Painel 10

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torre de moncorvo MONCORVO,

1974

ZONA

QUENTE

NA

TERRA

Texto de F. ASSIS PACHECO

FRIA

-

3

Fotos de LEONEL BRITO

«O MEU PAI TRABALHAVA NAS RUTES» Eram dois meninos que estavam no Peredo, a jogar à bola depois das aulas da manhã, e um mais bem vestidinho contou que o pai e a mãe vivem em França, em Paris, com os irmãos pequenos. «Onde trabalha o teu pai?» «O meu pai trabalha nas rutes» - disse o menino mais bem vestidinho. «E a tua mãe - fica em casa ou trabalha também?» «Trabalha» - disse o menino. - «Trabalha nos batimãs a lavar.» A mãe do António Fernando ganha até melhor que o pai, se o leitor quer saber. O António Fernando, depois de dois anos em França, voltou a Trás-os-Montes para estudar a primeira classe. Vive no Peredo com a madrinha. «Ao princípio, lá em França, era numa barraca que a gente estava» disse o António Fernando. - «Em São Dinis.» «E agora?» «Agora é que a gente está no batimã a viver» disse o António Fernando. (O pai, a mãe, a irmãzita e o irmãozito, que ele, o António Fernando, jogava a bola no Peredo quando me sentei ali perto.) Atrás do António Fernando veio o José Aurélio, da mesma idade (8 anos), mas já na segunda classe. Veio e não lhe puxava o pé para a conversa… «Que aprendeste tu? A ler?» «Já leio, sim senhor.» «Tens irmãos?» Calou-se. Acudiu o António Fernando: «São três.» «Três e mais o José Aurélio?»

«Não, com ele é que são três.» «O teu pai também andou na França?» «Sim Senhor.» Mais uma vez o António Fernando com a sua explicação: «Andou mas agora está cá.» Instado, o segundo menino acrescentou que o pai «limpa amendoeiras ». UM PAI NATAL DE «CHICULATE» Era visível a diferença entre os dois: o António Fernando bem vestido, desempenado, falador; o José Aurélio pequeno, calado como um rato, envergonhado, trajando uns restos de roupa cosipados de qualquer maneira. Falou-se do último Natal, e ao filho do homem que trabalha nas rutes luziram-lhe os olhos: «Os meus pais mandaram-me umas botas!» Não umas botas vulgares, umas botas… «…Novas!» O José Aurélio, esse, ganhou bem menos: «Deram-me um Pai Natal de chiculate.» «E mais nada?» «O Pai Natal, pois.» Também se diferenciavam na comida, como eu já esperava. Assim, o António Fernando tinha dado bastante ao dente no dia anterior: ao almoço caldo, massa e feijoada com salpicão, ao jantar caldo de novo, nabiça e toucinho. O José Aurélio ficara-se por pão com naco de chouriço ao almoço, para atacar caldo e morcela antes de se deitar. Às tantas o José Aurélio saíu a correr de ao

pé de nós, e pensámos, os grandes: envergonhou-se outra vez. Nada disso, nada disso - no minuto seguinte estava de volta com um pão (e chouriço, não muito). A HORTA DA PROFESSORA Na escola do Peredo há presentemente 22 meninos e meninas, segundo as contas da senhora professora. Ainda este ano entraram 23, mas uma menina foi-se entretanto para a Alemanha ter com os pais. Há dezasseis anos, quando a senhora professora tomou conta da escola, os alunos eram 57. A aula junta a rapaziada toda, das quatro classes, cada classe na sua fila. Aproveitamento? «Médio» - achou a senhora professora. Médio, com um caso mais atrasado de uma menina vinda há pouco de Lisboa, ora vejam! É claro que a senhora professora puxa pela Lurdes, que a não há-de deixar mal «se Deus quiser». Os meninos e as meninas do Peredo não frequentam a escola somente para as aulas. Elas, as raparigas, lavam também a aula, o que uma mulher da aldeia verberou por achar que no Inverno, no tempo do frio e das nevadas, se lhes põem os joelhos «roxinhos» e as juntas das pernas «tolhidas». Os rapazes, consoante o ritmo das estações, tratam da horta da senhora professora - ou da escola, se o leitor prefere. TELEVISÃO AO DOMINGO No Peredo há televisão, e a prova que há é que o José Aurélio, o tal calado como um rato, finalmente desatou a língua para falar dos «filmes». «Gosto dos filmes» anunciou - «De todos».

Há, bela vida de Escola - ouve-se a mestra, aprende-se, e vai-se com as ovelhinhas...

«Gostas assim mais de uns que de outros?» «Dos de tiros.» O António Fernando, entre um pontapé na bola e um gesto de ajeitar a camisola vermelha, fez como o piolho na costura e meteu-se: «Eu também. Também gosto dos filmes. Em França via todos os dias.» «Aqui não?» «Olha, aqui é só ao Domingo!» Fora da vida das aulas, os meninos como o António Fernando e o José Aurélio ajudam a família na agricultura (o José Aurélio, com o pão e o chouriço na mão, ia essa tarde guardar as ovelhas). Também brincam o seu bocado: à bola, às carreiras, à raiola, que é um jogo destes sítios meios fronteiriços. Quando estão suados e apanham frio, é tal e qual os meninos da cidade: constipam-se, apanham bronquite. O amigo do António Fernando estava com bronquite. «E não te tratas?» perguntei. Que não senhor. Que nada de xarope, pois não. E médico tão pouco. Qual médico? Na segunda-feira anterior à nossa ida ao Peredo, a aldeia fora visitada pelas «enfermeiras do Centro». «Para vos tratar, os que estão doentes?» perguntei também. «Não» - elucidou o António Fernando «Foi para as vacinas». Ah, bela vida de escola - ouve-se a mestra, aprende-se, brinca-se, vai-se com as ovelhitas… E no meio disto as regras da boa educação instilam-se na memória dos meninos e das meninas, para um dia se não esquecerem de cumprimentar o jornalista de Lisboa, todos de pé nos bancos.


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