Painel 11

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torre de moncorvo

1974

MONCORVO, ZONA QUENTE NA TERRA FRIA - 4

MAIS DE OITENTA CONTOS EM DINHEIRO NAS FITAS DA SENHORA DO AMPARO Texto de F. ASSIS PACHECO

No ano passado as ofertas em dinheiro para a Senhora do Amparo, no Felgar, somaram mais de oitenta contos. É nas fitas pendentes dos braços da imagem que os aldeões prendem as notas: o andor pára, os mordomos estendem as fitas (com uma vara terminando em forquilha) na direcção das janelas, e ali mesmo, perante a expectativa geral, os ofertantes fixam com alfinetes o seu óbulo. Um jovem ouviu da mãe, o seguinte aviso: «Deves quinhentos escudos à Senhora do Amparo». Pagou a dívida no dia da procissão.

Um pormenor sobre as bandas de fora: hoje paga-se-lhes entre 7 e 10 contos. Alojamento e alimentação correm por conta dos organizadores. A festa da Senhora do Amparo, que se realiza anualmente no terceiro domingo de Agosto, só tem rival, nesta zona, na Senhora da Assunção de Vila Flor. De muitos quilómetros em redor vêm romeiros. Lamentação corrente: o bispo de Bragança haver proibido os arraiais na noite de sábado, que

Capela de Santa Cruz reconstruída nos anos 80 (l.b.) A religiosidade desta população tinge-se, por vezes, de gestos pagãos: até à década de 60 ainda seguiam animais na procissão do Felgar. Por outro lado mantêm-se relações ingenuamente contratuais com o orago. Tal «benesse» vale tal promessa. Fazem promessas os aldeões que têm parentes fora; fazem-nas os que estão fora. Tudo se paga no dia grande da festa. Festa que, ou é grande, ou não é coisa nenhuma. A do Felgar tem de ordinário duas ou três bandas, uma delas «boa» - já lá apareceram a de Revelhe (Fafe) e a do Pejão. Os fogueteiros de serviço são dois. O pregador só é convidado mediante prévia fama. Ao Felgar foram, por exemplo, o franciscano frei Mário Branco e um sobrinho-neto de Camilo (e então pároco da Samardã), o padre Luís Castelo Branco, que puxava do peito coisas maviosíssimas de ouvir.

eram os melhores mas cansavam os participantes e, por isso mesmo, provocavam avultadas defecções na procissão do domingo. (A mesma queixa registei-a nos Estevais.) FOGUETEIROS, LOUCEIROS, TECEDEIRAS O Felgar estava na minha agenda por várias razões, uma delas pessoal: é de lá, e lá tem a mãe, o meu camarada de redacção Afonso Praça. Como primeiro contacto este havia-me indicado o chefe da estação dos Correios, um homem amável e bem disposto, excelente cicerone - o sr. Guimarães. Quando o procurei, entretinha-se a colar selos numa série de cartas de gente da aldeia para a parentela emigrada.

Fotos de LEONEL BRITO

Do sr. Guimarães vieramme indicações concretas sobre a terra e os habitantes. O Felgar, uma das aldeias mais importantes do concelho, está em mutação como praticamente todas elas: a variante chama-se «emigração». Constroem-se casas, recebe-se dinheiro, aplica-se este num semnúmero de investimentos (não apenas as casas). Velhos ofícios vão morrendo: se passou a era dos ferreiros, famosos muitos quilómetros em redor, o mesmo destino parece vir a ser o dos louceiros e das tecedeiras. Porque já não há quem queira agenciar a vida sentado ao tear ou diante da roda, na perspectiva de ocupações mais pingues. Tecedeiras são actualmente três ou quatro, e nenhuma jovem. Louceiro resta um. Até os fogueteiros lançam mão de outros trabalhos. O mais conhecido criou de raiz uma fábrica de pimentite (colorau) … O Felgar, onde existem dois cafés, está a mudar. Para melhor? É essa a opinião de residentes, diferente a de moncorvenses cépticos. Rica do ponto de vista agrícola, a aldeia tem neste momento, uma fonte de rendimento mais notória: as remessas da emigração. Se um dia as minas de hematite rearrancarem no Carvalhal, a dois ou três quilómetros do Felgar, o ritmo de vida dos felgarenses poderá vir a ser diverso.

«É para a televisão!» - gritavam estes meninos do Felgar diante do fotógrafo «FAÇO TUDO O QUE É LINDO E BOM» Em conversa com uma tecedeira fiquei a saber que no Inverno, ao frio, pouco ou nada se faz. A Primavera que pode anunciar-se logo em Fevereiro, quando os dias se animam de sol episódico (« em Fevereiro já vai o porco ao lodeiro», isto é, já a água não está tão fria; mas volta e meia o sol desaparece e por isso mesmo « Fevereiro enganou a mãe no ribeiro», ou seja: « a mãe foi lá lavar e veio «encoiratcha» para casa», em pelo, com a barrela a meio). A tecedeira, orgulhosa da sua arte, mostrou-me o tear («há-de ter mais anos do que eu tenho dias») e contou-me: «Faço tudo o que é lindo e bom. Toalhas, mantas, tapetes, sacos. A última coisa que fiz foi três pares de alforges bonitos, aos quadrados.» Nos dias de grande aperto chegou a tecer manta e meia ou um cobertor de burel de sol a sol. A sua gente - explicou - era «todas tecedeiras».

O tear de, sobreiro, tem vindo a passar de mão em mão desde anos recuados. Para mim, visitante da megalópolis, reservava a artista um remoque exemplar. Transcrevo-o com a possível justeza de vocabulário: «Estou aqui tão bem cheia… que mais me quero no Felgar do que nessas gravidades de Lisboa.» Uma vizinha viúva, mãe de cinco filhos dispersos, juntou o seguinte dado: «Aqui fazemos a vida de aldeia. A gente levanta-se cedo e deitase cedo. Lá para baixo é que se deitam à meia-noite e à uma.» O «lá para baixo» referia-se como ela disse, a Lisboa. «FORAM SABER DA VIDA» O Felgar, outrora uma aldeia onde se cultivavam formas muito claras de associativismo, ainda hoje possui a sua Associação dos Proprietários. Esta associação continua a marcar os dias em que deve iniciar-se a apanha da amêndoa e da azeitona. São os pequenos proprietários que dão

começo ao trabalho, pois servem de mão-de-obra aos grandes. Quanto a divertimentos, pouco há a registar. Tirando a festa do orago, que é uma vez por ano, e a televisão, que é uma vez todos os dias, aparece por vezes (raro) «um carro a fazer cinema». Monta-se a função ao pé dos Correios, no salão da Associação dos Proprietários, a preço módico. Mas os aldeões mais velhos, se não moram ali por perto, ficam em casa. A vizinha da tecedeira, enquanto me fritava um par de ovos ao lume de cascas de amêndoa, relatou-me o «seu» Felgar sem ambages de qualquer espécie: «Tenho cinco filhos e estão todos fora. O mais pequeno está em Bragança, dois em Lisboa, um ao pé de Fátima e já se foi um para França. Foram saber da vida…»

AJUDEM A BANDA! A Banda de Música do Felgar (assim se chama) está com grandes dificuldades. Monetárias, evidentemente. Os instrumentos são velhos e não tem aparecido dinheiro para substitui-los como se impõe. Também não são muitos: nas aulas de aprendizagem da malta miúda, todos os anos ficam de fora uns quantos candidatos a músicos por falta de instrumental. No Felgar há uma antiga tradição musical. Dezenas de homens tocam instrumentos

sobretudo de corda. Deste Imodo se formou a banda, actualmente prejudicada pela emigração - é a rapaziada que preenche as vagas, apresentando-se nas festas lado a lado com os homens de barba na cara. Mas,se ninguém ajuda a agremiação, maus dias lhe irão bater à porta… Por isso o apelo: ajudem a banda, hoje por hoje (com a interrupção das de Moncorvo e Carviçais) uma das mais afamadas do concelho.

Uma vida toda no campo, e agora aquecem-se ao sol

ANTÓNIO LOUCEIRO

Uma das coisas realmente bonitas do Felgar foi ver trabalhar o sr. António Rebouta, louceiro, e trabalhar só para o jornalista admirar as suas mãos férteis de volta do barro. «Eu agora no Inverno não trabalho com o barro» - explicou o sr. António - «Há muito frio, é a travessia.» Dos quatro ventos que sopram por essas bandas, o cieiro e a travessia são os que gelam os dedos. Há também o sul, o vento de Mós, do lado de lá do cabeço, e o lousão, ou da lousa, que «traz água a murros». Mas o sr. António tinha um pedaço de barro e sentou-se à roda. «Vou-lhe fazer uma cantarinha de cinco litros. Estou nervoso, não tenho trabalhado nada… Só trabalho desde que canta o cuco». Sentou-se, amaciou o barro com água, começou a modelar a cantarinha. E a danada da cantarinha não é que se põe por ali a tomar forma, primeiro a boca à parte, depois o bojo de cinco litros, sempre com o mesmo barro e umas demãos de água da fonte de Maria Miga? O sr. António, único de dois louceiros («pucareiros») que ainda há pouco existiam na aldeia (o outro era o irmão, sr. Manuel, hoje retirado),

Faz cântaros, cantarinhas, púcaras, bilhas de encher por baixo, bilhas de segredo: o que lhe sai das mãos é obra perfeita, eele sabe-o e sorri-se, mudando de pé na roda. Nos dias de muito trabalho chega a modelar vinte cântaros; cantarinhas de 5 litros, vai às vinte e cinco; das de litro e meio ou 2 litros, umas trinta ou quarenta. O que é preciso é não estar «nervoso». Secadas as peças, atacado o forno com molhos de lenha ou mato metidos a forcada, coze-se o barro em seis ou sete horas, tanto faz o forno estar cheio ou «meado». Depois resta vender a produção pelas feiras - de Moncorvo, de Mogadouro e de Carviçais. Outra boa ocasião é a festa do orago local, Senhora do Amparo, quando o santuário fica assim a modos de coalhado de gente.

DESDE OS ROMANOS Para dar uma ideia de como a sua arte é antiga, o sr. António louceiro advertiu-me gravemente: «Saiba o senhor que isto é do tempo dos romanos». Já disse que a louça lhe sai perfeita, mas sobre isso não há como dar a palavra ao artista: «Olhe que num talhão de barro dos meus o senhor pode pôr azeite com nove décimas de acidez, tem-no lá o tempo que quiser, e ao fim está na mesma!»

E o mel? O mel, numa pucarinha do sr. António, até tem outro gosto. Aos 60 e tal anos o sr. António, ajudado pela mulher, procura o barro no rio, mói-o e peneira-o. Gasta de 4 a 5 mil quilos de barro todos os anos. Barro bom, sem areias. «Fica fino que parece massa!» A mulher conta: «O barro está fundo, é preciso tirar uma barranca assim para lhe chegar» (o «assim» é a altura de dois ou três palmos). «Estou então a fingir uma cantarinha de cinco litros». O avental preso por um baraço, que a «sigurança» estava lassa, os pés alternando na roda, ao de leve: eis o sr. António louceiro do Felgar com o seu barro mágico. «Estou a fingir o barro. Trabalho com esta palheta, que é esta tabuinha de madeira, e com duas alpanatas como esta, que são de carneira. As alpanatas são para fazer os bordos da cântara. A tigela de água? É o augueiro, o que havia de ser!» Cantarinhas daquelas, se o sr. António não estivesse nervoso, fingiaas ele umas cinco ou dez. Mas em menos de dez minutos apresentou-me a obra. Desaparecido o sr. António, quem o substitui?

Isso não faz ele ideia: o filho está em França, e tão cedo não volta. «O rapaz foi para Angola para a tropa, e na tropa e na polícia esteve dez anos. Ele e a mulher arranjaram lá uns cento e vinte contos, segundo ouvi dizer, mas aquele dinheiro que se cambeia tão mal! Quando ele mo mandava de lá, só um comerciante o queria, e era meio por meio. Não merece, não merece. Agora em França ganha bem, está numa fábrica de carros a dez quilómetros da fronteira com a Alemanha». No último Verão os netos do sr. António, os «raparigos», entraram-lhe pela oficina dentro na brincadeira e quebraram-lhe umas ferramentas. O avô sorri-se à recordação: «Ó raparigos do diabo!» E a cantarinha pronta, levada ternamente para uma arrecadação, guardada até que volte o cuco a cantar e a travessia ou o cieiro não soprem lá de trás das serras…

O sr. António Rebouta sentado à roda de oleiro


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