas sem conta. Reza muito, especialmente, a Salvé-Rainha, oração em que encontra uma doçura e estilo inigualáveis, e murmura o soneto de Antero, ÀVirgem Santíssima, que começa com o verso “N´um sonho todo feito de incerteza”. Estranhamente, quanto mais o seu cérebro se “hipostheniza” mais o seu espírito se lança em cogitações científicas, procurando explicar todos os fenómenos da natureza, teorizando copiosa e, por vezes, confusamente.
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Descobre, entretanto, com a ajuda dos tratados que consulta, que a sua doença provém dos antepassados, isto é, que padece de neurastenia hereditária. Nefasto problema que regista em verso e que, ao contrário de qualquer outra experiência literária, irrompe sem dificuldade. Nesta poesia transparece a incoerência, o dualismo e a ânsia de uma razão. “Mas donde venho eu? Quem é que eu reproduzo No circulo da Vida, onde nada varia? Quem foi o outro que, num passado confuso, Soffreu esta incoherencia, esta neurasthenia? (...) Meu Deus! Meu Deus! Saber quem fui! Saber quem sou! Saber que mal é este e o que desejo emfim! Dou-te a vida... Mas não, que a offerta que te dou Vale pouco, senhor, para quem soffre assim! (...) Manda-me a paz, a quietação, o olvido, a fé! Balsamisa, senhor, o trágico viver D´um triste filho teu, que não sabe quem é, E não sabe tampouco o que quizera ser!”
Após alguns meses, os sintomas psíquicos desvanecem-se, embora saiba que só numa prolongada estase, meramente animal, encontrará o restabelecimento completo. Campos Monteiro finaliza a dissertação, referindo que é nas classes menos privilegiadas da fortuna que a neurastenia assenta arraiais, uma vez que a fidalguia portuguesa não prima, salvo honrosas exceções, pela demasia de cultura intelectual. São os indivíduos que cultivam as chamadas profissões liberais – o estudante, o advogado, o médico, o poeta, o jornalista, o músico, o escultor, o pintor e o sábio – que a neurastenia ama, a quem subtrai as faculdades de atenção e raciocínio mas que, cruelmente, lhes respeita a consciência, logo, o sentido da sua inutilidade. Pertencem às classes menos abastadas, circunstância que torna a terapêutica difícil e impossível a profilaxia. Numa nação, diz, em que o CEPIHS | 2
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Estado parcialmente recompensa os seus servidores, num país em grande parte constituído por analfabetos, onde as obras de ciência e de arte dormem um sono tranquilo e perpétuo nos museus municipais ou nos livreiros, quem se atreverá a aconselhar o artista ou o escritor que trabalhe menos, que descanse a espaços, se esse descanso abre a porta, a breve trecho, a um espetro terrível que se chama miséria? Mas, mesmo que alguma coisa se faça no que respeita à profilaxia, “(...) a Civilização continuará seguindo direito ao futuro, esmagando pedaços da Humanidade (…). Nas convulsões da lucta pela vida, na inapagável sede de saber, a espécie humana irá definhando, desenvolvendo a alma e atrophiando o corpo, tendendo, progressivamente, para a espiritualisação, como se o homem do futuro devesse ser apenas um enorme cérebro, servido por um minúsculo appendice representativo do resto do organismo. E será então verdade, como uma gélida escola philosophica pretende, que a Humanidade ha de extinguir-se precisamente ao attingir a meta da perfeição suprema?”39.
Ou, pelo contrário, “dar-se-ha a reacção, o homem retrogradando á treva medievica, abandonando o formoso ideal cuja perseguição se vae cada vez mais erriçando de perigos, e a sciencia voltará a ser o privilegio apenas de meia dúzia de eleitos?”40. Talvez esta última hipótese – reflete – traga a felicidade aos portugueses, que qualifica de raça degenerada e enfraquecida, conjunto que forma uma Pátria mais enfraquecida e degenerada ainda41.
Idem, p. 185. Ibidem. 41 Idem, p. 186. 39 40
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Das condolências ao busto de Campos Monteiro Arnaldo Duarte da Silva*
Resumo – Foi médico de profissão e nasceu em Torre de Moncorvo. Defendeu a sua tese sobre Neurastenia, doença que o dominava. A inesperada morte de Campos Monteiro foi muito sentida. Perdia-se, assim, o poeta, o escritor, o romancista, o dramaturgo, o conferencista, o jornalista, o homem. Os jornais e, sobretudo, a Civilização, Grande Magazine Mensal, anunciaram a sua perda de imediato, em registos de pesar. Louvaram, paralelamente, a grandeza humana e literária que o caracterizava. No Porto, passados quatro anos, iniciaram-se as homenagens de saudade a Campos Monteiro, promovidas pelo Grupo dos Modestos. Torre de Moncorvo eternizou-o com um busto que colocou em frente ao edifício da Câmara Municipal. Palavras-chave – Campos Monteiro; Homenagem; Monumento; Torre de Moncorvo. Abstract – He was a physician born in Torre de Moncorvo. He wrote his dissertation on Neurasthenia, the illness that affected him. The unexpected death of Campos Monteiro was deeply felt. The poet, writer, novelist, playwright, lecturer, journalist, the man, was gone. The newspapers, and above all the Civilização, and Grande Magazine Mensal announced his death immediately, in the form of testimonials of grief. But they also praised his human and literary greatness, his characteristic. In Porto, four years later, tributes of saudade of Campos Monteiro were initiated and promoted by the Grupo dos Modestos. Torre de Moncorvo immortalized him with a bust placed in front of the Town Hall. Keywords – Campos Monteiro; Homage; Monument; Torre de Moncorvo. ________________
*Professor; diretor e proprietário do Núcleo Museológico de Fotografia do Douro Supe-
rior, Moncorvo. CEPIHS | 2
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Alguém, atormentado com a notícia, do dia 4 de Dezembro de 1933, subiu à torre de Igreja Matriz e tocou a finados. Findara a vida de mais um e, rapidamente, se alvitrou que havia sido o Dr. Abílio Adriano de Campos Monteiro, cuja presença vincou a vida dos seus conterrâneos. “E com ele, com a sua alma, partiu também, para não mais voltar, um bocadinho da minha primeira mocidade”1. Antes da sua morte, ainda escreveu este significativo poema2: “Se da desgraça a indómita rajada Sobre ti desabar, batalhador, Ergue essa fronte altiva e iluminada, Crava os olhos na abóbora estrelada, Morre lutando e recalcando a dor.”
Fig. 1 – Última fotografia de Campos Monteiro
O Comércio do Porto dá ênfase ao seu falecimento, em 5 de Dezembro, e ajuda a promover uma condigna homenagem à memória do saudoso literato, a fim de se erigir um busto em bronze numa das praças de Moncorvo. A presidir à Comissão para angariação de fundos, ora então constituída, encontrava-se António Alberto Margarido Pacheco e António Balbino Rêgo, diretores de serviços policiais, respectivamente, do Porto e Lisboa, e o abade José Augusto Tavares. Faziam parte, ainda, António José Martins, escrivão de direito, aposentado; Amadeu Camilo de Andrade, professor; Claudino Augusto Chaves de Oliveira Pereira, solicitador; António Augusto Serra, secretário militar; António Marrana, advogado, e Fernando de Araújo Lima, “Campos Monteiro, o grande escritor português era um amigo dos novos”, in revista Civilização, n.º 93, Porto, Editor Heitor C. Monteiro, 1936, p. 75. 2 Este poema consta do convite e programação da homenagem organizada pelo Grupo dos Modestos. Sem título. 1
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Guilherme de Castro Leandro, aluno da Faculdade de Engenharia do Porto. Mas, se a Comissão dava os primeiros grandes passos na angariação de fundos, tendo continuidade até à cerimónia final, em Torre de Moncorvo, a revista Magazine Civilização, da qual Campos Monteiro era diretor, fez corresponder a edição do mês de Janeiro, n.º 64, a uma homenagem ao homem e ao escritor. Em nota da redação, refere-se que Campos Monteiro sempre foi tido por pautar a sua direção pela neutralidade, não agredindo pessoas ou crenças. Era tido como um literato afável e homem de coração. Armando Gonçalves, amigo pessoal, anicha palavras sentidas: “A notícia da sua morte humedeceu-me os olhos (...). Campos Monteiro era um conversador admirável, fluente, cheio de vivacidade que nunca aborrecia”3. Foi com belas palavras, mas muito magoadas, que alguns dos seus amigos escreveram “viçosos feixes de trechos enternecidos, de emoções sinceras”4. Otávio Sérgio, seu colaborador, regista: “A morte, traiçoeira, como ave de rapina insaciável, abriu as negras asas e caiu fundo, num ímpeto sanguinário, sobre Campos Monteiro”5. José Maria Ferreira de Castro, um dos maiores vultos da cultura portuguesa, talentoso escritor, precursor do neo-realismo, adapta o copioso discurso a esta simples frase, quando manifesta a dor pela morte de amigo: “ A figura de Campos Monteiro não cabe em poucas linhas”6. Joaquim Costa, médico e amigo pessoal, previu a sua morte, traçada pelo seu aparelho circulatório. Considerava-o um condenado porque ele sabia, e bem, a verdade da doença de que padecia. Enquanto colega na Escola Médica, mesmo em reuniões agitadas, transmitia “expressões de bom senso, de inteligência e fidalguia moral. Era sempre escutado com respeito e interesse”7.
Armando Gonçalves, “Palavras de saudade”, in Civilização, n.º 64, op. cit., Janeiro de 1934, p.30. 4 Nota da redação, “Dr. Campos Monteiro”, in Civilização, n.º 64, op. cit., p.10. 5 Octávio Sérgio, “Crónica do mês”, in Civilização, n.º 64, op. cit., p. 12. 6 José Maria Ferreira de Castro, “Campos Monteiro”, in Civilização, n.º 64, op. cit., p. 18. 7 “Um forçado das letras”, in Civilização, n.º 64, op. cit., p.19. 3
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Fig. 2 – Campos Monteiro, no primeiro plano ao centro, aquando da ida da Tuna Académica do Porto, que presidia, a Salamanca
Tomás Ribeiro, advogado, poeta e dramaturgo, intitula o seu testemunho ao homenageado, “Um amigo que nunca vi”8, e plasma o seguinte: “Sou o único em cuja lembrança não perdura amargamente a sua imagem viva. Talvez, assim, o sinta menos longe, de cada vez que reler páginas que me encantaram, cartas que me prenderam, versos a que devi tanta emoção”.
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Tomás Ribeiro, “Um amigo que nunca vi”, in Civilização, n.º 64, op. cit., p. 26.
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O seu filho, Heitor de Campos Monteiro, participou com profunda dor com este belo texto dedicado ao pai9:
Fig. 3 – Heitor de Campos Monteiro, palavras de pesar pela morte do pai
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Heitor Campos Monteiro, “Meu pai”, in Civilização, n.º 64, op. cit., p. 16.
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O outro filho, Germano de Campos Monteiro que, ao escrever na revista Civilização, sob o título, “Falar dele”10, assina Campos Monteiro, Filho, verte igual sentimento de profunda perda: “Morreu meu pai. Caíu rígido, altivo, como altivo cai o sândalo humbroso que a tormenta feriu”. Com ele, acrescenta, “levou a sua vida inteira a perfumar o ambiente, este ambiente terreno tão cheio de misérias e mesquinhices. E como o sândalo, também o seu perfume perdurará por muito tempo, suave, inebriante, o perfume da sua vasta obra inspirada e sã”. Sabia que seu pai estava a preparar um romance passado e vivido entre montes moncorvenses, talvez novos “ares da sua serra”, na altura em que a morte o acometeu. E remata, num tom que suscita grande curiosidade: “E perante um tão entranhado amor da terra, um amor que dava aos seus olhos glaucos cintilações estranhas quando de Moncorvo falava, é natural, é humano que eu, como seu filho, faça a mim próprio, esta simples pergunta: como retribuirá ela, a terra que o viu nascer, a sua «eterna namorada», a um amor tão grande?”.
Ao querer acompanhar os sentimentos de dor e saudade por Campos Monteiro, também Alberto Bessa, distinto escritor e jornalista, afirmou: “Aqui venho, pois trazer as minhas pobres flores, enfileirando na romagem piedosa dos que o conheceram e apreciaram os fulgores do seu talento (…)”11. Sempre o elegeu como trabalhador infatigável e escrupuloso na sua existência. Muitos, muitos mesmo, quiseram homenagear com a pena, o médico, o amigo, o companheiro, o homem bom. Destacam-se, entre outros, Pinheiro Torres, professor, crítico literário e tradutor; Alfredo de Reguengos, poeta; Severo Portela Júnior, pintor; António Rocha, etnógrafo, arqueólogo, bibliotecário e naturalista; José Agostinho, militar de carreira, metereologista e naturalista; Augusto César Moreno, professor e linguista (natural de Lagoaça, Freixo de Espada à Cinta); Carlos Passos, historiador, jornalista e publicista; Manuel Anselmo, jornalista; Aurora Jardim Aranha, escritora; Ludovina Frias de 10 11
Germano de Campos Monteiro, “Falar dele”, in Civilização, n.º 64, op. cit., p. 15. Alberto Bessa, “O meu preito”, in Civilização, n.º 64, op. cit., p. 28.
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Matos, poetisa; Marta de Mesquita da Câmara, professora, poetisa, jornalista e escritora; Visconde de Castelões, engenheiro e escritor; Antero de Figueiredo, professor e escritor. Enquanto a Comissão prosseguia na angariação de dinheiro, sobretudo em listas subscritas em Torre de Moncorvo e no Porto, no ano de 1937, continuam a publicar-se notícias sobre Campos Monteiro, como a que aparece no dia 13 de Fevereiro, no Comércio do Porto, que refere que era tido como “homem de belíssima alma e do coração do mais puro oiro”, em artigo intitulado “Justíssima homenagem póstuma”. Também o Grupo dos Modestos, do Porto, em folheto personalizado de consagração ao Dr. Campos Monteiro, que inclui uma fotografia e respetivo programa das homenagens, endereçado ao Engenheiro Guilherme de Castro Leandro, o caracteriza como “Poeta Genial – Escritor-Teatral por excelência – Médico Distinto – Alma de Eleição – Grande Apóstolo do Bem”. Foi no dia 12, do mesmo mês, domingo pela tarde, que se iniciaram as comemorações de saudade prestados à memória do consagrado escritor, quatro anos após a sua morte. O presidente da Câmara do Porto, Prof. Mendes Correia, procedeu ao descerramento de uma placa, juntamente com o neto do escritor, Rui Manuel Campos Monteiro, na nova Rua Dr. Campos Monteiro, perpendicular à Travessa do Pinheiro Manso e da Rua das Campinas, o que fizeram entre os aplausos da multidão. De realçar que era tido, pela gente do Porto, como um portuense de coração e um português de boa cepa12. Às 21 horas, na sede do Grupo dos Modestos, realizou-se a sessão solene de saudade ao escritor, com a assistência das autoridades militares e civis, coletividades, amigos e admiradores. À entrada, rodeado de plantas e arbustos, encontrava-se o busto de Campos Monteiro, notável obra do escultor José Fernandes de Sousa Caldas. O primeiro orador da noite foi o ilustre e brilhante jornalista, Juliano Ribeiro, tendo abordado a obra literária e o temperamento do poeta que dedicou toda sua vida ao serviço da humanidade. Comprova-o a notícia publicada no jornal O Século, com o título “Dr. Campos Monteiro. Ramon Novarro, “Justíssima homenagem póstuma”, in Comércio do Porto, 13 de Dezembro de 1937. 12
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A memória do saudoso escritor foi ontem homenageada com cerimónias a que se associou a Câmara Municipal”, onde se refere que lamentava, com “um travo amargo de sofrimento”, as “imperfeições doentias do ambiente social que o rodeava”13. Durante a homenagem discursou, ainda, Silvério de Magalhães, diretor do Grupo dos Modestos, usando de iguais palavras elogiosas para com Campos Monteiro e descerrou-se uma lápide, com dedicatória, oferecida por um dos seus maiores amigos, Antero de Figueiredo, ilustre escritor, momento seguido de recitativos de pesar por muitos dos presentes. Para segunda-feira, o programa era o seguinte:
Fig. 4 – Programa da homenagem a Campos Monteiro – 1937
“Dr. Campos Monteiro, A memória do saudoso escritor foi ontem homenageada com cerimónias a que se associou a Camara Municipal”, in O Século, 12 de Dezembro de 1937. 13
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Se as homenagens no Porto estavam realizadas, só faltava concretizar o projeto para Torre de Moncorvo. O busto, que pesa 6 Kg, já havia sido exposto e foi rececionado, aqui, no dia 5 de Julho de 1938, após o seu transporte ter sido efetuado pelos Caminhos de Ferro, segundo cobrança suplementar, em recibo n.º 4 025, tendo custado 5$00. Colocado no respetivo pedestal, o conjunto passou a ocupar o centro do Passeio Alexandre Herculano, Comummente chamado de Terreiro do Castelo, conforme croqui indicativo. Faltava inaugurar a obra.
Fig. 5 – Croquis da colocação do busto de Campos Monteiro no Passeio Alexandre Herculano
Numa primeira proposta para a inauguração, aventava-se o dia 5 de Janeiro de 1939 (dia da semana). Esta data não foi bem acolhida, tendo a boa justificação do estado do tempo, o Colégio estar fechado e as pessoas não perderem um dia de azeitona. Uma segunda feira, para a homenagem pública e consagração da vila à memória do escritor, seria 5 de Março, dia do nascimento de Campos Monteiro. Afinal, ainda que com ausência fidedigna da data exata da inauguração, principalmente nos elementos de investigação consultados e pertença do Núcleo Museológico de Fotografia do Douro Superior, é de supor, pela análise feita às particularidades dos elementos presentes na fotografia, aquando da inauguração CEPIHS | 2
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e da entrega e conclusão da obra, que o acontecimento teria ocorrido em meados do mês de Julho de 1938. Foram solicitados três orçamentos para realizar a obra. O primeiro orçamento, lavrado pelo construtor civil, Joaquim Ferreira da Costa, de Oliveira do Douro, importava no total de 2 000$00, em pedra caverneira e 2 950$00, em pedra de S. Gens.
Fig. 6 – Um dos orçamentos apresentados para o pedestal destinado ao busto
A firma Clemente Francisco Rodrigues, com sede na Travessa Alferes Malheiro, 73, Porto, apresentou o orçamento de 3 000$00, com granito de S. Gens, e o da Marmoraria Mecânica, sita na Avenida Rodrigues de Freitas, 195, Porto, sem descrição de características, correspondia a 2 225$00. Dos três orçamentos, não foi possível apurar a empresa que edificou o pedestal com os respetivos materiais. Contudo, sabe-se que foi orçamentado em 8 000$00 (materiais e mão de obra), tendo sido paga a última prestação da empreitada para a sua construção, respeitante ao montante de 3 000$00, no dia 9 de Julho de 1938, data de conclusão da obra, realizada segundo o projeto existente. Paralelamente aos orçamentos solicitados surgiram duas maquetes.A que se apresenta em fotografia não reuniu a opinião mais favorável. Ambas foram realizadas pelo escultor Sousa Caldas, que auferiu a quantia de 5 500$00 pelo busto em bronze e pelas duas maquetes. 38
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Fig. 7 – Uma das maquetes criadas pelo escultor Sousa Caldas
Também não foi possível apurar se a pedra utilizada seria a do Reboredo, tal como é sugerido no registo n.º 10, da pasta – Monumento a Campos Monteiro, que integra alguns dados inéditos escritos sob o título “Traços Históricos do Concelho”. É constituído por duas páginas, datado de 4 de Março de 1934 e distribuído, em nota, aos conterrâneos. Pode ler-se: “Surgiu, assim a ideia de levantar ao eminente moncorvense um busto de bronze, sôbre pedestal de granito do nosso Reboredo, olhando do Castelo a beleza da Serra”. Certo, é as obras terem sido iniciadas após a assinatura da Declaração Contratual, em 1 de Maio de 1938, tendo sido efetuado o primeiro pagamento no dia 7 de Maio, no valor de 2 500$00, referente ao término das fundações. O segundo pagamento, na importância de 2 500$00, foi feito no dia 11 de Junho do mesmo ano e o terceiro, no dia 9 de Julho, sendo o valor de 3 000$00. De realçar que, no final da obra, houve uma gratificação aos pedreiros de 10$00, devidamente inscritos nos movimento de registos de dinheiro. Salienta-se o facto do Conde da Covilhã, amigo de Campos Monteiro, haver manifestado ao seu filho Heitor de Campos Monteiro, a vontade de participar com 500$00 para as despesas da inauguração.
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Fig. 8 – Declaração Contratual para a execução do monumento
Fig. 9 – Comprovativo do pagamento da primeira prestação para a construção do pedestal
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Do deve e haver, ressalta um saldo positivo de 1108$30, não se sabendo qual o seu destino. Na verdade, Heitor Campos Monteiro veio a confessar, posteriormente, ter entrado com uma dada quantia para saldar, definitivamente, os custos14. De todos os beneméritos, o que mais contribuiu foi o Padre Francisco Manuel de Castro que, de Mongincual, em Moçambique, enviou 150$00, o equivalente a 21 dias de trabalho a cavar amendoeiras.
Fig. 10 – Registo do deve e haver relativo à obra
Segundo dados de 1941, no mês de Agosto, ano mais próximo do dia da inauguração, numa “venda-taberna” em nome de Maria de Jesus Fontes, com mercearia, vinhos e bolacha, calçado e miudezas, chá e café, sita na Rua Tomás Ribeiro, n.º 56, 2 litros de azeite fino custavam 14$00, 1,650 kg de sabão, 5$10, 1 kg de arroz mercantil, 2$80. E, no mês de Outubro, 2 dias a cavar amendoeiras ficavam por 14$00 e 2 dias com os bois à pedra para o tanque, 60$00. Mas, dez anos antes, mais concreCf. Campos Monteiro: o homem e o escritor, conferência feita por Heitor Campos Monteiro na Casa dos Jornalistas e Homens de Letras, 1950, p. 33 – documento gentilmente cedido por Rui Campos Monteiro, neto do escritor. 14
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tamente em Janeiro de 1931, 1kg. de bacalhau custava 4$00, 1 kg. de açúcar, 4$40, 6 ovos, 1$80, um quarto de litro de azeite, 1$25, 1kg. de sabão, 1$25, 1 kg de batata, 1$00 e a jeira de um homem 6$50. Comparativamente com elementos atuais, como a jeira de um homem, paga a 35 euros – quase tanto como a edificação da obra sem o pagamento do busto –, concluímos que a obra na sua totalidade ficaria, hoje, em largas dezenas de milhares de euros. Aquando da inauguração, com pompa e circunstância, houve uma grande concentração de gentes, sem contudo se verificar a efetivação da oferta pelo Conde da Covilhã, para os festejos. Há, ainda, outra certeza: a Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, segundo registos dos beneméritos, não contribuiu com dinheiro para a obra a Campos Monteiro, ficando em dívida perante quantos o conheciam e admiravam e que aguardavam por esse gesto por parte da edilidade, que consideravam obrigatório. E do alto do seu pedestal, tal como timoneiro observador, Campos Monteiro perpetua, do mesmo lugar em que outrora o fazia, o olhar mágico e nostálgico sobre o Mosteiro de S. Francisco, que tranpôs para o poema intitulado “No convento de Moncorvo, em Janeiro”15. “No convento de Moncorvo, em Janeiro Mergulha a vila em nevoeiro denso; mas uns metros acima, no Mosteiro, arde e cintila com fulgor intenso um sol que nem parece de Janeiro. E à tona d`esse mar de nevoeiro que tudo submergiu no bojo imenso, só da Tôrre o hexaedro hospitaleiro, inundado de luz, bóia suspenso.
Abílio Adriano Campos Monteiro, “No convento de Moncorvo, em Janeiro”, in Civilização, n.º 72, op. cit., 1935, p. 14. 15
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Das condolências ao busto de Campos Monteiro
Hospitaleiro, sim… que muitas aves se aninham nas cornijas e nas traves d` aquele enorme torreão de sé. Lá sai agora um corvo… corta o ar… perde-se ao longe… E quedo-me a pensar no dilúvio e na Arca de Noé!”
Ao seu amor pela terra, tão bem exultado nos seus livros, deveria corresponder a ação misericordiosa de uma intervenção urgente na casa onde nasceu e a sua devida classificação que, ironia das ironias, se encontra na rua, cuja toponímia é: da Misericórdia.
Fig. 11 – Inauguração do monumento a campos Monteiro – 1938
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A Paixão de Ferrer segundo Campos Monteiro* – ou o protesto do escritor torre-moncorvino pelo fuzilamento do pedagogo catalão Carlos d’Abreu e Emilio Rivas Calvo** À memória de Zeca Afonso*** “O seu crime foi ser republicano, socialista, livre-pensador; o seu crime foi ter criado o ensino laico em Barcelona, instruir milhares de crianças na moral independente, o seu crime foi ter fundado escolas”1.
Resumo – A partir dum poemeto de Campos Monteiro, inteiramente dedicado ao processo judicial de que foi alvo Francisco Ferrer i Guardia – pedagogo e revolucionário anarquista catalão criador da “Escola Moderna”–, no final do qual foi fuzilado supostamente por ter liderado a revolta popular na semana trágica barcelonesa (1909), tentamos homenagear essas duas figuras coevas da Cultura Ibérica. Palavras–chave – Campos Monteiro; Francisco Ferrer; Escola Moderna. Abstract – From a poem by Campos Monteiro, initially dedicated to the judicial process against Francisco Ferrer i Guardia – pedagogue and revolutionary anarchist from Catalonia, founder of the “Modern School” – who, in the end, was shot for allegedly having led a popular insurrection during the tragic week of Barcelona (1909), we try to pay homage to those two coeval personalities of the Iberian Culture. Keywords – Campos Monteiro; Francisco Ferrer; Modern School. * Devemos a Carlos Sambade o obséquio de nos ter remetido um exemplar deste poemeto, depois de em vão o termos procurado em várias bibliotecas públicas do Interior. ** Investigadores raianos. *** O cantautor da Liberdade (1929-1987), no 25.º aniversário da sua morte. 1 Carta aberta de Anatole France (1844-1924), laureado com o Prémio Nobel de Literatura (1921). CEPIHS | 2
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Fig. 1 – Capa do poemeto de Campos Monteiro
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1 – Prelúdio
Abílio Adriano de Campos Monteiro (Torre de Moncorvo, 1876 – S. Mamede de Infesta, 1933), para além do exercício da Medicina cultivou as Letras, nelas se destacando como romancista, poeta, dramaturgo, jornalista (aqui como cronista), tradutor (de autores franceses e espanhóis), conferencista, prefaciador e comentador d’Os Lusíadas. Da sua bibliografia constam 17 títulos em prosa, 10 em poesia, 9 em teatro, 17 traduções e 7 obras não publicadas2, da qual se destacam pelo êxito alcançado nas vendas durante o primeiro terço do século XX, os novelas Miss Esfinge (1921), Camilo Alcoforado (1925) e As Duas Paixões de Sabino Arruda (1929). Dirigiu a Argus, revista mensal ilustrada (1907), foi promotor do semanário humorístico Maria Rita, fundador em parceria com Ferreira de Castro da revista Civilização – Grande Magazine Mensal publicada entre 1928 e 1937, que contou com a colaboração de grandes figuras da Literatura, como Aquilino Ribeiro, Florbela Espanca, Adolfo Casais Monteiro, Teixeira de Pascoaes, Miguel de Unamuno e outros3. O trabalho que nos ocupa, A Paixão de Ferrer, foi um poemeto controverso, no qual equipara à paixão de Cristo o julgamento, sentença e execução do livre-pensador catalão Francisco Ferrer i Guardia. Facto que não deixa de ser curioso num autor monárquico assumidamente católico e conservador, elevar a mártir um ateu! Um ateu que se levantou da tumba e ascendeu ao céu para salvar a Humanidade e ser a alma da moderna Hespanha. Estruturado de forma cénica nele dá voz aos distintos actores do drama e suas alegorias, entre as quais não falta D. Quixote. Manteve durante semanas nas páginas do jornal Pátria!, discrepâncias ideológicas com Júlio Ribeiro, director do diário republicano A Montanha. Tudo começou quando este acusou o autor de Miss Esfinge de ter sido Universidade Digital (Gestão de Informação da UP), Antigos Estudantes Ilustres da Universidade do Porto. [http://sigarra.up.pt/up/web_base.gera_pagina?P_pagina=1007332] / Abílio Campos Monteiro – algumas publicações [http://sigarra.up.pt/up/web_base. gera_pagina?P_pagina=1007333], acesso em 29.V.2012. 3 Universidade Digital (Gestão de Informação da UP), Antigos Estudantes Ilustres da Universidade do Porto, op. cit.; “Abílio Adriano de Campos Monteiro”, in Barroso da Fonte (coord.), Dicionário dos Mais Ilustres Trasmontanos e Alto Durienses, vol. I, Guimarães, Editora Cidade Berço, 2003. 2
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em tempos um fervoroso republicano, considerando a sua colaboração no periódico de caricaturas Pontos eVírgulas, mas sobretudo por ser autor de A Paixão de Ferrer4. Este trabalho pretende confrontar a realidade nua e crua da vida de Francisco Ferrer, com o drama de matizes heróicas plasmado no poemeto de Campos Monteiro. No texto intercalar-se-ão algumas estrofes a fim de pôr em consonância ambas as percepções. “No forte de Montjuich ajunta-se o Conselho: tribunal de excepção para julgar um velho. Lugubremente escassa, a morna luz do dia penetra no salão por uma gelosia apenas. É sinistro o ar do tribunal: um mixto de caverna e antro sepulcral. Na tribuna curúl, os lìvidos juizes teem o aspecto soturno e alvar dos infelizes de pétreo coração e espirito servil que vendem a consciencia a trôco d’um ceitil”5.
2 – Primeiro acto – Ferrer
Campos Monteiro escreveu em Outubro de 1909, logo após o fuzilamento de Francisco Ferrer i Guardia – que ocorrera a 13 desse mesmo mês –, um drama de laivos epopeicos e grandiloquentes versos alexandrinos, no qual recria o processo e morte de Ferrer, ou seja, uma peça
C. Monteiro defende-se afirmando não poder encontrar J. Ribeiro em todo o poemeto uma única passagem que possa autorizá-lo a supor no seu autor um espírito republicano. Encontra, sim – não há dúvida – a visão de um mundo social, económico e político melhor, colocada num futuro longínquo, sem tribunais, sem prisões, sem quartéis, sem tronos mesmo (…) mas (…) também ali se não defendia, n’essa visão profética, o chapéu de coco de qualquer Presidente da República. Tudo a propósito da discussão sobre as vantagens e desvantagens de regimes republicanos ou monárquicos. Cf. José Eduardo Firmino Ricardo, Domus mea est Orbis meus: Campos Monteiro (1876-1933), vol.1, dissertação de mestrado, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, 2008, p. 138. 5 Campos Monteiro, A Paixão de Ferrer (poemeto), Lisboa, Guimarães Editores & C., 1909, p. 11. 4
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de teatro em verso onde faz a defesa do pedagogo e político anarquista catalão. Se nela tivermos que destacar alguma característica que sobressaia, esta é a da exaltação da vítima sacrificada, fazendo-o a modo e semelhança da paixão de Cristo. Monteiro segue um esquema paralelo – repetindo cenas e personagens bíblicos –, numa estrutura cénica, onde vai dando voz a todos os protagonistas do drama: juízes e funcionários judiciais em primeiro plano, o rei e os seus ministros em pano de fundo. Pelo cenário vemos desfilar as massas populares, a Igreja, a Ordem, D. Quixote e o coro das Nações, tudo perceptível através do eco das queixas e opiniões, quase apagadas, de Ferrer e do seu advogado. A primeira questão que nos coloca o poema é a razão que levou Monteiro a escrever este pequeno livro (55 páginas), exaltando o sacrificado e glorificando o sangue derramado, como se de um moderno Cristo se tratasse, imolado pelas suas ideias ao serviço do povo. Apesar de Ferrer ter visitado Portugal em duas ocasiões (1900 e em 19096), não é provável, nem nada consta a esse respeito, que chegasse a encontrar-se ou travasse conhecimento com Campos Monteiro, inclinando-nos a pensar que o autor de Torre de Moncorvo se sentiu arrastado pela tormenta de opinião e indignação que sacudiu toda a Europa por razões da execução do pedagogo. Levado por esse impulso, a sua pena redigiu um drama paralelo ao do Gólgota, drama que após assentar com os anos, o autor chegaria a (pensar em) renunciar e apagá-lo da sua bibliografia7, por o comprometer com o republicanismo, cujo sistema viria a criticar – veja-se a sua conhecida sátira política Saúde e Fraternidade –, considerando a evolução dos acontecimentos em Portugal protagonizados pelos republicanos, onde Em Março de 1909, Ferrer e Soledad Villafranca dirigiram-se a Lisboa, despertaram suspeitas e a Polícia fê-los abandonar imediatamente o País. Tivera contactos com revolucionários portugueses em Paris, como Emílio Costa que foi durante alguns meses de 1908 secretário de Ferrer naquela cidade e se ocupou da promoção da Liga Internacional para a Educação Racional da Infância. Também mantinha relações com Magalhães Lima, grão-mestre do Grande Oriente Lusitano Unido. 7 José Eduardo Firmino Ricardo, Domus mea est Orbis meus: Campos Monteiro (1876-1933), vol.1, op. cit., p. 138. 6
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apelida a instabilidade político-social de “anarquia” e, numa antevisão da História, chega a prever a proclamação em Lisboa do “regimen bolchevista ou governo dos «soviets»” que, na reorganização administrativa por ele empreendida, atribui às províncias e comarcas o nome de conhecidos revolucionários, entre eles, “a comarca de Ferrer”8. No entanto, esta visão, evidentemente original, foi partilhada por outros autores como veremos: – “¡Dios mío!, gimió el notario Permanyer9. Esto se parece demasiado a la pasión de Cristo”10. Não há dúvida que o paralelismo é impelido não só pelo carácter de vítima propiciatória e inocente, mas também pela obra redentora atribuída ao seu protagonista. No os acordéis de mi, acordaros de mis obras afirmava Ferrer. Entendemos que estas obras eram as destinadas a resgatar da ignorância as massas populares, mediante os ensinamentos iniciados na Escola Moderna, mas aqui surge outro paralelismo, a sombra das suas actividades e dos seus ideais revolucionários e anarquistas, que são em definitivo o que o colocou na frente do pelotão de fuzilamento. Em Itália, país muito influenciado pelas orientações religiosas, Ferrer foi apresentado de maneira que evocava inconfundivelmente o mártir do Gólgota. Giovanni Pascoli, um dos maiores poetas italianos expressou-o num poema no dia seguinte ao fuzilamento: Sangre que redime. A imagem não podia ser mais cristã. Por seu lado Pietro Gori, máximo expoente do anarquismo italiano, num outro poema dedicado ao livre-pensador catalão recordou que Cristo ao morrer não havia sido vencido: Chi muor per l’idea vince la morte. Um mês depois, na celebração de uma homenagem a Ferrer, equiparou este acto a uma função religiosa, destacando-o como
Campos Monteiro, Saúde e Fraternidade, 1.ª ed., Porto, Livraria Civilização – Editora, 1923, p. 165. 9 Permanyer era o decano do Colégio de Notários de Barcelona, o único que voluntariamente se apresentou para registar o testamento de Ferrer, acudindo ao forte de Montjuich acompanhado do seu filho, tomando nota das suas últimas vontades até depois das quatro horas da madrugada. 10 Julián Granado, De Humanidad y Polilla. Todas las caras de Ferrer Guardia, Barcelona, Anagrama, 2009, p. 255. 8
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um apóstolo da modernidade que começara a sua obra pela redenção da infância, da mesma maneira que o fizera outro faccioso imortal, Jesus11. É verosímil considerar que C. Monteiro se deixou levar pelo movimento internacional de repulsa – não olvidar que o caminho-de-ferro estreitava distâncias, transportava gente, ideias e notícias – e, com o vento favorável desta opinião – que convém ressaltar passou despercebida em Espanha –, deu “rédea solta” à sua veia criadora. Naqueles dias Ferrer era considerado por toda a Europa como o Dreyfus12 espanhol. A generalidade dos autores que se ocuparam do tema, consideram que Ferrer foi vítima, se não de negligência judicial, pelo menos de uma tremenda estupidez jurídica13. A sua condenação parece assentar em factos passados, pela sua intervenção mais ou menos difusa em acontecimentos sangrentos, ocorridos anteriormente, nos quais a mesma indeterminação ou a ausência de provas o situaram no terreno apenas das suspeitas e o exculparam. Dá assim a impressão de que a sua morte obedece a uma trama encaminhada a dar uma violenta lição àquela sociedade inquieta e à remissão de culpas pretéritas. Miguel de Unamuno indigna-se do alarido causado fora de Espanha: “Parece imposible que se haya armado ese ruido en derredor de Ferrer, que era un majadero, una mezcla de tonto, loco y criminal, un obrero y un fanático peligroso. Sus escuelas eran pedagógicamente detestables. Enseñar física o química para demostrar la no existencia de Dios y la injusticia de que haya Estado era un disparate tan grande como enseñarlas para demostrar que hay Dios y que debe haber Estado”14. Francisco Ferrer nasceu a 10 de Junho de 1859 em Alella, município situado a cerca de 30 km de Barcelona. A sua instrução, conforme os usos da época, foi muito limitada. Aos treze anos começou a trabalhar Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, Madrid, Ediciones Historia, 2006, p. 256. 12 Alfred Dreyfus, militar francês, foi acusado e condenado injustamente num processo onde se misturaram sentimentos nacionalistas e anti-semitas. O caso Dreyfus deu lugar ao célebre artigo J’accuse, de Émile Zola. 13 William Archer, Vida proceso y muerte de Francisco Ferrer Guardia [traducción de la edición original de 1911], Barcelona, Tusquets Editores, 2010, p. 26.. 14 Miguel de Unamuno, Epistolario inédito I, 1894-1914, Madrid, Ed. Laureano Robles, Austral, 1991, p. 268. 11
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numa loja de cereais e sementes e aos vinte empregou-se como revisor na companhia ferroviária de Barcelona à fronteira francesa, onde viria a conhecer a sua esposa, Teresa Sanmartí. Em 1884 transferiram-se para Paris, ignorando-se o motivo desta mudança de residência, apesar de se suspeitar da sua participação na sublevação do comandante Ramón Ferrandiz Laplana15, assim como do roubo, não aclarado, sofrido por um sacerdote que viajava num dos comboios a seu cargo. O casamento foi uma fonte de desavenças, pese embora a numerosa descendência da qual só sobreviveram três filhas: Trinidad, Paz y Sol. Os problemas conjugais desestruturaram a família, pois as duas filhas mais velhas foram enviadas para a Austrália, a cargo de um irmão de Ferrer e a menor confiada a uma família rural. Pouco antes Teresa havia atentado contra o seu marido disparando-lhe três tiros de revólver16. Na cidade do Sena, Ferrer iniciou uma vida de empresário, dedicando-se à venda de vinhos e abrindo de seguida um restaurante. Durante essa época e como autodidacta, tratou de se cultivar, esforço que lhe permitiu mais tarde exercer como professor de espanhol, ao mesmo tempo que secretariava Ruiz Zorrilla17, republicano exiliado em Paris, para quem havia actuado como correio durante a sua época de ferroviário. Na capital francesa travou numerosos contactos com reconhecidos anarquistas, republicanos e maçons.
Comandante de um batalhão militar que se sublevou nesse mesmo ano no âmbito de uma conspiração republicana montada pelos seguidores do dirigente exilado Manuel Ruiz Zorrilla. Cf. Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, op. cit., p. 35. 16 Teresa Sanmartí (mulher de Ferrer) escreveu ao comissário policial Mouquin, uma carta na qual relacionava o seu marido com Pallás, autor do atentado contra Martínez Campos, assim como com Salvador, o terrorista da matanza del Liceo, tudo indicando que se conheciam pessoalmente. Cf. Julián Granado, De Humanidad y Polilla.Todas las caras de Ferrer Guardia, op. cit., p. 86. 17 As intentonas militares de 1883 e de 1886 seriam de facto as últimas revoltas militares (ou conluios nesse sentido) que tiveram objectivos políticos progressistas. Foram dirigidas desde o exterior por Ruiz Zorrilla. Cf. Miguel Martinez Cuadrado, “La burguesía conservadora (1874-1931)”, in, Historia de España, Alfaguara VI, Madrid, Alianza Universidad, 1980, p. 43. 15
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A Liga Universal de Livre-pensadores realizou em Paris um congresso em 1889, ao qual Ferrer terá assistido18. Pouco depois celebrou essa mesma entidade um outro em Madrid que contou com Ferrer como delegado, em representação da entidade maçónica Les Vrais Experts. Ali teve ocasião de conhecer o republicano Alejandro Lerroux. Dois factos se destacam desta sua presença em Madrid, a ratificação da sua ideologia ácrata e as suas fortes tendências revolucionárias, plasmadas em alguns escritos nos quais a revolução, política e social, despida de qualquer outro desenvolvimento, era a sua única meta, tendo como primeiro objectivo a supressão da fome19. Redigiu um panfleto que não chegou a publicar-se, no qual propugnava uma revolução drástica, propondo-se terminar violentamente com a família real e todo o seu governo. Para tal teria que contar com um grupo de 300 homens dispostos a tudo, que actuariam como unidades celulares que haveriam de desencadear o movimento geral. No final do documento incluía a sua direcção postal em Paris, para que os voluntários dispostos a participar o pudessem contactar. Esta ideia, nada isenta de violência, seria depurada com o decurso dos anos, evoluindo o seu pensamento do golpe brutal que derrubasse a cúpula do Estado para precipitar em cadeia toda a trama estabelecida, à criação de um movimento revolucionário que se valeria do investimento ao nível do ensino e da formação ministrado aos futuros libertários. “A EGREJA, entrando magestosamente (…) E após, não satisfeito, abre escolas aonde, entre as flores do ensino, o áspide se esconde. Simulando altruísmo e nobre abnegação Attrae junto de si as creanças, que são Terreno abençoado, onde toda a semente Germina, e reproduz-se, e cresce enormemente, E onde elle, sem temor, semeia dia a dia Os germes da impiedade e da democracia”20. Este congresso acordou que o ensino religioso e a sua moral eram nocivas e que a educação devia basear-se na moral universal positiva. 19 Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, op. cit., p. 53. 20 Campos Monteiro, A Paixão de Ferrer (poemeto), op. cit., p. 13. 18
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O projecto requeria financiamento, que veio a satisfazer por intermédio de mademoiselle Ernestine Meunier, rica herdeira, de firmes convicções católicas e conservadoras, a quem dava aulas de espanhol. O carácter persuasivo de Ferrer logrou convencer a sua aluna das bondades do seu projecto educativo. Travaram uma firme amizade consolidada em viagens realizadas por toda a Europa, acompanhados de Léopoldine Bonnard, companheira sentimental de Ferrer, de quem mais tarde teria um filho a que chamaram Riego. Ernestine, que padecia de doença cardíaca, morreu em Abril de 1901, deixando Ferrer como herdeiro de uma grande fortuna que este teve a habilidade de incrementar, com o transcurso dos anos, mediante oportunas aplicações financeiras. Expôs o projecto ao anarquista catalão José Prat21, sendo sua intenção fundar uma escola emancipadora que se encarregasse de desterrar dos cérebros a religião, o conceito de propriedade, de pátria e de família que, na sua opinião, dividiam os homens22. Os inimigos a combater eram a Igreja e o Estado, buscando como objecto primordial a criação de pessoas livres. “A ORDEM (…) E, contudo, Ferrer não é um avarento: (…) – Promovendo a instrucção do Povo, que elle adora. Funda escólas, que são como um radiante facho Descerrando na treva os olhos do vulgacho. Isto é que mais perturba a ordem social. O Povo deve ser ignorante e boçal, Sem mais aspirações que a ração quotidiana de pão e toiros, como a canalha romana”23.
“Elaborar una pedagogía para la Escuela Moderna no me resultó difícil. Solo tenía que enseñar lo contrario de lo que aprendí en la escuela de mi niñez”. Cf. Julián Granado, De Humanidad y Polilla.Todas las caras de Ferrer Guardia, op. cit., p. 262. 22 Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, op. cit., p. 95. 23 Monteiro, Campos, A Paixão de Ferrer (poemeto), op. cit., pp. 16-17. 21
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A Escola Moderna24 superava com facilidade o medíocre panorama educativo do país, era rotundamente anti-clerical e anti-religiosa, mas não era uma escola que fomentasse o livre desenvolvimento do espírito crítico dos alunos, senão a formação de cidadãos rebeldes, anarquistas, com o mesmo dogmatismo que se empregava nas escolas católicas para formar cidadãos conformistas, segundo opinião de Juan Avilés Farré no seu prólogo ao texto de Willian Archer25. Também se caracterizava pela precoce introdução da língua francesa e ausência total da catalã. Fervente internacionalista e inimigo dos patriotismos, a sua doutrina embandeirava em emancipação feminina. A chegada do pedagogo libertário catalão a Espanha, com o seu projecto educativo e as suas propostas organizativas (jornal, editorial de livros de texto, formação e financiamento das associações operárias, entre outras), fizeram com que, a pouco e pouco, novas formas de organização surgissem e que vieram a dotar de grande maturidade o movimento libertário espanhol26. Paralelamente à Escola Moderna, Ferrer criou uma editorial destinada a divulgar as suas ideias pedagógicas, instando para tal a colaboração de vários autores afins e encarregou a tradução para o castelhano das obras que considerou de interesse. Também empreendeu a tarefa de publicar um órgão insurrecional, assim nascendo La Huelga General, uma publicação intermitente que sobreviveu com dificuldades desde 1901 a 1903, com uma suspensão de um ano, causada pela detenção do seu director, Ignacio Clariá, na greve barcelonesa de 190227. Ao que parece, Ferrer era assíduo colaborador da revista, onde publicava artigos sob o pseudónimo Cero28. Também colaboravam habitualmente Bonafulla, Teresa Claramut, Malatesta, Tarrida del Marmol e o legendário anarquista russo Kropotkin. Ferrer desenvolveu além do mais outras frentes de vanguarda, como as propostas A Escuela Moderna começou a funcionar em Setembro de 1901, no n.º 70 da calle Bailén, em Barcelona. 25 William Archer, Vida proceso y muerte de Francisco Ferrer Guardia, op. cit. 26 Dolors Marín, Anarquistas. Un siglo de movimiento libertario en España, Barcelona, Ariel Historia, 2010, p. 23. 27 Idem, p. 107. 28 Algumas referências assinalam Zero. 24
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anti-natalistas dos chamados neo-maltusianos que se desenvolveram em Espanha a partir da propaganda realizada sobre o seu amigo Paul Robin, impulsionador da Liga de Regeneração Humana, ao qual pediu alguns artigos para La Huelga General29. Uma outra publicação denominada Revista Blanca, era dirigida ao campesinato andaluz, sector muito próximo ao anarquismo. Para além de Tierra y Libertad30 que, juntamente com a intelectualizada Revista Blanca marcaram um antes e um depois nos anos de fim de século. Graças ao apoio económico de Ferrer passou de semanal a diária a partir do primeiro de Agosto de 190331. 3 – Segundo acto – Paris
As duas tentativas de assassinato que sofreu Alfonso XIII, uma em Paris no ano de 1905 e outra em Madrid no de 1906, não foram ao tempo plenamente esclarecidas pela justiça. Os primeiros indícios de que o rei pudesse sofrer um atentado durante a sua viagem a Paris, recebera-os a embaixada espanhola quase um ano antes. Julio Sannois, colaborador e informador da polícia francesa, deu conta dos primeiros sinais, apontando vários anarquistas residentes em Paris, entre eles Pedro Vallina que, segundo as indagações policiais, fazia parte de uma vasta conspiração. Supôs-se que havia recebido uma importante soma de dinheiro para fabricar explosivos em Barcelona. Homem solitário e perigoso, nada mais ambicionava que o triunfo da anarquia. As investigações davam conta de que importantes chefes republicanos, como Lerroux e Estévanez32, estavam ao corrente do complot – pois ao que parece ambos conheciam de antemão os pormenores – e estavam dispostos a aproveitá-lo para desencadear um movimento republicano33.
Dolors Marín, Anarquistas. Un siglo de movimiento libertario en España, op. cit., p. 235. Periódico anarquista fundado em 1888, cuja publicação continua hoje em dia, por parte da Federación Anarquista Ibérica (www.nodo50.org/tierraylibertad). 31 Dolors Marín, Anarquistas. Un siglo de movimiento libertario en España, op. cit., p. 198. 32 Nicolás Estévanez foi ministro durante a Primeira República. 33 Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, op. cit., p. 162. 29 30
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O atentado teve lugar a 1 de Junho, quando Alfonso XIII regressava da ópera acompanhado pelo presidente da República Émile Louvet, deslocando-se numa carruagem descoberta. Ao terminar a rua Rohan, no entroncamento com a de Rivoli, foram o alvo de uma bomba de mão que não atingiu nenhum dos dois mandatários e somente produziu alguns ferimentos entre o público e a escolta. A justiça francesa processou quatro anarquistas suspeitos,Malato e Caussanel – que tinham recebido as “pinhas” de Barcelona – e Vallina e Harvey que Fig. 2 – Retrato de Ferrer (Paris)34 haviam preparado os explosivos. Malato e Vallina eram íntimos amigos de Ferrer. O júri, surpreendentemente, declarou-os não culpados. Por outro lado, a partir da França manteve-se a tese de que a polícia espanhola fora conhecedora dos preparativos mas consentiu-os com o objectivo de propiciar a condenação de uns quantos anarquistas residentes em Paris. Quanto ao papel desempenhado por Ferrer, é difícil pensar que não estivesse ao corrente do que se tramava, já que tinha boas relações tanto com os ácratas implicados como com Lerroux, mas o seu papel talvez se tivesse limitado ao de simples instigador. Convém para este efeito recuarmos a Outubro de 1904, data em que reapareceu um número clandestino de La Huelga General, editado supostamente em Paris. Era uma publicação de marcada tendência revolucionária, que havia suspendido as suas edições regulares no ano anterior. Nesse número ofereciam-se alvíssaras pecuniárias a quem realizasse acções justiceiras contra alguns personagens aí mencionados35. Inclusivamente convocava um certame, com um prémio de 500 francos, para o melhor trabalho que explicitasse como levar a cabo a greve revolucionáEsta imagem e as três seguintes foram amavelmente cedidas pela Fundación Ferrer i Guàrdia (Barcelona), através do seu Bibliotecário Edu Richard Simón (Biblioteca Francesc Ferrer i Guàrdia), o que muito agradecemos. 35 Na lista figuravam Alfonso XIII e Maura, chefe do governo. 34
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ria. A referência a ajudas financeiras, era algo bastante inusual num meio como o anarquista, onde o dinheiro era um bem escasso, sendo Ferrer o único libertário espanhol dotado de fortuna e disposto a empregá-la para fomentar a revolução. Em resumo, parece muito provável que Ferrer tenha estado vinculado a esta publicação clandestina na qual se incentivou o assassinato de Alfonso XIII36. Por outro lado, a polícia francesa teve acesso ao texto de uma carta na qual Ferrer ajuntava um cheque de 150 francos a favor de Malato, para hacer frente a los gastos que acordamos e onde informava, de forma encoberta, que a data oficial, estava fixada para 30 de Maio. Ora essa era a data prevista da chegada do rei a Paris37. Não se logrou identificar o autor material do atentado, sendo os processados julgados pela sua relação com as bombas utilizadas e todos foram absolvidos. Contra Ferrer somente o leve indício da missiva em que comunicava a Malato a data da chegada do rei à capital francesa. 4 – Terceiro acto – Madrid “Y al ir a alzar tu pie para posarlo en ese triste solio de infortunios la sangre salpicó tus vestiduras, manchó tu huella. (…) (A la reina de España, Victoria Eugenia de Battenberg, en el día de su boda)”38.
O segundo atentado ocorreu em Madrid a 31 de Maio de 1906, por ocasião da boda de Alfonso com Victoria Eugenia. À passagem da comitiva real, um anarquista atirou uma bomba dissimulada num ramo de flores, desde a janela de um quarto andar de uma casa de hóspedes situada no número 88 da rua Mayor. Os soberanos saíram ilesos, mas o artefacto causou estragos entre aqueles que presenciavam a passagem da comitiva. Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, op. cit., p. 148. Idem, p. 155. 38 Miguel de Unamuno, Obras completas (Cancionero. Poesías sueltas. Traduciones), vol. V, Madrid, Biblioteca Castro, 2002. 36 37
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Morreram quinze civis e oito militares e ficaram feridas mais de uma centena de pessoas. Um dos inquilinos abandonou precipitadamente a casa. Logo foi identificado como a pessoa que tinha arrendado o quarto. Tratava-se do catalão chamado Mateo Morral. Três dias depois, o seu nervosismo denunciou-o numa hospedaria próxima de Alcalá de Henares e um guarda, Fructuoso Vega, tratou de o conduzir às autoridades, mas Mateo matou-o com um tiro e suicidou-se de seguida.
Fig. 3 – Ferrer na prisão (Set. 1909)39
Mateo Morral Roca era filho de um abastado empresário têxtil de Sabadell, tendo recebido uma educação pouco cuidada, parte dela na Alemanha. Era obstinado, irascível e lunático40. As investigações centraram-se à volta de Morral em Barcelona, onde residia. Depressa se averiguou que era amigo de Ferrer desde há vários anos e que também vivera no piso superior da Escuela Moderna, na calle Bailén de Barcelona, onde foi localizada a sua mala. Ferrer, que inicialmente alegou ignorar o domicílio do terrorista, logo declarou que na Escola Moderna se ocupava da biblioteca e das suas publicações. Após o atentado, Morral deslocou-se à redacção do El Motín em busca de ajuda. El Motín era um semanário satírico, republicano e anticlerical, fundado por José Nakens, vindo este a declarar que um jovem desconhecido lhe havia confessado ser o autor do atentado, não sem antes o fazer jurar que o não denunciaria, escondendo-o no domicílio do sargento Bernardo Mata – personagem que estivera implicado na sublevação republicana de 1886 –, onde passou uma noite. Cf. La Actualidade, Revista Mundial de Información Gráfica, Año V, n.º 208, Barcelona, 26 julio 1910. 40 William Archer, Vida proceso y muerte de Francisco Ferrer Guardia, op. cit., p. 93. 39
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Nakens e Ferrer mantinham uma estreita relação desde há vários anos. Cinco dias antes do atentado Ferrer remetera uma carta ao director do El Motín na qual lhe propunha certos projectos relacionados com a sua editorial, juntando-lhe um cheque de 1 000 pesetas. Nakens parece que suspeitou da proposta e respondeu negativamente, contudo não devolveu o cheque bancário. Ferrer insiste nos seus propósitos, passando directamente a falar-lhe de uma campanha revolucionária, personificando a sua direcção em Alejandro Lerroux. Mais tarde soube-se duma reunião realizada em Barcelona a 15 de Maio, em que estiveram presentes Alejandro Lerroux, Nicolás Estévanez41, Ferrer e o seu bibliotecário Mateo Morral42. Nas alegações finais, o magistrado judicial Becerra del Toro, sustentou que Morral havia informado Ferrer do seu projecto e que este, apesar de não ter participado directamente na execução do atentado, o tinha coadjuvado física e moralmente, mediante apoio logístico a Morral, com quem compartilhava os ideais libertários. Na revista aos papéis de Ferrer efectuada em 1909, foi encontrada uma carta de Estévanez a Ferrer, datada de 9 de Março de 1906, na qual se fazia alusão a diversos atentados de modo mais ou menos simbólico. Uns meses antes dos acontecimentos, Morral fora processado pela publicação de um folheto do ex-ministro republicano Nicolás Estévanez, exiliado en Paris, motivo pelo qual foi também processado o próprio Ferrer que, financiara o panfleto com 600 pesetas, ao que parece. “Eis o futuro atroz que este homem nos prepara, Educando e instruindo a multidão ignara”43.
Ferrer passou pouco mais de um ano na prisão Modelo, de Madrid, inquieto pelo futuro da Escola Moderna, tanto pela elevada fiança exigida, como pelos depósitos de custas e as manobras dos Jesuítas no sentido de impedirem a reabertura do estabelecimento de ensino. A Escola Moderna tinha sido a instituição que mais vigorosamente havia proposto Nicolás Estévanez, suspeito de ter trasladado bombas a partir de Paris, fizera escala em Barcelona com destino a La Habana. 42 Julián Granado, De Humanidad y Polilla.Todas las caras de Ferrer Guardia, op. cit., p. 375. 43 Campos Monteiro, A Paixão de Ferrer (poemeto), op. cit., p. 17. 41
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e executado em Barcelona um sistema racional de ensino e, talvez por isso, as comunidades religiosas, que com o seu ensino embruteciam e envileciam o povo, aproveitaram a detenção de Ferrer para provocar o seu encerramento44. Comprovadas que foram as estreitas relações entre Ferrer e Morral, aquele foi detido a 4 de Junho. Foram processados Nakens, o sargento Bernardo Mata, a sua mulher e Ferrer. Este designou como advogado Francisco Pi y Arsuaga, filho do ex-presidente republicano Pi y Margall, que mais tarde seria substituído por Emiliano Iglesias, advogado afim a Lerroux. Perante o juiz testemunharam Antonio Polo y Julio Camba que editavam uma folha anarquista titulada El Rebelde, declarando que em 1904 haviam recebido a visita de Morral oferecendo ajuda económica em nome de Ferrer, ajuda que aceitaram. Posteriormente receberam pacotes de livros da Escuela Moderna para a sua difusão em Madrid, apresentando-se algum tempo depois um personagem chamado Ceferino Gil com uns cartuchos de dinamite que pretendia usar num atentado contra Maura. A coincidência destas ajudas económicas e a prestada a Nakens constituía forte suspeita. Por outro lado, também se demonstrou a estreita colaboração revolucionária e pessoal entre Ferrer e Morral anterior ao atentado da calle Rohan45. O julgamento começou a 3 de Junho de 1907 e durou seis dias. Ao longo de 1906 o diário El Progreso, ligado a Lerroux, lançou uma campanha sob o título La verdad en marcha, virada para o apoio a Ferrer. O delegado do Ministério Público pediu a pena de 16 anos, 5 meses e 10 dias de prisão para Nakens e, para os demais procesados, 9 anos por encobrimento46. Emiliano Iglesias argumentou, em defesa de Ferrer, justificando a ignorância deste acerca dos movimentos de Morral durante o mês de Maio, pois estava perdidamente enamorado de Soledad Villafranca, a sua actual companheira, ao tempo professora da Escola Moderna. Assinalou que Ferrer havia dado a conhecer os seus sentimentos a Soledad e, ao ser Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, op. cit., p. 180. Idem, p. 173. 46 Idem, p. 174.
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rechaçado, encontrou justificação para a sua intempestiva ida a Madrid. Por outro lado, assegurava que se inteirou de todos os detalhes do atentado através dos jornais, não sabendo contudo explicar as razões porque queimara os livros da editorial na véspera dos acontecimentos. Durante o processo judicial não se pôde provar que Ferrer tivesse financiado o atentado, entre outras razões, porque não havia necessidade de patrocínio porquanto Morral havia herdado uma considerável soma de dinheiro pouco antes do trágico sucesso47. Anos mais tarde circulou outra versão dos factos, na qual se atribuía o atentado a Dutrem Semovich, um polaco irascível de escassa inteligência, caixeiro-viajante de produtos farmacêuticos, que possuía certas parecenças físicas com Mateo Morral, a quem este persuadiu para que lançasse a bomba sobre o coche real e se suicidasse de seguida com um tiro na cara, a fim de evitar possíveis reconhecimentos ulteriores. Neste caso o suicídio do presumível Mateo Morral ocorreu com um disparo sobre o peito, no entanto todos os que fizeram o reconhecimento do cadáver afirmaram que se tratava de Morral. Nesta versão, o anarquista Ferrer mudou o nome para Karl Woessner e, fazendo-se passar por um industrial alemão, retomou a vida junto de Soledad Villafranca. Ao longo de 1906 sucederam-se numerosos actos por toda Europa em defesa de Ferrer. Em Paris a Liga dos Direitos do Homem organizou um grande comício na sede do Grande Oriente, ao qual assistiram 1200 pessoas. A imprensa publicava artigos e reportagens, onde demonstrava o seu convencimento de que as ordens religiosas pretendiam afundar a obra educativa do livre-pensador, contando com a submissão da magistratura. Outras manifestações e comícios tiveram lugar em Bruxelas, Grã-Bretanha, Itália e Portugal48. Em 13 de Junho de 1907 conheceu-se a sentença que o absolveu. Nakens e os demais arguidos foram condenados a nove anos de cadeia. BonWilliam Archer, Vida proceso y muerte de Francisco Ferrer Guardia, op. cit., p. 100. Até que ponto as actividades político-revolucionárias em Espanha não influenciaram decisivamente a actuação dos regicidas portugueses? Emilio Rivas Calvo & Carlos d’Abreu, “El regicídio visto por la prensa española (en el primer centenario de la muerte de D. Carlos de Braganza)”, in, Praça Velha, ano XI, n.º 23, Guarda, Câmara Municipal, 2008, (pp. 63-83), pp. 65-66. 47
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necarrére, comissário policial francês destacado em España, seguindo os passos de Ferrer, opinou que a justiça espanhola não quisera investigar o assunto a fundo. A conspiração anarquista era apenas uma pantalha por detrás da qual se ocultava um personagem importante. Por outro lado, tanto o governo, como o próprio rei, desejavam uma sentença benigna para evitar as represálias anarquistas49. Um grande especialista na matéria, Juan Avilés, é de opinião que Morral foi o autor material tanto do atentado da rue Rohan, como o da calle Mayor, e que Vallina, Malato, Ferrer, Lerroux e Estévanez estiveram neles implicados50. Esta opinião coincide com o testemunho de Rosell, amigo de juventude de Morral e do próprio Malato, assinalando que Ferrer havia participado na trama. A Escuela Moderna foi encerrada, os trâmites para a sua reabertura eram pouco menos que impossíveis, por isso, Ferrer dedicou-se à difusão das suas ideias fora de Espanha e optou por escrever um livro onde expôs as linhas gerais do seu projecto educativo, publicado pela sua própria editora em 1912. 5 – Quarto acto – Barcelona
Nos fins de Julho de 1909 estalou na Catalunha e muito especialmente em Barcelona, uma série de trágicos acontecimentos conhecidos como a Semana Trágica, Semana Roja ou Semana Gloriosa, sendo a primeira das designações a mais utilizada. O antimilitarismo e o anticlericalismo foram os componentes essenciais do movimento insurrecional, onde a mobilização de reservistas para combater em Marrocos, foi a chispa que fez explodir toda a tensão social existente. Muitos trabalhadores, que haviam cumprido o serviço militar há vários anos, estabelecidos, casados e com filhos, foram obrigados a empunhar de novo as armas e a embarcar no porto de Barcelona, para
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Julián Granado, De Humanidad y Polilla.Todas las caras de Ferrer Guardia, op. cit., p. 168. Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, op. cit., p. 197.
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satisfazerem os caprichos colonialistas da agora ociosa classe militar, findo o império colonial com a desonrrosa perda de Cuba e das Filipinas51. “MAURA Engano, meu senhor! A guerra é necessaria, Cresce a população de forma extraordinaria, E é demasiado curto o reino p’ra contel-a. Qual o remédio? Um só: fazer uma barrela Que nos limpe o paiz d’esse enorme excedente. Demais, quem morre lá em Marrocos? A gente De baixa condição, que em Hespanha podia, faminta e semi-nua, alevantar-se um dia contra nós, contra o Throno, ou contra o próprio Altar”52.
A 25 embarcava o batalhão de Reus, na presença de uma grande multidão que grita, o buque zarpa, e surgem os primeiros confrontos com a Guarda Civil, que deram lugar a uma batalha campal. Durante a noite os sindicalistas dão os últimos nós, no dia seguinte, segunda-feira, ninguém irá trabalhar, nem sequer os trabalhadores dos transportes urbanos (sobre carris). O governador civil, impotente perante os acontecimentos, pede ajuda e é obrigado a demitir-se, deixando o lugar em mãos do Fig. 4 – Exaltação da figura de Ferrer pela general Santiago, que de imediato imFederação Internacional de Livre Pensamento põe o estado de sítio e a censura à imprensa, pese embora não ser capaz de evitar que os exaltados destruam meia cidade. Os reforços tardam uma semana em chegar e, quando tomam posição, chega o momento do ajuste de contas. Xavier Cuadrat, “Los días de la ira”, in Cuadernos Historia, 16, t. 14, n.º 132, Madrid / Barcelona, Información y Revistas S. A., 1985, (pp. 4-17), p. 8. 52 Campos Monteiro, A Paixão de Ferrer (poemeto), op. cit., p. 24. 51
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Entre os membros de Solidaridad Obrera53, nem todos são partidários da greve, o que não era o caso de Moreno e Romero, dois dirigentes anarquistas aos quais logo se une Fabra Ribas54 da Federación Socialista, constituem entre os três, o comité de greve na noite de 23 de Julho. Os planos apontam o dia 26 como o do início da greve geral. E nesse dia, a greve revolucionária encabeçada por socialistas e anarquistas, transbordou e desembocou em enfrentamentos de rua entre a Guardia Civil e os grupos de obreiros armados. O transcorrer dos dias degenerou numa série de actos violentos, saldando-se em mais de uma centena de mortos, assim como o incêndio de um terço das igrejas e conventos da cidade e mais de trinta escolas geridas pelo clero. A maior parte do país estava contra a campanha de Marrocos, o que acabou por agravar as tensões latentes em Barcelona, tensões entre os operários e o trust plutocrático-clerical constituido en Cataluña por los industriales y los jesuitas, no dizer do patriarca anarquista Anselmo Lorenzo55. Sobre Ferrer recaíram várias acusações, apesar dos seus movimentos em Barcelona não revelarem suspeita alguma, sendo além do mais controlados de forma habitual pela polícia. À vista dos acontecimentos decide ocultar-se, dissimulando uma fuga de Espanha. Em Paris chegam a publicar-se falsas entrevistas fazendo crer que se encontrava na cidade. A 5 de Agosto o novo governador civil Evaristo Crespo, informa o ministro da governação – Juan de la Cierva – que havia proporcionado ao juiz instrutor militar informação sobre Ferrer e as suas relações com a Solidaridad Obrera, sobretudo com Romero e Moreno e com o Partido Republicano Radical56. A 11 de Agosto o comandante Vicente Llivina Federação de sindicatos de trabalhores de várias tendências (socialistas, anarquistas, republicanos e outros), criada em 1907 com o fim de superar a crise vivida pelo movimento operário, tendo como objectivo último a “emancipación económica de los trabajadores, la sustituición del régimen capitalista por un régimen social fundado sobre la base racional del trabajo por la solidariedad humana”. Cf. Xavier Cuadrat, “Los días de la ira”, op. cit., p. 6. Ferrer financiou economicamente a aquisição do local onde se reuniam os membros de Solidaridad Obrera, na calle Unión, de Barcelona. 54 Sempre insistiu que Ferrer não tinha nada a ver com a organização. Cf. Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, op. cit., p. 219. 55 Joan Connelly Ullman, “Arde Barcelona”, in Cuadernos Historia 16, t. 14, n.º 132, Madrid / Barcelona, Información y Revistas S. A., 1985, (pp. 17-26), p. 26. 56 Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, op. cit., p. 218. 53
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Fernández, juiz militar encarregado da causa, ordenou uma revista à casa de Ferrer em Mongat. A polícia suspeita que se encontra oculto e, com o propósito de o isolar, desterra para Alcañiz e depois para Teruel, todos os seus familiares e outras pessoas que lhe são próximas. Simultaneamente o governador também ordenou o encerramento de 34 centros de educação do tipo da Escuela Moderna. A investigação policial estabeleceu que Ferrer havia permanecido em Barcelona desde 14 a 18 de Julho, data em que regressou à casa de campo de Mongat, onde estivera durante os dias em que durou a greve geral. Estranho comportamento este, de quem se dizia ter desempenhado um papel relevante na organização revolucionária. Visitou Barcelona segunda-feira 26, isto é, o dia em que se iniciou a greve, regressando a pé ao seu domicílio, já que os comboios estavam paralisados. Na terça-feira 27, circularam notícias da sua presença em localidades próximas a Mongat. Na noite de 31 de Agosto foi detido por membros do somatén57 de Alella, à uma da manhã, sendo conduzido a Barcelona e colocado à disposição do governador civil que, após uma breve entrevista, o manda conduzir à esquadra central e logo ao cárcere Celular. As condições de detenção foram muito duras, permanecendo um mês num calabouço húmido, frio e pestilento, com tratamento e interrogatórios vexatórios. Llivina, interrogou-o sobre os seus movimentos em Barcelona no dia 26 e em Premiá de Mar a 28. Uma testemunha, Francisco Domenech, empregado duma barbearia de Masnou, declarou que o tinha acompanhado à redacção do El Progreso, situada na Casa del Pueblo, havendo passado várias horas da jornada em sua companhia, acompanhando-o também no regresso que fizeram a pé até à sua casa. Domenech, surpreendentemente, embarcou a 15 de Setembro para Marselha e de seguida para a América, deixando em aberto a interrogação quanto à sua inesperada viagem e sobretudo como obteve o dinheiro para a passagem. O trabalho de Vicente Llivina não foi muito satisfatório para os seus superiores, razão pela qual foi nomeado novo juiz instrutor, o comanDesignação de um grupo de homens armados que patrulham as suas localidades para evitar roubos nas propriedades; é uma instituição própria da Catalunha. 57
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dante Valério Raso, sendo este um militar mais interessado em encontrar um culpado que achar a verdade58. Dá a sensação que se desejava uma rápida condenação de Ferrer, motivo porque o seu processo é separado do da causa geral. Entre as provas incriminatórias, revestiu notável importância o borrador do seu violento projecto revolucionário, escrito em 1892, juntando-se-lhes diversos escritos, circulares e receitas para fabricar explosivos. Estes documentos, por datar, foram reunidos por Raso e supostamente resultantes da revista realizada em Mas Germinal. Ferrer não os reconheceu, manifestando que fora a própria polícia que os introduzira no seu domicílio. Em todo o caso, ficou por provar que fossem de sua autoria ou que tivessem chegado sequer a ser difundidos. As anomalias do processo resultaram do facto de ter sido conduzido pela jurisdição militar. O conselho de guerra presidido pelo tenente-coronel Eduardo Aguirre de la Calle, começou a 9 de Outubro, sendo tudo muito rápido, não se ouvindo nenhuma testemunha. Raso leu um resumo muito extenso do sumário, leitura que se prolongou ao longo de duas horas e meia, apresentando logo o delegado Jesús Marín Rafales o seu informe. O defensor Francisco Galcerán Ferrer apenas teve tempo de fazer algumas alegações. O delegado pediu a pena de morte para Ferrer como director e impulsor de uma rebelião militar. Não obstante os testemunhos de Francisco Domenech, de Juan Puig e de Domingo Casas, apontarem na culpabilidade de Ferrer quanto à instigação da rebelião, não existia uma só prova de que tivesse actuado como cabecilha. Ofereceram a Ferrer uma lista de advogados para que escolhesse aquele que o havia de defender. Todos eram togados militares, como corresponde a um processo sob a alçada castrense. Não conhecia nenhum deles, optando pelo capitão de Engenharia Francisco Garcelán Ferrer, motivado pela coincidência do apelido. Este cumpriu na perfeição a tarefa, acreditando na sua inocência. Somente dispôs de 24 horas para examinar os 600 fólios do sumário. Pelos vistos deparou com a negativa do tribunal quanto às provas solicitadas e à audição de testemunhas. Pediu a 58
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absolvição para o réu com base na inconsistência das provas acusatórias, que considerou simples rumores ou testemunhos de terceiros. Um século depois do julgamento, continua a não haver provas nem documentos que demonstrem que Ferrer chefiou a insurreição. O tribunal não foi excessivamente severo para com os 1.725 processados, pois só 129 deles foram condenados a penas de prisão e cinco à pena de morte. Era seu propósito admoestar a maioria dos rebeldes e tratar com menos severidade os restantes mas sobretudo arranjar um culpado, papel que coube a Ferrer. Em Janeiro de 1908 o governo apresentara o novo projecto de lei antiterrorista, como resposta à onda de atentados anarquistas, o que motivou por parte da oposição uma campanha de protestos na qual participaram activamente os partidos republicanos e a imprensa que lhe era afecta. Antonio Maura viu-se obrigado a transigir levantando o estado de emergência a 1 de Junho e retirando o projecto. O chefe do governo, imbuído da ideia da dignidade do Estado, não chegou a considerar a possibilidade de um indulto, apesar de Dato e Sánchez Guerra o aconselharem vivamente nessa direcção. O Vaticano também era favorável ao perdão, mas a Cúria somente se manifestou nesse sentido após a morte de Ferrer a 13 de Outubro59. 6 – Epílogo
Numerosos autores estimaram que a participação de Ferrer nos atentados contra Alfonso XIII era clarividente, contrariamente à sua relação com a Semana Trágica. De modo que no último processo judicial de Ferrer e respectiva condenação, terão pesado mais as suas actividades de 1905 e 1906 que os factos de 190960. Ao longo do dito processo judicial, Ferrer foi acusado de ser o director e indutor moral dos trágicos
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Idem, p. 239. Pedro Voltes, La Semana trágica, Madrid, Espasa Calpe, 1995, p. 69.
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acontecimentos da Semana Trágica, apesar de não ter sido possível encontrar e demonstrar provas da sua participação directa nos acontecimentos61. O poema de Campos Monteiro recria o processo judicial, dando a palavra aos acusadores na sombra. Entre eles, a Igreja que recusava partilhar competências em matéria educativa. E aqui, o escritor torre-moncorvino sublinha que o crime supremo de Ferrer foi pretender a igualdade entre os homens e defender o espírito crítico e livre, isento de qualquer preconceito.
Fig. 5 – Retrato de Ferrer
“A EGREJA, entrando magestosamente (…) Christo Nosso Senhor manda-nos absolver, manda-nos perdoar, e nunca perseguir, nunca denunciar, (…) a minha obrigação é perdoar a offensa. Com o réo, não obstante, é grande a differença. Ferrer é um scelerado, um monstruo humano; e creio que um criminoso egual ao mundo nunca veio. (…) quer implantar no globo a sua mão immunda. (…) Diz-lhes que um proletario é d’um monarca irmão. (…) Diz-lhes que a Religião é um contrapeso inutil Na viagem da vida, um vil pretexto fútil”62. “Los ideólogos no tienen parte ni culpa ni mérito del resultado de sus ideas”. Cf. Julián Granado, De Humanidad y Polilla.Todas las caras de Ferrer Guardia, op. cit., p. 372. 62 Campos Monteiro, A Paixão de Ferrer (poemeto), op. cit., pp. 12-13. 61
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No que respeita à Ordem (Pública), ela não podia consentir a rebelião de um indivíduo que além de a não respeitar, contagiava as massas com o seu procedimento. Não podia suportar o derrube das ideias fundamentais, como a religião, a pátria, o governo e a propriedade, valores contra os quais Ferrer predicava. Ferrer era um monstro porque, como escreveu o autor de Camilo Alcoforado, sendo um personagem de cabedais, não se comportava como tal. “A ORDEM Ó juizes! Eu sou essa figura austera que todo o mundo adora e respeita e venera. (…) Sem mim a Sociedade era como um abysmo. (…) Pois bem! Tambem eu venho a este tribunal Para acusar o réo, cuja existência incerta Tem sido, ó jury augusto! Uma revolta aberta Contra o que existe. É rico, e esse oiro fabuloso Sería nas mãos d’outro uma fonte de goso. Quemquer que enfim tivesse um bocado de senso, Possuindo saúde e esse thesoiro inmenso, Faria como faz quem quer viver feliz: (…) Ferrer não fez assim. Herdando uma riqueza, Timbrou em não seguir as praxes da nobreza. (…) Quem distender a espinha e altear a cabeça arrisca-se... a ficar sem ella mais depressa!”63.
Pelas 20h e 30m do dia 12 de Outubro, Raso leu a Ferrer a sua sentença, este assinou-a com grande serenidade, ceou com apetite, passou a noite a escrever a Soledad e a Malato e ditou o testamento com extraordinária calma e cavalheirismo.
63
Idem, pp. 14-16.
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“FERRER, altivamente (…) Fanáticos crueis que á morte me votastes! Magistrados venaes que me sentenciastes! Sobre vós cahirá uma vergonha eterna! Cinco praças, cinco assassinos tirados á sorte, avançam empunhando carabinas. O rumor da multidão curiosa aumenta FERRER ouvindo o zumbido dos espectadores; com uma
amargura na voz: Homens! Ó meus irmãos! Porque me abadonastes? O COMANDANTE
Apontar! Disparar! FERRER, cahindo
Viva a Escola Moderna!”64.
Horas antes da sua execução, Ferrer, como se disse, ditou o testamento perante o decano do Colégio de Notários de Barcelona. Nas suas últimas vontades mostrou apego à Escola Moderna, à qual legou através de Soledad Villafranca e o seu testamenteiro Lorenzo Portet, a maior parte dos bens. Sublinhou que a herança de Ernestina Meunier devia servir somente para a propagação das suas ideias. O seu principal desejo era que a editorial da Escuela Moderna continuasse em frente, para isso legou a Lorenzo Portet não só a editorial mas também a sua casa em Paris e 600 acções do Fomento de Obras e Construções65. Outros legados se repartiram entre Soledad Villafranca, o seu irmão José e a sua cunhada Maria. Às suas filhas destinou unicamente 2 000 pesetas para cada uma. Nada deixou ao seu filho Riego. Na madrugada de 13 de Outubro, vítima de um julgamento tão apressado quanto irregular, celebrado debaixo da duvidosa jurisdição militar, 64 65
Idem, p. 35. Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, op. cit., p. 242.
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Ferrer foi executado. Antes do alferes dar a ordem de disparo, gritou “¡Soy inocente! ¡Viva la Escuela Moderna!”66. “O PRESIDENTE, depois de conferenciar com os colegas: Vae ser lida a sentença. É curta: “O tribunal sentenceia Ferrer á pena capital”. (…) A MULTIDÃO: Perdoae ao bandido, e fusilae Ferrer! (…) FERRER, altivamente, sahindo em meio da escolta: Por ter amado a Humanidade!”67.
O repúdio internacional convenceu o rei de que Maura conduzira mal o assunto68. No dia 15 teve lugar a abertura das Câmaras, Segismundo Moret, líder dos liberais fez um furibundo discurso, no qual, sem nomear Ferrer, recriminava a actuação de Maura e de La Cierva. Constatou-se que o fuzilamento de Ferrer fora um tremendo erro, o que provocou a queda de Maura que, posteriormente, foi também obrigado a renunciar à chefia do partido conservador69. “AS NAÇÕES ESTRANGEIRAS (…) Senhor! Senhor! Ouvi a súpplica eloquente de toda a Humanidade, em prol de um innocente que a mão do fanatismo intenta estrangular”70.
Quando foi conhecida a execução da sentença, uma onda de manifestações percorreu a Europa71. Sendo Paris o epicentro, onde ao longo Julián Granado, De Humanidad y Polilla.Todas las caras de Ferrer Guardia, op. cit., p. 256. Campos Monteiro, A Paixão de Ferrer (poemeto), op. cit., pp. 18-19. 68 C. Hall Morgan, Alfonso XIII y el ocaso de la monarquía liberal, 1903-1923, Alianza Editorial, Madrid, 2005, pp. 116-117. 69 Miguel Martinez Cuadrado, “La burguesía conservadora (1874-1931)”, op. cit., 1980, p. 428. 70 Campos Monteiro, A Paixão de Ferrer (poemeto), op. cit., p. 28. 71 “Portugal que abominó el fusilamiento de Ferrer en comicios y manifestaciones conmemoró dignamente el primer aniversario de esa muerte afrentosa para Maura”, segundo a 66 67
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do mês de Outubro tiveram lugar mais de una centena de actos públicos desse tipo. No dia 31 celebrou-se a homenagem aos livre-pensadores na sede do Grande Oriente, entre os oradores encontravam-se Charles Beauquier, o belga Furnemont, o português Magalhães Lima e o espanhol Lapuya72. A Espanha ficou à margem destes movimentos populares, entre outras razões porque se considerava Ferrer uma figura livre, independente, a quem nem os anarquistas nem os republicanos tinham inteiramente como um dos seus.
“MAURA: Ha muito tempo já que devia ter sido! LA CIERVA:
Escapou da outra vez... (…) MAURA: Provou-se o que se quiz... Nunca a bom rei, senhor, faltou um bom juiz”73.
Inicialmente, o rei havia apoiado a decisão de Maura em actuar energicamente contra os autores da violência desatada na “cidade condal”. A Casa Real recebeu um aluvião de petições para que indultasse Ferrer. Alfonso, afectado pela campanha na imprensa, enviou comunicados de rectificação a vários diários estrangeiros. Falsamente argumentava que como monarca constitucional não estava nas suas mãos conceder o indulto a Ferrer, já que esta prerrogativa era da iniciativa do governo, mas sem que nada fizesse para evitar o fuzilamento. Chegou ao seu conhecimento que uma solicitação do papa no sentido da clemência bastaria para que a pudesse atender e, o rei, valendo-se do corpo diplomático, agiu no sentido dessa pirueta justificativa. O Vaticano que não era muito propício a
edição de 6 de Outubro de 1910 do diário republicano madrileno El País. Cf. Emilio Rivas Calvo & Carlos d’Abreu, A revolução republicana em Portugal vista pela imprensa de Madrid – La Época e El País op. cit., p. 166. 72 Juan Avilés Farré, Francisco Ferrer y Guardia. Pedagogo, anarquista y mártir, op. cit., p. 253. 73 Campos Monteiro, A Paixão de Ferrer (poemeto), op. cit., pp. 25-26. CEPIHS | 2
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tomar iniciativas desse tipo, foi adiando a decisão para finalmente enviar o pedido de indulto quando já tinha sido executado o réu. Seria despropositado elevar Ferrer à categoria de sábio ou de santo, porque não era um génio, tampouco um pensador que se destacasse pela originalidade e a sua personalidade não brilhava particularmente por ser atractiva nem carismática. Ferrer foi elevado pelos seus inimigos, foram eles que lhe outorgaram a imortalidade74. As circunstâncias da sua imolação foram a razão para que alcançasse renome mundial, as suas peripécias biográficas, as suas tendências revolucionárias, as relações e o projecto educativo fizeram de Ferrer um nome conhecido, especialmente após o processo de 1907, o resto, talvez tenha resultado do trabalho dos seus inimigos, como diz o autor supracitado. “A MULTIDÃO – Abaixo quem defende o libertario, o atheu! – Deve ser condemnado á morte! É necesario… GALCERÁN, n’um murmúrio Que mais sangue inocente escôrra do Calvário”75.
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William Archer, Vida proceso y muerte de Francisco Ferrer Guardia, op. cit., p. 273. Campos Monteiro, A Paixão de Ferrer (poemeto), op. cit., p. 18.
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A crónica em Campos Monteiro José Eduardo Firmino Ricardo* “Qual o nosso defeito? Somos um povo individualista, de inteligência viva, mas pouco suscetível de esforços coletivos duradouros, de solidariedade, de disciplina”. Campos Monteiro
Resumo – Mais do que qualquer tipo de influência literária, Campos Monteiro formou-se, enquanto escritor, através da sua abundante participação nos diversos jornais e revistas por onde passou, ao longo da sua curta vida. Curta mas preenchida, pois aos quinze anos já dedilhava artigos para os jornais. Através do género por ele mais cultivado – a crónica jornalística – este artigo pretende mostrar o pensamento combativo do autor enquanto agente transformador de uma sociedade em permanente ebulição política e social. Denunciou, muitas vezes pelo ridículo, as incongruências e as anomalias do meio social e o comportamento dos homens, os quais não deixaram, muitos deles, de figurar na galeria de retratos e das cenas que estão dispersos em As duas paixões de Sabino Arruda e Saúde e fraternidade. Palavras-chave – Campos Monteiro, Crónica, Sátira, Política, As duas paixões de Sabino Arruda, Saúde e fraternidade. Abstract – More than any kind of literary influence, Campos Monteiro made his way as a writer through his plentiful participation in various newspapers and magazines, throughout his short but full life, for at age of fifteen, he had already written articles for newspapers. The aim of this article is to show the author’s important role as a combative transforming agent of a society in permanent political and social agitation, analyzing his most used genre – the journalistic chronicle. He proposed to denounce, often by ridicule, the inconsistencies and anomalies in society’s social setting and in men’s behaviour, what can be seen in the characters that are portrayed and roam the passages of his two books: As duas paixões de Sabino Arruda and Saúde e fraternidade. Keywords – Campos Monteiro, Chronicles, Satire, Polítics, As duas paixões de Sabino Arruda, Saúde e fraternidade.
______________ * Professor; mestre em Estudos Literários. CEPIHS | 2
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A paródia da literatura realista
Não me parece absolutamente exagerado afirmar que Campos Monteiro foi um dos mais prolíferos escritores do seu tempo. Para além disso, a sua produção literária embebeu-se em dissímeis géneros literários. Estes percorrem, na verdade, a obra do autor através de espaços próprios e aparentemente conjeturais. Abstraindo-nos, por exemplo, do compósito poético e dramático do autor – géneros de que Campos Monteiro não consegue (ou não quer) estruturalmente afastar-se –, verificamos que o seu percurso romanesco percorre as duas grandes correntes literárias vividas em finais do século XIX e princípios do XX: o neorromantismo e o realismo (ou realismo-naturalismo). De certo modo, o autor nascido em Torre de Moncorvo calcorreia as vicissitudes literárias de um dos seus indubitáveis polos orientadores, Camilo Castelo-Branco, quando este esboça o projeto dos “romances facetos” (designação do próprio com óbvia carga pejorativa), como fonte inspiradora de uma acérrima crítica ao modelo realista-naturalista1. Para Camilo, o realismo-naturalismo não é mais do que uma perversão do natural, uma corrente menor que se encaixa na perfeição de uma perspetiva parodística. Abílio Adriano de Campos Monteiro não anda, de facto, muito longe deste ponto de vista, quando mete mãos à obra do seu projeto (parodístico? Naturalista-realista?) literário que é o tríptico “A Comédia de Hoje”, infelizmente inacabado pela precoce (mas esperada) morte do autor. Devemos notar, desde logo, que o título entra em perfeita desarmonia com o díptico que o precedeu – “Os Dramas de Ontem” – onde se inserem os romances Miss Esfinge e Camilo Alcoforado. E a desarmonia não podia ser mais notória na explicação dada na nota preambular do único romance daquele tríptico, As duas paixões de Sabino Arruda, onde, ironicamente, projeta o propósito do romance, que é o de estereotipar cenas da vida moderna, mesmo que a matéria-prima do escritor, de acordo com os cânones realistas, se fundamente quase em exclusivo na sociedade que se encontra corroída por uma infeção cheia de pus, segunEncontramos esta tendência crítica sobretudo no díptico constituído pelos romances Eusébio Macário e A corja. 1
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do as suas próprias palavras2. É por isso que o autor se desculpabiliza do resultado dessas fotografias advindas da sua pena: tal como não se pode imputar culpas ao fotógrafo que aponte a sua objetiva para um pântano, o escritor que expõe a sociedade do seu tempo também não tem culpa da putrefação que lá reside. Daí que, neste contexto parodístico, o autor não pode prescindir dos métodos que os escritores realistas abusaram “larga-manu”, sob pena de a prosa ficar “desenxabida”. Aconselha mesmo as meninas adolescentes a não lerem o romance, embora às outras, às de mais avançada idade, “na contemplação de certo número de atos indecorosos [podem encontrar] a sadia repulsa que venha a inibi-las de os praticar”3. Mas vai mesmo mais longe, nesta ridicularização da literatura realista-naturalista, quando afirma que os que não o lerem farão ainda melhor4. Saúde e fraternidade: a crónica alargada
É este traço paródico-satírico que encontramos na obra que foi o seu maior sucesso editorial5, Saúde e fraternidade, uma história profética e inevitavelmente decadente da República, dividida aqui em sete consulados, os quais terminam com a restauração da monarquia. Nestas páginas, Campos Monteiro percorre caricaturalmente o programa social e político da primeira República, onde nem mesmo a igreja católica escapa à sua verborreia crítica, quando discorre sobre a ausência de pundonor das suas ações, a respeito de um governo chefiado por Ginestal Machado: Cf. Campos Monteiro, As duas paixões de Sabino Arruda, Porto, Livraria Civilização, 1928, p. 7. Idem, p. 8. 4 Não podemos, todavia, deixar de enquadrar este romance pragmaticamente, isto é, Campos Monteiro estaria mesmo num ponto de viragem da sua perceção artístico-narrativa. É, pois, com este intuito que o cofundador da revista Civilização – Grande Magazine Mensal, Ferreira de Castro, se refere a este romance como uma renovação artística do autor. Cf. Ferreira de Castro, “Campos Monteiro”, in Civilização – Grande Magazine Mensal, n.º 64, 1934, p.18. 5 Em seis meses, foi reeditada sete vezes. Em 1925, teve a décima edição, com 30 000 exemplares. Cf. Carlos de Passos, Homenagem a Campos Monteiro. Miscelânea de estudos em honra do escritor e do cidadão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1943, p. 376. Em 1978, em pleno período pós-revolucionário, a editora Edições do Templo decidiu, significativamente, estabelecer uma nova edição. 2 3
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“Teve contra si os democráticos, os independentes, os radicais e os monárquicos, e só pôde contar com a benevolência dos católicos, os quais, fiéis à sua divisa «Tudo que vier é lucro», se encontravam dispostos a conceder o seu apoio a todo e qualquer governo, sem olhar a pessoas nem a programas”6.
Esta obra granjeou-lhe muitos encómios7 vindos das mais inesperadas vozes. Recorro, a título ilustrativo, a Aquilino Ribeiro, quando o autor de O romance da raposa anota que existe, em Saúde e fraternidade, uma observação justa e mordaz, uma “visão bufa da vida política”8. O que há verdadeiramente nesta espécie de crónica geral de uma República falhada é a capacidade que o autor demonstra no acolher de um psiquismo pátrio, propositadamente grotesco na apresentação de algumas figuras históricas da primeira República. Neste propósito, Júlio Dantas, eminente figura da cultura portuguesa e presidente da Academia de Ciências de Lisboa, foi uma espécie de bombo da festa para Campos Monteiro, onde este não se acanhava de, estrondosamente, ribombar, numa curiosa confluência temática com Almada Negreiros, ainda que numa orientação discursivo-estilística naturalmente diferenciada da do Manifesto anti-Dantas9.
Campos Monteiro, Saúde e fraternidade, Lisboa, Edições do Templo, Colecção Paródia, 1978, p. 22. 7 Mas também lhe originou críticas várias, sendo a mais notada e estruturalmente mais coerente com o livro de Campos Monteiro, a de Armando Boaventura, com a réplica, editada em 1924, Sem rei nem roque… A restauração da monarquia em 1926 e o império dos altos-comissários. 8 Aquilino Ribeiro, “Artigo de Aquilino Ribeiro”, in Carlos de Passos (orgs): Homenagem a Campos Monteiro. Miscelânea de estudos em honra do escritor e do cidadão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1943, p. 249. 9 As principais notas caricaturalmente críticas relativamente a Júlio Dantas, por parte de Campos Monteiro, prendem-se com o seu pendor adesivista (atravessando arreigadamente a República e a Monarquia, retornando, depois, com o mesmo pejo, para a configuração monárquica do regime) e com a sua duvidosa qualidade enquanto literato. 6
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As crónicas
Subsiste, em todas estas narrativas de Campos Monteiro, uma perceção ao nível genológico que as aproxima das crónicas. Convém referir, a este propósito, que a crónica surge em força no século XIX, ficando muito a dever o seu desenvolvimento a um outro tipo de textos de imprensa que foram os folhetins. Estes ganharam um espaço próprio nos jornais do século XIX, no intuito de corresponder “aos gostos e anseios de um público burguês, ávido de informação e enriquecimento cultural”10. Do mesmo modo, o princípio da serialidade, a localização gráfica (geralmente situavam-se no rodapé do jornal), a abrangência dos temas abordados (os quais poderiam ir da literatura ao ensaio, passando até pela resenha da última semana descrevendo as inaugurações, os saraus, bailes…), ajudaram também à fixação deste género nas páginas dos jornais. Em suma, o folhetim (designado já por alguns escritores como crónica) era, em oitocentos, basicamente uma literatura de entretenimento, “complementar da função primordialmente informativa da imprensa”11. Eça de Queirós, numa das crónicas insertas no jornal bissemanário Distrito de Évora (n.º 1, 6 de janeiro), por si fundado, salienta esta tendência de menoridade da crónica ao escrever: “A crónica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com os que o leem: conta mil coisas, sem sistema nem nexo, espalha-se livremente pela natureza, pela vida, pela literatura, pela cidade; fala das festas, dos bailes, dos teatros, das modas, dos enfeites, fala em tudo baixinho, como quando se faz um serão ao braseiro, ou como no verão, no campo, quando o ar está triste. Ela sabe anedotas, segredos, histórias de amor, crimes terríveis; espreita porque não lhe fica mal espreitar. Olha para tudo (…) confunde tudo, tristezas e falécias, enterros e atores ambulantes (…) ela não tem opiniões, não sabe do resto do jornal”12. Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de narratologia, 6.ª edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1998, p. 177. 11 Ibidem. 12 Eça de Queirós, Prosas esquecidas II, Lisboa, Editorial Presença, 1965, p. 123. 10
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Só que a crónica foi ganhando um espaço de maior notoriedade literária, pois ela servia também como um trajeto de autoformação e de cimentação do escritor relativamente aos seus romances, para além, obviamente, do reforço da importância social do próprio autor. Na verdade, a respeitabilidade e notoriedade do escritor crescia proporcionalmente quanto maior fosse o seu empenho na imprensa periódica, como se comprovou, aliás, com um curioso e interessante inquérito realizado, em 1884, pelo jornal de Coimbra O Imparcial, no sentido de determinar quais os escritores portugueses mais notáveis. O resultado deu uma vitória aos que escreviam regularmente na imprensa periódica, em que, dos primeiros cinco lugares, três deles escreviam regularmente em jornais13. Assim, é através duma exposição periodicista que, em Portugal, o escritor inicia, muitas vezes, o seu caminho individual. Por conseguinte, a crónica é, de facto, a peça de opinião mais personalizada entre os géneros jornalísticos, daí que se torne difícil definir os seus contornos. Na crónica não há lugar para a ausência do opinativo, pois toda ela, segundo Fernando Cascais, se alicerça como o transmissor da “(...) perspetiva pessoal do seu autor e cuja liberdade do tema deve apenas ser condicionado pelo seu interesse para os outros, isto é, a crónica é um texto personalizado mas o seu tema não é pessoal. É também a escrita jornalística de recorte mais literário, mas condicionada à clareza que o texto jornalístico deve sempre manter”14.
Do mesmo modo, a referência que Jacinto Prado Coelho edifica deste género no seu Dicionário da literatura é a que melhor se insere do ponto de vista da escrita cronista de Campos Monteiro.Destarte, para o autor de Ao contrário de Penélope, a crónica aparece-nos como um “termo vago, Cf. Rui Ramos, “A segunda fundação”, in José Mattoso (orgs), História de Portugal, vol. VI, Lisboa, Editorial Estampa, 2001, pp. 58-59. Esta mediatização tem, com sabemos, um paralelo nos dias de hoje através da televisão, onde muitas personalidades, dos mais variados quadrantes socioprofissionais, iniciam, muitas vezes, a sua ascensão através duma progressiva inserção no meio televisivo. 14 Fernando Cascais, Dicionário de jornalismo. As palavras dos media, Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, Colecção Media Hoje, 2001, p.63. 13
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que tanto serve para classificar pequenos contos de entrecho mal definido ou comentários ligeiros de episódios reais ou imaginários, como o trecho de apreciação literária ou crítica de costumes”15. Por isso, neste conceito de crónica, joga-se com a pertinência da inteligibilidade do escrito, do pessoalismo sem, no entanto, ser demasiado subjetivo, assim como a “obrigatoriedade” do seu oportunismo, e/ou “aguda sem ser profunda”16. Ou seja: para o escritor de crónicas, mais do que um compromisso com a objetividade ou a informação, importa antes a qualidade do texto em si, mesmo que a sua (simulada) efemeridade ou até mesmo a decorrente abordagem conteudística sobre aspetos mais ou menos superficiais da vida social – inseridos, portanto, numa visão multímoda de uma época –, a transportem, ingloriamente, para uma subalternidade dentro da narratologia literária. Não é por acaso que, até às primeiras décadas do século XX, muitos dos escritores maiores do nosso espetro literário cultivaram abundantemente este género. Injustamente, Jacinto do Prado Coelho, no citado artigo, não coloca Campos Monteiro como um dos mais fecundos artífices do género crónica do princípio do século passado. A crónica monteiriana constrói-se também dentro de uma perspetiva satírica, tendo em conta que alimenta – ou deixa antever – uma correção e melhoramento do meio social, assim como uma função moralizadora, própria, aliás, do ethos satírico. Há, pois, em Campos Monteiro, uma espécie desígnio perlocutivo em grande parte das suas crónicas, quer sejam políticas, sociais, literárias, ou até mesmo meros ataques pessoais, como encontramos, por exemplo, na primeira “Crónica Anacrónica” do semanário Maria Rita, assinada com um dos seus cadenciosos pseudónimos, neste caso, Marcial Jordão: “O Sr. Dr. Júlio Dantas publicou há dias, no Primeiro de Janeiro, um interessante diálogo intitulado História de um colar. Toda a gente gostou, apreciando mais uma vez o talento do douto presidente da Academia das Ciências. Jacinto do Prado Coelho, “Crónica”, in Dicionário da literatura, vol. I, 4.ª edição, Porto, Mário Figueirinhas Editor, 1997, p.236. 16 Ibidem. 15
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Mas sempre os grandes homens provocaram a inveja dos de menos coturno. E a prova está em que o sr. Francisco de Canavarro de Valadares veio, na Voz, atirar-se ao autor de Sol-e-dó Timpanas, acusando-o de ter roubado o artigo, que se encontra, com a etiqueta de Le gros lot, nos Dialogues d’amour de Michel Provins. A acusação era grave, e punha em cheque, não só a reputação do sr. Júlio Dantas, como a da Academia. Corremos, por isso, a compulsar a obra de Provins. E respiramos, libertos do opressor pesadelo. O diálogo de Provins é escrito em francês, e o do sr. Dantas em português. Como se vê, medeia entre os dois um abismo”17.
Os desígnios perlocutivos das crónicas do autor de Miss Esfinge fazem com que estas desaguem num suposto e insegmentável sentido retificativo da sociedade, o qual se consubstancia, na maior parte das vezes, na recuperação de um tempo perdido. É o que espelha, por exemplo, o antecomeço do livro Moeda corrente (crónicas e contos), onde se delineia um desalentado regresso à única moeda corrente que existia em tempos não muito distantes, “a de bom toque, com a liga da lei, de um cunho absolutamente nacional”18, em contraponto com a existente hodiernamente, em que a mentira “é (…) de todas as moedas correntes, a mais profusamente espalhada e aceite como verdadeira”19. Esta desesperançada tentativa de reconfiguração social está patente, sobretudo, nas crónicas escritas para os jornais A Época, jornal católico de Lisboa (19191927), onde manteve, durante alguns anos, uma secção diária, intitulada “Contra a maré”, o Primeiro de Janeiro (com a rubrica dominical “Quarto de sentinela”) e o Jornal de Notícias, através da coluna semanal “A oito dias de vista”. Os escritos políticos do autor não tinham grande empreendimento nestas páginas, apesar de se afigurar muitas vezes de difícil restrição o que é ou não político nestas suas crónicas de costumes. É o caso da crónica “Funcionários públicos”, publicada no jornal A Época, em que desenvolve mordazmente um tema que nos é atualmente caro e que tem “Crónica Anacrónica”, in Maria Rita, 1932, n.º 1, p. 3. Campos Monteiro, Moeda corrente, 2.ª edição, Porto, Livraria Civilização, 1927, p. 11. 19 Idem, p. 11. 17 18
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a ver com a suposta imprescindibilidade do número de funcionários públicos em Portugal. Monteiro inicia a crónica com uma notícia que leu no jornal, dando conta de uma proposta discutida no Parlamento para que os efetivos da cavalaria da Guarda Republicana fossem diminuídos e, consequentemente, os funcionários públicos fossem aumentados. O sarcasmo do autor é notório, quando afirma que “todos nós sabemos que os funcionários públicos portugueses trabalham exaustivamente. Tenho lido que há nos seus quadros dez vezes mais pessoal que o necessário”20. Como prova “irrefutável” da sua asserção, expõe a sua própria experiência, quando teve de esperar numa repartição que os funcionários acabassem de fumar o charuto e de ler o jornal. Adianta, no entanto, que a prática não é exclusiva da sociedade portuguesa. Conta o episódio de um bode, num município francês, que deixou de trabalhar a partir do momento em que foi coletivizado pelo município, isto é, desde que passou aos quadros do funcionalismo público. No que concerne às crónicas políticas, Campos Monteiro era muito desabrigado de qualquer subtileza de linguagem. Em 1906, publicava, deste modo, no jornal de Matosinhos o Leça21, afeto ao Partido Regenerador, o seu apelo ao Governador-civil para que suspendesse o administrador da Maia das suas funções: “O Sr. Governador Civil está farto de saber quanto vale moral e intelectualmente o Sr. Lopes Maia. (…) [para além de] ser um ignorante e um analfabeto o Sr. Lopes Maia é também um criminoso que de há seis meses a esta parte traz a sua liberdade afiançada em 3000$00 reis”22.
Foi, no entanto, no jornal monárquico Pátria!23 que o nosso autor mais e melhor reproduziu a sua veia de cronista político. Para além disso, Campos Monteiro, Contra a maré, Porto, Livraria e Imprensa Civilização, 1928, p. 111. Campos Monteiro foi redator do jornal. 22 Campos Monteiro, “O Administrador da Maia”, in O Leça, órgão do Partido Regenerador de Bouças e Maia, 1906, n.º 3, p. 1. Antes do final da monarquia, Campos Monteiro foi eleito administrador do concelho da Maia. 23 A Pátria! foi o primeiro jornal monárquico do Porto após o 5 de outubro. 20 21
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a sua projeção neste jornal permitiu-lhe ser eleito deputado monárquico pelo círculo do Porto, nas eleições de 28 de abril de 1918, cargo que exerceu sem brilhantismo, senão mesmo com algum enfado24. Campos Monteiro lembra, numa crónica comemorativa do primeiro aniversário do jornal, em 9 de junho de 1918, a temeridade de Pereira de Sousa, diretor do jornal, ao lançar-lhe o desafio, assim como a sua própria descrença no aparente desacerto que tal aposta jornalística deixava antever, apesar de ter outrora intentado, ingloriamente, esse cobrimento monárquico para a cidade: “Quando Pereira de Sousa me procurou, em junho do ano passado, para me anunciar que ia fundar um jornal monárquico e convidar-me para fazer parte da sua redação, creio que abri desmesuradamente os olhos, manifestando no rosto uma estupefação intensa. Desde o meado do governo provisório que na minha mente entrara a convicção irrefragável de que a república fora o maior dos males que podiam ter caído sobre a terra portuguesa. A contar desse momento – porque aprouve à Providência dar-me um temperamento combativo e porque me preso de ser patriota – pusera eu toda a minha aspiração na fundação de um jornal realista no Porto. Durante meses, durante anos mesmo, me cansei em démarches atinentes a conseguir o ansiado objetivo. Baldado empenho! Sopravam adversos os ventos à exteriorização de modo de sentir político contrário ao Existente. A liberdade de pensamento, pomposamente anunciada e garantida, como indispensável dogma democrático, a alturas tantas da Constituição, era letra morta. Para estrangulá-la, como a justiça dos tribunais se negava a fazê-lo, não obstante a vigência da mais draconiana lei das rolhas que ainda existiu em Portugal, criara-se uma outra justiça, mais expedita e melhor paga que julgava em processo sumário, e sumariamente executava: a justiça popular”25. Curiosamente, a estreia parlamentar de Campos Monteiro, em 29 de julho de 1918, teve como ponto central a saudação que, em nome do Porto, direcionou à republicana nação brasileira, designadamente no que diz respeito ao acolhimento respeitoso que esta concede à memória monárquica, o que, segundo o sentido implícito do seu discurso, se deparava em manifesta contradição com a essência da nossa república. 25 Crónica cedida gentilmente pela família de Campos Monteiro. 24
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Mas apesar das dificuldades enaltecidas pelo cronista, não pôde deixar de cumprir o seu ingénito comprometimento, ao afirmar, no último parágrafo da crónica, que “agora sou eu o otimista, possuído da inabalável convicção de que não soçobrará”26. Era, pois, em nome da pátria que Campos Monteiro erigia a sua jura de combate a uma república causadora “de todos os males que podiam ter caído na terra portuguesa”. Destarte, poderia até abdicar da monarquia, enquanto regime tutelar do país, quando viu chegar Sidónio Pais ao “tablado da política nacional”, se este presidente-rei, como o apelidou Fernando Pessoa27, “pudesse salvar a nação adentro das fórmulas republicanas”. Na verdade, esta aparente contradição de Campos Monteiro tem objetivas razões factuais, visto que a esfera monárquica tende a ganhar cada vez maior relevância no seio do projeto sidonista, ocupando os monárquicos importantes postos no seio institucional do Estado, na administração e no aparelho militar. Neste sentido, Campos Monteiro, nesta mesma crónica de 21 de fevereiro de 1918, no jornal Pátria!, releva o paradoxo político, “Quer dizer: a república, que durante sete anos viveu sob a mentira, passou a viver sob um equívoco. Há no poder um governo republicano abandonado de todos os republicanos, e sustentado unicamente pelos monárquicos. Viu-se já, em algum país do mundo, semelhante paradoxo político?”28. Mas bastaram dois meses para que Campos Monteiro volteasse as suas analíticas agulhas para uma espécie de premonição política. Numa crónica intitulada “Quem paga a revolução?”, de 15 de junho de 1918, o autor antecipa, de certo modo, a narrativa preditiva de Saúde e fraternidade, ao colocar a ênfase numa suposta revolução que tinha como escopo político “voltar as coisas ao pé anterior a 8 de dezembro”, isto é, ao regime pré-
Não obstante toda esta exultação, Campos Monteiro abandonou a redação do jornal no dia 1 de outubro de 1918, após discordância com a linha editorial do jornal. 27 Campos Monteiro ansiava, nesta época, por uma república presidencial, patenteada em Sidónio Pais. 28 A anotação deste “paradoxo político” teve também relevo nas penas do integralista Hipólito Raposo e de João Chagas. O chefe do primeiro governo constitucional da primeira República chegou mesmo a notar, de Paris, que os monárquicos estão senhores do país. 26
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-sidonista, regime esse que teria como principais artífices inspiradores Bernardino Machado e Afonso Costa: “Já não seria pouco, por desgraça nossa e do país em que nascemos, vermos novamente Bernardino no trono, distribuindo a um lado e outro chapeladas e mentiras, Afonso Costa no ministério das finanças pondo em atividade a lauta mesa, para banqueteio de amigos, parentes a aderentes, Norton de Matos no ministério da guerra atirando carne de irmãos ao Moloch insaciável das ambições tortuosas da grei, e o caftain [sic] João Chagas beijando, nas receções do Eliseu, as mãos da ministra do Haiti e os pés de Clemenceau”.
Continua Campos Monteiro a sua relampejada crítica aos eventuais revolucionários extremistas, não lhes poupando mesmo uma analogia com o que se passava, então, na Rússia bolchevista: “E muito mais seria o desenrolar do programa (…) desde o incêndio das casas dos cidadãos pacíficos, à laia da comuna de Paris, até ao fuzilamento, em massa, dos elementos conservadores, durante uns dias de propositada anarquia, à moderna maneira da Rússia”. Perante este teor acusatório e expedita linguagem, não é, pois, de espantar que a redação da Pátria! houvesse usufruído de aulas de esgrima proporcionadas por um velho professor italiano. Curiosamente, o ácido pendor increpante contra Bernardino Machado transportou-se para as páginas de A Época, como que dando, de certa maneira, razão à clarividência do autor, quase transformado num narrador intradiegético e omnisciente, a respeito do conhecimento intrínseco das suas personagens. Na verdade, em crónica publicada em 8 de julho de 192029, Gil Barbeira, um dos pseudónimos do autor moncorvense, insurgia-se contra a postura do ex-presidente da República, quando este se prosternou num comício adverso à amnistia, entregue por um grupo político a António José de Almeida, então Presidente da República, para os implicados em crimes políticos, amnistia essa que não podia deixar de beneficiar os monárquicos envolvidos na intentona de 1919: 29
Crónica cedida gentilmente pela família de Campos Monteiro.
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A crónica em Campos Monteiro “O sr. Bernardino Machado, quando se ofereceu ou aceitou o convite para presidir ao convite da Mouraria, esqueceu-se de que já fora presidente da república (…). Há cargos públicos que requerem, após o seu desempenho, o afastamento da vida política e a manutenção de uma linha tal de conduta que nunca a reprovação pública possa cair sobre a figura que os desempenhou (…). Quem uma vez foi chefe de estado, e se embebeu do reflexo da soberania nacional, de que foi delegado, tem obrigação de lembrar-se de que a dignidade a que o alçapremaram se não evaporou completamente no dia em que o seu mandato terminou. Os reis depostos e exilados não perdem a majestade pelo facto de terem perdido o trono (…). Se ao menos, ainda, o comício fosse para solicitar a amnistia! Fica sempre bem, a quem quer que seja, uma manifestação de piedade e perdão (…). Há ódios mais tenazes que o bronze e mais fortes que a morte. E são sempre pequeninas as almas que os alimentam. A do sr. Bernardino Machado diz com o corpo em que se alberga. Toda ela é inveja, rancor, dissimulação, degenerescência moral. Nunca houve em Portugal homem que os caprichos da sorte tão alto elevassem, e cuja índole tão baixa o fizesse descer”.
Mas nem tudo é combate político na pena cronista de Campos Monteiro. A crónica de costumes e de crítica social tem lugar, principalmente, no que foi o seu grande projeto editorial, a revista Civilização – Grande Magazine Mensal. Direcionada para um público-alvo mais abrangente, a revista abrangia secções várias, desde a literatura (com alguns inéditos, basicamente novelas, mas também poesia e contos infantis), a moda, o cinema, as curiosidades, a história (nacional e internacional), a beleza feminina, o cinema30, etc. Por conseguinte, o autor poderia, de modo mais desamarrado de contingências político-sociais, usufruir do prazer da escrita, focando, muitas vezes, particularidades da nossa vida social que, nos primeiros decénios do século, iniciavam a sua cimentada caminhada. Foi porventura com base nestes pressupostos que Ferreira de Castro, citado Campos Monteiro foi o argumentista da adaptação ao cinema do romance de Júlio Dinis, As pupilas do senhor reitor. O filme estreou no Jardim Passos Manuel, no Porto, em 16 de junho de 1924. 30
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pelo filho do autor moncorvense, Heitor de Campos Monteiro, numa conferência dezassete anos após a sua morte, no dia 4 de dezembro de 1950, realizada na Casa dos Jornalistas e Homens de Letras, do Porto31, afirmou que “(...) ele sabia, como poucos, «pegar» num assunto e dar-lhe no enquadramento de uma crónica, toda a plasticidade imaginável. Tinha o condão de fazer de um tema insignificante uma pequena joia literária. Muita gente o lia nos jornais; mas exatamente porque a leitura seduzia o leitor, amortecendo as faculdades críticas, pouca gente se entregava ao exame do valor das suas crónicas. Porque, se se houvesse feito isto, Campos Monteiro teria sido considerado em vida um dos maiores senão o maior cronista do seu tempo”.
Se existe, portanto, uma marca caraterizadora da crónica é o seu hibridismo enquanto género textual. No croniquizar monteiriano podemos encontrar várias caraterísticas do género, entre as quais uma visão multímoda da época, assim como uma imposta brevidade. Mas também encontramos a ambiguidade, o foco narrativo na primeira pessoa, a ironia e o sarcasmo, a solidão feita saudade.
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Campos Monteiro e a saga camiliana de “José do Telhado” José Luís Lima Garcia* Resumo – Dois escritores da região de Entre-Douro-e-Minho, Abílio Campos Monteiro e Camilo Castelo Branco, trataram, com uma diferença de cinquenta anos, a vida de uma personagem mítica da literatura de cordel das feiras e mercados do norte de Portugal. Utilizando um estilo literário próximo, embora com idiossincrasias diferenciadas, para Monteiro José do Telhado era um quadrilheiro que foi mitificado, enquanto para Camilo não passava de um salteador ou “repartidor público”, que, à semelhança de Robin dos Bosques, roubava aos ricos, para dar aos pobres. Nesta antinomia, baseada em fundamentações contraditórias, uma na recolha oral dos últimos protagonistas desta estória, a outra na experiência vivencial de uma estadia comum na Cadeia da Relação do Porto, se construíra afinal esta saga de José Teixeira da Silva, um antigo sargento dos exércitos liberais oitocentistas. Palavras-chave – Bandoleirismo Social; Biografismo; Liberalismo; Regionalismo; Romantismo. Abstract – Two writers of Entre-Douro-e-Minho, Abílio Campos Monteiro and Camilo Castelo Branco, addressed, with fifty years apart, the life of a mystic character of the literatura de cordel of the fairs and market in the north of Portugal. In a similar literary style, with differenciated idiosyncrasies, José do Telhado was, for Monteiro, a mythical gangster, while he was for Camilo nothing but a robber or “public giver”, who, like Robin Wood, robbed from the rich to give to the poor. In this antinomy, based on contradictory sources – one in the oral collection by the last characters of this story, the other in the living experience of a common stay at the Cadeia da Relação of Porto, is created the saga of José Teixeira da Silva, former sergeant of the liberal army of the 1800´s. Keywords – Social highwaymanship; Biographism; Liberalism; Regionalism; Romanticism. ____________
* Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade
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A figura mítica de um condottière, à moda de Entre-Douro-e-Minho, que foi o José do Telhado, seduziu literariamente dois escritores dessa região, Camilo Castelo Branco e Abílio de Campos Monteiro, ambos oriundos do século XIX, muito embora com uma diferença de cinco décadas. Na contextualização temporal entre a data de nascimento de Camilo, em 1825, e a de Monteiro, em 1876, decorreram muitos acontecimentos importantes da história pátria, nomeadamente revoluções, guerras, exílios, que culminariam na instalação gradual da democracia parlamentar monárquica e na regeneração económica e social. A situação de insegurança e de anarquia Fig. 1 – Imagem romantizada de José do Telhado era tal, na passagem da monarquia absoluta para a liberal, que Alexandre Herculano se servira da obra de Friedrich Schiller, Die Rauber (Os Bandoleiros), de 1781, para confrontar o escritor alemão com esta pertinente questão: “Quem te diria, oh Schiller, que no teu próprio tempo se passavam tais cousas num ponto do globo, que, ao menos geograficamente, pertence à civilização e à Europa?”1. E, de facto, o que é que se “passava” nesta parte do “globo” ainda inserida civilizacionalmente na Europa e que poderia susceptibilizar os outros cidadãos deste Continente? Em Portugal, a revolução burguesa de 1820 destronara definitivamente um regime absolutista que vigorara durante quase sete séculos, onde a realeza governara de forma arbitrária acima de três ordens sociais, que eram a nobreza, o clero e o povo. Esta forma prepotente de dominar, que se traduzira nos últimos anos na expressão “iluminada” do l’ État c’est moi, trouxera, após a sua remissão, muita resistência por parte da realeza, bem como de muitos dos seus sequazes da velha aristocracia e do clero, que manipulando uma parte da Alexandre Herculano, Apontamentos de Viagem, Obras Completas de Alexandre Herculano, Lisboa, Livraria Bertrand, 1973, p. 259. 1
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população, sobretudo rural, reagiam contra a secularização, o igualitarismo e o pluralismo da democracia assente nas eleições e no voto parlamentar que sufragava deputados e governos. Interessante nos parece a caracterização que o investigador Joaquim Palminha da Silva fizera destes primórdios do liberalismo português, explicitando como emergira, num período de crise, de valores e de ideologias, um conjunto de homens que, revoltados e incólumes à justiça, saqueavam e roubavam aos mais ricos e poderosos, para depois se sustentarem e repartirem os últimos despojos pelos mais pobres e discriminados da sociedade. Esta forma de “bandoleirismo social” que despontara no mundo rural, nos princípios de Oitocentos, tinha a sua matriz, segundo Silva, na mudança de regime político, ocorrida nessa altura, como aliás se depreenderá das palavras deste estudioso da história recente portuguesa: “O Estado liberal contemporâneo, centralizado e urbano que, desconhecendo a diversificada realidade agrária do país, acabou por se converter numa espécie de Poder «estrangeiro» que impôs, com o seu exército, colectores de impostos, etc., uma vida social laicizante; a nova redistribuição da propriedade rural – através da venda em «hasta pública» dos bens das ordens religiosas, extinção do morgadio, etc. – em ordem à infiltração do capitalismo liberal nos campos. Foi contra tal estado de coisas que se levantaram reacções reais ou aparentemente opostas, liberais contra absolutistas; setembristas e patuleias contra cabralistas e cartistas. A isto devemos juntar a constante decepção popular perante a prática política peninsular dos sucessivos pronunciamentos militares e «quarteladas», o recurso à guerrilha e ao bandoleirismo de grupo e a sua quase institucionalização em certos períodos, em nome de princípios e promessas nunca respeitadas ou deficientemente compreendidas pelo campesinato; o tradicional caciquismo e caceteirismo eleitoral; a corrupção e o burocratismo exasperante, tudo a influenciar, sem dúvida, o desbobinar esporádico e nalguns casos o êxito de postulados que determinaram o tradicionalismo dos grupos sociais do campesinato pobre e assalariados rurais”2. Joaquim Palminha da Silva,“Guerrilheiros, Bandoleiros e Rebeldes – O campo contra a cidade”,in revista História,Ano XII,N.º 124,Janeiro de 1990,pp.4-35,especialmente pp.6-9. 2
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Portanto, foi a centralização urbana do “Estado liberal” que pusera de “pé atrás” a comunidade rural, constituída maioritariamente por camponeses e trabalhadores mas, ainda, por padres e párocos de aldeia, abades e aristocratas fundiários, que viam com maus olhos toda uma série de reformas que visavam a reformulação da propriedade, do cadastro agrário, da nacionalização e a venda de bens de antigos senhores feudais, dos impostos, da lei testamentária da prevalência do filho mais velho na herança, da deslocalização dos cemitérios para lugares que oferecessem mais condições higiénicas, que não as igrejas e os seus adros. Todas estas medidas, vindas de Lisboa que, por ausência de vias terrestres e ferroviárias adequadas, ficava muito longe, quase como qualquer outra cidade da Europa. Ainda, as rivalidades políticas, religiosas, sociais e étnicas constituíam ameaça a estas sociedades endogâmicas e herméticas, quase mudas e autistas na forma de funcionar, que viam num estranho, fosse português, francês ou inglês, uma ameaça na rotina do seu dia-a-dia, onde as actividades se repartiam entre o campo, o estábulo, a igreja e a casa. Segundo Palminha da Silva, a rápida mudança da estrutura mental e ideológica da sociedade portuguesa teria levado a que os princípios éticos tivessem sido alterados, pelo que, numa forma de sobreviver, a população do interior do país tentasse preservar os antigos pressupostos religiosos “(…) da Igreja primitiva, na sua fase militante – a essencial igualdade humana, o comunitarismo dos primeiros grupos de cristãos, a solidariedade entre os «humildes» –, passam a ser património do bandoleiro social, espécie do «anjo vingador» – caso do padre Casimiro (Maria da Fonte) auto-intitulando-se «general das cinco chagas» e de «Zé do Telhado», como «repartidor público», bem como outros da vasta e picaresca ou facinorosa galeria que preenche o «vazio místico», produzido entre outras coisas não menos importantes pela acelerada secularização da sociedade”3. Ainda, “Guerrilheiros, Bandoleiros e Rebeldes – O José do Telhado e a Maria da Fonte”, in revista História, Ano XII, N.º 128, Maio de 1990, pp. 18-37, especialmente pp. 6-9. 3 Idem, revista História n.º 124, Janeiro de 1990, p. 9.
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Deste modo, o bandoleirismo, segundo certos autores da historiografia anglo-saxónica, como Eric Hobsbawm, era uma ocorrência que se verificava em sociedades rurais, em momentos de crise, nos quais o poder político se tornava vulnerável e não se deixava respeitar por esta trupe de salteadores. Procurando compreender mais aprofundadamente este fenómeno social, poderemos dissecar etimologicamente o termo “bandoleiro”, que deriva de “bando”, grupo ou conjunto de homens que, de acordo com Juan Ramón Lodares, tem duas acepções semânticas: a primeira, surgida nos primórdios do século XIV, como um galicismo com conteúdo jurídico que evoluiu, dois séculos depois, já em pleno dealbar da Época Moderna, por influência italiana, para uma derivada de “bando”, melhor dizendo, “bandido” ou aquele que era perseguido ou relegado pela lei; a segunda, proveniente da palavra latina “bandum”, que significava “estandarte”, “bandeira”, e que por uma actuação metonímica de dar o nome de uma coisa a quem a leva, se passaria a denominar “grupo” ou “facção”4. A partir da palavra catalã “bàndol”, que assumiu esta última significação até ao século XIII, passando no século XV a “bandoler” ou “bandolero”, em castelhano, aquele que era “partidário de algum dos bandos em conflito”. Progressivamente o seu sentido generalizou-se para todo aquele que praticava a delinquência: o “delinquente”, o “ladrão”, o “salteador”. Desta forma, o termo “bandolero” expandiu-se para outros países românicos como a Itália, França e Portugal, se bem que nestes últimos tenha prevalecido o italianismo “bandido”, acepção que em Espanha só vingaria no século XIX, difundida pelos viajantes europeus românticos que divulgaram os nomes de alguns desses Fig. 2 – Representação alegórica de bandos e bandidos “heróis” dos conflitos na Andaluem Mallorca, Espanha Juan Ramón Lodares, “El bandolero desde el idioma”, in Juan Antonio Martínez Comeche, Le bandit et son image au Siècle d’ Or, Actas del Coloquio Internacional de 1989, Madrid, Universidad Autónoma de Madrid, 1991, pp. 153-161. 4
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zia, como Diego Corriente e os Siete Niños de Ecija5. Em Portugal, as expressões para aqueles que estavam fora-da-lei e que se integravam em grupos ou bandos para assaltar e cobiçar bens alheios variavam e, embora com uma matriz linguística formalmente diferente, estes ladrões de estrada eram conhecidos ou tratados por “bandidos”, “bandoleiros”, “salteadores” e “quadrilheiros”. Se bem que a prática do roubo e da interpelação violenta do viajante descuidado ou distraído fosse uso de todas as épocas, a delinquência na contemporaneidade portuguesa tivera a sua origem no século XIX com as invasões francesas e, depois, na guerra civil entre absolutistas e liberais, com a resistência armada que grupos de populares ofereciam quer ao invasor estrangeiro, quer ao dissidente político e religioso que desprezava os valores do antigo regime monárquico e inquisitorial. Logo, o arquétipo daquele que se devotava à guerra ou à pequena guerra, a guerrilha, era todo o indivíduo com espada ao lado, pistola na cintura, outra na mão, que emboscava, combatia numa topografia irregular, debandava da campina rasa ou do combate frontal, aparecia quando menos se esperava, disparava e fugia. No fim de contas, surpreendia o inimigo belicamente mais forte pela via do desgaste psicológico, do medo e do terror, factores que gradualmente iam consumindo em fogo brando as resistências desses soldados institucionalizados em companhias e batalhões, com capitães e generais a cumprir e a emitir ordens, no contexto de uma hierarquia rígida e disciplinada. E a grande mais-valia desta horda de guerrilheiros era o apoio logístico, a conivência e a amizade das populações rurais, que os ajudavam com dinheiro, munições e víveres. No Portugal oitocentista e liberal, o trajecto de heroicidade de José do Telhado começou a ser construído ainda ele era soldado das tropas regulares do duque de Saldanha e, só mais tarde, depois de ter passado à vida civil, se tornaria um “salteador”, na palavra de Camilo Castelo Branco, e um “quadrilheiro”, na de Campos Monteiro. Assaltando ou chefiando a quadrilha, José Teixeira da Silva não deixava de continuar a ser um combatente, agora já não pelas forças regulares do Exército, mas pelas Ricardo García Cárcel, “El bandolero en la Literatura y la Historia”, in revista Historia, 16, Año XXII, N.º 253, Mayo, de 1997, pp. 25-28, especialmente p. 25. 5
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divisões de um grupo de homens armados, que utilizando as técnicas de guerrilha, como o medo e a surpresa, aparecia nos locais mais inusitados para, como “repartidor” social, tirar aos ricos e deixar aos mais precisados, incluindo os seus companheiros de ofício, muitos deles pobres camponeses, soldados insolventes, meretrizes e rameiras, indigentes e bêbados irrecuperáveis. Foi assim com escritores, teatrólogos, cineastas e narradores como António Nobre, Armando de Miranda, Camilo Castelo Branco, Campos Monteiro, Castro Pinto, Eduardo Noronha e Rino Lupo que se foi construindo uma memória deste património, assente na figura mitificada e lendária deste “bandido-herói”, cujo lado romântico e galanteador se sobrepôs ao de aquele outro, mais facínora e sanguinário, de um delinquente que por ser socialmente pouco influente, acabaria julgado e condenado a passar o resto dos seus dias no degredo perpétuo de Angola, cafrealizado, abandonado e na mais sórdida miséria6. Para este lastro de protagonismo de um dos mais referenciados bandoleiros da nossa história coeva contribuíra, entre muitos, como já referimos, a pena de dois escritores da região de Entre-Douro-e-Minho. E se Camilo, no devaneio do seu amor de perdição nas masmorras da cadeia do Porto se esqueceu dos defeitos do salteador do Telhado7, Campos Monteiro, de uma forma realista e menos romântica, escalpelizou o processo destes profissionais do crime e concluiu que, apesar de provados e reconhecidos todos os atentados contra a propriedade alheia e a integridade física de alguns dos grandes proprietários do norte, estes foram condenados pelos tribunais de Amarante, Felgueiras, Lousada e de Marco de Canaveses, se bem que uns mais sentenciados, muitos desapareceram, alguns fugiram para o Brasil, outros por doença foram parcialmente indultados, como o morgado da Magantinha, António Ribeiro Correia de Faria, e só José do Telhado foi interditado de tornar a regressar ao seu solo matricial8. César Barreira, “Banditismo e Práticas Culturais: a Construção de uma Justiça Popular”, in Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, Volume 41, n.º 2, Julho/Dezembro de 2010, pp. 73-82, especialmente p. 77. 7 Camilo Castelo Branco, Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», Lisboa, Frenesi Editora, 2.ª Edição, 2007, p. 44. Ainda do mesmo autor, José do Telhado, Porto, Edinter, 1990, p. 54. 8 Campos Monteiro, José do Telhado e os seus Quadrilheiros, Amarante, Edições do Tâmega, 2001, p. 87. 6
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Mas, a pena adequava-se ao grau de culpabilidade e de posicionamento que tinha nesta quadrilha de malfeitores, pois sendo o seu chefe, arcou com essa responsabilidade até aos últimos dias da sua vida, lá nos inóspitos sertões de Angola. A propósito desta visão diferenciada de uma mesma personagem da história conturbada de Oitocentos, que era a do José do Telhado, vamos a partir de agora fazer a análise intertextual, segundo as obras que Camilo Castelo Branco e Abílio Campos Monteiro escreveram sobre este “bandido-herói” do nosso património literário. Partindo da estória de vida da personagem principal, procuraremos de uma forma “linear”, numa trajectória que seguirá o indivíduo, desde o seu nascimento até à sua morte, fazer uma “viagem” com a adequada Fig. 3 – Reprodução da capa do livro de Camilo sobre a “Vida do José do contextualização da época9, mas sem deixar Telhado” de realçar o confronto idiossincrático entre Camilo e Monteiro, nomeadamente sobre a questão mais pertinente a desmitificar na saga camiliana dos heróis românticos, que era a de louvar e exaltar a personagem principal, negando, omitindo e desconstruindo os outros aspectos menos bons, relativos a violência e a brutalidade. Esta tese estava, aliás, bem explícita no paternalismo do texto “Política Interna”, que precede a biografia que Camilo fizera a este quadrilheiro, quando afirmava que “a experiência tem mostrado que não é por meio da perseguição que se moralizam esses homens. A morte de um ou dois não desorganiza as maltas. A prisão dalguns o mais que faz é aumentar a estatística das enxovias, anulando para a sociedade alguns homens que o ar corrompido das cadeias acabou de perder”10. E referindo-se explicitaVavy Pacheco Borges, “Gabrielle-Sieler, uma vida (1874-1940): os desafios da biografia”, in Anais do Sexto Congresso Internacional do Brazilian Studies Association (BRASA), Atlanta, Georgia, 4-6 de Abril de 2002, pp. 1-11, especialmente pp. 1-2. 10 Camilo Castelo Branco, “Política Interna”, in Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», op. cit., p. 7. 9
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mente ao delinquente de Penafiel, Camilo aclarava melhor, com um laivo de moralismo, o que pretendia da relação entre a justiça e os homens que desafiavam as leis do liberalismo monárquico de então: “(…) A perseguição incessante de uma matilha de salteadores o mais que faz é deslocá-la. Não há muito que um celebrado José do Telhado, no dia imediato ao do assalto, passeava na feira de Paredes, por diante da autoridade, e reduzia a sítio em Penafiel o juiz de direito, que não ousava sair fora das barreiras, segundo nos informam. Quantas dificuldades a vencer para guardar com sentinela à vista a tranquilidade pública desses lugarejos! O exército que vive nas estufas dos quartéis, para não sabemos que efeitos, poderia estanciar por essas paragens, velando a propriedade e segurança do lavrador? Decerto não. Seria um ónus pesadíssimo para o povo, que prefere sustentá-lo nos quartéis como um traste de luxo nacional. O trabalho, bem remunerado, é o único expediente que pode reconciliar com a sociedade os que a exploram com desonra, porque ela não lhes dá um emprego honesto”11.
Mas afinal quem era este homem que toda a gente conhecia por José do Telhado? Como se depreende “Telhado” não correspondia ao apelido de família, sendo o seu verdadeiro nome o de José Teixeira da Silva, embora fosse conhecido pelo lugar onde nascera em 1816, na freguesia de Castelões de Recezi- Fig. 4 – Versão manuscrita original da certidão de nascimento de José do Telhado nhos, concelho de Penafiel. A genética da sua família predispunha-o, logo a partir do berço, para as práticas ilegais, sobretudo na altura de ressaca das invasões francesas, com a Corte ausente no Brasil. Assim, o pai Silva, mais conhecido por Joaquim do Telhado, para sobreviver à crise do furacão gaulês, tive11
Idem, Ibidem, p. 9.
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ra necessidade de assaltar e roubar viajantes e honestos lavradores, para poder sustentar a família. Apesar destes antecedentes familiares, José no início procurou levar uma vida normal de um rapaz da sua idade, alheando-se das actividades do pai que, num país pequeno e pobre como Portugal, eram difíceis e perigosas, ao contrário do que acontecia noutras regiões europeias, onde este métier tinha mais sucesso e reconhecimento, como se depreendia das palavras de Camilo na narrativa agora em estudo. Apa- Fig. 5 – Variante moderna e dactilografada da rentemente provincianas e sábias, as mesma certidão do delinquente penafidelense palavras do escritor de S. Miguel de Seide revelavam um chauvinismo masoquista ou mesmo um patriotismo antipatriótico, pródigo do português em se lamuriar de si próprio, face ao que observava do que se passava lá fora, à distância saramaguiana desta “jangada de pedra”. A medida comparativa entre os salteadores deste lado de cá do atlântico, e do lado de lá do mediterrâneo, a terra dos descendentes dos antigos romanos, onde até para se saquear e amedrontar eram precisos modos e trejeitos “clássicos”. Nesta via de sincronias, Camilo Castelo Branco aduzia as seguintes razões para a nossa miséria material e espiritual: “Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando se manifestam e apontam a extraordinários destinos. A Calábria é um desprezado retalho do mundo; mas tem dado salteadores de renome. Toda aquela Itália, tão rica, tão fértil de pintores, escultores, maestros, cantores, bailarinas, até em produzir quadrilhas de ladrões a bafejou o seu bom génio! Aí corre um grosso livro intitulado: Salteadores Célebres de Itália. É ver como debaixo daquele céu está 98
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abalizada em alto ponto a graduação das vocações. Tudo grande, tudo magnífico, tudo fadado a viver com os vindouros, e a prelibar os deleites de sua imortalidade”12.
Com catorze anos, José Teixeira da Silva apaixonou-se por uma prima direita, filha de uma tia que estava casada em Lousada com um francês que se dedicava ao ofício tradicional de castrador, embora estes amores juvenis tivessem sido contrariados pelos progenitores, que desejavam para a filha um outro “partido” mais limpo de sangue e de proventos, nomeadamente alguém que fosse proprietário de terras, pois a agricultura ainda era a aurea mediocritas dos pobres e remediados. Desiludido com a atitude dos tios, viera para Lisboa e assentara praça no Regimento de Cavalaria n.º 2, unidade também conhecida pelos Lanceiros da Rainha, onde se empenhara, até atingir o posto de sargento13. Nessa qualidade participara em 1837, três anos após a assinatura da convenção de Évora-Monte, pacto que pusera termo à guerra civil entre absolutistas e liberais, na Revolta dos Marechais, insubmissão que foi comandada pelo duque de Saldanha. Corajoso e destemido nalguns combates, como o de Ruivães e o de Chã da Feira, tornara-se homem de confiança de outros oficiais, a ponto de o barão de Setúbal o ter nomeado seu ordenança e com ele ter estado exilado durante algum tempo em Espanha. Os êxitos castrenses e a maturidade que entretanto havia adquirido durante as várias revoltas da implantação da monarquia liberal em Portugal, levara a que seu tio reconsiderasse e permitisse que a filha se pudesse casar com um militar destemido e bem visto pelos seus superiores hierárquicos. Com uma folha de serviço imaculada, pediu a passagem à reserva do Exército e resolveu regressar à sua primordial região de Entre-Douro-e-Minho, para desposar a prima Ana, seu primeiro amor14, qual “doce Camilo Castelo Branco, José do Telhado, op. cit., p. 13. Ainda, do mesmo autor,Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», op. cit., p. 13. 13 Alexandre Cabral, “Silva, José Teixeira”, in Dicionário de Camilo Castelo Branco, Lisboa, Editorial Caminho, 1989, p. 607. 14 José Costa Pereira (coord.), “Telhado, José do (1816-1875)”, in Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, Lisboa, Publicações Alfa, Volume II, 1990, p. 279. Ainda, Vários, “Telhado (José)”, in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa/Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, Volume XXXI, s/d, pp. 150-151. 12
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poesia”, agora já em cadência camiliana, «como ela abrolha nas mais bem formadas almas». Mas esta forma de romantismo literário de uma narrativa poder projectar o seu apogeu num happy end ternurento e dulcificado, poderia mesmo levar Camilo a profetizar que “a infância de José Teixeira correu desassinalada de algum facto que pressagiasse as porvindouras maldades”15. Foi neste período crucial e controverso da vida do salteador de Castelões de Recezinhos que a narrativa divergiu literariamente entre Camilo Castelo Branco e Abílio Campos Monteiro. Na interpretação que estamos a fazer destes dois autores, não poderemos esquecer que a visão de Camilo, sobre José do Telhado, será mais parcial e suspeita, embora plausível, em novelas que Fig. 6 – Cópia da certidão de casamento de José do Telhado com sua prima Ana Leontina alternam entre o que é a lenda negra de Campos e os dados históricos comprovativos, visto que o escritor que se “perdeu” por Ana Plácido conviveu durante meses com o salteador na Cadeia da Relação do Porto e que foi o advogado Marcelino de Matos, amigo e consultor jurídico do escritor, que, a instâncias deste, defendeu graciosamente o criminoso do Telhado16. No caso de Campos Monteiro, o distanciamento temporal e o não conhecimento pessoal do protagonista fizeram com que a sua abordagem literária tivesse sido mais realista e menos romanceada, embora intencionalmente ignorada pelos investigadores, aspecto que surpreendeu os seus editores, pois acreditam que esta sua obra “até pelas fontes que lhe servem de base, espelha um desejo de objectividade digno de realce”17.
Camilo Castelo Branco, José do Telhado, op. cit., p. 15. Também, Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», op. cit., p. 16. 16 Alexandre Cabral, “Silva, José Teixeira”, op. cit., p. 607. 17 Campos Monteiro, “Os Editores”, in José do Telhado e os seus Quadrilheiros, op. cit., p. 7. 15
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Nesta caracterização o escritor moncorvense desmitificava o lado simpático que o romantismo camiliano eternizara, procurando fazer crer que havia bandidos bons, que em duplicidade, após praticarem o mal, tentavam redimir-se, praticando boas acções para com os mais fracos e vulneráveis, como era o caso das mulheres, dos pobres e dos marginais. Logo, a análise de Monteiro desmontava o mito do Robin Hood ou Robin dos Bosques português que tirava aos ricos para dar aos pobres, realçando como atributos dessa benevolência qualidades como a bondade, a generosidade e o desprendimento face aos despojos dos assaltos. E se o “bandido-herói” algumas virtudes tinha, como qualquer outro ser humano, os defeitos, pelo contrário, suplantavam as qualidades e eram esses conspectos negativos que raiavam, muitas vezes, os vícios que Campos Monteiro salientava desabridamente no seu texto, reforçando mais José do Telhado como um bandido que, ao contrário, dos heróis, não deveria servir de modelo a ninguém, muito menos para com os leitores que admitiam que no norte de Portugal havia um “príncipe dos ladrões” que, apesar, de ser jogador, bebedor, boémio, adúltero e gastador, ainda era capaz de ter gestos nobres de altruísmo e de benemerência que publicamente repartia aquilo que não era dele, mas por que “ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão”, esse anátema o branqueasse junto da opinião pública, transmutando simbolicamente o acto Fig. 7 – Estilização da imagem de José do Telhado como “Repartidor de roubar numa façanha de magicamente Público” tornar os outros felizes, com a infelicidade de uns quantos: “Afinal, José do Telhado não foi tão bom como o pintam, nem tão mau como se afigurava aos coevos que o não conheciam. Possuía, sem dúvida, algumas virtudes. Mas também muitos vícios. Jogador ferrenho, bom bebedor e amante do belo sexo. Frequentava largamente as tavolagens que por esse tempo enxameavam nas terras de Lousada, de Felgueiras e de Amarante. Matava a CEPIHS | 2
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sede em todas as tabernas por onde passava, possuindo o singular condão de se não embriagar. E não obstante o amor que dedicava à sua Aninhas – secundum escritores e filmistas – tinha uma amásia, se não mais, em cada um daqueles concelhos.Vivia ainda uma, há anos, em povoação não muito distante de Lousada. Enquanto viveu na abastança, e mesmo depois de a ter perdido, foi dissipador como poucos. Os cavalos que montava, quase sempre comprados na feira de Penafiel e escolhidos com olho de entendedor, eram do sangue mais puro e sem o menor defeito. Algumas vezes os emprestou, num movimento mais de vaidade que de bizarria, para se encorporarem em Amarante na procissão de S. Jorge, que então se realizava com todo o brilho desfilando atrás da serpe – espécie de Terrasca ou Santa Coca da aristocrática vila”18.
No reverso do perfil realista de Campos Monteiro sobre o “herói” dos romances de cordel do país que emergira de muitos confrontos para se tornar “regenerador”, a partir do segundo quartel do século XIX, Camilo Castelo Branco apostava numa personalidade mais doce do salteador que estava mais próximo das personagens rurais do seu Entre-Douro-e-Minho. Por vezes, o escritor de Seide admitia e reconhecia uma sociedade desigual de classes, que era transposta para o microcosmo da ambiência do mundo dos ladrões, em que havia salteadores e salteadores, mas se a consumação do desfalque era feita no mundo urbano, esses homens delinquiam pela via do desvio, enquanto os do contexto rural, pela forma do atraco violento e sem maneiras. Deste modo, Camilo considerava que foram os meios das novas tecnologias, como o telégrafo, que pelas amplificações virtuais divulgaram e massificaram o paradigma do herói civilizado, que por sinal era muito diferente daquele que era encarnado pelo do inurbano José do Telhado. Nesta medida, a idiossincrasia do escritor das Novelas do Minho era exemplar na forma como queria que as suas personagens fossem construídas e lançadas para o imaginário dos seus leitores, nomeadamente nos pormenores em como um fait divers passava a ser transmudado da narrativa vulgar de uma reportagem jornalística, para uma literária em que o mesmo objecto de análise passava 18
Campos Monteiro, José do Telhado e os seus Quadrilheiros, op. cit., pp. 12-13.
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a ter outros recortes filológicos e semânticos, numa recriação que tornava mais rico o mundo onírico dos seus leitores, confirmando que não era contador de estórias quem aspirava, mas quem inspirava nos outros expectativas paliativas e ilusórias de recriação e entretenimento, como ficava claro neste fragmento de prosa camiliana: “Apenas um salteador noviço vinga destramente os primeiros ensaios numa escalada, sai a campo o administrador com os cabos, o alferes com o destacamento, o jornalista com as suas lamúrias em defesa da propriedade, e a vocação do salteador gora-se nas mãos da justiça. Faltava o fio eléctrico para tolher que vinguem os génios espicaçados pelo amor ao dinheiro amuado nas arcas dos proprietários, inimigos das empresas industriais, e da circulação monetária, artéria de primeira ordem na prosperidade de um país. Faltava o telégrafo para matar à nascença as iniciativas auspiciosas. Apenas lá das povoações serranas desce à vila ou cidade a nova de um roubo, o arame palpita de horror, e a cara do ladrão é para logo litografada na fantasia de todos os esbirros sertanejos. A civilização é a rasa da igualdade: desadora as distinções; é forçoso que os bandoleiros tenham todos os mesmos tamanhos, e roubem civilizadamente, urbanamente. Ladrão de encruzilhada, que traz o peito à bala e o bacamarte apontado ao inimigo, esse há-de ser o bode expiatório dos seus confrades, mais alumiados e aquecidos do sol benéfico da civilização. Roubar industriosamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo. Os daquela escola tropeçam nas honras, nos títulos, nos joelhos dos servis, que lhes rojam em venal humilhação; os outros, quando escorregam, acham-se encravados nos artigos 343, 349, 387, 433, 551, e mais cento e setenta artigos do Código Penal”19.
Ainda, a propósito deste seu companheiro e amigo de cárcere, Camilo acrescentava que, a «(...) exemplo desta lastimável anomalia», José Teixeira da Silva não tinha porte romanesco, “(…) porque neste país nem se completam ladrões para o romance. Disse-me uma dama francesa de eminente espírito, que em Portugal era a Natureza, o céu e o ar Camilo Castelo Branco, José do Telhado, op. cit., pp. 13-14. Ainda, do mesmo autor, Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», op. cit., pp. 14-15. 19
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que faziam os romances. Nem isso, minha senhora. Aqui anda sempre o gume do prosaísmo a podar os rebentões da Natureza, mal eles infloram. Frutos de servir para a novela levantada da comezinha chaneza de um conto à lareira, nem mesmo os deixam amadurar na fama e nas façanhas de um salteador”20. Este preconceito da Europa dita mais culta, porque seguia a escola literária francesa, de considerar que Portugal sendo tão pouco evoluído a nível de população alfabetizada, não se interessaria mais do que pelo naturalismo estético. Logo, seria despiciente que se fizessem romances com tramas de personagens eivadas de sentimentos e com uma vivência, cuja narrativa obedeceria a um modelo de cânones e regras amadurecidas nas escolas literárias da época, neste caso na forma do subjectivismo, do individualismo, da efemeridade, e do desespero próprios de um romantismo serôdio e nacionalista que vigorou até 1865. E a vida de um salteador, mesmo que ainda não tivesse cumprido o destino dos seus avoengos, poderia ser narrada pelo modo deste tipo de escola, com as características e os tiques deste idealismo amoroso, tal qual como escrevia Camilo Castelo Branco sobre os sentimentos do seu cúmplice de cadeia: “Esteve José Teixeira cinco anos na companhia de sua prima, e desses anos falava ele com lágrimas, quando me contava pueris incidentes, entalhados em sua memória com o buril da paixão. Era a caça o seu emprego nas horas desocupadas; mas, as mais das vezes, o caçador assomava num outeiro, de onde avistava a varanda em que sua prima costurava, e aí estava contemplativo nela até que as sombras da noite, baixando da serra, lhe escondiam o lenço branco da prima, que o chamava a repetidos acenos (…). Onde estava o instinto do salteador naquele tempo?”21.
Ibidem, pp. 14-15. Também, Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», op. cit., p. 15. 21 Ibidem, pp. 16-19. Igualmente, Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», op. cit., pp. 17-18.
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Esta interrogação de Camilo desdramatizava qualquer ímpeto futuro de malvadez no assaltante cruel que cumulava de gentilezas a sua amada, “quando ele, ao descer a última quebrada da serra, colhia flores silvestres para toucar os cabelos da prima, que bom coração de Gessner, que eflúvios do meigo Florian lhe recendiam no ambiente da vida!”22. Depois da convenção de Gramido, assinada em 1847, altura em que José Teixeira da Silva passou à vida civil definitivamente, transcorreram apenas dois anos para que o antigo sargento, com uma prole de três filhos, com estilo de vida perdulário que o endividou, integrasse a quadrilha de Joaquim do Telhado, seu irmão, a que sucedeu no comando, com um primeiro assalto à casa de Maciel da Costa, em 12 de Dezembro de 1849, na freguesia de Macieira, pelo qual foi pronunciado, mas que conseguiu escapar com a sua fuga para o Brasil, onde estanciou durante vários meses, entre o Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, exercendo diversos ofícios, entre os quais o de marceneiro. Em Novembro de 1851, já estava de regresso à sua antiga actividade de quadrilheiro, tendo nessa altura atacado a casa de António Fabrício Lopes Monteiro, de Santa Maria do Zêzere23. A experiência adquirida como militar durante as guerras civis fora de uma grande utilidade na sua vida de bandoleiro, sobretudo as técnicas e a organização castrense agora postas ao serviço deste bando de fora de leis que capitaneava. Campos Monteiro continuara o estilo romanesco à boa maneira da “farmacopeia” camiliana, muito embora o anacronismo em pleno período realista subsistisse intertextualmente na forma dos enredos passionais, amores incompreendidos, mulheres desonradas, homicídios, vinganças e fugas24. Na obra homóloga José do Telhado, editada em 1930, sessenta e oito anos depois das Memórias de Cárcere, Monteiro recriava Ibidem, p. 19. Ainda, Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», op. cit., p. 18. 23 Alexandre Cabral, “Silva, José Teixeira”, op. cit., p. 607. 24 José Eduardo Firmino Ricardo, “Um Caso à Parte: as Duas Paixões de Sabina Arruda: romance de tese”, in Domus Mea est Orbis meus: Campos Monteiro (1876-1933), Volume I, Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2008, pp. 52-98, especialmente p. 56.
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o romance do lendário bandido, através de uma narrativa mais científica do que literária, se bem que a síntese entre os aspectos jurídicos do processo de Lousada, aliado à recolha oral do testemunho dos últimos sobreviventes daquela época conturbada, tivesse produzido um documento que falava de uma personagem romântica, através de uma escrita objectiva, recriando literariamente o contexto sociológico do Portugal Regenerador, da segunda metade do século XIX. Uma das originalidades da obra era a descrição da organização da quadrilha assente numa hierarquia de três categorias: os chefes de quatro divisões, de cinco homens cada, (alguns padres e aristocratas), os verdadeiros bandidos que executavam as acções, e os auxiliares, que embora não participassem directamente nos assaltos, eram cruciais nas informações que davam, visto que pertenciam à população mais pobre constituída por prostitutas, taberneiros e mendigos, que “vendendo” as informações dos locais a assaltar, acabavam também por receber a sua cota de lucro, quando da repartição dos despojos. Mas, dêmos a palavra ao narrador Monteiro, para que ele, com a sua própria verve, descreva como funcionava uma organização de quadrilheiros, que fazia do ataque à propriedade privada o seu modo de vida lucrativo, não trabalhando, graças ao labor de outros: “Qual era essa composição? Não deixa de ser curiosa, porque dela faziam parte dois indivíduos, pelo menos, possuidores de autênticos títulos de nobreza. Os anos em que serviu como militar haviam dado a José Teixeira a noção de que só uma escala hierárquica e uma disciplina rigorosa podem garantir a ordem e a eficácia de qualquer agrupamento. O marido de Aninhas Teixeira organizara, portanto, o mais militarmente possível, a sua primeira quadrilha, em cujo degrau supremo se encontrava ele como chefe, tendo às suas ordens um ajudante. Os restantes salteadores, que constituíam o corpo activo, dividiam-se em três categorias: chefes de divisão, divisionários e auxiliares. Eram quatro as divisões, cada uma das quais se compunha de cinco homens, seis incluindo o chefe. Faziam parte da quadrilha os auxiliares, a quem tocava a respectiva quota no rateio do produto dos roubos, mas não tomavam parte nos assaltos. Limitavam-se a ter os olhos bem abertos, isto é, a ver o que se passava, e a informar minuciosamente o capitão. Deste grupo faziam parte taberneiros, alber106
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guistas, criados e criadas de servir, mulheres de má vida, etc. Era por intermédio do seu corpo auxiliar que José do Telhado sabia se os viajantes que ceavam ou dormiam nas estalagens conduziam dinheiro, para onde iam e a que horas retomavam a jornada, se havia valores nas casas e em que recanto se guardavam, se as autoridades se mexiam para o perseguir, etc. Como vêem, um serviço esplendidamente montado, que participava ao mesmo tempo da estrutura militar e da mais perfeita organização policial”25.
Com uma organização como esta, muitos assaltos foram cometidos com extrema violência, nas estradas, herdades e mansões de uma vasta região que ia de Barcelos até Penafiel, durante cerca de uma década. Perante intimidações, provocações e confrontos que originavam feridos e mortes, a fama da heroicidade de José do Telhado, que alimentava a literatura de cordel nas feiras e mercados da região riba duriense, foi declinando, sobretudo a partir do assalto a Carrapatelo, pela forma inumana, perversa e violenta como foi cometido. O ataque foi perpetrado horas após o funeral de José Joaquim de Abreu, pai de Ana Vitória de Abreu e Vasconcelos, já de noite, enquanto esta ainda recebia as condolências pela morte de um familiar tão próximo. Quando o serviçal abriu a porta, alertado pelo latido dos cães, foi brutalmente agredido e morto com um tiro de pistola. A dona da casa, com as senhoras que se encontravam de visita foram arrastadas para a cozinha junto do cadáver do serviçal, ao mesmo tempo que a trupe de salteadores, capitaneada pelo antigo sargento, passava revista à casa, até descobrir o dinheiro que o defunto acumulara e que estava escondido no quarto onde acabara de morrer. Este acontecimento, mais a morte brutal do colega de bando José Pequeno, que o havia denunciado às autoridades, esmorecera de vez a consideração que alguns camponeses ainda devotavam a este “Robin” dos bosques duriense.Assim, com a perseguição das autoridades, encabeçada pelo administrador Carvalho e Melo, grande parte da quadrilha, incluindo o seu chefe, foi presa, como aliás propagavam os jornais do país, nomeadamente o lisboeta Jornal do Comércio, que por notícia telegráfica 25
Campos Monteiro, José do Telhado e os seus Quadrilheiros, op. cit., pp. 27-28.
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Fig. 8 – Frontispício de um folheto de cordel narrando as aventuras criminosas de José do Telhado
anunciava que o “facinoroso” José do Telhado já se encontrava a contas com a justiça, desde as 13 horas, do dia 31 de Março de 185926. Foi encarcerado na Cadeia da Relação do Porto, ao tempo que aí se encontrava o escritor Camilo Castelo Branco, por crime de adultério consumado com Ana Plácido, quando se aprestava para fugir novamente para o Brasil. Será interessante constatar como o literato colega de cárcere descreveu, não fugindo aos cânones da escola romântica, a humilhação da entrada nos calabouços deste popular e “heróico” bandido da Regeneração liberal:
“O pavoroso caudilho de salteadores, encontrado de cócoras sobre três quintais de bolacha, no esconderijo da barca Oliveira, foi entregue a dois soldados da municipal, que o conduziram pacificamente ao Carmo. Ali amarraram-lhe as mãos, e mandaram-no entre trinta baionetas para a cadeia, ladeadas de cavalaria. Ridiculíssimo aparato de força para o homem inerme, que se deixara guiar por dois soldados! Não seria maravilha se José Teixeira os tomasse debaixo dos braços, e fugisse com eles. Nos primeiros meses concorriam os curiosos a conhecerem o bandido. O escritório da cadeia era o tablado do espectáculo, em que o carcereiro exibia o preso, sem lhe avaliar a dor daquele mais ignominioso lanço da sua vida”27.
A propósito da prisão do José do Telhado vide Jornal do Comércio, n.º 1654, Lisboa, 1 de Abril de 1859. 27 Camilo Castelo Branco, José do Telhado, op. cit., p. 43. Ainda, do mesmo autor,Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», op. cit., pp. 38-39. 26
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Acusado de inúmeros crimes, José do Telhado foi julgado no Porto e apesar da defesa adequada do advogado Marcelino de Matos, que procurou ilibá-lo da maior parte deles, acabaria por ser condenado por um delito de morte, sem premeditação. A estratégia para um caso jurídico como este, segundo as próprias palavras de Camilo, era difícil pois “querer dar-lhe liberdade era um paradoxo; querer salvá-lo da pena capital um arrojo”28. Degredado a título perpétuo para Angola, para cumprimento de trabalhos Fig. 9 – Imagem clássica de José do Telhado com as suas longas barbas e o seu chapéu de bandoleiro públicos, embarcaria para esta possessão africana, no navio Pedro Nunes. Na despedida, o colega de prisão foi uma vez mais benevolente com o amigo, na narrativa que editara, sobre esta experiência de vida. Com as suas palavras eivadas de magnânimo cavalheirismo estava não só a contribuir para a lenda que depois se estabeleceria, como também a tornar rebuscada e de certo modo piegas a descrição sobre aquele casal, que agora se separava, mas que nessa hora última recordaria todos os tempos felizes que havia vivido. Mas, de facto, que nostalgia teria perpassado pelos dois, para que adviessem a essa hora tão má, sentimentos tão felizes? O romancista de tantos amores de “perdição”, agora trazia à colação mais um amor impossível, pleno de tabus consanguíneos, entre uma mulher honrada, boa dona de casa e mãe de uma ranchada de filhos, e um homem que se começara a perder, quando o próprio país a que pertencia, não tinha rumo e derivava entre confrontos fratricidas de liberais e absolutistas. E o que teria mais encanto, na hora da despedida, interrogava-se Camilo Castelo Branco: “lembrariam eles os anos da sua infância? As alegrias dos primeiros dias em que se amaram? O júbilo Ibidem, pp. 45-46. Ibidem, Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», op. cit., p. 41. 28
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doido com que ela lhe escreveu a chamá-lo de Chaves para se casarem? A paz, a probidade, e a fartura de oito anos com os seus meninos asseados, nutridos e quinhoeiros de contentamentos de seus pais?”29. Seria que estes sentimentos saudosos entrariam no coração do fora-da-lei e lhe trariam à consciência qualquer laivo de arrependimento e comiseração? Para o escritor essa questão ficará por provar, porque ele próprio se interrogava “se as lágrimas daquela mulher coaram ao coração do marido, será absurdo dizer que lá geraram remorsos, e os remorsos iriam a Deus numa oração de agonias, oração que, piedosamente cremos, Deus não enjeita?”30. Aceitando ou não a “responsabilidade da transgressão”, como Camilo insinuava, o que era certo é que José do Telhado caminhava para uma viagem sem retorno. Angola era uma terra de homiziados e muitos criminosos salvaram-se da morte certa na metrópole, indo trabalhar coercivamente para essas paragens tropicais. Similarmente aos portugueses, também brasileiros, chineses, espanhóis, indianos, italianos, começaram a chegar a essa possessão do Atlântico no final da Época Moderna e na fortaleza de S. Miguel eram encaminhados para os centros urbanos, e para o interior do sertão, conforme fossem degredados de primeira ou segunda categoria31. José Teixeira da Silva, como antigo militar, poderia ser útil nas campanhas de ocupação que se consumavam nesta altura, antecipando as directrizes advindas da Conferência de Berlim de 1885. Assim, ao José do Telhado foi prometida a comutação da pena, se integrasse a coluna do major Teotónio Maria Coelho Borges, que deveria pacificar as populações indígenas do Bembe, na região do Ambriz. Após a aventura militar a norte de Luanda, vai radicar-se primeiro em Malange, e depois em Sanza, onde se estabeleceu com um pequeno comércio, de trocas e vendas de borracha, cera e marfim. Integrou-se nos costumes locais e como resultado dessa aculturação, juntou-se a uma africana, da qual teve três filhos. Os seus últimos anos foram de extrema miséria e, em 1875, Ibidem, p. 49. Ibidem, p. 43. Ibidem. Igualmente, Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», op. cit. 31 Selma Pantoja, “A diáspora feminina: degredadas para Angola no século XIX (1865-1898)”, in revista Análise Social, N.ºs 151-152,Volume XXXIV, Inverno de 2000, pp. 555-572, especialmente pp. 555-560. 29 30
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com cinquenta e sete anos sucumbiu a um forte ataque de uma doença infecto-contagiosa provocada por um vírus, a varíola. No cemitério de Xissa ficou enterrado José do Telhado e toda a sua família africana32. À semelhança da saga metropolitana que nos foi narrada pelos escritores Abílio Campos Monteiro e Camilo Castelo Branco, para a vivência de Angola o militar Eduardo de Noronha encarregou-se de a divulgar de uma forma romanceada, em dois volumes, que intitulou José do Telhado e José do Telhado em África33. No final da interpretação da vida deste bandoleiro social, que Campos Monteiro rebaptizara de “quadrilheiro”, e Camilo Castelo Branco de “salteador”, genuíno bandido-herói das estradas de Entre-Douro-e-Minho, aqui ficam os testemunhos derradeiros de dois homens da escrita, também eles devotados a esta região do norte de Portugal. Separados geracionalmente por quase meio século, esse óbice não impediu que em épocas diferentes, Monarquia e República, utilizassem o mesmo estilo literário, o roFig. 10 – Imagem da capa do livro de Eduardo de Noronha “José do mantismo, se bem que Monteiro, numa verTelhado em África” são modernista de neo-romantismo, para numa narrativa regionalista nos descreverem a vida desta personagem lendária das feiras e romarias. Mas no verso e reverso da medalha, de uma mesma personalidade, Campos Monteiro constatava que certos autores “(…) se viram obrigados, para entretecer e ligar a acção, a pôr de sua casa bastante porção de parte episódica e a colorir a figura de forma a apresentá-la com o aspecto hipersimpático sob o qual foi Adriano Vasco Rodrigues, “Pungo-Andongo, Degredo de José do Telhado”, in De Cabinda ao Namibe – Memórias de Angola, Coimbra, Editora Palimage, 2.ª Edição, 2011, pp. 205-208, especialmente p. 207. 33 Eduardo de Noronha, José do Telhado, Porto, Editorial Domingos Barreira, 3.ª Edição, s/d, p. 565. Também, José do Telhado em África, Porto, Editorial Domingos Barreira, 4.ª Edição, 1984, p. 335. 32
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moda desenhar os chefes de salteadores na vigência do romantismo”34. Provavelmente para Monteiro, Camilo Castelo Branco era um desses encenadores que avivava a “figura” de um delinquente primário, para o apresentar de uma forma galante e afável. E as palavras do escritor de S. Miguel de Seide corroboravam o pensamento do seu companheiro de escrita moncorvense, como aliás se depreenderá pela forma gentil e lisonjeira como Camilo se referia a José Teixeira da Silva nas suas memórias literárias, ao escrever quão“(...) ditosos derivaram os primeiros anos deste suspirado enlace. José do Telhado era querido dos seus vizinhos, porque aos ricos nada pedia, e aos pobres dava os sobejos da sua renda e do seu trabalho de castrador. O seu primeiro filho era o complemento daquela conjugal felicidade; e os outros que depois vieram a mais a aumentavam, porque sobrava o pão e o agasalho para todos. Quem não invejaria José do Telhado há dezoito anos? Quantos, benquistos hoje do mundo e afortunados, olhariam então cobiçosos para o tecto do ditoso casal de Caíde?”35. Apesar desta “conjugal felicidade” camiliana, Telhado abraçaria outra trama, mais soturna e próxima da descrição objectiva e realista de Campos Monteiro.
Fig. 11 – Fac-símile da assinatura de José do Telhado, memória perene deste militar e quadrilheiro oitocentista
Campos Monteiro, José do Telhado e os seus Quadrilheiros, op. cit., p. 12. Camilo Castelo Branco, José do Telhado, op. cit., p. 21. Ainda, do mesmo autor,Vida do José do Telhado Extrahida das «Memorias do Carcere», op. cit., p. 20.
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Estudos
Memórias do complexo agro-industrial do Cachão Albano Viseu*
Resumo – O Complexo Agro-industrial do Cachão surgiu em meados de 1963, com o propósito de valorizar a região transmontana, através do lançamento de projectos que: modernizaram as explorações agro-pecuárias (irrigação, tosquia mecânica, maquinaria, estábulos), asseguraram a qualidade da produção e contribuíram para o seu escoamento no mercado interno e externo. O Eng.° Camilo de Mendonça defendeu que, para se desenvolver esta região, era necessário implementar o ensino superior e fomentar a indústria, com núcleos de mecanização dispersos pelo distrito, amparados e orientados por técnicos e complementados por um grandioso apoio financeiro de reconversão cultural e de mecanização. Que memórias foram reproduzidas acerca do CAICA? Palavras-chave – Agroindústria; Desenvolvimento; Êxodo rural; Escoamento; Mecanização. Abstract – The Agro-Industrial Complex of Cachão was founded in 1963, with the purpose of developing the region of Trás-os-Montes, by means of projects which modernized the cattle industry (irrigation, mechanical sheepshearing, machinery, stables), guaranteed the production quality and contributed to its circulation in the internal and external market. Engineer Camilo de Mendonça stated that, in order to develop this region, it was necessary to implement higher education and to promote the industry, with centers of mechanization dispersed throughout the district, supported and supervised by technicians, and complemented by a substantial financial support of cultural and mechanical conversion. What memories were reproduced about CAICA? Keywords – Agro-industry; Development; Rural exodus; Circulation; Mechanization.
______________ * Professor de História – Agrupamento de Escolas de Mirandela; investigador do CITCEM; doutor em História pela FLUP. CEPIHS | 2
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I – Introdução
O Cachão é uma aldeia que pertence à freguesia de Frechas, estando integrada no Concelho de Mirandela e no distrito de Bragança. Fica situada a SSE do concelho, na margem esquerda do rio Tua, a cerca de 40 a 50 km da sua foz, e a 13 km de Mirandela. A aldeia é servida pela E.N. 213, tendo transportes rodoviários diários, e pela linha ferroviária do Tua, onde passa diariamente o Metro que a liga a Mirandela. Este último trajecto passa por Frechas, sede de freguesia. A freguesia de Frechas é constituída pelo Cachão, Vale da Sancha, Latadas e Frechas e tem 1139 habitantes (censo 2001). É um centro rural que fica a pouco mais de 6 km da sede concelhia, com uma área de cerca de 18,5 Km2 e de 500 habitantes, distribuídos por cerca de 230 fogos. Tem como freguesias limítrofes Valverde, Marmelos, São Salvador e Freixeda. O orago de Frechas é S. Miguel e as festas mais importantes da freguesia são: S. Miguel (29 de Setembro), Santo Isidro (15 de Maio), N.ª S.ª de Lurdes (11 de Fevereiro) e N.ª S.ª do Viso (3.º fim-de-semana de Agosto)1. Actividades económicas da freguesia: agricultura; pecuária; indústrias de transformação da madeira e de panificação; vitivinicultura; olivicultura; pequeno comércio e serviços. Na agricultura destacam-se, entre as produções de maior relevo: a oliveira, o trigo, o centeio e a vinha. A agricultura tradicional, com vista ao sustento do agregado familiar, já não é muito usual, havendo apenas alguns casos raros de pequenas explorações hortícolas e frutíferas. Quanto à pecuária, predomina o gado ovino para a exploração de leite, queijo, carne e lã. Continuam a ser criados animais de capoeira: perus, gansos e galinhas. A exploração bovina quase desapareceu.
AlbanoViseu, Memórias históricas de um espaço rural: três aldeias de Trás-os-Montes (Coleja, Cachão e Romeu) ao tempo do Estado Novo, Edição do Autor, Porto, FLUP (tese de doutoramento), 2007, p. 400. 1
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No sector secundário, destaca-se todo o dinamismo imprimido na aldeia e na região pelo Complexo Agro-industrial de Cachão (CAICA) que possibilitou a promoção das principais indústrias transformadoras locais, como: a olivicultura, a vinicultura, a panificação, a queijeira e os lanifícios.
Fig. 1 – Mapa do concelho de Mirandela 2
O Cachão começou por ser um “sítio”, um lugar, e o topónimo Cachão está associado ao rio Tua que corre a seus pés, uma vez que no local onde se localiza a aldeia primitiva o rio fazia um cachão. Os agricultores que moíam os cereais numa azenha instalada na cachoeira, quando questionados sobre onde iam moer, respondiam que iam ao cachão – daí que o nome ganhou consistência e acabou por se afirmar. As casas do núcleo primitivo fixaram-se junto à estrada e perto da estação de caminho-de-ferro.
Mapa do Concelho de Mirandela [Em linha]. [Material Cartográfico]/[consult. 20 Jun. 2005]. Escala: 1/500 000. Disponível em: URL: http://portugalia.free.fr/distritos/04/0407.htm. 2
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Memórias do complexo agro-industrial do Cachão
Entre os vectores dinâmicos que contribuíram para a elevação à categoria de aldeia e ao respectivo desenvolvimento, contam-se: a estação de caminho-de-ferro e o complexo agro-industrial. O rio Tua, que banha a aldeia, foi um factor a ter em conta, aquando da instalação no local do complexo de indústrias ligadas à agro-pecuária, uma vez que fornecia a água necessária, o que ajudava nas actividades do empreendimento. A localização da aldeia na encosta de duas serras, dois pedregosos outeiros, conhecidos pelo nome de “serra de Valverde” e “serra do Cubo”, poderia ter contribuído para um isolamento da população, porém houve factores actuantes que não permitiram que tal se verificasse3. A aldeia do Cachão fica situada na margem esquerda do rio Tua. A parte velha da aldeia é atravessada pela Estrada Nacional n.º 213 e é onde se localizam: o Complexo Agro-industrial, quatro estabelecimentos comerciais e a estação de caminho-de-ferro. Estes empreendimentos, bem como a barragem agrícola são, juntamente com o Bairro Social (também conhecido por “Vila Nordeste”), os aspectos mais relevantes desta aldeia. O Bairro Social fica um pouco acima do Complexo Agro-Industrial, na estrada que conduz a Vila Flor, num pequeno outeiro, aos pés da “serra”. No bairro viviam os trabalhadores e as chefias que trabalhavam no Complexo e chegou a possuir um jardim-de-infância. Ali funcionou também um posto médico4. O Complexo do Cachão foi um empreendimento industrial que entrou em actividade no ano de 1964, e veio a atingir “uma área coberta de cerca de 9 ha”5, constituindo um importante pólo de desenvolvimento da agricultura de toda a região. Nasceu de uma Federação, que tinha como nome Federação dos Grémios da Lavoura do Nordeste Transmontano (FGLNT), «mas o complexo tinha gestão própria, era independente».
AlbanoViseu, Memórias históricas..., op. cit., p.21. AlbanoViseu, Memórias históricas..., op. cit., pp. 208-209 e 331-333. 5 Breve historial do Complexo Agro-Industrial do Cachão: 1964-1992. Cachão: AICA (Associação Comercial e Industrial do Cachão), (18/11/2002), p. 1. 3 4
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O promotor e impulsionador de uma obra desta envergadura, que lutou “pela dignificação e pela libertação das gentes da região do Nordeste Transmontano”6, foi o Eng.º Camilo de Mendonça que concluíra que para desenvolver e fixar as suas populações havia a necessidade de nela implantar o ensino superior (UTAD) e de desenvolver a indústria (empreendimento do Cachão)7. O Complexo foi projectado para suportar uma verdadeira revolução agrícola que colocaria a agricultura transmontana ao nível das melhores congéneres europeias. Para além de um complexo destinado à agroindústria, o empreendimento incluía a extensão do regadio a uma vasta área, suportado pela construção de 130 barragens de terra. E, realmente, o patamar de maturidade industrial foi alcançado, entretanto8. O CAICA destinar-se-ia, essencialmente, à valorização e à expansão das produções agropecuárias da região, através da sua transformação industrial e à consequente comercialização dos seus produtos, canalizando-os não só para o mercado interno, mas, acima de tudo, para o mercado externo9. Apesar de os transmontanos acreditarem na força impulsionadora que esta obra imprimiria na região e no país, após o 25 de Abril o sector entra em colapso, tendo o CAICA passado por uma gestão de diversas comissões instaladoras, ao sabor do enquadramento político da época, o que veio a desacreditar uma obra que tinha sido idealizada como o “Motor da Região Nordestina”. O complexo era composto por unidades industriais (pavilhões) dispostas em planos sucessivos na base do monte da N.ª S.ª da Assunção, próximo do rio Tua, do caminho-de-ferro e da Estrada Nacional n.º 213, com os seguintes sectores: Fruticultura (essencialmente azeitonas), Horticultura (tomate, pimento, espargo, ervilhas…), Destilação e Vinhos, Idem, ibidem. AlbanoViseu, Memórias históricas..., op. cit., p. 340. 8 Entrevista n.° 2 (69 anos, M, natural de Antas, concelho de Penedono, reformado, Eng.º Agrónomo, trabalhou no CAICA), 2004. Nota: nas Entrevistas, não consta o nome do entrevistado, para preservar a respectiva identidade, mas apenas os seguintes dados: a idade, o sexo, a naturalidade, a profissão, as habilitações literárias e o ano da entrevista. 9 AlbanoViseu, Memórias históricas..., op. cit., p. 337. 6 7
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Lacticínios (queijo), Azeites, Rações, Frutos secos e uma Lavandaria de lãs10. Comercializou azeitonas (verdes, pretas e recheadas), picles, azeite, compotas de vários doces, feijão cozido de vários tipos, marmeladas e geleias, vários legumes cozidos e enlatados, frutas em calda e cristalizadas, frutos secos, leite e queijo, aguardentes vinícolas. A marca “Nordeste” teve um enorme impacto devido a: qualidade das matérias-primas regionais, experiência dos quadros técnicos, força da experiência e do saber dos seus executantes e a obtenção de produtos de alta qualidade. Com a chegada do complexo ao Cachão, houve o aproveitamento de culturas tradicionais, a introdução de novas culturas, mais rentáveis, e passou a haver a agro-indústria, caracterizada por novos factores de desenvolvimento: o acompanhamento técnico, a mecanização, o fornecimento de sementes, a irrigação, a adubação… Com esta alteração, que surgiu numa época em que o país se virava para a industrialização, nascia um novo impulso económico para a aldeia, para a região e para o país. O CAICA recebia produtos de várias localidades • a castanha de Bragança, Valpaços, Carrazedo de Montenegro e até de Penedono; • o espargo da zona de Valpaços, Vinhais e Carrazeda de Ansiães; • o morango de Macedo de Cavaleiros; • o tomate da zona da Vilariça. O complexo, para se abastecer de produtos com que as fábricas laboravam, recorria à “produção de terceiros, dos agricultores”11. No Cachão e na região, havia uma agricultura tradicional e o complexo agro-industrial acabou por causar um impacto nas explorações agrícolas, com a selecção de produtos (sementes e plantas), a adubação e a introdução de máquinas. “A agricultura era modernizada e os agriculto10 11
AlbanoViseu, Memórias históricas..., op. cit., p. 330. Entrevista n.° 2.
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res até aceitaram essa alteração, o que acabou por lançar as bases de uma agricultura mais moderna”12. Entre os maiores mercados, para onde os produtos eram escoados, contam-se: “o Canadá, a América, França, Suíça, Áustria, Alemanha”13.
Fig.2 – O Cachão e o CAICA
II – Problemática
Que memórias ficaram registadas nas pessoas, sobre uma época histórica em que o CAICA teve uma dinâmica na região e foi um factor de fixação da população? A resposta a esta questão levou à pesquisa de memórias orais, através de entrevistas, e de memórias escritas, através da análise de notícias, de artigos publicados em revistas e de monografias.
12 13
Entrevista n.° 2. AlbanoViseu, Memórias históricas..., op. cit., p.330.
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III – Memórias sobre o impacto do CAICA: 1. A evolução da aldeia com o surgimento do CAICA “O Cachão era, há quase cinquenta anos, altura da edificação do Complexo Fabril, um pequeno lugar. Assim, no início da década de 60, começaram a ser edificadas diversas unidades fabris, todas elas construídas por trabalhadores directos da Federação dos Grémios da Lavoura do Nordeste Transmontano, assim denominado até ao 25 de Abril de 1974”14, o que levou ao crescimento da aldeia.
2. O CAICA foi um motor gerador de emprego
“Gerou inúmeros postos de trabalho para ser edificado. Havia muita mão-de-obra, quer de Trás-os-Montes, quer até do Minho (especialmente de Viana do Castelo). Do Minho, vieram muitos canteiros, uma vez que os edifícios foram todos construídos em granito, proveniente da zona da Carrazeda de Ansiães e de Vila Flor. Surgiu também o Bairro Social, a Vila Nordeste, com casas para os trabalhadores e para os quadros médios. Com cerca de três centenas de pessoas a trabalhar, causou um enorme impacto na aldeia. A indústria veio a ser a tónica dominante, pois aqui seriam transformados os produtos agrícolas e pecuários da região do Nordeste Transmontano. Por sua vez, a comercialização da produção destinava-se ao mercado interno e externo”15. 3. Infra-estruturas associadas ao CAICA A aldeia era o complexo fabril. A água canalizada, o saneamento e a electrificação surgiram pelas necessidades impostas pelo complexo. Entrevista n.º 1 (57 anos, M, natural da freguesia de Mirandela, pertenceu aos quadros do CAICA de 1987 a 1991, como Director dos Serviços Auxiliares, actualmente é sócio-gerente de empresas sediadas no Parque Industrial do Cachão, Licenciado em Engenharia Mecânica pela FEUP), 2009. 15 Entrevista n.º 1. 14
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Em termos de vias de comunicação, já existia a estrada nacional, melhorada há meia dúzia de anos, que ligava, e ainda hoje liga, Vila Flor a Mirandela”.
4. Por que motivo se elegeu o Cachão para acolher o CAICA?
“A construção do Complexo Fabril tinha de ser feita junto de um curso de água e o Cachão é banhado pelo rio Tua, condição desde logo favorável. Além disso, contava com outro grande atractivo: a estação dos caminhos-de-ferro, onde eram escoados produtos agrícolas, facilitando as transacções comerciais e o escoamento dos produtos”. 5. Envolvimento da aldeia
“A aldeia era o Cachão, assim denominado pelo conhecimento dado aos produtos que aqui vieram e continuam a ser transformados. As ligações rodoviárias à aldeia são praticamente as mesmas. A via ferroviária foi, à época e até há uns anos atrás, uma via de comunicação importante. Era projecto da Federação, com o Exmo. Sr. Eng.º Camilo Mendonça que quis tornar o rio Tua navegável, tornando-se o transporte mais barato. Assim, o rio Tua teria uma série de barragens para produção de energia eléctrica e com eclusas que tornariam o rio navegável até ao Cachão”. “Toda a aldeia estava absorvida na sua dinâmica, graças à criação de emprego, gerador de riqueza e de desenvolvimento: as produções regionais eram canalizadas para as diversas unidades fabris, para a respectiva transformação e comercialização, e daí “do produtor ao consumidor ou do prado ao prato”. A região muito esperava deste complexo industrial, mas as políticas menos correctas, em relação a este, e os tormentos políticos centrais e regionais não levaram este complexo a “bom porto”, nem conseguiram criar um “oásis” na região nordestina, como era o ideal projectado e preconizado16. 16
Entrevista n.º 1.
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6. Cultura perfeita de envolvimento político e agrícola até que…
“Este centro contava com o apoio dos Grémios da Lavoura, sócios da Federação, andando a agricultura numa simbiose perfeita com o complexo fabril, até ao 25 de Abril de 1974. Estava tudo definido: os grémios, conforme a região onde estavam inseridos, procediam ao fomento, junto da Lavoura, dos produtos mais adequados à sua zona de acção. Por sua vez, existia o apoio dos técnicos agrários, assim como o equipamento mecânico, tractores, alfaias agrícolas, sempre com tecnologias de ponta para a época. Eram núcleos agrários promovidos pela Federação dos Grémios, em colaboração e envolvimento com os agricultores. Como um campo primordial à agricultura era a necessidade da água, foram construídas várias represas de água como a do Cachão, Macedo de Cavaleiros, Vilarelhos, Santa Comba, Alfândega da Fé e outras em projecto. Era o oásis…”17. 7. Tipo de indústrias do CAICA
• lagar de azeite – com extracção de azeite e seu posterior embalamento; • frutos preparados – conserva de azeitona, cereja, figo com respectivo embalamento, produção de fruta cristalizada e canditada; • horto-Indústrias – produção de doces diversos, marmelada, fruta em calda, picles, polpa de tomate e ketchup, diversos molhos, enlatados de feijão e outras leguminosas, espargos, castanha para congelação, pimento vermelho, preparação de couve-flor, tremoços, etc.; • queijaria – produção de queijo de diversos tipos, manteiga, etc.; • frutos secos – castanha, figo, leguminosas, amêndoa, noz, pinhão e avelã; • adega de vinhos – produção de vinhos de mesa, entre outros; 17
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• destilaria – produção de aguardente bagaceira, a partir de frutos como figo e outros em estado deteriorado. Queima de vinho para aguardente vínica e álcool; • lavandaria de lãs – lavagem e preparação de lãs; • fábrica de rações – alimento composto para animais; • matadouro – abate de gado bovino, ovino e suíno. Outras fábricas estavam projectadas e em esqueleto, como a de curtumes, óleos (hoje edificada e em funcionamento), refinaria, salsicharia e charcutaria. Central de vapor – diversas linhas de vapor a todas as fábricas e, inclusive, através do vapor, a produção de energia eléctrica, garantindo a auto-suficiência ao complexo fabril. Todos os produtos eram comercializados, devidamente embalados com as marcas Nordeste, Tua, Sabor e Vilariça. Contava com laboratório para garantir a qualidade dos produtos fabricados. 8. Uma rede coesa de funcionamento…
Todas estas fábricas, e inclusive a edificação destas, os arruamentos, a rede de água, a electricidade, o saneamento, tudo o que lá foi feito, e posteriormente a manutenção e os melhoramentos contaram com os denominados serviços auxiliares, com diversos sectores como: mecânica fabril, electricidade, canalizações, serralharia, mecânica auto, carpintaria, pintura, construção civil e armazém de materiais. 9. O modo de vida das pessoas
Os trabalhadores e alguns quadros médios viviam no bairro, edificado para o efeito, denominado Bairro Social. O relacionamento girava, inevitavelmente, em torno do trabalho. Vivia-se com os olhos postos no CAICA. Os temas de conversa acabavam por confluir no complexo, na política no pós-25 de Abril e pouco mais.
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Os quadros superiores viviam em Mirandela, a vila que mais tarde viria a ser cidade, e que constituía o grande Centro Cultural e Social. 10. Serviços e Lazer
O Cachão contava com uma cantina, denominada “COOPENORD”, onde os trabalhadores se abasteciam de grande parte dos géneros alimentícios para o seu quotidiano. As pessoas deslocavam-se a Mirandela frequentemente, para realizar compras, principalmente aos sábados, ou para idas ao cinema, às festas da Vila, ao futebol. Mirandela foi sempre, para as gentes do Cachão, o centro de atracção (cultural, comercial e social). No Cachão, as pessoas tinham alguns espaços de encontro, de convívio, de partilha de ideias, onde passavam os tempos livres: dentro das instalações do complexo, num pequeno bar, o CAT (Centro de Alegria no Trabalho), onde se serviam bebidas (café, cerveja...) e havia jogos (bilhar, matraquilhos...); fora das instalações do complexo, os lugares frequentados pelos trabalhadores eram duas tabernas e um café, com muito movimento à noite18. Já na década de 80 a direcção do complexo promoveu a formação de um clube de futebol, criando um campo para o efeito. 11. Relações tensas
A relação entre a administração, os directores e os trabalhadores era normal para a época pós revolucionária. “Normal”, porque foi um período marcado por greves, de Norte a Sul do País, reivindicações sociais, etc. Só que o complexo agro-industrial empobrecia, definhava e a cada dia que passava as dificuldades pareciam crescer… Portanto, não havia muito a reivindicar, a não ser esperar que, no fim do mês, houvesse o salário (precário)… Assistia-se a uma morte lenta e anunciada19. 18 19
AlbanoViseu, Memórias históricas..., op.cit., p.175. Entrevista n.º 1.
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12. O fim… e um novo começo
O encerramento do CAICA, S.A. deu-se no ano de 1992. Depois de uma série de tentativas goradas de revitalização, foi entregue pelo Estado às Câmaras Municipais de Mirandela e de Vila Flor. As Câmaras procederam à criação de um Parque Industrial, contando, durante estes anos, com o reaproveitamento de algumas unidades, mas também com a criação de unidades novas. “O Parque Industrial, pese embora as inúmeras dificuldades, tem um bom tecido empresarial. Não se trabalha apenas para auferir um salário...”20. IV – Conclusão
A Revolução de Abril “ditou” o abandono do projecto. Apesar da grandiosidade e da riqueza de todas as infra-estruturas a ele associadas, o CAICA entrou em decadência, após a Revolução de 25 de Abril de 1974. Contudo, algumas fábricas, bem como as barragens de Alfândega da Fé, Cachão, Carvalheira, Vila Flor, Vilares da Vilariça e Vilarelhos resistiram ao abandono do empreendimento. A situação económica complicou-se progressivamente, agravada pelo facto de Portugal passar a integrar a Comunidade Económica Europeia e porque a região ficava afastada dos principais e maiores centros urbanos e de consumo, sendo que o transporte e a distribuição de produtos saíam encarecidos pelas más acessibilidades. Depois de um lento enfraquecimento económico e financeiro, o CAICA acabou por encerrar. A maior parte do património que restou do antigo Complexo, quase 98%, foi posteriormente entregue às Câmaras Municipais de Mirandela e de Vila Flor (sede de um dos concelhos adjacentes ao de Mirandela, que dista treze quilómetros do Cachão). Actualmente este património é administrado por uma sociedade representante de todos os accionistas, a A.I.N. (Agro-Industrial do Nordes20
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te, S.A.). Ainda funcionam algumas fábricas no Cachão que empregam cerca de 200 pessoas, mas parte dos antigos funcionários do CAICA viram-se obrigados a emigrar ou a procurar trabalho noutros locais da região. A aldeia parou um pouco no tempo. Foi o desvanecer do sonho transmontano… Há marcas indeléveis da presença de um “motor” que firmou um grande avanço, mas cuja paragem ditou uma tremenda estagnação… O mesmo bairro, a mesma estrada, o mesmo campo de futebol. Apenas umas quantas melhorias, quase tudo reaproveitamentos de tudo quanto ali se fez. “A aldeia parece então composta por três zonas demarcadas: o bairro dos trabalhadores (Vila Nordeste), o Complexo, o Cachão Velho. (…) A sombra do cabeço arrepia-me; as bancadas já perderam o calor. Vou embora e despeço-me com um aceno. Serpenteio até Mirandela, com a cabeça cheia de sol, de ideias e de cansaço” (Diário de Campo, 2000).
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Toleradas em Mogadouro – o suicídio de Maria Carçôna Antero Neto* “A característica mais impressionante do corpo da prostituta é que não lhe pertence. Ela habita nele, mas é um cubículo que subaluga aos transeuntes. Decora-o, enfeita-o e oferece-o”. Camille Mauclair (1917) “Não sei se tolerar será melhor, mas também o que é verdade é que o prohibido torna-se mais desejado)”. (Francisco Pereira d’Azevedo, 1864)
Resumo – Este artigo divide-se em três partes distintas. Num primeiro capítulo, faz-se um breve historial da evolução da prostituição ao longo da História, desde as civilizações grega e romana, até aos nossos dias, com abordagem aos aspectos culturais e legislativos, com especial enfoque no panorama português. Na segunda parte, o artigo centra-se na história da prostituição no concelho de Mogadouro, a partir da análise crítica de um processo judicial, datado de 1916, acerca do suicídio de uma prostituta (Maria Carçôna). Na terceira parte, transcreve-se o Regulamento Policial das Toleradas no Distrito de Bragança. Palavras chave – Toleradas; Mogadouro; Prostituição; Regulamento policial. Abstract – This article is divided in three distinct parts. First we briefly overview the evolution of prostitution along history, from the Greek and Roman civilizations until present, focusing on the cultural and legislative aspects, with emphasis on the Portuguese scenery. The second part centers on the history of prostitution in the district of Mogadouro, based on the analysis of a judicial process dated 1916, about the suicide of a prostitute (Maria Carçona). On the third part, we transcribe the Police Regulation of the Secluded in the district of Bragança. Keywords – Secluded; Mogadouro; Prostitution; Police regulation. _____________ *Advogado; escritor. Nota – Deixamos os nossos agradecimentos a Fernanda Cepeda, Secretária Judicial do Tribunal Judicial da Comarca de Mogadouro e ao Dr. Francisco Gorgulho, Juiz de Direito, porque sem eles não teria sido possível a descoberta e consulta do processo de Maria Carçôna. CEPIHS | 2
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I – A prostituição ao longo da História
Prostituta: substantivo feminino [do latim prostituta]; mulher pública, rameira, meretriz. Tolerada: substantivo feminino; prostituta que tem o nome inscrito nos registos administrativos e está sujeita à inspecção e regulamentação policial; mulher pública1. Desde tempos imemoriais que se conhece a prática da prostituição. Daí que, frequentemente, esta seja conhecida como “a mais velha profissão do mundo”. Das clássicas civilizações grega e romana, passando pela Idade Média, até à modernidade, sobram os relatos da presença das mulheres de virtude fácil. Os livros sagrados falam-nos destas mulheres no tempo de Moisés. No Japão da antiguidade existia um culto à chamada Deusa da Prostituição, a quem os japoneses eram devotos e dedicavam públicas festividades. Na índia, as designadas Servas dos Deuses, eram igualmente protegidas e, até, privilegiadas, uma vez que sabiam ler, escrever, tocar instrumentos, dançar e cantar. Sinopse histórica Grécia Na Grécia antiga, as prostitutas eram escravas. Designavam-nas porné. Aos prostíbulos chamavam porneion. Em Atenas, viviam num bairro próprio e eram controladas pela autoridade de magistrados, pagando um tributo. O ateniense Sólon teve um papel fundamental no estabelecimento de leis que criaram e protegeram os prostíbulos, de forma a retirar as prostitutas da rua e do deboche público, para locais mais recatados, onde pudessem exercer o seu mister longe da moral colectiva. 1
Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 25.ª Edição, Lisboa, Bertrand Editora, 1996.
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Além das porné, também existiam as bacantes, que eram dançarinas, cantoras ou tocadoras de instrumentos musicais. Estas, ao contrário das primeiras, eram, em regra, mulheres livres, que tinham acesso às festas e banquetes da alta sociedade. Havia ainda as hetairas, que eram mulheres livres, cultas e famosas. Uma espécie de acompanhantes de luxo, que privavam em suas casas com generais, políticos, filósofos e poetas. Os gregos adoraram mesmo as cortesãs, consagrando em Abydos um templo a Venus Facil, e na cidade de Lycurgo a sacerdotisa do amor Cottina tinha uma estátua. E para que em Corinto não faltassem prostitutas, os locais “compravam” raparigas na Sicília e em outros locais próximos, que depois haveriam de saciar os prazeres dos cidadãos. Poetas, filósofos, artistas, generais e políticos frequentavam livremente os prostíbulos gregos, fazendo disso um hábito social. Roma Roma, a cidade eterna, também conheceu fausto, abundância, luxo e deboche. São célebres as festas e representações de bacanais, com corpos nus e promiscuidade a rodos. A escravatura contribuiu igualmente para o incremento que a prostituição conheceu na civilização romana. Mercavam-se corpos humanos como quem troca galinhas por cereais. A própria lenda da criação de Roma assenta numa prostituta. Efectivamente, e a crer em vários estudiosos que tentam racionalizar o mito da fundação, a “loba” que amamentou os gémeos Rómulo e Remo não terá sido um exemplar feminino do género lupus canis, mas antes uma prostituta, que exercia a profissão junto dos pastores da região, e que se chamava Lupa. Daí terá nascido a designação dos lupanaria, que eram os prostíbulos romanos. Normalmente, estes sítios situavam-se próximo dos teatros ou dos circos. Tinham compartimentos subterrâneos e abobadados que serviam para a prática da prostituição. Tito Lívio (59 a. C. – 17 d. C) relatou diversos episódios de desordens nocturnas, associadas a bairros onde abundavam os lupanares e a prostituição era o principal mester. CEPIHS | 2
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O moralmente rígido Catão, o Velho, ao encarar com um jovem da nobreza romana a abandonar as instalações de um lupanar, disse-lhe: “Bravo! É aqui que os jovens devem satisfazer os seus ardores, em vez de se atirarem às mulheres casadas!”. Uma inscrição encontrada em Isérnia, apresenta, assim, de forma satírica, uma conta de estalagem: “Estalajadeira, vamos a contas! - Bebeste um sexteiro de vinho: um ás. - Comeste guisado: dois ases. - Está certo. - Pela rapariga: oito ases. - Está correcto. - Feno para o macho: dois ases. - Este macho vai ser a minha ruína!”2
Tal como veremos infra para o caso de Mogadouro, também o exército romano era acompanhado por legiões de mulheres que vendiam o corpo. Conta-se mesmo que Scipião, o Moço, durante a 3.ª Guerra Púnica, se viu forçado a expulsar 2 000 mulheres que seguiam a soldadesca. Em Roma, foram instituídas regras para regulamentar o exercício da profissão. As mulheres tinham que se matricular e declarar aos éditos. Caso violassem essa norma podiam ser multadas e, até, expulsas da República. Augusto, Tibério, Calígula, Nero e outros, são apenas alguns exemplos de imperadores romanos que se abandonavam aos prazeres da carne, servindo-se de prostitutas sem qualquer espécie de pejo. Roma foi, talvez, a civilização que melhor serviu a cultura das meretrizes. Mesmo que tenha havido fortes tentativas de a combater, como foi o caso de Alexandre Severo que instituiu um imposto especial sobre as prostitutas – aurum lustrale – para ajudar a custear a construção de esgotos para a cidade.
Cf. Catherine Salles, “As Prostitutas de Roma”, in Georges Duby (coord.), Pequena História do Amor e Sexualidade no Ocidente, Lisboa, Terramar, 1998, pp. 87-104. 2
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Os romanos criaram leis muito elaboradas em relação à gestão do seu património material privado. Isso fez com que, a partir de certa altura, a meretrix (a que tira dinheiro do corpo), passasse a ser vista como perigosa sugadora do património e riqueza dos jovens sôfregos e incautos e dos velhos senis, que facilmente despendiam verdadeiras fortunas com estas cortesãs, colocando assim em risco o bem-estar material das suas famílias. A figura da prostituta atravessa o panorama literário romano, marcando ali presença indelével (é personagem das comédias de Terêncio e Plauto – séc. II a.C., e cruza os poemas elegíacos e os epigramas satíricos). Aliás, é uma das peças de Plauto que nos fornece pistas sobre a existência de diferentes classes entre as prostitutas romanas. De um lado as cortesãs, com vestes, maquilhagem e cabelos preparados com luxo (têm dietas alimentares rigorosas, pintam as maçãs do rosto, acentuam as pestanas, depilam as sobrancelhas, pintam o cabelo, executam penteados exóticos, usam colares revestidos de pedrarias, brincos de pérola e pulseiras de ouro a enfeitar as coxas e os tornozelos); e do outro, as pobres lobas de Súbur, mal vestidas, andrajosas mesmo e que se prostituem na rua ou em locais esconsos e pútridos. Uma das personagens de uma peça, representando uma cortesã, preocupa-se em afastar de si a imagem associada às “miseráveis putas, amigas dos padeiros-aprendizes, resíduos próprios para criados cobertos de farinha, mulheres famélicas, empestadas de perfumes de má qualidade (…)”3. O advento do cristianismo e a sua expansão e adopção pelo Império contribuíram para alguma moralização da actividade, mas sem resultados definitivos. Portugal O território nacional não foi excepção à regra. Há registos da prostituição desde, pelo menos, o ano de 506, quando surgiram leis a penalizar esta prática (Código, ou Breviário de Alarico). Os Visigodos fizeram vigorar normas que puniam severamente o exercício da prostituição, assim 3
Idem.
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como a sua exploração por terceiros, que mantivessem mulheres escravas com tal escopo, punindo ainda os juízes que fossem brandos contra tais infracções. Alguns dos principais pensadores medievais reflectiram sobre o tema. Não obstante a prevalência da moral cristã, a prostituição foi por eles encarada como um assunto de primordial relevância. Nesse sentido, pronunciou-se, entre outros, Santo Agostinho, ao dizer: “se banires a prostituição da sociedade, reduzes esta sociedade ao caos, por causa da luxúria insatisfeita”. Já com a portugalidade instalada, é o rei D. Afonso Henriques que, em 1170, faz publicar a primeira norma a reprimir o exercício da prostituição, mandando prender as “barregãs dos clérigos”. D. Afonso III, em 1275, proíbe que o “homem casado dê alguma coisa à sua barregã”, proibindo igualmente a presença de barregãs na corte. D. Afonso IV promulga uma lei que estipula que “as meretrizes vivessem em bairros separados da outra gente, e trouxessem sinais e divisas para se distinguirem das mulheres honestas e honradas”. Esta lei seria abolida mais tarde por D. Pedro I. As Ordenações Afonsinas, publicadas no reinado de D. Afonso V (séc. XV) vêm impor penas severas às alcoviteiras e às alcayotas. Nas Cortes de Évora (D. João II), pede-se ao rei que volte a instituir trajes e locais próprios para as meretrizes: “Seja Vossa Mercê de mandardes que estas taees molheres não viuão amtre as molheres casadas e onestas de boom viver: e lhes seja asignado lugar onde viuam e as vãao buscar os que com ellas quiserem fazer cama com molheres de partido e danadas, onde nom tenham rrasão de teerem conversaçom com as boas. E os que lhes alugarem as casas amtre boa vizinhança, e de boom viver as percam para vós, e ellas sejam presas e degradadas para fora da cidade, ou villa, ou logar e seos termos por huum anno per os juízes com os vereadores na Câmara das ditas cidades e villas, e em isto nos fareis mercee”4. Francisco Ignacio da Cruz, Da Prostituição na Cidade de Lisboa, Lisboa, Typographia Lisbonense, 1841, p. 2. 4
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Nas Cortes de Lisboa, em 1498 (reinado de D. Manuel I), estipulou-se que as “molheres de maao viver” e “as moças que dão a seu maao huso” fossem viver “a outra parte fora da conversação e vesinhança das boas molheres com pena d’açoutes e degredo”. O título 29, do Livro 5.º das Ordenações Manuelinas (1521) caustica quem consentir que em sua casa se pratique a prostituição. E pelo Alvará de 18 de Julho de 1521, o mesmo D. Manuel I, ordena prisão, multa e degredo a quem se prostituísse. Porém, D. João III, por Alvará de 12 de Junho de 1538, rema em sentido contrário, ao impor que os corregedores ou juízes criminais não recebessem “querellas das mulheres solteiras, que se dissesse ganhavão dinheiro fora da mancebia, e que por taes querellas não as prendessem, nem as vexassem”. Em 1559, um Alvará de 9 de Novembro ordena às prostitutas de S. Tomé que não habitem entre gente honesta e sejam expulsas das povoações. Este Alvará penaliza os clientes e ainda os homens casados e os clérigos que vivessem amancebados. Ainda em 1559, é criada, por Alvará régio de 6 de Março, a “Casa das Convertidas”, que se destina a albergar as prostitutas arrependidas que se queiram tornar mulheres honestas. As Ordenações Filipinas, no início do séc. XVII (1603) dedicam alguns pontos à regulamentação da prostituição, nomeadamente, no seu Livro I, Título 73, § 4. Aqui se manda que os quadrilheiros (polícia da época) demandem se debaixo da sua jurisdição existem casas de alcouce ou de alcoviteiras e as entreguem à Justiça para serem devidamente punidas. No Livro 5,Título 32, estabelecem-se as penas para os alcoviteiros e para quem, em geral, permita que dentro das suas habitações se pratique o comércio do sexo. Em 1780, no reinado de D. Maria I, as prostitutas são proibidas de frequentarem certos locais, sob pena de prisão. É ainda regulamentado o crime de “rapto por seducção” no caso de as alcoviteiras seduzirem as filhas de boas famílias para a prática da prostituição (“sómente por fim libidinoso”). Com o aparecimento da figura do Intendente Geral da Polícia, pelo Alvará de 25 de Junho de 1760, fica a caber-lhe a repressão da prostituição. Nessa sequência, surge a Ordem de Polícia de 22 de Maio de 1807, CEPIHS | 2
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a qual ordena que sejam vigiadas todas as casas públicas das meretrizes por serem “asylos dos vadios, receptaculo de furtos, e eschola de libertinagem”. Esta Ordem manda expulsar das localidades as prostitutas que dali não sejam naturais, bem como as que sejam nocivas à Saúde Pública (note-se aqui o acento tónico nesta matéria, denotando o legislador uma preocupação notória com as questões de saúde, indo além da mera questão moral). Em 1835, são criados os Governadores Civis e os Administradores dos Concelhos que, por Decreto de 18 de Julho desse ano, nos termos do Art.º 59.º, passam a poder/dever reprimir os actos atentatórios dos bons costumes. Em 31 de Dezembro de 1836, é publicado o Código Administrativo. Nos termos deste instrumento normativo, incumbe à figura entretanto criada do “Administrador Geral” (que, entretanto, substituiu o instituto, mais tarde recuperado, do “Governador Civil”), “cohibir a devassidão pública e o escândalo causado pela immoralidade e dissolução dos costumes pelas mulheres prostitutas” (Art.º 109.º, § 6). Este artigo entreabre a porta para a criação de regulamentos que virão no futuro a reger de forma exaustiva a vida das “toleradas”. O primeiro Regulamento Policial das Meretrizes e Casas de Toleradas veio a ser publicado em 1858, em Lisboa. Este regulamento inspirou todos os outros que se publicaram nos restantes distritos do país. O Regulamento de Braancamp, datado de 1865, obriga as prostitutas a registarem-se e a submeterem-se a inspecções sanitárias periódicas, a cargo do designado Facultativo do Partido, médico municipal ao serviço do concelho e que tinha ainda a função de lhes dar instruções acerca de higiene pessoal e da limpeza das roupas e das casas onde se prostituíam. Estas mulheres matriculavam-se e eram portadoras de um livrete sanitário, onde eram anotadas as datas e os resultados das inspecções periódicas a que estavam sujeitas. Neste boletim, o médico inscrevia a data, a palavra “limpa, menstruada ou suspeita” e assinava, em pequenas quadrículas destinadas a esse efeito. Se escrevesse “suspeita”, a meretriz tinha que ser encaminhada para o hospital, para ser submetida ao tratamento necessário. 138
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Pela Lei N.º 2036/49, publicada no Diário do Governo n.º 175, I Série, de 09.08.1949, foram proibidas as matrículas de meretrizes e igualmente proibida a abertura de casas de toleradas. Em 1962, foi decretado o encerramento de todas as casas de prostituição, bem como o confisco dos seus bens. Em 1982, através do Decreto-Lei N.º 400/82 (Código Penal), que revogou a norma de 1962, foi despenalizada a prática da prostituição, sendo actualmente apenas puníveis os actos de lenocínio, ou seja, da sua exploração económica por terceiros. O Código Penal em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei N.º 48/95, de 15 de Março (com inúmeras alterações entretanto sofridas), no seu capítulo IV (“Dos crimes contra a liberdade pessoal”) e no capítulo V (“Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”) prevê diversas disposições que criminalizam práticas conectadas com a prostituição. Tal como se referiu supra, o legislador visou atingir, sobretudo, os incentivadores, os auxiliares e os que exploram a actividade da prostituição. Assim, no Art.º 160.º, estão cominadas sanções penais para quem oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração sexual; no Art.º 169.º é criminalizada a prática de lenocínio (“quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos”); o Art.º 174.º criminaliza o recurso à prostituição de menores (“quem, sendo maior, praticar acto sexual de relevo com menor entre 14 e 18 anos, mediante pagamento ou outra contrapartida, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”); o Art.º 175.º, regula o lenocínio de menores (quem fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição de menor é punido com pena de prisão de um a cinco anos); e o Art.º 177.º prevê as circunstâncias que concorrem para o agravamento dos crimes mencionados nos preceitos anteriores (“as penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou, b) Se encontrar numa relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económiCEPIHS | 2
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ca ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação”). Na actualidade, discute-se um pouco por todo o mundo a melhor forma de lidar com este fenómeno omnipresente. Várias têm sido as pretensas soluções para encarar e enquadrar o exercício da prostituição. Assim, nos EUA, é crime e todos os envolvidos (cliente, proxeneta e prostituta) são abrangidos pela lei penal. Na Áustria e na Grécia, a prostituta é encarada pelo Estado como uma prestadora de serviços, estando a sua actividade regulamentada em moldes idênticos aos do Portugal dos séculos XIX/XX. Na Alemanha e Holanda, as prostitutas possuem enquadramento legal que lhes permite acesso à segurança social, sistema público de saúde e enquadramento contributivo, sendo a sua actividade taxada como outra qualquer. Na Suécia discute-se (à semelhança do que se passou em Portugal) a penalização do cliente, ilibando a prostituta de qualquer responsabilidade. Uma das maiores pragas que lhe está associada é o tráfico humano, que é combatido de forma generalizada por todos os países, sem um sucesso esmagador, atentas as diferenças que ainda subsistem entre as diversas partes do globo. Diferenças civilizacionais e, sobretudo, económicas que, enquanto perdurarem, constituirão um incentivo àquela prática. No nosso espectro político vacila-se, como sempre aconteceu, entre a necessidade de proteger a saúde e a ordem públicas e a tentação de gerar receitas para o Estado, salvaguardando, simultaneamente, os direitos das pessoas que se prostituem. A discussão segue dentro de momentos… A título de mera curiosidade histórico-estatística, refira-se que o Comissariado Geral de Polícia Civil do Porto registou a inscrição de 1 036 toleradas entre 01 de Novembro de 1868 e 16 de Novembro de 1874, sendo que 832 eram filhas de pais legítimos e 204 eram filhas de pais incógnitos (ou expostas). Francisco Pereira d’Azevedo, na sua História da Prostituição e Policia Sanitária no Porto (1864), tira o retrato às prostitutas da época, apresentando dados tão interessantes como os que se seguem: a) que a maior parte destas mulheres eram provenientes das profissões mal remuneradas de costureiras, criadas e fiadeiras; isto é, mulheres de magros proventos que 140
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se deixavam seduzir pelas ilusões do luxo, e também por aquelas que fogem à vida dura das fábricas e dos campos; b) que o grosso contingente de filhas ilegítimas provém das classes sociais mais baixas, cuja única saída para a miséria é a venda do corpo; c) o autor fornece um quadro com a proveniência geográfica das prostitutas matriculadas no Porto, em 1862 e 1863, bem como um outro mapa com a proveniência profissional das mesmas. A maior parte era proveniente do Porto e arredores, com a Galiza e o Minho a aparecerem logo a seguir. As criadas de servir encimam a tabela (251), seguidas das costureiras e engomadeiras (135). Ficamos, ainda, a saber que 226 frequentavam a prostituição por vontade própria, 111 por falta de meios, 66 por indução de proxenetas, 58 por sedução, 39 por abandono do amante, 25 porque não queriam trabalhar e 24 por abandono da família. 5 foram entregues pela própria mãe; e que a esmagadora maioria eram solteiras, embora aparecessem algumas casadas e viúvas. As que tinham entre 16 e 23 anos compunham o grosso do pelotão. II – A prostituição em Mogadouro – o caso de Maria Carçona
No que diz respeito ao actual concelho de Mogadouro, a primeira notícia escrita da presença de prostitutas é-nos fornecida pelos cronistas do séc. XIV que, durante a crise de 1383/85, relatam que as tropas do Condestável, durante a sua passagem por este recanto do Nordeste, na sua demanda pela recuperação das praças que tinham tomado o partido de Castela, eram seguidas por grupos de prostitutas, que contribuíam com a sua presença para elevar a moral das hostes guerreiras. Fernão Lopes, citado pelo Abade de Baçal, escreve que: “Deixados, pois, pendentes das paredes deste santuário [Azinhoso] os troféus tomados aos castelhanos, quis no dia seguinte o condestável expulsar do seu exército as «mancebas mundaneiras» que o acompanhavam. Mas aqui ardeu Tróia! A soldadesca desenfreada amotinou-se gritando acesa… em ira que o exército se não podia conservar sem aquela (…) tropa. O próprio condestável declarou depois que nenhum perigo ou batalha receara tanto, CEPIHS | 2
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nem tivera inimigos que mais lhe custassem a vencer; mas, com a sua astúcia e prestígio, sempre conseguiu sair-se bem da arriscada empresa, logrando a expulsão desejada”5.
Como se pode inferir da prosa inflamada do cronista, as mulheres desempenharam um papel importante na guerra civil, contribuindo, quiçá, para desequilibrar a contenda a favor dos sitiantes. Quanto ao número de toleradas registadas no concelho de Mogadouro, procurámos, em vão, obter dados através de buscas presenciais feitas no Arquivo Distrital de Bragança, Torre do Tombo, Arquivo do Governo Civil de Bragança e Arquivo Municipal de Mogadouro. Não foi encontrado qualquer registo de matrícula de toleradas. A explicação para tal insucesso prende-se, na opinião do autor, com o facto de em Mogadouro não ter existido qualquer casa de tolerância. Isso não impediu, contudo, a presença de toleradas e o exercício da prostituição na vila. Tal facto é constatável a partir de uma leitura atenta e crítica do processo judicial de Maria Carçôna. Maria do Nascimento Lopes, ou Maria Carçôna (assim conhecida por ser natural da localidade de Carção, concelho de Vimioso) suicidou-se no dia 16 de Outubro de 1916, por causa de um amor mal resolvido com um agricultor, natural da vizinha aldeia de Zava, que, contrariando a vontade da jovem, se recusou a casar com ela – dando assim origem à abertura de um processo-crime para averiguar acerca da real causa da morte. Nesse processo foram ouvidos os habituais peritos médicos, bem como os vizinhos e as colegas prostitutas que a conheciam e com ela tinham privado. A conclusão final foi a de que não houve prática de crime, confirmando-se o suicídio. O processo judicial em questão, fornece-nos algumas pistas concretas acerca do exercício da prostituição por estas latitudes, no início do séc. XX. Mais concretamente, alguns dados que nos sugerem o percurso biográfico da infeliz protagonista e os depoimentos das testemunhas arroladas e inquiridas que eram, na sua maioria, colegas da falecida, permiFrancisco Manuel Alves, (Abade de Baçal), Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, Tomo I, Bragança, Edição do Museu do Abade de Baçal, 1977, p. 64. 5
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tem-nos chegar à conclusão de que as prostitutas eram mulheres novas, abandonadas pela família ou a ela fugidas numa tentativa de escapar ao espectro da miséria. Este retrato não fica muito longe daquele (retrato) traçado para a cidade do Porto, acima referido. Mas, mais importante do que a caracterização social, ressalta deste processo judicial que havia dois tipos de meretrizes a exercer em Mogadouro: 1) Por um lado, surge-nos a referida Maria Lopes, matriculada como tolerada em Bragança (matrícula n.º 135, de 30 de Janeiro de 1908). Estava inserida no sistema legal, como se pode verificar pela existência de um livro de matrícula, sua pertença, que se encontra apenso ao processo judicial, onde estão assentes as primeiras inspecções sanitárias a que foi sujeita, as quais, posteriormente terá deixado de frequentar (a última foi efectuada em 8 de Março de 1915, com o resultado de “limpa”). A leitura do processo permite-nos ter como certo que Maria Carçôna estava estabelecida em Mogadouro. Mas, como na vila não existia casa de tolerância, depreende-se que terá exercido a profissão a título isolado, embora já desintegrada do sistema legal, mas com residência estável; 2) Por outro lado, se atentarmos nos depoimentos das testemunhas e colegas de Maria Carçôna (Maria Eugénia da Silva Vaz, natural de Morais, concelho de Macedo de Cavaleiros, vila onde residia; Arminda da Piedade Mendes, natural de Penhas Juntas, concelho de Vinhais, residente em Bragança; e Maria Olívia Fernandes, natural e residente em Bragança), verificamos que existia uma população móvel de prostitutas em trânsito pelo Planalto, uma vez que se encontravam em Mogadouro a título precário (“acidentalmente nesta vila de Mogadouro” [sic]), conforme elas próprias declararam aquando da sua inquirição no tribunal. A este facto não é estranha a data dos acontecimentos: 16 de Outubro, data da Feira dos Gorazes, que era, na altura, um dos mais importantes certames mercantis de todo o distrito de Bragança. A leitura que pode fazer-se a partir deste facto é que a feira anual (que durava três dias) arrastava para a vila de Mogadouro uma multidão diversa de mercadores e compradores e polarizava as principais forças económicas do concelho e maxime do distrito, originando um mercado potencial para aquelas CEPIHS | 2
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profissionais, que vinham à procura de engordar o pecúlio à custa dos proventos dos agricultores que aqui vendiam os seus produtos e, por essa razão, andavam com os bolsos recheados de dinheiro. Em jeito de conclusão, pode dizer-se que a prostituição no concelho de Mogadouro era, sobretudo, um fenómeno sazonal, não assumindo particular relevância, ao ponto de aqui se instalar uma casa de tolerância, permanente e organizada, existindo apenas uma ou outra meretriz que por cá achava acolhimento, como o caso da Maria Carçôna, ao contrário do que sucede nos tempos que correm quando se verifica a existência regular e habitual de casas de alterne, na vila e no concelho. III – Regulamento policial das toleradas no distrito de Bragança
À semelhança de outros distritos, e na sequência da reforma administrativa de 1836, também o distrito de Bragança publicou o seu regulamento das toleradas. Embora com redacção distinta, o conteúdo é idêntico ao dos seus congéneres. A sua publicação data de 1908 (um pouco tardia em relação ao de Lisboa que, como vimos, foi publicado em 1858), e é subscrita pelo adjunto do governador civil, figura administrativa entretanto retomada pelo ordenamento legal português. Estes regulamentos eram bastante exaustivos e regiam simultaneamente aspectos sanitários e policiais, como se pode aferir pela sua leitura. Era preocupação do legislador garantir o total controlo da actividade, minimizando assim o seu impacto moral sobre as populações residentes (atente-se, a título de exemplo, no cuidado em proibir a abertura de casas de toleradas junto a igrejas, escolas e repartições públicas – vide Art.º 20.º), bem como tentar combater a disseminação de doenças venéreas, que, historicamente, afligiram as sociedades e estiveram associadas à prática da prostituição. Daí a obrigatoriedade das inspecções sanitárias (vide Art.º 24.º). Contudo, e como se pode constatar no Art.º 33.º, estes regulamentos concediam às autoridades policiais poderes indiscriminados sobre as toleradas, conduzindo à prática de abusos de poder e assim contribuindo ainda mais para a diminuição do estatuto pessoal daquelas. 144
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Nas oportunas palavras de Manuela Tavares, a prostituição foi encarada ao longo da nossa história como uma “instituição social de serviço público, que deveria ser tolerada e regulada”6. De seguida, transcreve-se, integralmente, o regulamento: “Regulamento policial das toleradas no distrito de Bragança José d’Oliveira, Governador Civil Substituto do districto de Bragança: Sendo conveniente tomar providencias, que reprimam os excessos da prostituição, para garantia da saúde publica e manutenção da ordem; Usando da faculdade que a lei me confere, determino que se observe o seguinte regulamento, approvado pelo governo: Capítulo I Das auctoridades e repartições policiaes Art. 1.º – A policia de vigilância e repressão da prostituição no concelho, capital do districto, é incumbida ao commissario de policia, o qual tem a competência de todo o serviço relativo a matricula e inspecções; nos demais concelhos do districto toda a respectiva policia é incumbida aos administradores dos concelhos. A taes auctoridades e respectivas repartições se referem as disposições d’este regulamento. Capítulo II Da matricula Art. 2.º – Para os effeitos do presente regulamento são consideradas prostitutas todas as mulheres que vivem total ou parcialmente do commercio corporal, quer clara, quer clandestinamente, e são consideradas toleradas as prostitutas matriculadas. § único. Não se consideram prostitutas as mulheres mal comportadas, se não viverem do commercio corporal. Art. 3.º – É considerada como dada á prostituição clandestina, se não justificar satisfatoriamente o seu comportamento, a mulher que, não tendo matricula de tolerada, frequentar qualManuela Tavares, Prostituição – Diferentes Posicionamentos no Movimento Feminista, edição on-line, disponível em formato PDF. 6
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quer casa de prostituição, ou que, sem meios conhecidos de subsistência, tiver intervistas ou contactos corporaes com diversos homens. Art.º 4.º – Todas as mulheres consideradas como prostitutas devem ser matriculadas n’um livro especial, que haverá na repartição competente. Art.º 5.º – A inscripção de qualquer mulher, como tolerada, póde ser feita a seu pedido ou de officio; n’este ultimo caso, só terá logar depois de ser conhecida por averiguações, de todo o ponto indubitáveis, a respectiva prostituição. Art.º 6.º – Não será admittida á matricula voluntaria mulher alguma: 1.º – Que não tenha completado 18 annos de edade; 2.º – Que seja reclamada por seus paes, marido ou tutor; § único – Terá, porém, logar a matricula quando se reconheça que a mulher antes d’aquella edade já estava prostituída, ou que, depois de reclamada, continue a entregar-se á prostituição. Art. 7.º – Serão intimadas para se inscreverem no registo geral de matricula, no praso improrogavel de 24 horas, as mulheres que se entregarem á prostituição, e, se o não fizerem, serão conduzidas debaixo de prisão e matriculadas de officio. Art.º 8.º – Antes de effectuar a matricula procurará a auctoridade dissuadir as mulheres, que se apresentarem, de seguir tão funesta carreira. Art. 9.º – A matricula no registo geral de toleradas deve conter: 1.º – O nome das toleradas; 2.º – a filiação; 3.º – a edade; 4.º – os signais caracteristicos; 5.º – o estado; 6.º – a naturalidade; 7.º – a morada; 8.º – a epocha em que se entregaram á prostituição; 9º – as causas que a detreminaram; 10.º – a profissão anterior; 11.º – nota das vezes que tem soffrido molestias venereas; 12.º – observações convenientes. Capítulo III Das toleradas Art. 10.º – A cada tolerada será entregue um livrete, contendo este um regulamento policial, todas as indicações que estiverem lançadas na sua matricula, e algumas folhas em branco para se lançarem as notas das inspecções. Art. 11.º – É prohibido ás toleradas o dispor para qualquer fim do seu respectivo livrete, devendo apresenta-lo á auctoridade e aos seus respectivos agentes sempre que lhes seja exigido. 146
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§ único – No caso de haverem perdido o livrete deverão no praso de 24 horas sollicitar outro, mediante o pagamento de 200 reis. Art. 12.º – Nenhuma tolerada poderá tomar creada sem declarar o nome, a edade, e a naturalidade d’esta, na repartição competente. A creada, não excedendo 45 annos, ficará sujeita, como as toleradas, á inspecção sanitária nos termos d’este regulamento Art. 13.º – É prohibido ás toleradas: 1.º – Ter as janellas sem cortinas; 2.º – Terem na companhia qualquer menor de edade excedente a 3 annos; 3.º – Receber em sua casa para exercer a prostituição mulheres não matriculadas; 4.º – Apparecer á porta de casa ou da janella com trajes indecentes; 5.º – Incommodar ou escandalisar a visinhança ou o publico com palavras, gestos, arruidos ou canticos obscenos; 6.º – Ter em sua casa venda de comidas ou de bebidas, ou consentir rifas, jogos ou excesso de bebidas; 7.º – Attrahir a attenção dos transeuntes com fatos deshonestos; 8.º – Estacionar nas ruas, praças e passeios públicos, praticando factos deshonestos; 9.º – Divagar ou andar pelas ruas depois das 9 horas da noite no inverno e das 10 no verão. Art.º 14.º – A contravenção de qualquer obrigação, a que se referem os artigos 10.º, 11.º, 12.º e 13.º será punida segundo as circumstancias, com multa de 500 a 1$500 rs. ou um a tres dias de detenção. Art.º 15.º – Toda a tolerada tem direito a que o seu nome seja eliminado da matricula, e trancado o respectivo registo logo que se prove ter abandonado a prostituição, ou que se ausente para fóra do reino. Art.º 16.º – Será suspenso o effeito da matricula de qualquer tolerada, se o requerer individuo que tenha esta teuda ou manteuda e que, além de ser maior de edade e não ser casado, tenha meios para tal encargo. Art. 17.º – Sob tal fim o requerente assignará termo de responsabilidade pelo comportamento da tolerada que tomar debaixo da sua protecção, obrigando-se a dar parte, logo que esta cesse. Por este termo e respectiva copia, que lhe será entregue, pagará a quantia de 5$000 rs. Art. 18.º – As toleradas, em favor de quem forem suspensos os effeitos da matricula, ou eliminado e trancado o respectivo CEPIHS | 2
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registo, ficam sugeitas á vigilância da auctoridade para serem reduzidas á sua anterior situação sempre que se verifique ter havido fraude, ou mudança de vida. Capítulo IV Das casas de tolerância Art. 19.º – A mulher que pretender estabelecer casa de tolerancia, dirigindo outras que se entreguem á prostituição, declarará por escripto, perante a auctoridade, o seu nome, profissão, estado, naturalidade, bem como a rua e casa onde pretende estabelecer-se, e o numero de toleradas que quizer dirigir, obrigando-se a não viver com sua família, se a tiver, na casa de tolerância; e se fôr casada apresentará tambem por escripto, o consentimento do marido. Art.º 20.º – Não poderá estabelecer-se casa de tolerancia junto das egrejas, dentro das hospedarias e casas de venda e dormida, nem próximo das escolas, estabelecimentos e repartições publicas e quarteis militares. Art.º 21.º – A auctoridade, depois de verificar que a casa tem capacidade e condicções hygienicas e está fornecida de mobília e utensílios necessários para o bom regímen, concederá por Alvará a tolerancia pedida, pelo qual a impetrante pagará 5$000 reis. Art.º 22.º – A dona da casa tolerada é obrigada: 1.º – A prestar-se a todas as condicções hygienicas aconselhadas pelos facultativos encarregados das visitas sanitárias; 2.º – A ter as janellas guarnecidas de modo que o interior da casa não seja devassado, 3.º – A fazer apresentar as toleradas á visita sanitaria e exercer a maior fiscalisação afim de que as toleradas doentes entrem no hospital, sem esperar pela visita; 4.º – A participar na repartição competente, no praso e 24 horas, a admissão em sua casa de qualquer tolerada e o destino da que sahiu da mesma casa; 5.º – A não ter em sua casa venda de comidas ou bebidas, nem consentir jogos, divertimentos ruidosos ou excesso de bebidas; 6.º – A não receber em sua casa para exercer a prostituição mulheres não matriculadas. Art.º 23.º – As toleradas ou donas de casas de toleradas incorrem por cada infracção d’este regulamento na multa de 1$000 a 3$000 reis, ou 2 a 6 dias de detenção, conforme a gravidade das mesmas. No caso de repetidas reincidencias, as multas e prisão 148
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poderão ir até ao maximo fixado no artigo 486.º do Codigo Penal. Capítulo V Da inspecção sanitaria Art.º 24.º – Todas as toleradas inscriptas na matricula são obrigadas á inspecção sanitária pelos sub-delegados de saude e seus substitutos. Estas inspecções são gratuitas, nos termos do n.º 13.º do Art.º 74.º do decreto de 24 de dezembro de 1901. Art.º 25.º – As toleradas são obrigadas a apresentar no acto da inspecção o livrete a que se refere o Art.º 10.º, para n’elle ser notado o seu estado sanitario, e o dia, hora, mez e anno da inspecção. Art.º 26.º – Devem assistir á inspecção sanitaria as donas das casas de tolerancia, e são obrigadas á mesma inspecção, no caso de não excederem a edade de 45 annos. Art.º 27.º – A inspecção terá logar uma ou mais vezes por semana, segundo aconselharem as circumstancias, nos logares, dias e horas que forem designados. Art.º 28.º – Só devem ser visitadas no seu próprio domicilio, se n’este houver luz e limpeza necessarias, as toleradas que o requererem, e entregarem na repartição competente a importancia de quatro visitas, que serão reguladas pela tabela camararia. Art.º 29.º – Fica sujeita á multa de 500 a 1$500 reis ou 1 a 3 dias de detenção a tolerada que faltar a qualquer obrigação, a que se referem os artigos 24, 25, 26, 27 e 28. Art.º 30.º – Toda a tolerada affectada de syphilis ou de qualquer molestia contagiosa será immediatamente enviada ao hospital, acompanhada duma guia, passada por facultativo, indicando a natureza da molestia. Art.º 31.º – Toda a mulher matriculada, que, achando-se doente, quizer recolher-se voluntariamente ao hospital, deverá primeiro solicitar guia na repartição competente. Art.º 32.º – As toleradas não podem sahir do hospital, nem voltar a exercer a prostituição, sem estarem munidas d’uma guia competente, sob pena de serem immediatamente enviadas de novo ao hospital. CEPIHS | 2
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Capítulo VI Disposições diversas Art.º 33.º – Todas as casas das matriculadas ficam constantemente sujeitas á fiscalisação e vigilancia das auctoridades policiaes, e tanto por estas, como pelos seus agentes, podem ser visitadas em qualquer hora do dia ou da noite. Art.º 34.º – São expressamente prohibidas as casas de alcouce onde a occultas se reúnam homens e mulheres para fins deshonestos, sendo a infracção d’esta disposição punida com a multa de 5$000 reis. Art.º 35.º – Incorrem na multa de 5$000 reis por cada infracção os donos de hospedarias, estalagens, casas de comidas, de bebidas e de dormidas, que permitirem n’ellas o exercício da prostituição. Art.º 36.º – Incorrem na pena de demissão os agentes da auctoridade policial, que receberem das toleradas qualquer favor, gratificação, presente ou remuneração. Art.º 37.º – As multas e detenção, impostas por este regulamento, serão applicadas summariamente pela auctoridade policial em face das participações ou autos de noticia jurados e ouvida a pessoa infractora. Se os infractores não pagarem voluntaria e immediatamente a importancia da multa, ou o seu maximo, quando não esteja fixado em determinada quantia, será feita participação ao agente do Ministerio Publico, para os effeitos legaes. Art.º 38.º – O producto das multas e de outras proveniencias, alludidas no presente regulamento, entrará em cofre especial para ser applicado ás despezas d’este ramo de serviço, e no fim de cada anno civil, o saldo que se liquidar entrará para o cofre de pensões do corpo de polícia. Art.º 39.º – Nas repartições competentes haverá livros especiaes para cada um dos seguintes serviços: 1.º – Registo geral de matrícula das toleradas; 2.º – Registo das inspecções a cada uma das toleradas; 3.º – Descripção de todos os autos levantados por transgressões d’este regulamento; 4.º – Registo do producto das multas e outras proveniencias alludidas n’este regulamento, e da sua respectiva applicação. Art.º 40.º – De todas as deliberações tomadas pelas auctoridades policiaes, encarregadas da execução d’este regulamento, quando os processos não estejam relaxados ao poder judicial, ha recurso para o governador civil do districto. Bragança, 18 de Janeiro de 1908. José d’Oliveira” 150
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A morte de Trindade Coelho António Pimenta de Castro*
Resumo – O enfoque deste artigo recai sobre a morte de Trindade Coelho, escritor, jurista e cidadão, figura incontornável dos finais da Monarquia e da cultura portuguesa do seu tempo. Pretende-se explicar não só as causas que levaram ao seu suicídio, como o seu estado de saúde e as injustiças que lhe foram feitas pelos “políticos” e que tanto o afectaram como, também, o ambiente político que se vivia nos finais do regime monárquico e o crescimento do pensamento republicano. Procura-se, também, descrever, com base nos jornais da época, o seu funeral. Palavras-Chave – Trindade Coelho; Política; Finais da Monarquia; Suicídio. Abstract – The focus of this article is the cause of the death of Trindade Coelho, writer, jurist and citizen, inescapable figure of the end of the Monarchy and of the Portuguese culture of his time. Here we try to explain, not only the cause of his suicide, but also his health condition and injustices he endured by the “politicians” which affected him deeply, the political environment of the end of the monarchical regime, and the growth of the republican thought. We also try to describe his funeral, according to the newspapers of his time. Keywords – Trindade Coelho; Politics; End of Monarchy; Suicide.
_____________ * Docente do Agrupamento de Escolas de Torre de Moncorvo; investigador. CEPIHS | 2
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Muito se tem dito e escrito, e muito há ainda para dizer, sobre a obra e a vida do distinto escritor de Mogadouro, mas muito pouco se tem falado da sua morte, nesse trágico dia 9 de Agosto de 1908, e ainda menos onde aconteceu e como ocorreu. Venho, justamente, tratar desse assunto, que interessa a todos os Mogadourenses e homens de cultura. É um assunto melindroso, por vezes, mesmo tabu, Fig.1 – Trindade Coelho mas que convém esclarecer: como é que um talentoso escritor, prestigiado e famoso, bom chefe de família, família que ele amava profundamente, competente magistrado e intelectual respeitado, comete, na flor da idade (tinha apenas 47 anos), um acto de desespero tão medonho? Este acontecimento surpreendeu muita gente do seu tempo, como, por exemplo, Alberto d’Oliveira1 que, comentando os suicídios de Antero de Quental, Camilo Castelo Branco e Trindade Coelho, escreveu, a respeito deste, o seguinte: “O suicídio de Trindade Coelho, a mim que estava longe e recebi de chofre a triste notícia, a um tempo ensombrou o meu coração de velho amigo e deixou o meu espírito atónito como perante um enigma. Todas as mortes eu poderia imaginar ao autor de Os Meus Amores, menos aquela. Trindade era um homem são de corpo e alma, alegre e feliz de viver, que opunha a qualquer sofrimento uma têmpera rija e uma reacção pronta. (…) Soube depois também, mas nunca o pude saber com suficiente nitidez e precisão, que as suas alvoroçadas esperanças sofreram duro choque e desencanto e que, pela primeira vez, a alma se lhe alagou de amargura e dor. A sua saúde moral, erecta e inacessível como as serras do seu Mogadoiro, desmoronou-se. Naquele espírito tranquilo entrou a agitação, a dúvida, a cólera. Aqueles Alberto d’Oliveira era amigo íntimo de Trindade Coelho. Foi ele que lhe mandou, de Berna, o livro de educação cívica de Numa Droz, que haveria de inspirar o escritor de Mogadouro a escrever a sua monumental obra Manual Cívico do Cidadão Português. 1
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olhos, facilmente humedecidos de melancolia lírica, choravam agora de pura aflição. E tal foi a tempestade do seu resistente coração que nela se gerou o raio – o tiro inesperado, ilógico, impulsivo – que o matou. (…) Mas Trindade Coelho, nascido para a felicidade normal, para a alegria contagiosa, para a acção enérgica e fecunda, esse morreu, ainda mais tristemente, às mãos de Portugal, às nossas mãos, às mãos da nossa desordem, da nossa injustiça, da nossa secular inveja e da nossa desesperadora esterilidade cívica”2.
Trindade Coelho era um homem extremamente sensível (ou não fosse escritor…) e foi sempre honesto, sincero e íntegro. “Transmontano. Pequenino mas tesinho”, como se lhe referiu Eugénio de Castro. Como se toda a gente fosse tão boa como ele era. Como magistrado, diziam ser “um escravo da lei”, ou seja, um escrupuloso defensor e cumpridor exemplar. Bem intencionado, verdadeiro “apóstolo” do povo, foi um incansável lutador contra o analfabetismo, contra a ignorância, contra a superstição que levava os simples e humildes a serem explorados pelos poderosos, pelos usurários, pelos oportunistas e pelos “políticos”. Era um idealista, um sonhador, que acreditava que a educação cívica, seria um “instrumento seguro de uma evolução salvadora” para o povo. Foi, também, um incansável paladino da Liberdade e da Democracia. Porque se deu, então, o drama? Em primeiro lugar, atendamos aos males que de longe vinham. Trindade Coelho era doente, sofria de ataques de neurastenia. Ele próprio o confessava aos seus amigos mais íntimos, como Louise Ey, sua tradutora de alemão, em carta datada de 25-04-1908, quatro meses antes de se suicidar, após ter-se demitido do cargo de Procurador Régio. “Não calcula como estou doente! Empolgou-me uma nova crise aguda de neurastenia, que o meu médico diz ser a mais funda que tem encontrado na sua clínica. É a nova erupção violenta de um vulcão que nunca se apaga de todo, pois nasci assim. A miAlberto d’Oliveira, Vida, Poesia & Morte, Coimbra, Atlântida Livraria Editora, 1939, pp. 205-208. 2
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nha vida tem sido sempre a de um doente, ora melhor, ora pior, nunca bem. Ou neurastenia exaltada, manifestando-se em febre de trabalho, ou neurastenia depressiva manifestando-se numa tristeza horrorosa e numa absoluta falência de todas as energias. O médico proíbe-me de trabalhar durante dois ou três meses; mas ainda que mo não proibisse, que poderia eu fazer?! Vivo num sofrimento constante! Desalentado, esmagado, aniquilado! Um horror! Alenta-me a esperança de que melhorarei com algum tempo de forçado repouso, como tem sucedido doutras vezes. Eu não torno a escrever para publicar! Tem sido a minha desgraça, porque cedendo a esse capricho do meu temperamento, descurei toda a ordem de interesses materiais, e cheguei, após 25 anos de luta, a isto que sou hoje: um farrapo de dor, sem fortuna, sem saúde, sem o menor valor eficaz para assentar numa base estável, o sossego que tenho ainda para viver! É medonho!”3.
A outro amigo desabafava: “Tenho horas horríveis, em que a vida só me oferece aspectos desoladores”. De facto, Trindade Coelho era vítima de uma depressão nervosa que se repetia em alguns momentos da sua vida, agravada pelo facto de ser (mal dos artistas), um hipersensível. À escritora sua amiga, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, confessava que: “Aos períodos de exaltação seguiam-se outros, raríssimos, de depressão, enfado profundo, incapacidade de todo o trabalho de espírito” e que, por duas vezes – 1899 e 1903 – “debelara violentos ataques de neurastenia, como um valente, afugentando demónios-incubos do desalento; e voltara ao seu natural”4. É deste período uma outra carta dirigida, também, a Louise Ey, datada de 19-10-1903: “A minha vida, há meses, é um martírio (…). Mas o meu trabalho de espírito, que me foi sempre tão querido, repugna-me agora inteiramente. Desde que regressei, ainda não acendi a luz do meu gabinete, e procuro matar o tempo a ler algum romance tolo ou… a dormir! Isto há de passar, pouco a pouco. Já estive muito pior, e revivi. Mas estou muito doente, e apoderou-se de Trindade Coelho, Autobiografia e Cartas, Lisboa, A Editora, 1910, p. 92. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, “Prefácio”, in Trindade Coelho, Autobiografia e Cartas, p. XIX, Lisboa, A Editora, 1910. 3
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mim uma descrença absoluta! E não podendo por temperamento, converter-me num pulha, tenho de aceitar que sou um condenado, à mercê dos maus…Isto é deles, dos maus! Não vale a pena trabalhar por ideais irrealizáveis! (…) Nasci num atoleiro e hei de morrer nele! Portugal é um país perdido, miseravelmente abandonado pelos seus filhos, à espera talvez de morrer (…)”5.
Em segundo lugar, atendamos à sua colocação no Tribunal da Boa--Hora, na cidade de Lisboa. Trindade Coelho tinha uma justa e exacta consciência dos seus direitos e dos seus deveres, era um cidadão exemplar. Desde Novembro de 1895, que exercia o cargo de Procurador Régio no 2.º Distrito Criminal de Lisboa. Nas suas palavras, era o tribunal mais exigente do reino. Desempenhava, aqui, entre outras funções, o ingrato e antipático cargo de fiscalizar, oficialmente, a imprensa de Lisboa, por causa da odiada “lei das rolhas”. Os jornalistas atacavam-no violentamente, no entanto, ele gostava que o fizessem, porque, como escreveu na sua Autobiografia, era uma maneira indirecta de atacar a lei a que o público chamava a “lei das rolhas”6, por arrolhar a boca dos jornalistas. Outros chamavam-lhe “a mordaça”. Embora não concordasse com a referida lei, Trindade Coelho, como magistrado, tinha de a aplicar, cumprindo o seu dever, contrariado. E os portugueses não estavam preparados para lidar com um homem íntegro e que fizesse cumprir a lei, como ele escreveu: “É a lei?! – Logo não se cumpre! Porque as leis em Portugal, fazem-se para se não cumprirem” 7. Essa missão difícil valeu-lhe muitas críticas de jornalistas, que não compreendiam como é que um democrata como Trindade Coelho fazia executar uma lei tão repressiva. O governo de Portugal era, então, a ditadura de João Franco, mais conhecida por franquismo, atacado pelos partidos monárquicos (Regenerador e Progressista que não estavam no poder), Partido Republicano e outros partidos oposicionistas. João Franco governava em ditadura, apenas apoiado pelo rei D. Carlos. Trindade Coelho, Autobiografia e Cartas, op. cit., p. 86. Idem, p. 26. 7 Idem, p. 71. 5 6
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Um dos jornalistas que mais o atacou foi Pádua Correia, em cinco artigos no jornal A Voz Pública, acusando-o, frontalmente, de duplicidade: “a seu juízo, o homem era contra as leis de excepção, enquanto que o agente do ministério público servia todos os despotismos que se traduziam em problemas governamentais” 8. Trindade Coelho respondeu-lhe desta maneira: “Eu, como magistrado, aplico as leis; como escritor, critico-as e colaboro no aperfeiçoamento ou substituição das que me parecem más. Onde está aqui a contradição? Não será cumprir dois deveres? Não será conjugar a obrigação e a devoção, no interesse das nossas instituições jurídicas? Então eu por ser magistrado estou impedido de escrever livros? E escrevendo livros não hei-de defender neles a melhor doutrina, até contra as leis, quando a minha experiência de magistrado me demonstra que elas são más?” 9.
A verdade, porém, é que, Trindade Coelho, como democrata não aguentava aplicar uma lei que a sua ética e sensibilidade repugnavam, porque não tinha alma nem de inquisidor, nem nunca serviria de “instrumento” de partidos ou de políticos. Por estas razões, apresentou a sua demissão do cargo de magistrado. João Franco confirmou, sete dias depois, a sua exoneração. Trindade Coelho e a sua família viviam, exclusivamente, do seu ordenado e viram, agora, as dificuldades económicas agravadas. Entretanto, toda a oposição, monárquica e republicana, exultou com esta atitude de Trindade Coelho, que consideravam que só poderia vir de um verdadeiro homem. Escreveu o seu amigo e escritor, Júlio de Lemos: “Os partidos monárquicos, hostis à ditadura do varão do Alcaide, rejubilaram, os respectivos marechais correram à residência do prestigioso Escritor, a abraçá-lo e felicitá-lo e a imprensa Júlio de Lemos, “Trindade Coelho – Mestre de Civismo”, separata de A Aurora do Lima, Viana do Castelo, 1957, p. 5. 9 vTrindade Coelho, AVoz Pública, Porto, 18-08-1907. 8
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de todas as parcialidades políticas, incluindo a republicana, aplaudiu-o entusiasticamente. Pudera! No lance, o grave servidor da Lei havia-lhes prestado – a despeito dele nem nisso pensar – um inapreciável serviço”10.
Trindade Coelho, fiel à sua coerência, apenas respondia que fizera o que era seu dever fazer. Abriu, por esta altura, escritório de advogado – ironicamente na Rua do Crucifixo – pouco procurado pela clientela. Pobre, doente, abandonado pelos “políticos”, com pouco dinheiro para sustentar a família, sentia-se cada vez mais deprimido. Sobre esta situação, escreveu Carolina Michaëlis de Vasconcelos, no “Prefácio” à Autobiografia e Cartas: “Pela terceira vez, vendo-se sustado na sua actividade regular, sem colocação, sem trabalho, perdeu por completo a faculdade de reagir por força de volição, que parecia ser um seu apanágio inalienável. Concentrado na sua dor, cedeu aos embates de mal-entendidos, mal-querenças, insidias, injustiças, ingratidões. E após seis meses de agonia pôs termo ao desalento moral que se apoderara dele, pela boca de uma pistola, como Camilo, como Antero como outrora Uriel da Costa”11.
Deu-se o regicídio. Caiu o governo de João Franco e, com ele, a odiosa lei. Estavam no poder, unidos, os partidos Progressista e Regenerador. Alguns jornais apelavam à reintegração de Trindade Coelho no seu antigo cargo. Era da mais elementar justiça! Contudo, esses “políticos” que muito lhe deviam não o reintegraram no seu lugar, levando-o a ressentir-se com tal ingratidão. Como registou Júlio de Lemos, no seu citado trabalho, Trindade Coelho – Mestre de Civismo: “curtido de desilusões, esgotadas as reservas morais, reconhece a ingratidão dos políticos, que o não reconduzem no seu lugar, reconhece que lhe faltam a saúde e
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Júlio de Lemos, “Trindade Coelho – Mestre de Civismo”, op. cit., p. 5. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, “Prefácio”, in Autobiografia e Cartas, op. cit., p. XIX.
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os meios de subsistência, vê-se ante irremediável catástrofe”. Também o seu amigo Paulo Osório se pronunciou: “(...) quando viu que aqueles que na primeira hora do seu sacrifício tinham corrido a abraça-lo, maravilhados com a nobreza heróica do seu gesto, eram os primeiros a esquece-lo desde que o acaso os conduziu de novo ao usufruto das horas de fortuna, que a mesma mão que fora, trémula de enternecido entusiasmo, apertar a sua, num momento de obsessiva loucura, o próprio futuro dos que no mundo com tão acrisolado afecto estremecia, era a que friamente, sobre uma pomposa secretária de ministro, assinava, meses depois, na hora da recompensa e do triunfo, a sentença do seu desterro para centenas de léguas longe de Lisboa, onde todos os interesses da vida e do coração o tinham preso”12.
Na verdade, os “políticos” em vez de lhe entregarem o seu antigo cargo, em Lisboa, onde tinha a família, os seus amigos e a sua vida, mandaram-no para Vieira do Minho, muitas léguas longe da capital. Foi nomeado para esse lugar a 22-7-190813, mas não chega a tomar posse. A Trindade Coelho, esta ingratidão feriu-o profundamente. Veio a suicidar-se no mês seguinte, dia 9 de Agosto de 1908, com um tiro no coração, pelas quatro horas da tarde, na sua casa da Rua de S. Roque, número 20, 4.º andar. Na sua secretária, estava aberto o livro Imitação de Cristo. O jornal Vanguarda14, diário republicano independente, explicou, assim, a sua morte: “Parece que na trágica e lamentável resolução do Sr. Dr. Trindade Coelho influiu bastante uma notícia que lhe foi dada anteontem, e pela qual perdeu a esperança de voltar para a delegacia do 2º distrito. Segundo consta, estava feita uma combinação pela qual o delegado Dr. Castro Lopes, seria promovido a juiz, sendo nomeado em comissão para o Cairo e, indo o Sr. Trindade CoePaulo Osório, Trindade Coelho, Porto, Empresa Litteraria e Typogrphica, 1908, p. 14. Padre José Carlos Alves Vieira, Vieira do Minho – Notícia Histórica e Descriptiva, Vieira do Minho, Edição do Hospital João da Torre, 1923. 14 Jornal AVanguarda, Lisboa, 10 de Agosto de 1908, p. 10. 12 13
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lho para a Boa-Hora. Mas, à última hora, o Sr. Alberto Navarro, irmão do Sr. Campos Henriques, apeteceu a comissão do Cairo, e o ministro da justiça fez por isso saber ao Dr. Castro Lopes que não podia nomeá-lo. Renunciou, pois, o Sr. Dr. Castro Lopes a ser promovido, porque só podia sê-lo indo para o Cairo, assim o fez saber ao Dr. Trindade Coelho, anteontem. A perda dessa esperança parece ter sido a causa próxima do suicídio do ilustre homem de letras”.
Escreveu Ernesto Rodrigues: “As contradições do passado do magistrado vieram à tona. A incompreensão no campo judicial, pedagógico e político (no sentido mais nobre) foi o último golpe numa estrutura psíquica dilacerada entre opostos e variações, que os contos denunciavam. Mas pode haver outra razão”15. Trindade Colho vivia, nesta altura, na rua de S. Roque, n.º 20, 4.º andar (neste prédio, estava instalado o Club Portuguez). Aquele episódio poderá ter sido a “gota de água” que fez “transbordar o copo. Também o jornal O Mundo, desses dias, debruçando-se sobre este tema, concluiu que Trindade Coelho se suicidara após ter recebido do Dr. Castro Lopes a informação de tais decisões, retirando-lhe a esperança de continuar em Lisboa, no tribunal da Boa-Hora. O Mundo16, completava, deste modo, a notícia já por nós transcrita de A Vanguarda: “Tendo saído o Sr. Dr. Castro Lopes de casa do Dr. Trindade Coelho, recolhido o filho deste antigo magistrado ao seu quarto, pode calcular-se por isso, a surpresa anciante que daí a instantes se ouviu um ruído em toda a casa, e que, dirigindo-se as várias pessoas de família ao gabinete de trabalho do infortunado escritor, depararam com ele sentado no seu fauteuil, empunhando ainda de encontro ao coração, a arma que, num segundo, lhe despedaçara a existência.
Ernesto Rodrigues, “Quadros de uma vida”, in Centenário da Morte de Trindade Coelho – Exposição Biobibliogáfica, Mogadouro, Edição do Município de Mogadouro, 2008, p. 35. 16 “Um acontecimento lutuoso – o suicídio do Dr. Trindade Coelho”, in O Mundo, 10 de Agosto de 1908, p. 10. 15
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Estivemos em casa do Dr. Trindade Coelho, por volta das cinco e meia da tarde, pouco depois do seu desesperado acto, e podemos nessas circunstâncias, constatar a aflição da esposa e do filho amantíssimos que assim, vinham de perder um ente querido, que não mais voltará a (?)17 com a prática de nenhum acto, mas que, à certa, lhes lega um nome puro e honrado”.
Finalmente, o seu enterro. Trindade Coelho foi sepultado no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, em jazigo da família Lessa. Os seus restos mortais foram transladados para o cemitério de Mogadouro, em 1961, aquando do centenário do seu nascimento. Regista o jornal Diário de Notícias18: “Narram os jornais da manhã de ontem pormenorizadamente, o trágico fim de Trindade Coelho e isso nos dispensa de reeditar essas dolorosas notas acerca do fúnebre sucesso. Registaremos apenas quanto diz respeito ao funeral do ilustre escritor, realizado ontem, às cinco horas e meia da tarde, e revestido de singular imponência. Desde as três horas da tarde que na residência em luto, compareciam grande número de amigos e admiradores do ilustre extinto, de modo que à hora marcada para o funeral a concorrência era numerosíssima, enchendo a escada e algumas salas de habitação, vendo-se também nos passeios da rua de S. Roque em frente ao prédio aludido grande quantidade de povo. Eram 5 e meia da tarde quando chegou o Rev. Prior da Encarnação19, Palavra não existente dada a deterioração da página do jornal. Consultamos este recorte de jornal, pela primeira vez, no Museu Abade de Baçal, na cidade de Bragança, no espólio de Trindade Coelho, já há uns anos, sendo director o Dr. João Manuel Neto Jacob. Por informação dada pelo meu saudoso amigo Dr. Armando Pimentel, dos Estevais (Mogadouro), que teve um papel importante nas comemorações do centenário do nascimento do egrégio escritor de Mogadouro, com lugar na sua terra natal, o espólio teria sido oferecido pela nora de Trindade Coelho, de nome D. Maria Cristina (então já viúva do Henrique, filho único de Trindade Coelho, que não deixou descendência), ao supracitado Museu de Bragança. Investigações mais recentes sobre o referido recorte de jornal, demonstraram-nos que ele pertence ao Diário de Notícias, de 11 de Agosto de 1908, colmatando as dificuldades de identificação encontradas numa primeira consulta. Acresce o facto de Alfredo da Cunha, que foi director deste jornal, e Trindade Coelho serem grandes amigos. 19 Diz o Almanaque Republicano, disponível na Internet, em efemérides de Agosto de 1908: “1908 – Suicida-se Trindade Coelho, autor do Manual Político do Cidadão Português. O Car17 18
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acompanhado de um acólito, após as orações fúnebres, começou a organizar-se o cortejo, que como acima dizemos revestiu grande imponência, acompanhando o féretro cerca de oitenta carruagens. A urna funerária que encerra os restos mortais do ilustre magistrado, foi transportada para o cemitério num carro funerário negro tirado a duas parelhas, seguindo-se uma carruagem tirada a uma parelha, conduzindo o sacerdote e o acólito. (…) Fizeram-se representar no funeral a Academia Real das Ciências, o Grande Oriente Lusitano e o Clube Transmontano, de que o finado era presidente. Acompanharam o préstito a escola n.º 2 da Academia Instrução Operária e a escola-oficina n.º 1 da Sociedade Promotora de Asilos-Creches e Oficinas. Dirigiu o funeral o sr. dr. Alfredo da Cunha. Guarneciam o topo e os lados do carro funerário vários ramos de flores naturais, e as seguintes coroas (…)”20.
O jornal descreve todas as coroas de flores e o que diziam os respectivos cartões. Anotamos dois exemplos: “Rosas e fitas pretas – Ao seu querido e devotado Irmão e grande cidadão, Dr. Trindade Coelho; o Grande Oriente Lusitano Unido; Amores perfeitos e violetas com fitas cor de rosa”; “A Trindade Coelho – Saudades da sua esposa e filho”. Enumera, ainda, as pessoas ilustres que iam no cortejo fúnebre, e alude a alguns telegramas que sua esposa e o seu filho Henrique receberam. Hoje, Trindade Coelho, está sepultado na sua terra, como ele tanto queria: “Oh! A minha terra!... Como seria bom repousar aí! Em parte alguma repousaria melhor, decerto, do que além – debaixo daquele céu que enviou aos meus olhos, mal nasci, o primeiro beijo de luz, como se fora uma carícia de Deus (…)”21. Trindade Coelho é o verdadeiro símbolo de todos os portugueses que tentaram modificar este triste país. Amante da sua terra, um autêntico Dom Quixote, sempre lutou pelo bem do povo contra as trevas da ignodeal Patriarca censurou o padre que encomendou e acompanhou o funeral até ao cemitério”. 20 Diário de Notícias, 11de Agosto de 1908, p. 1. 21 Trindade Coelho, A Minha Candidatura por Mogadouro: Costumes Políticos em Portugal, Mogadouro, Câmara Municipal de Mogadouro, 1987, p. 105. CEPIHS | 2
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rância, contra os usurários, os “políticos” e outros parasitas que o exploraram. É, também, o exemplo de homem livre e de convicções, porque se dispôs a sacrificar tudo pelo bem comum, por um mundo melhor, mais humano e solidário, numa persistência que não esmoreceu no seio da incompreensão e da injustiça que contra ele dirigiram. Mas como se via a si próprio? Escreveu Trindade Coelho: “Creio em Deus; sou cristão (…). A mim… – a mim reputo-me um pobre filho do povo, que por acaso veio dar cá cima, e que não podendo voltar á terra donde brotou – oh, jamais! – tem dela infinitas saudades (que quase nem sequer são feitas de lembranças, tão cedo eu a abandonei) e está atónito do que vê cá cima… – e lá baixo! Quando chegará, minha boa amiga, o «reino de Deus»?!”22.
Trindade Coelho é, hoje, uma referência, farol de civismo e de ideais nobres. Este é o seu grande legado, que testemunha não ter sido em vão o seu sacrifício.
Trindade Coelho, Autobiografia e cartas, op. cit., pp. 34-35. Os restos mortais de Trindade Coelho só vieram para o cemitério de Mogadouro, aquando das comemorações do centenário do seu nascimento, em 1961. 22
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A representação de Espanha nos manuais escolares do ensino primário do Estado Novo César Urbino Rodrigues*
Resumo – Uma análise dos manuais escolares do Estado Novo leva-nos à conclusão de que a Espanha é representada de uma forma multifacetada e até contraditória. Podemos dizer que são 4 os traços dessa representação: 1 – Por um lado, a Espanha é vista como o país vizinho, o único com que Portugal possui fronteiras comuns. 2 – Por outro lado, são recordadas as origens étnicas comuns, sendo, a Espanha, apresentada como o nosso parente. 3 – Em terceiro lugar, à Espanha de Franco é atribuída a mesma missão civilizacional que o regime atribui ao Portugal de Salazar: salvar a Humanidade do comunismo. Nesses termos, a Espanha é apresentada como correligionária. 4 – Finalmente, e não menos importante, a Espanha é também apresentada como o nosso inimigo permanente, desde os tempos da Fundação da Nacionalidade. Palavras-chave – Manuais escolares; Espanha; Vizinho; Correligionário; Inimigo. Abstract – The analysis of the textbooks of the Estado Novo leads us to the conclusion that Spain is represented in a multifaceted way, even contradictory. One can say that there are four traces of that representation: 1 – On one hand, Spain is viewed as the neighbor country, the only one with which Portugal has common borders. 2 – Also, common ethnic origins are recorded, being that Spain is presented as our relative. 3 – Thirdly, it is attributed to Franco’s Spain the same civilizational mission that the regime credits Salazar’s Portugal for. 4 – Finally, and not the least important, Spain is also presented as our permanent enemy, since the Foundation of the Nationality. Keywords – Textbooks; Spain; Neighbor; Fellow party member; Enemy.
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* Professor da Escola Superior de Educação Jean Piaget/Nordeste; jornalista; investigador
do CEPESE. CEPIHS | 2
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1 – Introdução
Numa altura em que a União Europeia passa por uma crise grave a ponto de muitos observadores porem em causa a sua capacidade de sobreviver como projecto económico e político, não deixa de ser interessante analisar as representações que cada país da U.E. faz dos outros membros. No caso da representação que os manuais escolares portugueses nos transmitem de Espanha, o interesse é ainda maior porque se trata da Nação mais próxima de nós, geograficamente indissociável de Portugal e com as mesmas origens étnicas, culturais e até linguísticas. Parece-me que a construção da União Europeia implicará ou, pelo menos, tornar-se-á mais fácil se nos submetermos como que a um processo de catarse através do qual se eliminem fantasmas e mitos, em relação aos demais povos da União, que os regimes do passado nos foram inculcando sub-repticiamente nas consciências. É isso que vamos tentar fazer em relação à Espanha, neste breve trabalho. 2 – A representação de Espanha
Por uma questão metodológica, parece-me oportuno dividir em dois períodos o estudo dos manuais escolares: antes da Fundação da Nacionalidade, da Fundação da Nacionalidade à Restauração da Independência. A partir da Restauração da Independência os manuais escolares praticamente deixam de se referir à Espanha, e, por isso, ficamo-nos pelos dois períodos anteriores. 2.1 – Antes da Nacionalidade – As referências à Espanha, antes da fundação da nacionalidade portuguesa, a propósito da formação geográfica e da povoação da Península, são frequentes nos manuais escolares do Estado Novo. A respeito desse período, a Península Ibérica é quase sempre tratada como um todo, ainda que por vezes surjam alusões à Lusitânia, referenciada como o berço da nacionalidade portuguesa. Mas os traços mais frequentes são os da identidade na origem étnica, linguística, cultural e religiosa, e a partilha comum do mesmo espaço geográfico que 164
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constitui a Península Ibérica, muitas vezes apresentada também como a Península Hispânica. 2.1.1 – Manuais de Geografia – A primeira referência a Espanha, num manual utilizado no Estado Novo, vem no manual de Geografia, para as 4.ª e 5.ª classes, do ano de 1929, ainda que aprovado em 1922, antes, portanto, da Ditadura. Aí pode ler-se: “Portugal situado na parte ocidental da Península Hispânica e confronta por N.E. com a Espanha e por S. e O. com o Oceano Atlântico”1. Outros manuais de Geografia do ensino primário permitem-nos também supor a representação que o regime fazia da Espanha, seja por referências directas seja por referências indirectas. Citemos o compêndio de Geografia para a 3.ª e 4.ª classes, do ensino primário elementar, de 1943-44: “Há na Europa diversas nações que diferem umas das outras pelos costumes e pela língua. Entre essas nações distinguem-se, pela sua importância, as quatro grandes potências: Inglaterra, França, Alemanha, Itália”2.Aqui não aparece citada a Espanha, mas ao falar-se das nações mais importantes da Europa, de cujo grupo é excluída a Espanha, deixa-se subentendida a sua subalternização a essas quatro, entre as quais está a Itália. Logo a seguir há uma referência explícita à Espanha: “A sudoeste da Europa estende-se a Península Ibérica, que compreende dois Estados que têm menos importância que as quatro potências acima indicadas: Portugal e Espanha. A Espanha tem por capital a cidade de Madrid, e a sua forma de governo é a republicana”3. As mesmas ideias são expressas no compêndio de Geografia para a 3.ª e 4.ª classes do ensino primário elementar, de vários autores, publicado, em 1958, pela Livraria Escolar Progredior. Os autores acrescentam-lhes apenas as razões que os levam a escolher aquelas como as 4 nações da Europa com mais importância: Vicente Almeida d´Eça, Geografia, Livro para a 4.ª e 5.ª classes, Lisboa, Editores J. Rodrigues & Cp.ª, 1924, p. 5. 2 António Figueirinhas, Geografia para as 3.ª e 4.ª classes do ensino primário, Porto, Editora Educação Nacional, 1943, pp. 24-25. 3 Idem, ibidem, p. 5. 1
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“São muitas as nações que constituem a Europa como vemos no mapa junto, pois cada parte colorida corresponde a uma nação. Entre essas nações destacaremos as quatro mais importantes: A Inglaterra (...), a França (...), a Alemanha (...) e a Itália. (...) Portugal faz também parte da Europa, formando juntamente com a Espanha a Península Ibérica. Esta península fica situada a sudoeste da Europa à qual se liga pelos montes Pirenéus que separam a França da Espanha. Na parte ocidental da Península fica Portugal, tendo como capital Lisboa, e na parte oriental fica a Espanha, tendo como capital Madrid”4.
Apesar de a Espanha não estar incluída no grupo das nações da Europa consideradas mais importantes, é sempre apresentada associada a Portugal, como se se tratasse de dois países com destinos comuns e inseparáveis e até com níveis de importância idênticos. Curiosamente, porém, no compêndio de Geografia, de António Branco, publicado pela Porto Editora, em data não registada no livro, mas que tudo indica ser dos princípios da década de 60, a Espanha já integra o lote das nações mais importantes da Europa: “(...) além de Portugal, há na Europa muitas nações. Algumas das mais importantes são: a Espanha, a França, a Itália, a Inglaterra e a Alemanha. A Espanha fica junto a Portugal. É uma grande nação que, com Portugal, ocupa a Península Ibérica. A capital de Espanha é a cidade de Madrid”5.
Fig. 1 – Manuais de Geografia
Idem, ibidem, pp. 24-25. António Branco, Geografia – Portugal Continental, Insular, Ultramarino, Porto, Editora Porto, s/data, p. 24. 4 5
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2.1.2 – Manuais de História de Portugal – Nos diversos manuais da História de Portugal para a 4.ª classe são muitas as referências à Espanha ou à Península. Assim, por exemplo, no manual da História de Portugal, para a 4.ª classe, de Tomás de Barros, editada em 1949, descreve-se desta forma a evolução histórica da Lusitânia até à constituição do condado Portucalense: “Portugal – terra linda, Pátria querida dos portugueses, bendito berço de Heróis e de Santos – está situado na Península Ibérica, a sudoeste da Europa. A Península Ibérica ou Hispânica – que em épocas antiquíssimas foi habitada por muitos povos de diversas raças, compreende actualmente dois estados – Portugal e Espanha. A Lusitânia – constituída por grande parte do Portugal moderno, abrangia a faixa mais ocidental da Península Ibérica que vai desde a margem esquerda do rio Douro até ao Tejo e daí até ao Guadiana, com excepção do Algarve e parte do Alentejo, estendendo-se ainda pelas actuais províncias espanholas de Castela-a-Nova e Castela-a-Velha. A sua capital era a cidade de Évora”6.
Nesta descrição da situação geográfica de Portugal, duas ideias nos aparecem com nitidez. Por um lado, Portugal é apresentado como fazendo parte integrante da Península Ibérica, não diferenciado dos outros povos nela integrados. Por outro lado, começa a surgir a identificação da Lusitânia como as raízes da futura nacionalidade portuguesa, não obstante os seus limites estarem muito longe de coincidir com as actuais fronteiras de Portugal, porquanto grande parte do actual território português não estava incluído nesse espaço, mas sim na Espanha, e uma grande parte da Lusitânia era constituída por território que agora está fora das fronteiras portuguesas, ou seja, dentro das fronteiras da Espanha. Em relação aos habitantes da Península, não é apresentada qualquer diferenciação entre os antepassados de Portugal e os de Espanha. Pelo Tomás de Barros, Sumário de História de Portugal, 24.ª edição, Porto, Editora Educação Nacional, 1949, p. 5. 6
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contrário, tanto portugueses como espanhóis têm antepassados comuns, não obstante resultarem da mistura de muitas raças: “Os primeiros povos que viveram na Península foram os iberos e, a seguir, os celtas; depois, vieram os fenícios, gregos e cartagineses; mais tarde, estabeleceram-se os romanos, vândalos, suevos e alanos; por último, fixaram-se os visigodos e os muçulmanos, estes também chamados sarracenos, árabes, maometanos ou moiros”7. Passando, depois, à descrição, de cada um dos povos primitivos que, em vagas sucessivas, foram habitando a Península, fala-se quase sempre desta como um todo e não como duas partes diferenciadas. Assim em relação aos iberos escreve: “Foram os primeiros invasores de que há notícia e que deram o nome à Península (Península Ibérica ou Ibéria)”8. Só ao falar dos lusitanos é que estes são apresentados como nossos antepassados mais chegados, e, portanto, deixando subentender que a diferenciação das nossas origens, relativamente aos espanhóis, começa aí: “Lusitanos. Assim se chamavam os nossos antepassados. Eram descendentes dos celtiberos e, muito aguerridos e valentes, viviam da caça, da pesca e de frutos silvestres: habitavam a Lusitânia”9. No entanto, logo a seguir, ao descrever os outros povos que foram invadindo a Península, regressa à mesma expressão – Península Ibérica –, entendida como um todo. Dos cartagineses, por exemplo, diz que “este povo, vindo do norte de África, depressa se impôs a todos os outros. Tomando à sua conta quase todo o comércio da Península, os cartagineses fundaram a república de Cartago, que enriqueceram e tornaram notável, o que veio a fomentar a cobiça e inveja do imperialismo romano”10. Ao descrever os romanos, diz que “foram os fundadores da cidade de Roma, capital de Itália. Muito civilizados, eram ao mesmo tempo muito ambiciosos. Invadindo a Península Hispânica empenharam-se logo numa guerra de morte contra os cartagineses (...)”11. A ocupação da Península Ibérica só se consumou depois de derrotados Viriato e Sertório, um luIdem, ibidem, p. 5. Idem, ibidem, p. 6. 9 Idem, ibidem. 10 Idem, ibidem, p. 7. 11 Idem, ibidem. 7 8
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sitano e um romano que se fez lusitano: “Só então [depois da morte de Sertório] é que os invasores romanos puderam instalar-se na Península Ibérica e dominá-la em absoluto durante longos anos”12. Depois do período de grande progresso em termos de civilização que se viveu com os romanos, vieram as hordas dos bárbaros, começando pelos vândalos, suevos e alanos: “Povos bárbaros, emigrados da Ásia e do norte da Europa, tendo entrado na Península aí pelos fins do século V da nossa era (era cristã) (...)”13. Os visigodos foram os que se seguiram na povoação de toda a Península: “Seguidamente, surge este povo comandado por Teodorico. Submetendo toda a Península, o que levou mais de século e meio, implantaram a MonarquiaVisigótica, com a capital de Toledo, e tendo como rei Leovigildo”. Ao falar dos Visigodos, o autor introduz um novo elemento unificador dos povos da Península – a religião: “Estes novos invasores pertenciam à seita ariana. Mas cedo se converteram ao catolicismo, religião já abraçada pelos hispano-romanos (antigos habitantes da Península) (...)”14.
O factor religioso enquanto factor de unidade (entre todos os cristãos) mas também de divisão (entre cristãos e mouros) da Península continua, depois, ao falar dos muçulmanos: “Vindos do norte de África, os muçulmanos – povo denominado infiel por ser inimigo da religião cristã – atravessaram o estreito de Gibraltar, por onde entraram na Península no ano de 711, comandados por Tarik. Os visigodos correram logo a dar-lhes combate; mas, enfraquecidos por discórdias internas, foram derrotados na batalha de Guadalete. Após este acontecimento e outras refregas que se seguiram, sempre desastrosas para os cristãos, puderam os moiros dominar quase toda a Península, com
Idem, ibidem, p. 8. Idem, ibidem. 14 Idem, ibidem, p. 9. 12 13
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excepção dos montes das Astúrias, onde se refugiaram e conseguiram resistir muitos visigodos, comandados por Pelágio”15.
Esta divisão entre cristãos e mouros vai perdurar para sempre a ponto de a grande missão de todos os povos da Península ser a expulsão dos muçulmanos do seu território, missão que só ficou concluída ao fim de muitos séculos de guerras: “Das Astúrias – onde os infiéis já haviam perdido a batalha de Covadonga – continuou a luta durante sete séculos e, nos territórios então reconquistados aos moiros, formaram-se os reinos cristãos de Astúrias, Navarra, Leão e Castela”16. Como se pode constatar em todas estas citações, a partir da conquista da Península pelos romanos não se volta a falar dos lusitanos. É sempre a Península que é referida, com uma excepção em que se fala dos hispano-romanos referenciados a todos os peninsulares. Mais tarde, estes passam a ser os cristãos, invadidos pelos moiros ou infiéis, que, por um lado, nunca conseguiram ser aceites ou assimilados pelos povos da Península, mas que, por outro, também nunca conseguiram submeter totalmente os povos peninsulares ao seu domínio, como acontecera no passado com os outros invasores que se adaptaram à religião dos povos vencidos e com eles passaram a constituir um único povo. A religião cristã, a partir da era romana, passou a ser um factor determinante na identidade de todos os povos peninsulares. Curiosamente, estes dados foram recolhidos da História de Portugal, de Tomás de Barros, que em 1948 já levava 24 edições, o que não é de espantar porque no Estado Novo os manuais escolares eram vistos com muito cuidado, como já vimos, e até vigorou, a partir de uma determinada altura, o chamado livro único. Este facto explica em parte a exiguidade do número de manuais escolares de uma determinada disciplina, num determinado nível de ensino, bem como a sucessiva reedição do mesmo manual, em anos escolares diferentes. Com efeito, além deste, só conseguimos encontrar mais dois manuais da História de Portugal, para a 4.ª classe, um da autoria de António Bran15 16
Idem, ibidem, p. 9. Idem, ibidem, pp. 9-10.
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co, editado pela Porto Editora, no Porto, sem data, e outro da autoria de Ernâni Rosas, de 1965. Este é mais “patrioteiro” do que os anteriores, porquanto começa precisamente pela Lusitânia, “berço onde nasceram os antepassados dos Portugueses”, ainda que, depois, no desenvolvimento do tema, não ande longe dos conteúdos apresentados pelo manual de Tomás de Barros. Como novidade, mais didáctica que propriamente de conteúdo, saliente-se a apresentação de cada capítulo num resumo ilustrado. Quanto aos conteúdos deste período da História, o autor limita-se a repisar os temas, as expressões e os conteúdos já vistos no manual anterior. Com efeito, começa assim a História de Portugal de Ernâni Rosas: “No extremo sudoeste da Europa, encontra-se a Península Hispânica ou Ibérica. (...) A Península Hispânica ou Ibérica é ocupada hoje por dois povos: Portugueses e Espanhóis. Há milhares de anos, habitaram a Península Ibérica os Iberos. Eram selvagens. Não sabiam fazer casas: viviam em cavernas e alimentavam-se, principalmente, de frutos e de caça. O seu vestuário eram as peles dos animais que caçavam. (...) Depois, chegaram à Península Ibérica os Celtas, vindos da Gália, que é hoje a França. Os Celtas sabiam trabalhar o ferro. Em algumas regiões juntaram-se aos Iberos – e formaram um só povo: os Celtiberos. Os Celtiberos dividiam-se em vários grupos ou tribos. Uma dessas tribos era a dos Lusitanos, que ocupavam a Lusitânia”17.
A seguir é dado maior realce e extensão ao tema dos lusitanos, para regressar aos temas clássicos. “Outros povos estiveram na Península Ibérica, atraídos pela sua riqueza e pelo clima ameno: os Fenícios, os Gregos e os Cartagineses, que fundaram colónias na costa”18. Como se pode verificar não há aqui qualquer distinção entre os diversos povos da Península Ibérica e a esta é dada uma identidade própria como um todo. Não se fala dos outros povos exteriores à Península a não ser enquanto invasores desta. Por outro lado, a não ser quando se faz o 17 18
Êrnani Rosas, História de Portugal, Porto, Porto Editora Lt.ª, p. 6. Idem, ibidem, p. 7.
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realce dos lusitanos, o que também é relativamente passageiro, a Península é tratada como uma unidade. A descrição da invasão dos romanos também se reporta a toda a Península ainda que sobressaia aí a acção dos lusitanos, com Viriato e Sertório, na resistência dos povos da Península aos romanos: “Os Romanos eram grandes guerreiros e conquistaram quase todo o mundo conhecido nesse tempo. Invadiram, também, a Península Ibérica, donde expulsaram os Cartagineses”19. Segue-se, depois, a descrição da resistência dos lusitanos, para rematar essa resistência desta forma: “Só depois da morte de Sertório, os Romanos submetem a Lusitânia e dominam toda a Península Ibérica”20. A partir daqui não mais se fala de qualquer pormenor que diferencie as origens portuguesas das espanholas. As expressões que aparecem para referenciar o território onde se formou Portugal são sempre as mesmas – Península Ibérica ou simplesmente Península, como podemos ver nos seguintes textos: “Sob o poder dos Romanos, a Península civiliza-se”21; “Há 1965 anos, quando os romanos eram senhores da Península Ibérica, nasceu Jesus Cristo”22; “Segundo reza a tradição, os apóstolos S. Paulo e Sant’Iago vieram à Península Ibérica pregar o Cristianismo”23; “O Cristianismo rapidamente criou raízes na Península. Mais tarde, como verás, serão os povos da Península – os Portugueses e os Espanhóis – que espalharão por todo o mundo a fé cristã”24.
Este último texto, inserindo-se no espírito e nos propósitos dos anteriores, vem acrescentar um elemento novo, já que, às raízes comuns de Portugueses e Espanhóis, acrescenta também um destino e uma missão comuns – a evangelização do Mundo na fé cristã. Atendendo ao papel Idem, ibidem, p. 7. Idem, ibidem. 21 Idem, ibidem, p. 8. 22 Idem, ibidem, p. 9. 23 Idem, ibidem, p. 10. 24 Idem, ibidem. 19 20
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que a religião tem representado como factor de identidade, de unidade e de coesão dos povos, este elemento apresenta uma importância muito significativa num esforço de irmanar estes dois povos, que têm as mesmas raízes históricas mas também o mesmo destino. Este último, ao contrário do que acontece com os propósitos expansionistas e bélicos de quase todos os povos, não tinha como objectivos principais, na versão oficial, a cobiça dos bens alheios ou a expansão dos territórios, mas fundamentalmente a missão religiosa de propagar a fé. E a religião cristã deve aos povos da Península o mérito de terem sido os grandes evangelizadores do mundo. De resto, a partir daqui continua a descrição das posteriores invasões da Península pelos povos bárbaros e pelos muçulmanos. Aqueles conseguiram sedimentar-se na península convertendo-se ao Cristianismo. Estes nunca foram aceites porque nunca renunciaram à sua fé islâmica. “Os Mouros, como queriam conquistar o mundo para impor a sua religião, invadiram a Península Ibérica, em 711, e derrotaram os Visigodos, junto à foz do rio Barbate. Conseguiram, no entanto, alguns visigodos refugiar-se nas montanhas das Astúrias, no norte da Península. Os Mouros eram muito civilizados. Deixaram na Península belas e admiráveis construções, como o palácio de Alhambra, em Granada (Espanha) e a mesquita de Córdova (também em Espanha). Foram eles que introduziram na Península, por exemplo: a cana-de-açúcar e a cultura do arroz, e deram a conhecer a nora, processo de tirar água dos poços, ainda usado nos nossos dias”25.
A história da chamada “Reconquista Cristã”, só pelo nome que lhe é dado, deixa subentender que se tratou de um processo histórico conduzido pelos cristãos da Península e não por este ou aquele povo peninsular. O povo cristão é um só, de início, na luta contra o invasor infiel. “Pelágio é aclamado rei das Astúrias e, a pouco e pouco, vai alargando os seus ter-
25
Idem, ibidem, p. 11.
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ritórios... Assim, nasceu o primeiro reino cristão da Península – o reino das Astúrias, mais tarde chamado reino de Leão”26. É, no entanto, durante a fase da Reconquista Cristã que se vão formar os vários reinos que vieram a expulsar progressivamente os Mouros da Península. “As lutas contra os Mouros, na Península, as chamadas lutas de Reconquista Cristã, travam-se em toda a parte. E outros reinos cristãos se formam: o reino de Galiza, o reino de Navarra, o reino de Castela... Muitos séculos levariam essas lutas. Só muito mais tarde, com a conquista de Granada, é que os Cristãos conseguem expulsar definitivamente os Mouros da Península”27.
Fig. 2 – Manuais de História de Portugal
2.1.3 – Livros de Leitura – Analisando, porém, os livros de leitura do ensino primário, vemos que o período anterior ao da formação da nacionalidade não merece especial atenção, a não ser no que se refere aos lusitanos, em especial à acção e valentia de Viriato. A própria povoação da Península Ibérica é descrita de uma forma algo diferente. Assim, por exemplo, no Livro de Leitura para a 4.ª classe do ensino primário, da série Escolar Educação, sem data, mas certamente dos finais da década de setenta, descrevem-se os “nossos antepassados” desta forma: “Pelos restos de habitações, pelos objectos de uso comum e pelos esqueletos que se têm encontrado, sabemos que, há muitos milhares de anos, nos lugares que hoje habitamos, outros povos viveram. Esses primeiros habitantes da nossa Pátria, que viviam 26 27
Idem, ibidem, p. 12. Idem, ibidem.
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a princípio em cavernas e que utilizavam a pedra e os ossos para fabricar armas, machados, martelos, etc., foram os nossos mais distantes antepassados.Viviam, habitualmente, da caça, da pesca e de frutos silvestres. Com o decorrer de muitos anos, acentuou-se o progresso desses povos primitivos, os quais principiaram a usar o cobre, o bronze e o ferro no arranjo e fabrico das suas armas e utensílios. (...) Nesses tempos recuados, outros povos vieram de fora e misturaram-se com os que aqui viviam. Os primeiros, segundo as melhores opiniões, foram os Iberos. Depois, vieram os Celtas que, juntando-se aos Iberos, deram origem aos Celtiberos, de que descenderam os Lusitanos”28.
Se compararmos este texto com os textos, referentes à mesma época, dos manuais da História de Portugal, vemos que pressupõem perspectivas diferentes. Aqui, trata-se tão-só de caracterizar os antepassados de Portugal, sendo esquecido o resto da Península, enquanto que, nos manuais de História, não havia qualquer diferenciação, nem sequer por omissão, entre os antepassados de Portugal e do resto da Península. No caso do Livro de Leitura, os outros povos peninsulares são pura e simplesmente ignorados. Curiosamente, nos Livros de Leitura para a 3.ª e 4.ª classes, respectivamente, de Moçambique, o primeiro de 1967 e o segundo de 1964, há algumas diferenças de linguagem relativamente ao Livro de Leitura atrás descrito. Efectivamente, no Livro de Leitura da 3.ª classe, intitulado “Terra Bem Amada”, pode ler-se o seguinte texto sobre os Lusitanos: “Entre os muitos povos que habitaram a Península Ibérica contam-se os Lusitanos, que, segundo dizem, foram os nossos mais remotos antepassados. Viviam na Lusitânia, na parte Ocidental da Península e distinguiram-se na luta contra os povos invasores, em especial os Romanos. Valentes, ousados, não temiam o número dos inimigos, nem o poder das suas armas. Atacavam de surpresa, ou montados em cavalos velozes que corriam como o vento, ou esperando a aproximação dos inimigos nas passagens estreitas da Livro de Leitura para a 4.ª classe – ensino primário (aprovado oficialmente, s/autor), série Escolar Educação, Porto, Editora Educação Nacional, s/data, p. 20. 28
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serra que lhes servia de abrigo – a Serra da Estrela. Comandava-os um grande chefe, Viriato, que algumas vezes derrotou os generais romanos em batalhas campais. Por fim, estes, vendo que não podiam vencer o valoroso chefe lusitano, conseguiram que o matassem à traição, enquanto dormia na sua tenda de campanha. Os Lusitanos estavam divididos em grupos, chamados tribos. (...)”29.
Se repararmos bem, há uma ligeira diferença nos dois textos citados. Enquanto que no primeiro se escreve “nos lugares que hoje habitamos, outros povos viveram. Esses primeiros habitantes da nossa Pátria (...)”, no segundo escreve-se: “Entre os muitos povos que habitaram a Península Ibérica contam-se os Lusitanos”. Como se pode constatar, no primeiro caso, há a preocupação exclusiva de falar de Portugal e dos antepassados dos portugueses, omitindo por completo os outros povos da Península. No segundo caso, ao invés, as origens dos portugueses já são situadas no contexto dos povos peninsulares. É uma diferença que pode não ter grande significado, mas que também pode traduzir uma sensibilidade diferente no contexto das relações dos portugueses com os demais povos da Península. Também no texto da 4.ª classe «Portugal no Mundo», se escreve: “No Ocidente da Península ficava a Lusitânia, pátria dos Lusitanos, nossos remotos antepassados, e onde se estabeleceram também Fenícios, Gregos e Cartagineses”30. Neste mesmo livro de leituras para a 4.ª classe, aparece um elemento novo relativamente a todos os que temos vindo a analisar. Com efeito, com o intuito de enaltecer Portugal e os portugueses, fazem-se referências aos outros povos da Península, já não como companheiros na saga das invasões a que a Península foi sujeita ao longo da História, mas como inimigos que foi preciso combater para Portugal se afirmar como Nação independente: Jorge Belchior e Américo Gonçalves, Terra Bem Amada – Leituras para a 3.ª classe do ensino primário, Lourenço Marques, Tipografia Académica, 1967, p. 21. 30 Edmundo Andrade Pires e Américo Oliva, Portugal no Mundo, Livro de Leituras para a 4.ª classe, Lourenço Marques, Serviços Provinciais de Educação de Moçambique, 1964, p. 11. 29
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“Era uma vez (...) uma pequena Nação no extremo ocidente da Europa (...). Essa Nação formou-se à custa de muito Esforço, de muito Sacrifício, de muita Fé. Surgira da luta contra os povos vizinhos da Península e contra os Moiros, pagãos, e mais tarde, consolidados os limites do seu território, expandira-se, graças ao valor dos seus habitantes, para além-Atlântico – na luminosa aventura dos Descobrimentos!”31.
Talvez pela primeira vez, nota-se aqui uma referência aos povos “vizinhos da Península” como inimigos que foi preciso combater a par dos “Moiros”. Víramos anteriormente que o combate aos moiros unira todos os povos cristãos da Península na luta pela sua expulsão. Pois, aqui, o que sobressai, já não é a cruzada cristã da Reconquista, em que todos os cristãos peninsulares se achavam unidos no mesmo objectivo, mas a luta de Portugal pela independência nacional, seja contra os outros povos da Península seja contra os moiros. Por outro lado, não deixa de ser contraditório, sobretudo para um Livro de Leitura elaborado para os alunos de Moçambique, que seja enaltecida a acção de Portugal nos Descobrimentos, que permitiu a expansão do território português precisamente à custa dos povos africanos, deixando subentendida a inferioridade destes. Enquanto se glorifica a luta de Portugal pela sua independência, enaltece-se igualmente a sua acção expansionista em relação aos povos da África.
Fig. 3 – Livros de Leitura
31
Idem, ibidem, p. 3.
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2.2 – Da Fundação da Nacionalidade à Restauração – A partir deste período são em muito maior quantidade as referências à Espanha, com incidência em 4 períodos: a fundação da nacionalidade, a crise de 1383-85, o domínio filipino e, finalmente, a restauração. Por isso, não será possível fazemos uma análise deste período tão exaustiva como a que fizemos no período anterior. Antes de mais, convém salientar que a representação que os manuais de História nos dão de Espanha não é tão agressiva nem tão hostil como a que nos é apresentada pelos livros de leitura. Por essa razão, parece-me oportuno analisar uns e outros de forma separada, como já acontecera no período anterior. 2.2.1 – Manuais de História – Na leitura dos manuais de História de Portugal, uma ideia nos surge de imediato: a formação das nacionalidades da Península é, em primeiro lugar, fruto da cruzada cristã contra os mouros, e, em segundo lugar, decorre mais da ambição pessoal dos candidatos a soberanos do que propriamente da vontade popular. Só mais tarde, depois de alguns séculos de formação das nacionalidades, é que aparece a vontade popular como motivadora da conservação das nacionalidades. Com efeito, um dos manuais da História de Portugal, para a 4.ª classe, diz o seguinte: “Os Visigodos, que se haviam refugiado nas Astúrias, comandados por Pelágio, derrotam os Mouros na batalha de Covadonga. Pelágio é aclamado rei das Astúrias e, pouco a pouco, vai alargando os seus territórios (...) Assim nasceu o primeiro reino cristão da península – o reino das Astúrias, mais tarde chamado reino de Leão. As lutas contra os Mouros, na Península, as chamadas lutas de Reconquista Cristã, travam-se em toda a parte. E outros reinos cristãos se formam: o reino de Galiza, o reino de Navarra, o reino de Castela (...)”32.
No Sumário da História de Portugal, de Tomás de Barros, surge a mesma ideia, ainda que mais sintetizada: “Das Astúrias – onde os infiéis já haviam 32
Êrnani Rosas, História de Portugal, op. cit., p. 12.
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perdido a batalha de Covadonga – continuou a luta durante sete séculos e, nos territórios então reconquistados aos moiros, formaram-se os reinos cristãos das Astúrias, Navarra, Leão e Castela33. Até D. Henrique e D. Raimundo, dois primos oriundos das Gálias, de que voltaremos a falar, vieram para a Península para ajudar os cristãos na luta contra os infiéis. “As campanhas em que Afonso VI, rei de Leão, se empenhava contra os moiros atraíram à Península diversos cavaleiros cristãos de outras nacionalidades, que vinham alistar-se na guerra santa contra os inimigos da cruz. Entre esses nobres cavaleiros distinguiram-se os fidalgos franceses D. Raimundo e D. Henrique de Borgonha, descendentes dos reis de França”34. Mas ainda a Reconquista Cristã não se havia consumado e já começavam a surgir os primeiros sinais de muitas ambições pessoais. “O poderoso reino cristão de Leão e Castela é formado por Fernando I. Quando este grande rei morre, o seu reino é dividido entre seus filhos: Sancho fica com o reino de Castela, Afonso VI, com o de Leão, e Garcia, com o da Galiza. Depois, D. Afonso VI consegue unificar o território, tornando-se rei de Leão e Castela”35. Essas ambições surgiram, também, entre os genros e as filhas de D. Afonso VI, os condes D. Raimundo e D. Henrique, e D. Urraca e D. Teresa, respectivamente. “D. Teresa e D. Henrique ficam a governar o Condado Portucalense. (...) O conde D. Henrique ambicionava tornar o Condado Portucalense num reino independente. Morreu em 1114 sem conseguir a independência do condado, mas muito fez por isso”36. “O Conde D. Henrique governou com muito tino e acerto, e a sua maior ambição era tornar o seu Condado um reino independente, o que nunca pôde conseguir”37.
Tomás de Barros, Sumário de História de Portugal, op. cit., pp. 9-10. Idem, ibidem, p. 10. 35 Êrnani Rosas, História de Portugal, op. cit., p. 12. 36 Idem, ibidem. 37 Tomás de Barros, Sumário de História de Portugal, op. cit., p. 11. 33 34
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D. Teresa mantém o propósito da independência em relação ao seu cunhado e à sua irmã: “Continuando na política seguida pelo marido, também nunca abandonou a ideia de ser rainha, esforçando-se o mais que pôde por tornar-se independente do reino de Leão e aumentar os seus domínios, chegando mesmo a invadir a Galiza e a lutar contra a irmã D. Urraca”38. A confirmação de uma certa identificação dos propósitos nacionalistas com as ambições pessoais dos candidatos a soberanos é reforçada pelas lutas dentro do próprio Condado Portucalense, primeiro, e do reino de Portugal, depois. Efectivamente, ainda Portugal não havia conseguido a independência em relação a Castela e já D. Teresa e seu filho D. Afonso Henriques se envolviam em lutas para assegurar o poder no Condado Portucalense. Essas lutas entre as Casas Reais de Portugal e de Espanha ou entre candidatos do mesmo reino ao trono real, serão uma constante ao longo dos tempos e vêm profusamente ilustradas nos manuais da História de Portugal. A par dessas lutas, regista-se um constante cruzamento entre as duas Famílias Reais ao nível do casamento, fazendo com que os reis de Portugal e Espanha fossem quase sempre familiares uns dos outros. Assim, por exemplo, para lá de D. Teresa e D. Urraca, que eram irmãs, o que fazia com que D. Afonso Henriques, de Portugal, e D. Afonso VII, de Castela, fossem primos, também o neto de D. Afonso Henriques era genro de D. Afonso VIII de Castela, tendo enviado em auxílio do seu sogro, um “corpo de tropas a combater os infiéis”39, que foram derrotados na batalha de Navas de Tolosa. Eram também oriundas de Espanha a esposa do rei D. Dinis, a célebre Rainha Santa Isabel ou Isabel de Aragão, bem como a primeira esposa de D. Pedro, D. Constança, de Castela. Da corte desta fazia parte Dona Inês de Castro, a grande paixão D. Pedro, com quem teve três filhos e que também viera de Espanha. D. Inês de Castro acabou por ser assassinada com o consentimento de D. Afonso IV, pai de D. Pedro. 38 39
Idem, ibidem, p. 12. Idem, ibidem, p. 14.
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Por sua vez, D. Afonso IV, filho de D. Dinis e pai de D. Pedro, foi sogro de D. Afonso XI, rei de Castela. D. Beatriz, por sua vez, neta de D. Pedro, casou com o rei de Castela. Por isso, quer a Família Real portuguesa quer a Família Real espanhola têm sangue cruzado com muita frequência. Não obstante esta circunstância e, nalguns casos, até por causa disso, foram frequentes as guerras entre as duas Famílias Reais, assim como foram frequentes as guerras entre irmãos e entre pais e filhos da Família Real portuguesa. Concomitantemente, porém, sempre que se tratava de combater os moiros, ajudavam-se mutuamente. Nos relatos históricos da crise de 1383-85, a Espanha passa a ser apresentada de uma forma muito mais hostil. Por um lado, a independência já não é apenas a expressão das ambições dos candidatos ao trono real e passa a ser também a vontade do povo anónimo que aparece explicitamente a conspirar e a defender essa mesma independência. D. João I, de Portugal, foi imposto, não pela nobreza e pelo clero, que estavam maioritariamente com D. João I de Castela, mas pelo povo apoiado por alguns nobres. D. João I de Castela é apresentado como o invasor que tudo fez para dominar Portugal, contra a vontade do seu povo, tendo-se travado várias batalhas ferocíssimas, de que sobressai a de Aljubarrota. Como grande herói dessa batalha, e aliás de toda a crise, surge Nuno Álvares Pereira, o comandante dos exércitos de D. João I, de Portugal. “D. João I de Castela não desiste da conquista de Portugal. À frente de um poderoso exército de mais de 30 mil homens, entra em Portugal. Nun’Álvares Pereira dispôs as suas tropas, cerca de 7000 portugueses, em boa posição, no lugar de Aljubarrota. No dia 14 de Agosto de 1385, trava-se a grande batalha. Era um português contra cinco castelhanos. D. João I de Castela é vencido estrondosamente e retira-se para Castela com o seu exército destroçado (...). Agora, é Nun’Álvares Pereira que invade Castela, entrando por Badajoz, e derrota os castelhanos em sua própria casa, em Valverde (1385). A independência de Portugal estava consolidada. Em 31 de Outubro de 1411, é assinado o Tratado de Paz e Aliança entre D. João
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I de Portugal e D. João I de Castela, terminando assim a Guerra da Independência, que durara vinte e sete anos”40.
Como é evidente nesse texto, Castela é apresentada como o perigo que quer dominar Portugal e tirar-lhe a independência, o inimigo que quer subjugar os portugueses e que, por isso, foi preciso combater e expulsar do país a fim de assegurar a identidade nacional, não obstante a guerra ter acabado numa Aliança. Por outro lado, os castelhanos, sendo muitos, não conseguiram derrotar os portugueses, que eram muito menos, numa proporção de 1 para 7, sensivelmente. Por isso, na descrição destas batalhas da Guerra da Independência, os castelhanos são apresentados como mais fracos, incapazes de, em tão grande número, baterem um pequeno punhado de portugueses. “O rei de Castela, a quem a sorte das armas tinha corrido desfavorável, resolveu invadir novamente Portugal com um poderoso e luzido exército, formado por cerca de 32 mil homens! Entrando pela Beira, e, depois de ter subjugado os patriotas de algumas terras por onde passou, seguiu em direcção a Leiria. D. João I e D. Nuno, reunindo as suas melhores tropas, num total de pouco mais de 6 mil homens, no meio dos quais sobressaia a Ala dos Namorados, resolveram impedir o avanço dos castelhanos, para o que tomaram posições de combate nos campos de Aljubarrota. Os dois exércitos encontraram-se no dia 14 de Agosto de 1385. Em face da grande diferença de número entre os combatentes, Nun’Álvares anima sua gente com palavras de conforto e patriotismo, repassadas de fé em Deus e na Virgem. Trava-se depois uma grande batalha, que terminou pela derrota completa dos invasores”41.
Neste texto, verificam-se algumas nuances relativamente ao texto do manual de História de Portugal anteriormente citado. Desde logo, é aumentado o número de castelhanos (de 30 mil para 32 mil) e diminuído o 40 41
Êrnani Rosas, História de Portugal, op. cit., p. 54. Tomás de Barros, Sumário de História de Portugal, op. cit., pp. 58-59.
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número de portugueses (de 7 mil para 6 mil). Por outro lado, os portugueses têm claramente o apoio divino, o que supõe que os castelhanos o não tenham recebido. Além disso, estes são apresentados explicitamente como invasores, o que também não acontecia no manual anterior. A partir daqui e até à Restauração, pouco se fala de Espanha nos manuais de História da 4.ª classe. Com algum destaque, aparecem apenas as referências à batalha de Toro e sobretudo ao Tratado de Tordesilhas. “D. Afonso V, por ter ajustado esponsais com D. Joana, única filha do rei de Castela, quis fazer valer os seus direitos ao trono daquele país. Invadiu então o reino de Castela, tendo-se travado a batalha de Toro (1476), que foi de resultados negativos para a causa do nosso rei, muito embora as tropas portuguesas tivessem dado mostras de muita intrepidez e de grande valor combativo. Nesta batalha tornou-se célebre o alferes Duarte de Almeida, o Decepado, a quem fora confiada a gloriosa Bandeira Portuguesa, sagrado símbolo da Pátria. Para a poderem tomar, cortaram-lhe ambas as mãos. Por último, segurou-a ainda entre os dentes, só a largando quando, exausto de forças, cheio de golpes e cutiladas, caiu do cavalo. Duarte de Almeida ficou prisioneiro dos castelhanos, mas o estandarte nacional foi recuperado pelo escudeiro português Gonçalo Pires, que o arrancara das mãos do inimigo”42.
Deste texto algumas conclusões podemos tirar. Em primeiro lugar, as Famílias Reais de Portugal e de Espanha tanto casavam entre si como o casamento era muitas vezes ditado por razões que tinham a ver sobretudo com as ambições pessoais dos soberanos de cada um dos lados. Só que o tratamento dado pelo autor às pretensões dos reis portugueses é muito benevolente, enquanto o tratamento dado às mesmas pretensões, em situações similares, dos reis espanhóis relativamente à coroa portuguesa, já não é nada benevolente nem simpático. Quando um rei espanhol procurava fazer valer o que julgava serem os seus direitos, era apelidado de invasor e as suas derrotas eram descritas em tons carregados de negativismo e de fraqueza em contradição com a valentia dos portugueses. 42
Idem, ibidem, p. 69.
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Por outro lado, aqui, não obstante a derrota de que são objecto, os portugueses são apresentados como grandes heróis, que deram “mostras de muita intrepidez e de grande valor combativo”, enaltecendo-se sobretudo a acção de Duarte de Almeida. Em terceiro lugar, os espanhóis, apelidados de castelhanos, num tom algo depreciativo, são designados claramente como o “inimigo”. A descrição desta batalha é ignorada no manual de História de Ernâni Rosas, bastante mais recente (1965) que o de Tomás de Barros (1948, na sua 24.ª edição). Quanto ao Tratado de Tordesilhas, as referências a Espanha já têm outro tom, ainda que a descrição do contexto do Tratado seja francamente favorável a Portugal: “Estando D. João II convencido de que as terras descobertas por Colombo pertenciam a Portugal, mandou preparar uma expedição do comando de D. Francisco de Almeida para ocupar aquelas terras e garantir ali os nossos direitos. O rei de Castela, sabendo isto, entrou logo em negociações com o monarca português, as quais terminaram pelo Tratado de Tordesilhas, firmado em 7 de Julho de 1494. Nesse tratado se estipulou que pertenceriam a Portugal todas as terras já descobertas ou a descobrir, situadas a oriente de uma linha imaginária, traçada de pólo a pólo do globo terrestre, 370 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde, e as situadas a ocidente da mesma linha pertenceriam a Castela”43.
Por um lado, nota-se a posição de força do rei português que mandou preparar uma expedição para ocupar as terras descobertas por Colombo e, por outro, a posição conciliadora, porque frágil, do rei de Castela, aqui referido como tal, de quem partiu a iniciativa de pedir o acordo. Na versão do manual de Ernâni Rosas (1965), o assunto é tratado de uma forma muito mais sintética e menos patriótica: “A 7 de Julho de 1493 é assinado, entre D. João II e os Reis Católicos, o Tratado de Torde-
43
Idem, ibidem, p. 73.
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silhas: o mundo era dividido em dois hemisférios: o oriental pertenceria a Portugal, e o ocidental à Espanha”44. A partir desta data, só se torna a falar de Espanha a propósito da sucessão ao trono, depois do Cardeal D. Henrique, mas sobretudo com a dinastia filipina. Em relação a este período é que se pincelam as manchas mais negras das relações entre Portugal e Espanha. “Vencidos os portugueses na batalha de Alcântara, Filipe II de Espanha veio a Portugal no ano seguinte e convocou as Cortes de Tomar (1581), onde foi aclamado rei de Portugal. Nessas cortes, a fim de atrair a simpatia dos portugueses, jurou governar o reino segundo os seus usos e costumes tradicionais: – que todas as leis, direitos, regalias e liberdades seriam assegurados; que para os lugares públicos e de confiança da Nação só seriam nomeados portugueses de nascimento; que a nossa língua continuaria a ser portuguesa; que o nosso império seria respeitado, etc. Mas, se bem prometeu, a tudo faltou, infelizmente”45.
Por esta primeira descrição da dinastia filipina já se pode ter uma ideia de como é representado o rei espanhol, quer em termos de carácter quer em termos políticos. “Jurou”, mas “a tudo faltou”. A governação de Filipe I, de Portugal (II de Espanha), é sintetizada numa expressão “administração ruinosa”, que serve aliás de título ao reinado de Filipe I. O carácter ruinoso dessa administração é fundamentado, posteriormente, através de vários exemplos. Em primeiro lugar, a participação da armada portuguesa na chamada “Armada Invencível”, que Filipe I organizou contra a Inglaterra: “Filipe I, para se vingar de algumas afrontas recebidas da Inglaterra, tomou a resolução de invadir este país. Para isso reuniu uma poderosa esquadra, chamada a Armada Invencível, da qual faziam parte os melhores navios portugueses. Devido a uma tem-
44 45
Êrnani Rosas, História de Portugal, op. cit., pp. 58-59. Tomás de Barros, Sumário de História de Portugal, op. cit., p. 106.
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pestade, quase todos os navios naufragaram e os restantes foram destruídos por uma armada inglesa (1588)”46.
Em relação ao reinado de Filipe II (III de Espanha) repete-se o título “Ruinosa Administração”, acrescido de um outro “Descontentamento do país”. “A governação espanhola ia-se tornando, dia a dia, cada vez mais prejudicial. Os nossos interesses foram desprezados e as nossas possessões ultramarinas corriam grave ameaça, pois estavam sendo atacadas e assoladas por ingleses e holandeses, inimigos de Espanha; cresciam os impostos; eram enormes os sacrifícios de toda a ordem exigidos aos portugueses. O desgosto aumentava no reino”47.
Os prejuízos causados por Filipe II resultam não só do aumento dos impostos como também do facto de os inimigos de Espanha se tornarem inimigos de Portugal, tentando, estes, apoderar-se das possessões coloniais portuguesas. Em todo o caso, a hostilidade contra Espanha é descrita apenas como “descontentamento”, não falando em ódio ou outras expressões do género. Quanto ao reinado de Filipe III (IV de Espanha), continua o mesmo tom de desgraça para os interesses portugueses. “Filipe III, que a história cognominou de Grande, mas a quem os portugueses intitulam de Opressor, fez quanto pôde no sentido de acabar com as poucas regalias que nos ficaram. A sua política traduzia-se nisto: reduzir Portugal a uma simples província espanhola, e esse plano estava sendo executado pelo seu primeiro ministro, conde-duque de Olivares. Os portugueses eram obrigados a servir nas guerras em que a Espanha andava envolvida com outras nações, os impostos continuavam a aumentar, a indústria e a agricultura foram desprezadas. Enfim: era a nossa completa ruína”48.
Idem, ibidem, p. 107. Idem, ibidem, p. 108. 48 Idem, ibidem, p. 109. 46 47
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Como se pode ver por este texto, e até pelo título dado a Filipe III – o Opressor – o domínio espanhol era considerado uma opressão para o povo português e a administração de Portugal pelos filipinos continuava a degradar-se. Já não eram só os impostos que aumentavam; eram também a indústria e a agricultura que tinham sido abandonadas. A seguir vem a descrição da Revolução de 1640 e da guerra da Restauração. Quanto à Revolução propriamente dita, merece destaque uma frase de D. Luísa de Gusmão, castelhana e esposa de D. João IV: “Vale mais viver reinando do que acabar servindo”. Aliás, também lhe é atribuída esta outra frase: “Vale mais ser rainha uma hora do que duquesa toda a vida”. Relativamente à Restauração, o manual de História de Tomás de Barros resume-a assim: “A Espanha, como desde logo se supôs, não abandonou a ideia de reconquistar Portugal. Começou por nos hostilizar até 1644 com pequenos recontros na fronteira: eram os primeiros preparativos para a Guerra da Restauração. Em maio daquele ano (1644), deu-se a primeira batalha importante. – O exército português, comandado por Matias de Albuquerque, invadiu a Espanha e desbaratou, em Montijo, as tropas espanholas”.
2.2.2 – Livros de Leitura – Nos Livros de Leitura, não havendo a preocupação de relatar os factos da História mas tão-só a de incutir os valores que o regime considerava necessários para a formação das consciências, as relações com a Espanha são descritas de uma outra forma muito mais agressiva, na defesa de um nacionalismo e de um patriotismo isolacionistas que se coadunam com os valores autocráticos e até imperialistas do Estado Novo. Nos Livros de Leitura, é praticamente ignorado o período anterior ao da fundação da nacionalidade, à excepção de um ou outro texto sobre a Lusitânia e sobre Viriato. A partir da fundação da nacionalidade, no entanto, são frequentes os textos relativos às relações de Portugal com a Espanha. Analisando os diversos manuais de leitura do ensino primário, no período do Estado Novo, constata-se o seguinte: CEPIHS | 2
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1 – Os manuais da 1.ª e da 2.ª classe não trazem qualquer referência à Espanha. 2 – As referências começam a surgir apenas a partir dos livros de leitura da 3.ª classe. No entanto, ainda há que fazer uma distinção entre os mais antigos, até à década de 50, e os mais recentes. Os primeiros também poucas referências costumam fazer. Os da 4.ª classe, a partir da década de 50, é que são muito mais abundantes na citação de textos com referências à Espanha. 3 – Essas referências aparecem na sequência do fervor nacionalista de incutir um sentimento patriótico nos alunos. Por isso, os textos mais frequentes dizem respeito aos seguintes temas: • a fundação da nacionalidade, centrados quase sempre à volta das figuras de D. Afonso Henriques e de D. Egas Moniz, o primeiro como exemplo de valentia e de líder conquistador, e o segundo como modelo de lealdade e de carácter; • a crise de 1383-85, em que sobressai a figura de Nun’Álvares Pereira e é muito citada a batalha de Aljubarrota; • o período da sucessão de D. Sebastião e a subsequente dinastia filipina; • a restauração ou revolução de 1640. Nos livros da 3.ª classe, o tema da fundação da nacionalidade é tratado muito ao de leve. Não podendo apresentar aqui todos os textos relativos ao assunto, apresentemos o que me parece mais significativo: “Quando começou a governar, D. Afonso pensou logo em dar realidade a duas grandes aspirações: fazer do Condado um reino independente, e alargar o território por conquistas feitas aos mouros. Para levar a efeito a primeira parte deste programa, entrou em luta com seu primo D. Afonso VII, rei de Leão e Castela, e em 1137 ganhou a vitória de Cerneja, na Galiza. Entretanto, os mouros invadiram pelo sul as fronteiras do Condado e tomaram o castelo de Leiria. D. Afonso Henriques teve de largar tudo, para acudir a esta invasão. Reconquistou Leiria e, pondo-se em perseguição dos mouros, conseguiu derrotá-los na famosa batalha de Ourique, em 1139. Livre deste perigo, voltou para o norte e, em 1140 os barões 188
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portucalenses venceram os castelhanos no recontro de Valdevez. D. Afonso VII resolveu então entrar em negociações, e em 1143, na célebre conferência de Samora, Portugal foi enfim reconhecido como reino independente”49.
Em todos os livros de leitura da 3.ª classe, este ainda é o mais extenso sobre o assunto. Os outros limitam-se a referir que D. Afonso Henriques conseguiu a independência de Portugal. São textos anódinos e inexpressivos em termos de sentimentos para com a Espanha a não ser na afirmação da vontade de Portugal ser independente em relação ao país vizinho. Nos livros de leitura da 4.ª classe, o tema da fundação é tratado de uma forma em que praticamente não existe qualquer referência à Espanha, como por exemplo neste texto: “D. Afonso Henriques, com o seu montante, soube arrancar da velha árvore peninsular a semente que lançou à terra de Guimarães e que, depois, deu isto que se chama Portugal: Gigantesco roble, com as suas raízes bem presas na Europa e que estende os seus ramos sobre todas as partes do Mundo”50. No entanto, a história de Egas Moniz é relatada com algum pormenor, nela se destacando a nobreza de carácter do fidalgo português e o humanismo do rei de Leão. Quanto ao período de 1383-85, a batalha de Aljubarrota vem em quase todos os livros de leitura da 3.ª classe e em todos os da 4.ª classe, num tom em que portugueses e castelhanos aparecem claramente como inimigos ferozes. Damos apenas um exemplo: “Raiou finalmente o glorioso dia 14 de Agosto de 1385. O sol, surgindo no Oriente, iluminou em cheio as duas hostes. De um lado, o numeroso exército castelhano. Do outro lado, a pequena hoste portuguesa. Já ia o dia em mais de meio, quando o exército castelhano se pôs em marcha. Logo a vanguarda portuguesa, à voz de Nuno Álvares Pereira, se abalou também, e foi, Livro de Leitura para a 3.ª classe, s/autor, Ministério da Educação Nacional, s/data, pp. 19-20. 50 Edmundo Andrade Pires e Américo Oliva, Portugal no Mundo, Livro de Leituras para a 4.ª classe, op. cit., p. 12. 49
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ordenadamente, ao encontro do inimigo. A vanguarda castelhana avançava, numa extensa frente, ameaçando envolver a estreita linha portuguesa. O choque foi terrível. Os portugueses combatiam como leões. As lanças cruzavam-se com fúria. De lado a lado voavam pedras e virotões. A linha portuguesa não pôde resistir àquela larga onda de combatentes, e, singela como era, cedeu. Os castelhanos abriram através dela uma larga passagem por onde entrou a bandeira do rei de Castela. O ardor da batalha era agora maior junto da bandeira do Condestável D. Nuno. As duas alas portuguesas dobraram então sobre o inimigo, combatendo encarniçadamente entre a vanguarda e a retaguarda. El-rei de Portugal acudiu também com a sua gente. No mais vivo da refrega, a bandeira de Castela foi derribada. Alguns castelhanos recuaram; atrás desses, outros. Os portugueses redobraram de entusiasmo, gritando: – Já fogem! Já fogem! E a fuga cresceu, transformando-se em debandada geral. Salvava-se quem podia. Naquela meia hora de combate, firmara-se a Independência Nacional”51.
Este texto vem reproduzido em dois manuais escolares da 4.ª classe, com datas diferentes. Lembro-me que na década de 50 já existia um destes manuais e tenho em meu poder uma edição, não numerada, do mesmo livro, já da década de 60. Por outro lado, nos finais da década de 60, princípios da década de 70, um outro manual reproduz ipsis verbis o mesmo texto. Nele pode ver-se o tom bélico e hostil para com os castelhanos, claramente apresentados como o inimigo destroçado numa batalha violenta para ambos os lados. Nos livros de leitura, o período filipino é ignorado. No entanto, a revolução de 1640 é também tema de todos os livros da 4.ª classe, à excepção de um que tem a data de 1933 e que ainda devia estar sob a influência da I República. Nos textos que relatam os acontecimentos do 1.º de Dezembro de 1640, nota-se o mesmo estilo de aversão pela dominação espanhola, sendo curioso que em vários destes livros de leitura é referido, por um lado, o nome de Miguel de Vasconcelos, um português classificado de traidor, e, por outro, o nome de D. Luísa de
51
Livro de Leitura para a 4.ª classe, série Escolar Educação, op. cit., pp. 55-56.
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Gusmão, esposa de D. João IV, de origem castelhana mas fervorosa adepta da independência de Portugal. Citemos apenas o texto de um dos livros de leitura da 4.ª classe: “Todas as classes – o clero, a nobreza e o povo – se sentiam oprimidas pela dominação estrangeira. O comércio estava paralisado; a agricultura e a indústria, arruinadas; os armamentos portugueses eram levados para Espanha; os impostos eram cada vez mais pesados.Tendo-se revoltado a Catalunha, província espanhola, ordenou o governo de Espanha que tropas portuguesas fossem combater os revoltosos. Ora, esta ordem deu grande impulso às ideias de independência, que dominavam já em Portugal. Presidia, nesse tempo, ao governo do Reino, como regente, a duquesa de Mântua; o secretário de Estado era o português traidor Miguel de Vasconcelos. Formou-se então uma conspiração em que entraram muitos fidalgos. (...) Os conjurados invadem o paço tumultuosamente, e procuram o traidor Miguel de Vasconcelos. Encontraram-no, escondido, num armário de papéis. Matam-no e lançam o seu corpo à rua. A duquesa de Mântua, surpreendida, tenta acalmar os ânimos com promessas. Mas debalde. Fora do paço, uma multidão enorme grita: Liberdade! Liberdade! Ameaçada por D. Carlos de Noronha de ser atirada à rua por uma janela, caso não quisesse sair por uma porta que aquele fidalgo lhe indicava, e vendo que a sua causa de forma nenhuma poderia vingar, a duquesa submeteu-se. Estava restaurada a independência de Portugal”52.
Neste texto, a Espanha é associada ao estrangeiro, não já invasor, como na crise de 1383-85, mas opressor, que não só tirara a Portugal a sua independência, como lhe impusera um governo de descalabro, de humilhação e de opressão para todas as classes. A partir deste período não se encontra mais nenhum texto, em qualquer livro de leitura do ensino primário, que fale de Espanha. 52
Idem, ibidem, pp. 120-121.
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3 – Conclusão
Numa síntese muito breve, poderemos alinhavar algumas ideias quanto à representação que os manuais escolares portugueses do ensino primário do Estado Novo fazem de Espanha. 3.1 – Em primeiro lugar, constata-se que nos manuais de Geografia, a Espanha é apresentada como o vizinho que coabita com Portugal um espaço que é único e que muitas vezes é apresentado como um todo – a Península Ibérica. Este espaço geográfico é quase apresentado como um condomínio fechado com dois moradores: Portugal e Espanha. 3.2 – Nos manuais de História, Portugal e Espanha aparecem também com as mesmas origens étnicas, culturais e linguísticas, vislumbrando-se aí alguns traços de um parentesco secular, até porque as Famílias Reais estavam constantemente a cruzar-se, com casamentos de conveniência evidente. A Espanha, além de ser o nosso natural vizinho, é, pois, apresentada também como o parente, cada vez mais afastado, mas ainda assim um parente. 3.3 – Por outro lado, nos mesmos manuais, a Espanha e Portugal tiveram um destino comum na luta contra os mouros, que dominaram a Península durante séculos, e contra os quais portugueses e espanhóis se irmanaram na defesa do território e da mesma religião. Por isso, a Espanha surge-nos também como o correligionário. 3.4 – Nos manuais de Leitura, no entanto, a representação que mais sobressai relativamente a Espanha é a do inimigo permanente contra o qual foi preciso lutar arduamente ao longo dos séculos no sentido de Portugal afirmar a sua identidade e a sua independência. Por isso, nos manuais de Leitura, a representação dominante de Espanha é a do inimigo.
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Resumo – Esta investigação tem como objetivo dar a conhecer os aspetos mais marcantes nos percursos de vida quotidiana (pessoal e profissional) de catorze professoras primárias, que lecionaram em escolas rurais situadas em Trás-os-Montes, no Norte de Portugal. Para uma melhor compreensão desta problemática recorremos às entrevistas autobiográficas, de modo a permitir às narradoras do estudo refletir sobre as suas trajetórias e desvendar algumas nuances do lado oculto da escola. Adotamos uma metodologia essencialmente qualitativa, tendo como instrumentos de recolha de dados as entrevistas semi-estruturadas, os relatos orais e os registos fotográficos. Palavras-chave – Escola rural; Professoras; Ensino primário; Percursos pessoais e Profissionais. Abstract – The purpose of this research is to emphasize the most remarkable aspects of the personal and professional daily life of fourteen elementary school teachers, who taught at rural schools located in Trás-os-Montes, in the North of Portugal. For a better understanding of this theme we resort to autobiographical interviews, therefore allowing the narrators of this study to reflect upon their own paths and to reveal some nuances about the concealed side of schooling. We have followed an essentially qualitative methodology, whose research tools were the semi-structured interviews, the oral reports and photographic records. Keywords – Rural school; Teachers; Elementary education; Personal and Professional paths. ____________
* Doutora em Ciências da Educação; docente no Instituto Piaget; diretora da Escola Supe-
rior de Educação Jean Piaget/Nordeste. CEPIHS | 2
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Este artigo resultou de um trabalho de investigação realizado no âmbito do Doutoramento onde entrevistamos catorze professoras reformadas e em exercício, nascidas entre 1917 e 1978. Este estudo procura desvendar uma parte do lado oculto da escola, essencialmente rural, contada através de relatos, que constituem pequenos fragmentos de vida, que se entrelaçam formando uma teia dialógica que nos permite reconstruir uma visão da profissão docente. Ao conhecer esse passado, mais ou menos próximo, pretendemos contribuir para manter viva a genealogia de professoras e para reavivar as suas trajetórias pessoais e profissionais. Nesta linha, procurámos saber como se caraterizam as trajetórias pessoais e profissionais de professoras do ensino primário, considerando as mudanças ocorridas na escola portuguesa no início do Século XX, ao mesmo tempo que procuramos assegurar margens de liberdade para afirmar as especificidades das práticas docentes em diferentes contextos rurais1. Oriunda de diversos campos disciplinares essa literatura tem contribuído para “desocultar uma profissão que todos conhecem do exterior, mas cuja interioridade só muito dificilmente se vem abrindo a olhares a ela alheios”2. Pretendemos assim contribuir para a (re)construção das vidas das narradoras numa forma escrita, pois estamos conscientes de que as histórias de vida destas professoras são na linha de pensamento de Stanley “vidas comuns, vidas típicas – na medida em que todas as vidas são típicas – da massa de pessoas comuns mas por isso extraordinariamente interessantes”3. A este respeito parece-nos importante assinalar a ideia de Freitas de que “ao contar histórias, as professoras entrevistadas se transfiguram, voltam a um passado, revivem-no, seus olhos brilham ao descobrir que o
J. C. Morgado, “Projecto Curricular e Autonomia da Escola: possibilidades e constrangimentos”, in Revista Galego-Portuguesa de Psicoloxía e Educación, vol.10, n.º 8, 2003, pp. 335-344. 2 M. T. Estrela, (org.), Viver e construir a profissão docente, Porto, Porto Editora, 1997, p. 9. 3 L. Stanley, The Auto/biographical – the theory and practice of feminist auto/biography, Manchester, Manchester University Press, 1992. 1
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que viveram teve importância, está sendo pesquisado e não será perdido pela história”4. Dar a conhecer as memórias docentes, é dar asas à imaginação das professoras através dos seus engenhos, episódios circunstanciais e quotidianos, constituídas de singularidades, impregnadas de vivências e experiências de um passado retido nas suas memórias. Como refere Halbwachs5 a nossa memória apoia-se não na história aprendida mas sim na história vivida. Neste sentido, é preciso entender a história não como uma sucessão cronológica de acontecimentos e de datas, mas tudo aquilo que faz com que um período se distinga dos outros, e cujos livros e narrativas não nos apresentam em geral senão um quadro bem esquemático e incompleto. A este respeito, Bolívar, Domingo e Fernandéz6 acrescentam que o estudo das vidas de professores possibilita por um lado aceder a informações que permitam conhecer melhor o processo educativo e, por outro constitui um meio para que as professoras reflitam sobre a sua vida profissional e adquiram novas compreensões deles mesmos. A partir desta perspetiva, imaginamos que ninguém melhor do que as próprias protagonistas para falar do que viveram e experienciaram, pois como acrescenta Bosi “há factos que não tiveram ressonância coletiva e se imprimiram apenas na nossa subjetividade. E há factos que, embora testemunhados por outros, só repercutiram profundamente em nós; e dizemos: Só eu senti, só eu compreendi”7. Acreditamos que as histórias de vida assumem um papel importante na construção de conhecimento científico sobre vidas de professoras, através de relatos de vida de experiências quotidianas. Este aspeto sublinha aquilo que diversos autores têm vindo a proferir de que é necessário dar voz à classe docente, desvendando assim diversas nuances do lado M. Huberman, “O ciclo de vida profissional dos professores”, in A. Nóvoa (org.), Vidas de professores, Porto, Porto Editora, 2000, (pp. 31-61), p. 13. 5 M. Halbawachs, A memória colectiva, São Paulo, Vértice, 1990. 6 A. Bolivar; M. J. e Fernandéz Domingo, La Investigación Biográfico-Narrativa en Educación – Enfoque e Metodología, Madrid, Ed. La Muralla, 2001. 7 E. Bosi, Memória e sociedade: lembrança de velhos, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 408. 4
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oculto da escola, através dos relatos de memórias e histórias de vida de professoras que leccionaram em diferentes períodos da história da educação em Portugal. Do singular ao plural
Consideramos que as histórias de vida narradas não são apenas memórias pessoais, mas constituem, elas próprias, a apropriação de um passado, comum ao dos outros8. Como sugere Antunes as “lembranças da escola não fazem parte somente do mundo infantil, mas encontram-se vivas nas histórias de vida de muitas professoras. Mas, em função de um longo processo em que sempre ouviram falar sobre elas e muito pouco sobre o poder instituído que as modelou, poucas vezes voltam a elas para reflectir sobre o seu fazer docente”9. Nesta linha, os relatos de vida narrados formam, um caleidoscópio de vidas10 que se cruzam e transmitem uma forma de pensar e estar em educação. São retratos de professoras que viveram em períodos sociais diferentes e por conseguinte com diferentes modelos e práticas pedagógicas, decorrentes das lembranças guardadas nas suas memórias. Entrelaçando os fios das histórias de vida contadas na primeira pessoa pelas narradoras do estudo, consideramos pertinente salientar que, apesar de serem únicas e singulares, podem ser identificados nessas vidas alguns pontos comuns, que constituem aspetos centrais na construção e reconstrução da identidade das professoras do ensino primário. Como sublinha Dominicé11 a forma que damos à nossa vida assemelha-se ao conceito de identidade, uma vez que a identidade do sujeito mais não é que a subjetivação da mudança e a alteração permanente constitutiM. Brandão, Modos de Ser professor: na escola preparatória e secundária dos últimos trinta anos, Lisboa, Educa, 1999. 9 H. S. Antunes, Ser aluna, ser professora: uma aproximação das significações sociais instituídas e instituintes construídas ao longo dos ciclos de vida pessoal e profissional, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2001, p. 58. 10 L. Stanley, The Auto/biographical – the theory and practice of feminist auto/biography, op. cit. 11 P. Dominicé, “O processo de formação e alguns dos seus componentes relacionais”, in A. Nóvoa & M. Finger (eds.), O Método (auto)biográfico e a formação, Lisboa, Ministério da Saúde, 1998, pp. 51-61. 8
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va da experiência humana12. Neste sentido é de sublinhar nos discursos das narradoras a visibilidade de uma mudança ontológica, em que cada narradora, auto-refletindo sobre si mesma, vai (re)construindo a sua própria identidade ao longo de toda a sua história. O conceito de identidade está assim intimamente relacionado com o conceito de desenvolvimento, pois como acrescenta Malet, falar de desenvolvimento é falar de um “auto-movimento permanente em busca da identidade”13, identidade esta que se constitui na mudança. Salientamos que embora os relatos das narradoras não sejam lineares nem simétricos nos diferentes momentos das trajetórias de vida, permitem uma visão, senão global, pelo menos o mais aproximada possível da trajetória de vida pessoal e profissional destas professoras14. É de realçar nos discursos das professoras que lecionaram em escolas rurais a existência de uma interdependência entre a vida pessoal e profissional. Neste sentido, ao longo deste estudo, procuramos desvendar os significados que cada professora construía ao longo da sua trajetória, na medida em que algumas das recordações que as narradoras têm como alunas, se refletem hoje em dia na sua identidade pessoal e profissional. Muitas das narradoras, recordam como modelo a sua primeira professora do ensino primário. É ainda de destacar que grande parte das narradoras do estudo desde crianças convivem com os meandros da escola e através de influências familiares descobrem a sua motivação para a arte de ensinar. Começamos pelas recordações das narradoras sobre a sua passagem pela escola enquanto alunas, pois as lembranças da escola não fazem apenas parte do mundo infantil, mas encontram-se presentes em muitas das histórias de vida de professoras. Outro aspeto que gostaríamos de evidenciar prende-se com o facto de verificarmos que as lembranças mais marcantes das narradoras relativamente à sua passagem na escola como alunas, se remetem ao seu fazer docente, o que nos permite concluir que R. Malet, L’identité en formation, Paris, L’ Harmattan, 1988. Idem, p. 81. 14 M. G. N. Mizukam, “Docência, trajetórias pessoais e desenvolvimento profissional”, in A. M. M. R. Reali & Mizukami, M. G. N. Mizukami (org.), Formação de professores: tendências actuais, São Paulo, Edufscar, 1996. 12 13
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os saberes experienciais15 adquiridos durante a escolarização das narradoras e também produzidos na sua prática quotidiana como professoras, assumem um papel determinante na construção das suas identidades docentes. Por sua vez, nos discursos das narradoras o casamento, onde a gravidez, o nascimento e a educação dos filhos surgem como preocupações muitas vezes em simultâneo com a fase de início da carreira e as naturais dificuldades de integração social e profissional. Outro dos aspetos a salientar prende-se com o facto de ao longo das últimas três décadas, a classe docente ainda não conseguir consolidar muitas das dimensões fundamentais do profissionalismo moderno, tal como Afonso16 designa provisoriamente, de profissionalismo da modernidade industrial fordista ou “velho profissionalismo”. Destacam-se nos discursos das professoras aspetos que nos permitem perceber a desvalorização de algumas dessas dimensões, abrindo assim as portas para um “novo profissionalismo”17, onde os docentes desenvolvem as suas práticas baseados em modelos de desenvolvimento curricular centrados na situação18, onde o currículo resulta de uma construção emancipadora19. Motivações subjacentes à escolha da carreira
Relativamente às motivações para a escolha da profissão é de salientar que a maioria das narradoras evocou a vocação como a motivação de eleição, aliada a razões de carácter económico (custos, duração da formação, proximidade entre a escola de formação e a residência) e social (sexo, idade e status), que determinaram grandemente a escolha desta profissão.
M. Tardif, Saberes Docentes e Formação Profissional, Petrópolis, Vozes, 2002. A. J. Afonso, “Profissionalismo docente: Conquistas parcelares e transições perturbantes”, in A Página da Educação, n.º 157, 2006, p. 9. 17 Ibidem. 18 J. A. Morgado, Currículo:Teoria e praxis, Porto, Porto Editora, 2001. 19 J. C. Morgado, Currículo e Profissionalidade Docente, Porto, Porto Editora, 2005. 15 16
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No âmbito da história da mulher professora, autores como Almeida , Bruschini e Amado21, Demartini e Antunes22, entre outros, referem que a trajetória da mulher no ensino foi marcadamente influenciada pela dimensão cultural, uma vez que a mulher era colocada numa posição passiva, como se uma mão invisível tomasse decisões e traçasse caminhos por ela, ou então era uma profissão marcadamente eleita por vocação. A maioria das narradoras deste estudo evoca a vocação como a motivação central na escolha da carreira, demonstrando sentimentos de vocação e gosto em trabalhar com crianças. Intimamente relacionado com a importância de ser professora por vocação encontramos referências à naturalização da profissão uma vez que as narradoras entendem que foram para professoras por requisitos naturais, pois consideram que dominavam naturalmente a arte de ensinar. É de salientar que muitas das professoras aprenderam o seu ofício antes de o iniciarem, pelo que se compreende que algumas delas refiram que “nasci Professora, não me fiz professora!”. Também Novaes23 entende a profissão como um prolongamento das atividades maternas, entendida como uma ocupação essencialmente feminina e, por conseguinte, a única profissão plenamente aceite pela sociedade, para a mulher. Como referem Santos e Luporini, “alocar as mulheres à responsabilidade educativa das crianças sempre foi uma proposta defendida vigorosamente nos meios políticos e intelectuais (…) por meio de uma mentalidade forjada nos moldes da herança cultural portuguesa”24. Este aspeto justifica-se pelos traços de personalidade inerentes às mulheres, entre os quais podemos salientar o instinto maternal, o amor, o 20
J. S. Almeida, Mulher e Educação: a paixão pelo possível, São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1998. 21 C. Bruschini & T. Amado, “Estudos sobre mulher e educação: algumas questões sobre o magistério”, in Cadernos de pesquisa, São Paulo, n.º 64, 1988, pp. 4-13. 22 Z. Demartini & M. F. Antunes, Magistério primário no contexto da primeira república, São Paulo, CERU/Fundação Carlos Chagas, 1991. 23 M. E. Novaes, Professora primária: mestra ou tia, São Paulo, Cortez, 1991. 24 A. R. Santos; T. J. Luporini, “Uma reflexão sobre a feminização no magistério”, in UNOPAR Cient., Ciências Humanas e Educacionais, Londrina, vol. 4, 2003, pp. 17-23. 20
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carinho, a docilidade, a sensibilidade, a compreensão e a paciência. Neste sentido, consideramos pertinente acrescentar que: “ligado à ideia de que a pessoa tem aptidões e tendências inatas para certas ocupações; o conceito de vocação foi um dos mecanismos mais eficientes para induzir as mulheres a escolher certas profissões menos valorizadas socialmente. Por esta ideologia, acreditava-se escolher estas ocupações, acreditando ser por vocação”25.
Sendo assim, a mulher, dotada biologicamente como capaz de socializar as crianças, como parte de suas funções maternas, é naturalmente qualificada para reproduzir, em cada cidadão, os ideais dessa sociedade, pois como refere Sforni26 a mulher – mãe e esposa era considerada menos racional e mais afectiva. Ou seja, não havia preocupação com a valorização do trabalho no ensino, pois a intelectualidade não é o requisito básico exigido para o desempenho da função docente, mas sim as qualidades maternas referidas anteriormente. Nesta linha de pensamento, Silva acrescenta que “ensinar sempre foi o ofício às mulheres já que é da própria natureza dela transmitir o sentido da vida (trazer a luz) e da morte (chorar os mortos). A profissão de professora tinha então o sentido de apostolado missão”27. Percebe-se nos discursos a emergência de um fenómeno de auto-recrutamento pois muitas das narradoras elegem a carreira porque os seus familiares diretos foram professores. As narradoras evocam assim recordações de infância do habitus familiar narrando com algum detalhe as recordações dos pais em tarefas ligadas ao ensino. Verifica-se, deste modo, um recrutamento ligado à tradição oral do ofício a que foram sujeitas na socialização por antecipação, nas tarefas inerentes ao ato de ensinar.
C. & Amado Bruschini, “Estudos sobre mulher e educação: algumas questões sobre o magistério”, op. cit., pp. 4-13. 26 M. S. Sforni, A feminização do corpo docente na democratização do ensino do século XIX. Dissertação de mestrado – Maringá, Universidade Estadual de Maringá, 1996. 27 M. de L. Silva, “A docência é uma ocupação ética”, in M. T. Estrela (org.), Viver e construir a profissão docente, Porto, Porto Editora, 1997, (pp. 161-190), p. 38. 25
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Neste sentido, a escolha da carreira decorre de pré-conceções do ensino e de aprendizagens herdadas na história familiar e /ou escolar, através do contacto direto que estabeleceram com a profissão como alunas. A escolha da carreira foi ainda influenciada pela emergência de uma cultura feminina, a cultura do cuidado, compatíveis com as funções sociais tradicionalmente desempenhadas por mulheres como a maternidade, a gestão doméstica e a educação dos filhos. A mulher é assim entendida como a educadora por excelência, verificando-se assim uma natureza altruísta da profissão. A importância do momento histórico na evolução das condições de exercício da profissão docente
As condições de exercício da profissão docente têm sofrido alterações em função das conjeturas políticas que em diferentes momentos históricos regularam as práticas das narradoras enquanto professoras. Neste sentido, são visíveis nos discursos das professoras mais velhas o quanto a sua prática docente era deveras condicionada pelas diretrizes emanadas pelo Ministério da Educação e presentes, em distintas configurações, nos programas e manuais escolares do ensino primário. Estávamos perante o desenvolvimento do “currículo uniforme, pronto-a-vestir, de tamanho único”28 em que as professoras eram meras transmissoras do currículo emanando pelos serviços centrais. No entanto, em alguns dos relatos podemos encontrar algumas estratégias de emancipação profissional, visíveis na valorização da riqueza natural e cultural do contexto rural em que interagem no seu quotidiano profissional. Deste modo, nas narrações o meio, essencialmente rural, surge como um recurso educativo, na medida em que se promovia o contacto com a natureza, as visitas culturais e recreativas não só como lugares de estudo e aprendizagem, mas também como suportes espaciais de atividades educativas.
João Formosinho, “O Currículo Uniforme Pronto-a-Vestir de Tamanho Único”, in O Insucesso Escolar em Questão, Braga, Universidade do Minho, 1987. 28
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Outro aspeto que consideramos pertinente evocar diz respeito às alterações nas relações pedagógicas e educativas desenvolvidas pelas narradoras do estudo. Nos relatos das narradoras salientam-se aspetos que nos permitem constatar uma preocupação com a relação pedagógica com os alunos, onde nos relatos das narradoras mais velhas, o recurso à punição/castigo físico era entendido como natural e por sua vez legitimado social e profissionalmente. No entanto, as narradoras mais jovens, não evocam o castigo físico, salientam sim a importância do diálogo intercultural (Peres, 1999)29, como a estratégia mais utilizada na relação pedagógica que estabelecem diariamente com os seus alunos. No entanto, o papel destas professoras não se resumia apenas à questão pedagógica, pois sobressaem nos discursos aspetos que nos permitem analisar a relação educativa que estas desenvolvem com a comunidade local. Nos relatos das narradoras nascidas na década de quarenta, destacam-se as preocupações destas com a educação/formação dos adultos não escolarizados, a participação em festas e atividades recreativas e culturais realizadas em determinadas épocas festivas, assim como a participação conjunta em cursos de culinária a fim de conhecer as tradições e costumes das “gentes da terra”. Estas práticas essencialmente rurais, vieram a integrar uns anos mais tarde, os discursos políticos que consubstanciavam a construção de uma escola democrática e integradora, onde é uma constante o apelo à elaboração de Projetos Educativos e Projetos Curriculares (de Escola e de Turma) adequados aos contextos específicos em que se desenvolvem as práticas educativas. Entretanto, com a proliferação dos meios de transporte, verificou-se que ao longo dos tempos as professoras se deslocavam diariamente para as escolas de automóvel, pelo que deixavam de poder vivenciar certas experiências decorrentes do facto de residirem longe do meio em que lecionam, o que veio dificultar a adequação curricular, uma vez que as narradoras desconheciam algumas particularidades sociais e culturais do meio em que leccionavam. Nesta linha, partilhamos a ideia de Peres
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A. N. Peres, Educação Intercultural: Utopia ou Realidade?, Porto, Profedições, 1999.
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(2004)30 de que é urgente e imprescindível incrementar a auto-estima e a capacidade organizativa das comunidades rurais. Vidas quotidianas nas escolas rurais
Outro dos aspetos marcantes nos discursos das narradoras do estudo prende-se com a dificuldade latente em ser professora em determinados momentos históricos em Portugal. Verificamos que todas as narradoras do estudo iniciaram a sua prática docente em escolas isoladas, essencialmente rurais, com más condições físicas, humanas e pedagógicas. Por sua vez, outro dos constrangimentos implícitos prende-se com o facto da maioria delas se sentir condicionada a residir no local onde exercia a docência, longe do seu ambiente familiar, uma vez que estas escolas se situavam a alguns quilómetros da sua residência e com condições físicas e atmosféricas adversas. Esta situação condicionou o desenvolvimento de certas oportunidades sociais e culturais, na medida em que as narradoras apenas podiam conviver com algumas colegas (quando existiam) e com o Pároco, que por sua vez, lhes solicitava colaboração na preparação e desenvolvimento de sessões de catequese às crianças e jovens da localidade onde estavam a leccionar. É visível nos discursos das narradoras mais velhas a presença de um sentimento de comprometimento face à importante missão que, como educadoras, exerciam em termos educativos e culturais, nas localidades por onde passaram ao longo da sua carreira. No entanto, os discursos das narradoras deixam transparecer alguma angústia pelo facto de terem sentido alguns constrangimentos decorrentes de serem mulheres, pois sentiram um forte controlo social por parte do setor central, que foi regulamentando ao longo das décadas, incidindo em aspetos como o comportamento moral e os deveres da classe docente, assim como algumas
A. N. Peres, “Educação no meio rural – problemas e desafios”, in A Página da Educação, n.º 132, 2004, p. 34. 30
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recomendações no que concerne à compostura dos trajes e à proibição do uso de maquilhagem no rosto31. Constrangimentos e fontes de satisfação ao longo da carreira
No decorrer deste estudo foi nossa intenção dar a conhecer as fases mais marcantes no ciclo de vida das narradoras do estudo tendo por base o trabalho realizado por Gonçalves32 e Huberman33 relativamente às etapas da carreira docente. Neste sentido, consideramos pertinente destacar que este estudo vem ao encontro de alguns dos resultados apresentados por Gonçalves34. Nesta linha de análise, verificamos que os primeiros anos da carreira são caraterizados por sentimentos de instabilidade, insegurança e incertezas, decorrentes das dificuldades e em alguns casos de inexistência de meios de transporte; a distância que medeia entre a escola e a residência/família e o isolamento de grande parte das escolas rurais em que as narradoras do estudo desenvolveram a sua prática docente. A estes sentimentos, acresce hoje em dia um outro factor que está intimamente relacionado com as dificuldades de colocação de professores sentimentos estes que têm vindo a ser exprimidos sobretudo pelas narradoras mais jovens. Por outro lado, verificamos que as narradoras recordam esta fase com um sentimento de entusiasmo e de descoberta da profissão que a maioria desejou. Outro dos momentos marcantes na trajetória das narradoras do estudo prende-se com os últimos anos da carreira, sendo de destacar nos discursos de algumas narradoras, a existência de um distanciamento afetivo e sereno, onde as professoras começaram a sentir necessidade de um desinvestimento para com a profissão, verificando-se um distanciamento Escola Portuguesa, n.º 153, de 30 de Setembro de 1937. J. A. Gonçalves, “A carreira das professoras do ensino primário”, in A. Nóvoa (org.), Vidas de Professores, Porto, Porto Editora, 1995, pp. 141-170. 33 M. Huberman, “Teacher careers and school improvement”, in Journal of Curriculum Studies, 20, 1998, pp. 119-132; idem, “O ciclo de vida profissional dos professores”, in A. Nóvoa (org.), Vidas de professores, Porto, Porto Editora, 2000, pp. 31-61. 34 J. A. Gonçalves, “A carreira das professoras do ensino primário”, op. cit., pp. 141-170. 31 32
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afetivo das suas práticas docentes. No entanto, outras das narradoras, elegem esta fase como a de eleição pois foi o período em que alcançaram maior serenidade no contexto profissional. Este sentimento de serenidade levou grande parte das narradoras do estudo a um desinvestimento progressivo na profissão, através da preparação para a aposentação, começando a dedicar mais tempo à sua vida pessoal e aos interesses daí decorrentes. A relação pedagógica com os alunos é outro dos aspetos evidenciados pela maioria das narradoras do estudo, as quais salientam a afetividade como uma necessidade intrínseca ao ato de educar. Por sua vez, a partilha de saberes e o trabalho colaborativo entre pares, são outros dos aspetos evocados nos discursos das narradoras do estudo, pois como referem “é muito importante a troca de saberes e saberes fazer entre as colegas” (Dora, nascida em 1942). Estes aspetos vão ao encontro da proposta de Morgado35 em que os docentes devem adotar posturas profissionais que os identifiquem como intelectuais críticos. Outro dos constrangimentos que sobressaem nos discursos prende-se com as parcas condições de trabalho que desde sempre existiram nas escolas rurais, sendo de destacar as más condições físicas e materiais da maioria das escolas, a inexistência de material didático e a inadequação do mobiliário às faixas etárias das crianças assim como as condições de higiene das escolas, uma vez que em muitas delas não existiam auxiliares de ação educativa para executar essas tarefas. É de salientar que algumas destas questões foram contornadas pelo facto de na atualidade as escolas se encontrarem agrupadas em Agrupamentos de Escolas e Centros Escolares, apetrechados com equipamentos pedagógico-didáticos e higiénico-sanitários mais adequados. No entanto esta situação originou uma cada vez maior necessidade por parte das narradoras de formação sobretudo no domínio das Tecnologias da Informação e Comunicação, uma vez que manifestam interesse em responder da melhor forma aos interesses prementes dos alunos no que concerne à comunicação multimédia. A este respeito é de salientar nos discursos das professoras mais 35
J. C. Morgado, Currículo e Profissionalidade Docente, op. cit.
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jovens que a oferta formativa por parte dos Centros de Formação de Professores está a aumentar e que se começa a verificar uma preocupação por parte do Dirigentes das Escolas em identificar as necessidades de formação sentidas pelos docentes, a fim de lhes proporcionar respostas adequadas a fim de colmatarem essas mesmas necessidades. Para concluir parece-nos pertinente sublinhar que valorizar as histórias de vida, como as que ouvimos durante a nossa investigação, tem sido uma das saídas sugeridas por Nóvoa para a produção de um pensamento pedagógico sobre a profissão docente: “Esta profissão precisa de se dizer e de se contar: é uma maneira de a compreender em toda a sua complexidade humana e científica. É que ser professor obriga a opções constantes, que cruzam a nossa maneira de fazer com a nossa maneira de ser”36.
A. Nóvoa (coord.), Os professores e a sua formação, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1992, p. 9. 36
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D. Ana Constança de Jesus Dias Barria (1831-1924) uma benemérita – sua obra e família Delfim Bismarck Ferreira* À Constança **
Resumo – Na segunda metade do século XIX, numa freguesia rural do concelho de Vila Real, uma mulher decidiu fundar um colégio de cariz religioso às suas custas. Para isso, conseguiu convencer a superiora de uma ordem religiosa a fazer deslocar para ali uma pequena comunidade. Posteriormente, resolveu fundar uma capela com a mesma invocação do colégio, Nossa Senhora de La Salette, a quem tinha grande devoção. Essa benemérita, D. Ana Constança de Jesus Dias Barria, continuou, até ao fim dos seus dias, à procura de apoios para melhorar e manter as suas duas obras, conservando o seu aspecto simples e humilde, associado à pequena e frágil estrutura física. Palavras-chave – Benemérita; Colégio; Santuário; Vila Cova; Genealogia. Abstract – Dated back to the second half of the nineteenth century, in a rural parish of the municipality of Vila Real, a woman decided to institute a religious private school, at her own expense. In order to achieve that, she managed to convince the Mother Superior of a religious order to have a small community moved to the area. Later on, she decided to set up a chapel dedicated to her devoted Nossa Senhora de La Salette. Until the end of her life, this benefactor, D. Ana Constança de Jesus Dias Barria, continued to improve and maintain her two charities, while keeping a simple and modest appearance, framed in a small and fragile physical stature. Keywords – Benefactor; Private School; Sanctuary; Vila Cova; Genealogy. ______________ * Historiador, conservador de museu e presidente do IGH-ULP – Instituto de Genealogia e Heráldica da Universidade Lusófona do Porto. * * Sobrinha-tetraneta de D. Ana Constança de Jesus Dias Barria, a quem deve o seu nome. CEPIHS | 2
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Introdução
Situada na antiga estrada que ligava Amarante a Vila Real, distando desta cerca de 10 quilómetros, a freguesia de Vila Cova pertencia em 1853 ao concelho de Ermelo, comarca e distrito de Vila Real, Arquidiocese de Braga, tinha 125 fogos e a sua igreja era da apresentação do Mosteiro de Santa Maria de Belém1. Por volta de 1879, tinha 107 fogos e 470 habitantes2. O seu clima é frio e áspero, sendo as suas produções dominantes: cereais, batatas e lã. Em 1881, foi concedido, por tempo ilimitado, a propriedade e exploração de uma mina de chumbo nesta freguesia a Maximiliano Schereck3, passando então a mineração a assumir papel de destaque na vida local. Por esta altura, uma mulher oriunda de uma família abastada, de lavradores e proprietários, decidiu fundar na sua terra natal um colégio, e mais tarde uma capela, passando o resto dos seus dias a tentar obter apoios para a manutenção do primeiro e a ampliação da segunda, acabando por falecer deixando todos os seus bens ao santuário em honra de Nossa Senhora de La Salette que fundou e ampliou. Uma benemérita
D. Ana Constança de Jesus Dias Barria, proprietária, nasceu a 6 de Fevereiro de 1831 em Vila Cova, Vila Real, onde foi baptizada a 13 do mesmo mês na igreja paroquial de São Tiago pelo padre António Álvares da Costa, tendo por padrinhos: o tio materno Padre João Gonçalves Ramada, e Maria Dias. Oriunda de uma família abastada e letrada, era filha de Manuel João Dias Barria, lavrador, proprietário e escrivão, natural de Gontães, São Miguel da Pena, e de sua mulher Maria Peregrina Gonçalves Ramada, doméstica, natural de Vilar de Viando, Mondim4. P. J. Marques, 1853, pp. 219, 276-277. J. C. B. Albuquerque, 1879, p. 148. 3 A. S. A. B. P. Leal, vol. XI, 1886, pp. 702-703. 4 ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 3, fl. 40. 1 2
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De estatura baixa, desde cedo demonstrou um forte pendor religioso, muito provavelmente fruto da influência do seu padrinho e tio materno padre, bem como de seu tio-avô paterno Padre Manuel Rodrigues Rebelo. Essa sua estatura física, “contrastava com a grandeza de alma e generosidade para com todos especialmente para com as jovens e crianças”5. A fundação do Colégio de Nossa Senhora de La Salette
Logo após o falecimento de sua mãe, ocorrido em 1874, D. Ana Constança, então com 43 anos de idade, decide fundar uma escola na sua própria casa. Era um modesto estabelecimento de ensino para que crianças e jovens ali pudessem aprender a ler, escrever, bordar e costurar, para além de aprender a Doutrina Cristã. Por esse motivo lhe chamavam “Mestra”6. Mas “(...) D. Ana Constança nunca estava satisfeita e sonhava avançar com outros projectos. Desta vez, pensou transformar a escola num bom colégio (…). Entretanto, teve conhecimento de que havia, em Lisboa, uma nova Congregação Portuguesa. Esta Congregação era das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas, cuja Fundadora e Madre Geral se chamava, na Congregação: Madre Maria Clara do Menino Jesus. Porém, o seu nome de baptismo era Libânia do Carmo Galvão Mexia de Moura Telles e Albuquerque. Segundo a tradição, D. Ana Constança decidiu ir pessoalmente a Lisboa, falar com a fundadora desta nova Congregação. Consta-se que foi a pé e à boleia. Durante a viagem, aconteceram algumas peripécias (…). Sabemos que em Lisboa foi falar com a Rainha D. Amélia (…). Desconhecemos o motivo porque não foi directamente expor o assunto à Superiora Geral, Madre Maria Clara do Menino Jesus, como era lógico. A Rainha recebeu-a amavelmente e até a convidou para almoçar com ela! Quando regressou a Vila Cova contava a toda a gente o sucedido e todos admiraram a sua coragem e felicitavam-na, batendo palmas (…)”7. Maria Felisbela Martins da Fonte, D. Ana – Ecos de um povo, Vila Cova, Associação dos Amigos à Descoberta de Mascoselo e Vila Cova, fascículo II, 2010, p. 32. 6 Idem, ibidem. 7 Idem, p. 33. 5
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Fig. 1 – Madre Maria Clara do Menino Jesus (1843-1899)8
Por volta de 1876, as irmãs da Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas vieram para aceder ao pedido de D. Ana Constança, mas ter-se-ão deparado “com uma casa sem soalho, sem vidraças, sem nenhum abrigo, e um clima tão frio e húmido, como aquele (…) e voltaram para trás e ficaram no Hospital de Penafiel. Mais tarde, informa a Crónica, a interessada mandou arranjar convenientemente a casa e então as irmãs Hospitaleiras tomaram conta do Colégio”9. Era um edifício que D. Ana Constança comprara alguns anos antes e que havia pertencido aos Morgados de Vila Cova10. “O colégio difundia, a par de uma educação fundamentalmente cristã, a conveniente instrução que a sociedade requer nas boas donas de casa, havendo além do ensino a pensionistas, aula externa gratuita, e várias órfãsinhas internas, que ali encontram o pão do corpo e o pão do espírito”11.
Fotografia gentilmente cedida por sua sobrinha-bisneta, Prof. Doutora Ana Sílvia Albuquerque de Oliveira Nunes. 9 Maria Felisbela Martins da Fonte, D. Ana – Ecos de um povo, op. cit., pp. 36-37. 10 Idem, p. 29. 11 Idem, p. 14. 8
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Fig. 2 – Colégio de Nossa Senhora de La Salette, em Vila Cova. O edifício remonta aos finais do século XVII ou início do século XVIII
Deduz-se de um manuscrito daquela Congregação, que D. Ana Constança havia fundado em Vila Cova, uma Associação das Filhas de Maria, já que um dos documentos refere as “Receitas e despesas do Colégio das Filhas de Maria, em Campeã” 12. “Como nas casas anteriores, idênticas a esta, a Comunidade era constituída por três religiosas. O manuscrito AC7 traz os nomes das que terão sido as primeiras Superiora, Ir. São Jerónimo, Cozinheira, Ir. Santa Gertrudes, Mestra, Ir. Inocentes. Terá sucedido à Ir. São Jerónimo, no cargo de Superiora, a Ir. Maria La Salette, homónima da padroeira do colégio, em 1882. Seguiu-se-lhe a Ir. Natividade, em Fevereiro de 1888. Volta a Ir. Salette em 1890 até 1893, a Ir. Melânia desempenha o cargo durante alguns meses em 1894. Mas, na hora da partida, em 20 de Abril de 1895, representava a Congregação naquela casa, a Ir. Soledade. Em 1895, as Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas fazem entrega de todos os bens do colégio à sua proprietária, de acordo com o respectivo auto de entrega:
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Idem, pp. 38-39.
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Saibam quantos este documento virem que no dia 20 de Abril de 1895, sendo presentes na casa do Colégio e Escola da Exm.ª Senhora D. Ana Constança de Jesus Dias Barria, na freguesia de São Tiago de Vila Cova de Campeã, Concelho deVila Real. De um lado a dita proprietária e do outro a Irmã Soledade, representante das Irmãs Hospitaleiras que há 20 anos começaram na dita casa a dirigir a Escola nela estabelecida, e que desde agora deixam por nunca até agora se terem cumprido as condições e promessas que foram apresentadas com respeito aos socorros espirituais, sem os quais não podiam continuar a educar convenientemente as crianças, e por esta forma falhavam os elementos necessários às mestras; e por estas foram entregues à Exm.ª senhora D. Ana Constança de Jesus Dias Barria, todos os objectos, mobília, roupas e mais pertences da Escola do Colégio, não levando as ditas Irmãs Hospitaleiras, que ao presente eram aqui mestras, Ir. Maria do Carmelo Ir. Catarina de Génova Ir. Maria Aurora Ir. Margarida Carlota mais do que a roupa e objectos do seu uso e o que propriamente era seu. Ao mesmo tempo declaramos e confessamos que nem nós ficamos devendo nada à Exm.ª Senhora D. Ana Constança de Jesus Barria Dias Barria, nem ela a nós e assim vamos reciprocamente quites. E para que a todo o momento conste e em testemunho da verdade vai ser assinada por todas as pessoas interessadas, ficando uma cópia em poder de D. Ana Constança de Jesus Dias Barria e outra em poder das irmãs Hospitaleiras, como prova de lealdade e verdade de como tudo se fez. Vila Cova de Campeã, 20 de Abril de 1895. Ir. Soledade / Ir. Carmelo / Ir. Catarina de Génova / Ir. Maria Aurora / Ir. Margarida Carlota. A proprietária da Escola: D. Ana Constança de Jesus Dias Barria. Testemunhas: José Teixeira Dias / Maria Bárbara / João Moreira Farroco. A primeira obra que as Irmãs Hospitaleiras tiveram em Trás-os-Montes terminava assim, após vinte anos, deixando profundas marcas na formação cultural, social e religiosa das crianças educadas. O número de vocações religiosas nascidas deste colégio são disso prova consistente”13.
“A Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas a seu pedido e da Associação das Filhas de Maria, aceitaram alegremente 13
Idem, pp. 38-39.
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com sacrifício e sabedoria, a orientação do Colégio de Nossa Senhora de La Salette de Vila Cova, durante vinte anos (1875-1895)!”14. Entregue a si própria, D. Ana Constança não deixou que o Colégio fosse extinto. Logo “chamou para a ajudar uma senhora de nome Brízida e, mais tarde, outra de nome Benedita. A casa servia também de residência aos sacerdotes que por ali passavam. D. Ana Constança deixou em testamento que a senhora Benedita permanecesse na casa até à hora da morte, ficando responsável pelo colégio”15. O texto de divulgação da festa do Colégio de Nossa Senhora de La Salette, em 1899, ajuda-nos também a compreender o que esta instituição significava na época naquela região: “Este importantíssimo collegio, fundado há 23 annos na proxima freguezia de Villa Cova da Campeã, continua a corresponder brilhantemente ao fim da sua ilustre e virtuosa fundadora e directora, ministrando anualmente, sem a minima retribuição, instrução a 97 meninas que, além dos princípios d’uma boa educação moral, alli vão haurir os conhecimentos necessários para o bom desempenho dos lugares que de futuro lhes estejam reservados. Tambem lá se ensina a santa doutrina a todos os meninos que ali queiram procurar o conhecimento do catecismo. A direcção do collegio, querendo enriquecer aquella freguezia e dar maior desenvolvimento ao culto da Santissima Virgem, tenciona dar brevemente principio á construção d’um magestoso templo no monte da Malhada, da mesma freguezia, monte bastante elevado, d’onde se respira ar puro e vivificante, em tudo parecido ao monte de La Salette, em França. Para isso, conta a benemérita fundadora, uma santa e humilde creatura, cujo nome nos é impossível publicar, com os donativos de todos os associados de Nossa Senhora de La Salette, e com as esmolas de todas as pessoas que queiram auxiliar a realização de tão grandiosa ideia”16.
Idem, p. 4. Idem, p. 32. 16 Descrição da Festa do Colégio de Nossa Senhora de La Salette, em 1899 (Maria Felisbela Martins da Fonte, D. Ana – Ecos de um povo, op. cit., p. 8). 14 15
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A construção da Capela de Nossa Senhora de La Salette
A construção da capela de Nossa Senhora de La Salette, em Vila Cova, ter-se-á devido a vários factores, a que não será alheia a devoção de D. Ana Constança. Se é verdade que a História da Aparição de Nossa Senhora em La Salette, a 16 de Setembro de 1846, da qual D. Ana Constança tinha um exemplar datado de 1890, cujo produto da venda revertia a favor das meninas pobres do Colégio de Nossa Senhora de La Salette em Vila Cova17, poderia ter sido um factor decisivo para lançar a obra da construção de um templo com aquela invocação, outros motivos poderão ter estado na sua origem. Se não vejamos. Diz a tradição popular, que D. Ana Constança era “dotada de qualidades excepcionais, sobretudo de grande generosidade, tendo feito da sua vida um hino ao amor a Deus, a Nossa Senhora de La Salette de quem era grande devota e aos seus conterrâneos (…). Nunca se sentiu missionária longínqua; para ela, a primeira terra de missão era a sua aldeia! A tradição que ainda hoje existe refere-se a um sonho que D. Ana tivera, no qual Nossa Senhora lhe pedira para que construísse um Altar, onde os fiéis aí pudessem rezar, pedindo a sua cura da alma e do corpo”18. No entanto, segundo relatos familiares, a versão dos factos é um pouco diferente, e refere que D. Ana Constança terminara de rezar, voltada para o seu crucifixo, na primitiva Capela de Nossa Senhora de La Salette, quando se levantou e voltou para se vir embora, e terá ouvido a voz de Jesus dizendo: “tu vais embora e deixas-me aqui sozinho?”. Esse momento quis D. Ana Constança imortalizar, fazendo-se fotografar junto do seu crucifixo, conforme a imagem comprova.
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Maria Felisbela Martins da Fonte, D. Ana – Ecos de um povo, op. cit., p. 23. Idem, p. 9.
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De uma maneira ou de outra, D. Ana Constança decidiu avançar para a construção de uma capela com a invocação de Nossa Senhora de La Salette e, para tal, começou a diligenciar nesse sentido, começando por escolher um terreno no Monte da Malhada da Fraga da Pena e tratar da sua aquisição.
Fig. 3 – D. Ana Constança de Jesus Dias Barria, rezando junto a um crucifixo19
Para isso, dirigiu-se à junta de freguesia para adquirir um terreno, conforme prova a acta da reunião da junta de paróquia, datada de 30 de Março de 1898, em que foi apresentada a seguinte proposta: Acta da sessão da junta de Parochia da freguezia deVilla Cova, em 30 de Março de 1898 Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos noventa e oito, aos trinta dias de Março do dito anno, na salla das sessões da junta da parochia da freguezia deVilla Cova, Concelho deVila Real, se reuniu a junta de paroqchia, em sessão para que foi convocada. Achando-se a junta assim devidamente reunida, pelo prezidente foi declarado, que se acha aberta a sessão, e em seguida apresentou a seguinte proposta: Que tendo Dona Anna Constancia de Jesus Dias Barria, solteira, deste mesmo logar e freguezia, pedindo para lhe alienar duzentos metros de comprido e sessenta metros de largo, prefazendo dez mil metros quadrados de terreno no sitio da Malhada da Fraga da Pena, com o fim de ahi mandar edificar uma capella para colocar a imagem de Nossa Senhora 19
Fotografia do final do século XIX. Colecção da Casa Grande de Tuizendes.
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de La Salléte, para os devotos venerarem: e tendo a junta de parochia em consideração esta proposta, por ter um fim tão religioso, depois de varias considerações, resolveu por unanimidade ceder-lhe para o referido fim do mencionado terreno, pelo qual devia a quantia de quatro mil reis por ser muito fragoso e improprio para cultura e pastos de gado, não convindo a mais ninguém por qualquer quantia, mesmo inferior daquela; porem esta alienação é feita para este fim ficando sem efeito em caso contrario. E sendo a referida proposta aprovada neste sentido por unanimidade, não havendo mais do que tratar foi encerrada a sessão. E para constar se lavrou a prezente acta, assignando o vogal mais velho em logar do prezidente por impedimento do Parocho e pelos mais vogaes, depois de lida por mim Jose Teixeira Dias, que a escrevi e assigno. João Alves de Carvalho Joaquim Teixeira Dias O Regedor, Januário Nunes Teixeira20.
Realizada a compra, foram colocados marcos a delimitar a propriedade, com a seguinte inscrição “M particular 1898”, seguindo-se a construção de um altar com a invocação de Nossa Senhora de La Salette. Desde então, começaram as festividades em honra daquela Senhora, atraindo, gradualmente, mais e mais crentes. O dia da festa foi durante muitas décadas o dia 19 de Setembro, mas posteriormente seria transferido para o dia de Assunção de Nossa Senhora, o dia 15 de Agosto. Fig. 4 – D. Ana Constança de Jesus Dias Barria21
JFVC, Livro de Actas da Junta de Freguesia, 1896 (Maria Felisbela Martins da Fonte, D. Ana – Ecos de um povo, op. cit., pp. 11-12). 21 Pormenor de fotografia de meados da década de 10 do século XX. Colecção da Casa Grande de Tuizendes. 20
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A ampliação da Capela
Só mais tardiamente, por volta de 1920 a 1925, terá sido construída a nave central da capela, tendo em vista o seu aumento, pois as dificuldades económicas fizeram com que a obra parasse por diversas vezes. Mas a ajuda de muitos acabaria por levar à conclusão da mesma. Consta também, que D. Ana Constança se terá deslocado ao Brasil, com o objectivo de angariar meios para a conclusão da obra, o que não cremos. D. Ana Constança, benemérita da paróquia de Vila Cova, faleceu solteira e sem geração em 3 de Novembro de 1924. “Na sua simplicidade imprimiu no seu povo um sentimento humanístico, cultural, social e cristão! A sua casa foi uma instituição de bem-fazer e por fim, num gesto de generosidade e amor cristão, fez dela uma oferta singular à sua Paróquia, bem como outros imóveis. Abençoada por Deus, realizou com êxito a transformação cultural e cristã, de um povo desconhecido e insignificante, em células vivas de cristianismo, concretizado no número de vocações religiosas que dali saíram para a Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas”22.
Fig. 5 – Capela de Nossa Senhora da La Salette, em Vila Cova 22
Maria Felisbela Martins da Fonte, D. Ana – Ecos de um povo, op. cit., p. 4.
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Nos anos seguintes, 1925 a 1930, foi a vez da construção da torre sineira da capela23, tendo já como pároco de Vila Cova o sobrinho de D. Ana Constança, o Padre José Augusto Peixoto Barria, o qual contribuiu também para a ampliação do santuário, assim como para a aquisição da imagem de Nossa Senhora de La Salette, com os pastorinhos, para além de também ter deixando bens àquela capela. Hoje esta capela está no coração de um santuário, onde ao longo das décadas foram efectuados numerosos melhoramentos, tendo: uma sala de jantar, água canalizada, parque de merendas, wc públicos, campo desportivo, e uma estrada de acesso com qualidade.
Fig. 6 – Placa toponímica da rua lateral ao Colégio de Nossa Senhora de La Salette, em Vila Cova. Onde se lê “Ana de Jesus Barrias” deveria ler-se: “D. Ana Constança de Jesus Dias Barria”
Fig. 7 – Na Casa de Vila Cova (em meados da década de 10 do século XX), da esquerda para a direita: Padre José Augusto Peixoto Barria (sobrinho), D. Ana Constança de Jesus Dias Barria, D. Inácia de Jesus Dinis Peixoto (cunhada), D. Maria da Purificação Peixoto Barria (sobrinha) e António Joaquim Dias Barria (sobrinho)24 23 24
Idem, pp. 15-16. Colecção da Casa Grande de Tuizendes.
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Francisco
D. Maria Adelaide Correia de Carvalho *
D. Maria Victorina
António Joaquim Correia de Carvalho
D. Teresa de Jesus
D. Maria Joaquina Martins Pereira
D. Ana dos Anjos
José Manuel Correia de Carvalho
D. Laura dos Anjos
João Manuel Dr. José Augusto
D. Teresa de Jesus Dias Barria
Dr. Albano Augusto
D. Ana de Jesus
Ana
c. g.
Prof.ª D. Ana Amélia Barria Maio
D. Maria da Purificação
D. Maria Beatriz
D. Teresa Augusta Peixoto Barria
c. g.
Prof. Telésforo Barria Maio
Prof. José Justino Maio
António Dias Barria
D. Maria Peregrina Gonçalves Ramada
D. Ana Constança de Jesus Dias Barria
Manuel João Dias Barria
c. g.
Manuel Alberto Barria Maio
Filomena
D. Inácia de Jesus Dinis Peixoto
ESQUEMA GENEALÓGICO DA FAMÍLIA DE D. ANA CONSTANÇA DE JESUS DIAS BARRIA
António Amadeu
António Joaquim Dias Barria
João
José Augusto
D. Maria Adelaide Correia de Carvalho *
José
António Correia Rosas
c. g.
D. Maria Etelvina Rosas
D. Elisa de Jesus Peixoto Barria
Ana Amélia
Pe. José Augusto
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Genealogia da família Barria (I) – Manuel João Dias Barria25, lavrador, proprietário e escrivão, nasceu em 27 de Dezembro de 1800 em Gontães, São Miguel da Pena, onde foi baptizado pelo seu tio Padre Manuel Rodrigues Rebelo26. Era filho de Joaquim Rodrigues Rebelo27 e de sua mulher Cecília Dias Barria, moradores em Gontães, neto paterno de Francisco Gonçalves e de sua mulher Maria Rodrigues, de Ermelo, e neto materno de Domingos Barria e de sua mulher Mariana Gaspar, de Vila Cova. Casou em 17 de Janeiro de 1827 em Mondim de Basto28, com Maria Peregrina Gonçalves Ramada, proprietária e doméstica, nascida em 1796 em Vilar de Viando, Mondim de Basto, irmã do Padre João Gonçalves Ramada29, filhos de Bento Manuel Fernandes Ramada, natural de Mondim de Basto, e de sua mulher Guiomar Gonçalves dos Anjos, natural de Vilar de Ferreiros, lavradores, moradores no Bairro da Ramada, em Vilar de Viando, Mondim de Basto, neta paterna de Manuel Fernandes Martins e de sua mulher Sebastiana Gonçalves, de Mondim de Basto, e neta materna de Gregório Gonçalves e de sua mulher Teresa Gomes dos Anjos, de Vilar de Ferreiros. Maria Peregrina faleceu em 26 de Janeiro de 1874 em Vila Cova30. Manuel João foi também escrivão em Gontães (1845)31 e faleceu por volta de 1890. Residiram em Vila Cova, onde tiveram seis filhos: Teresa, Ana, Ana Constança, António, José e João. 1 (II) – D. Teresa de Jesus Dias Barria, proprietária e doméstica, nasceu em 13 de Novembro de 1827 em Vila Cova32. Casou em 6 de Agosto de 1849 em Vila Cova, com José Manuel Correia de Carvalho, proprietário, 7.º Senhor da “Casa Grande” de Tuizendes, Torgueda, onde nasceu em 23 de Setembro de 181133. Também identificado como Manuel João Gonçalves de Barria e Manuel João Rebelo Dias. 26 ADVR, Livro Paroquial da Pena, Baptismos, n.º 6, fls. 43v.-44. 27 Também identificado como Joaquim Gonçalves Rebelo. 28 ADVR, Livro Paroquial de Mondim de Basto, Casamentos, n.º 36, fl. 78. 29 Para além de António (n. 1796) e Ana (n. 1799), nascido em 16 de Fevereiro de 1801 em Vilar de Viando, Mondim de Basto (ADVR, Livro Paroquial de Mondim de Basto, Baptismos, n.º 8, fls. 165-165v.). 30 ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Óbitos, n.º 30, fl. 18v., reg. n.º 2. 31 ADVR/FAM/FMS/B-A/008/136. 32 ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 3, fl. 31. 33 ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Baptismos, n.º 3, fl. 140v. 25
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Era filho de Manuel Correia de Carvalho, Senhor da “Casa Grande” de Tuizendes, Torgueda, daí natural, e de sua mulher D. Maria Luísa Ribeiro, Senhora da “Casa do Barreiro”, em Louredo, Santa Marta de Penaguião, de onde era natural, proprietários, moradores em Tuizendes. José Manuel faleceu em 7 de Março de 1897 na “Casa Grande” de Tuizendes34. Residiram na “Casa Grande”, em Tuizendes, onde tiveram cinco filhos: Maria Victorina, António Joaquim, João Manuel, José Augusto e Ana de Jesus. 1 (III) – Maria Vitorina, nasceu em 17 de Setembro de 1850 em Tuizendes, Torgueda35, onde terá falecido criança. 2 (III) – António Joaquim Correia de Carvalho, proprietário, nasceu em 28 de Setembro de 1851 em Tuizendes, Torgueda36. Foi feita por seus pais uma escritura de dote de casamento37, para este vir a casar em 20 de Maio de 1871 em Arnadelo38, Torgueda, com D. Maria Joaquina Martins Pereira, proprietária e doméstica, Senhora da “Casa do Cerrado”, em Arnadelo, onde nasceu aproximadamente em 1849, filha de Damião Martins do Cerrado, Senhor da “Casa do Cerrado”, em Arnadelo, e de sua mulher Ana Maria Pereira, naturais e moradores em Arnadelo, Torgueda. Residiram na “Casa do Cerrado”, em Arnadelo, Torgueda, onde tiveram cinco filhos: Francisco, Maria Adelaide, Ana dos Anjos, Teresa de Jesus e Laura dos Anjos. 1 (IV) – Francisco Correia de Carvalho, proprietário, nasceu em 27 de Outubro de 1873 na “Casa do Cerrado”, em Arnadelo, Torgueda39, onde faleceu solteiro e sem geração em 30 de Junho de 1938.
ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Óbitos, n.º 54, fl. 127, reg. n.º 5. ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Baptismos, n.º 3, fl. 105v. 36 ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Baptismos, n.º 3, fl. 111. 37 ADVR/FAM/FMS/B-B/003/307. 38 ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Casamentos, n.º 35, fl. 4, reg. n.º 5. 39 ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Baptismos, n.º 19, fls. 35v.-36, reg. n.º 44. 34 35
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2 (IV) – D. Maria Adelaide Correia de Carvalho, proprietária e doméstica, nasceu em 11 de Novembro de 1875 na “Casa do Cerrado”, em Arnadelo, Torgueda40. Casou com seu segundo primo António Joaquim Dias Barria, proprietário, nascido em 16 de Março de 1880 em Vila Cova (Ver: António Joaquim Dias Barria). 3 (IV) – D. Ana dos Anjos Correia de Carvalho, proprietária e doméstica, nasceu em 11 de Junho de 1878 na “Casa do Cerrado”, em Arnadelo, Torgueda41. Faleceu solteira e sem geração, em 4 de Maio de 1966, na “Casa do Barreiro”, em Louredo, Santa Marta de Penaguião, deixando por herdeiros seus primos, filhos de sua segunda prima D. Teresa Augusta Peixoto Barria. 4 (IV) – D.Teresa de Jesus Correia de Carvalho, proprietária e doméstica, nasceu em 26 de Maio de 1881 na “Casa do Cerrado”, em Arnadelo, Torgueda42, onde faleceu solteira e sem geração, em 12 de Agosto de 1944. 5 (IV) – D. Laura dos Anjos Correia de Carvalho, proprietária e doméstica, nasceu em 25 de Julho de 1887 na “Casa do Cerrado”, em Arnadelo, Torgueda43, onde faleceu solteira e sem geração, em 14 de Dezembro de 1937. Pintava quadros figurativos, paisagens e naturezas mortas de bastante qualidade, dos quais ainda existem alguns exemplares. 3 (III) – João Manuel Correia de Carvalho, proprietário, 8.º Senhor da “Casa Grande” de Tuizendes, em Torgueda, onde nasceu em 20 de Setembro de 185444 e onde faleceu solteiro e sem geração em 3 de Maio de 1936. Foi vereador da Câmara Municipal de Vila Real e benemérito.
ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Baptismos, n.º 19, fls. 76-76v., reg. n.º 56. ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Baptismos, n.º 19, fls. 135-135v., reg. n.º 32. 42 ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Baptismos, n.º 20, fl. 10v., reg. n.º 31. 43 ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Baptismos, n.º 20, fl. 122, reg. n.º 45. 44 ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Baptismos, n.º 3, fl. 132. 40 41
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4 (III) – Dr. José Augusto Correia de Carvalho, médico, nasceu em 26 de Julho de 1857 na “Casa Grande” de Tuizendes, em Torgueda45, onde faleceu solteiro e sem geração em 30 de Julho de 190546. Matriculou-se na Universidade de Coimbra, primeiro em Filosofia, depois em Matemática, e finalmente em Medicina, onde se formou em 1885. Residiu e exerceu em Estremoz. 5 (III) – D. Ana de Jesus Correia de Carvalho, proprietária e doméstica, 9.ª Senhora da “Casa Grande” de Tuizendes, Torgueda, onde nasceu por volta de 1858. Benemérita, residiu na “Casa do Barreiro”, em Louredo, Santa Marta de Penaguião, e faleceu solteira e sem geração, aos 99 anos, na “Casa Grande” de Tuizendes, Torgueda, deixando por herdeira sua segunda prima e afilhada D. Maria Beatriz Barria Maio. 2 (II) – Ana, nasceu em 7 de Fevereiro de 1829 em Vila Cova, Vila Real47, onde faleceu recém-nascida. 3 (II) – D. Ana Constança de Jesus Dias Barria, proprietária e doméstica, nasceu a 6 de Fevereiro de 1831 em Vila Cova, Vila Real48. Foi fundadora e proprietária do Colégio de Nossa Senhora de La Salette, em Vila Cova, e fundadora em 1898 da Capela de Nossa Senhora de La Salette, no Monte da Malhada da Fraga da Pena, em Vila Cova. Benemérita da paróquia de Vila Cova, onde faleceu solteira e sem geração em 3 de Novembro de 1924. 4 (II) – António Dias Barria, lavrador e proprietário, nasceu em 2 de Maio de 1833 em Vila Cova, Vila Real. Casou em 18 de Fevereiro de 1873 em Ermelo, Mondim de Basto49, com D. Inácia de Jesus Dinis Peixoto, proprietária e doméstica, nascida em 23 de Fevereiro de 1848 em Ermelo, Mondim de Basto50.
ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Baptismos, n.º 4, fl. 11. ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Óbitos, n.º 54, fl. 194v., reg. n.º 19. 47 ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 3, fls. 36-36v. 48 ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 3, fl. 40. 49 ADVR, Livro Paroquial de Ermelo, Casamentos, n.º 16, fls. 2-2v., reg. n.º 2. 50 ADVR, Livro Paroquial de Ermelo, Baptismos, n.º 3, fl. 5v. 45 46
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Era filha de António Dinis Peixoto, natural de Ermelo, e de sua mulher D. Teresa Felícia Teixeira de Queirós Peixoto, natural de Vilar de Viando, proprietários, moradores em Ermelo. António faleceu em 1897 em Vila Cova, Vila Real. D. Inácia faleceu por volta de 1930 em Vila Cova, Vila Real. Residiram em Vila Cova, onde tiveram sete filhos: Maria da Purificação, Teresa Augusta, Filomena, António Joaquim, Elisa de Jesus, Ana Amélia e José Augusto. 1 (III) – D. Maria da Purificação Peixoto Barria, proprietária e doméstica, nasceu em 8 de Fevereiro de 1874 em Vila Cova, Vila Real, onde residiu e faleceu, solteira e sem geração, em 7 de Fevereiro de 1966. 2 (III) – D. Teresa Augusta Peixoto Barria, proprietária e doméstica, nasceu em 14 de Março de 1876 em Vila Cova, Vila Real51. Casou em 1903 em Vila Cova, com o Prof. José Justino Maio, professor primário, nascido em 16 de Abril de 1870 em Pêpe, Campeã52. Era filho de João Maio, natural de Pêpe, Campeã, e de sua mulher D. Ana Joaquina Ferreira Ribeiro de Miranda, natural de Tuizendes, Torgueda, proprietários e lavradores, moradores em Pêpe. Residiram em Vila Cova, onde tiveram cinco filhos: Albano Augusto, Ana Amélia, Maria Beatriz, Telésforo e Manuel Alberto. 1 (IV) – Dr. Albano Augusto Barria Maio, médico radiologista, nasceu em 13 de Junho de 1904 em Vila Cova, Vila Real. Casou com a Prof.ª D. Cândida da Anunciação Teixeira Alves, professora primária, natural de Valpaços. Dr. Albano era licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra e faleceu aproximadamente em 1959 em Vila Real. Residiram em Vila Real, onde tiveram uma filha: Eduarda, que faleceu criança.
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ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 19, fls. 10-10v., reg. n.º 9. ADVR, Livro Paroquial da Campeã, n.º 11, fls. 68v.-69.
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2 (IV) – Prof.ª D. Ana Amélia Barria Maio, professora primária, nasceu em 24 de Agosto de 1905 em Vila Cova, Vila Real. Casou em 1938 em Vila Real, com Joaquim Victor Teixeira Gomes, funcionário público, nascido em 4 de Julho de 1907 em Vila Real. Era filho de Joaquim da Costa Gomes Júnior, funcionário público e proprietário, e de sua mulher D. Emília de Jesus Teixeira da Silva, naturais e moradores em Vila Real. Joaquim Victor foi chefe de Finanças em Vila Real e faleceu em 3 de Fevereiro de 1955 em São Pedro, Vila Real. D. Ana Amélia faleceu em 21 de Janeiro de 2000 em Santo Tirso. Residiram em Vila Real, onde tiveram três filhos: Maria de La Salette, Maria José e Victor. 3 (IV) – D. Maria Beatriz Barria Maio, proprietária e doméstica, 10.ª Senhora da “Casa Grande” de Tuizendes, em Torgueda, nasceu em 18 de Maio de 1907 em Vila Cova, Vila Real. Casou em 1957 em Louredo, Santa Marta de Penaguião, com o Dr. Amândio Rebelo de Figueiredo, viúvo, médico, nascido em 4 de Julho de 1903 na Cumieira, Santa Marta de Penaguião. Era filho de Manuel Tomás Lopes de Figueiredo e de sua mulher D. Julieta Augusta Rebelo Matos, proprietários, da Cumieira, Santa Marta de Penaguião. Era licenciado em Medicina pela Universidade do Porto (1929), médico, Deputado à Assembleia Nacional na III Legislatura (1942-1945) e na VI Legislatura (1953-1957), Presidente da Adega Cooperativa da Cumieira, Vice-Presidente da Casa do Douro, Presidente da Comissão Distrital de Vila Real da União Nacional, Administrador do Concelho e Sub-Delegado de Saúde de Santa Marta de Penaguião, e faleceu em Agosto de 1980 no Porto. D. Maria Beatriz faleceu em 9 de Abril de 1994 em Santo Tirso, sem geração. Residiram na “Casa Grande de Tuizendes”, em Torgueda.
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4 (IV) – Prof. Telésforo Barria Maio, professor primário e proprietário, natural da Campeã, Vila Real. Casou com a Prof.ª D. Maria Eugénia Lopes de Carvalho, professora primária, natural de Alijó. Emigraram para África e, depois de regressar, foram residir para o Porto e, mais tarde para Arrabães, Torgueda,Vila Real, onde tiveram quatro filhos: Álvaro, Aurelina, Teresa e Luís. 5 (IV) – Manuel Alberto Barria Maio, proprietário e comerciante, natural daa Campeã, Vila Real. Casou com D. Ana de Jesus Marques, doméstica, natural da Campeã, Vila Real. Residiram em Pêpe, Campeã, Vila Real, onde tiveram um filho: José Adérito. 3 (III) – Filomena, nasceu em 29 de Julho de 1878 em Vila Cova53, onde faleceu ainda criança em 5 de Agosto de 188254. 4 (III) – António Joaquim Dias Barria, proprietário, nasceu a 16 de Março de 1880 em Vila Cova55. Casou em 16 de Julho de 1908 em Louredo, Santa Marta de Penaguião, com sua segunda prima D. Maria Adelaide Correia de Carvalho, proprietária e doméstica, nascida em 11 de Novembro de 1875 em Arnadelo, Torgueda56. (Ver: D. Maria Adelaide Correia de Carvalho) D. Maria Adelaide faleceu em 2 de Agosto de 1944 em Arnadelo, Torgueda. António faleceu em 2 de Maio de 1947 em Vila Cova. Residiram em Vila Nova, na Campeã, onde tiveram dois filhos: António Amadeu e José Augusto. 1 (IV) – António Amadeu Peixoto Barria, proprietário, nasceu em 1909 em Vila Cova.
ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 19, fls. 21-21v., reg. n.º 4. ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Óbitos, n.º 30, fl. 36v., n.º 4. 55 ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 19, fls. 33v.-34, reg. n.º 4. 56 ADVR, Livro Paroquial de Torgueda, Baptismos, n.º 19, fls. 76-76v., reg. n.º 56. 53 54
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D. Ana Constança de Jesus Dias Barria (1831-1924) uma benemérita – sua obra e família
Residiu em Tuizendes, Torgueda, onde faleceu interditado, solteiro e sem geração, em 4 de Dezembro de 1987 2 (IV) – José Augusto Peixoto Barria, proprietário, nasceu em 1915 em Vila Nova, Campeã. Residiu em Tuizendes, Torgueda, onde faleceu interditado, solteiro e sem geração, em 17 de Dezembro de 1992. 5 (III) – D. Elisa de Jesus Peixoto Barria, proprietária e doméstica, nasceu em 24 de Novembro de 1883 Vila Cova57. Casou em 17 de Abril de 1912 em Vila Real, com António Correia Rosas, comerciante, que faleceu em 1 de Julho de 1934 em Vila Real. D. Elisa faleceu em 18 de Dezembro de 1980 em São Pedro, Vila Real. Residiram em Vila Real, onde tiveram uma filha: Maria Etelvina. 1 (IV) – D. Maria Etelvina Rosas, comerciante e doméstica, natural de Vila Cova, Vila Real, onde casou com Agostinho de Azevedo Queirós, comerciante, natural de Folhadela, Vila Real. D. Maria Etelvina faleceu em 26 de Fevereiro de 1993 em Abambres, Mateus, Vila Real. Residiram em Abambres, Mateus, Vila Real, onde tiveram cinco filhos: José, Maria Elisabete, Eduardo Augusto, Maria Helena e Marta Estrela. 6 (III) – Ana Amélia, nasceu em 8 de Maio de 1886 em Vila Cova58, onde faleceu criança. 7 (III) – Pe. José Augusto Peixoto Barria, sacerdote, nasceu em 13 de Dezembro de 1889 em Vila Cova59, onde faleceu em 19 de Junho de 1949. Paroquiou em Vila Cova de 1922 a 1941 e executou o testamento de sua tia paterna D. Ana Constança de Jesus Dias Barria.
ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 19, fls. 64v.-65, reg. n.º 91. ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 19, fls. 83-83v., reg. n.º 8. 59 ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 19, fls. 115v.-116, reg. n.º 14. 57 58
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Delfim Bismarck Ferreira
5 (II) – José Dias Barria, nasceu em 20 de Junho de 1836 em Vila Cova60. Terá falecido ainda criança. 6 (II) – João Dias Barria, nasceu em 19 de Outubro de 1838 em Vila Cova61, onde faleceu solteiro e sem geração. Apadrinhou o sobrinho João Manuel, em Setembro de 1854, tendo falecido.
Bibliografia Manuscrita ADVR – Arquivo Distrital de Vila Real: – Famílias: Família Martins do Serrado – Livros Paroquiais de: Ermelo, Campeã, Mondim de Basto, Pena, Torgueda e Vila Cova Impressa ALBUQUERQUE, João da Costa Brandão e, Censo de 1878 – Relação das Freguezias do Continente e Ilhas, Lisboa, Typographia Universal, 1879. FONTE, Maria Felisbela Martins da, D. Ana – Ecos de um povo, Vila Cova, Associação dos Amigos à Descoberta de Mascoselo e Vila Cova, fascículo II, 2010. LEAL, Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho, Portugal Antigo e Moderno, Lisboa, Livraria Editora de Tavares Cardoso & Irmão, vol. XI, 1886. MARQUES, Pedro José, Diccionario Geographico de Portugal e Algarves, Porto, Typographia Commercial, 1853.
Agradecimento – Uma palavra de especial agradecimento à Irmã Maria Felisbela Fonte, sem a qual este trabalho jamais se teria materializado.
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ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 4, fls. 33v.-34. ADVR, Livro Paroquial de Vila Cova, Baptismos, n.º 4, fl. 15.
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Pedagogia censória em terras de Bragança e Miranda contra bota-fogos da modernidade (A propósito do terceiro centenário do nascimento de J.-J. Rousseau) Fernando Augusto Machado* Resumo – O pretexto da celebração do terceiro centenário do nascimento de J.-J. Rousseau deu mote a este curto estudo. Nele se mostram, em primeiro lugar, algumas das sementes de maldição, mas também de abrangente e multivetorial modernidade e atualidade deste tão amado quanto odiado bota-fogo; em segundo lugar, tenta provar-se quão difícil foi ao rigoroso e diligente aparelho censório e repressivo impedir ou rechaçar a difusão de tais sementes em Portugal, mesmo na pacata interioridade transmontana, onde a ação apologética, cautelar e punitiva da Igreja local patenteia, simultaneamente, a ineficácia do aparelho e o efetivo curso, por lá, das novas ideias nascidas nas Luzes e carregadas de heterodoxia. Palavras-chave – Rousseau; Luzes; Inquisição e censura; Igreja; Portugal; Trás-os-Montes. Abstract – The celebration of the third centenary of the birth of J.-J. Rousseau prompted his short study. First of all, we show some of the seeds of damnation, but also the comprehensive and multidimensional modernity and actuality of this beloved and hated bota-fogo; secondly, we try to prove how difficult it was for the censorial and repressive legal machine to stop or repel the dissemination of such seeds in Portugal, even in the quiet inland transmontana where the apologetic, cautious and punishing action of the local Church manifests, simultaneously, the inefficiency of the machine and the effective course, locally, of the new ideas born with the Enlightenment and loaded with heterodoxy. Keywords – Rousseau; Enlightenment; Inquisition and Censorship; Church; Portugal; Trás-os-Montes. ____________
* Professor catedrático de Filosofia da Universidade do Minho. CEPIHS | 2
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Decorre, no presente ano, o terceiro centenário do nascimento de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Figura cimeira do movimento das Luzes do século XVIII, depressa se tornou num dos nomes mais notáveis do pensamento e da literatura de todos os tempos e lugares. Paralelamente, e por coincidência, celebram-se, também, os duzentos e cinquenta anos das suas duas mais importantes obras, o Émile ou de l’Éducation e o Contrat Social, vindas a lume em 1762, marcos determinantes da cultura e do sentido civilizacional europeu. Diz-me a experiência dos prolongados estudos que tive ocasião de fazer sobre este filósofo e confirma-o a abalizada opinião dos seus mais reputados especialistas que não se pode privar com Rousseau sem paixão, seja qual for a valoração que a oriente. O seu génio, o relevo alcançado, a diferença do comum, a controvérsia, a provocação, a “loucura” fazem dele um centro de interesse único. De facto, ele tanto seduziu e se fez amar, como irritou e se fez odiar, muitas vezes de forma radical, quer entre os seus contemporâneos, quer na posteridade, permanecendo hoje esta ambivalência de sentimentos1. Para aquilatarmos sobre a relevância do pensador em causa, bastaria enunciar alguns aspetos da fantástica projeção consequencial das suas obras e teorias para a atualidade. Como é sabido, Rousseau é um dos principais esteios de construção da modernidade tal como foi delineada nas Luzes. Na realidade, ele é reconhecido como fundador das ciências do homem, através do ensaio antropológico, Discurso sobre a Origem e FunPode ver-se, a este propósito, Fernando Augusto Machado em: Rousseau em Portugal, da Clandestinidade Setecentista à LegalidadeVintista (Porto, Campo das Letras, 2000), pp. 21-22 e 287-290, e Almeida Garrett e a Introdução do Pensamento Educacional de Rousseau em Portugal, Porto, Edições ASA, 1993, cap. IV. Sobre leituras de estudiosos estrangeiros indicamos, entre muitos outros, os nomes de Jean Starobinski, no “Préface” a Le problème Jean-Jacques Rousseau, de Cassirer, trad. franc. do alemão de Marc B. de Launay, Paris, Hachette, 1987, pp. I-XIX; Albert Schinz, em La pensée de Jean-Jacque Rousseau - Essai d’interprétation nouvelle, Paris, Librairie Félix Alcan1929, ou “Les ennemis de Jean-Jacque Rousseau”, em Le Correspondant, tome deux cent trente-neuvième, Nouvelle série:Tome deux cent-troisième. Paris, Bureaux du Correspondant, 1910, de Émile Faguet. Recordemos, também, a inspiração que tem permitido a expressão “filhos de Rousseau”, servindo de base a títulos de escritos atuais, como o de Filomena Mónica, Os Filhos de Rousseau. Ensaios sobre os Exames, (Lisboa, Relógio d’Água, 1997), ou Orgulhosamente Filhos de Rousseau, de António N. Magalhães e Stephen Stoer, (Porto, Profedições, 1998). 1
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damentos da Desigualdade entre os Homens2; como pai da educação e da pedagogia modernas, principalmente através do seu Emílio; como teórico determinante da política moderna, especialmente, mas não só, através do Contrato Social; como figura decisiva na criação e fundamentação da modernidade religiosa, nas vertentes da religião natural e deísmo, de que são peças fulcrais a Profissão de Fé do Vigário de Saboia, inserta no Emílio, e o capítulo “Da Religião civil”, do Contrato Social; e como um dos mais influentes inspiradores da corrente e do perfil do romantismo, quer pela sua filosofia naturalista, quer pelo teor e forma de obras como a Nova Heloísa e as Confissões. É obra! Mas deve referir-se ainda que a importância do autor não emana apenas da natureza substantiva de cada um destes segmentos referidos, mas também da abrangência e do alcance que tiveram. Afinal eles constituem, ainda hoje, a base estruturante da vida das pessoas e das sociedades. Se atentarmos bem, hoje continuamos a viver, sob muitos aspetos, sob o signo deste filósofo genebrino. Conhecendo um pouco dos contornos do tempo que antecedeu o iluminismo, não é necessário um olhar profundo e de grande acutilância para notar uma característica comum aos quatro vetores antes aludidos: todos se regem pelo princípio da inovação e da mudança, transportando em si, a vários níveis, fermentos de clara rutura. Inovação, mudança e rutura, eis os três critérios que alimentaram sonhos, que orientaram a ação e a que aderiram espíritos abertos e inconformados da ilustração setecentista; inovação, mudança e rutura, eis o que gerou medos, pavor e ódios e que orientou combates adversos dos homens anti Luzes e que sustentavam a estrutura ainda reinante. Rousseau foi alvo privilegiado dos ataques destes homens, embora outros tivessem sido também visados com frenesim, como Voltaire, Helvécio, Diderot e a generalidade dos enciclopedistas franceses, etc.Tal privilégio impôs-se facilmente face ao impressionante impulso de inovações, mudanças e ruturas que emanavam das várias dimensões do seu paradigma de pensamento, como eram a Chamamos à colação a avalizada opinião de Claude Levi-Strauss em, “Jean-Jacques Rousseau fondateur des sciences de l’homme”, 1962, em Claude Levi-Strauss, Anthropologie Structurale Deux, Paris, Librairie Plon, 1973, trad. portuguesa de M.ª do Carmo Pandolfo, Antropologia Estrutural Dois, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1976, pp. 41-51. 2
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dimensão antropológica, a política, a religiosa e a educacional. Vamos centrar-nos aqui na primeira, a antropológica, pela maior pertinência para os objetivos desta reflexão e pelas fortes incidências que projeta para as restantes. O escrito que dá primordial conteúdo e sentido à sua antropologia é o Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755), escrito que tentará dar resposta a questões que haviam ficado em aberto no já polémico Discurso sobre as Ciências e as Artes (1750) que fora premiado em concurso lançado pela academia de Dijon, e que teria depois continuidade e aprimoramento no Emílio (1762) e no Contrato Social (1762). Como é sabido, aquele Discurso sobre a desigualdade constituiu, também, resposta a um outro concurso lançado pela mesma academia sobre o seguinte problema: qual a origem da desigualdade entre os homens e se esta desigualdade é autorizada pela Lei Natural. Tal problema da fonte das desigualdades entre os homens convoca nele, de imediato, a necessidade prévia do conhecimento do próprio homem cuja ciência, como reconhece logo na abertura do prefácio da obra, sendo a mais importante de todas, é também a mais atrasada3. Foi nessa base que sentiu necessidade de teorizar as questões que se prendiam com a sua natureza, a sua origem e a sua evolução, lançando desta forma as sementes que lhe trariam tanta glória e tanta maldição. Sobre a questão da natureza, Rousseau romperia com as tradições da filosofia clássica e religiosa, afrontando, inclusivamente, os próprios pares iluministas que mantinham o paradigma clássico e faziam jus ao século da razão. Assim, poria em causa a definição de homem como animal racional, eliminando assim a nobre faculdade do entendimento como sede da especificidade humana. O argumento aparece no raciocínio que desenvolve em tom que não deixa de ser provocatório a vários níveis, como veremos: “Todo o animal tem ideias, uma vez que tem sentidos, combina mesmo as suas ideias até um certo ponto, e o homem não J.-J. Rousseau, Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, trad. portuguesa de M. de Campos, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1976 (imp.), p. 15. Usamos esta edição, exclusivamente, pela maior facilidade de acesso dos leitores. 3
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se distingue a este propósito do animal senão como se distingue o mais do menos. Alguns filósofos têm até dito que há mais diferença dum determinado homem para outro homem determinado do que dum determinado homem para um animal determinado”.
A alternativa à consagrada racionalidade surge de seguida, e não ostenta menor ousadia: “Não é pois tanto o entendimento que faz entre os animais a distinção específica do homem, mas a sua qualidade de agente livre. A natureza manda todos os animais e o animal obedece. O homem experimenta a mesma impressão, mas reconhece-se livre de concordar ou de resistir; e é sobretudo na consciência desta liberdade que se mostra a espiritualidade da sua alma”4.
Mas não ficam por aqui nem o perfil da especificidade nem a acometida ousadia, acrescentando outra diferença que havia de gerar enorme controvérsia e pôr em polvorosa os teólogos da ortodoxia. Eis o excerto: “(…) há uma outra qualidade mais específica que os distingue e acerca da qual não pode haver contestação: é a faculdade de se aperfeiçoar, faculdade que, com a ajuda das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e reside entre nós tanto na espécie como no indivíduo, enquanto um animal é no fim de alguns meses o que será toda a vida e a sua espécie no fim de mil anos será o que já era no primeiro desses mil anos”5.
Ser livre e perfectível é, então, a seu ver, o que constitui a essência de ser homem e o que distingue, em absoluto, o homem do animal. Ora, vai ser na superioridade específica de ser perfectível que o homem vai encontrar, a par do enorme desenvolvimento que conseguiu, os gérmenes da sua própria desgraça.
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Ib., p. 33. Ib.
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A primeira frase do Emílio é esclarecedora: “Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas: tudo degenera entre as mãos do homem”6. Não difere muito da fórmula usada no Contrato Social e que abre o primeiro capítulo: “O homem nasceu livre e em toda a parte vive aprisionado”7. Assim sendo, na busca do conhecimento do homem para determinar a origem da desigualdade e saber se esta é compatível com a Natureza, Rousseau confrontar-se-á com dificuldades metodológicas de difícil superação assentes na circunstância de o homem atual se encontrar de tal forma desfigurado que não lhe permitiria obter nele essas respostas, necessitando, por isso, de recuar à sua situação originária: o homem autêntico, não degenerado, não aprisionado, o homem primitivo sem máscaras, sem as desfigurações que impedem auscultar a sua essência, o homem selvagem, o homem-natural-da-natureza, por oposição ao homem social existente, irreconhecível por desnaturação. Se partisse do existente, seria partir e insistir no falso, o que só produziria mais falsidade, como acontecia com as ideias feitas e com os saberes já elaborados sobre essa matéria. Desta forma, o importante e a via a seguir seriam encontrar na multiplicidade das mudanças e das máscaras existentes, o que permanecia comum na constituição humana, e isso sim, seria condição de essência. Façamos alguma hermenêutica consequencial do que atrás ficou dito: Antes de mais, e sem entrar na análise que o autor faz sobre as questões do método, digamos desde logo que ele deu primazia a uma metodologia de teor genético, através de uma perspetivação claramente histórico-social. Nesta base, o segundo Discurso é um tratado sobre a origem e desenvolvimento dos homens, apresentados segundo um paradigma completamente diferenciado do paradigma bíblico, sem qualquer recurso à revelação e ao poder divino, tornando-se, pois, nas palavras
J.-J. Rousseau, Oeuvres Complètes [O.C.], Édition publiée sous la direction de Bernard Gagnebin et Marcel Raymond, S.l., Éditions Gallimard, 1969, IV vol. [5 vols, 1959-1995], p.145. 7 Id, O Contrato Social, Mem Martins, Edições Europa-América, trad. de Leonaldo Manuel Pereira Brum, 2.ª ed., 1986, p. 17. Serve, aqui, a mesma justificação da nota 2 para uso desta edição. 6
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de Jean Starobinski8, uma “versão laicizada, desmistificada da história das origens”. Eis uma boa razão para justificar o ambiente persecutório que a obra e o autor sofreram muito cedo, faltando ainda sete anos para o aparecimento das que mais temores e obstaculizações haviam de gerar: o Emílio e o Contrato Social. Mas regressemos à hermenêutica: Na caracterização do homem natural, Jean-Jacques não encontrará, para além das diferenças específicas antes enunciadas, diferenças de monta entre as espécies homem e animal, a não ser uma organização mais perfeita no primeiro e mais fortaleza e agilidade, na generalidade, no segundo. E isto não só no que ao homem físico dizia respeito, mas também ao homem espiritual e moral. Como já atrás ficou citado, Rousseau considerava, acompanhado por autores de renome, como o seu admirado amigo abade de Condillac, que os animais, também tinham ideias e capacidade de as combinar. O homem selvagem começará, portanto, pelas funções puramente animais; perceber e sentir será o seu primeiro estado, situação comum a todos os outros animais: “Existir, para nós, é sentir; e a nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior à nossa própria razão”, escreve na 5.ª carta a Sofia. Querer e não querer, desejar e temer, serão as primeiras e quase as únicas operações da sua alma, até ao momento em que novas circunstâncias aí produzam novas evoluções9. Quão distante está este homem originário, um quase-animal em que o existir se resolve num mero perceber e sentir e a sensibilidade é anterior à razão, como dirá numa das Cartas Morais10, do da criação divina no paraíso terrestre, obra-prima do Criador! Atentemos agora na expressão utilizada pelo filósofo para nomear a primeira qualidade essencial: “agente livre” (agent libre). Contrariamente à definição clássica de animal racional, este novo homem adquire a qualidade de autonomia e de auto-orientação, subtraindo-se assim, simultaneamente, às dependências da intervenção divina e da fatalidade do instinto. “Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité (Introductions, Notes et Variantes)”, in, J.-J. Rousseau, O.C., op. cit., III vol., p.211. 9 J.-J. Rousseau, Discurso sobre a origem…, op. cit. p. 34. 10 Id., O. C., op. cit., vol. IV, p. 1109. 8
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Duas últimas anotações consequenciais neste campo teológico-religioso: a primeira prende-se com a segunda qualidade específica do homem, a perfectibilidade. Como compatibilizar o ser criado à imagem e semelhança de Deus, portanto perfeito, com esta qualidade específica que faz encarar o homem como ser inacabado e que Rousseau aplica quer ao indivíduo quer à espécie? Cumulativamente considerará tal qualidade como absolutamente incontestável11, quer à luz dos próprios dados recolhidos na época na literatura de viagens de teor investigacional, quer à da própria constatação no homem atual. A segunda tem que ver com o princípio da bondade natural contrastante com o homem social degenerado porque, no seu processo histórico-social, deu mau uso à sua liberdade. Este pressuposto atravessa toda a sua obra, embora com algumas e naturais diferenças de formulação. Apresentemos a que utilizou na polémica que sustentou com o arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, sobre o Emílio. Este havia condenado a obra logo na ocasião em que saiu12; Rousseau respondeu-lhe em extensíssima carta: “O princípio fundamental de toda a moral, sobre o qual refleti em todos os meus Escritos, e que desenvolvi neste último com toda a clareza de que fui capaz, é que o homem é um ser naturalmente bom, amante da justiça e da ordem; e que não existe qualquer perversão original no coração humano, e que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos”13.
Ora, esta postura equivalia nada menos do que a negar a doutrina do pecado original que, como arrazoou com o arcebispo, não só não era matéria contemplada na Sagrada Escritura, portanto carecia de fundamento doutrinário, como, a ser aceite a sua existência, minava os princípios da sabedoria, da bondade e da justiça divinas e obscurecia a própria eficácia do sacrifício supremo de Cristo no ato da Redenção que teve carácter universal! Id., Discurso sobre a origem…, op. cit., p. 33. Tiveram o mesmo procedimento condenatório da obra, na mesma altura, a faculdade de teologia da Universidade de Paris e o Parlamento. Este ordenou que fosse rasgada e queimada publicamente. 13 Id., O. C., op. cit., IV, p. 937. 11 12
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Face a tais “heréticos” posicionamentos que concediam maior importância à lógica da razão do que à autoridade da Igreja e à Escritura, como poderia a teologia ortodoxa ficar indiferente, não odiar, não combater este “ímpio” cristão? Passemos agora com brevidade pelas consequências políticas mais imediatas decorrentes desta visão da essencialidade humana: A partir do sistema antropológico em que Rousseau busca e define o que o homem é, o autor do Discurso sobre a Desigualdade desenvolve o seu esforço no sentido de encontrar um sistema político que legitime uma ordem social que não pode ser evitada enquanto condição de realização da perfectibilidade. Na verdade, sem um processo histórico-social não se poderia cumprir este segundo termo da essencialidade humana. Dito de outra forma, para se realizar a perfectibilidade, o homem-natural-da-natureza tinha de se tornar homem social. Em qualquer dos casos, nesta nova situação deveria manter-se a condição expressa através do primeiro termo da expressão: ser homem: “Homens, sede humanos, é esse o vosso primeiro dever”14, escreve o nosso pedagogo e filósofo na obra que mais dissabores lhe trouxe, o Emílio. Ora, não se pode permanecer homem e, ao mesmo tempo, não cumprir as condições de o ser, e a primeira delas é ser livre. Esta era a qualidade que era presente ao homem originário, ao homem selvagem, ao homem natural; esta era a qualidade ausente ao homem social existente, o homem das máscaras, conspurcado, pois não se pode ser livre sendo-se desigual, sendo-se dependente e sujeito a outros homens e a tiranias. O sistema alternativo ao atual, a construir, nunca poderia permitir a alienação da liberdade. Rousseau mostrar-no-lo-á na sociedade que delineia para o seu Contrato Social, onde o homem natural primitivo e o homem social existente se converterão em homens-naturais-da-cidade. Nesta sociedade, não se poderá obedecer a homens mas a leis, sendo que estas só são legítimas “quando é todo o povo a estatuir para todo o povo”15, para que ninguém aliene a sua liberdade e não obedeça senão a si próprio. Eis porque este cidadão de Genebra não gostava da realeza existente nem da realeza em geral, pois a considerava sinónima 14 15
Ib., p. 302. Id., O Contrato Social, op. cit., p. 47.
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de opressão. Os reis continham em si os gérmenes do despotismo, pois sempre queriam concentrar em si toda a soberania. Aliás, na obra Considerações sobre o Governo da Polónia afirmará a incompatibilidade entre hereditariedade no trono e liberdade na nação. Diga-se ainda, relativamente a este segmento político, que, embora amante da paz, valor que enaltece na educação do seu Emílio, o autor do Projeto de Constituição para a Córsega não elimina a possibilidade das revoluções dos povos contra aqueles que os querem tiranizar, se essa for a única forma de garantir a essencialidade de se ser homem e cidadão em vez de se ser escravo. Que mais será preciso dizer para se entenderem os medos e os ódios das monarquias absolutistas e seus suportes a este perigoso fomentador da destruição de tronos? Já referimos que Jean-Jacques não foi alvo único destes malquereres políticos e religiosos. Era enorme a legião dos que queriam a mudança: Voltaire, Diderot, Helvécio, d’Holbach, Volnei, Montesquieu, Du Marsais, etc. Mas, sendo o que potenciou mais mudanças, tinha de ser, também, um dos que mais ações persecutórias concitou. Acresce a isto que, mais que o intento em definir e conhecer a história do homem natural, foi sua preocupação primordial realizar o seu perfil através de uma nova política, uma nova moral, uma nova religião e uma nova educação. Foi a este desafio que responderam os projetos das obras que se seguiram ao Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens. É reconhecido que os sistemas inibitórios e repressivos das liberdades de expressão tiveram em Portugal e na Espanha os pilares mais sólidos e agressivos de toda a Europa, tendo na inquisição a base mais sistemática e consistente. Foi estratégia fundamental desta repressão a estreita ligação colaboracionista entre o trono e o altar que, promiscuamente, faziam coincidir interesses, fins, organização, responsáveis e métodos. Em Portugal16, desde a rocambolesca história das negociações com Roma do A literatura do tema é abundante, mas, saber mais do tema em leitura rápida, podem ler-se: Raul Rego em, Os Índices Expurgatórios e a Cultura Portuguesa (Lisboa, Biblioteca Breve – Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982) e Graça Almeida Rodrigues em, Breve História da Censura Literária em Portugal (Lisboa, Biblioteca Breve – Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1980). 16
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perfil da inquisição a adotar no nosso país, até aos famigerados Índices expurgatórios em que nos tornámos triste modelo em toda a Europa e até na Santa Sé17 e às sucessivas reorganizações do aparelho inquisitório, tudo nos mostra como os poderes político e religioso gastaram a maior parte da sua energia e cabedal em autodefesa. Situando-nos na última fase, que é a que mais nos interessa no momento, recorde-se que a criação pelo Marquês de Pombal da Real Mesa Censória, em 1768, marcou uma nova época que foi sendo refinada, na busca de uma maior eficácia, no reinado de Dona Maria I, com a substituição daquela pela Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros, em 1787, e desta pela censura tripartida do Desembargo do Paço, Ordinário da Diocese e Santo Ofício da Inquisição, em 1795. Ficou célebre, neste trajeto, o meticulosamente preparado Edital de 24 de Setembro de 1770. Antes, um outro Edital de 1769 apelava à autocensura através da catalogação de obras próprias e respetivo envio para a Real Mesa Censória. Visavam-se nos dois editais livros “corruptores da Religião e da Moral, destrutivos dos Direitos, e Regalias da minha Coroa e opostos à conservação e sossego público Da Monarquia”; dirigiam-se os mesmos a “livreiros, impressores, mercadores de livros, universidades, religiões, comunidades, corporações, e pessoas particulares”18. No de 1770 faziam-se constar 122 obras dos autores mais perigosos que entraram “neste Reino por caminhos indiretos, e ocultos”, como se pode ler no trecho introdutório, e muitas delas seriam pouco tempo depois queimadas publicamente na Praça do Comércio, em Lisboa19. Lá estavam na lista, elaborada por ordem alfabética, livros e autores variados onde não faltavam o Marquês d’Argens, com vários títulos, Bayle, Boulanger… e mais para o fim Voltaire, com lista bem carregada, e Thomas Woolston, o último, com Recordamos que o primeiro rol de livros proibidos é de 1547 e que o último a ser adotado antes de Pombal foi o elaborado pelo jesuíta P. Baltasar Álvares, em 1624, considerado a pérola dos róis portugueses, com mais de mil páginas! 18 Edital de 10 de Julho de 1769 (Devassa a todas as livrarias e bibliotecas do reino), In: Arquivo Nacional da Torre do Tombo [A.N.T.T.,], Real Mesa Censória [R.M.C.], Caixa [Cx] 1. 19 Edital de 24 de Setembro de 1770 (Obras proibidas e obras a queimar publicamente), in A.N.T.T., R.M.C.,Cx 1. Pode visualizar-se cópia deste Edital no conjunto integrado entre as páginas 384 e 385 de Fernando Augusto Machado, Rousseau em Portugal…, op. cit. 17
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a célebre obra A Discourse of the Miracles of our Saviour. De Rousseau, o Émile ou de l’Éducation, as Lettres Écrites de la Montagne, a Julie ou la Nouvelle Heloïse, o Du Contrat Social ou Principes du Droit Politique, a Lettre de [à] Mr. de Beaumont Archevêque de Paris e as Obras Diversas, Obras Completas ou Miscelâneas que integrassem aquelas ou excertos delas. Embora também com intuitos políticos e não raro com interesses económicos como motivação, as matérias visadas na atuação dos mecanismos de censura e inquisição eram inicialmente, de uma forma geral, de teor religioso e moral. Pombal continuou a não descurar estes últimos aspetos, mas deu o maior peso a uma interesseira leitura ideológica concentracionária, como é sabido. Mas os acontecimentos revolucionários de França, em 1789, pressionaram por toda a Europa uma profunda mudança na apreciação dos objetivos a visar. Relevaram-se, então, as necessidades de defesa do trono e do altar. Portugal não foi exceção. Foi, aliás, depois da revolução francesa que o Contrato Social do filósofo francês foi levado mais a sério e teve mais medidas cautelares e persecutórias por todo o lado, já que antes era visto como pouco perigoso por ser demasiado utópico e irrealista. Pura ilusão, como ilusória foi a convicção da eficácia do aparelho repressor! As ideias dificilmente têm muros que as possam estancar. Por isso, numerosas entradas de livros e folhetos proibidos foram acontecendo em Portugal devido a várias ineficácias do sistema proibitório e repressivo, a estratagemas de livreiros, editores e leitores e a mecanismos de permissão de leitura e posse em determinadas circunstâncias. Acrescente-se a tudo isto a circunstância das invasões francesas que permitiram, por vias e circunstâncias diversificadas, uma enorme potenciação do conhecimento e difusão daquelas ideias. Paralelamente, o poder político tornava-se, progressivamente, alvo mais direto e apetecido de ataques. O tempo começava a ser outro, e as mortes por guilhotina de Luís XVI e Maria Antonieta atiçaram tremendamente os medos. A fuga da família real para o Brasil tornou-se, também, um importante fator de abrandamento da censura, nomeadamente à imprensa periódica e à vigília aos inconformados e ciosos da mudança. Até a Igreja mitigava as cautelas com a impiedade e o libertinismo político e começava a sofrer 240
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ela própria os efeitos do contágio. Foi nestas circunstâncias que apareceu a lume, assinado pelo secretário e encarregado dos negócios do reino, João António Salter de Mendonça, em 19 de junho de 1817, um Aviso Régio com certa singularidade porque dirigido à hierarquia eclesiástica. Este aviso era, ao mesmo tempo, uma acusação e acometimento de responsabilidades àquele setor social por algo com contornos de evidente natureza política. Nele pedia o primeiro visconde de Azurara àquela hierarquia para que atuasse no sentido de “desviar o rebanho de pastos venenosos” que o clero estava a proporcionar, principalmente os párocos, já que esses pastos eram passíveis de conduzir a nação a uma revolução como aquela “que durante tantos anos perturbou o Mundo e pôs em risco os Tronos, e os Altares, da qual são percursores Escritos ímpios e sediciosos”20. Como é notório, este documento patenteia não apenas um certo laxismo entre os clérigos no tempo precedente, como também algumas aberturas ou até adesões aos novos ideais e, em concomitância, um certo desejo de mudança. Mas o recado legal seria recebido pela hierarquia e as recomendações não se fizeram esperar, veiculadas sobretudo pelos bispos das dioceses ou seus afins. O estudo genérico que já fizemos ao laxismo, indiferença ou até simpatias existentes anteriormente ao aviso referido e às reações a este não nos tinham feito discernir diferenciações geográficas. Quisemos agora, no contexto dos objetivos e do universo preferencial desta revista e da associação que a sustenta, fazer a projeção de alguns dados referentes à particularidade em questão. Os resultados são claros ao mostrarem-nos que, para além das grandes metrópoles e cidades do litoral, mais abertas e atreitas à circulação dos livros e das ideias novas, o interior transmontano, nomeadamente no espaço da diocese mirandesa/brigantina, não passou incólume aos desvios religiosos e às heterodoxias políticas. Desenhamos um quadro inacabado e meramente sintomático destes ínvios percursos em tempos anteriores e próximos à revolução liberal portuguesa de 24 de Agosto de 1820 que pôs fim à inquisição e possibilitou a criação de uma lei da liberdade de imprensa. João A. Salter de Mendonça, “Aviso Régio de 19 de Junho de 1817”, in Jornal de Coimbra, 1918, vol. XIII, n.º LXX, Lisboa, Na Imprensa Régia. 20
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Iniciamos o levantamento relativo a estes desvios através de um reconhecimento registado pelo que foi o vigésimo sétimo bispo de Miranda e terceiro de Bragança, D. António Luís da Veiga Cabral e Câmara (1758 –1819). De facto, a este polémico e muito notado bispo, como iremos ver, não passaram despercebidos os erros heresiarcas que minavam e punham em causa a solidez das autoridades política e religiosa não só no país como no seu bispado. E fê-lo sem perda de tempo, em Pastoral feita sair em 23 de Março de 1794 para os seus padres diocesanos21, menos de um ano depois da sua confirmação na cadeira episcopal e cerca de dois meses e meio após a sua tomada de posse22. O perigo visado nas suas cautelas era o do probabilismo23 e sua moral. O prelado confessava aos padres da sua jurisdição que preferia que eles ignorassem tal doutrina do que a conhecessem sem a reprovarem e repudiarem ou, pior ainda, se lhe concedessem qualquer simpatia ou adesão. O tempo não estava para menos, já que no ano anterior Luís XVI e Maria Antonieta haviam experimentado com a guilhotina os efeitos da revolução acontecida quatro anos antes contra o absolutismo. Aliás, vinha de trás um exemplo bem vivo contra os perigos e contra a indiferença e o laxismo relativamente a esta doutrina, e o prelado conhecê-lo-ia, certamente, muito bem. Protagonizara-o Pombal, relativamente ao conhecido padre oratoriano Valentim de Bulhões. Como é sabido, este vira-se perseguido e sujeito a prisão perpétua em cárcere incomunicável pelo fero marquês, por ensinar em lições de lógica, no ano letivo de 1767-1768, tal doutrina aos seus alunos. Sentira e temera o ministro de D. José que, dar argumentos favoráveis à validade de ter opinião ou poder ser crítico, era criar condições à deterioração da Apud Francisco Manuel Alves, Abade de Baçal, Bragança, Memórias arqueológico-históricas do distrito de Bragança: repositório amplo de notícias corográficas, hidro-orográficas, geológicas, mineralógicas, hidrológicas, biobibliográficas, heráldicas, etimológicas, industriais e estatísticas interessantes tanto à história profana como eclesiástica do Distrito de Bragança (coord. da edição, Gaspar Martins Pereira et al.), Bragança, Câmara Municipal, 2000, tomo II, p. 180. 22 Veiga Cabral foi confirmado como bispo em 17 de Junho de 1793, tendo tomado posse em 5 de Janeiro do ano imediato. 23 Doutrina de raízes muito antigas, dos séculos quarto e terceiro antes de Cristo e representadas sobretudo pelos filósofos gregos Arcesilau e Carnéades que se posicionavam contra o estoicismo e advogavam o ceticismo. Ao pôr em causa as certezas com caráter absoluto, atingiam naturalmente o absolutismo religioso e o político nos seus princípios e nas suas práticas. 21
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autoridade do poder constituído, e por isso reagiu de forma tão intolerante e violenta. Valentim, como diz a história, só seria libertado muitos anos depois, no reinado de D. Maria, afastado que estava o marquês. A lição pombalina foi, então, assimilada por este prelado. Foi no mesmo sentido uma outra Pastoral do mesmo atento bispo, datada de 9 de Novembro de 179824. Alargava agora o âmbito da matéria e do universo a que se dirigia. Advertia todos os diocesanos para os terríveis males que no estrangeiro haviam causado e continuavam a causar as doutrinas ateístas espalhadas, atiçando mentes e vontades para a dissolução dos laços sociais e a deterioração da autoridade religiosa. Apelava por isso, nesta sequência, aos seus padres, para que administrassem aos paroquianos ensinamentos adequados contra os perigosos tempos que se viviam, e exortava uns e outros à sagrada obediência devida à autoridade eclesiástica e à da augusta soberana e seus ministros. Como se vê, a questão do respeito e da obediência às autoridades civis e religiosas era vista como crucial para a preservação do status e para a eficiência da principal estratégia de tal preservação: a cúmplice ligação entre o trono e o altar. Durante a Guerra Peninsular, encontrava-se Veiga Cabral e Câmara afastado da sua cadeira episcopal no seu primeiro degredo, como já iremos ver. Contudo, a guarda contra os desvios não ficou desguarnecida, pois aqueles que fizeram as suas vezes puseram em prática as mesmas cautelas. Tem significado na matéria, por exemplo, a atitude do governador e provisor do bispado, Dr. Paulo Miguel de Morais, quando transmite, em Pastoral de 22 de Junho de 180825, uma forte exortação a todos os transmontanos para pegarem em armas contra os franceses. Sendo esta atitude, naturalmente e antes de mais, expressão de um louvável sentimento patriótico, não há dúvidas que o provisor também pensaria nos malefícios ideológicos da presença dos invasores oriundos da pátria da revolução, militares que traziam os bornais cheios de literatura heterodoxa. Lembramos a intensa atividade que eles ajudaram a dinamizar participando ativamente e emprestando livros para leituras individuais 24 25
Apud Abade de Baçal, Bragança, Memórias arqueológico-históricas… op. cit., tomo II, p. 181. Ib.
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ou em grupo nas tertúlias e saraus levados a cabo no círculo militar de Valença26 que, por sua vez, tinha ligações com grupos da universidade de Coimbra e com grupos de Lisboa. Mas o próprio conteúdo da exortação induz tal cautela, pois que entre os objetivos que apontava, o primeiro era, precisamente, o da defesa da religião. Liga-se, também, a este período do mandato episcopal do prelado que temos vindo a referir, um dos momentos mais agressivos da Igreja bragançana e mirandesa contra os ímpios inovadores e, em decorrência, contra alguns desvios ou a mera passividade, ingénua ou intencional, do corpo eclesiástico em matéria tão sensível. O protagonista será um dos nomes mais sonantes da literatura e da ação apologética quer da ortodoxia religiosa quer da política. Trata-se de Frei Joaquim de Santo Agostinho de Brito França Galvão. Lembremos as circunstâncias que deram ocasião à sua intervenção. Que a inquisição no seu todo não descurou, nas suas atenções vigilantes, estas terras nordestinas, provam-no alguns episódios que gravitaram em torno da figura de Dom António Luís da Veiga Cabral. Tendo nascido em Viana do Castelo em 1758 e morrido em S. Salvador, Mirandela, em 1819, este cidadão de Bragança, local onde foi enterrado27, teve um tão longo quanto controverso mandato de bispo: de 1793 até à sua morte. Com efeito, o exercício deste mandato ficou perturbado por dois interregnos de desterro. Façamos a sinopse dos factos: Considerado santo por uns e louco por outros, este filho do tenente general Francisco Xavier da Veiga Cabral da Câmara, governador das Armas da Província de Trás-os-Montes, fundou dois recolhimentos das Oblatas do Menino Jesus: um, no então concelho de Mofreita de que fora pároco, em 1793, para donzelas pobres, órfãs e desamparadas; outro, no Loreto, em 1794, também para desamparadas, mas de classes noVer Fernando Machado, Rousseau em Portugal…, op. cit., pp. 255 e segs. Para uma consulta biobibliográfica breve podem ler-se: as entradas do Dicionário Bibliográfico Portuguez, de Inocêncio Francisco da Silva (Imprensa Nacional-Casa da Moeda); a sinopse em Abade de Baçal, Bragança, Memórias arqueológico-históricas… op. cit., tomo II, pp. 75 e segs.; o artigo de Fernando de Sousa, “Inquisição e heresia nos finais do século XVIII”, in Revista da Faculdade de Letras do Porto – História, 2.ª Série, vol. IV, 1987, pp. 203-212; ou a Vida de A. Luís da Veiga e Câmara, Bispo de Bragança, por Inocêncio António de Miranda (Manuscrito publicado no Conimbricense, números 2416-2425). 26 27
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bres. Maria de Jesus Manuela foi a escolhida para superiora do primeiro; Domingas de Jesus Vaz, do segundo. O nosso bispo projetou para estes empreendimentos grande parte do seu tempo e muitos bens, próprios e do bispado, com grande entusiasmo. Ora, a vida interna destes recolhimentos, dada a natureza e a intensidade que a caraterizava, trasvazou para o exterior com rumores de milagres, êxtases, estigmatizações, aparições e visões celestiais, conversões, expulsões de demónios e outros fenómenos com chancela de divino. Este conjunto de fenómenos foi considerado por uns, como puras extravagâncias, mas noutros alimentou fervorosas crenças, determinando que o povo começasse a acorrer a esses centros, sobretudo ao de Loreto, de Domingas Vaz, em frequentes e intensas romagens. Esta inusitada religiosidade e movimentação popular movida por crenças pouco ortodoxas e a fama dos boatos relativos ao envolvimento pecaminoso do bispo com as referidas superioras chamaram a atenção da inquisição de Coimbra que interveio, prendendo as «mães» dos recolhimentos que foram sujeitas a celas incomunicáveis e a açoites públicos com pregão28. Na versão mais oficial, teria sido o comportamento pouco recatado e imoral do bispo – pastor tornado lobo! – que teria criado condições ao exercício de pressões no príncipe regente, futuro rei D. João VI, para o afastamento do bispo da sua sede. Mas outras opiniões indicam os jogos de poder que se terão gerado pelas escolhas que o bispo fez para o seu círculo episcopal, escolhas pouco canónicas aos interesses instalados, e a consequente guerra que encetou com a poderosa e influente ordem dos franciscanos. Por uma ou por outra das razões, ou pelas duas simultaneamente, que é para nós o mais consentâneo, o bispo foi instado a sair, o que aconteceu após resistência inicial, indo para Lisboa com destino a S. Vicente de Fora. Foram doze anos de degredo, entre 1799 e 1812, tendo conhecido várias guaridas. O seu regresso e ocupação do lugar foi sol de pouca dura, pois em meados do ano de 1814, nova instância do regente, devida a alguns dos motivos que se repetiram, nomeadamente os da movimentação popular, fê-lo sair de novo, agora para os carmelitas des28
Fernando de Sousa, “Inquisição e heresia nos finais do século XVIII”, op. cit., p. 205.
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calços do Buçaco, até 1818. Ora, foi durante esta segunda ausência, depois de vicissitudes várias que não vamos aqui referir, que foi escolhido como vigário apostólico, com beneplácito do núncio em Lisboa, embora contra vontade do bispo arredado e dos capitulares que permaneciam atreitos à sua autoridade, o abade da Lustosa, Joaquim de Santo Agostinho de Brito França Galvão. Estávamos em 18 de Março de 1817, tendo tomado posse em 13 de Maio do mesmo ano. Não ocupou muito tempo o cargo, pois em Agosto de 1818 o bispo regressava à sua casa episcopal, mas chegou para gerar na diocese forte turbulência. É preciso conhecer um pouco o percurso deste eremita calçado para entender o sentido da sua dinâmica e inconformista atuação. Licenciado em teologia em Coimbra, foi sócio da Real Academia das Ciências de Lisboa e nomeado em 1799 como abade de Lustosa, no arcebispado de Braga. Mais tarde, havia de ser eleito deputado às cortes ordinárias de 1822. Apresenta, também, um significativo e diversificado palmarés bibliográfico na sua carreira intelectual, desde várias memórias insertas em volumes das Memórias da Academia, a obras de cariz mais ideológico como foram as Reflexões sobre o Correio Brasiliense (Imprensa Régia, 1809) e, principalmente, a tradução de um célebre tratado em dois volumes de título, AVoz da Natureza sobre a Origem dos Governos. Trata-se, portanto, de um nome bem notado nos campos do saber e das ideias, quer na sociedade civil, quer na religiosa. Não é ocasião para nos debruçarmos sobre a matéria destes dois escritos, mas queremos fazer uma curta referência ao último pela importância que teve no Portugal da época e para aquilatarmos sobre as suas preocupações político-religiosas e entendermos melhor o sentido da sua ação pastoral em Bragança e Miranda. A relativamente fraca produção nacional de obras de defesa e combate aos bota-fogos da impiedade, do libertinismo e da revolução determinava que fosse a produção estrangeira, sobretudo a que usava a língua francesa, a que constituía o principal esteio de preparação dos apologetas e defensores da ortodoxia religiosa e política. Claro que a maioria da classe intelectual tinha facilidade em entender o francês, mas havia obras que, pela sua enorme pertinência, tinham de atingir um universo mais 246
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vasto. A questão foi entendida por muitos e veiculada por alguns, como foi o caso do tradutor anónimo de O Amigo do Principie, e da Pátria: ou o bom cidadão29 que, em 1779, portanto antes da revolução francesa mas já preocupado com o rumo que as coisas por cá levavam, alertava para a substancial diferença entre os que entendiam as línguas sábias, vivas ou mortas, e os restantes, “o mais ínfimo da plebe” que, não sendo membros inúteis do Estado, careciam de meios preparatórios ao exercício de uma cidadania ativa e eficaz ao sistema geral. Seria paralelo o recado mais tardio de Frei Francisco de S. José que se esforçou por justificar a necessidade de prevenir o povo com instrução de sólidos princípios contra ímpios e libertinos e de promover a indução de atitudes submissas à religião e ao Estado, através de escritos em língua vulgar30. Assim, a escolha de obras estrangeiras para tradução, no contexto nacional que então se vivia, não era aleatória. Pelo contrário, obedecia a uma interesseira intencionalidade recetiva por parte de quem as escolhia e de quem as traduzia ou mandava traduzir. Ora, a opção de França Galvão na escolha e tradução do tratado referido, com o objetivo de ampliar o universo a que se poderia destinar, foi de muito fino critério e vista larga. Trata-se de uma das obras mais importantes que correram em Portugal para tentar suster o caminho ao rumo que cada vez mais se adivinhava e que acabaria por vingar em 24 de Agosto de 1820: a revolução liberal. O livro tenta demonstrar, com argumentos de teor naturalista e aplicação de princípios da religião, a monstruosidade do princípio de que foram os Povos que originariamente estabeleceram os governos e mostrar que a igualdade de direitos é impossível pela ordem natural. Nessa base, investe contra o Contrato Social e seus absurdos e quimeras, o maior dos quais é a soberania do Povo, e tece uma violenta diatribe contra a generalidade das teorias de J.-J. Rousseau. Considera o desconhecido autor que tal diatribe é a via mais apropriada A obra foi editada em Lisboa, na Tipografia Rolandiana, em 1779. O título original do livro é, L’Ami du prince et de la patrie, ou le bon citoyen, e é de François de Sapt que o escreveu em 1770. 30 Fr. Francisco de S. José, Dissertação – O complemento da ordem natural é o seu Supremo Artífice, em quanto autor sobrenatural, concorrendo com a sua imediata Providência, Lisboa, Na Offic. de Simão Thaddeo Ferreira, 1797, p. IV. 29
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para esmagar sementes de revolução como as que haviam germinado em França, sementes que considera sobretudo espalhadas pelos escritos do filósofo francês. Mas o nosso abade não se contentou com teorias desenvolvidas por outros e enriqueceu o texto com expressivas e às vezes extensas notas complementares ao texto, em rodapé. Religião, política, obediência, autoridade, estado de natureza, igualdade, são conceitos a que recorre com intenções e marcas ideológicas para potenciar os efeitos do texto originário e dar mais som e amplitude ao “grito da experiência” contra o Contrato Social. Fornecemos um exemplo dos seus contributos militantes e apologéticos versando a questão da impossibilidade da igualdade de direitos contrária à religião e conducente à anarquia e à revolução: “Quando por desprezo da Autoridade se cai em Anarquia, esta desordem é obra do homem; se porém Deus tivesse deixado os homens um só dia sem Autoridade, esta Anarquia teria sido obra de Deus. Como pois se pode supor, que Deus deixou os homens em Anarquia por séculos? E como podem raciocinar segundo estas hipóteses os que reconhecem um Deus Criador, Legislador e Providente!! Semelhantes sistemas têm mais conexão com o Ateísmo, do que parece à primeira vista. Estas Teorias Jurídicas e as da Irreligião, datam dos mesmos tempos, e produziram sempre os mesmos efeitos. A última revolução da França o comprova evidentemente”31.
Pois bem, foi um conhecedor atualizado e proactivo militante destes que foi parar às terras de Bragança e Miranda para desempenhar a autoridade eclesiástica vaga pelo bispo Veiga Cabral e Câmara em ausência forçada. O seu espírito combatente e ordenado levou-o a exercer ação rápida e incisiva na jurisdição respetiva, na linha do que foram sempre as suas preocupações, quase obsessões, e do que eram, também, as preocupações do poder de então. Com efeito, ditou o acaso e a necessidade que pouco mais de um mês passado sobre a sua tomada de posse, aparecesse Nota a: A voz da natureza sobre a origem dos governos. Tratado em dois volumes, traduzido [por Joaquim de S. Agostinho França Galvão] da segunda edição francesa publicada em Londres em 1809, Lisboa, Na Impressão Régia, 1814, pp. 37-38. 31
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o Aviso Régio de 19 de Junho de 1817, a que anteriormente nos referimos, sobre os perigosos desvios consentidos ou proporcionados pelos párocos e provocados pelos escritos ímpios e sediciosos. De imediato o abade e agora vigário Galvão França, arvorado em obediente indefetível à causa do poder, faz emanar, bem à medida das intenções do pedido, uma Pastoral de cumprimento a esse Aviso Régio. Deu-a a lume em 30 de Setembro desse mesmo ano de 1817. Trata-se de um texto áspero e veemente e ao mesmo tempo obscuro, delator e inquisitório, de convite à devassa. Foi enviado ao Vigário da Vara de Miranda, aos RR. Arciprestes e Párocos do bispado, e nele apelava a que se enviassem denúncias relativas a qualquer sacerdote, secular ou regular, que ousasse ensinar, propagar ou praticar “teorias perniciosas, e absurdas do moderno Filosofismo, tendentes a substituir a impiedade à Religião, a anarquia ao império civil”. O Vigário Apostólico sentia-se constrangido a “acudir a males tão grandes e de tantas consequências” decorrentes de tais erros que se iam introduzindo na “Casa do Senhor”, e muito concretamente no seu território episcopal. Mostrara-lhe a análise que tais erros eram, por vezes, fruto de ignorância, mas outras vezes eram-no de perversidades do coração de alguns sacerdotes “indignos de tão honroso nome” que espalhavam aquelas e outras doutrinas e máximas “pouco ajustadas ou de todo contrárias à Santa Igreja”, nascidas de “lobos disfarçados com peles de ovelhas”, de “falsos profetas”, de “monstros ferozes da impiedade, da Rebelião e da anarquia” contra a obediência, a subordinação às autoridades civis e religiosas, a harmonia da sociedade cristã e da sociedade civil. Para cúmulo, dizia-lhe agora a observação feita e ouvida, esses erros “de certos sistemas de nova data na Igreja universal” eram espalhados através de abusos indevidos “do ministério da palavra, e do poder das Chaves”, quer em púlpitos, quer em confessionários, realidade que lhe repugnava e com a qual não podia de maneira nenhuma pactuar32. Se não é difícil imaginar o alvoroço, a apreensão e o mal-estar que esta orientação pastoral, de caráter geral, terá causado no corpo eclesiástico da diocese transmontana, imagine-se a potenciação desse senJoaquim de S. Agostinho França Galvão, Pastoral do R.Vigário Apostólico de Bragança para participar o Aviso Régio de 19 de Junho de 1817, de 30 de Setembro de 1817, ib., pp. 152-156. 32
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tir face a uma outra Pastoral que o mesmo vigário apostólico dirigiu expressamente a “todos os RR. Párocos, e mais Eclesiásticos deste Bispado”, precisamente na mesma data33. A linguagem continuou a ser de uma crueza e violência inauditas relativamente à classe a que também pertencia. O pressuroso e culto teólogo verberava aqueles seus pares que pensavam que bastaria uma ordenação sacerdotal, estribada em meros conhecimentos de gramática latina e em breves noções em matérias sacramentais, para desempenharem, nos inquietos tempos que corriam, o ofício em que eram profissionais. Considerava mesmo que “este modo de pensar é já em si mesmo o efeito da mais grosseira estupidez” e que a missão em que estavam envolvidos não podia permitir que “algum seja perfeitamente iletrado, ignorante e idiota”, incapaz de projetar a “Sabedoria de Deus em triunfo sobre as ruínas da Idolatria, e de todos os delírios do espírito humano”. Era seu convencimento e dos que regiam o supremo poder religioso e político que “se deve atribuir sem dúvida à decadência do Estado Sacerdotal uma grande parte dos males, que oprimem há longo tempo, a Igreja, e o Império”. Como se vê, o sócio da Academia e governador do bispado não poupou na ousadia da linguagem que pintou com cores de intolerância e agressividade e sem rebuço nem temeridade fixou a acusação e a responsabilização dos seus companheiros de ofício. E dada a sua diligência, supomos que não se trataria de representações abstratas ou temores fictícios e vãos, mas de imagens construídas nas visitas que tivera oportunidade de fazer previamente. Por isso, atingia no retrato que traçava, o “Clero das Cidades, ou dos Campos” pela “pouca instrução de muitos deles, e o seu modo de pensar, e de viver” em dias tão calamitosos em que “se vê a impiedade penetrar no Santuário, e a abominação no lugar santo”! Ora, escreve o exigente vigário, “A Igreja não pode ver com indiferença uma ordem de coisas contrária à sua constituição Divina; e de todos os males que a podem afligir, nenhum a consterna tanto, como a corrupção moral, Id., Pastoral que recomenda a instrução ao Clero do Bispado de Bragança, etc., 30 de Setembro de 1817, ib., n.º LXXI, pp. 179-187.
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e a ignorância dos seus Ministros: porque até a heresia, e o cisma, que atacam a sua doutrina, e unidade, dessa ignorância, e corrupção nascem quase sempre, ou a ela devem seus mais deploráveis triunfos”34.
A situação que Galvão encontrou na diocese, por ele julgada como calamitosa, além de conselhos e insinuações exigiam-lhe medidas concretas e precisas, e essas foram igualmente lavradas nesta missiva. O decreto que preparou, e com que terminou a Pastoral, requeria-lhe coragem e fundamentos externos com marca da palavra divina que preservassem a sua autoridade. Por isso o preparou previamente na letra do texto que foi construindo. Neste sentido, objetivada a matéria dos indevidos caminhos e dos sujeitos que os trilhavam, evocou ameaças ditadas pelas vozes consagradas do Antigo e do Novo Testamento: “(…) a sentença está dada: é dos Profetas, e Apóstolos: tremei: compadecei-vos das lágrimas da Igreja vossa Mãe: poupai-lhe grandes pesares: condoei-vos de vossos concidadãos; porque esta ignorância, e esta imoralidade, de que vos não escusais, cedo ou tarde fará cair sobre a terra em grossos turbilhões a ira do Céu tão indignamente ultrajado”35.
Em seguida, justifica e dá sentido às duras normas que irão sair da sua pena, através da evocação do imperativo que emerge das funções com que está investido e da própria consciência que o repele da indiferença e da cumplicidade com uma situação que prejudica o mandato divino do trono e a sacralidade do altar: “Sacerdotes, que por vossos escândalos vos fazeis dignos da minha censura, não estranheis o meu zelo, escutai a minha voz; se for preciso, eu levarei ao mais profundo de vosso coração a amargura, e o remorso: Deus é testemunha da pureza de minhas intenções; estou longe de querer magoar vossas pessoas, ou macular vossa fama, e ainda mais de comprometer vosso Ministério: 34 35
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porém o mal tem lançado tão profundas raízes; o escândalo é tão público, e tão enorme; tal é a vossa indolência; que eu me julgaria cúmplice da vossa perversidade, e envolvido na vossa desgraça eterna, se não vos despertasse de vosso profundo letargo, e a altos gritos vos não bradasse com a mesma força, e intrepidez com a mesma veemência, e assiduidade, com que soa aos meus ouvidos o Divino Mandamento Clama ne cesses… esto vigilans, et confirma”36.
E conclui, antes de prescrever o conjunto de cinco medidas, provisórias mas bem concretas, com vista à moralização e à indispensável instrução própria e dos paroquianos, que não vamos aqui especificar, mas que facilmente se adivinham pelo que as precede: “Obediente á sua voz, e persuadido há muito da necessidade desta medida, eu cuidarei por todos os meios, que estiverem ao meu alcance, em promovê-la, sem respeitos humanos, sem considerações estranhas ao meu Ministério. Para cumprimento pois do meu dever nesta parte, eu tenho procurado, e conseguido restabelecer o Seminário Episcopal; procederei na Ordenação do Clero com a mais cautelosa reserva, e circunspeção; suspenderei das funções Sacerdotais os que por ignorância, ou maus costumes não forem dignos de as exercitar; farei examinar todos, e com o preciso rigor os Sacerdotes que requererem licença para Celebrar, Confessar, e Pregar: e enquanto, não se dão providências a outros respeitos, ordeno o seguinte (…)”37.
Ignorantes, imorais, indiferentes, culpados do estado religioso e político degradados, mais caçadores e lavradores que clérigos, rudes, de vestuário sórdido e asqueroso… são algumas expressões a que França Galvão recorre para caraterizar o seu rebanho de elite! Para além do alvoroço e mal-estar atrás referidos, é também fácil imaginar as malquerenças e até os ódios e desejos de vingança que estes ditames terão feito nascer na acomodada classe clerical da circunscrição 36 37
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de Bragança e Miranda. De facto, o seu mandato foi curto, até Julho de 1818, mas bastou para despertar no corpo clerical saudades do bispo desterrado que acabaria por entrar de novo em Bragança em Agosto de 1818, apesar da ordem régia para regresso fosse de Fevereiro. Provam-no as recalcitrações contra ele do deão e de alguns capitulares que não deixaram, por isso, de sofrer consequências com afastamentos38. Mas não versaremos o assunto aqui. De qualquer forma, é importante reter a ideia de que a apreensão e ações do vigário não se fundaram em meros fantasmas de impiedade religiosa e de subversão política. Estas andaram por lá, e em algumas ocasiões, protagonizadas pelos próprios clérigos. Veiga Cabral morreu a 13 de Junho de 1819, e o bispo que lhe sucedeu, D. José Maria de Santana e Noronha, quarto de Bragança e vigésimo oitavo de Miranda, só tomou o lugar em 24 de Setembro de 1824, depois de prolongada vacância. Nessa altura, já a revolução liberal se havia concretizado há quatro anos e um mês. Não falaremos já nele, por ultrapassar o âmbito do nosso estudo, mas não queremos deixar de lembrar que, antes de ocupar a cadeira episcopal, foi também um espírito que se mostrou muito preocupado com os desvios com que os inimigos do trono e do altar punham em perigo a ortodoxia política e religiosa. Com efeito, este eremita de S. Paulo, doutor em Teologia por Coimbra e pregador régio, escreveu um livro, com muita pertinência nesta matéria, que teve reconhecimento bastante na época em que saiu. O escrito apareceu em 1811, já depois da derrota do general Massena na terceira invasão francesa, mas resultou de reflexões feitas antes, “em discursos vocais” no tempo do estertor da guerra e a partir da Cadeira do Evangelho, em defesa da pátria e da Casa de Bragança, como o título bem patenteia39. Aí se posiciona o futuro bispo transmontano com veemência contra o delírio do “furioso” invasor Napoleão, verdugo dos Portugueses, mas também conFoi devido a este afastamento que o bispo demorou mais a fazer a sua entrada em Bragança, pois se recusou a fazê-la enquanto os afastados não regressassem aos seus lugares de origem. 39 Frei José Maria de Noronha, Discurso Moral, e Patriótico, em que por motivos de religião, se mostra, que os portugueses devem ser fieis à Casa de Bragança, como soberana legítima de Portugal. Oferecido a S.A.R. e Príncipe da Beira o Senhor D. Pedro de Alcântara, Lisboa, Na Impressão Régia, 1811, p. 20 38
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tra as vozes incendiárias de sacrílegas gargantas, em texto que não ilude a presença de Rousseau e onde o materialista Helvécio adquire condão de explicitude. Esta curta excursão fornece-nos muitos elementos informativos, alguns passados aqui quase em claro. Mas há um que nos interessa realçar e que é muito flagrante: no interior de Portugal, por terras de Trás-os-Montes, também grassou, em tempos de acutilante censura, a heterodoxia de cariz religioso e político. Provam-no estas medidas não só cautelares, mas também disciplinadoras e até coercivas, que tivemos ocasião de mostrar. Mesmo assim, elas não impediram o seu alastramento. E o mais curioso é que este alastramento não se deveu apenas à indiferença, ao relaxamento e à falta de eficácia no seu combate, mas também à atividade de alguns agentes, não faltando entre estes, membros do próprio clero, alguns por curiosidade, certamente, mas outros por inconformismo e movidos por desejos de mudança. Refira-se que o cabido de Bragança, em 7 de Abril de 1821, haveria de mandar uma mensagem às cortes, de regozijo e graças, por estas trazerem Portugal ao seu lugar primitivo e ao seio da Europa, não tendo pejo em lastimar o passado recente da Igreja a que pertenciam. Esta e outras posições afins, vindas de uma classe quase sempre e generalizadamente apegada a princípios e valores de cariz tradicionalista, provam claramente que, de facto, não há muros que consigam impedir a circulação de ideias, nem distâncias ou interioridade que as possam evitar.
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Republicanas transmontanas Fina d’Armada* Resumo – Este trabalho reúne 5 republicanas transmontanas de três concelhos – Alfândega da Fé, Carrazeda de Ansiães e Bragança. Uma delas foi feminista (e naturalmente com ideais republicanos), reconhecida em Lisboa já em 1906 – Maria Ermelinda Ferreira. Duas foram as bordadeiras da bandeira republicana “oficial”, que flutuou na Câmara de Alfândega da Fé e depois encabeçou a grande manifestação de vitória pelas ruas – Ema Costa Pessoa e Etelvina de Almeida. As outras duas – Áurea Judite Amaral e Sofia Cândida Ribeiro Freitas – foram sócias da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. A presidente da Liga, Ana de Castro Osório, por coincidência, encontrava-se com o marido no concelho de Alfândega da Fé quando se deu a implantação da República. Palavras-chave – Primeira República; Republicanas transmontanas; Contributos. Abstract – This article brings together five republican women transmontanas from three municipalities – Alfândega da Fé, Carrazeda de Ansiães and Bragança. One of them – Maria Ermelinda Ferreira - was a feminist (with republican convictions), well recognized in Lisbon around 1906. Two of them – Ema Costa Pessoa and Etelvina de Almeida - were the embroiderers of the ‘’official’’ republican flag, which was first lifted at the Town Hall of Alfândega da Fé and later headed the grand victory celebration along the streets. The other two – Àurea Judite Amaral and Sofia Cândida Ribeiro Freitas – were members of the Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. Coincidently, the president of the Liga, Ana de Castro Osório and her husband, were in the municipality of Alfândega da Fé, when the establishment of the Republic occurred. Keywords – First Republic; Women republicans transmontanas; Contributions.
______________ * Historiadora. CEPIHS | 2
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Apesar de tardiamente terem chegado a Trás-os-Montes as escolas para raparigas, o certo é que mulheres se foram escolarizando. Algumas, das mais inteligentes e cultas, conseguiram distinguir-se a nível nacional ou foram referidas nos jornais. As transmontanas referidas neste artigo distinguiram-se na luta por ideais republicanos, pelos direitos das mulheres e pela melhoria da condição das professoras no ensino. 1 – A primeira transmontana feminista Maria Ermelinda Ferreira (Palácios, 13.06.1874 – Palácios, 9.03.1966)
Esta professora, nascida no concelho de Bragança, foi pioneira em três frentes: na defesa dos direitos da mulher (sendo conhecida como feminista em Lisboa em 1906), na defesa dos direitos das professoras (já em 1905), sendo também das primeiras mulheres de Bragança a saber ler. É provável também que tivesse sido a primeira professora primária da região. Não se sabe onde se formou, pois Fig. 1 – Maria Ermelinda Ferreira a Escola Normal de Bragança foi criada em (Revista do Bem, 15.12.1906) 1896 e Ermelinda foi provida como professora, na freguesia de Babe, em 7 de Janeiro de 1895. Na sua carreira de professora, foi provida definitivamente em 1898, passando à 2.ª classe em 1901. Apesar de estar distante da capital, houve jornais que publicaram elogios à sua acção, escritos pela família de alunos que ela preparava. A sua fama chegou a Lisboa, em 1906. A Revista do Bem publica o seu retrato e suas ideias feministas. Não se lhe conhece atividade republicana, mas todas as feministas eram republicanas, eram ideias enlaçadas. O que nunca deve ter sido é anticlerical. Maria Ermelinda Ferreira era filha de Manuel António Ferreira, de Babe, e de Ana Maria Fernandes Barreira, de S. Julião de Palácios, freguesias do concelho de Bragança. Teve como padrinhos de baptismo o 256
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P.e Manuel Fernandes Barreira, Reitor de Milhão, e Ermelinda Maria. Seus pais eram importantes proprietários agrícolas de Palácios. A família ainda conserva parte da biblioteca de temas religiosos reunidos por cerca de 8 clérigos desde o séc. XVII até ao início do XX. Teve três irmãs professoras mais novas, mas nenhuma se lhe equiparou em inquietação intelectual. João Chagas fez uma investigação, sobre instrução, com dados de 1900. Citando Júlio Simon, “Instruir uma mulher é abrir uma escola”, refere que de 2.831.132 portuguesas, apenas 425.287 sabiam ler. Analfabetas em 1900 – 85%. “No distrito de Bragança, há 12 freguesias, em cada uma das quais só uma mulher sabe ler, e, em sete freguesias, nenhuma o sabe”1. A ser verdade, Maria Ermelinda Ferreira era realmente a luz da instrução num meio sem escola para as raparigas. A Revista do Bem, no texto dedicado a esta transmontana, conta que o professorado, em 1905, havia feito subir ao Parlamento ou ao ministro uma representação da classe. Solicitavam a supressão do ensino de rudimentos da agricultura às raparigas e propunham que se excluíssem as mulheres da regência de escolas masculinas. Ermelinda Ferreira “pôs-se denodadamente em campo a protestar contra esta segunda conclusão, formulando, com as demais colegas do distrito, uma contra representação que fundamentou com razões, que se não eram as mais sólidas, não deixavam por isso de ser de muito peso”2. Isto significa que, em 1905, já havia várias professoras em Bragança. Estas professoras lutavam pelo emprego, pois, até à República, só existiram quatro escolas femininas no distrito, criadas em 1902, duas em Bragança e duas em Macedo de Cavaleiros3. A revista estranha que as signatárias argumentassem que se julgavam tão aptas como os colegas masculinos para “dar aos pequenos a educaJoão Chagas, Cartas Políticas, carta de 1.03.1909, vol. I, Lisboa, ed. João Chagas, 1909, pp. 200-201 2 “D. Maria Ermelinda Ferreira”, in Revista do Bem, Lisboa, 15 de Dezembro de 1906, p. 3. 3 Vítor Alves, Construção e Materialização do Ideário Republicano no Distrito de Bragança (18701930), comunicação feita aquando das Comemorações do Centenário da República, Arquivo Distrital de Bragança, 28.10.1910. 1
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ção que é precisa para neles despertar o instinto da combatividade”. A revista lamenta que “o professorado primário não saiba ou não se lembre que já não estamos no tempo em que a ocupação natural do homem se julgava ser a de batalhar e combater contra o próprio homem”. Em 1906, reinavam ideias pacifistas. Mesmo assim, a Revista do Bem, que era uma revista quinzenal de propaganda moral e educativa, elogia esta professora. Ela é a segunda a ser elogiada, após um professor de Mafra. Lê-se nessa revista que não sabia em Fig. 2 – Frontispício do livro de sonetos Entardecer, que publicou aos 77 anos, que jornal pedagógico se lhe deparou onde continua a considerar-se feminista um artigo de Maria Ermelinda Ferreira, “o qual se nos afigurou logo ser o de uma pessoa criteriosa e trabalhadora. O conhecimento, que depois pudemos travar com outras produções dessa pessoa, acabou de nos convencer do fundamento da nossa suposição, dando-nos mais a saber que ela, além de professora conscienciosa e de talento, era duma entusiasta, se bem que desconhecida escritora feminista”. É na freguesia de Babe, “nas horas minguadas de folga deixadas pela trabalhosa e árdua ocupação, que ela escreve as suas ponderadas considerações sobre questões de ensino e sobre o problema, que podemos considerar em via de solução, e que se denomina «feminismo»”. A revista refere que “isso tem feito em vários dos seus escritos, que pena é não serem mais numerosos e não terem uma publicidade maior, mais apreciável”. “Se eu fora uma escritora consumada, o meu ideal seria o levantamento do meu sexo. Demonstraria ao mundo civilizado que a mulher não tem só o coração bem formado, mas também, como o homem, o cérebro. Levantá-la-ia ao nível dos bons, dos ilustrados e dos competentes, e elevá-la-ia muito acima desses egoístas que não se cansam de cantar a nossa incompetência”. 258
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Apesar de ideias feministas e progressistas (com 84 anos Maria Ermelinda ainda apoiou Humberto Delgado), foi sempre muito religiosa, talvez devido aos padres da família e de se corresponder intensamente com o Abade de Baçal. Benemérita local, foi ela que doou parte das imagens religiosas da igreja de Palácios. Possuidora de criatividade plástica, bordava com escamas de peixe elaboradas composições sobre veludo e pintava com tinta da china monogramas em lençóis de linho. Literariamente, fez recolhas de cultura popular e publicou um livro de poemas, Entardecer, em 1951. É extraordinário que aos 77 anos, em Bragança, se considere ainda feminista. Isto era de grande arrojo, pois o Conselho Nacional de Mulheres Portuguesas havia sido encerrado e proibido, em 1947, e o feminismo mal visto e considerado subversivo. Eis o soneto “Mulher Moderna: Hoje a mulher moderna fuma e joga, Cavalga, guia o carro e vai à caça, Nada e rema, e faz quanto esteja em voga Não se importando do que em casa passa. Em leituras banais se atola e afoga; Ama um cão pequenino, um cão de raça; Aos perfumes, ao ruge e ao baton roga Que lhe conservem todo o encanto e graça. Eu fui e sou feminista. Adoro aquela que um lugar conquista No trabalho, nas letras, na ciência, A que imita o homem no que tem de são; Mas a que imita os vícios… essa não! Pois essa escorregou para a demência”. (Entardecer, p. 137).
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No Dicionário de Educadores Portugueses, diz-se que Maria Ermelinda Ferreira tem colaboração dispersa nos periódicos Civilização Popular, Escola Transmontana, Gazeta Bragança, Legionário Transmontano e Revista das Escolas. Faleceu solteira, com 91 anos. O município de Bragança atribuiu o seu nome a uma rua da cidade. Em 28.10.2010, plantou-se um carvalho em sua honra, no recinto do Arquivo Distrital de Bragança.
Fig. 3 – Plantação dum carvalho, árvore sagrada da imortalidade, da República e da Liberdade, em honra de M.ª Ermelinda Ferreira. O plantador da direita, dr.Vítor Alves, reside na rua M.ª Ermelinda Ferreira
2 – Ema Costa pessoa – bordadeira da bandeira republicana (Alfândega da Fé, 22.08.1885 – Valverde, 18.04.1941)
Filha de Adolfo Inácio da Costa Pessoa e de Leopoldina Amélia Cordeiro da Costa Pessoa. Seus pais preocupavam-se com a educação das filhas. Ema era instruída e uma irmã foi até professora, tendo estudado no Porto. Casou com António Acácio da Costa Rocha, que foi chefe de Finanças. Acompanhou o marido, que exigências da sua profissão deslocavam de terra em terra, e assim viveram em Macedo de Cavaleiros, Monção, Vila Praia de Âncora (uma filha estudou num colégio em Caminha) e sobretudo em Braga. Tiveram três filhos
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Fig. 4 – Ema Costa Pessoa em 1914 (doc. Mª Helena Pessoa da Costa Rocha, filha de Ema)
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sobrevivos. Ema morreu nova, meio ano após o marido, e jaz em Alfândega da Fé. No centenário da República, em Alfândega da Fé, após investigação de Lourdes Graça, estiveram presentes as sobrinhas Ema da Luz da Costa Pessoa Trigo, de 93 anos, Maria José da Costa Pessoa Trigo, de 91 anos, que viviam em Mirandela. E ainda o neto José Alberto Gonçalves da Rocha e Margarida Maria de Almeida Pessoa Trigo França, que descende das duas republicanas – é bisneta de Etelvina de Almeida e sobrinha neta de Ema Costa Pessoa. 3 – Etelvina de Almeida – bordadeira da bandeira republicana (Porto, 18. – Alfândega da Fé, 19...)
Nascida no Porto, filha do dono de um colégio, foi para Alfândega da Fé quando casou. O seu marido era o médico Ricardo Rafael de Almeida. Foi o dr. Ricardo quem mais lutou pela restauração do município. No auto de proclamação da República, nos Paços do Concelho, seu marido foi um dos oradores. “Falando da varanda da Câmara, o nosso bom amigo dr. Ricardo saudou o novo regime e o ressurgir da Pátria”. Etelvina e Ema estiveram presen- Fig. 5 – Etelvina de Almeida (doc. dos tes e “distribuíram pela comissão munici- bisnetos) pal republicana e mais cidadãos distintivos com as cores nacionais, que todos ostentavam nas lapelas”. Foram essas senhoras que confecionaram a bandeira republicana que tinha a legenda “Ordem e Progresso”4. “Pouco depois, punha-se em marcha um cortejo cívico que percorreu as principais ruas da vila. À frente seguia a bandeira verde e vermelha com a legenda « Ordem e Progresso», garboT. P. [Tomás Pessoa?], “Bragança, Alfândega da Fé, 11”, jornal A Pátria, Porto, 4ª e 5ª cols., 16.10.1910, p. 4. 4
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samente empunhada por um artilheiro da armada, ladeado por toda a comissão e seguidos de muito povo e a música que tocava «A Portuguesa»”.
O casal teve três filhos. Como médico, Ricardo de Almeida, no tempo da pneumónica, pelo contacto com doentes, acabou por ser atingido. Uma filha era já casada e um irmão foi viver com ela. Etelvina com a filha restante voltou a viver no Porto. Só no fim da vida foi para casa do filho em Alfândega e acabou enterrada ao lado do marido. 4 – Áurea Judite do Amaral – a republicana que singrou (Alfândega da Fé, 24.08.1889 – Belas, 3.06.1977)
Sócia da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, inscrita no núcleo do Porto5. Depois também se associou ao Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, tendo colaborado no órgão dessa associação, Alma Feminina. Áurea era filha de Francisca Emília Cordeiro Rocha, costureira, mãe solteira, da família com a alcunha “os repolhos”, e de Luís Amaral, da família de Júlio Pereira, que assumiu a filha e lhe deu o nome. Fig. 6 – Áurea Judite do Amaral (na frente Áurea será a rapariga de Alfândega que entre dois homens), em Vila Pouca de mais irá singrar e se tornará numa figura Aguiar, quando inspectora orientadora, 20.11.1934 (Boletim do Ensino Primário nacional. Consta do Dicionário de EducaOficial, 10.01.1935) dores Portugueses, do Dicionário no Feminino, na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e no Dicionário de Mulheres Célebres.
João Gomes Esteves, A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. Uma organização política e feminista (1909-1919), Lisboa, CIDM, 1991, p. 202. 5
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Não contraiu matrimónio e passou os últimos dias numa Casa de Repouso em Belas. Quando estava no Porto, viveu com a mãe e com um irmão. A vida de Áurea Amaral está mais ligada à educação e inovação no ensino (Escola Nova ou Activa) do que à actividade republicana. Na época do Estado Novo, aparece algo cooperante, embora não se saiba o que lhe aconteceu após 1938, pois cessam as suas colaborações na imprensa. Cursou a Escola Normal Primária, a Faculdade de Letras do Porto e a Escola Normal Superior da Universidade de Lisboa. Na Suíça, frequentou a Universidade de Genebra e o Instituto J. J. Rousseau, como bolseira da Junta de Educação Nacional. Exerceu as funções de inspectora-orientadora da Região Escolar do Porto e foi directora do Instituto Presidente Sidónio Pais. Pertenceu à Societé Belge de Pedotechnie, de Bruxelas6. Literariamente, Áurea colaborou em jornais e revistas com artigos, poemas e até um folhetim (Escola Transmontana, Fev. 1912). Foi representante no Porto da revista Portugal Feminino. É autora de duas obras escolares e de traduções de outras. Na revista: “Alma Feminina”7 escreve uma homenagem póstuma a Carolina Michaelis, logo a seguir à sua morte. A sua proximidade com Carolina aparece sintetizada nestas frases: “acompanhei-a bem de perto até à tumular jazida”, “Quando eu regressava de Lisboa, a férias…a pergunta invariável de sempre: “«Que me diz dos nossos amigos?». Este nossos juntava-me também a mim numa ilustre camaradagem que me não competia (…)”. O município de Alfândega da Fé atribuiu seu nome a uma artéria da vila. Na altura do centenário da República, criou um prémio escolar com o seu nome.
6 7
António Nóvoa (dir.), Dicionário de Educadores Portugueses, Porto, ASA, 2003, p. 85. Revista Alma Feminina, Dezembro de 1925, p. 5.
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5 – Sofia Cândida Ribeiro Freitas – Fatias Republicanas (Castanheiro do Norte, 30.12.1865 - Coimbra, 30.01.1934)
Sócia da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, subscritora da Obra Maternal, autora do livro de receitas com as “fatias republicanas”, esposa do 2.º Governador Civil de Bragança. Nascida numa freguesia do concelho de Carrazeda de Ansiães, Sofia Freitas era filha de Casimiro António Ribeiro da Silva e de Cândida Augusta Alves Ribeiro da Silveira. Estudou no Colégio de Nossa Senhora da Estrela, no Porto, Fig. 7 – Sofia Ribeiro Freitas (doc. Família Ferrand de e a 18 de Junho de 1882 recebe o 3.º prémio Almeida) atribuído pela Sociedade de Instrução do Porto pelo seu trabalho artístico na categoria de “Trabalhos de Fantasia”. Casou no Porto, a 12.12.1885, com António Luís de Freitas (Misquel, 10.01-1855 – Coimbra, 5.10.1926), licenciado em Direito. Vai residir para a Póvoa de Varzim, acompanhando o seu marido Delegado da Comarca. É aqui que inicia o seu “Livro de receitas”. Em 1898, está com o marido em S. Jorge, nos Açores. Esta estadia fica marcada pelo seu encontro com Gungunhana a quem pede o seu autógrafo. Exilado nos Açores, Gungunhana permanece preso na Ilha Terceira até à data da sua morte, em 1906. É nesta estadia que Sofia cria um conjunto de trabalhos artísticos em madeira, bordados e se dedica à fotografia. É de assinalar o conjunto de imagens sobre a caça à baleia, gentes do povo e festividades açorianas. Em 1900, visita a Exposição Universal de Paris. Um conjunto de fotografias não datadas de Sevilha, Malta e Marrocos assinalam a sua passagem por estes locais, assim como a sua ida a Lourdes. De 1998 a 1909 acompanha o seu marido no seu percurso profissional onde é Juiz: Vimioso, Vila Flor, Vila Pouca de Aguiar, Idanha-a-Nova e Moncorvo. Em 1909, inicia o seu Diário no Pombal, concelho de Carrazeda de Ansiães. É através do seu Diário que conhecemos os acontecimentos do 5 264
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de Outubro de 1910. Neste mesmo dia, no Pombal, chegam notícias de “graves acontecimentos” e a proclamação da República é registada com a expressão “dia bendito entre todos! foi hoje proclamada a República portuguesa”. No dia 7 de Outubro, João José de Freitas, cunhado de Sofia, recebe um telegrama de António José de Almeida, ministro do Interior, nomeando-o Governador Civil de Bragança. A 19 de Dezembro de 1910, morre de parto Berta Albuquerque, esposa de João José de Freitas. António Luís parte para Bragança, em 11 de Junho de 1911, para substituir seu irmão como Governador Civil. No dia 18 de Junho de 1911, Sofia de Freitas parte para Lisboa, com sua sobrinha Cândida, para assistir à proclamação oficial da República. O relato da sua estadia é completíssimo. No dia 19, assiste na Câmara (Assembleia da República) à proclamação da República, falou com a mulher e filha do Afonso Costa e foi apresentada a Eusébio Leão e aos deputados por Bragança. Visita os túmulos de Cândido dos Reis, Miguel Bombarda, Buiça, Alfredo Costa, Ressano Garcia e Alves Correia, passa pelo Teatro da Revolução e pelos quartéis de Artilharia, Infantaria 16 e quartel de marinheiros. No dia 21 de Junho, inscreve-se na Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e na Obra Maternal. Volta à Câmara e aqui ouve discursar os mais eminentes republicanos. No dia 22, visita o Paço das Necessidades e António José de Almeida e esposa. Nesse ano de 1911, encontra-se em Bragança quando chega a notícia do reconhecimento da República por vários países, facto muito festejado. As cartas recebidas por Sofia do seu marido e amigas são um testemunho único dos acontecimentos e das paixões que a situação política suscitou na época. A sua atitude como republicana reflecte-se na criação de uma escola no Pombal, mencionada por si no Diário, e por um cuidado especial na educação da sua sobrinha. Administradora das suas propriedades, os seus registos revelam a vida diária duma proprietária no Douro obrigada a tomar decisões e onde o isolamento não foi um impedimento à participação cívica. Assinante da Ilustração Portuguesa, leitora diária do Jornal, distribui a sua actividade pelos seus hobbies: fotografia, música, bordados, trabalhos em madeira e pintura. CEPIHS | 2
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Quando casou, em 1885, Sofia Ribeiro passou a ser também Freitas. O casal foi viver para a Póvoa do Varzim, por razões profissionais do marido. Foi nessa localidade que Sofia iniciou o seu interessante Livro de Receitas, onde a culinária regional do Douro se mistura com a culinária francesa e aparecem referências a receitas da época republicana como as “Fatias Republicanas”.
Fig. 8 – Receita das “Fatias republicanas” “Depois de se terem torrado umas fatias de pão, molham-se em vinho branco e em seguida abafam-se de modo que fiquem brandas. Passam-se depois por ovos muito bem batidos, e logo são fritas em açúcar em ponto, não muito alto, para que não se queimem, e depois de fritas, regam-se com o mesmo açúcar que cresceu e polvilham-se com canela”.
Após a morte do marido, em 1926, Sofia passou a viver com a sobrinha Cândida. Em 1920, fez o seu testamento em Coimbra, constando como testemunha Aristides de Sousa Mendes. Mais tarde, em época de Estado Novo, esta figura tornar-se-á famosa em todo o mundo, como cônsul em Bordéus, salvando milhares de Judeus. Sofia Ribeiro Freiras faleceu em Coimbra, em 1934, com 68 anos. No Centenário da República, Outubro de 2010, foi montada uma exposição de seus objectos, que a família conservou, no Arquivo Distrital de Bragança. Dessa notável amostra, constavam vestidos, bonecas, rendas… e o livro de receitas com as “fatias republicanas”. 266
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Republicanas transmontanas
Ana de Castro Osório
O jornal A Pátria diz-nos que Ana de Castro Osório e marido, Paulino de Oliveira, se encontravam hospedados em Eucísia, em casa do vogal Artur de Magalhães, juntamente com António Trigo e Tomás Pessoa. Portanto, quando se deu a implantação da República, Ana de Castro Osório encontrava-se numa freguesia do concelho de Alfândega da Fé. Essa casa, embora desabitada e degradada, ainda existe.
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Nota: Todos estes dados constam da obra “Republicanas Quase Desconhecidas”, publicada pelo Círculo de Leitores, Nov. 2011. Para a sua elaboração, relativamente a estas 5 republicanas, a autora teve a colaboração prestimosa de Lourdes Graça e Berta Nunes (Alfândega da Fé), Margarida Mariz (Carrazeda de Ansiães) e para Bragança de Alda Berenguel e Emília Nogueiro). CEPIHS | 2
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As tábuas afonsinas da concórdia João de Castro Nunes*
Resumo – Faz-se, neste artigo, metodologicamente tábua rasa (“retour à
la pierre”) de quanto se tem dito acerca do significado ou mensagem transmitida pelos emblemáticos “Painéis de S. Vicente”, vincando na generalidade o seu carácter devocional. O autor, retomando uma sugestão formulada em 1959 por Magalhães Godinho, pretende atribuir-lhes um sentido eminentemente político e profano, relacionando a pintura com as circunstâncias que, em Alfarrobeira, opuseram ao exército real as forças arregimentadas pelo Infante D. Pedro. Tratou-se de visualizar o retorno à concórdia promovido pelo soberano no propósito de passar uma esponja sobre o infausto evento. Palavras-chave – Irmãos desavindos; Tentativas de conciliação; Alfarrobeira; Vencidos e vencedores; As tábuas do perdão; Um símbolo falante. Abstract – Taking upon a suggestion by Magalhaes Godinho in 1959, and by means of a methodological re-launch (“retour a la pierre”) of all that has been said about the meaning or message conveyed by the emblematic “Painéis de S. Vincente” and its devotional character. The author proposes to ascribe to these a political and profane meaning, relating the painting with the circumstances in which the armed forces of Infante D. Pedro confronted the royal army in Alfarrobeira. This was the visualization of the king’s attempt to promote harmony over the infamous event. Keywords – Conflicting brothers; Attempt to conciliate; Alfarrobeira; Losers and winners; Tablets of salvation; A speaker symbol.
______________ * Professor jubilado da Universidade Clássica de Lisboa. CEPIHS | 2
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João de Castro Nunes
Aplicando, na interpretação da mensagem transmitida pelos denominados Painéis de S. Vicente1, a metodologia do “retour à la pierre”, em voga nos estudos epigráficos, vou prescindir de tudo quanto até este momento se disse ou escreveu sobre as emblemáticas tábuas atribuídas ao pintor régio Nuno Gonçalves, em pleno séc. XV, reinando D. Afonso V. Farei de conta que, acabadas de descobrir, tenho o privilégio de, antes de mais ninguém, me defrontar com elas em primeira mão por forma a não ter, à partida, a mente inquinada por qualquer outra tomada de posição a condicionar a minha leitura alicerçada apenas no meu conhecimento da respectiva época, que sempre me fascinou o espírito a ponto de por vezes me considerar, eu próprio, um espectador dos acontecimentos que então se produziram. Abro uma excepção, aliás desnecessária, para o critério defendido pelo Prof. V. Magalhães Godinho no sentido de se tornar imperioso contextualizar os painéis no acervo de factos que marcaram indelevelmente o reinado do Africano, na óptica de que obra de tal magnitude forçosamente terá de estar ligada a evento ou eventos de idêntica grandeza. Fazendo meu o seu critério, perfeitamente intuitivo, constato no entanto que o ilustre Professor não acertou no alvo, pois todas as suas sugestões (coroação, transmissão do poder, etc.) não se coadunam nem factualmente com a realidade histórica nem cenograficamente com a reconhecida espectacularidade das tábuas afonsinas. Não chegou a pôr o dedo na ferida. Longe de perfilhar a compleição moral e física atribuída por Oliveira Martins a D. Afonso V, prefiro vê-lo personificando, em elevado grau, o espírito cavaleiresco que então se respirava ainda intensamente em Portugal. Órfão de pai aos seis anos de idade e logo separado da mãe regressada a Castela em circunstâncias trágicas que não vem ao caso referir, o rei-menino ficou sob a tutela do seu tio mais velho, o Infante D. Pedro, que logrou em cortes ser investido no ónus da Regência, nunca sendo por 1
Ver Apêndice documental, fig. 1, p. 284.
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As tábuas afonsinas da concórdia
demais frisar que, precavendo-se de suspeições, foi a primeira pessoa a prestar-lhe vassalagem dando brado por ele em Santarém mal foi sabida a morte do monarca, ou seja, D. Duarte. Criado sob a alçada do duque de Coimbra, que já então percorrera as “sete partidas” enchendo as cortes europeias do seu nome, o pequenino rei, além de passar a conviver de tenra idade com os mais altos expoentes da cavalaria portuguesa, que lhe iam incutindo no ânimo os seus nobres ideais, teve por companhia familiar, como se de irmãos se tratasse, os filhos do tutor, em número de seis, entre os quais a sua prima Isabel, com quem acabaria por casar. Ambos adolescentes, ter-se-á gerado entre eles, sob os olhos da Duquesa, herdeira presuntiva do trono de Aragão-Urgel, uma afectuosa estima, assumida pelo Regente para sentar a filha primogénita no trono de Portugal. E aqui nasce o primeiro agravo, irreparável, entre o Regente e o seu irmão bastardo, D. Afonso, que o mesmo desejava para a sua filha, como aliás era de há muito e por muitos tacitamente aceite, para não dizer que era matéria politicamente assente. O certo, porém, é que o coração do jovem rei pendia para Isabel independentemente dos planos acarinhados pelo seu tutor, que entretanto lhe proporcionara esmerada educação nas letras humanísticas, que o próprio Regente eximiamente cultivava. O casamento foi inevitável por altura dos catorze anos de idade, ansiando o par pela união de facto, que o Regente ia retardando. Além de Isabel (1432-1455), futura rainha de Portugal, o duque de Coimbra tinha mais cinco filhos, com os quais Afonso V partilhou a sua infância, a saber, por ordem crescente de idades: – D. Filipa, que se acolheu ao mosteiro de Odivelas, estando ainda viva quando D. Manuel iniciou o seu reinado, em 1495; – D. Beatriz, que se consorciou, na corte da Borgonha, sob os auspícios da respectiva duquesa, sua tia, com o famoso senhor de Ravenstein, o conde Adolfo de Clève e de la Mark, cavaleiro do Tosão de Ouro que
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se propunha tornar real a mítica saga do “Cavaleiro do Cisne”, que heraldicamente ostentava no seu “badge”; – D. Jaime (1434-1459), que recebeu das mãos do Papa Pio II a dignidade cardinalícia e faleceu, na cidade de Florença, em odor de santidade; – D. João (1432-1456), o denominado D. João de Coimbra que, pelo seu casamento com Carlota de Lusignan, herdeira do trono de Chipre e do título real de Jerusalém, obteve o título de príncipe de Antioquia; – D. Pedro (1429-1466), investido por seu pai no alto cargo de condestável de Portugal. Em hora má o Infante D. Pedro, na sua qualidade de Regente, deu ao primogénito a honra que, por ser neto de D. Nuno Álvares Pereira, reclamava com boa razão para seu filho o poderoso irmão bastardo, que não lhe sofreu a afronta, lavada em sangue na encarniçada refrega de Alfarrobeira. Não vou evidentemente reavivar, que não seja o necessário, os vários lances que antecederam o encontro, às portas de Lisboa, das hostes do monarca e do seu tio e sogro, apostado em justificar-se da infâmia de traidor com que o acoimaram os seus detractores, mormente o despeitado conde de Ourém e seu pai, o bastardo infante D. Afonso, a quem o irmão benevolamente fizera duque de Bragança no propósito talvez de lhe conciliar o ânimo agastado. Faço justiça ao jovem e enamorado Rei que tudo fez para evitar os extremos que se avizinhavam, aceitando mesmo que sua mulher e prima, a Rainha Isabel, se avistasse com seu pai em Coimbra para lhe acalmar o pundonor ferido. Tudo baldado! Com seis mil homens e abundante carriagem, clamando justiça e, porventura, vingança, o Infante D. Pedro, sob cujo pendão se congregaram alguns dos seus antigos camaradas da saga da Hungria, à testa dos quais o intemerato conde de Avranches, põe-se a caminho da corte para de seguida, mudando de propósito, avançar para Lisboa, cuja população lhe fora em tempos particularmente afecta. Na frente, com a vanguarda, vai o seu filho D. Jaime, enquanto o pai faz as últimas recomendações à esposa e restantes filhos, que ficam 272
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rezando pelo bom sucesso da empresa. Só o filho mais velho, o condestável, se encontra ausente por obrigações irrecusáveis do seu alto cargo, que lhe confere o segundo posto na hierarquia da governação. Não teve parte no agravo ao soberano, junto de quem lhe competia estar em caso de eventual tomada de posição. Por fortuna sua… achava-se nas terras transtaganas. A noite que precedeu a partida para a corte, bandeiras despregadas a clamar mais justiça que vingança, passou-a D. Pedro a velar armas na igreja de S. Tiago, à Praça Velha, em companhia do seu “irmão de cruz”, o destemido conde de Avranches, Álvaro Vasques de Almada, um dos raros cavaleiros da Garroteia de sangue não real em todo o continente europeu, cabendo-lhe o nº 162 na ordem de ingresso, não muito após os infantes D. Pedro e D. Henrique, netos do Duque de Lencastre, por inerência das suas progenituras, mal ao mundo vieram. Não foi o caso de D. Álvaro, que a ganhou nos campos de batalha sob o gonfalão dos príncipes britânicos: um cavaleiro de todo o tamanho, o qual, ao saber dos apuros em que se encontrava o seu indefectível amigo e companheiro de armas em terras do Danúbio, rumou a Coimbra com quantos cavaleiros conseguiu juntar a si. Gente da melhor. Após a vigília, pela manhã, ouvidos em confissão e comungados, retirando-se à parte, redigiram sobre pergaminho a jura ritual dos “irmãos de armas”, que eles trouxeram das práticas em voga entre os magiares e povos circunvizinhos, a leste da Boémia, incluindo os sérvios, que porventura ainda hoje as observam: cortando os pulsos e juntando o sangue de ambos, a fazer de tinta, comprometeram-se, caso fosse esse o seu destino, a sucumbirem juntos, como juntos sempre em vida se fizeram mútua companhia. Onde cruzaram as águas do Mondego, não se sabe exactamente, mas supõe-se que por alturas de Tentúgal, onde o Infante tinha os seus paços, por ser domínio seu de preferência. Na frente, como já foi dito, ia D. Jaime, quinze anos em flor com mais vocação para santo que soldado, como veio mais tarde a comprovar-se: “Antes morrer do que pecar”, era o dizer da sua empresa a par da imaculada brancura do arminho que tomara CEPIHS | 2
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para símbolo dos seus propósitos de vida. Atrás de si, bem municiado, vai o grosso das tropas, constituído fundamentalmente, para além dos cavaleiros, cerca de um milhar, pelos pescadores de Buarcos e suas vizinhanças, arraia-miúda dos vastos senhorios do Infante à roda de Coimbra. Passado o Mondego, rumaram à Batalha, tocando de raspão nos domínios senhoriais do conde de Ourém, inimigo figadal do ex-Regente, em cujo encalço vai pôr gente armada a vigiar-lhe os movimentos e perscrutar-lhe os ânimos. De qualquer modo, recebe o Infante, da parte do prior do Mosteiro, o mais caloroso acolhimento, a ponto de lhe engrossar o exército com os lavrantes da pedra que então laboravam nas respectivas obras e que o prior forçadamente impele a acompanharem D. Pedro, com ele se comprometendo o bom do prior na arriscada empresa, raiando a rebeldia. Fosse o que Deus quisesse, dado o apreço em que a comunidade tinha o Infante, que sempre para com ela se mostrara generoso! Seguindo avante, abeiraram-se de Alcobaça, em cujo Mosteiro acharam boa recepção, pois os seus monges deram por justa a reclamação do Infante, infamemente injuriado por culpas que não tinha, mas aleivosamente imaginadas e propaladas pelo seu poderoso irmão bastardo, o Duque de Bragança e seu odioso filho, o Conde de Ourém, por cujas terras circulavam em manifesto aparato de guerra. Como, aliás, não haveria a comunidade cisterciense de se sentir congratulada com a presença de tão culta personagem como era o Infante das “sete partidas”, se tinham em comum o gosto pelas letras clássicas que entre si partilhavam com deleitoso aprazimento e singular sucesso, tendo-se D. Pedro dado ao luxo de verter para vernáculo certos textos da jurisprudência ciceroniana e das sentenças morais e filosóficas de Séneca, que manuscritamente andariam na mão dos frades, largamente beneficiados pelo Infante durante a sua longa e frutuosa regência. As contrariedades começam a surgir em Rio Maior, onde o Infante toma conselho e, perante novas que lhe são adversas quanto às intenções do seu real sobrinho e genro, decide não prosseguir em direcção a Santarém, onde a corte poisa, mas ir “contra Lisboa”, onde faz tenção de chegar antes de El-Rei e onde julga ter por si a terra que lhe foi berço. 274
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Pura ilusão! Tirando o prior do Mosteiro de Odivelas, um crúzio da sua confiança e por si tutelado, Lisboa está virada contra a sua pessoa. De Rio Maior a Lisboa foi tormentoso o percurso. Há gente que, ciente dos riscos, vai ficando pelo caminho, desertando. E, por outro lado, há batedores do exército real que, a cavalo, provocam de longe o Duque de Coimbra, cobrindo-o de insultos e doestos que profundamente o magoam, partindo em sua perseguição o Conde de Avranches que consegue deitar a mão a um punhado deles, cerca de trinta, os quais, consoante a sua categoria social, sofrem pena capital por enforcamento ou degolação. Perto de Alverca, às portas de Lisboa, já só leva mil e quinhentos homens. Aproxima-se o fim. Nesta localidade, em terreno sobranceiro, trava-lhe o avanço o numeroso exército real, cerca de trinta mil homens, entre os quais o contingente algarvio do Infante D. Henrique que acorreu ao chamamento do monarca com onze mil lanças. Uma força perfeitamente dissuasora! Entre as forças de ambos interpõe-se a ribeira de Alfarrobeira, que vai dar nome ao trágico desenlace da temerosa investida do Duque de Coimbra, a quem D. Afonso V, perante a acusação de traidor, deixara apenas três saídas: o desterrro, a prisão perpétua ou o esquartejamento, ao que ele ripostara preferir acabar “inteiro, não partido”. E assim foi. Tomando a iniciativa das hostilidades, desguarnecido de armadura, mandou lançar uma bombarda, que foi cair na tenda real, dando início à refrega. Uma seta, certeiramente apontada ao coração do Infante, pôs-lhe termo à vida, como seria seu desejo naquela conjuntura. Sabedor do caso, o seu fiel “irmão de cruz” recolhe-se à sua tenda de campanha, onde biblicamente pede vinho e pão para se retemperar e, refeito, vai postar-se junto ao cadáver do seu companheiro de mil aventuras pelos confins da Europa, deixando-se matar após, a golpes de espada, tirar a vida à chusma dos vilões que ousaram defrontá-lo. Que linda maneira de morrer para um cavaleiro da Jarreteira! Insepulto, permaneceu o Infante durante três dias no campo de batalha, findos os quais foi levado em padiola para a capela da localidade, onde ficou até ser levado para o castelo de Abrantes, a cujo Conde foi confiada a sua guarda, não fosse a sua irmã, a Duquesa da Borgonha, CEPIHS | 2
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disputar-lhe o corpo, para lhe dar condigna sepultura. O filho, D. Jaime, teve o pescoço aparelhado para a degola, que não se efectuou, sendo-lhe comutada a pena pelo encarceramento, que durou cerca de um ano, após o qual se desterrou sob os auspícios da sua poderosa tia, que de honra em honra o vai levar ao cardinalato, não mais voltando a Portugal. Quem não morreu em combate ou sob o cutelo do carrasco, tratou de se escapar, nacionais ou estrangeiros, que não poucos eram, aqueles sobretudo que partilharam com o markgraf de Treviso os seus desvairos cavaleirescos ao serviço do Imperador Segismundo em terras húngaras. Baquero Moreno registou-lhes as identidades, bem como dos nacionais, que, dando o fora, se fizeram vassalos de outros soberanos. Que pobre ficou o reino de Portugal! Depois… foram as lamentações da filha do Regente, mulher e prima de El-Rei, a Rainha D. Isabel, que não se conformava com o destino sofrido pelo pai, que não tivera ensejo de se limpar das calúnias maldosamente levantadas pela estirpe dos Braganças. Que lhe perdoasse, que lhe reabilitasse a memória, que por amor de si não lhe agravasse a humilhação. Entre as súplicas da soberana e as insistentes diatribes dos seus detractores, o jovem Rei sentia-se aturdido. De 1449 a 1455, passaram-se seis anos nesta hesitação, não obstante as contínuas diligências da corte da Borgonha por seus embaixadores, sem qualquer sucesso. Os Braganças estavam sempre no caminho, soprando aos ouvidos do monarca, por natureza generoso e muito enamorado da sua prima e consorte, que entretanto, dando-lhe um filho varão, o futuro e tigrino D. João II, morre imprevistamente de um “fluxo sanguíneo”, deixando o marido inconsolável e sobretudo pesaroso de nunca lhe ouvir os rogos a favor do pai. E aqui começa a história dos perdões! Fazendo-se forte a despeito da nefasta influência sobre ele exercida pela camarilha dos Braganças, estende o indulto a todos quantos militarmente se envolveram com o Infante no seu desforço contra o soberano, a começar pelos mesteirais do Mosteiro da Batalha, que lho solicitaram alegando a sua forçada participação a mando do prior, havendo-os, na sua maioria, que pelo caminho foram desertando sem passar além de Rio Maior, onde os restantes se deram 276
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conta dos maus propósitos do sogro e tio de El-Rei optando pela marcha sobre Lisboa: colectivamente perdoados, sem grande constrangimento. Seguidamente os pescadores de Buarcos2, o grosso da mesnada, que afincadamente se mantiveram nos seus postos por lealdade para com o detentor do poder senhorial nas terras que habitavam, devendo-lhe inteira vassalagem. Houve devassa. A custo foi-lhes alargado o perdão, sem que, de quando em quando, não viesse à tona o ressentido agastamento do monarca, servindo-se deles prioritariamente sempre que necessidade houvesse de mão de obra em regime de trabalhos forçados, como a reparação de fortalezas ou o transporte de vitualhas para as praças africanas. Bem o pagaram! Por fim, homem a homem, viritim, os membros da nobreza, os cavaleiros3, que deram voz pelo insubordinado Duque de Coimbra e presuntivo herdeiro da coroa de Aragão pela linhagem da consorte. Houve denegações por indesculpáveis agravantes. A esses, não! De uns e outros se ocupou, nas suas exaustivas investigações, o Prof. Baquero Moreno, para cujas obras remeto os curiosos destas minudências. A quem sobejar tempo, pode recorrer directamente à correspondente documentação tratada e arquivada nos gavetões da Torre do Tombo, pois de tudo se lavrou registo. Quanto ao Infante, que lhe serviu de tutor durante a menoridade, sobremaneira o exaltou, mandando-o trasladar do castelo de Abrantes para o convento dos Lóios, em Lisboa, onde em magnífico e rendilhado túmulo, devidamente armoriado, repousou até à sua definitiva remoção para a capela do Fundador, no Mosteiro da Batalha, a par dos seus progenitores. Ele próprio, o Rei, na companhia dos grandes do reino, compareceu a recebê-lo, assim dando satisfação aos rogos da sua falecida mulher e prima, tardiamente embora. Só faltaram os Braganças, porque “ódio velho não cansa”. Quem sabe se não teve começo aqui o seu posterior apagamento nas boas graças do soberano, cujo filho, vingando o infortúnio do seu avô materno, os vai implacavelmente estrangalhar! 2 3
Idem, fig. 4, p. 285. Idem, fig. 5, p. 285.
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Foi o prelúdio de um reencontro do monarca com a totalidade dos seus vassalos dentro e fora das fronteiras do reino, a cujos senhorios foram confiadamente retornando os respectivos donatários, alguns dos quais acrescentados nos seus títulos e bens, como foi o caso do condestável D. Pedro, regressado de Castela com um punhado de cavaleiros aragoneses que irão marcar presença sob os muros das praças africanas. Palavra de rei é palavra de rei, o que não tira que, sob juramento, exarada seja por escrito perante idóneas testemunhas, segundo os rituais tabeliónicos do tempo. E para que, perante a nação, de novo congraçada, não restasse qualquer dúvida sobre as suas rectas intenções, mandou que em vistosos painéis tudo ficasse patente, entrando pelos olhos, sem precisão de cabalísticas ou esotéricas congeminações, impróprias de uma comunidade pouco mais do que iletrada. Ver para crer! Eis ali, num dos painéis centrais4, em torno do bem-aventurado cardeal de Santo Eustáquio, de palaciano ou cerimonioso gorro na cabeça e paramentado de diácono, como eclesiasticamente lhe competia por não ter chegado ao sacerdócio, eis ali, repito, a família real em perfeita união de sentimentos, vivos e mortos, em calculada retrospectiva, como sempre foi preocupação dominante dos príncipes de Avis na feliz constatação do Prof. Adão da Fonseca debruçado sobre os textos literários coevos dos eventos em apreço: o Rei e a Rainha, sua falecida esposa e prima, o Infante D. Pedro, trajando à borgonhesa, como só ele ousaria, a par de sua mulher, a Duquesa de Coimbra, e sob cuja tutoria, fazendo-lhe de pais, o Rei viveu durante a sua prematura orfandade, aos seis anos de idade, e finalmente o condestável, de nome Pedro como o pai, a cuja sombra parece estar postado. Como são parecidos os dois irmãos, Pedro e Jaime, com escassos anos de diferença etária! Nos laterais, os perdoados, avultando, além dos frades5, implicados na rebelião, homens de Deus, a quem nada se nega e menos se castiga, o painel dos cavaleiros, entre os quais identifico, sem sombra de dúvida, o destemido Álvaro Vaz de Almada6, deixando ver parte da armadura e osIdem, fig. 2, p. 284. Idem, fig. 3, p. 285. 6 Idem, fig. 5-a, p. 285. 4 5
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tentando o cinturão peculiar da Ordem da Jarreteira, e bem assim, o esforçado Diogo de Azambuja7, cujo carão fala por si, conforme se observa na sua estátua jacente em Montemor-o-Velho, na igreja de Nossa Senhora dos Anjos. Será o senhor de S. Marcos, Aires Gomes da Silva, a terceira personagem ou, porventura, Álvaro Gonçalves de Ataíde, futuro conde de Atouguia, que precedeu o Infante no serviço a Segismundo?... Deixo em suspenso. Mas, para maior certeza de que se trata efectivamente do grupo de cavaleiros da chamada saga da Hungria, lá está, por trás de todos, a simbólica figura do capacete cónico8 que tanto tem intrigado os críticos dos painéis, aventando cada qual a sua hipótese, mas inclinados, na sua maioria, para o modelo mouro, como se de mouro ou sarraceno tivesse coisa alguma. Quem não vê nele o capacete pontiagudo em uso, desde tempos imemoriais, entre os combatentes do baixo-Danúbio, no leste europeu, como figura em tantíssimas estampas alusivas às refregas entre turcos e vassalos dos imperiais senhores do sacro império, com Segismundo à cabeça?... Inquestionável, como inquestionável é também aquela farta cabeleira desusada por estas bandas nossas da cristandade! Não insisto… perante a evidência. E falemos agora do quarto painel lateral9, no extremo direito das famigeradas tábuas afonsinas destinadas a consagrar o espírito de concórdia que, em vésperas das suas campanhas africanas, o cavaleiroso Rei pretende ver instalado entre os seus vassalos na totalidade, pois de todos vai necessitar sem distinção de categoria social ou poder de fogo, como foi o caso do bispo de Coimbra que, por extraordinários actos de bravura na toma de Arzila, elevou à dignidade de conde de Arganil, aqui perto de nós. Era um mãos largas, o Africano! Ao centro, trajando de negro, como ao cargo competia, de pé e ostentando o cartulário ou livro dos perdões10, concedidos ou denegados, vê-se o notário ou tabelião do reino, judeu seguramente conforme era Idem, fig. 5-b, p. 285. Idem, fig. 5-c, p. 285. 9 Idem, fig. 6, p. 286. 10 Idem, fig. 6-a, p. 286. 7 8
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usual em tais funções e bem o inculca a estrela das seis pontas sobre a vestimenta. Aberto de par em par e simuladamente escrito em garatujas, nele não se identifica o nome de qualquer para evitar melindres de inúteis ou descabidas precedências. Aos interessados, de presença ou por interposta pessoa, em caso de forçada ausência além-fronteiras, caberia a respectiva consulta, preto no branco. Suficiente?... E se, acaso, não passasse toda aquela encenação de astuciosa artimanha para o monarca haver à mão os foragidos em cortes estrangeiras e por elas graciosamente acolhidos?!... E se, mesmo empenhando a sua palavra por escrito, o Rei mudasse de humores e, dando o dito por não dito, fizesse letra morta dos textos assinados, dada a sua conhecida volubilidade só comparável ao seu carácter proverbialmente generoso?!... Mas não. Sua majestade, jurando sobre as santas relíquias, ali patentes em soleníssima postura, comprometeu-se perante Deus a manter firme a sua resolução sem ponta de má-fé nem risco de retorno. E assim se explica, de joelhos, aquela personagem11, litúrgica e solenemente vestida de vermelho, expondo em mãos aquele pedaço de corpo humano sobre o qual se têm freneticamente debruçado e encarniçadamente debatido os panegiristas do carácter devoto dos painéis, tentando a sua presumível, mas improvável identificação hagiográfica, até porque carente de sentido: qualquer relíquia, desde que sagrada, surtiria o efeito pretendido! E, para remate, nem faltou a tradicional esmola dada aos mendigos em actos sociais gratulatórios, como o presente foi: o chamado bodo aos pobres, ainda hoje em dia observado, entre nós, em certas festividades de índole familiar, como bodas e baptizados, quando abundam os recursos ou a nobreza obriga. E deu-se até ao último ceitil ou pedaço de pão, como se depreende do vulgaríssimo caixote ao fundo, a “caja de caudales”, absolutamente esvaziado. Querem mais simples? E que fazem todas aquelas criaturas alinhadas, em último plano, ao longo dos painéis? Que outra coisa podem ser senão as costumadas testemunhas, os testes, habituais, por imprescindíveis, em actos notariais do género? Onde já se viu o contrário, até nos dias de agora? 11
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Em tal conformidade, abeiramo-nos do quadro12 que justifica o título que dei à minha leitura das tábuas afonsinas que, longe de terem qualquer motivação devocionária ou religiosa, são manifestos de índole profana, ou seja, de inspiração política, tendo em vista a sua exposição nos aposentos reais ou quaisquer outros frequentados sítios da vida citadina, fazendo alarde, fora dos templos, da conciliação da grei em torno do seu Rei, assumidamente desagravado de ofensas que não houve senão na mente doentia de certos poderosos detractores sem lugar naquele memorável instrumento de reparação moral dos vencidos de Alfarrobeira, alguns dos quais reconhecidamente os melhores vassalos do seu reino. Ei-los de novo ali reunidos, vencidos e vencedores, sob a vara de comando do bem-aventurado cardeal de Santo Eustáquio, a inocente vítima maior da temerária marcha do seu desafortunado pai sobre Lisboa, ei-los ali, em trajes palacianos de parada, os detentores dos altos postos de chefia militar, dispostos a dar ao soberano a ajuda do seu braço para as campanhas de África que obsessivamente estavam nos horizontes do monarca, que sempre se empenhou em fomentar entre os seus vassalos o espírito de harmoniosa convivência. Quem não recorda que foi ele que, tempos antes do desaguisado que levou ao drama de Alfarrobeira, subscreveu com seus tios desavindos a célebre carta que ele próprio denominou de concórdia, em nome da qual precisamente acabou por passar uma esponja sobre a tragédia que havia de ensombrar o seu reinado, pois se reacendeu, tempos depois, ante os muros de Tânger, na pessoa do condestável homónimo do seu tio e sogro, o futuro rei dos catalães?! Que sina a sua! Não é estranho que, em obra de tanto esplendor e teatralidade cenográfica, apareça enrolada aos pés da personagem dominante do quadro, a dar nas vistas, uma simples corda13, sobre a qual se têm tecido as mais absurdas e abstrusas conjecturas?... Não vou, por desnecessário, alongar-me sobre a matéria, a não ser para frisar que, em meu juízo ou perspectiva, nela reside, por assim dizer, a alma dos painéis, como se de uma legenda se tratasse. Em lugar do máximo destaque, a corda constitui 12 13
Idem, fig. 7, p. 286. Idem, fig. 7-a, p. 286.
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aquilo que, em heráldica, se costuma designar por símbolo falante. Que outra maneira havia de pictograficamente representar a ideia em causa senão por algo que foneticamente apontasse na sua direcção? De corda a concórdia e desta àquela, a ponte é manifesta. De resto, não é da minha lavra a invenção ou utilização deste vocábulo, pois foi o próprio Rei que, na carta de pazes entre os Duques desavindos, a teve na boca, então como agora, com mais alargado âmbito, dado ser o abrangente resultado dos perdões que o Africano prodigalizou aos seus contrários por amor da sua esposa e por imperativo da sua beligerância ultramarina. Quem havia de dizer que até a viúva do Infante, a Duquesa de Coimbra, haveria de ser contemplada com dadivosa e confortável tença vitalícia, sob o signo da CONCÓRDIA, inspiradora dos painéis! Tudo tão evidente aos olhos dos contemporâneos! E nossos também. Alcançados os objectivos para que foram concebidos e magistralmente executados, havendo quem fora de fronteiras autorizadamente os apelide de “pórtico de glória” da pintura europeia proto-renascentista, é de perguntar qual o destino que aos painéis foi dado após os reinados de Afonso V e seu filho, o Príncipe Perfeito, sob cujo ceptro não mais haveria lugar a discordâncias. Passado o duro ofício de reinar a D. Manuel, Bragança de raiz mas assumido continuador da política dos seus antecessores em múltiplos aspectos, os painéis, perdendo razão de ser, teriam sido pura e simplesmente removidos para lugar discreto em regime de depósito de bens históricos da grei, que importava preservar e porventura esquecer perante a nova casta no poder, como quem guarda documentos de arquivo. Tratou-se de arrumá-los em lugar incerto, ao menos para nós. Fora de contexto, perdeu-se-lhes o rasto até que um dia, há pouco mais de cem anos, foram localizados nas instalações do Mosteiro de S. Vicente de Fora, na capital, em péssimo estado de conservação, mas não deteriorados, como teria acontecido se, porventura, se encontrassem na sé catedral em devota exposição quando do terramoto de 1755, que tão profundamente a devastou. E começa, então, a saga da sua decifração, a que pretendo pôr termo com a minha visão pessoal dos acontecimentos que marcaram, mais que outros quaisquer, o reinado de D. Afonso V. E 282
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termino repetindo, como um eco, as palavras que, ouvindo da minha boca esta sucinta explanação, o general e historiador Themudo Barata proferiu entre perplexo e rendido às evidências: “Como é que nunca ninguém viu isto?”.
Coimbra, Agosto de 2012
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Apêndice Documental
Fig. 1 – Os Painéis de S. Vicente (políptico)
Fig. 2a – Como são parecidos os dois irmãos, Pedro e Jaime
Fig. 2 – A família real (nuclear) em retrospectiva virtual
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Fig. 3 – Painel dos frades.
Fig. 5a – Álvaro Vaz de Almada ostentando o cinto da Ordem da Jarreteira CEPIHS | 2
Fig. 4 – Painel dos pescadores, mesteirais e homens da lavoura
Fig. 5b – Diogo de Azambuja
Fig. 5 – Painel dos cavaleiros
Fig. 5c – O capacete cónico em uso no leste europeu
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Fig. 6a – O registo do perdão ou sua denegação
Fig. 6 – Painel do acto notarial
Fig. 6b – Uma cara muito portuguesa
Fig. 7a – Um símbolo falante
Fig. 7 – A apoteose da concórdia sob o comando do bem-aventurado cardeal-diácono de Santo Eustáquio
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As brumas da memória e a Santa Casa de Misericórdia de Vila Nova de Foz Côa Manuel Daniel*
Resumo – Quando, em 1881, o Abade de Miragaia visitou Vila Nova de Foz Côa, para estudar alguns arquivos, como o da “antiquíssima Misericórdia” local, ficou desapontado porque, daquela instituição secular, “não existia documento algum”. Com indícios de aqui ter existido um hospício de uma irmandade do Espírito Santo, que viria a ser integrado na Misericórdia, provavelmente erecta na segunda metade do Século XVI, a sua última notícia tem a data de 1794. Restaurada, porém, em 1916, como terá decorrido a longa agonia de que entretanto recuperou? Palavras-chave – Hospício; Carta-régia; Obras de misericórdia; Assistência pública; Instituições de benemerência. Abstract – When the Abbot of Miragaia visited Vila Nova de Foz Côa in 1881, with the intention of studying some archives, such as the archive of the local “very old Misericórdia”, he was disappointed because there was not any document about that secular institution. Evidence that there was a hospice of a brotherhood of the Holy Spirit, which would be later integrated with the Misericórdia, probably built in the midlle of the 16th century, is last noted in 1794. Restored in 1916, how did the long agony take place of which eventually recovered? Keywords – Hospice; Royal charter; Works of mercy; Public assistance; Charitable institutions.
______________ * Advogado; escritor; jornalista; provedor da SCM de Vila Nova de Foz Côa de 1975 a 1997 e presidente do Conselho Fiscal de 1998 a 2006, inclusive. CEPIHS | 2
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Manuel Daniel
O Abade de Miragaia1, persistente historiador, visitou Vila Nova de Foz Côa em 1881. Tinha como objectivo percorrer os arquivos locais, mormente o da Santa Casa da Misericórdia, onde esperava fazer boa colheita, uma vez que esta seria uma “das mais antiquíssimas do País”.
Fig1. – Painel de Nossa Senhora da Misericórdia existente no Lar da SCM
Nessa altura, apesar de viver à beira de dois rios, o Douro e o Côa, a população local sofria clamorosamente com a falta de água. Em boa verdade, ao ter preferido situar-se num pequeno planalto assente na confluência do Côa com o Douro, sujeitou-se a graves problemas com a falta de água para os seus consumos domésticos. Se o lenitivo para os animais foi construir uma pequena lagoa no Campo, já para os habitantes o socorro estava no Poço do Olmo, no Deão, na Fonte Nova, no Poço Novo ou no Salgueiro. Gota a gota a cair nas vasilhas de barro ou de lata, o mulherio apinhava-se, sobretudo na Fonte Nova, onde a bica dava mais vego. Por ali passou, observador, o Abade de Miragaia, no dia 1 daquele mês de Setembro, tendo a seguir registado o seu duplo espanto por quanto já pudera ver2.
Era conhecido como Abade de Miragaia, o Pe. Pedro Augusto Ferreira, natural de Penajóia, concelho de Lamego (1833-1913) que deu continuidade à obra de Pinho Leal. 2 Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno, Lisboa, Livraria Editora de Tavares Cardoso Irmão, 1882. 1
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Fig. 2 – Brasão da SCM de Vila Nova de Foz Côa
Quanto à míngua de água, anotou que, tendo percorrido muitas terras, inclusive da Península Ibérica, nunca viu, como ali, na Fonte Nova, “em tão pequeno espaço, tanta gente em parte alguma”. E quanto ao seu objectivo, afirmou que “também supomos que houve nesta Vila uma igreja da Misericórdia com seu hospital, na Rua ainda hoje denominada “do Hospital”, pertencentes à antiquíssima irmandade da Misericórdia, corporação extinta há muitos anos e da qual não restam documentos alguns!”.
Estes factos que seriam quase recentes para o Abade de Miragaia, com um pequeno esforço da sua parte, poderiam servir-lhe de explicação suficiente para a frustração da visita. Mas foi pena que, se ele o entendeu bem, não tivesse depois procurado anotar como se terá chegado àquela situação. É que “nas brumas da memória” que então se instalaram nos homens e nas coisas, é depois maior a dificuldade de se encontrar a origem do fio da meada de Ariadne que nos permita, qual outro Teseu, chegar à luz da claridade. Como teria sido, quando foi o início desta Misericórdia e que vicissitudes terão decorrido entretanto, quando, além do mais, como a Fénix, hoje renascida, tem uma vida pujante, respirando por todos os poros? Com foral dionisino, dado em 21 de Maio de 1299, por meio do qual a importância de Santa Maria da Veiga se transfere para a “proba” real, que recebe o nome de Vila Nova de Foz Côa, nesta localidade, município sobre si próprio, terá sido construído, junto à igreja matriz, então só românica e de pequenas dimensões, um hospício que tinha como fim
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prestar cuidados de saúde aos seus moradores e receber os peregrinos3, mormente os que se destinavam a Compostela4. Vários destes hospícios existiam em território português, sobretudo no Século XII, segundo levantamento feito pelo historiador destas Instituições Dr. Ferreira da Silva. Nesse documento, em forma de mapa do espaço continental português, lá figura o hospício, tendo capela e respectivas instalações para a prestação de cuidados.
Fig. 3 – Reminiscências arquitectónicas da Misericórdia e do Hospital antigos
Estes hospícios, dado o seu carácter beneficente, eram regidos e mantidos por uma irmandade, admitindo-se que se tratasse de uma irmandade do Espírito Santo, criada sob a inspiração da Rainha Santa Isabel, que conheceu Vila Nova de Foz Côa, em breve passagem, nos dias felizes da sua recepção em Portugal5. Quem visite, ainda hoje, a imponente Matriz Ferreira da Silva, “História das Misericórdias Portuguesas”, in História Mundial das Misericórdias – Actas, Lisboa, Edição da União das Misericórdias, 2007. 4 Ferreira da Silva, “História das Misericórdias Portuguesas”, Edição da União das Misericórdias e Comunicação que apresentou no II Congresso Mundial das Misericórdias, no Porto e em Santiago e Compostela, 2007. 5 A passagem da Rainha Santa Isabel por terras fozcoenses, em 22 de Junho de 1282, a caminho do arraial formado em Trancoso, onde recebeu, com D. Dinis, em 26 desse mês, as bênçãos nupciais consequentes ao casamento (onde o noivo foi representado por 3
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de Foz Côa, pode apreciar, no chamado “lado da Epístola” (o nosso lado direito quando nos colocamos em frente do altar) um conjunto escultórico, com que se pretende figurar, entre as mais, a Presença e a Pessoa Terceira da Santíssima Trindade, como habitualmente é representada pela iconografia cristã. Tal conjunto testemunha hoje, na nossa modesta opinião, a devoção que então mais se acendrou na Pessoa do Espírito Santo, Deus Caridade, impulsionador do verdadeiro Amor e inspirador de uma nova Civilização. Se o hospício veio a ser o germe de uma Santa Casa de Misericórdia, a irmandade do Espírito Santo veio a desenvolver-se como uma irmandade mais aberta, alargada às 14 Obras de Misericórdia, na notável inspiração do Pe. Miguel Contreiras e na clarividência da Rainha Regente D. Leonor. Depois, com a recomendação de D. Manuel I, pela Carta Régia de 1499, um ano após a criação da Santa Casa de Lisboa, as irmandades com objectivos de bem-fazer foram obrigadas a seguir o modelo da Misericórdia da caFig. 4 – Capela da Misericórdia de Almendra pital, congregando-se todas numa única instituição, o que constituiu uma verdadeira revolução na assistência pública em Portugal. Por ocasião da criação da Irmandade da Misericórdia em Almendra, em 15716, Vila Nova de Foz Côa não deixaria de procurador) celebrado na Catedral de Barcelona, deixou uma perene e grata lembrança entre as gentes desta região. José Silvério de Andrade (Rio do Esquecimento) e Manuel Daniel (“O primeiro milagre das rosas”, in A Porta do Labirinto) não foram insensíveis à sua persistência, ambos tendo escrito em verso, ou conto, sobre este acontecimento. 6 Na fachada da Igreja da Misericórdia de Almendra pode ver-se um brasão inacabado, totalmente liso, com a indicação do ano de 1571. (foto de Pedro Daniel, gentilmente cedida). CEPIHS | 2
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criar, na sua área municipal, a Misericórdia que se aconselhava. Estaríamos então na segunda metade do Século XVI. Todavia, como já se referiu, o Abade de Miragaia, em 1881, não encontrou qualquer documento da “antiquíssima misericórdia” fozcoense; soube da sua localização (na antiga Rua do Hospital) e, por aí se terão ficado as suas observações. Se nada ou tão pouco existia então, o que se terá passado na vida da secular instituição? Procurando notícias nos alfarrábios, encontramos uma alusão à existência da Santa Casa da Misericórdia de Vila Nova de Foz Côa no ano de 17087. Pelo menos cerca de século e meio da sua provável constituição, ou perto disso, se teria passado já. Com o pormenor de que então era referida como “a Santa Casa da Misericórdia e o seu hospital”. Apesar de o terramoto de 1755 ter deixado muitas marcas na falha geológica entre Lisboa e o Vale da Vilariça, mormente na Igreja Matriz de Vila Nova de Foz Côa, não se confirma que houvesse qualquer dano no conjunto urbanístico da Santa Casa de Vila Nova de Foz Côa. Porém, 39 anos depois do terramoto, em 1794, o então Abade de Vila Nova de Foz Côa, Pe. Luís Bernardo Botelho, confirma a existência do conjunto urbanístico da Misericórdia, fazendo sobressair, na sua nota, que, na zona da Igreja Matriz, se situa a Santa Casa da Misericórdia e o seu hospital, na rua do mesmo nome, o “que já era então considerado um vestígio de antiguidade8”. E a partir daqui? Em 1881 o Abade de Miragaia nada encontrou que não fosse o seu desapontamento. Porventura o “nada” não se justifica? É evidente que nada existe sem uma justificação. Mesmo o “nada”. Se houve um efeito, tem de ter havido uma ou mais causas. Que explicações haverá para o seu desaparecimento? E aqui começa o terrível problema Pe. António Carvalho Costa, Chorographia Portuguesa (1650-1715), tomo II, Capítulo XIX, Lisboa, Officina de Valentim da Costa Deslandes; Pe. Luís Cardoso, Dicionário Geográfico de Portugal, vol. VII, Lisboa, 1915, confirma a sua existência na data de 1708. 8 D. Joaquim de Azevedo, História Eclesiástica da Cidade e Bispado de Lamego, Tipografia do Jornal do Porto, 1877, p. 193. 7
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do preenchimento das lacunas, com base em eventos que poderão ter sido parte nas causas. A proximidade de datas com o aparecimento de uma nova ideologia – trazida pela Revolução Francesa (1789) – e tudo quanto daí proveio, como uma invasão pelos franceses, o liberalismo e a aversão às instituições de “mão morta” que não pagavam impostos ao Estado, a lei da desamortização e consequente colocação ao desbarato dos bens destas corporações, a secularização e o provável desinteresse de muitos responsáveis e membros da respectiva irmandade, tudo isso pode ter cavado a ruína e por fim o desaparecimento do que foi tão importante na vida da população. Sim, pode ter sido. Mas seria? Certo, certo, é que o Abade de Miragaia, com a sua anotação, confirmou o óbito da que foi uma preciosa e secular instituição ao serviço dos fozcoenses. Um óbito não definitivo, felizmente. Desapossada de um bem que lhe era extremamente útil, Vila Nova de Foz Côa sofreu a orfandade do desaparecimento do seu “hospital” e, durante anos e anos, recordou-o e recorda-o ainda, com saudade, mantendo-lhe o nome na rua onde existiu. Sem ele, que sofrimentos não tiveram que ser suportados? Quantas dores, quantas aflições, não ficaram sem remédio, sem amparo, sem outra ajuda que não fosse a caridade dos vizinhos? Foi sol de pouca dura a instalação de um hospital de campanha, na casa emprestada do Major Caldeira, que então se encontrava em serviço na Guiné, hospital esse que apoiou a construção da Linha Férrea do Douro, as obras da Ponte do Pocinho e a Linha do Sabor. Acabadas estas tarefas, de novo ficou sem qualquer ajuda a população fozcoense. Bradava-se, reclamava-se a sua construção, mas os políticos de então estavam mais preocupados em defender a Monarquia ou em implantar a República. Os partidos nasciam e pululavam como cardumes de peixes, que logo se transmudavam, nas cores e nos espaços. A saga dos Marçais deixara marcas na sociedade local, que aconselhavam a indiferença e semeavam o individualismo. E contudo, nos momentos de aflição, os “raios e coriscos” não traziam nenhum remédio. CEPIHS | 2
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Alguém lançou por fim a mão ao arado – o então Pároco de Vila Nova de Foz Côa e seu natural, Pe. José António Marrana. Foi ele o animador que juntou no salão da Câmara Municipal, em 20 de Dezembro de 1916, as figuras locais dos diversos partidos e, em reunião histórica, ali conseguiu a restauração da antiga Santa Casa da Misericórdia, desde logo interessada na construção de raiz de um hospital concelhio.Todos os presentes se comprometeram e acabaram por levar a peito o restauro da instituição e a construção do Hospital. Em 1930 o primeiro Ministro de então procedeu à sua inauguração9.
Fig. 5 – Hospital da Misericórdia de Vila Nova de Foz Côa
No seio da população não deixavam de surgir outros movimentos que apelavam à solidariedade organizada. Depois de várias tentativas, em 14 de Janeiro de 1934, um grupo de cidadãos cria os Bombeiros Voluntários; nesse dia, fardados, levam a efeito um simulacro, com algum perigo, nas instalações dos Paços do Concelho, felizmente sem gravidade. Mas, enfim, já havia Bombeiros Voluntários para o concelho. Depois, com o Estado Novo, a assistência pública passou a ter um modelo demasiado estatizado, que asfixiava um eventual voluntarismo das pessoas. Confundiam-se os cargos nas associações com funções oficiais. Em 30 de Março de 1930, foram inaugurados o Hospital e a luz eléctrica em Foz Côa. Nesse mesmo dia apareceu publicamente o primeiro grupo de escuteiros fozcoenses, devidamente fardados, abrilhantando as cerimónias. 9
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Os subsídios do Estado mantinham precariamente os serviços, mas não satisfaziam as necessidades, que passaram a ser cada vez maiores, tornando-se necessário o apoio financeiro das populações, através de doações e de cortejos de oferendas.
Fig. 6 – Lar de idosos e Creche
Nos tempos actuais, com os ares do “25 de Abril”, a instituição ganhou novas expressões e procurou satisfazer outras e não menos gritantes carências da população. Foi então criada, por ser uma grande necessidade local, a valência do “Apoio Domiciliário a Idosos”, no que foi pioneira nacional. Hoje, com diversas valências se apoiam centenas de pessoas, na sede do concelho e nas suas freguesias: através de diversos serviços: lar de idosos, centro de dia para idosos, apoio domiciliário a idosos, creche, actividades dos tempos livres, centro de actividades ocupacionais para crianças inadaptadas, clínica com várias especialidades, etc. A Instituição cresceu, como uma bola de neve rolando pela montanha. Permanece, ainda, porém, algo que subjaz no capítulo das suas mais íntimas preocupações, como alguém que quer conhecer a sua própria identidade. Pois em boa verdade, entre as “brumas da memória”, que podemos descobrir no perfil arquitectónico dos antigos edifícios da Misericórdia e do seu hospital, que lacunas nos interpelam e que explicações a sua história nos tem silenciado? CEPIHS | 2
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Fig. 7 – Edifício do Centro de Dia para Crianças Inadaptadas (CDCI) da SCM
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A arte do calçado feito à mão em Trás-os-Montes e no Alto Douro Maria da Assunção Carqueja Adriano Vasco Rodrigues*
Resumo – Os autores recordam a arte de sapateiro, que conheceram na sua adolescência. Falam dos materiais e instrumentos usados no fabrico dos vários tipos de calçado. Lembram o atractivo que eram as oficinas de sapateiro como locais de cavaqueira. Investigaram também as origens do calçado a partir dos romanos e muito mais tarde de outros povos como os Normandos, Judeus e Árabes. Palavras-chave – Sapateiros; Inquisição; Sumagre; Atanados; Gáspeas; Cardas. Abstract – The authors reminisce about the art of shoemaking as they knew it in their adolescence. They talk about the materials and tools used in the making of various types of shoes. They remember how attractive the shops were as places of chatting. They also researched the origins of shoemaking since the Romans and later other peoples such as the Normans, Jews and Arabs. Keywords – Shoemakers; Inquisition; Sumagre; Atanados; Gáspeas; Cardas.
______________ * Investigadores. CEPIHS | 2
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A arte dos sapateiros Até finais da década de 1960, em Trás-os-Montes e Alto Douro e no caso a que em particular nos referimos, Felgar, no concelho de Torre de Moncorvo, sobreviviam ainda alguns sapateiros, dedicados ao fabrico manual do calçado. Eram estimados e respeitados, conservando o apreço que vinha do tempo medieval das Corporações. As oficinas de sapateiros eram um atractivo para a cavaqueira. O plano tradicional destes espaços compunha-se de um compartimento quadrangular, ou rectangular de quatro paredes, porta larga aberta para a rua para bem entrar a luz e, no centro do compartimento, uma banca quadrangular com meio metro de lado e quatro pés, não ultrapassando os 60 cm de altura. No inverno, colocavam, por baixo, uma braseira para desengaranhar as mãos. Em torno sentavam-se os artistas em bancos de madeira com base redonda, ligeiramente escavada, assente em três pés. Os instrumentos de trabalho, que referiremos mais adiante, dispersavam-se pela superfície da banca, protegida, à volta, por um bordo com meia dúzia de centímetros de altura. Encostadas às paredes laterais, face à entrada, havia bancos suficientes para acolherem meia dúzia de visitantes e, penduradas, formas de madeira, que serviam para o fabrico de botas e sapatos. Também, penduravam moldes de cartão, ou de um tecido grosseiro, para recortar as peças de pele. Em frente da parede do fundo, dispersavam-se pelo chão rolos de peles e amplos pedaços de sola. Os visitantes vinham cavaquear com os artesãos, transmitiam novidades, contavam anedotas ou maldiziam da vida alheia. Em férias, os estudantes passavam ali algum tempo, pois tabernas não eram lugares recomendáveis e as forjas, embora atractivas, podiam enfarruscar… “Quem quiser saber as coisas vá à forja do ferreiro, dê a volta pelo forno e descaia no fiadeiro.”
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Por volta de meados do séc. XX, já não havia fiadeiros. Esta quadra do folclore transmontano ficaria bem, assim dita: “Quem quiser saber as coisas vá à forja do ferreiro, dê a volta pelo forno e descanse no sapateiro.”
A tradição artesanal de calçado em Torre de Moncorvo, ganhou impulso durante a idade média com os judeus e, na moderna, com os cristãos novos. A Professora Dr.ª Maria Adília Bento Fernandes da Fonseca, falou-nos num processo da Inquisição referente à filha de um sapateiro de Torre de Moncorvo, chamado Duarte Brandão. Ela, Francisca Fernandes, era viúva. Foi acusada de judaizar e encarcerada no dia 25 de Junho de 1575. Dezassete meses depois, no dia 3 de Novembro de 1576, falecia na prisão1. São muitos os processos da Inquisição contra sapateiros e curtidores de peles. O objectivo deste trabalho não é fazer esse estudo. Porém, deixaremos uma breve informação para melhor compreensão da história destes artesãos, ligada ao concelho de Torre de Moncorvo e ao distrito de Bragança. Na idade média muitos dos curtidores e sapateiros, eram judeus. Com a conversão forçada, um grande número converteu-se, passando a ser identificados como cristãos-novos. Atribuem as origens da Casa de Bragança à ligação amorosa de D. João, Mestre de Aviz, com a filha do Barbadão, um rico sapateiro judeu estabelecido na cidade da Guarda e fugido de Castela. É surpreendente a quantidade de sapateiros residentes na cidade de Bragança, em finais do século XVI e as suspeitas que despertaram aos inquisidores. Só no ano de 1593, foram levantados, nesta cidade, 48 processos a sapateiros, suas mulheres e filhas. Nesses processos, 21 acusados e acusadas, têm o nome da família Rodrigues, sendo, talvez, todos parentes e a denúncia de um tenha acarretado a perseguição dos outros. 1
A.N.T.T., Processo 04-345.
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Do Inventário dos Processos da Inquisição de Coimbra2, cuja leitura e organização se deve a Luís Bivar Guerra e a edição à Fundação Calouste Gulbenkian, em 1972, transcrevemos o nome dos sapateiros de Bragança e familiares inquietados pela Inquisição, no ano de 1593. Sapateiros
João Rodrigues; Afonso Cardoso; Baltazar Rodrigues; António Nunes; Isabel de Castro; mulher de Gaspar Rodrigues, sapateiro em Bragança; Álvaro Rodrigues; Henrique Afonso; Gaspar Rodrigues Garcia; Luís Gonçalves; Manuel Leão; Isabel Rodrigues; mulher de Adrião Gomes, sapateiro em Bragança; Belchior Rodrigues Venziaga; Belchior Rodrigues Paz; Grácia Rodrigues, mulher de Garcia Leão, sapateiro em Bragança; Francisco Gonçalves; Francisco Rodrigues, solteiro; Diogo Alves; Luís Nunes; Luís Gonçalves, o Embacorado; Manuel Lopes; João Rodrigues Sanhudo; Rodrigo Rodrigues, filho de António Rodrigues; João Rodrigues Vertinho, curtidor, solteiro; Isabel Rodrigues, filha de António Rua, sapateiro em Bragança; Isabel Gonçalves mulher de Gaspar Rodrigues Lourenço, sapateiro de Bragança; João Afonso; Isabel Rodrigues, mulher de João Rodrigues, sapateiro de Bragança; André Gonçalves; António Rodrigues Boluga; Alonso Gonçalves; António de Sá; António Fernandes; João Gonçalves; Ana Rodrigues, mulher de João Rodrigues Leal, sapateiro de Bragança; Ângela Rodrigues, mulher de António Fernandes; João Fernandes; João Gonçalves; João Rodrigues Sardinho; João Gonçalves; João Rodrigues Leal; Heitor Mendes; Garcia de Leão; Gonçalo Fernandes; Gabriel Rodrigues. Os números dos processos acompanham os nomes. Dispensamo-nos de os transcrever, indicando a fonte. Nesta região nasce, espontaneamente, o sumagre, arbusto da família das Anacardiáceas. Reduzido a pó serve para curtir o couro e para tinturaria. Torre de Moncorvo foi um polo de exportação de sumagre para países do Mar do Norte, em particular a Flandres. Era enviado em barcos Luís Bivar Guerra, Inventário dos Processos da Inquisição de Coimbra, Paris, Ed. F.C.G., Vol I, pp. 50 a 60. 2
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rabelos da Foz do Rio Sabor para o Porto e reembarcado para o Mar do Norte. Não só no Felgar mas em toda a parte, os sapateiros eram indispensáveis, satisfazendo as necessidades da população fornecendo-lhe calçado e reparando-o. O progressivo crescimento da industrialização do calçado, produzido em fábricas, e as alterações nos meios rurais com a forte migração para as cidades, principalmente depois do 25 de Abril e da descolonização com os retornados, provocaram, por falta de clientela, a extinção da arte do sapateiro manual e o recurso à compra de calçado feito e vendido em sapatarias, ou nas grandes superfícies comerciais. O fabrico mecânico destruiu o artesanato do calçado e acabou com a útil e estimada classe dos sapateiros. No Felgar e nas outras freguesias do concelho, satisfaziam as necessidades locais, exigidas pelo constante desgaste do calçado fabricado manualmente, em geral calçado grosso, atanado, com a cor natural do cortume. A sola era adquirida em folhas, com 10 a 12 quilos. Os atanados, meia pele de vitelo, pesavam entre 2 a 3 quilos. As carneiras utilizavam-se para fabricar chinelos, usados principalmente pelas mulheres e alfaiates. Eram de pele curtida de carneiro. Os calfes, couros finos, de vitela, eram aplicados no fabrico de botas de cano alto, ou cano curto e também no de sapatos. Ao cortar as primeiras peças diziam: sai a flor. As que se seguiam, eram as segundas, em geral os crutes. Recorriam a moldes para cortar as peles. Cada peça curtida trazia indicação dos pés que continha, facilitando o cálculo e o corte do sapateiro e tornando-o mais económico Na gravura (b) vemos uma pele com algumas peças desenhadas para recorte, sendo as mais abundantes as gáspeas para botas ou sapatos. Fabricavam também alparcas, uma espécie de alpercata feita com tiras de couro. Eram típicas dos judeus. Em Espanha, foram muito usadas no período que se seguiu à Guerra Civil. Originariamente seriam uma criação árabe. Em Portugal e em Espanha, os sapateiros passaram a recorrer aos pneus gastos para retirar as
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tiras.Também era frequente solarem as tamancas das mulheres e os socos dos homens, com tiras de pneu. As solas aplicadas no concelho de Torre de Moncorvo, assim como nos outros de Trás-os-Montes e Alto Douro, eram importados do Porto, da Fábrica do Bessa sendo consideradas da melhor qualidade e os calfes de excelente qualidade da Fábrica do Gama, situada nas Andresas, também no Porto. Por essa razão, os sapateiros estavam fortemente ligados ao Porto, onde adquiriam não só peles mas outros materiais. Na juventude o autor conheceu um senhor chamado Abílio Silva, natural de Longroiva, Meda, residente no Porto, onde na zona do Bolhão, tinha um laboratório e ali fabricava uma tinta rápida para o calçado. Era considerada a melhor. Fora monárquico combativo contra a República, o que lhe criou dificuldades para entrar na função pública. Um químico estrangeiro, também monárquico, ter-lhe-ia ensinado o segredo do fabrico daquela tinta, a que chamou Tinta rápida Mesquita. Ele mesmo, comercialmente, passou a chamar-se Mesquita. O negócio prosperou e a tinta era usada no norte de Portugal pelos sapateiros. Atribuiu este triunfo a S. Judas de Tadeu, advogado dos impossíveis. Em testemunho de gratidão mandou fazer uma imagem e ofereceu-a à Igreja de Longroiva, onde é venerada. O calçado grosso, botas ou tamancos com rasto de sola, eram cravejados com brocha de orelha, ou cardados com tachão redondo, (6 a 8), ou carda, fabricada em Braga e comprada ao milheiro. A ferramenta do sapateiro
Na banca amontoavam-se instrumentos de trabalho: facas, afiadores, torqueses, sovelas, alisadores, grosas, rapadores, martelos, limas, malhete (pequeno martelo de madeira), brunidores, polidores, folhas de lixa, novelos de linha. No chão, perto do piso da porta, uma pedra de afiar. Junto da mesinha, um furador para abrir casas para os cordões, uma forma de ferro aplicada num cepo de madeira para pregar as brochas nas solas.
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Na banca também havia pedaços de pez, cera, graxa, frascos com tinta, pinceis, escovas. Encostada, no sentido da altura, estava uma tábua para sobre ela cortarem as peles. Algumas bancas tinham gaveta, na qual se arrumava um livro de folhas com linhas, onde se registava o nome do cliente, as medidas dos pés, o custo do fabrico ou do conserto e se foi pago ou ficou a dever… O livro servia para todos os registos. No primeiro quartel do séc. XX, havia, em algumas vilas da Beira e de Trás-os-Montes, oficinas de sapateiro, que tinham máquinas para coser a pele usada no fabrico da calçado fino. Eram semelhantes às máquinas de costura dos alfaiates.
Fig. a – Folha de atanado (pele de vitelo)
Fig. b – Pele com desenho de gáspeas e outras peças
O fabrico do calçado
Fazer à mão botas e sapatos exigia a prévia escolha dos moldes. Colocavam-nos sobre as peles, recortando-as. Havia vários padrões. Os couros davam de si, o que exigia cuidados. O sapateiro trabalhava com os couros humedecidos, ou com solas deitadas de molho. Retirava-as da água e surrava-as, desfazendo rugas, gelhas e contornos, alisando. Trabalhava com a tábua nos joelhos, segurando os moldes e seguindo os padrões escolhidos, preocupando-se com a maneira de os cortar. Reunia os pedaços cortados e colocava-os sobre a forma de madeira. À frente ficavam as testeiras. Furava com a sovela e cosia com fio de cânhamo, encerando-o, ou untando-o com pez, conforme o trabalho. Na extremidade aplicavam-lhe, como agulha, uma cerda CEPIHS | 2
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de porco. O sapateiro prestava especial atenção às viras e à parte onde assentava o tacão, depois de aparar a sola. Para tornar o calçado mais resistente, dotavam-no de calcanheira e de contrafortes. Preparavam o contraforte arredondando a pele com a faca bem afiada, adelgaçando-o nas quatro faces e menos na parte inferior, pois tinha de ali cortar a calcanheira. Os furos das costuras dependiam do formato da sovela escolhida. As viras eram cuidadosamente preparadas, procurando facilitar o trabalho de coser com linhas. Aplicavam-se forros, grudando-os nas extremidades. Tinham cuidados especiais com as gáspeas, reforçando-as. Procediam de igual modo com a vira, para que se mantivesse firme, aguentando a costura da sola. Com a ajuda da sovela, ou recorrendo, por vezes, a agulhas grossas, cosiam as peças modelando o calçado. Retiravam o molde de madeira e preocupavam-se com o corte das palmilhas. Prestavam especial atenção às curvas, molhando-as, previamente, enxugando-as de modo a ficarem humedecidas.Trabalhavam melhor o couro, meio seco. A peça de calçado era ainda objecto de recortes e aparos. O palmilhado podia ser pregado ou insolado, cosido com o fio dando sucessivas voltas. Coser e alinhavar requeriam a utilização de certos instrumentos e técnicas, trabalhando com a sovela de ponta mais fina, ou mais grossa, obrigando uma mão a fazer força no Fig. c – Forma de madeira para sapato cabo da sovela e a outra a puxar o fio. A última costura a ser feita era a calcanheira. A sola aplicava-se bem surrada, untada com grude. Usavam lixa para polir. Depois de feito o presponto das solas aplicavam os picados, uma camada de grude e batia-se com o martelo. O grude era feito com farinha triga e água. Misturavam-lhe uma pequena quantidade de vinagre para afugentar as moscas. Os utentes, ao adquirirem as botas novas, normalmente ensebavam-nas, isto é, cobriam o couro com sebo para o proteger. Pediam também 304
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para as brochar, isto é, aplicar brochas ou protectores, pequenas plaquinhas de ferro, colocadas na sola da biqueira, ou na do salto. Os sapatos eram engraxados, puxando-lhe o brilho com uma escova. Todo o calçado era feito por medida, colocando o pé descalço, sobre uma fita métrica. Nos meios rurais, o sapateiro não se limitava ao fabrico do calçado mas à sua reparação, aplicando lombas (remendos no calfe roto ou gasto), nas biqueiras, ou meias-solas, ou solas inteiras e saltos, sobrepondo várias camadas de sola da mais grossa.
Figs. d, e – Bota retirada da forma. Falta solar o sapato retirado da forma
Reforçavam as tamancas das mulheres com sola e, por vezes, com fitas de pneu. Também solavam os chinelos de pano ou de lã, feitos em casa, pelas mulheres. Havia lugares onde as senhoras fabricavam totalmente as chinelas fazendo-lhes o rasto ou pé com corda grossa que aplicavam sob uma palmilha de papelão. Tudo isto se perdeu. Lembramo-nos de na infância, ver fazer chinelos com a base de corda, para uso pessoal. Fig. f – Sapato de salto alto, de mulher As noivas, nas classes mais modestas, usavam pela primeira vez sapatos de salto alto, quando se casavam. Eram feitos à medida, por um sapateiro da povoação. Hoje, um sapato feito à mão, não tem preço… No Felgar, os últimos sapateiros activos, mantiveram-se até princípios da década de 1960. Eram o senhor Cunha e o senhor Chiquinho. Tinham aprendizes, a quem ensinaram a arte tal como a haviam aprendido na juventude.
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Começavam por lhes ensinar a cortar cordões de atanado para as botas com a espessura pretendida. Recorriam a um prego, que espetavam sobre um pedaço arredondado de pele colocado sobre a tábua. Imprimiam-lhe rotação com a faca perpendicularmente colocada sobre a superfície Fig. g – Rodela de atanado para recorte de cordões de madeira e davam-lhe o comprimento e espessura necessários. Informou-nos o Dr. António Salgado, natural do Felgar, médico especialista no Porto, que no seu tempo de estudante, em férias, passava tempos na oficina do senhor Cunha, que o acolhia com simpatia. Tinha um aprendiz chamado Ernesto, que imigrou para França. Vivia-se a época da imigração a salto. Com o senhor Chiquinho trabalhava o filho Ramiro. No ano escolar de 1964-65, partimos com a família para Angola, onde o autor trabalhou na Educação e na Investigação Científica e a autora trabalhou no Instituto de Investigação Científica de Angola. Em 1966, o autor foi oficialmente incumbido de pôr em funcionamento uma Escola Secundária, o Liceu de Henrique de Carvalho (Saurimo), na Lunda. A autora foi também encarregada de ali elaborar uma investigação na área das ciências humanas. Passaram lá quase um mês. Curiosamente, o autor propôs para Director do liceu um professor do Felgar, o Dr. António Martins, que ali ficou colocado com a Esposa, professora de Inglês. Para regressarmos a Luanda tínhamos de fazer o caminho inverso, percorrendo mais de 350 Km de estrada até ao Luso, ali apanhar o comboio da linha de Benguela e seguir, durante a noite, e parte do dia até Silva Porto, onde ficara o carro dos Serviços de Educação e regressar por estrada até à capital. Entre Silva Porto e o Luso não havia ligação por estrada, só por avião ou comboio. Saíram de Saurimo num jeep desconfortável e sem cobertura, a tempo para apanhar o comboio à meia-noite. O condutor, funcionário do Estado, esqueceu-se da reserva de combustível e ficaram na estrada, num sítio ermo, ao cair do sol, correndo o risco de passar ali a noite com 306
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ameaça dos animais selvagens e dos terroristas. Salvou-nos o aparecimento de outro Jeep conduzido pelo Senhor Mendes da Cameia, chefe daquela reserva de caça. Cedeu combustível ao motorista, que regressou a Henrique de Carvalho e ofereceu-se para nos conduzir à estação. Deu-nos de jantar em sua casa, onde tivemos um bom acolhimento por parte da Esposa e, num amplo recinto, já na entrada da casa, o de um leão, roçando-se meigamente mas causando arrepios… Perto da meia-noite, o Senhor Mendes e a Esposa levaram-os à estação. Adiantou-se o autor para meter a mala na cabine onde íamos dormir. Com surpresa, ao subir as escadas, à entrada da carruagem deu de caras com o Ramiro Sapateiro, armado de pistola-metralhadora. A surpresa foi mútua. Perguntou: – Que anda por aqui a fazer? Abraçámo-nos e disse-lhe que ia ter uma surpresa ainda maior. E assim foi, quando viu, a sua antiga vizinha do Felgar. O senhor Ramiro, pleno de juventude, era guarda da linha de Benguela. Era a mais longa de Angola, correndo de ocidente para oriente, de Benguela até Teixeira de Sousa no extremo de Angola, onde se ia ligar com o caminho-de-ferro do Baixo Congo até ao Catanga. De Benguela a Teixeira de Sousa eram dois ou três dias de viagem. O senhor Ramiro, com muita determinação, disse: – Durmam tranquilos, pois não deixarei de vigiar esta cabine, durante toda a noite. Na manhã seguinte um criado veio servir o pequeno-almoço. Ramiro permanecia vigilante no corredor. Passaram anos. No Ultramar tudo mudou. O Ramiro regressou com a família, que constituiu em Angola. Reencontramo-nos em Portugal, mas só há poucos anos soubemos que o pequeno-almoço nos foi oferecido por ele, pois não estava incluído no bilhete. Achamos oportuno referir esta memória vivida com aquele que foi o último sapateiro do Felgar. Também, para informação do leitor, diremos, que parte destas notas foram recolhidas no Felgar em 1958 ou 59, e outra parte, em Longroiva (Mêda), nos começos dos anos 50. Foi perdido o caderno onde o autor as reuniu, no início de 1960 e só agora, teve a CEPIHS | 2
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Maria da Assunção Carqueja e AdrianoVasco Rodrigues
sorte de reencontrar, pois restam poucos sapateiros artesãos para nos ensinarem com era a sua arte de fazer o calçado à mão. Desde quando andamos calçados? Na pré-história, as pessoas andavam descalças. Nos tempos primitivos, as tribos lusitanas desconheciam o calçado. Só passaram a proteger os pés, atando-lhes farrapos, quando, integrados no Exército Cartaginês, atravessaram os Alpes. Com a romanização e na idade média, generalizou-se o uso do calçado entre os economicamente mais favorecidos. Mas o pé descalço persistiu em Portugal até depois dos meados do Séc. XX, principalmente entre mulheres e crianças. Este costume não ocorria só nos meios rurais. Na década de 1960-70, para citar apenas o exemplo do Porto, ainda ali continuava a campanha do pé descalço, mostrando os aspectos negativos para a saúde. O Município portuense impunha penas pecuniárias para quem andasse descalço. Peixeiras e vendedeiras da rua levavam à cabeça canastras com produtos. Para contornarem a lei e pouparam calçado, tinham um pé calçado e outro descalço e uma chinela na mão. Se aparecia um polícia deitavam a chinela ao chão e enfiavam o pé... A origem do calçado, que hoje usamos e a que nos estamos a referir, deve-se principalmente aos Romanos. Houve alguns modelos de origem árabe e judaica que atrás referimos. Praticamente, ainda hoje se mantêm os três géneros de calçado romano: sapatos, sandálias e chinelos. O mais vulgar eram as sandálias feitas de couro, apertadas com fitas de pele, que passavam entre os dedos e enrolavam em torno da perna. As sandálias mais robustas eram as dos soldados e davam pelo nome de caliga. Nas cerimónias públicas, em festas e banquetes, levar sandálias era falta de consideração cívica e de respeito pelas pessoas importantes. Os sapatos, calcei, eram usados por pessoas de condição, que vestiam toga. Normalmente, os sapatos eram pretos ou de cor arruivada. Os romanos nobres identificavam-se segundo os modelos do calçado.
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Os patrícios distinguiam-se pelos calcevs patricivs e senadores pelos calcevs senatorivs3. Os sapatos dos patrícios eram vermelhos, apertados por quatro correias de couro, rematas por laços. Tinham um fecho, a lingueta de pele com a forma de crescente, chamada lúnula. Com o decorrer do tempo deixou de ser símbolo próprio dos patrícios e vulgarizou-se. A população rural e a mais pobre das cidades calçava uma meia bota conhecida por pero, feita com pele não curtida. Os escravos e os camponeses usavam chinelos4, o sculponea. Os caçadores tinham um calçado de sola grossa, os socci, parecidos com pantufas. Homens e mulheres calçavam sapatos do mesmo modelo. Os das mulheres eram feitos com uma pele mais fina. Por vezes aplicavam ricos adornos. Estes modelos evoluíram ao longo da idade média e da moderna. O calçado que se usou no Ocidente Europeu a partir da 2.ª metade do século XIX, seguiu modelos franceses. As tamancas e as botas de calfe usadas pelos transmontanos estão caindo em desuso. O nome soco dado ao tamanco de madeira nasceu dos usados pelos suecos e trazidos para a Península pelos Normandos. Em Castelhano ainda lhes chamam suecos.
Fig. h – Socos de madeira e couro, portugueses e catalães, 1950 (Grav. Violant Simorra)
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Ugo Enrico Paoli, Vita Romana, Florença, 1960. W. W. Buckland, A manual of Roman private life, Cambridge, 1925.
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O tempo dos lugares Carrazeda de Ansiães e Torre de Moncorvo na I República Maria Otília Pereira Lage*
Resumo – Este artigo aborda, no contexto da historiografia nacional, traços impressivos da história local/regional de duas vilas transmontanas – Moncorvo e Carrazeda de Ansiães, retirando-as do limbo historiográfico. Inventaria, descreve e interpreta factos significativos da história das populações e indivíduos dessas duas localidades, durante a I República (1910-1926). Visa desocultar dinâmicas peculiares micro e realidades singulares que permitem recuperar a vitalidade e a diversidade da experiência histórica do país e devolver aos lugares a sua historicidade. Palavras-chave – I República Portuguesa; Carrazeda de Ansiães; Moncorvo; História local/regional. Abstract – In the context of national historiography, this article approaches impressive traces of the local/regional history of two towns transmontanas – Moncorvo and Carrazeda de Ansiães, pulling them out of the historiographical limbo. It registers, describes and interprets significant facts of the history of the peoples and individuals of those two sites, during the 1st Republic (1910-1926). It aims at uncovering peculiar dynamics and singular realities that allow for the recovery of the vitality and diversity of the historical experience of the country and for the return of historicity to these places. Keywords – I Republic; Carrazeda de Ansiães; Moncorvo; Local/regional history.
______________ * Professora da Universidade Lusófona do Porto e Investigadora do CITCEM – Faculdade de Letras da Universidade do Porto CEPIHS | 2
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Introdução
A propósito do I Centenário da República Portuguesa, interessou-nos investigar a história local/regional de Trás-os-Montes, no 1.º quartel do séc. XX. Procuramos identificar traços impressivos dos quotidianos de Carrazeda de Ansiães, que já foi considerado o município de Bragança com mais tradições republicanas, bem como o do vizinho concelho de Torre de Moncorvo que, durante séculos, foi comarca daquele. Assim, este artigo inscreve-se num quadro conceptual de história local/regional1 e do “conhecimento situado”2, adoptando uma perspectiva assumidamente parcial e comprometida, própria aliás de todo o conhecimento. Metodologicamente cruza duas escalas de observação: a nacional, relativa à historiografia republicana que se resume a partir de versões de maior consenso, e a regional/local em que relevam factos significativos do quotidiano das populações dessas duas localidades, durante a I República (1910-1926)3. Relembramos, primeiro, numa espécie de sobrevoo panorâmico, marcos da historiografia nacional da República, como enquadramento genérico e elemento comparativo de referência para a história local. Pressupondo que a produção histórica nacional tende a esvaziar a historicidade do local, debruçamo-nos, depois, sobre a história micro de Moncorvo e Carrazeda, tentando retirá-la do limbo historiográfico e recuperar a vitalidade da experiência histórica do país, através da desocultação de dinâmicas peculiares destas duas localidades do interior do país. Cientes do estatuto de não menoridade da história
A História Regional/Local não é o mesmo que micro-história, desenvolvida por Carl Grinsburg e outros autores da Escola italiana, já que esta opera uma redução de escala de observação para perceber aspectos que poderiam não ser percebidos na análise macro, enquanto que a História Regional/Local faz o estudo da realidade que ela própria recorta. 2 Baseia-se o “conhecimento situado” em estudos das historiadoras e sociólogas americanas Donna Harway e Sandra Harding, cujos trabalhos muito têm contribuído para o avanço dos novos estudos sociais e históricos. 3 Dados coligidos em documentos, fontes, e factos inventariados em bibliografias transmontanas, com destaque para Hirondino da Paixão Fernandes, Biliografia do Distrito de Bragança, Bragança, ISP, Câmara. Municipal, Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Bragança, 1996. Série Documentos. 1
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local no contexto historiográfico, reflectimos ainda sobre noções como “o tempo dos lugares” e a “historicidade dos espaços”4. Procuramos evidenciar o interesse de redescobrir a história de Portugal, durante a I República, a partir da apreensão de realidades singulares que compõem a sua vitalidade histórica, o que passa pela demonstração das muitas possibilidades próprias da História Local/Regional5. 1. Uma conjuntura nacional de modernidade – A I República Portuguesa.
O movimento revolucionário republicano seguiu-se à acção doutrinária e política desenvolvida, desde a criação do Partido Republicano6, em 1876. A propaganda republicana tirou partido de alguns factos históricos de exaltação patriótica e repercussão nacional: as comemorações do 3.º centenário da morte de Camões (1880), e o Ultimatum Inglês (1890), Agnaldo de Sousa Barbosa, “A Propósito de um estatuto para a História Local e Regional: algumas reflexões”, in Mesa Redonda: “Redescobrindo o Brasil: os desafios da História Local e Regional”, XII Semana de História da UNESP/Franca, Outubro de 1998. 5 A renovação historiográfica da Escola dos Annales, possibilitou a ampliação dos campos e territórios do historiador, ampliando-se, a partir de 1970, as discussões sobre novas abordagens e perspectivas na investigação histórica. Nesse contexto, se viria a afirmar uma nova História Regional/Local. Impulsionada entre nós pelos estudos eruditos etnográficos e arqueológicos dos anos 1920-1930, que tiveram nos vimaranenses Martins Sarmento e Alberto Sampaio, ou no transmontano Abade de Baçal, pioneiros e exímios cultores, viria esta história a ser revivificada no âmbito da produção monográfica da Demografia Histórica, a partir da década de 1960. Continua ainda hoje a ser objecto de alguns preconceitos académicos, pese embora a sua entrada nas Universidades. A História Regional/Local estuda o contexto histórico de determinado espaço, tomando as suas fronteiras político-administrativas juridicamente definidas, como delimitação do objecto de pesquisa. Lida com o particular, a multiplicidade e trabalha as diferenças da realidade que recorta, permitindo abordar aspectos que não são facilmente percebidos e/ou integrados numa análise macro, oferecendo a capacidade de evidenciar o concreto, o quotidiano, fazendo a ponte entre o individual e o social. Permite estabelecer comparações com o nacional, ampliando a visão e compreensão de determinado facto ao possibilitar romper com estereótipos historiográficos. 6 Partido Republicano Português: o directório do Partido Republicano foi fundado em 1876. Entre os seus fundadores, destacou-se Teófilo de Braga. A partir de 1880, data da comemoração do terceiro centenário da morte de Camões, apresentou-se como o mais forte partido da oposição, congregando intelectuais, comerciantes, industriais, profissionais liberais, funcionários e proletariado urbano, defendia ideias de patriotismo, anticlericalismo, progresso, liberdade, justiça e a abolição do regime monárquico. 4
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aproveitados pelos republicanos que se identificaram com os sentimentos nacionais e aspirações populares. Mais tarde, a revolução que conduziu à instauração da República, a 5 de Outubro de 1910, iria contar, principalmente, com o apoio do Partido Republicano, da Maçonaria7 e da Carbonária, bem como das forças militares de baixa patente, do exército, da marinha e da artilharia, e de alguns sectores civis, com destaque para a classe média, pequena burguesia e operários. Durante os 16 anos de vigência da I República, foram tomadas várias medidas de alcance político, social e cultural que muito contribuiram para mudar o retrato social do país. A Laicização do Estado, traduzida, designadamente, na Lei de Separação do Estado e da Igreja, foi talvez a medida que causou maiores perturbações, contribuindo para o afastamento da República e dos católicos, com a expulsão de Ordens Religiosas, a nacionalização dos bens da Igreja, a proibição do ensino religioso em escolas oficiais, a legalização do divórcio, a obrigatoriedade do Registo Civil, e o reconhecimento dos filhos ilegítimos (Leis da Família) e da igualdade dos direitos da mulher8. Importante legislação social estabeleceu uma série de novos direitos e regalias para os cidadãos: direito à greve e à organização sindical, direito à Assistência Social (protecção em casos de doença e de velhice), direito ao descanso semanal, estabelecimento de um horário de trabalho de 8h por dia (48h semanais) e criação de instituições de protecção à infância e à velhice. Foi efectuada a reorganização dos poderes do Estado e das relações com as colónias, publicadas as leis do sufrágio directo e legisladas várias medidas no domínio da Educação: criação do Ministério de Instrução Pública, proclamação da escolaridade obrigatória e gratuita entre os 7 e os 10 anos, criação de mais de 1500 escolas9, desenvolvimento do ensino técnico e agrícola, fundação Maçonaria: organização semi-secreta, com rituais próprios, defensora da fertilidade e da liberdade. Era constituída predominantemente por elementos da burguesia. Carbonária: organização secreta, com algumas ligações à Maçonaria, embora independente dela. Remontando, em Portugal, a 1822, era anticlerical e defendia a queda da monarquia, através, mesmo, do uso de meios violentos. 8 A primeira mulher a exercer o direito ao voto foi a médica Adelaide de Jesus Damas Brazão e Cabette, membro da Maçonaria Feminina Portuguesa. 9 Apesar disso, a alta taxa de analfabetismo, durante o período de 1910 a 1926, apenas baixou de 70% para cerca de 61%. 7
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das Universidades de Lisboa e Porto e reorganização da Universidade de Coimbra. Todavia, a conjuntura política, económica e social à época, agravada pela entrada do país na I Guerra Mundial (1914-1918), era de generalizada instabilidade: conflitos e antagonismos partidários, divisões internas no Partido Republicano que se desmembrou em formações partidárias rivais, frequentes subsitituições de governos e Presidentes da República10, vigência de duas ditaduras11, e constante oposição da igreja e dos monárquicos. Este panorama era ainda agravado por: aumentos de impostos, subida da inflação e da dívida pública, desvalorização da moeda e dos salários, racionamento de alimentos básicos, assaltos a lojas nas cidades, especulação e açambarcamento de produtos e diminuição do poder de compra. A agitação social era intensa e frequente devido a: greves, tumultos e descontentamento dos trabalhadores, da classe média e operários urbanos, despedimentos e encerramentos de fábricas, atentados terroristas, prisões, degredos e outros meios violentos. Portugal conseguiu no entanto participar nos primeiros Jogos Olímpicos e na Exposição Industrial do Rio de Janeiro e registou a primeira travessia aérea do Atlântico e as primeiras emissões de rádio. No entanto, a queda da I Primeira República precipita-se e, derrubada pelo Golpe Militar de Braga de 28 de Maio de 1926, foi substituida pela Ditadura Militar (1926-33), com a dissolução do Parlamento e a suspensão das liberdades individuais, a que se seguiu, com a Constituição de 1933, o Estado Novo, longo período de ditadura fascista, até ao 25 de Abril de 1974. Em Trás-os-Montes, cujos concelhos têm sido, na sua maioria, considerados republicanos, até pela sua destacada participação nos combates contra os rebeldes monárquicos de Paiva Couceiro, em 191912, e já antes, nas denúncias republicanas da chamada “fantochada paivense”13, um dos aspectos relevantes da história política da I República manifestouEntre 1910 e 1926, existiram quarenta e cinco governos e oito Presidentes da República. 11 Pimenta de Castro, em 1915 e Sidónio Pais, em 1917-1918. 12 Por exemplo, Mirandela foi mesmo agraciada com o grau de oficial da Ordem de Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito. 13 “Bandoleiros, bandidos e bandalhos”, in O Radical, periódico republicano de Moncorvo, n.º 2, 19 de Outubro de 1911. 10
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-se na acção do clientelismo e do caciquismo, promovidos pelo Partido Reconstituinte (1920-1923)14. Este partido, que se afirmava de reconstituição nacional e que chegou a ser o terceiro maior partido republicano, a seguir ao Partido Democrático e ao Partido Liberal, assumiu uma importância política que ultrapassou, de longe, a sua existência efémera. Tinha os seus bastiões políticos e eleitorais mais importantes em Bragança e no Funchal, onde se evidenciava o “clientelismo tradicional”. Com um discurso moralizador, proclamava a era nova, uma vida nova, apresentando, no entanto, uma prática contrária a essas ideias, porque assente em relações de parentela, no patrocinato tradicional e no caciquismo, cujas garantias materiais a participação na I Guerra Mundial afectou, já que o estado endividado se viu obrigado a estancar as benesses e os empregos públicos. 2. Moncorvo e Carrazeda: concelhos de influência e tradição republicana?
Fig. 1 – Ferreiro e mulheres fiando, 191415
João Manuel Gonçalves da Silva, “O clientelismo partidário durante a I República: o caso do Partido Reconstituinte (1920-1923)”, in Análise Social, 2, vol. XXXII (140), 1997 (1), pp. 31-74. 15 Fotos gentilmente cedidas por Arnaldo Silva, fundador e director do Núcleo Museológico de Fotografia do Douro Superior, Moncorvo. 14
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A região do distrito de Bragança, a que pertencem os concelhos aqui estudados, apresentava a maior influência do Partido Reconstituinte. Zona de acentuada cultura localista, ainda se podia, aí, falar no primado das relações patrono-cliente estabelecidas sobre a “autoridade do passado e do costume”, consagrada por uma verdade imemorial e pela atitude habitual da sua observância, com respeito e deferência pelo pater famílias. Esta ideologia assentava numa proclamada “inferioridade mental dos homens simples e religiosos das nossas aldeias” que se fazia radicar em certos comportamentos colectivos das populações. Durante a vigência do novo regime republicano as dificuldades da vida em geral que se mantêm ou mesmo se agravam levam a que em 1912, no distrito de Bragança se registassem já mais de 9.500 emigrantes, sem contar os que partiam clandestinamente através de Espanha. A emigração continuava a aumentar, sobretudo, no distrito de Bragança, ao ponto de o jornal O Montanhês do Norte, no fim do ano de 1912, referir que: “É mais da vigésima parte da população do distrito só a que emigrou legalmente (...)”16, o que era corroborado, por notícias de Moncorvo: “A emigração para o Brasil e América do Norte, continua assustadora. Há aldeias que ficam quase desabitadas”17. À semelhança de outras terras transmontanas a emigração destes dois concelhos no período de 1910-1920, teve como destino principal, o Brasil, Moncorvo com 8,23% e Carrazeda, 6,99%. De Moncorvo, emigraram para a América, 4812 pessoas (96,67%), com o Brasil, principal ponto de atracção, a registar 82,35%. Em 1912, de Moncorvo emigraram para este país, 914 pessoas (97,3%), enquanto que em 1908, com um total de 234 pessoas emigradas, a percentagem fora de 100%. Carrazeda registou 3 608 emigrantes, sendo que 3 469 rumaram às Américas, dos quais 3 365 (97%) para o Brasil, que concentrou o total de emigrantes deste concelho em 1914-1915. Em 1912, o ano mais representativo da emigração nesta zona (19,56% do total do concelho), dos 706 emigrantes, 701 (99,29%) tiveram como destino o Brasil18. A República, 12 de Dezembro de 1912, op. cit., Tomo II, p. 239. Idem, pp. 239-240. 18 Conceição Meireles Pereira; Fernando de Sousa e Isménia de Lima Martins (org.), “A emigração portuguesa para o Brasil”, in Revista do Centro de Estudos de População, Economia e Sociedade, Porto, CEPESE, Ed. Afrontamento, 2007 (14/15 - I). 16 17
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Paralelamente, e em grande medida, por influência da corrida aos armamentos para a I Guerra Mundial que se avizinhava, os que ficavam, encontravam ocupação nos trabalhos mineiros, tendo-se verificado no distrito de Bragança e também no de Vila Real, um aumento dos registos e concessões de minas de vários metais, designadamente de volfrâmio. Algumas destas concessões vieram da Companhia Mineira de Tungsténio de Bruxelas (Bélgica) e outras, como as minas da Borralha, em Montalegre, de empresas francesas. Anos antes, em 1909, havia já começado a funcionar um excelente cinematógrafo, no Teatro Camões, na cidade de Bragança, já então iluminada a luz eléctrica, prosseguindo as obras de iluminação eléctrica em Mirandela. Entretanto, afirmava-se no distrito a influência da ideologia republicana, o que explica a celebração em Bragança, em Março de 1909, de uma sessão solene da Festa da Árvore, com plantação de negrilhos, cerdeiras e nogueiras, seguida da plantação de árvores nos vários concelhos do distrito de Bragança19. Mas, no domínio político-social, a “autoridade do passado” e a “santidade da tradição”, continuavam a confirmar-se na genealogia de líderes locais reconstituintes, como, por exemplo, em Bragança, os Lopes Cardoso, que constituíam uma verdadeira linhagem ou dinastia de parlamentares, governadores civis, administradores de concelho e presidentes de câmara que remontava, pelo menos, já à segunda metade do séc. XIX. As relações de parentesco eram claramente subjacentes à organização política local. Os parlamentares reconstituintes estavam quase todos unidos por laços familiares. Por exemplo, os irmãos Artur e Acácio Lopes Cardoso, primos de Fernando Salgado e Abílio Soeiro, relacionavam-se com as mais velhas famílias brasonadas da região, como os Castros, os Navarro, os Sá Vargas que, com o liberalismo, se haviam tornado caciques locais, parlamentares e mesmo ministros cabralistas. Simultaneamente, controlavam um vasto património fundiário, espalhado designadamente por Moncorvo e Carrazeda de Ansiães, sobre o qual assentavam as rela19
Op. cit., Tomo II, pp. 213-215.
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ções fortemente personalizadas e os vínculos de tipo parental e compadrio que caracterizava o “patrocinato dos terratenentes”20. Ilustres, naturais de Carrazeda de Ansiães e de Moncorvo, afirmaram, durante a I República, o seu protagonismo na vida pública e política nacional, regional e local, tendo alguns sido governadores civis do distrito de Bragança, como Constâncio Arnaldo de Carvalho, advogado e escritor, natural de Moncorvo e que foi governador durante três meses em 1917, de Outubro a Dezembro. De Carrazeda de Ansiães, destacou-se o republicano João José de Freitas, professor e advogado, com funções desde 5 de Outubro de 1910 a 9 de Junho de 1911, sucedido por seu irmão, António Luís de Freitas, advogado, magistrado judicial. Desempenhou o cargo de governador civil de 9 de Junho a 13 de Outubro de 1911. Moncorvo deu à República, um Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1920, posteriormente, em 1921, Ministro das Finanças – Francisco António Correia [1877-1938]. Sem filiação partidária, ocupou diversos outros cargos e funções políticas, académicas e diplomáticas, tendo sido, depois da sua adesão à Ditadura Militar, vice-reitor da Universidade Técnica (1936-1938), sócio da Academia das Ciências e do Instituto de Coimbra. Esteve, ainda, ligado à Seara Nova, cujo primeiro corpo directivo integrou, e foi autor de diversas obras de direito fiscal e estudos económicos.
João Manuel Gonçalves da Silva, “O clientelismo partidário durante a I República: o caso do Partido Reconstituinte (1920-1923)”, in Análise Social, vol. XXXII (140), 1997 (1), pp. 31-74. 20
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3. Factos e documentos para a história de Torre de Moncorvo na I República
Fig. 2 – Fotos antigas da igreja matriz e da dança das fitas21
Logo em 1911, é criado um posto de registo civil em Moncorvo, a que se seguiram mais dois, um na freguesia do Felgar e outro na freguesia do Castedo, e no verão do mesmo ano, uma estação telégrafo-postal em Urros. Por Acórdãos da Comissão Distrital de Bragança, declararam-se ao abandono as minas de ferro do Alto do Chapéu, Sobralhal, Barro Vermelho, Fraga dos Apriscos e Santa Maria, na freguesia de Moncorvo. Também a mina de ferro de Cabeça da Mua, na freguesia do Felgar, a de zinco, da Levada do Moinho e a da Figueira Douda, na freguesia de Estevais, do mesmo concelho. Em Novembro, é aberto à circulação ferroviária o troço da linha Pocinho-Moncorvo-Carviçais e, em Dezembro, são incluídos no regime florestal parcial, vários terrenos do concelho de Moncorvo. Ainda no mesmo ano, o então juiz de Moncorvo, António Luís de Freitas, natural do Pombal de Carrazeda de Ansiães, ofereceu, com sua mulher, um terreno e material para a construção de um edifício escolar, na sua aldeia natal, acto pelo qual foram louvados em portaria de 11 de Março desse ano. A contestação monárquica à jovem República continuava a manifestar-se em Trás-os-Montes, designadamente em Vinhais onde, a 5 de Outubro de 1911, alguns conspiradores monárquicos, apoiados pelos
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Fotos do espólio Núcleo Museológico de Fotografia do Douro Superior, Moncorvo.
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“traidores couceiristas”, içaram na Câmara Municipal a bandeira azul e branca, proclamando, de novo, a Monarquia.
Fig.3 – Fotografia de grupo, Carviçais, 191422
Estes adeptos de Paiva Couceiro eram denunciados como “bandidos”, em O Radical, semanário republicano de Moncorvo, cujo director e proprietário, Alves Hypolito, era um dirigente republicano de Carviçais23. O então governador civil de Bragança, Dr. João Freitas, natural do concelho de Carrazeda, onde foi objecto de manifestações públicas de apoio, era violentamente criticado numa carta aberta de O Radical pela sua alegada conivência com partidários encapuçados da monarquia, caciques reaccionários que “dão loas à igreja tão contrária aos tempos de luz e glória da república”. Noutro artigo era pedida a demissão dos “srs Freitas”, senhores de força e mando que se considerava terem “desiludido completamente os republicanos sinceros desta região”24. Fotos do espólio do Núcleo de Fotografia do Douro Superior, Moncorvo. Deste jornal de duas folhas, que saía às quintas feiras, foram publicados, com periodicidade irregular, onze números, entre Agosto de 1911 e Fevereiro de 1912. 24 O Radical, n.º 2, 19 de Outubro de 1911, artigos: “A política no distrito de Bragança – Freitas e Cª”; “Carta Aberta ao governador civil de Bragança, Dr. João de Freitas”; “A Peste” e “Sueltos”. 22 23
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Em 28 de Dezembro de 1911, o n.º 8 de O Radical, cuja interrupção era, aí, atribuída a perseguições de “Canalhas”, noticia a realização de uma greve na colheita da azeitona do proletariado de Moncorvo que, mal remunerado, assim se manifestava contra os baixos salários e péssimas condições de vida e trabalho. No ano seguinte, a 11 de Janeiro, o jornal A República, divulgava a inauguração, nesta povoação, a 6 de Janeiro, de “um novo club” por parte do “grupo conservador republicano” e, dias depois, a concessão de jazigos de ferro na região de Moncorvo,25 e a abertura de concurso para adjudicação de várias minas no concelho de Moncorvo e no de Bragança26. No dia 28, dava ainda conta de que “começaram os trabalhos para a canalisação e depósito da água na estação do caminho de ferro desta vila”, indo “também iniciar-se os serviços para o mesmo fim na estação de Carviçais”, onde, iria ser fundada uma fábrica de sabão. No mês seguinte, a 17 de Fevereiro, A República reportava-se à correspondência recebida de Moncorvo, dando conta que fora concedida pelo governo a entrada de centeio para o país. Pelo rateio feito, determinava-se que este concelho ficasse “com a exígua percentagem de 1600 alqueires mais ou menos (…). Este centeio não acode à necessidade do concelho para mais de oito dias (…)”. Em Março do mesmo ano, Moncorvo continuava a ser notícia. Tinham chegado à vila três cavalheiros espanhóis para registarem as minas do Reboredo, enquanto que uma representação da Comissão Paroquial Republicana, da freguesia de Mós, solicitava uma paragem dos comboios do Pocinho a Carviçais, no sítio da Devesa Velha entre as estações de Felgar e Carviçais. Alegavam que “para virem à sede do concelho, quasi nunca podem vir de comboio, atendendo à grande distância para Carvalhal e à impossibilidade de transpor a povoação de Carviçais para chegar à estação do mesmo nome, pelas contínuas e velhas rixas entre os habitantes de Moz e aquela povoação”. Pela mesma altura, uma representação da Câmara Municipal de Moncorvo deslocava-se à Câmara dos Deputados para pedir a abertura da 25 26
DG, 22:399, Lisboa,16 de Janeiro de 1912. DG, 37:620, Lisboa, 1912.02.14; DG,132:2037-2038, Lisboa, 6 de Junho de 1912.
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Escola de Seixas, ao mesmo tempo que a escola de instrução secundária era substituída por uma escola elementar de Comércio27. Meses mais tarde, inaugurava-se uma Escola Móvel Agrícola, criada por iniciativa de ilustre filho da terra. A emigração para o Brasil e para a América do Norte continuava, aqui, a fazer-se sentir tão intensamente, que algumas aldeias se encontravam quase desabitadas28. No mês de Julho de 1912, três alvarás concediam a propriedade das minas de ferro de Fragas dos Apriscos, de Santa Maria, do Alto do Chapéu, do Barro Vermelho e do Cabeço da Mua, na freguesia de Felgar. Em Agosto, era aprovado o projecto e orçamento para a construção em Moncorvo, do Asilo Francisco António Meireles e, dois meses depois, em Outubro, autorizava-se a constituição da associação cultural da freguesia de Moncorvo, denominada de Santíssimo Sacramento e das Almas. Em Janeiro de 1913, foram criados postos de registo civil nas freguesias de Cabeça Boa e Cabeça de Mouro deste concelho29. Em Março do mesmo ano, era notícia, na vila, a indignação geral pela retirada inesperada do destacamento da Guarda Republicana, entretanto reposto, assim como a citação, pelo Juiz de Direito, dos interessados com direito a terrenos expropriados por utilidade pública para a construção de um lanço da estrada distrital 58, da Capela de Nozelos à ponte da Junqueira30. Publicaram-se três éditos31 a convidarem os que se sentissem prejudicados com a concessão de minas e de outros metais, a apresentarem as suas reclamações: em relação à mina da Canada do Carvalhal, na freguesia do Felgar, a do Vale dos Apriscos, na freguesia de Felgueiras, junto de Frederico Wakonigg Hummer, e quanto à do Cabeço da Mua 2, junto de Wilhelm Wakonigg Hummer.
Projecto de lei, in DG, 155:2404-2405, Lisboa, 4 de Julho de 1912. A República, 12 de Dezembro de 1912. 29 DG, 16:266, c.1, Lisboa, 20 de Janeiro de 1913. 30 DG, 76:1194, Lisboa, 2 de Abril de1913. 31 DG, 102:1613, Lisboa, 2 de Maio de 1913. 27 28
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Fig. 4 – Trabalhos mineiros32
Pela mesma altura, foram aprovados os programas e regulamento escolar da Escola Manuel António de Seixas, em Moncorvo, e aberto concurso para o professor da escola, com provas a realizar para provimento do lugar. Entretanto, correspondência da mesma vila para o jornal A República, de 28 de Junho do mesmo ano, dava conta de que se sucediam as queixas contra o facto de “campearem, impunemente, pelas ruas e largos da vila, os deliciosos suínos, deixando tudo em mísero estado”, situação que se mantinha no ano seguinte. Outras notícias de Moncorvo, publicadas no mesmo jornal, faziam eco de que a Lei de Separação era “no norte do país pouco ou quasi nada respeitada”, indicador curioso das condições de recepção regional e local de alguma da legislação mais emblemática da República. Ao mesmo tempo, eram arrematados bens de várias corporações deste concelho. Realizavam-se por essa altura, em Moncorvo, pelo menos duas feiras, bastante concorridas, uma anual, e outra chamada “Feira da Graça”, com grande oferta de melões. Prosseguiam, entretanto, as obras de restauro, com os trabalhos quase concluídos, do antiquíssimo convento dos frades nas faldas do monte do Reboredo, transformado em asilo da vila, onde, no mesmo ano, é criado um curso nocturno móvel33, à semelhança dos das vilas vizinhas de Mirandela, Alfândega da Fé, Macedo de Cavaleiros e Vinhais. Na noite a seguir ao Natal, ainda em 1914, a igreja matriz de
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Fotos do espólio Núcleo Museológico de Fotografia do Douro Superior, Moncorvo. Decreto n.º 1196 de 1914, I série, 239.
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Urros, do concelho de Moncorvo, foi assaltada sendo roubadas algumas jóias e objectos de valor34. Alguns melhoramentos vão acontecendo na vila. Destacam-se os trabalhos de saneamento e canalização de esgotos na rua do Cano e a aprovação, por portaria, do orçamento para construção da estrada nacional n.º 9 de ligação à estação de Moncorvo. Prosseguem as movimentações administrativas em torno de concessões mineiras, com a autorização de transferência de propriedade das minas de ferro de Fragas do Facho, do Chapéu e Fragas da Cotovia. Em 1916, foi finalmente inaugurada, num domingo, com “deslumbrantes festejos”35, a abertura do asilo denominado de Francisco Meireles, que possuía, já, obrigações da Companhia de Crédito Predial Português. Continuavam, em 1917 e 1918, a ser publicados éditos de concessão de licenças para pesquisas de minas de volfrâmio e outros metais, no Salgueiro e Prenego, freguesia da Lousa, e também na mina, Peladro, da freguesia do Felgar. O ano de 1919 marcou Trás-os-Montes com a turbulência da “Monarquia do Norte”, em Bragança, Vila Real, Pedras Salgadas, Chaves e, sobretudo, Mirandela. Travaram-se violentos combates entre republicanos e os rebeldes monárquicos de Paiva Couceiro que, desbaratados acabaram por fugir para Espanha. Estes acontecimentos e as chuvas torrenciais que se fizeram sentir tornaram caóticas as linhas telefónicas e as comunicações com Trás-os-Montes. Em Moncorvo, que contava já então com ensino comercial e industrial, foi nomeado um professor para a Aula Comercial de Manuel António de Seixas36 e criada, a 3 de Outubro de 1919, uma Escola Primária Superior37, extinta três anos depois38. Refira-se que as Escolas Primárias Superiores só eram estabelecidas em localidades com 10 000 habitantes e em certos centros importantes, embora o projecto de reforma da A República, 11 de Janeiro de 1915. A República, 10 de Fevereiro de 1916. 36 Decreto 5344/DG I série.65:537, de 29 de Março de 1919, que aprovou os quadros de pessoal das escolas de ensino industrial e comercial. 37 Decreto publicado em DG II Série 240:3983, 15 de Outubro de 1915. 38 Decreto 7805 de 15 de Novembro de 1921, que também extingue a escola primária superior de Macedo de Cavaleiros. 34 35
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instrução primária de João de Barros de 1911, estipulasse um limite de 3 000 habitantes39. Prossegue, no mesmo ano, a arrematação de bens pertencentes à Fazenda Nacional, à semelhança do que sucede em Carrazeda de Ansiães e noutros concelhos do distrito de Bragança, observando-se, também, várias alterações legais na exploração mineira que continuava activa em várias freguesias de Moncorvo. Examplos disso eram: as anulações de registos: concessão e transmissão de minas de ferro com pedidos de aprovação de planos de lavra; publicações de alvarás de concessão para exploração mineira e, ainda, declarações de abandono de minas e anulações e autorizações de direitos de descobridor de minas. Tais alterações estendem-se, nos anos de 1920 a 1926 às minas de volfrâmio, estanho, zinco, chumbo, ferro e outros metais40, particularmente, nas freguesias de Felgar, Estevães, Carviçais, Lousa e Moncorvo, destacando-se as operações da Sociedade Mercantil Mineira que actuava noutras zonas mineiras dos concelhos vizinhos. Simultaneamente, e relacionada em parte com essa actividade mineira, intensa mas instável, dava-se a grande crise de trabalho na região, quer em Moncorvo, quer em Carrazeda de Ansiães, Mirandela e Mogadouro, e a que tentavam obviar certas medidas legais ao nível nacional41. A 30 de Outubro de 1921, foram realizadas as primeiras experiências de iluminação a luz eléctrica na praça da Sé em Bragança, com a afluência de muita gente, inovação que se estendeu, 5 anos mais tarde, a Mirandela42. Em Fevereiro de 1922, o Asilo António Francisco Meireles, de Moncorvo, com sede em Lisboa, foi autorizado a proceder a um conjunto de operações financeiras: movimento de acções do Banco de Portugal para adquirir títulos de empréstimo, bem como troca de obrigações da João de Barros, A Nacionalização do Ensino, Lisboa, Ferreira Ld.ª Editores, 1911, p. 287. Minas de zinco da Lavada do Moinho e Figueira Douda, minas de volfrâmio do Lagar Velho, minas de ferro de Barro Vermelho, Fragas do Facho e do Chapéu, Fraga dos Apriscos, Cabeço de Mua, Fragas da Cotovia, Sobralhal, Alto do Chapéu e Santa Maria, estas últimas concessionadas a Wilhem Wakonigg Hummer. 41 Conforme se pode deduzir da Portaria 2640 (DG,I Série, 37:175-176, Lisboa, 21 de Fevereiro de 1921), que concede vários subsídios pela verba destinada, no orçamento, ao pagamento de despesas relativas à crise de trabalho nesses concelhos. 42 Foi aí inaugurada, pela segunda vez, em 1926, a luz eléctrica. 39 40
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Companhia Geral do Crédito Predial Português, por outras da mesma Companhia, de valor mais elevado. Em Outubro do mesmo ano, a Câmara Municipal de Moncorvo criou um partido médico municipal. Entretanto, a caixa postal do Carvalhal da freguesia do Felgar fora elevada à categoria de estação postal. Como se pode ver, os jornais nacionais, regionais e locais são para a história deste período uma fonte muito importante. Na verdade, com o movimento republicano, multiplicaram-se os órgãos informativos, repetindo-se em muitos casos os mesmos títulos.
Fig. 5 – O Radical, n.º11, 1 de Fevereiro de 1912, p. 1, quinta-feira, jornal republicano de Moncorvo43
Os jornais serviam, então, não só como veículos informativos, mas afirmavam-se, também, como difusores culturais, enaltecendo, em geral, a República e a Pátria bem como os valores da justiça, da liberdade, do amor e da fraternidade. Existiram nas cidades e em muitas das vilas transmontanas vários títulos, na sua maioria semanais ou quinzenais, de pendor acentuadamente republicano e em geral efémeros. Por exemplo, na vila de Moncorvo havia, nos finais do séc. XIX e inícios do XX, O Moncorvense, substituído, em 1900, pelo Torre de Moncorvo, a que se juntou O Eco de Moncorvo, altura em que havia mesmo uma tipografia. Durante a República publicou-se, para além de O Radical (19/8/1911
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Imagem digitalizada pela Biblioteca Pública Municipal do Porto.
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a 1/2/1912), o Alma Transmontana (18/8/1913-9/11/1913), também jornal republicano de existência breve. 4. Carrazeda de Ansiães através de jornais e fontes oficiais, durante a República44
Fig.6 – Praça Lopo Vaz de Sampaio, centro da vila, anos 1920-193045
No final da Monarquia, os lavradores e viticultores das freguesias ribeirinhas de Carrazeda, concelho de fronteira entre Trás-os-Montes e o Alto Douro, sofriam de um grande desalento provocado pela intensa crise económica da região vinhateira do Douro, em que se incluía também Moncorvo, e que se tentava combater com algumas providências, como a construção e reparação de caminhos vicinais, para dar emprego aos trabalhadores. A 16 de Março de 1907, os viticultores ou produtores de vinho, do concelho de Carrazeda onde, para mitigar a falta de trabalho, alguns lavradores começavam a cultivar tabaco, levaram às cortes no âmbito da propósito da proposta de lei relativa à crise vinícola. Pedia a intervenção Maria Otília Pereira Lage, O Velho, a Chave e o Castelo: Carrazeda de Ansiães na História, Câmara de Carrazeda de Ansiães. No prelo. 45 Cf. Fotografias com história, Pensar Carrazeda, disponível em http://images.google.pt, acedido em 2 de Abril de 2010. 44
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do governo para minorar a fome e outros males causados pela crise comercial e da lavoura que fez do Douro um retrato de miséria. Ao iniciar o seu governo de ditadura administrativa, no início de Maio de 1907, João Franco regulamentou a produção, venda, exportação e fiscalização do vinho do Porto, tentando reinstaurar os princípios da política pombalina de defesa da marca, e reservando a denominação de Porto para os vinhos generosos do Douro, com graduação alcoólica mínima de 16,5º. Voltou a ser demarcada a região vinícola do Douro, incluindo agora o Douro Superior e o concelho de Carrazeda de Ansiães. Mas a miséria e a fome nas aldeias do Douro agravaram-se com a subida dos impostos e dos preços dos produtos, no fim da Monarquia e na 1.ª República. A tal situação não devem ter sido alheias as manifestações republicanas que ocorreram, em Carrazeda de Ansiães, por ocasião da feira mensal, no dia 10 de Julho de 188146. A agitação política e social, já antes e durante a I República, traduzia-se em manifestações, comícios, motins, incêndios de comboios que transportavam aguardente das terras do Sul do país, como aconteceu, por exemplo, em armazéns do Tua, assaltos de centenas de pessoas a Câmaras e Repartições Públicas, como sucedeu, também, em Carrazeda de Ansiães, nas vésperas da República, e noutras vilas vizinhas, como Alijó e Vila Flor. Estes acontecimentos fizeram deste período um dos mais turbulentos da história do Douro e do país. Em Fevereiro de 1909, a Câmara de Carrazeda resolveu lançar na acta de uma sessão extraordinária, “um voto de agradecimento ao jornal O Século pela generosa iniciativa da subscrição para a região duriense”, para ajudar a combater “a miséria que neste concelho é absoluta por falta de trabalho (…) há vítimas feitas pela fome e pelo frio”47. No final do mesmo ano, o mau tempo e as chuvas fustigaram Carrazeda, arrancando uma ponte sólida e de antiga construção, junto à freguesia de Marzagão. Meses antes, saíra para o Brasil, de Zedes, onde mandara construir uma
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Almanaque Republicano. Op. cit.,Tomo II, p. 214.
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escola, actualmente sede da Associação Cultural da aldeia, Francisco Rodrigues da Cruz, vice-consul em Niteroi48. O jornal O Nordeste noticiava, a 22 de Abril de 1910, que “Na madrugada de domingo, 17 do corrente, uns oitocentos homens armados entraram na vila de Carrazeda de Ansiães, arrombaram a golpes de machado as portas da repartição de fazenda e recebedoria, trouxeram para a praça todos os livros, documentos e papéis e até a mobília, que dentro havia, e depois de tudo regado com petróleo, lançaram-lhe o fogo (…)”49.
Passados nem 2 meses, em Junho do mesmo ano, era publicado um decreto (16.06.1910) que qualificava de monumentos nacionais alguns monumentos históricos do distrito de Bragança, entre os quais se contavam o castelo de Ansiães e as antas ou dólmenes de Vilarinho da Castanheira50. Em 1911, entre outras medidas inovadoras da República, foi instituído o Registo Civil obrigatório dos nascimentos, casamentos e óbitos da população que até aí era feito nas igrejas. Foram, logo, abertos vários postos de registo civil em todos os concelhos, incluindo o de Carrazeda de Ansiães, onde se criaram dezoito postos com os respectivos ajudantes. Contudo, em algumas aldeias, as populações continuavam a recusar-se a fazer o registo civil. Pela mesma altura, foram fundadas, no concelho de Carrazeda, que detinha então 79% de analfabetos, várias escolas primárias: uma escola mista em Zedes e outra em Misquel, freguesia de Parambos, e novas escolas em Ribalonga, Mogo de Malta, Coleja, Campelos e Pombal. Dois anos mais tarde, foi fundada uma escola primária mista, em Foz-Tua, lugar da freguesia do Castanheiro. E, logo em Janeiro de 1912, são aprovados em assembleia geral, os Estatutos do Centro Republicano Democrático de Carrazeda de Ansiães, Op cit., Tomo II, pp.218-219. Op cit., Tomo II, p. 221. 50 Op. cit., Tomo II, p. 222. Chamados, localmente, orcas, arcas e casas de mouras, estes monumentos megalíticos funerários ou túmulos colectivos da pré-história, foram construídos, na Europa, entre o V e o III milénios antes de Cristo. 48 49
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publicados no mesmo ano, no Porto, na Papelaria e Tipografia Académica de L.P. Moreira Lobo51. O Centro tinha como objectivos: “(...) defender a Pátria e a República; observar o programa político do Directório do Partido Republicano Português, aceite em Assembleia Geral do Centro; criar escolas e agremiações educativas e instrutivas, realizar conferências, reuniões, palestras e missões de propaganda para radicar o ideal republicano em todas as classes sociais. Podiam ser seus sócios (honorários, efectivos e correspondentes) todas as pessoas maiores ou emancipadas e os menores de 21 e maiores de 18 anos”.
A sua organização estruturava-se em Assembleia Geral e Comissões: Política, Paroquiais e de Proganda, Comissão Administrativa e Conselho Fiscal. Assinaram estes Estatutos52 o Presidente da Mesa, António Júlio Ribeiro, o 1.º secretário, Dr. António de Sampaio Chaves e o 2.º secretário, João Ferreira Aguiar. De 1913 a 1915, são criadas mais escolas, por todo o concelho, havendo comparticipações para construção de edifício escolar no Seixo de Ansiães, onde abriu também um posto de registo civil que servia, ao mesmo tempo, Beira Grande. Entrou ao serviço uma estação teléfono-postal no Tua, e outra no Castanheiro do Norte. Decorria, então, a I Guerra Mundial, e em várias terras do distrito de Bragança continuavam a ser aprovados alvarás para exploração de minas de volfrâmio, tendo sido também passadas, em 1917 e 1918, licenças, no concelho de Carrazeda, para pesquisa e exploração de minas de volfrâmio e outros metais em Marzagão, Castanheiro, Pinhal do Norte, Seixo de Ansiães, etc.53 Em 1916, surgiram nos distritos de Bragança e de Vila Real oito bibliotecas públicas e arquivos distritais e, em 1917, é criado, em Bragança, um instituto anexo da Academia de Ciências de Portugal, o Instituto Científico-Literário de Trás-os-Montes. Op cit., Tomo II, p. 226-227; 233.Estes estatutos podem ser consultados na Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa) onde se encontra um exemplar com a cota BNL, SC 7428/8V). 52 BNL, SC 7428/8V. 53 Op. cit., Tomo II, pp. 263-265. 51
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Por acção de republicanos carrazedenses fundou-se, na vila de Carrazeda de Ansiães, o jornal republicano O Transmontano, cujo director, Dr. Domingos Frias de Sampaio e Melo, foi Governador Civil substituto de Bragança. Este jornal, cujo proprietário era o Dr. João Trigo Moutinho, da ilustre família que possuía a Quinta da Senhora da Ribeira, começou a ser publicado em 12 Fevereiro de 1911, todos os domingos e depois às quintasFig.7 – O Transmontano, n.º 18, 22 de Junho de 1911, p. 154 -feiras, saindo regularmente até 31 de Agosto de 1911, num total de 24 números. O jornal tinha vários e assíduos correspondentes de diferentes terras dos distritos de Bragança e de Vila Real, como o advogado da Régua, Dr. Bernardino Zagallo ou o conhecido maçónico, Abílio Salgado, de Mogadouro. Noticiava efemérides como, por exemplo, um comício republicano que houve em Vila Flor para receber o governador civil de Bragança, Dr. João de Freitas, natural da aldeia do Pombal onde costumava passar férias, ou de um grande incêndio numa casa do Vilarinho de Castanheira ou, ainda, aspectos da vida de um dos velhos republicanos de Carrazeda, Luís dos Santos Fernandes de Abreu, de Belver, regressado, entretanto, com a mulher, do Brasil, onde vivera 14 anos. O mesmo número do jornal considerava Carrazeda de Ansiães o concelho de Bragança que mais contrariedades sofrera na sua vida política local55. Os editoriais do semanário tratavam quase sempre temas políticos e ideológicos, assuntos da actualidade nacional e relativos à Igreja como se pode ver pelos seguintes títulos: “A revolução, religião e Política”; 54 55
Imagem digitalizada pela Biblioteca Pública Municipal do Porto. O Transmontano, Carrazeda de Ansiães, n.º 23, 17 de Agosto de 1921, p. 2.
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“O Nosso Caminho”; “Uma Revolução”, “Cinco de Outubro”; “Conspiradores”; “A Pastoral dos Bispos”, “O professorado primário e a reforma da Instrução Primária”, etc. Algumas rubricas frequentes eram: Sociedade, Noticiário, Correspondências, O tempo, Anúncios e obras literárias como “Deshumanidade”, “Lídia”, em folhetins semanais e outros. O conhecido erudito Abade de Baçal, Padre Francisco Manuel Alves de Bragança, publicou aqui, na rubrica dos folhetins, a partir do n.º 16, a transcrição do manuscrito, então inédito, Memórias de Anciães56, da autoria de João Pinto de Morais, reitor de São João Baptista, extra-muros da mesma vila, e de António de Sousa Pinto do lugar de Marzagão do termo dessa vila. No verão de 1911, fez-se, na vila de Carrazeda, uma “(...) imponente manifestação ao ilustre cidadão Dr. Domingos Frias de Sampaio e Mello, director desse jornal de Carrazeda, Administrador do Concelho e Governador Civil substituto do distrito de Bragança, um dos caudilhos mais prestimosos e importantes do partido republicano em Trás-os-Montes”. Com esta manifestação que juntou muita gente de todo o concelho, se pretendia que ele suspendesse o seu pedido de demissão do cargo de Governador Civil”57.
Coisa digna de ser vista e admirada, na época, nesta povoação, eram os grandes e bonitos portões de ferro da praça que há muitos anos, já, levaram descaminho. Também foi feita por essa ocasião a arborização da praça-mercado, uma forma de culto à Árvore cujas festas em dia próprio não deixavam de celebrar, ritual caro aos republicanos no seu ideário de laicização da sociedade. A vila já tinha iluminação pública a luz eléctrica, inaugurada em Março deste ano. Quem quisesse beneficiar da electricidade em suas casas, tinha de requisitar as lâmpadas ao dono da fábrica que fornecia a energia, Manuel Fernandes Pinto. Outras notícias e artigos de defesa dos bons costumes, da ordem e da saúde pública, integravam, ainda, O Transmontano. Podia ler-se a divul56 57
Biblioteca Nacional, sob a marcação “Relação de Vila Real”, códice A-6-8. O Transmontano, Carrazeda de Ansiães, n.º 18, 22 de Janeiro de 1921, p. 1.
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gação das vacinas contra a “baceira” que todos deviam fazer, ou ainda, a denúncia do que se considerava que estava mal, como os abusos contra os fregueses por parte das padeiras que enganavam no peso do pão e dos talhos que vendiam os ossos ao preço da carne, não respeitando as posturas da Câmara sobre essas vendas e sobre fontes, tanques e gados. Havia então, em algumas terras do concelho, principalmente em Coleja, Vilarinho e Senhora da Ribeira, o costume muito arreigado de jogar em casas de jogo e de batota. Os jogadores eram muitas vezes denunciados e perseguidos pelas autoridades administrativas e forças militares, actuação que raramente resultava em penas, porque os infractores eram avisados e fugiam. Era também prática da vila a realização de festas cívicas para angariar fundos, que contavam sempre com apoio de algumas das senhoras mais importantes da terra. Um acontecimento que mereceu várias notícias de O Transmontano carrazedense, foi o motim que houve na Fontelonga contra a lei do registo civil. A população exigia que se fizesse o enterro e o registo de óbito católico de uma mulher do povo, Maragata, elogiada por um correspondente do jornal como a heroína Maria Cabral. Também na aldeia de Pereiros, as mulheres beatas, instigadas pelo padre, revoltaram-se contra a separação do Estado e da Igreja. Num dos seus números, deu conhecimento de um divórcio litigioso, na Samorinha. As mulheres eram, frequentemente, notícia neste jornal. Divulgou a primeira informação nacional de que, depois da luta pelo direito ao voto, foram, finalmente, incluídas no número de cidadãos para poderem votar nas eleições seguintes. Foram também aí notícia o aumento de crimes na comarca, a constituição da Junta Local de Livre Pensamento de Carrazeda de Ansiães e a forte emigração, que se fazia então sentir no concelho ao ponto de haver em Campelos, um angariador, Manuel Marques ou Marcos que andava pelas povoações a recrutar emigrantes para Manaos (Brasil) e que, por não ter licença para tal, foi levado a tribunal. No concelho de Carrazeda, em que continuava a sentir-se uma grande crise de trabalho, foram concedidas, nos anos 1917 a 1925, várias licenças para exploração de volfrâmio e outros metais, no Seixo, Mar334
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zagão, Amedo, Pinhal do Norte, Castanheiro, Fontelonga, Carrazeda, o mesmo sucedendo também em Moncorvo e em todo o distrito de Bragança. Estes foram, em síntese, alguns dos principais acontecimentos noticiados em O Transmontano, jornal de orientação política republicana e protagonizados pelo concelho de Carrazeda de Ansiães, nos 16 anos da I República (1910-1926). Na cidade de Bragança, foi criado um núcleo da Liga Nacional contra a Tuberculose, epidemia vulgarmente chamada pneumónica que, por esta altura, dizimou muita gente em todas as terras do distrito, no país e no mundo. Pela mesma altura, Bragança passou a ter luz eléctrica e o primeiro cinematógrafo enquanto que em 1915 são lançadas as bases para a fundação do Sindicato dos Professores Primários oficiais do Distrito de Bragança. Em várias freguesias de Carrazeda de Ansiães (Vilarinho, Ribalonga, Parambos, Selores, Marzagão, Carrazeda) continuaram a ser criadas escolas primárias masculinas, femininas e mistas e prosseguiram as expropriações de terrenos para construir estradas. Faziam-se entretanto, também os recenseamentos dos mancebos para o serviço militar, tendo alguns participado na I Guerra Mundial, e muitos morrido no seu decurso, como comprova o monumento dedicado aos Mortos da Grande Guerra, em Bragança. Já depois de terminada a I Guerra Mundial, que gerou uma grande procura de volfrâmio português, continuavam em Trás-os-Montes os pedidos de licença para se fazerem pesquisas em minas de volfrâmio e outros metais. Observaram-se, por exemplo, no concelho de Carrazeda, em 1919, nas freguesias do Seixo de Ansiães, para a mina de Poios Brancos e na Fontelonga; no lugar da Lameira Longa, em 1920; em 1923 e 1927, para as de volfrâmio e estanho de Pedra do Sapato, da freguesia do Amedo. Em 1924, foram feitos outros pedidos de licença para pesquisas em mais minas58. Em 1921, mantinha-se a grande crise de trabalho em Carrazeda como noutros concelhos vizinhos (Moncorvo, Mirandela, Mogadouro), pelo que foram concedidos, alguns benefícios, como uma 58
Hirondino da Paixão Fernandes, op. cit., Tomo II, pp. 268-28; 294; 303.
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verba para pagar aos funcionários da Câmara, há muito tempo sem receber salário. A caça continuava a ser uma prática regular dos naturais do concelho de Carrazeda. Em 1924, foi publicado um decreto a autorizar o uso do furão, sem redes, na caça ao coelho na área do concelho59. Conclusão: ciclos (des)encontrados de tempos e lugares
Como podemos ver, os tempos históricos do contexto nacional e os das localidades observadas nem sempre são os mesmos. Algumas das problemáticas de relevo nacional não se repercutiram nas dinâmicas singulares locais e estas também não implicaram, directa ou indirectamente, nos destinos do país. Se à história local interessou, sobretudo, a apreensão do “tempo dos lugares”, um tempo realmente vivido pelas populações destas duas localidades, composto por uma amálgama de experiências distintas, a história nacional “generalizante” trabalha um tempo uniforme, o chamado “tempo do mundo” que “não é, nem deve ser, a totalidade da história dos homens”60. No plano nacional, registam-se como traços predominantes da I República: instabilidade político-social e conflitualidade partidária; movimentações populares despoletadas pela carestia de vida, açambarcamento e penúria de bens de primeira necessidade; reivindicações sindicais motivadas por falta de emprego e agravamento das leis do trabalho; crise das finanças públicas e da situação geral por efeito da participação na I Guerra Mundial. Alguns destes acontecimentos tiveram o seu impacto, à escala regional de Trás-os-Montes e ao nível local de Moncorvo e Carrazeda, concelhos rurais de marcada interioridade. Nestes, vemos, porém, emergir outros aspectos dominantes: intensificação da actividade mineira de exploração de minérios metálicos, designadamente volfrâmio, associada, em regra, à deflagração de conflitos bélicos; falta de trabalho e deficientes condições de vida das populações, cuja actividade económica dominante era, ainda, essencialmente a agricultura e algum comércio Idem, Tomo II, p. 299. Fernand Braudel, Civilização Material, Economia e Capitalismo (sécs. XV-XVIII), SP: Martins Fontes, 1996, vol. 3, pp. 8-18. 59 60
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de feira; abertura de estradas e novas estações postais; generalização do saneamento público, abastecimento de água e primeiras inaugurações de iluminação eléctrica; preocupação com a assistência social; forte intervenção política e jornalística, (evidenciando oposição local entre distintas facções republicanas). Essenciais à afirmação do ideário republicano de uma nova ordem societária, laica e baseada na ciência, na moral e na educação cívica-solidária, observa-se, ainda, a criação de novas escolas e expansão do ensino. Esboçaram-se, em síntese, alguns traços marcantes de uma história local “não ensimesmada” em busca de seu estatuto próprio. O significado do local na pesquisa histórica, uma espécie de depósito arqueológico de épocas e locais diferenciados, situou-se a um “nível de construção/ investigação da realidade em que as coisas adquirem uma dimensão distinta, um “tempo específico”61, o “tempo dos lugares”, próprio “de cada espacialidade”62. Podemos ver emergir a historicidade dos espaços, apreender o tempo vivido por cada localidade, composto de uma amálgama de experiências diferentes dos pólos hegemónicos63, o que facilita também problematizar a relação tempo-história, evitar o reducionismo histórico, apresentar o concreto da dinâmica social e do quotidiano das populações e dos indivíduos, devolvendo-lhes historicidade.
Jesus Arpal, sociólogo basco citado Agnaldo de Sousa Barbosa, op cit. Agnaldo de Sousa Barbosa, “A Propósito de um estatuto para a História Local e Regional: algumas reflexões”, op cit. 63 Idem. 61 62
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A clausura dos conventos dos Remédios, da Conceição e da Penha de França da cidade de Braga (séculos XVI-XVIII) Ricardo Silva*
Resumo – De vocação franciscana, os três conventos femininos que estudámos foram fundados com quase um século de intervalo entre si, tendo a sua criação obedecido a motivações variadas. Obrigadas a seguir os votos de pobreza, castidade e obediência, as religiosas viram-se, ainda, sujeitas à clausura que o Concílio de Trento procurou reforçar. A par das vivências religiosas e espirituais que no interior dos conventos se desenharam, procurámos destacar a diversidade de papéis que aí se desempenhavam, nomeadamente, aqueles que se relacionam com a gestão material das casas. Palavras-chave – Clausura; Conventos; Freiras; Religião. Abstract – Being of Franciscan vocation, the three feminine convents we have studied were founded within a century apart, and their creation was subject to various motivations. Forced to follow the vows of poverty, chastity and obedience, the nuns were, as well, subject to the reclusion imposed by the Council of Trento. In parallel with their religious and spiritual living experiences established inside the convents, we tried to emphasize the diversity of their roles, in particular related with the management of the buildings. Keywords – Reclusion; Convents; Nuns; Religion.
______________ * Doutorado em História Moderna pela Universidade do Minho. Membro do CITCEM. CEPIHS | 2
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Fundados com quase um século de intervalo, os três conventos franciscanos femininos bracarenses, por nós estudados, diversificaram a oferta que a Igreja proporcionava em matéria de vida contemplativa. O primeiro a ser erigido, o de Nossa Senhora dos Remédios, foi fundado por D. André de Torquemada, bispo coadjutor dos prelados bracarenses entre 1523 e 1552. As obras para a edificação do convento iniciaram-se em 1544 e terminaram em 1549. No entanto, a bula da fundação fora obtida em 1547. A comunidade, por determinação do fundador, seguia a Regra Terceira de S. Francisco. D. André conseguira, ainda, outras disposições que constituíram a base de um conjunto de privilégios que ao longo da existência da comunidade a opuseram aos arcebispos bracarenses e, sobretudo, ao cabido da cidade. As religiosas seguiam as Constituições observadas no convento da Anunciada de Salamanca1, dispositivo que, de certa forma, mitigava a Regra, e estavam sujeitas à jurisdição dos arcebispos. Nos períodos de Sé Vaga, essa competência cabia à Sé Apostólica, prerrogativa que o cabido de Braga sempre procurou assumir. O convento de Nossa Senhora da Conceição, cuja Regra Conceicionista se impusera à comunidade, foi fundado em 1624 pelos irmãos Dr. Geraldo Gomes, cónego da Sé de Braga, e o Dr. Francisco Gomes, cura de Adaúfe, Vila Real2. Iniciadas em 1720, as obras do edifício que albergou as religiosas do convento de Nossa Senhora da Penha de França terminaram sete anos mais tarde. Foi o arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles que as patrocinou, sendo, portanto, o responsável pelo nascimento de mais uma comunidade religiosa feminina em Braga, observando, igualmente, a Regra Conceicionista. O prelado materializou a vontade de Pedro de Aguiar e sua esposa que, no mesmo local, fundaram um recolhimento em 1652,
Leia-se Bernardo Vasconcelos e Sousa (dir.), Ordens Religiosas em Portugal. Das origens a Trento – Guia Histórico, Lisboa, Livros Horizonte, 2005, p. 365. 2 Consulte-se José Augusto Ferreira, Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga, Braga, Edições da Mitra Bracarense, 1934, vol. III, p. 138. Bernardino José de Sena Freitas, Memórias de Braga, Braga, Imprensa Católica, 1890, vol. II, p. 209. 1
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embora tivessem deixado expressa a vontade relativa à transformação dessa instituição num convento3. Foram vários os cenóbios da Época Moderna cuja origem radicou em recolhimentos entretanto instituídos. O próprio convento dos Remédios, segundo frei Fernando da Soledade, cronista franciscano, teve origem num recolhimento4. Outro aspeto comum em relação à fundação das instituições por nós estudadas, prende-se com as revelações divinas que os fundadores dos conventos dos Remédios e da Conceição tiveram. Os sonhos com a Virgem Maria, que os exortava ao seguimento dos projetos que já tinham em mente, foram decisivos para a sua materialização. A par destas motivações, identificámos a vontade relativa ao sufrágio da sua alma, procurando, desse modo, beneficiar do ambiente espiritual que os cenóbios possibilitavam. Esta preocupação materializou-se na instituição de sufrágios em louvor da sua alma, mas também na procura do convento como local de sepultura5. Além das benesses espirituais, os fundadores procuraram resguardar económica, moral e socialmente alguns membros da sua família, ao reservarem determinados lugares da clausura para a prole feminina familiar. O seu ingresso nestes espaços poderia solucionar problemas relacionados com carências económicas, provocadas pela orfandade ou pelas conjunturas que, por vezes, afetavam as finanças familiares. Estes atos fundacionais expressavam, ainda, o poder económico dos fundadores, na medida em que a ereção dos cenóbios exigia uma disponibilidade financeira considerável, bem como a posse de património que constituiria a primeira fonte de rendimentos das religiosas. Por outro lado, demonstram o seu ascendente social na comunidade onde se inserem, ou pelo menos, a procura desse ascendente através da expressão da
Confira-se Bernardino José de Sena Freitas, op. cit., p. 211. Frei Fernando da Soledade, Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco na provincia de Portugal, Lisboa, Officina de Domingos Gonsalves, 1736, p. 578. 5 Sobre a instituição de sufrágios pelos fundadores dos cenóbios leia-se Ángela Atienza, Tiempos de conventos. Una historia social de las fundaciones en la España moderna, Madrid, Marcial Pons, Universidad de la Rioja, 2008, pp. 286-297. 3 4
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sua capacidade económica, mas também, da consecução dos seus desígnios espirituais. À semelhança do que ocorrera em todo o mundo católico, às religiosas dos institutos por nós estudados foi exigido o cumprimento dos votos da pobreza, obediência e castidade, bem como o respeito pela clausura. Outras exigências se impuseram às freiras, nomeadamente através dos normativos que a Regra seguida em cada claustro prescrevia. Os jejuns, cujo respeito se deveria observar em determinados momentos do calendário litúrgico, bem como a frequência dos ofícios divinos, eram algumas dessas exigências. A modéstia no vestir, o recato em todos os momentos do dia e a manifestação da humildade completavam o perfil que as religiosas deveriam assumir. Estes dispositivos regulavam outras realidades no interior dos claustros. Estabeleciam os princípios a observar no momento da admissão de candidatas, nomeadamente a idade, a condição social e as obrigações materiais a satisfazer. Descreviam os diversos cargos que as freiras deveriam desempenhar e o modo como a sua execução deveria decorrer, não esquecendo as disposições relativas à imposição da disciplina quando a mesma não era observada. Definia-se a natureza das faltas cometidas e as respetivas medidas sancionatórias, bem como os responsáveis pela sua aplicação6. Além da Regra, também as Constituições que por vezes as diversas famílias religiosas, ou os próprios prelados elaboravam, regulavam o seu quotidiano. Especificavam algumas prescrições da Regra, embora em alguns casos tenham matizado o seu rigor, como ocorreu no convento de Nossa Senhora dos Remédios que adotou as Constituições do convento da Anunciada de Salamanca. Também as disposições deixadas pelos fundadores orientavam a vida nos claustros e constituíam, por vezes, um mecanismo de usufruto de determinados privilégios, tal como aconteceu com o cenóbio anteriormente referido que, dessa forma, se subtraiu à jurisdição do cabido de Braga em períodos de Sé Vaga, dependendo diretamente da Sé Apostólica. Embora os outros dois cenóbios tenham beneficiado Confira-se Ricardo Silva, Casar com Deus: vivências religiosas e espirituais femininas na Braga Moderna, Braga, Universidade do Minho, 2011, tese de doutoramento policopiada, pp. 96-104. 6
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da mesma prerrogativa, o convento dos Remédios foi mais acérrimo na defesa desse direito, tendo protagonizado vários conflitos com o cabido, uma vez que esta instituição sempre procurou coartar este privilégio da instituição monacal7. A longa vigência destas comunidades foi marcada, entre outros fatores, pela dimensão da sua comunidade. Esta, tanto podia assegurar a sua sustentabilidade como provocar a sua ruína, mediante o equilíbrio estabelecido entre os fluxos populacionais e as respetivas rendas. O convento de Nossa Senhora dos Remédios registou um aumento da sua população ao longo do século XVII e primeira metade do século seguinte. Se em 1609 contava com 53 religiosas, nos inícios da centúria seguinte ultrapassara a centena. O convento de Nossa Senhora da Conceição conheceu a mesma tendência, embora tenha registado um número de efetivos inferior. Mais modestos ainda são os números relativos ao convento de Nossa Senhora da Penha de França, embora logo após a sua fundação tanha conhecido um crescimento da sua população. Porém, a partir da segunda metade do século XVIII, conheceu-se a tendência inversa em resultado das novas conceções sociais que afastavam cada vez mais as mulheres dos claustros8. Composta pelas filhas da nobreza e da burguesia ascendente, a população conventual deveria satisfazer financeiramente a instituição, nomeadamente através da entrega do dote que asseguraria a sua subsistência, facto que afastava daqueles espaços uma fatia da sociedade, sobretudo dos estratos economicamente menos favorecidos. O ingresso na clausura funcionava, portanto, como uma forma de distinção social, na medida em que essa possibilidade estava ao alcance de poucas mulheres. As religiosas deveriam desempenhar determinadas tarefas com vista, sobretudo, ao cumprimento das obrigações espirituais, mas também A propósito dos conflitos entre o convento dos Remédios e o cabido de Braga leia-se Ricardo Silva, Casar com Deus..., op. cit., pp. 281-301. 8 Estes valores, por vezes, motivavam os prelados a expedir breves que determinavam a diminuição dos efetivos populacionais, pois temiam que o crescimento desmesurado da clausura trouxesse problemas de sustentabilidade. Confira-se Marta Lobo Araújo, “Dotes de freiras no mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Braga (século XVII), in Noroeste, 2005, pp. 113-135. Ivone da Paz Soares, E a sombra se fez verbo. quotidiano setecentista por Braga, Braga, Associação Comercial de Braga, 2009, pp. 244-245. 7
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materiais. Este corpo espiritual deveria trabalhar em comunidade para o bem comum da casa9. Nesse sentido, foi necessário desenhar uma hierarquia que servisse de matriz à organização daqueles espaços habitados por religiosas cuja motivação quanto à sua clausura era, por vezes, distinta, bem como distintas eram as suas origens sociais e a forma como viviam a religião. A abadessa surgia, portanto, como figura cimeira dessa hierarquia. Era da sua responsabilidade manter a coesão da comunidade e assegurar a gestão material e espiritual da casa10. Era auxiliada por um conjunto de oficiais, nomeadamente pelas vigárias e pelas discretas, sendo o grupo de mulheres com mais autoridade dentre dos claustros11. As porteiras, as torneiras, as escutas e as gradeiras eram outras oficiais cujo exercício das suas funções procurava assegurar o resguardo físico e moral das religiosas. Vigiavam as entradas na clausura, mas também as informações que chegavam e partiam dos cenóbios. Destes contactos dependia a virtuosidade das freiras12. A dignificação da comunidade dependia, ainda, da formação moral dos seus membros. Neste campo, as mestras das noviças assumiam particular relevância, na medida em que orientavam espiritualmente os espíritos mais débeis que se preparavam para se juntar ao corpo das “esposas de Cristo”. Neste particular, a mestra do coro e a sacristã auxiliavam estas tarefas, na medida em que eram responsáveis por assegurar a correta observância dos ofícios divinos.
A propósito da variedade de cargos exercidos na clausura leia-se Maria Eugénia Matos Fernandes, O mosteiro de Santa Clara do Porto em meados do séc. XVIII (1730-80), Porto, Arquivo Histórico e Câmara Municipal do Porto, 1992, pp. 202-206. 10 Quanto à responsabilidade moral da abadessa sobre as religiosas consulte-se Geneviève Reynes, Couvents de femmes. La vie des religieuses cloîtrées dans la France des XVII et XVIII siècles, [s. l.], Fayard, 1987, p. 77. 11 Relativamente às responsabilidades inerentes à vigária leia-se Maria Margarida Castro Neves Mascarenhas Caeiro, Clarissas em Portugal. A Província dos Algarves. Da Fundação à Extinção. Em busca de um Paradigma religioso feminino, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2006, tese de doutoramento policopiada, pp. 298-299. 12 A propósito do papel das escutas confira-se Francisco Javier Lorenzo Pinar, Conventos femeninos y vida religiosa en la ciudad de Zamora (1600-1650), Zamora, Editorial Semuret, 2004, p. 176. 9
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Os aspetos materiais deveriam ser igualmente cuidados, até porque da saúde financeira da instituição dependia a prossecução das obrigações espirituais. As provisoras, refeitoeiras, roupeiras, depositárias e enfermeiras completavam a diversidade de cargos exercidos nos claustros. As abadessas eram providas eleitoralmente, de três em três anos. No entanto, no convento de Nossa Senhora dos Remédios essa prática só se observou a partir de 1599, após a morte da primeira abadessa que ocupara aquele cargo vitaliciamente13. A rotatividade da ocupação do cargo procurava evitar a constituição de redes de poder que de alguma forma se pudessem instalar nos cenóbios. Não obstante, nos conventos de Nossa Senhora dos Remédios e de Nossa Senhora da Penha de França, houve situações em que as preladas desempenharam o cargo por um período mais longo do que aquele que estava estabelecido, tendo os próprios arcebispos contribuído para esse facto ao permitirem que determinadas abadessas continuassem a exercer o cargo para além do período determinado. Cabia-lhes, após o ato eleitoral, a administração espiritual e material da comunidade. O rigor com que esta última responsabilidade era exercido podia cimentar a base de sustentação da casa e a falta dele punha em causa a sua sobrevivência. Os rendimentos dos cenóbios por nós estudados foram múltiplos e de natureza diversa. Em primeiro lugar figuravam os rendimentos deixados pelos fundadores das instituições, que se constituíam em património imóvel e as respetivas rendas associadas. Os dotes compunham uma importante fonte de receita, bem como o rendimento proveniente das operações financeiras, como o empréstimo de dinheiro a juro e a compra de padrões de juro. As propriedades doadas ao convento, por religiosas ou seus familiares, ou aquelas que foram adquiridas pela comunidade, contribuíam com as rendas associadas à sua exploração14. Noutros institutos religiosos são conhecidas situações idênticas, nomeadamente em Santa Maria de Cós. Veja-se Cristina Maria André de Pina Sousa e Saul António Gomes, Intimidade e encanto. O mosteiro Cisterciense de Sta. Maria de Cós, Leiria, Edições Magno, 1998, pp. 90-91. 14 Sobre a natureza das fontes de receita dos cenóbios em estudo confira-se Ricardo Silva, Casar com Deus..., op. cit., pp. 163-237. 13
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Os dotes eram uma fonte de receita que acompanhavam o evoluir dos fluxos das entradas das candidatas. Podiam ser constituídos em numerário ou em rendas, embora com o avançar dos séculos o numerário se tenha suplantado à outra modalidade referida. Os valores foram múltiplos, embora se possam estabelecer valores que oscilam entre 400.000 réis, sobretudo no século XVII, e 1.000.000 réis, na primeira metade do século XVIII. A sua variabilidade estava dependente da qualidade social da candidata, bem como das próprias relações que os familiares desenvolviam com os cenóbios. As dívidas destes organismos a particulares saldavam-se, por vezes, através da aceitação de uma filha do credor, cujo valor do dote, por essa razão, se via diminuído. Se a futura religiosa fosse portadora de dotes musicais, poderia ser igualmente um fator potenciador da diminuição do seu valor. Além do dote principal, os familiares das candidatas tinham de satisfazer outros honorários: o valor dos alimentos, enquanto a noviça não professava, as esmolas da igreja, da sacristia e da cera, entre outros contributos que, por vezes, contribuíam para o melhoramento material do edifício, aliviando a comunidade desses encargos15. Considerando que nem todas as famílias que desejavam que uma sua familiar ingressasse num convento podiam suportar estes encargos, assumimos que estas obrigações funcionaram como um mecanismo de seleção social cuja satisfação contava, por vezes, com o contributo de vários elementos da família16. Os empréstimos de dinheiro a juro contribuíram, igualmente, para engrossar os valores das receitas. O convento de Nossa Senhora dos Remédios concentrou a sua atividade, sobretudo, no século XVIII, e destaca-se pelos montantes emprestados. Quanto ao convento de Nossa Para o mosteiro de Santa Maria de Arouca são conhecidas outras propinas que as religiosas deveriam atribuir ao cenóbio. Leia-se Manuel Moreira da Rocha, Memória de um mosteiro. Santa Maria de Arouca (séculos XVII-XX), Das construções e das reconstruções, Porto, Edições Afrontamento, 2011, p. 141. 16 O dote de Simoa de Araújo, religiosa do convento de Nossa Senhora dos Remédios, foi composto por 300.000 réis dados por seu pai, 170.000 réis por um tio e 30.000 réis por uma tia, totalizando os 500.000 réis exigidos pela instituição. Arquivo Distrital de Braga, Fundo do Convento de Nossa Senhora dos Remédios, Dotes, F-558, doc. 2128, não paginado. 15
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Senhora da Conceição, as fontes revelam que a sua atividade creditícia teve um maior alcance temporal, embora os montantes envolvidos se apresentem mais modestos. Relativamente ao convento de Nossa Senhora da Penha de França, a sua atividade apresenta-se ainda mais reduzida, quer em termos temporais, quer em montantes disponibilizados. Este facto dever-se-á à sua tardia fundação. Embora fossem soluções financeiras que, aparentemente, constituíam uma forma rápida e pouco onerosa de captar receitas, representavam, por outro lado, um risco sério. O incumprimento das obrigações por parte dos contraentes punha em perigo a capacidade de multiplicação de receitas dos cenóbios, podendo originar dificuldades financeiras. Relativamente ao convento de Nossa Senhora da Penha de França, por exemplo, conhecemos o incumprimento dessas obrigações que representam 20,8% do total dos contratos celebrados. Aparentemente, esta situação foi facilitada pelo pouco cuidado relativo à produção de instrumentos legais que pudessem servir de garantias à cobrança. Os rendimentos das propriedades fundiárias também mereceram a nossa atenção. A sua natureza parece, no entanto, estar direcionada para satisfazer as necessidades alimentares das religiosas, uma vez que o seu pagamento se fazia, sobretudo, em géneros. Embora fossem instituições concebidas para a reclusão das suas habitantes, as necessidades das religiosas levaram-nas a estabelecer relações com diversas instituições e pessoas exteriores à clausura. As autoridades eclesiásticas, como os arcebispos, os membros do cabido e os núncios, compunham uma parte desses contactos. Mas também a coroa e os oficiais que serviam os cenóbios eram agentes com quem as comunidades de alguma forma se relacionavam. Este relacionamento ocorreu em dois planos: o das relações institucionais cordiais e o das relações de conflito. Neste particular, o convento de Nossa Senhora dos Remédios destacou-se como protagonista de relações conflituosas. A oposição que por vezes se constituiu, sobretudo em relação aos arcebispos e aos membros do cabido, ocorreu em situações em que estes organismos procuravam coartar determinados privilégios que a comunidade obtivera no momento da sua fundação, nomeadamente o de depenCEPIHS | 2
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der diretamente da Sé Apostólica em períodos de Sé Vaga, e o de poder receber noviças nesse mesmo período sem necessitar da autorização do cabido17. A solução destes conflitos passou, em certos momentos, pelo recurso à justiça, nomeadamente nas situações em que a comunidade se opôs ao cabido, aos párocos das igrejas anexas ao convento e aos vizinhos do cenóbio. Foram múltiplas as razões que motivaram o ingresso de tantas mulheres nestes conventos. Motivos de ordem religiosa e devocional eram aqueles que figuravam nas petições dirigidas aos prelados. No entanto, outras podem ser elencadas. A fragilidade económica provocada, por vezes, pela orfandade, justificou igualmente alguns ingressos. Razões de ordem social, relacionadas com a falta de um marido do mesmo estatuto, bem como motivos de procura de representação social, ditaram igualmente o ingresso de outras18. Os conventos acolhiam outra população, ainda que temporariamente, como as educandas e as seculares. As primeiras procuravam uma educação moral e religiosa que as preparasse para o matrimónio, sendo que noutros casos funcionava como castigo motivado por um comportamento menos digno. A proteção moral da mulher casada, sobretudo na ausência do marido, justificava a composição do grupo das seculares, embora por vezes estes organismos também funcionassem como meios de disciplinamento dos seus costumes19. O ingresso das candidatas estava dependente do cumprimento de um conjunto de requisitos que passavam pela idade mínima, 12 anos, a fidelidade à Igreja de Roma, honra imaculada, robustez física, ausência de qualquer doença, bem como de promessas de matrimónio terreno. No convento de Nossa Senhora da Penha de França exigia-se, ainda, o Relativamente às relações estabelecidas entre as religiosas do convento dos Remédios e os arcebispos e o cabido leia-se Ricardo Silva, Casar com Deus..., op. cit., pp. 267-301. 18 Consulte-se para este assunto Maria Margarida Lalanda de Sá Nogueira, A admissão aos mosteiros de Clarissas na ilha de S. Miguel (séculos XVI-XVII), Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1987, provas de aptidão científica e pedagógica, p. 125. 19 Confira-se Maria Antónia Lopes, Mulheres, espaços e sociabilidade: a transformação dos papéis femininos em Portugal à luz de fontes literárias (segunda metade do século XVIII), Lisboa, Livros Horizonte, 1989, pp. 84, 121 e 133. 17
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domínio do latim. A existência de vagas, a satisfação do valor dos dotes, a aceitação da maioria das religiosas e a autorização do arcebispo completavam o quadro de exigências dos diferentes institutos20. Após o seu ingresso seguia-se o período do noviciado que, normalmente, decorria durante um ano. Naqueles casos em que a entrada das religiosas era precoce, este período poderia prolongar-se até perfazerem os 16 anos, idade exigida para se proceder à profissão religiosa. Era um período de aprendizagem moral e religiosa, e de negação dos vícios do século, altura em que aprendiam a negar as suas vontades e desejos21. Constituía uma etapa fundamental na formação espiritual das religiosas, na medida em que o seu espírito jovem e flexível proporcionaria uma aprendizagem mais consistente dos princípios da Igreja, necessária para enfrentar uma vida de provações e de renúncias. Após este período, fazia-se uma avaliação das aprendizagens da noviça que ditavam a sua aceitação ou exclusão, através de um sistema de votos em que todas as religiosas se pronunciavam a favor ou contra a sua inclusão na comunidade. Teoricamente, a noviça poderia optar por prolongar este período de aprendizagem se sentisse que a sua preparação ainda não a habilitava ao matrimónio espiritual. Era igualmente possível abandonar a vida religiosa antes da profissão, caso a noviça considerasse que a sua vocação não se coadunava com a vida religiosa. A entrada na clausura materializava-se com a imposição do hábito que simbolizava o seu casamento espiritual. Este ato representava, ainda, a obtenção de um conjunto de benesses espirituais, uma vez que passava a pertencer ao grupo restrito das “esposas de Cristo”. Em termos práticos, assinalava um compromisso que a candidata assumia, cujos princípios estavam definidos na Regra e nas Constituições seguidas pela comunidade, obrigando-se a respeitar os votos da pobreza, obediência e castidade, observando escrupulosamente a clausura que naquele momento se instituía. Embora a vida consagrada fosse projetada segundo um código de valores que previa um quotidiano marcado pelas relações amistosas entre 20 21
Leia-se a este propósito Ricardo Silva, Casar com Deus..., op. cit., pp. 328-335. Veja-se Geneviève Reynes, Couvents de femmes..., op. cit., pp. 24-25 e 64.
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as religiosas e pelo seu empenho devocional devido ao seu esposo, na realidade a clausura nem sempre conheceu a concórdia e a confraternização. A fuga à norma registou-se em vários momentos, nomeadamente nos conventos dos Remédios e da Conceição. Os registos dos capítulos das visitas e das devassas conhecidos para os dois cenóbios referidos dão-nos alguns exemplos relativos às situações em que a norma não era observada. Instrumentos fiscalizadores e disciplinadores, este conjunto de prescrições e recomendações procuraram atalhar o incumprimento relativo às obrigações espirituais, morais e materiais. Constituíam-se, inclusive, como meios orientadores no que concerne à administração do património comunitário. A sua leitura deixa adivinhar que a obediência nem sempre foi respeitada, nomeadamente no decorrer dos diversos atos devocionais, momentos em que, por vezes, alguns elementos da comunidade se furtavam às suas obrigações e não compareciam no coro. Quando o frequentavam, a pontualidade nem sempre se observou, bem como a sua postura nem sempre primou pelo respeito pelo ato devocional, nomeadamente quando se faziam acompanhar pelos seus animais de estimação, ou quando recebiam recados da parte das criadas durante os ofícios divinos22. A clausura também nem sempre foi respeitada. As portas dos conventos abriam-se em determinados momentos, permitindo os contactos com elementos exteriores à comunidade23. Por vezes, o contacto físico era testemunhado, facto que punha em causa o valor da honra das religiosas. A clausura era igualmente violada quando as religiosas compareciam nos locutórios sem a presença de escutas, proporcionando-lhes momentos de maior liberdade quanto ao teor das conversas, à semelhança do que acontecia quando durante os ofícios religiosos as cortinas
Consulte-se a este propósito Artur Teodoro de Matos, “Virtudes e pecados das freiras do Convento da Glória da Ilha do Faial (1675-1812): uma devassa à sua intimidade”, in O faial e a periferia açoriana nos séculos XV a XX, Horta, Edição do Núcleo da Horta, 1997, p. 57. 23 Situações idênticas ocorreram no recolhimento da Misericórdia de Coimbra. Maria Antónia Lopes, “Repressão de comportamentos femininos numa comunidade de mulheres – uma luta perdida no recolhimento da Misericórdia de Coimbra (1702-1743)”, in Revista Portuguesa de História, tomo XXXVII, 2005, p. 202. 22
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das grades não eram corridas, permitindo os contactos visuais entre as freiras e as pessoas do século. A vida secular nem sempre foi esquecida por alguns elementos da comunidade. Algumas continuaram a demonstrar o seu gosto pelos enfeites que ornavam o seu vestuário, a qualidade dos tecidos era, por vezes, devidamente ponderada, o uso de brincos foi testemunhado em alguns momentos, bem como o uso de cosméticos24. Estes atos afastariam as religiosas das vivências espirituais, contrariando os princípios orientadores da vida em religião. Os diversos momentos que constituíam o ritual imposto no seu quotidiano nem sempre tiveram lugar. A ausência ao refeitório, por exemplo, constituiu um desses exemplos. A sua falta afastava-as não só do alimento corporal, mas também, e sobretudo, do alimento espiritual, uma vez que durante as refeições as religiosas ouviam leituras de diversas obras, nomeadamente da Regra observada no seu instituto. Constituía, portanto, um dos momentos da sua formação espiritual que, dessa forma, não se cumpria25. O relacionamento entre as diversas freiras também conheceu episódios de violência física e verbal, nomeadamente quando as inimizades se revelavam de forma mais explícita. A falta de zelo no que respeita ao exercício dos diversos cargos também foi constatada pelos visitadores e pelos prelados. O cargo de abadessa era um dos que mais atenção despertava nas autoridades religiosas, mas também da própria comunidade, sendo frequentes as queixas relativas ao modo como as abadessas exerciam o seu poder. A falta de zelo, o favorecimento de umas em detrimento de outras, eram os principais reparos apontados pelas inquiridas26. Aliás, em nossa opinião, foram alConfira-se a este propósito Isabel Drumond Braga, “Vaidades nos Conventos Femininos ou das Dificuldades em deixar a vida Mundana (séculos XVII-XVIII)”, in Revista de História da Sociedade e da Cultura, n.º 10, 2010, pp. 305-322. 25 Sobre a importância do refeitório leia-se Leila Mezan Algranti, “À sombra dos círios: o cotidiano das mulheres reclusas no Brasil colonial”, in Congresso internacional da comissão para a igualdade e para os direitos das mulheres. O rosto feminino da expansão portuguesa, Lisboa, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, 1994, p. 471. 26 A propósito da parcialidade das abadessas no exercício dos cargos consulte-se Maria Margarida Castro Neves Mascarenhas Caeiro, Clarissas em Portugal..., op. cit., p. 222. 24
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gumas destas situações em que o poder da abadessa não foi devidamente exercido que potenciaram algumas das situações de desleixo comportamental. Porém, os prelados também não estão isentos de responsabilidades. Nem sempre atuaram de forma coerente e consistente, ora proibindo, ora permitindo aquilo que tinham proibido, aliviando, em diversas situações, as penas entretanto aplicadas, fragilizando o seu poder disciplinador. Apesar do quadro traçado, ele deve ser, de alguma forma, relativizado, uma vez que estes instrumentos evidenciam as faltas cometidas. Por outro lado, não nos dão a conhecer exatamente a proporção de religiosas de cada comunidade que foram protagonistas destes atos menos consentâneos com a vida consagrada. O caráter perscrutador destes instrumentos deve, portanto, ser contrabalançado com os inúmeros exemplos de práticas devotas e de fervor religioso que os claustros também conheceram. Neste particular, a madre Custódia Maria do Sacramento, religiosa do convento de Nossa Senhora da Conceição, falecida em 1739, foi um exemplo no que respeita ao modelo exemplar de “esposa de Cristo”. Tida como santa pelas demais religiosas do cenóbio, foram-lhe atribuídas qualidades relacionadas com a obediência, caridade, humildade, bondade e sacrifício, associadas ao exímio cumprimento do dever devocional, manifestação de fervor religioso e vontade de aperfeiçoamento espiritual27. Embora a clausura fosse um local ideal no que respeita ao desenvolvimento deste ideal de vida, estes modelos de virtudes iniciaram desde cedo o caminho da perfeição, chegando aos claustros, por vezes, já com a fama de santidade, funcionando a vida religiosa como um fator potenciador da sua manifestação e posterior reconhecimento. Nestas situações, as comunidades empenhavam-se na procura da beatificação e canonização destas mulheres tidas como exemplares, funcionando, igualmente, como forma de capitalizar benefícios simbólicos para o convento. Confira-se Maria Benta do Céu – Jardim do Ceo Plantado no Convento de Nossa Senhora da Conceição da Cidade de Braga, Lisboa, Officina de Manoel Coelho Amado, 1766, p. 39. 27
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Se a entrada na clausura representava a morte para o mundo, não raras vezes esse preceito não foi observado, registando-se algumas situações em que as religiosas regressaram ao século, ainda que temporariamente. As razões associadas à saúde são as mais comuns e apenas são conhecidas a partir do século XVIII28. A fundação de outros conventos, bem como a transferência de instituição por motivos disciplinares, eram outras razões que justificavam a sua saída dos cenóbios de origem. Este ciclo de vida terminava com a morte física que, em inúmeros casos, era o culminar de uma vida de preparação para o encontro divino29. Por essa razão, este momento chegava a ser desejado por algumas religiosas. Outras, porém, temiam-no. Não porque a partida do mundo terreno lhes pesasse, mas porque temiam que as penitências praticadas em vida não fossem suficientes para merecerem as graças divinas. Sentiam, nesses casos, que a sua preparação espiritual ainda não atingira o estádio necessário para se apresentarem perante o seu “esposo”. Se a partida do mundo terreno significava o fim de uma etapa, acreditavam que outra se iniciaria em breve, altura em que seriam recompensadas pelos sacrifícios feitos em vida. Com esse fim, ou seja, o da salvação, as religiosas procuravam viver sem mácula, segundo as prescrições da Igreja, instituindo inúmeros legados em honra de sua alma, cujos benefícios espirituais esperavam contribuir para a sua salvação. Socorriam-se, portanto, dos diversos mecanismos que estavam ao seu alcance para garantirem uma passagem para o mundo espiritual com a garantia de que fariam parte do grupo das eleitas de Cristo. Neste particular, a fundação de confrarias no interior dos claustros auxiliou a instituição dos referidos legados e permitiu que as religiosas zelassem pela alma de outros fiéis que recorriam a essas associações cultuais30. Noutro plano, a fundação destas instituições possibilitava a No convento de Santa Clara do Porto são conhecidas situações idênticas. Confira-se Maria Eugénia Matos Fernandes, O mosteiro de Santa Clara do Porto..., op. cit., p. 61. 29 Leia-se a este propósito Isabel Morujão, “Morrer ao pé da letra: relatos de morte na clausura feminina portuguesa”, in Via Spiritus, 2008, pp. 163-164. 30 A propósito do movimento confraternal dos conventos em Setúbal leia-se Laurinda Abreu, Memórias da alma e do corpo. A Misericórdia de Setúbal na modernidade, Viseu, Palimage Editores, 1999, pp. 82-83. 28
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promoção do culto do santo patrono, contribuindo, mais uma vez, para capitalizar benesses espirituais, promovendo diversas festividades em honra da divindade em apreço. Estes factos permitiram, ainda, estreitar os laços com a sociedade envolvente, agregando inúmeros fiéis nesses momentos festivos, mas também através da abertura das portas das suas igrejas à entrada de procissões realizadas no século e, ainda, por via dos empréstimos de paramentos que se faziam entre as várias confrarias da cidade. A sua ereção esteve dependente da capacidade financeira das religiosas instituidoras. Embora tenham conseguido agregar um número de irmãos cujos contributos permitiram fomentar a prática cultual, a partir dos finais do século XVIII são conhecidas sérias dificuldades financeiras no interior destes organismos que fizeram diminuir a sua capacidade interventiva no que respeita à gestão das práticas associadas à morte, como fica patente pelo avolumar dos legados que ficaram por cumprir31. Enclausuradas por vontades alheias à sua, em alguns casos, de livre vontade, noutros, das religiosas esperava-se uma conduta exemplar. Se não faltaram exemplos em que o fervor religioso e a procura da perfeição espiritual se manifestaram, também foram comuns as situações de desrespeito pelas diretrizes que a vida religiosa impunha. A ausência de vocação de umas, a entrada forçada de outras, as diferentes origens sociais das diversas religiosas, bem como a convivência de uma massa humana por vezes numerosa, composta por diferentes faixas etárias, são algumas das razões que explicam a fuga à norma estabelecida. Não obstante, o apertado código comportamental que lhes foi imposto ajuda, igualmente, a explicar o desrespeito por alguns princípios. Entre os muros que desenhavam a clausura, as religiosas desempenharam diferentes papéis, alguns deles impossíveis de desempenhar no século: foram gestoras materiais e espirituais, exerceram cargos de comando, prestaram assistência material, espiritual e na doença, foram promotoras de diversas relações económicas através dos contratos celebrados com Sobre este assunto confira-se Laurinda Abreu, “A difícil gestão do Purgatório. Os Breves de redução de missas perpétuas do Arquivo da Nunciatura de Lisboa (séculos XVII-XVIII)”, in Penélope, 2004, p. 53. 31
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vista à exploração das terras, investiram no empréstimo de dinheiro a juros e na compra dos padrões de juro, promoveram a realização de verdadeiras obras de arte nos momentos em que procuraram melhorar materialmente os edifícios que albergavam as comunidades e estabeleceram relações de solidariedade e de conflito com a sociedade envolvente, recorrendo, não raras vezes, à justiça para reporem a legalidade.
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Pinturas em caixotões do tecto da Capela de Santa Bárbara Felgar – Torre de Moncorvo Rita Rodrigues*
Resumo – A Capela de Santa Bárbara é revestida, interiormente, por um tecto em caixotões que contém doze pinturas sobre pedra de granito, cujo tema são passagens da vida e do martírio da Santa. Datam do ano de 1754, tendo, muito provavelmente, o artista utilizado como fonte de inspiração o Flos Sanctorum, que relata a história da vida de Santa Bárbara, conforme representada nas pinturas do tecto. Pensa-se que tenham sido encomendadas no mesmo período da construção da capela, para que a obra pudesse ser concluída em conjunto. O culto à Santa Bárbara foi divulgado em Felgar por ser uma terra de mineiros e ferreiros, o que explica, em parte, o porquê da Capela ter sido construída sobre um monte de escórias resultantes da fundição de minério de ferro. Palavras-chave – Pinturas em caixotões; Barroco; Santa Bárbara; Conservação. Abstract – The Chapel of Santa Bárbara’s interior has a ceiling of granite caixotões, containing twelve paintings, and representing passages of her life and suffering. They date from 1754 and the artist may have utilized Flos Sanctorum as a source of inspiration, which tells the story of Santa Bárbara’s life as represented on the paintings in the ceiling. One believes that these may have been ordered at the time of the construction of the chapel, so that the work was completed simultaneously. The worship of Santa Bárbara spread in Felgar because this was a town of miners and blacksmiths, which explains, partially why the Chapel was built on a site of residual ironworks. Keywords – Paitings in coffered ceillings; Baroque; Santa Bárbara; Conservation.
_____________ *Investigadora do CITAR (Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes); doutoranda da Universidade Católica Portuguesa – Porto; bolseira da FCT (co-financiamento do FSE e Programa Operacional Potencial Humano / POPH e da União Europeia) de referência SFRH / BD / 69792 / 2010, sob a orientação dos Professores Doutores Ana Calvo e José Ferrão Afonso. CEPIHS | 2
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Características da Capela de Santa Bárbara
Pelas características técnicas e formais que apresenta, a Capela de Santa Bárbara terá sido construída, muito provavelmente, na segunda metade do séc. XVIII, apesar de não terem sido encontradas fontes escritas que o comprovassem. A pequena capela, de estilo barroco, edificada em granito, material abundante na região, apresenta uma arquitectura simples, de planta rectangular, estando numa cota superior às casas tradicionais envolventes.
Fig. 1 – Aspecto da frontaria da Capela de Santa Bárbara – Felgar. Notam-se os blocos de escórias dos lados da fachada
O telhado, de duas águas, é rematado em cada ângulo por um pináculo de estilo simples. A fachada, caiada de branco, deixa a descoberto algumas zonas de granito. A porta é encimada por duas volutas e um medalhão esculpido com inscrições. A zona central superior à porta, acolhia, em tempos, um pequeno nicho com uma escultura de vulto a três quartos, provavelmente feita em granito. A capela tem a particularidade de ter sido edificada sobre um monte de escórias. Por ser uma terra rica em minério de ferro, a actividade de
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ferreiros e mineiros, contribuiu para a eleição de Santa Bárbara como protectora do local. No seu interior, é revestida por um retábulo de estilo barroco, de talha dourada e policromada, embora já notoriamente intervencionado. O nicho central alberga uma escultura de Santa Bárbara.
Fig. 2 – Retábulo em talha dourada dedicado a Santa Bárbara, representada pela escultura de vulto redondo inserida no nicho principal
O tecto da capela apresenta doze caixotões em granito, estando divididos por molduras de cor dourada, assentes sobre um entablamento dividido por mísulas decoradas com marmoreados e fingidos de vários tons. Todos os elementos em granito policromado simulam a sustentação do tecto em caixotões acabando por funcionar como remate decorativo do conjunto. Os caixotões estão organizados e numerados segundo as passagens principais da vida de Santa Bárbara. As pinturas distribuem-se no sentido longitudinal da capela (de um a doze), sendo numeradas a cor branca. A numeração é desenhada a pincel fino nos cantos inferiores da composição. As pinturas encontram-se datadas do ano de 1754, conforme uma inscrição inferior da pintura n.º 1.
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Fig. 3 – Pinturas do lado esquerdo do tecto
Fig. 4 – Pinturas do lado direito do tecto
Relativamente ao estado de conservação, a Capela revela alguns problemas graves, que ameaçam tanto o seu espólio como o próprio edifício. Registámos patologias relacionadas com a manutenção, assim como a existência de uma intervenção humana inadequada que alterou por completo o retábulo tanto a nível material como visual. No entanto, observámos que as pinturas poderão ainda não ter sido objecto de qualquer intervenção, apesar de estarem sujeitas à infiltração de águas provenientes da deteriorada cobertura.
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As pinturas do tecto em caixotões e a vida da Santa Bárbara Santa Bárbara, venerada também como Virgem de Nicomédia, foi martirizada no ano de 306, tendo-lhe sido consagrado o dia 4 de Dezembro. Nicomédia, denominada assim na Antiguidade Clássica, era a capital da Bítina, helénica, hoje a turca Izmit. São várias as versões da história da sua vida no entanto todas relatam os mesmos acontecimentos principais relacionados com o seu martírio. Os principais passos da vida da Santa estão representados nas pinturas do tecto da capela, tendo estas sido inspiradas no Flos Sanctorum1. Santa Bárbara é protectora dos mineiros, dos ferreiros, dos artilheiros e dos arquitectos. É também invocada quando há tempestades e trovoadas. Em Trás-os-Montes e nas Beiras ainda há quem recorra à Santa com a seguinte reza: “Santa Bárbara, bendita, que no Céu estás escrita com um raminho de água benta, livrai-nos desta tormenta.”
Segundo o Flos Sanctorum, em meados do séc. III, Diáscoro era um cavalheiro rico e poderoso da região de Nicomédia e tinha uma única filha, muito bonita, “Barbora”2. Diáscoro era de carácter rude e dedicado ao culto dos Deuses greco-romanos, ao contrário da sua filha que “tinha uma forma diferente de ser”3. Imperava Maximiano Hércules, em latim, Marcus AureliusValerius Maximianus Herculius Augustus4, que nasceu c. 250 e faleceu c. Julho de 310, tendo sido imperador romano entre 286 e 305. Flos Sanctorum, História das vidas e obras insignes dos Santos. Lisboa, 1674. (Rivadeneyra, Pedro de, 1527-1611; Craesbeeck, António, 1640-1684, impr.) O Flos Sanctorum constitui uma extensa colecção de relatos de vidas de santos, desde os mártires romanos, até santos canonizados já na época medieval. Provavelmente, foi baseado na Legenda Dourada. 2 Idem, p. 374. 3 Idem, Ibidem. Será importante referir que o Cristianismo ainda se encontrava numa fase inicial de afirmação como religião. Note-se que a religião dos Romanos era politeísta: adoravam diferentes deuses. 4 No livro, Flos Sanctorum, o Imperador é referido como presidente. 1
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Diáscoro iria fazer uma viagem e, com receio que a sua filha casasse com algum homem atraído essencialmente pela sua beleza e riqueza, fechou-a numa torre5. Santa Bárbara aceitou isso bem, pensando que assim poderia dedicar-se mais à contemplação do céu e da terra. Decidiu consagrar a vida toda a Deus e tomá-lo “como seu esposo”6. Mais tarde, quando o pai lhe dizia que queria que ela se casasse “com um homem mortal… ela dizia que já tinha um imortal”7. Nesse momento, o Pai resolveu ausentar-se durante alguns dias, pensando que com o tempo a filha mudaria de ideias. Ordenou a construção de um banho e a abertura de duas janelas na Torre. Um dia, a Santa desceu e pediu para abrir uma terceira janela em honra da Santíssima Trindade. Assim, derramou lágrimas “dos seus olhos como pérolas”8 e logo uma fonte se encheu9. Seguidamente, o sinal da Santa Cruz ficou, na mármore, “assinalado como se fosse de cera”. Deste modo, um doente que entrasse no banho sairia curado. É importante realçar que este episódio não foi retratado tal como nos refere o Flos Sanctorum. A pintura n.º 210 assinala o momento da aparição miraculosa de S. João Baptista à Santa. À frente da fonte podemos ver que S. João segura numa mão uma cruz e com a outra, levantada, possivelmente a baptiza. Na zona inferior da composição aparecem as três janelas relativas à Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. O relato do Flos Sanctorum não assinala a aparição de S. João Baptista, tal como acontece nas fontes escritas do Martyrologio Romano11 e, também, nas deixadas por Diogo do Rosário12. Neste último, apenas é feita a alusão ao baptismo, embora não especifique o momento. Contudo, em livros de Ver Apêndice documental, fig. 7, p. 369. Flos Sanctorum... op. cit., p. 374. 7 Idem, Ibidem. 8 Idem, Ibidem. 9 Idem, Ibidem. Ver Apêndice documental, fig. 8, p. 369. 10 Flos Sanctorum... op. cit., p. 374. 11 Martyrologio Romano accommodado a todos os dias do anno conforme à nova ordem do Calendário, que fe reformou por mandado do Papa Gregorio XIII, Coimbra, 1591. 12 Diogo de Rosário, História das vidas e feitos heroicos e obras insignes dos Sanctos: com muitos sermões & praticas espirituais que seruem pera muitas festas do anno / vistas & cotejadas com os seus originaes, Lisboa, Casa de Azevedo, 1585, p. 8. 5 6
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iconografia, são feitas algumas referências à existência de um possível momento do baptismo de Santa Bárbara, tal como nos indica o livro Del come riconoscere i sant13. Este é o único momento que não coincide com as descrições do Flos Sanctorum pois encontramos exactamente os mesmos acontecimentos no resto das pinturas, conforme veremos a seguir. Assim, quando Diáscoro regressou, viu três janelas em vez das duas que tinha ordenado abrir, indignando-se também, com o sinal da cruz na Torre. Santa Bárbara aproveitou para lhe falar da sua fé em Cristo, do mistério da Santíssima Trindade e da redenção pelo filho de Deus14. O pai ficou furioso ao perceber que a sua filha era cristã, que, para além de não acreditar nos deuses, não aceitava casar, querendo dedicar a sua vida a um único Deus. Por ter medo de perder as suas riquezas, caso chegasse aos ouvidos do imperador, e “esquecendo-se que era Pai, vestiu-se de pessoa de tirano”15, e tentou agredir a sua filha, mas a Santa conseguiu fugir. Diáscoro, não pôde conter a sua raiva e continuou atrás da filha querendo feri-la. A Santa conseguiu fugir com a ajuda da abertura de uma rocha a meio “por vontade do Senhor, a quem todas as criaturas obedecem”16. Ainda que o Pai tivesse visto este milagre, não se comoveu “porque era mais duro que a mesma pedra”17. Por informação de dois pastores que viram a Santa, conseguiu segui-la, e encontrá-la, dando-lhe “punhaladas e puxando-lhe os cabelos”18. Fechou-a na Torre “como as galinhas”19, colocando guardas na entrada20. Para se vingar da própria filha mostrando-lhe o zelo que tinha pelos seus deuses, ordenou que fosse presa e levada diante do Imperador Maximiano, avisando-o que a filha era Cristã e pedindo para que a exeGigi Cappa Bava; Stefano Jacomuzzi, Del come riconoscere i santi, Torino, Società Editrice Internazionale, 1998, pp. 248-249. 14 Ver Apêndice documental, fig. 9, p. 369. 15 Flos Sanctorum, História das vidas e obras insignes dos Santos, op. cit., p. 375. 16 Idem, Ibidem. Ver Apêndice documental, fig. 10, p. 369. 17 Flos Sanctorum... op. cit., p. 375. 18 Idem, Ibidem. Ver Apêndice documental, fig. 11, p. 370. 19 Flos Sanctorum... op. cit., p. 375. 20 Ver Apêndice documental, fig.s 12 e 13, p. 370. 13
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cutassem e se impusessem as respectivas leis contra os Cristãos. Pediu ao Imperador para fazer jurar que lhe aplicariam todos os tormentos. Trazida ao tribunal de Maximiano, este começou por persuadi-la para que deixasse aquela “superstição e loucura”21. Contudo, rapidamente percebeu que Santa Bárbara estava absolutamente convicta da sua crença. Mandou-a despir e “esfregar com ásperos cilícios”22 fazendo chagas no seu corpo. Nessa noite, ficou na cadeia onde lhe apareceu à meia-noite Jesus Cristo que a animou e a certificou que estaria sempre ao seu lado23. Com as palavras de Jesus, Santa Bárbara ficou sã, sem feridas, tendo coragem e uma alegria imensa para aguentar todos os tormentos. No dia seguinte, foi levada à segunda audiência diante do Imperador, que ao vê-la tão bem, ficou pasmado, atribuindo o milagre aos seus Deuses. O Imperador mandou dois algozes, homens valentes, rasgarem com “pentes de ferro”24 o corpo da Santa, queimando-a com tochas acesas e dando golpes na sua cabeça com um martelo25. A Virgem sofreu estes tormentos com olhos sempre postos no céu e dizia: “Ah, bendito sejas... Bem vedes o segredo do meu coração,e sabeis que em vós tenho toda a esperança, não me deixes Senhor, porque sem vós sou muito fraca e convosco tudo posso”26. O Imperador mandou ainda cortar os peitos com um cutelo mas a Santa superou todas as dores louvando a Deus dizendo: “Não vos afasteis de mim Senhor e dai-me força”27.
Flos Sanctorum... op. cit., p. 375. Idem, Ibidem. 23 Ver Apêndice documental, fig. 15, p. 371. 24 Flos Sanctorum... op. cit., p. 375. A expressão usada retrata, exatamente, a cena do quadro. 25 Ver Apêndice documental, fig. 16, p. 371. 26 Flos Sanctorum... op. cit., p. 375. 27 Idem, Ibidem. 21 22
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Para envergonhar a Santa Virgem, mandou-a despir-se, castigando-a com açoites, percorrendo as ruas para também aterrorizar as demais donzelas cristãs. Mas a Santa continuava de olhos postos no Céu, rezando. Neste momento, com “nuvens, o céu desceu à terra”28 tapando-lhe o corpo29. Diante disto, o Imperador mandou degolá-la. Levaram-na para fora da cidade30. Santa Bárbara ajoelhou-se rezando, pedindo a Deus que desse os seus bens a todos que evocassem o seu nome. Ouviu-se então, uma voz, vinda do Céu, que a chamava para ser coroada prometendo que faria os seus desejos. Com isto, inclinou-se para a frente diante do seu Pai, que levantou uma espada e lhe cortou a cabeça31. Morreu, com a Santa, outra Virgem, chamada Juliana, que a seguiu, convertendo-se a Cristo, tendo sido julgada também pelo Imperador Maximiano. O culto de Santa Bárbara O culto de Santa Bárbara remonta aos primórdios do cristianismo sendo muito vagos os documentos comprovativos do mesmo32. As pinturas baseiam-se, sobretudo, na história transcrita do Flos Sanctorum, principal fonte para a iconografia da Santa. O ciclo da vida e do martírio de Santa Bárbara é representado neste tecto de uma forma única em doze passagens33. As representações de Santa Bárbara estão normalmente acompanhadas pelos seus atributos principais: a torre com as três janelas e a folha de palma. Com menos frequência, podemos vê-la a segurar um cálice, a Idem, Ibidem. Ver Apêndice documental, fig. 17, p. 371. 30 Idem, fig. 18, p. 371. 31 Flos Sanctorum... op. cit., p. 375. 32 Fernando e Gioia Lanzi, Saints and their Symbols – Recognizing Saints in Art, and in Popular Images, Italy, Jaca Book, 2004, pp. 95-96. 33 O número de caixotões pode provavelmente conter um significado específico. Na Bíblia e na simbologia cristã, o número doze teve uma importância fundamental: doze, os filhos de Jacob, doze, as tribos de Israel, doze, os apóstolos... e poderíamos encontrar ainda mais semelhanças, tal como, a soma do próprio número doze, 1+2=3, representando a Santíssima Trindade. 28 29
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espada do seu martírio ou um canhão, por ser a padroeira dos artilheiros. Contudo, observamos que na imaginária portuguesa, os atributos mais comuns são a torre e um livro aberto. Tanto em Trás-os-Montes como nas Beiras, o culto a Santa Bárbara foi muito venerado, talvez por ser uma zona propícia a tempestades e trovoadas. Na Igreja Matriz de Numão encontramos uma escultura de Santa Bárbara, ainda do primeiro quartel do séc. XVIII34. A Santa está representada de pé, segurando numa das mãos um livro e na outra, uma torre com as três janelas. Na Capela de Santa Bárbara de Freixo do Numão observamos uma escultura da escola portuguesa35, da mesma época, representando a Santa, apesar de ter características técnicas mais cuidadas e pormenorizadas. É, ainda, notório o acompanhamento dos mesmos atributos na escultura. Evidenciamos uma gravura portuguesa36 de finais do séc. XVI, em que Santa Bárbara está de pé segurando a folha de palma37 ao lado da Torre com as três janelas. Na literatura portuguesa, Santa Bárbara foi também tema. O “Auto de Santa Barbora”, datado de 1668, foi escrito em Lisboa, e por DoFig.5 – Gravura representando Santa Bárbara mingos Carneyro.
João Soalheiro, Imaginária Sacra, Porto, Câmara Municipal de Foz Côa, 2007, p. 58. Idem, pp. 62-63. 36 Diogo de Rosário, op.cit. p. 8 37 A folha de palma é um símbolo dos Santos Mártires. 34 35
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Pinturas em caixotões do tecto da Capela de Santa Bárbara Felgar – Torre de Moncorvo
Entre as muitas obras dedicadas a Santa Bárbara podemos destacar uma pintura a óleo sobre madeira, da autoria de Lucas Cranach38 de cerca de 1510, denominada “O Martírio de Santa Bárbara”39. A pintura divide-se numa composição de três planos. Num primeiro plano, observa-se o pai da Santa com uma espada segurando-a pela cabeça; num segundo plano podermos ver os soldados com o Imperador Maximiano; e num último a representação de casas e da torre, tal como refere a lenda, que a morte de Santa Bárbara teria acontecido num monte afastado da cidade. Cranach terá pintado o quadro a pedido da família Rehm de Augsbur40 go , isto, porque está representado o brasão de armas no canto inferior direito da composição. As várias representações de Santa Bárbara que chegaram até aos dias de hoje, assinalam normalmente o momento do seu martírio, estando a Santa acompanhada com o seu Pai. É retratada vestida com uma túnica à semelhança do que acontecia com as Fig. 6 – “O Martírio de Santa Bárbara” de donzelas romanas daquele tempo. Lucas Cranach
Lucas Cranach, “o velho”, foi um pintor e gravador renascentista alemão que nasceu no ano de 1472 e morreu em 1553. Foi pintor da corte dos Eleitores da Saxónia durante grande parte da sua carreira. Retratou alguns príncipes alemães e líderes da Reforma Protestante, como Martinho Lutero. 39 A imagem da pintura foi retirada do site http://www.metmuseum.org/Collections/search-thecollections/110000473. (consulta efectuada: 2012/5/20; 11h). Ver Apêndice documental, fig. 18, p. 371. 40 METMUSEUM, http://www.metmuseum.org/Collections/search-the-collections/110000473, (2012/5/20; 11h) 38
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Conclusão
As pinturas representadas no tecto em caixotões são, muito provavelmente, exemplar único em Portugal de um ciclo historiado tão completo e pormenorizado da vida e martírio de Santa Bárbara. Terá sido o Flos Sanctorum a base principal para a execução da composição das pinturas. A divisão do tecto em doze caixotões permitiu colocar as principais passagens da vida da Santa proporcionando ao observador uma leitura adequada dos acontecimentos. É importante relembrar que no séc. XVIII, as missas eram dadas em Latim, com a agravante da elevada iliteracia predominante na época. O acompanhamento através das imagens no tecto, facilitava a compreensão da vida da Santa por parte do crente.
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Pinturas em caixotões do tecto da Capela de Santa Bárbara Felgar – Torre de Moncorvo
Apêndice Documental
Fig. 7 – Fotografia da pintura n.º 1. Diáscoro a levar a Santa Bárbara para a Torre. Na parte inferior da pintura pode ver-se data de execução
Fig. 8 – Fotografia da pintura n.º 2. Santa Bárbara com S. João Baptista que segura a cruz junto da fonte milagrosa. Notam-se as três janelas na parte inferior da composição, representando a Santíssima Trindade
Fig. 9 – Fotografia da pintura n.º 3. Santa Bárbara fala com a seu Pai dizendo--lhe que era Cristã apontando para a cruz inscrita na Torre
Fig. 10 – Fotografia da pintura n.º4. Santa Bárbara foge do seu Pai, momento em que a rocha se abre
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Fig.11 – Fotografia da pintura n.º 5. Diáscoro batendo na filha. Notam-se ao fundo as figuras dos pastores e do rebanho
Fig.12 – Fotografia da pintura n.º 6. A Santa a ser fechada novamente pelo seu Pai
Fig.13 – Fotografia da pintura n.º 7. Diáscoro colocando guardas à porta da Torre
Fig.14 – Fotografia da pintura no 8. Massacre de Santa Bárbara ordenado pelo Imperador
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Pinturas em caixotões do tecto da Capela de Santa Bárbara Felgar – Torre de Moncorvo
Fig.15 – Fotografia da pintura n.º 9. Santa Bárbara fechada na cadeia no momento em que lhe aparece Jesus
Fig.16 – Fotografia da pintura n.º 10. Martírio de Santa Bárbara com pentes de ferro
Fig.17 – Fotografia da pintura n.º 11. Momento do martírio em que Deus cobre a Santa de Nuvens. Repare-se no pormenor das vestes colocadas no chão
Fig.18 – Fotografia da pintura n.º 12. Santa Bárbara rezando é degolada pelo seu Pai num monte, vendose a cidade ao fundo
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Rita Rodrigues
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Agradecimento – A autora agradece à FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia – e às demais Entidades.
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Memórias da vida rural transmontana e alto duriense em meados do século XX Virgílio Tavares*
Resumo – Neste artigo, analisa-se a vida das pessoas na década de 60, que decorria em difíceis condições advindas de uma região profundamente ruralizada e com baixos rendimentos. A emigração foi a consequência mais direta da insatisfação dos trabalhadores rurais e pequenos proprietários. A guerra em África estimulou outros a sair. Deitou-se mão a uma policultura intensiva a fim de tirar o máximo rendimento. As crianças, idosos e mulheres povoavam as aldeias de campos desertos. A divisão dos terrenos em pequenas parcelas, os caminhos íngremes e agrestes complicavam a situação. Os domingos, dias religiosos, romarias e feiras proporcionavam o lazer e o convívio que aliviavam a vida árdua dos restantes dias. Palavras chave – Memórias; Ruralidade; Emigração; Vida social. Abstract – The focus of this article is the daily life in the sixties, which was marked by difficult conditions due to being a profoundly rural region with very low income. Emigration became a direct consequence to the dissatisfaction of the rural workers and small proprietors.The war in Africa stimulated others to leave. Efforts were made to promote mixed cropping for maximum income. Children, elderly and women populated villages of deserted fields. The division of fields into small parcels, the steep and wild roads only worsened the situation. Sundays, religious holidays, pilgrimages and market days offered the leisure and social life that alleviated the hardships of the remaining days. Keywords – Memoirs; Rural life; Emigration; Social life.
______________ *Professor da Escola Superior de Educação Jean Piaget / Nordeste; investigador do CEPESE. CEPIHS | 2
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Virgílio Tavares
Introdução
Vivem-se momentos conturbados ao nível social e económico no Portugal dos primeiros anos do século XXI. Sente-se o espetro do futuro sem futuro. As condições de vida pioram, a fome e a miséria pairam no ar e na vida de muitos portugueses. Daí, falar-se na vida rural como solução para tão sérias dificuldades ao lado da emigração. Esta reflexão faz-nos remeter para as “Memórias da vida rural transmontana e alto duriense em meados do século XX”, o tema do nosso estudo, no sentido de tentar compreender outro período problemático da nossa história. Como viviam as pessoas no campo há meio século atrás? Porque razão se dá o êxodo rural para as cidades e para a Europa nessa altura? Incidimos nos anos 50 e 60 do século XX, por marcarem uma época de transição em Portugal, cuja ruralidade na primeira metade do século vai dar lugar a uma forte corrente migratória principalmente para a Europa, tendo, consequentemente, originado diversas e profundas transformações sociais e económicas no país. Quanto ao espaço, a nossa escolha recaiu na área transmontana e alto duriense dos concelhos de Torre de Moncorvo e Carrazeda de Ansiães, particularmente nas freguesias de Cabeça Boa, Lousa e Vilarinho da Castanheira, região que conhecemos bem, desde, precisamente, os anos 50 do século passado. Frequentamo-lo assiduamente e contactamos com a realidade local e as suas gentes de forma intensa e permanente. Para levarmos a bom termo o desenvolvimento deste estudo, privilegiámos, na bibliografia consultada, os registos orais e escritos (manuscritos) de pessoas intervenientes naquelas comunidades rurais. Esses registos, contactos pessoais e as nossas vivências permitem-nos recuperar memórias que vão perdendo-se com o tempo e transformá-las em informação que pode ser utilizada para outros trabalhos históricos, sociológicos, económicos. A História de um país faz-se com a história das partes do seu território. E, neste âmbito, “poucas regiões rurais são «desfavorecidas»: depositárias de história e de tradições, construídas pelo trabalho de gerações
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de homens e mulheres, possuem em geral um rico património e até uma identidade cultural forte”1. A vida rural – o espaço
As freguesias da Lousa e Cabeça Boa, do concelho de Torre de Moncorvo, bem como a freguesia de Vilarinho da Castanheira, do concelho de Carrazeda de Ansiães, cujos termos são o objeto do nosso estudo, e com aspectos comuns a toda a região norte de Portugal, são freguesias contíguas que abrangem uma área de 89,90km2, (34,97 km2, Lousa; 25,83 km2, Cabeça Boa; 29,10 km2, Vilarinho da Castanheira). Pertencem ao distrito de Bragança, situam-se na margem direita do rio Douro e são limitadas pelo rio Sabor a Norte. A freguesia de Cabeça Boa tem, além da aldeia sede, as povoações de Cabeça de Mouro, Cabanas de Baixo, Cabanas de Cima e Foz do Sabor. A freguesia de Lousa contava, naquela época, apenas com um pequeno povoado junto do Douro, o Saião, onde habitavam cerca de quatro dezenas de pescadores e agricultores, mais o barqueiro que ali passava para a margem esquerda (lado de Fozcôa). Para além de algumas quintas habitadas e casas de campo, ocupadas temporariamente, a concentração populacional verificava-se na Lousa, situada a cerca de 890 metros de altitude. À freguesia de Vilarinho da Castanheira pertencia, também, a aldeia de Pinhal do Douro e quintas habitadas, como a do Lobazim, Lagares. A Cadima, junto ao Douro, fazia termo com a Lousa, mesmo defronte da estação de caminho de ferro. Pertenciam-lhe duas quintas (a Telhada e a Eira da Barca) onde viviam cerca de duas dezenas de pessoas, que se juntavam a alguns habitantes da povoação, entre eles, o barqueiro e a sua família. Dispunha de comércio. Devido à configuração física do relevo, com elevações acima dos 850 metros (como é o caso do Monte de Santa Bárbara na Lousa o do Monte da Sr.ª da Assunção de Vilarinho da Castanheira), esta área está inserida na região transmontana, mas, ao mesmo tempo, tem as encostas até ao Douro que já fazem parte da região demarcada do Alto Douro, onde se 1
Fonte: LEADER Magazine nr.8 - Inverno, 1994
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produz o vinho do Porto. Deste modo, as freguesias indicadas têm os seus terrenos distribuídos pelas duas áreas geográficas: até à altitude dos 600 metros, os terrenos xistosos apresentam condições de micro clima favorável à produção do vinho do Porto, amêndoa, azeite e figo, para além de excelentes laranjas. É a zona do Douro superior. Acima daquela altitude, o clima torna-se diferente, mais frio e agreste, dando lugar ao granito, próprio da região transmontana. Falamos, por isso, da vida rural transmontana e alto duriense. Analisando os aspetos demográficos, verificamos que as freguesias em estudo conheceram, até 1950, um aumento de habitantes a que se seguiu um decréscimo populacional, mais acentuado na década de 60. Este processo manteve-se até aos nossos dias e alargou-se a toda a região rural de Trás-os-Montes e Alto Douro. Vejam-se os quadros 1 e 2.
Fig. 1 – Localização da freguesia de Lousa, Cabeça Boa e Vilarinho da Castanheira
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Memórias da vida rural transmontana e alto duriense em meados do século XX Quadro 12 – População das freguesias de Cabeça Boa, Lousa e Vilarinho da Castanheira 1930-1970 Freguesias
1930
1940
1950
1960
1970
Cabeça Boa
977
1024
1107
1046
750
Lousa
1345
1651
1660
1557
1086
Vilarinho da Castanheira
1346
1533
1560
1462
1057
Totais
3668
4108
4327
4065
2893
Quadro 23 – População das freguesias de Cabeça Boa, Lousa e Vilarinho da Castanheira 1981-2011 Freguesias
1981
1991
2001
2011
Cabeça Boa
634
536
469
428
Lousa
897
666
508
358
Vilarinho da Castanheira
987
1096
771
415
Totais
2518
2298
1738
1201
Entre as causas dessa clara redução populacional, está a guerra colonial que então se inicia, e a emigração, fruto das difíceis condições de vida e do desejo de serem ultrapassadas. Atividades principais
Em Portugal, no início da década de 60 do século passado, era o setor primário aquele que ocupava a maior parte da população ativa. É durante esta década que principia a decadência deste setor e o arranque da expansão dos outros. Na verdade, em 1963, “O sector terciário cresceu, em 2 3
INE, Censos de 1930, 1940, 1950, 1960, 1970. INE, Censos de 1981, 1991, 2001, 2011.
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média, à mesma taxa que o conjunto da economia (6,8%)”4, quando “a crise estrutural da agricultura já se revelava na sua baixa taxa de crescimento (1,5% ao ano), a qual acarretou a reduzida expansão do conjunto do sector primário (1,7% ao ano)”5. Esta ruralidade vinha das décadas anteriores. “Pelos anos 50 Portugal tinha um extenso e populoso “mundo rural”. Ou melhor, era ele mesmo um país rural. Para além de Lisboa e Porto quase só havia vilas grandes, não as cidades médias de hoje. (…). Mais de ¾ da população vivia no campo e a economia nacional dependia deste”6. Na zona do Douro Superior e Trás-os-Montes também assim era, como podemos deduzir do depoimento de uma comerciante da Lousa: “O sr. Avelino Durão não era só comerciante, era um bom proprietário, dava muitas jeiras a ganhar, pois o povo da Lousa era do que vivia. (…) O sr. Abílio Arrepia casado com a sr.ª Eduarda era um grande proprietário, que dava muito trabalho aos pobres e dava-lhes de comer”7. Até meados do século XX, continuava a ser o mundo rural quem sustentava a população portuguesa, mesmo a que vivia em zonas mais urbanas, já que era do campo que seguia para a cidade uma parte da produção agrícola. Assim acontecia na zona duriense, com o comboio e o rio a fazerem chegar esses produtos ao Porto. De regresso, vinham outros do litoral para a aldeia. A agricultura familiar tradicional dominava as atividades produtivas, em paralelo com um conjunto de outras que a sustentaram e mantiveram ativa ao longo dos anos: a pecuária, a indústria artesanal, a silvicultura, a apicultura e o pequeno comércio. Nas regiões em referência, existia, ainda, a atividade piscatória nos rios Tua, Douro e Sabor. “Até aos anos 50 do século anterior, tende-se a definir a situação socioeconómica do país agrícola a partir da diferenciação entre a agriculEdgar Rocha, “Crescimento Económico em Portugal nos anos de 1960-73: alteração estrutural e ajustamento da oferta à procura de trabalho”, in Análise Social, vol. XX, (84), (621-644), 1984, p. 627. 5 Idem. 6 José Portela, “O Meio Rural em Portugal: Entre o Ontem e o Amanhã”, in Revista de Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. 39 (1-2), p. 46 (45-65), Porto, Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, 1999. 7 Manuscritos de Maria Joaquina Durão, nascida em 1922, escritos nos fins dos anos 90. 4
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tura familiar, predominante a norte, por oposição à agricultura de tipo patronal ou latifundiária reinante a sul”8. Contudo, nem sempre era o espaço doméstico que determinava a agricultura, já que havia outros casos distintos9. Por exemplo, as quintas de empresas portuguesas e inglesas que se dedicavam exclusivamente ao cultivo da vinha e transformação em Vinho do Porto. Estas situações não contrariavam a evidência de que a grande maioria da população explorava a terra, familiarmente, com o objetivo de se auto sustentar. No norte, e em particular na região em estudo, cada família constituía uma unidade produtiva, onde todos os seus elementos trabalhavam, incluindo as crianças. Só se recorria a outros trabalhadores quando a mão de obra familiar não era suficiente, ou quando a especialização das tarefas o exigia. Era frequente a torna jeira, ou a entreajuda mútua de familiares ou amigos mais chegados. Há que distinguir os proprietários de parcelas de terreno mais extensas, daqueles cujas parcelas eram reduzidas em número e tamanho. E há que ter em conta, ainda, um sem número de pessoas que não tinham qualquer porção de terreno em seu nome. Os primeiros chamavam à jorna, isto é, à jeira diária ou semanal, os prestadores dos diversos serviços, homens e mulheres, tornando-se o pagamento auferido o ganha-pão de muitos núcleos familiares. Os segundos faziam os seus próprios trabalhos nas terras que lhes pertenciam, para além das jeiras nas propriedades dos outros. Ao mesmo tempo, podiam arrendar terras. As rendas, na maior parte das vezes pagas em géneros, nem sempre lhes eram favoráveis, uma vez que só recebiam um terço da produção, sendo os dois terços para o dono da parcela. Todavia, já havia casos em que o arrendamento correspondia a metade da produção. No pagamento da jorna atendia-se ao tipo de trabalho e ao sexo do trabalhador: o homem ganhava o dobro da mulher; o trabalho da poda ou limpa era mais caro que o de cavar ou erguer a vinha; lavrar a terra com um animal tornava-se mais dispendioso quando o animal pertencia
Renato Miguel do Carmo, “A Agricultura familiar em Portugal: ruturas e continuidade”, in Revista de Economia e Sociologia Geral, vol. 48, Jan. /Março 2010. 9 Idem. 8
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ao trabalhador. O transporte dos produtos em animais, carros de bois ou barco, tinham um preço, também, distinto. Para termos uma ideia do valor das jeiras e do preço de alguns produtos dos anos 50 e 60 do século XX, registamos aqui algumas curiosidades da vida rural daquela época, particularmente da Lousa, embora nas terras vizinhas não variassem muito. Em relação a Vilarinho da Castanheira, Cabeça Boa e, mesmo, da freguesia do Castedo, que fica contígua, era na Lousa que se praticavam as jeiras mais caras, caraterística que ainda se mantém na atualidade. “Entre 1950 e 1960 os homens recebiam 20$00 a seco e as mulheres 10$00 pelo dia de trabalho, de a sol a sol. (…) Por volta de 1940 as jeiras eram a 7$00 até Março, e a partir de Março a Outubro a 8$00. A malhada era mais cara: 4$50 por dia a comer, e a seco era 5$00 (isto antes de 1940)”10. Em 1963, uma casa rural simples, térrea, para habitação, sem divisões, custava de renda 20$00 por mês; um metro de tábuas (madeira), 30$00; uma fechadura simples, 15$00; um conserto da belfa e da albarda importava em 50$00; o metro do tolde, lonas, 22$50; cada potada (medida do alambique) de aguardente, 15$00; cada cântaro de vinho, 5$00 e cada colmeia, 100$00. Um litro de aguardente ficava por 3$80, sendo o cântaro a 50$00; a arroba da castanha vendia-se por 15$00, ou seja a 1$00 o quilo; o figo seco comprava-se a 23$00 a arroba; 100 quilos de cal a 75$00 e o quilo de miolo de amêndoa a 40$5011. Em 1964, o azeite atingiu os 400$00 por almude e o quilo da castanha, 1$50. O transporte das uvas de barco pelo rio Douro, desde o Bezerral (por baixo do Saião) até ao Lobazim, atingiu os 160$00. Porém, no ano seguinte, por ter aumentado o número de canastras, o preço subiu para 215$00. A potada baixou para 14$00 e a amêndoa para 40$00, aumentando para 41$00 em 1966. Ainda em 1964, uma saca de sulfato para a vinha importava em 450$00 e o aluguer de uma terra de trigo ou centeio, com cerca de um hectare para semear e com alguns pinheiros valia, por ano, 210$00. Virgílio Tavares, Lousa: História e Tradições, Torre de Moncorvo, edição do autor, 1995, p. 48. 11 Manuscritos de um proprietário e agricultor, António Augusto Tavares, cuja atividade por conta própria se desenvolveu entre 1946 e 2000. 10
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A renda de uma habitação com rés do chão e primeiro andar já ficava a 70$00 por mês12. O trabalhador agrícola ganhava 35$00 por dia e as mulheres 17$50, em 1965, tendo o salário aumentado 5$00 em relação a 1963. Desde esta data, e ainda em 1965, a lavragem com macho custava 70$00 por dia e cada colmeia 115$00. Em 1966, os homens já ganhavam 40$00 por dia e as mulheres 20$00. Singular era o contrato que o proprietário fazia com o trabalhador. Por exemplo, nesse ano, pela limpeza das oliveira, se o patrão desse o almoço, os homens passavam a ganhar 20$00 por jorna. Era costume o proprietário dar um litro de vinho por dia ao jeireiro13. Em 1977/78, a jeira do homem era de 1500$00 por dia14. Havia outras despesas, como, por exemplo, ferrar o macho que, em 1965, custava 20$00, e a contribuição predial que variava: um pequeno proprietário pagava 100$00, um grande proprietário, 565$00. O agricultor podia vender, ainda, a baga da azeitona, auferindo, em 1962, 3$00 por quilo, em 1978/79, apenas, 2$00. O almude de azeite, em 1975, era a 1160$00. A nível nacional, o preço dos produtos agrícolas tendia para um aumento, assim como os salários, embora em escalas diferentes. Com base nos índices da FAO, sobre preços por grosso dos produtos alimentares agrícolas e da produção nacional em geral, para o período 1960-1973, “verifica-se que os preços dos produtos agrícolas alimentares aumentaram mais rapidamente do que o índice geral nos anos de 1963-1966 e 1969-1972”15. No que respeita ao preço do salário do trabalhador rural, constata-se, também, uma subida de 16,6% de 1963 para 1965 e de 14,3% para 1966. Se considerarmos o período 1963-1966, o acréscimo foi de 33,3% no conjunto dos três anos. Muitos produtos agrícolas tinham leves aumentos ou, até, diminuía o seu preço, como o caso da Em 1955, em Freixo de Numão, a renda da casa do Mestre da Banda custava 50$00 por mês, enquanto que a casa de ensaio da banda importava em 40$00 mensais. O mestre ganhava, por mês, em 1961, 700$00. Cf. António N. Sá Coixão e António A. Rodrigues Trabulo, Banda Musical de Freixo de Numão, 120 anos da sua História, 1985, pp. 135-139. 13 Manuscritos do proprietário e agricultor António Augusto Tavares, nascido em 1923. 14 Idem. 15 Edgar Rocha, “Crescimento Económico em Portugal nos anos de 1960-73: alteração estrutural e ajustamento da oferta à procura de trabalho”, op. cit., p. 629. 12
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amêndoa que baixou $50 por quilo de1963 para 1964, para, em 1966, aumentar 1$00 por quilo. O proprietário e agricultor aproveitava tudo o que a terra e a natureza lhes podia dar para tirarem o sustento, mas, também, para angariarem alguns proventos. As economias eram, muitas vezes, reinvestidas na terra. A Lousa ganhou fama de ser um termo farto e rico, o que não invalidava que o trabalho fosse pesado e persistente, com os homens e as mulheres a terem de suportar caminhadas agrestes para arrancar à terra os produtos que sustentavam as suas vidas. Ir da aldeia ao rio Douro, a pé, ou nos animais, demorava mais de uma hora e meia. O regresso dos terrenos, junto do Douro até à povoação, no cimo da serra, levava 2 horas! Ao longo do ano os trabalhos agrícolas eram uma constante requerendo muitos braços. Desde a poda da vinha, no início do ano, a lavra, a descava, o erguer a vinha, a travessa, deitar o enxofre, a espompa, o sulfato, a desfolha, o enrolar e ou atar a rama. O trabalho era duro, sequencial e não podia falhar, sob pena de se perder a colheita16. A vinha exigia cuidados especiais, como preparar os paus de castanho para a esmadeirar, ou seja, aguçá-los na ponta para serem espetados junto de cada videira, atando-se a vide ao pau com junça (isto é, junco previamente cortado, seco). Mais tarde, passaram a colocar-se pedras de xisto preto vindo de Fozcôa e arames a substituírem a madeira. Durante a vindima tornava-se necessário transportar as uvas para o lagar, pisá-las com os pés, dar volta ao mosto, tirá-lo do lagar e colocá-lo nas pipas. Os restos das uvas e bagos, ou cangaço, era tirado do lagar com umas forcadas e colocado no cincho da prensa onde era apertado manualmente para se retirar, ainda, algum vinho. Seguia, depois, para o alambique a fim de se extrair a aguardente. Daqui, ia para a vinha, de novo, ou para as terras a fim de servir de estrume. O agricultor transmontano e alto duriense desta zona em estudo, praticava a policultura. Para além da vinha, ocupava-se das oliveiras, fiHá termos próprios deste trabalho que, por vezes, variam de terra para terra. Espompa quer dizer tirar os pombos, isto é, os rebentos que estão a sobrecarregar as vides fora das vides que se deixaram para dar as uvas. 16
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gueiras, amendoeiras e outras árvores de fruto e nas hortas. As oliveiras exigiam, igualmente, muito trabalho. De dois em dois anos (de três em três ou de quatro em quatro anos, conforme os agricultores queriam ou podiam), era preciso limpá-las. A poda ou limpa era feita por homens especializados e outros e por mulheres. Cortavam-se os ramos, aparava-se a lenha que se podia reaproveitar para a lareira e queimava-se a rama que restava. Em março/abril os olivais eram lavrados com os animais, por vezes, guiados pelas crianças, chegando a faltar à escola. Os animais podiam ser preparados para lavrarem sem precisar de ninguém a conduzi-los. Neste caso, eram orientados através de umas cordas finas que se prendiam na base da cabeçada. A seguir à vindima, apanhava-se a azeitona do chão e cortavam-se os eventuais rebentos nascidos entretanto. Dezembro era o mês em que se iniciava a apanha da azeitona. Para alguns proprietários, se os anos eram de grande produção, só acabava em fevereiro ou março do ano seguinte. Os processos usados eram rudimentares e manuais. A amendoeira também tinha o seu tempo de trabalho. Para além da limpa e da lavragem era necessário, igualmente, apanhá-la, por volta de setembro, descascá-la e britá-la. A casca era usada como fonte de calor. A figueira dava menos trabalho. Porém, a apanha do figo do chão, em diferentes ocasiões, e a sua secagem nas passeiras tornavam-se penosos, já que tinham de ser feitos antes do sol aparecer para não se deteriorarem. As mulheres, depois de terem escolhido os figos melhores, escaldavam-nos e colocavam-nos em cestas pequenas, feitas de madeira de castanho por artistas da terra, para que se conservassem durante o ano. Os frutos mais fracos, sem qualidade, eram dados aos animais. As hortas eram o viveiro das hortaliças, das batatas, dos feijões, isto é, o lugar onde se cultivavam os produtos essenciais para o consumo diário de pessoas e animais, com os quais não se usava, ainda, ração. Daí que o trabalho nesses terrenos fosse permanente e levasse, aos agricultores e suas famílias, tempos infinitos. A plantação da batata exigia a terra preparada antecipadamente, adubada com estrume dos animais antes de se lançarem à terra. Depois dos diversos trabalhos até à colheita (arrasar, sachar, fazer os regos, regar, CEPIHS | 2
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pulverizar contra a praga do escaravelho que começara a dizimar os batatais), era toda a família que se envolvia no arranque e na apanha dela. Uns usavam a enxada, outros, mais avançados, usavam o macho. Seja como for, era preciso separar a haste da planta dos tubérculos e apanhar estes para cestos ensacando-os a seguir. A rega tornava-se imprescindível, pois a primavera e o verão eram castigadores. As crianças, mais uma vez, constituíam uma preciosa ajuda. Tirar a água do ribeiro ou do poço com um gravano (recipiente colocado na extremidade de um cabo de madeira) manualmente, ou com um balde ajudado por um vai-vém, raposa ou cegonha, por um sarilho, uma roldana ou, simplesmente, à corda, tornava-se estafante e perigoso. Quantas pessoas não caiam aos poços! O motor de rega só mais tarde apareceu e apenas dele dispunham os lavradores mais abastados. Alguns iam utilizando as noras que ainda se espalhavam pela aldeia. A acrescentar aos trabalhos agrícolas da vinha, da amêndoa, do azeite e do figo, havia o das hortas, que mais tempo ocupava e mais cansaço trazia, traduzindo-se na malha da nabinha (semente da nabiça), no descamisar do milho, no descasque dos feijões, do grão de bico, do tremoço, no cavar a terra para cada produto. A divisão dos terrenos nas zonas de hortícolas era fator desfavorável à grande produção e ao desenvolvimento das tarefas agrícolas. O minifúndio era ainda menor, chegando a haver parcelas com pouco mais de 200 metros quadrados para cultivar (ou até menos!), onde não cabia um animal para lavrar, o que significava que teria de ser a enxada e a força do homem a cultivar essas parcelas. Encontramos, ainda, as terras do centeio e do trigo. O centeio era muito usado pela maioria da população que tinha menos possibilidades económicas. À medida que crescia mondava-se, isto é, andava-se no meio dele a arrancar as ervas à mão. Em junho, vinha a ceifa e era preciso fazer os vencelhos com a palha do ano anterior, atar os molhos e arrumá-los nos rolheiros. “Juntavam-se os vizinhos, amigos, familiares, que em ranchos alegres, entoando canções, animando-se uns aos outros, iam cortando o pão maduro, ceifando as searas. Usavam a seitoura, de forma semi-circular, instrumento a que noutras terras chamam foice. Os
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mais velhos mandavam fazer dedeiras em cabedal para não se ferirem”17. Mais tarde, era transportado pelos animais ou carros de bois até à eira, para ser debulhado. A debulha era feita com as mangueiras ou malhos e chamava-se malhada. “As mulheres estendiam o cereal pela eira, e, com vassouras feitas de giesta iam varrendo as bordas da eira e os grãos que saltavam. Os homens formavam fila, de um lado e do outro da eira, com as suas mangueiras em acção”18. As malhadeiras só apareceram nos fins dos anos 60. A separação do grão da palha, a sua atagem em molhos e o transporte para os palheiros, enquanto que o grão seguia para as arcas de madeira da casa dos agricultores, transformavam o verão em inferno de suor, cansaço, poeira e, quantas vezes, de lágrimas! Trabalho só comparado ao dos fenos ou da cortiça. Os lameiros tinham de ser preparados e regados, conduzindo para eles a água das chuvas de inverno e da primavera. No fim de maio, ou em junho, cortava-se a erva daninha com as gadanhas preparadas antes, instrumentos que requeriam grande esforço. Virava-se a erva cortada passados uns dois ou três dias, juntava-se, de seguida, com as forcadas e engaços, atava-se em molhos e carregava-se nos animais, transportando cada muar cinco molhos ou fachas de feno. Acompanhar os animais carregados até casa, ou aos palheiros que ficavam na povoação, era tarefa cansativa. Exigia rapidez e destreza para acudir à carga que podia deslizar e causar acidentes afectando os animais. O pó libertado pelo feno e pela erva seca castigava as vias respiratórias. A cortiça requeria deambulações pelo monte e mato. Transportava-se ao ombro até aos animais de carga, depois de retirada de lugares rochosos e íngremes, sob grandes esforços físicos. No local de destino, descarregava-se e colocava-se em rima, isto é, amontoava-se com ordem. Apesar de todas as dificuldades, também se viviam momentos de alegria, sobretudo, quando o ano corria bem e o proprietário oferecia um almoço melhorado. Em síntese, a agricultura transmontana e alto duriense era a atividade dominante na vida rural em meados do século XX, ocupando bem gran17 18
Idem, p. 50. Idem, pp. 51-52.
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de parte do tempo das suas gentes. Os trabalhos diferenciados obrigavam a uma contínua ocupação do tempo e de desgaste humano. Pecuária, silvicultura e apicultura A pecuária era importante fonte de alimentação e de rendimento. Além das criações domésticas para consumo caseiro, havia quem criasse animais para ganhar algum dinheiro para as despesas que ia tendo. Poucas famílias possuíam gado bovino nos anos 60 e os rebanhos de cabras e ovelhas não ultrapassavam a dúzia e meia. A atividade de pastorícia, na Lousa, era regulada pela Comissão de Proprietários que dividia o terreno em áreas e as arrematava aos pastores. Eram sete as áreas em que o termo da aldeia se dividia, embora pudessem ser mais, se o número de rebanhos aumentasse19. A silvicultura permitia algum rendimento, aproveitavando-se os terrenos mais rochosos e difíceis de cultivar para as chamadas matas e montes, onde a floresta crescia e era tratada conforme o tipo de árvore que melhor ali se dava e era mais necessária. Sobressaíam “os castanheiros com que se faziam as traves, os soalhos e os tectos das casas, bem como portas e janelas ou mobílias, já que eram os mais resistentes. O pinheiro, a nogueira, os olmos (negrilhos), algum eucalipto, pois esta árvore pouco existia e existe na freguesia. Aliás como os cedros e carvalhos”20. Também os sobreiros davam bom rendimento cada nove anos. Não nos devemos esquecer que se recorria ao lume, pelo que a lenha era aproveitada, quer a das árvores que se podavam, quer a da floresta, onde havia várias espécies para esse efeito. Comércio, artesanato, indústria O comércio nas aldeias tornava-se a forma de fazer chegar às pessoas desta região os produtos que não havia ali. Na zona em estudo, havia cinco lojas comerciais nos anos 60, os chamados sótos, isto é, lojas onde se 19 20
Idem, p. 78. Ibidem.
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vendia de tudo, desde as ferragens à mercearia, passando pelos artigos de drogaria, perfumaria, farmácia, livraria, tecidos e outros. Na povoação de Lousa encontravam-se seis tabernas, dois talhos, sete barbeiros, que só trabalhavam aos feriados e fins de semana, quatro ferradores e seis comerciantes de produtos locais. As mercadorias vinham, na sua maior parte, pelo comboio através da estação da CP de Freixo de Numão, atravessavam de barco para o termo da Lousa, e abasteciam, na Telhada e na Eira da Barca, alguns comércios, nos anos 30 do século XX, como o de sal do Sr. Manuel António Veiga21. Também Maria Durão nos descreve idêntico percurso: “Para ser comerciante não era tão fácil como agora. Era preciso ter boas informações. Os comerciantes iam fazer as compras ao Porto, depois, as compras vinham de comboio até ao Freixo de Numão e eram transportadas em machos até à Lousa. Mais à frente já vinham os viajantes. Chegavam à Horta da Vilariça e alugavam um burro até à Lousa. Mais tarde vieram as estradas e tudo ficou mais fácil, qualquer um poda ter um comércio”22. Na verdade, só na década de 60 é que as estradas se abrem e retiram esta aldeia do isolamento. No que respeita à indústria, encontramos lagares de azeite (5), lagares de vinho, fábricas de moagem (2), fornos de cozer o pão, indústria do fabrico da telha e uma oficina mecânica. O fabrico da telha, na Lousa, comportava três fornos, sendo dois na Saíça e um na Lameira do Lagarto. Foi a família Olas que trouxe essa arte da aldeia da Touça, Vila Nova de Foz Côa, na margem esquerda do Douro, nos inícios do século XX23. Esta indústria teve bastante relevância na Lousa. Os telheiros eram migrantes que vieram da outra margem do rio e aqui constituíram família. O artesanato representava uma atividade essencial. Os ferreiros, pedreiros, canastreiros, carpinteiros, albardeiros, alfaiates, sapateiros, calceteiros, latoeiros, eram mais de meia centena. “O tratamento do linho Virgílio Tavares, Lousa: História e Tradições, op. cit., p. 77 Manuscritos de Maria Joaquina Durão, nascida em 1922, escritos nos fins dos anos 90, p. 11. 23 Virgílio Tavares, “Arqueologia Industrial em Torre de Moncorvo: os Telheiros da Saíça e da Lameira do Lagarto”, in Revista Campos Monteiro, n.º 4, Palimage Editores, Torre de Moncorvo, 2009, p. 355. 21 22
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depois de cultivado, ou a da seda depois de produzida, ou a da lã depois de tosquiadas as ovelhas com duas dezenas de rebanhos de gado, todos estes trabalhos e a transformação dos produtos respectivos” correspondiam a uma arte especial saída das mãos das mulheres24. Os pedreiros cortavam o granito na Santa Bárbara para construírem as casas da povoação. Eram mais de doze o número de homens que sabiam trabalhar a pedra, alguns deles vindos da Régua e Amarante. Havia, ainda, três empresas de exploração mineira de volfrâmio e estanho na zona da Saíça. A aldeia possuía agência de seguros, posto de registo civil, regedor, pároco, quatro professores e uma regente, serviço dos correios e transportes fluviais, a cargo dos barqueiros, na Cadima e no Saião. Atividades de lazer
As atividades económicas absorviam a maior parte do tempo disponível às gentes do meio rural. Contudo, havia momentos que serviam para aliviar o espírito, cultivar a alma, expandir energias extra trabalho, manifestar outro tipo de sentimentos. Muitas das vezes, estes estavam relacionados com o amor, a paixão, o galantear a mulher, e revelavam, ao mesmo tempo, a arte de fazer poesia, tanger música, cantar, representar. Havia o domingo, os dias santos e de festa, os feriados e as feiras para se viverem essas atividades de lazer, preenchidos pelos jogos tradicionais como a malha, o ferro, a relha, o chino, pelo jogo com moedas ou às cartas nas tabernas. Alguns iam fazer armadilhas para os pássaros, apareciam nos bailes, nas festas e romarias, nos largos principais da povoação. As mulheres faziam trabalhos de agulhas, arrumavam a casa, vestiam os filhos com os fatos domingueiros e conviviam umas com as outras. À noite, ouviam-se “tocadores e cantadores improvisados que faziam serenatas encantadoras, as rondas pelas ruas principais da aldeia e parando em largos como o da Igreja, o do St.º António, na Carreira, no Rossio ou na Fonte da Cruz”25. O Carnaval era muito animado, com representações cénicas interessante, como o julgamento do galo. 24 25
Idem, p. 338. Idem, Lousa:História e Tradições, 1995, p. 98
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Os domingos e dias santos eram respeitados pela maioria dos proprietários e trabalhadores rurais, pelo que, raramente se observavam trabalhos agrícolas. O quotidiano
O dia do proprietário/agricultor começava bem cedo, fosse verão ou inverno. Levantava-se às quatro ou cinco da manhã para tratar dos animais: dar-lhes de comer, colocar a albarda, os arreios, a sobrecarga e o arrocho, preparar o cabaço se fosse lavrar e a ração (cevada, trigo, centeio, figos ou castanha ou erva verde se fosse para terrenos onde não existisse). De seguida, tomava um abundante pequeno almoço: batatas cozidas com couve e carne ou bacalhau, acompanhadas com pão e vinho, que davam ao trabalhador a energia para aguentar o dia que o esperava. Antes do sol nascer já tinha percorrido a distância, por vezes grande, entre o casa e o terreno para onde ia trabalhar. No inverno, pelo meio dia, parava a tarefa, escolhia o melhor local para se sentar e comer: um muro mais a jeito, uma pedra ou rocha mais saliente debaixo de uma árvore, junto da casa de campo se a possuíam, da eira quando a havia, de uma fonte ou pomar. Sozinho ou acompanhado, servia-se da merenda que levava nos alforges: pão, carne ou peixe, salpicão, presunto, chouriço, azeitonas, figos. Acompanhava-o a engoreta ou pipo com o vinho. Regressava a casa no final da tarde, podendo chegar já de noite. No verão, o dia dividia-se em três partes: antes de meio dia, a sesta e após as 17 horas. Levantar cedo era norma para todo o ano. Na época de verão mais cedo era necessário pois tinha de se aproveitar bem a manhã, antes que o sol abrasador estorvasse as tarefas. Trabalhava-se até cerca do meio dia e meio, com uma paragem por volta das dez horas para se comer qualquer coisa, já que as quatro da manhã, quatro e meia já iam muito longe. Depois, por volta das treze horas, procurava-se uma sombra, ou ia-se a casa almoçar. Aqui, podia provar-se uma sopa de cebola, pão, fumeiro, queijo, azeitonas e vinho. Após a refeição dormia-se a sesta, antes de retomar-se a faina, e pelas 17 horas lanchava-se. Na terceira parte do dia ia-se, normalmente, para as hortas regar até cerca das 21 horas. CEPIHS | 2
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Só depois vinha o jantar. À noite, quando havia amêndoa para descascar, milho para descamisar, ou feijão para descascar, fazia-se serão. O dia de trabalho ia sendo mais ou menos igual ao longo do ano, variando o tipo de tarefa de acordo com os produtos que se cultivavam em cada época, os instrumentos usados, as horas que lhe dedicavam, os terrenos e a sua localização. Era condicionado pelo clima, pela natureza, pelas superstições, pelas tradições. Supunha-se que aparar mato, ou ir à lenha ao domingo podia trazer azar a quem o fizesse e que a lua nova exercia imensa influência na vida das pessoas do campo. Daí que cortar um simples pau para fazer um arado, ou para vara da azeitona, deveria ocorrer numa das outras três fases da lua26. As mulheres e as crianças
Não podíamos deixar de dedicar algum espaço, exclusivamente, às mulheres, mesmo falando-se delas no decurso do trabalho. No tema que desenvolvemos assumem uma boa parte do esforço e dos êxitos conseguidos. Além de mães, multiplicam-se em muitas outras tarefas, emergindo a sua importância no contexto familiar e social. Quase todas praticavam a agricultura. Quase, pois havia algumas que tinham pais ou maridos com possibilidades económicas para que se dedicassem, só, à labuta doméstica, em casa. São conhecidos casos em que as mulheres não trabalharam nos serviços agrícolas em solteiras e, mesmo, nos primeiros anos de casadas, mas, já nos fins da década de 60 e durante os anos 70, foram obrigadas a recorrer à agricultura, acompanhando o marido e levando os filhos, ainda pequenos, para os terrenos onde brincavam por perto, com pedras, terra, pedaços de paus, bugalhos, bolotas. Passaram a fazê-lo por razões que se prendem com a falta de mão de obra provocada pela emigração, ou com o facto de terem filhos a estudar fora da terra necessitando de obter um maior rendimento. Se as estatísticas não traduzem a realidade dão-nos, pelo menos, uma ideia da quantidade de mulheres que trabalhavam na agricultura e indi26
Idem, p.137.
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cam-nos a sua real importância. “Em 1960 foram recenseados 175 000 trabalhadores agrícolas não remunerados em Portugal continental, dos quais cerca de 123 000 seriam homens e cerca de 5200 seriam mulheres. (…) o referido recenseamento define uma categoria de «domésticas agrícolas», na qual se incluem as mulheres cuja atividade não remunerada na agricultura é inferior a 15 horas semanais e que seriam em número de 357 000”27. Seja como for, as mulheres eram em maior número e executavam afazeres diferenciados, desde os domésticos, os cuidados com os filhos, os agrícolas, à confecção de vestuário, o que tornava valiosa a sua presença na sociedade e na economia. As crianças, como também já indicámos, eram uma preciosa e gratuita ajuda que vinha colmatar o problema da falta de braços para o trabalho. Na década de 60, havia as que estudavam para além da 4.ª classe e aquelas que se ficavam pelos estudos primários. Estas começavam, desde cedo, a ajudar os pais nos diferentes serviços agrícolas e domésticos, como guardar o gado, tratar dos irmãos mais novos, fazerem recados. Alguns, filhos de gente com mais fracos recursos, assim que tinham 13 ou 14 anos eram colocados nas casas ricas como empregados ou criados, em troca da alimentação, recebendo, raramente, compensação monetária. Os que andavam a estudar dividiam-se em dois grupos: os filhos de proprietários e agricultores abastados e os filhos de emigrantes, muitos deles deixados com os avós. Uns e outros ocupavam as férias com tarefas no campo. Por estas razões, as crianças e jovens, “suprindo a falta de mão de obra interna, substituindo os adultos do grupo doméstico, que assim ficam mais livres para outras actividades, incluindo as assalariadas, evitando o pagamento de um salário a alguém exterior à família (...) assumem uma importância decisiva no contexto da reprodução socioeconómica das unidades familiares”28. Edgar Rocha, “Crescimento Económico em Portugal nos anos de 1960-73: alteração estrutural e ajustamento da oferta à procura de trabalho”, op. cit., p. 632. 28 Graça Alves Pinto, “O Trabalho Infantil no Quadro das Estratégias de Reprodução Sócio-económica das Famílias Camponesas”, in Cadernos de Ciências Sociais, n.º 18, Fevereiro de 1998, p. 64. 27
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Contactos com o exterior
Os contactos com o exterior eram feitos através de estradas, que começaram a ser abertas em meados do século XX, e pelo comboio das linhas do Sabor, Tua e Douro. Assim, os habitantes da Lousa e de Vilarinho da Castanheira faziam a maior parte do seu percurso para o exterior através do rio Douro, passando na barca do mesmo rio para a margem oposta, ou apanhando o comboio da Linha do Douro para o Porto ou para Espanha (Barca D’Alva). João da Chela, no seu livro Caminho Eterno, fala-nos da importância que tinha o Douro, e, em particular, a estação de caminho de ferro de Freixo de Numão para gerações de Lousenses do seu tempo e, mesmo, anteriores. “O movimento de pessoas e mercadorias com o exterior da Lousa e terras próximas da margem direita do Douro passavam mais pela Cadima e pela Barca que atravessavam o rio para apanhar o comboio da Linha do Douro, nas primeiras décadas do século XX, do que propriamente pela vila de Moncorvo (...)”29. Assim continuou a ser na década de 60, pois as estradas só apareceram nessa altura. Verificamo-lo, por exemplo, com os estudantes de Castedo, Cabeça Boa, Cabeça de Mouro, Vilarinho da Castanheira e Lousa. Desciam as encostas até à Eira da Barca (Cadima), atravessavam o rio Douro na barca de madeira para a margem direita e apanhavam o comboio na estação de Freixo de Numão. Sentido inverso fazia o correio. Vinha todos os dias pelo comboio e era levado até às aldeias atrás referidas pelas pessoas que o recolhiam. Em 1954, é aberta a estrada número 623 que liga Lousa – Alto de Cabeça de Mouro – Castedo – Vide – Horta da Vilariça – Moncorvo, e a secundária do Alto de Cabeça de Mouro que vai até Cabeça Boa. Em Novembro de 1962, inicia-se a distribuição postal na Lousa, e, nos finais desse ano, teve lugar a transferência das instalações dos CTT para a Casa do Povo. Só em 1968, é que ficou concluído o empedramento da estrada
Virgílio Tavares, “O Douro, Fonte de Vida em Terras e Moncorvo – da Cadima à Foz do Sabor (1900-1950)”, in Revista Campos Monteiro n.º 2, Braga, Palimage Editores, 2007, p. 113. 29
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Lousa – Portela (623) e, em Agosto desse ano, é que tiveram início os trabalhos de abertura da estrada Lousa – Vilarinho da Castanheira30.
Fig. 2 – Tuna Lousense – os seus elementos são o exemplo dos que partiram e regressaram às suas terras após a aposentação, recriando a cultura da música dos seus tempos das zonas de Torre de Moncorvo e de Carrazeda de Ansiães.
30
Idem, Lousa:História e Tradições, 1995, p. 192.
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Índice
7
Editorial Abílio Adriano de Campos Monteiro
11
Carlos Sambade Campos Monteiro
13
Adília Fernandes Campos Monteiro – diálogo com a ciência
29
Arnaldo Duarte da Silva Das condolências ao busto de Campos Monteiro
45
Carlos d’Abreu e Emilio Rivas Calvo A Paixão de Ferrer segundo Campos Monteiro
75
José Eduardo Firmino Ricardo A crónica em Campos Monteiro
89
José Luís Lima Garcia Campos Monteiro e a saga camiliana de “José do Telhado” Estudos
117
Albano Viseu Memórias do complexo agro-industrial do Cachão
131
Antero Neto Toleradas em Mogadouro – o suicídio de Maria Carçôna
151
António Pimenta de Castro A Morte de Trindade Coelho
163
César Urbino Rodrigues A representação de Espanha nos manuais escolares do ensino primário do Estado Novo
193
Cristiana Madureira O Lado Oculto da Escola Rural Portuguesa: entrelaçando os fios da teia de histórias de vida de professoras
207
Delfim Bismarck Ferreira D. Ana Constança de Jesus Dias Barria (1831-1924) uma benemérita – sua obra e família
229
Fernando Machado Pedagogia censória em terras de Bragança e Miranda contra bota-fogos da modernidade
255
Fina d’Armada Republicanas transmontanas
269
João de Castro Nunes As tábuas afonsinas da concórdia
287
Manuel Daniel As brumas da memória e a Santa Casa de Misericórdia deVila Nova de Foz Côa
297
Maria da Assunção Carqueja e Adriano Vasco Rodrigues A arte do calçado feito à mão em Trás-os-Montes e no Alto Douro
311
Maria Otília Pereira Lage O tempo dos lugares Carrazeda de Ansiães e Torre de Moncorvo na I República.
339
Ricardo Silva A clausura dos conventos dos Remédios, da Conceição e da Penha de França da cidade de Braga (séculos XVI-XVIII)
357
Rita Fernandes Pinturas em caixotões do tecto da Capela de Santa Bárbara, em Felgar – Torre de Moncorvo
373
Virgílio Tavares Memórias da vida rural transmontana e alto duriense em meados do século XX