M O N C O RV O , Z O N A Q U E N T E N A T E R R A F R I A - 1
OS ALUNOS DO CICLO E DA ESCOLA INDUSTRIAL SÃO QUASE UM TERÇO DA POPULAÇAO DA VILA Texto de F. ASSIS PACHECO Fotos de LEONEL BRITO Sede de um concelho potencialmente muito rico, Torre de Moncorvo (ou só Moncorvo, como se lhe ouve chamar no dia-a-dia) atravessa um momento peculiar da sua história. Bloqueada a vários níveis, a vila é hoje testemunho de uma vaga de fundo trazida pela maciça emigração dos últimos anos e que actua por três formas principais: despovoando as zonas rurais e marcando aí a ferro a agricultura; enviando regularmente divisas, aplicadas na compra de propriedades, em outros investimentos ou em depósitos bancários a prazo; e possibilitando a escolarização, não já primária mas secundária, de centenas de filhos dos trabalhadores ausentes. «As aldeias invadiram a vila» comentou para mim Leonel Brito, moncorvense radicado na capital e meu companheiro de uma semana de reportagem andarilha, quando fizemos o ponto à situação. Eis uma visão do problema menos expeditiva do que poderá parecer, e talvez venhamos a confirmá-la parcialmente na série de textos aqui iniciada.
MONCORVO
Em 1960 o concelho tinha 18.741 habitantes. Dez anos depois a população descera para 13.494. Quanto à vilasede, houve também decréscimo, embora não
por eles muito mais do que essa verba exígua; se os arranjar é feliz. Ausentes, os emigrantes mandam dinheiro (ou carregam-no consigo nas férias do Natal e do
VILA SENHORIAL Passemos à vila. Foi num domingo que o repórter da «República» parou o automóvel na «praça» e, puxado pelo companheiro de viagem, começou a dar voltas em círculo, ao acaso dos encontros. A «praça» - praça Francisco Meireles - é realmente para dar voltas: juntam-se as pessoas (os homens, raras mulheres) em pequenos grupos, conversam, andam por ali, como num picadeiro. Na «praça» há o Café Moreira e entra-se, estáse um bocado, sai - se (para a «praça»). As ruas principais vão dar à «praça»: foram talhadas em raios por gente que sabia dar valor a um
- ZONA QUENTE NA TERRA FRIA
Não é só por influência do seu microclima mediterrâneo que Moncorvo pode ser considerado «zona quente» na fronteira da «terra fria» transmontana: o peso da emigração, chocando-se com as velhas e bloqueantes estruturas locais, agudiza um sem-número de problemas e está a mudar o rosto da região. Entretanto, na sede do concelho, muitas são as casas como esta que permanecem fechadas quase todo o ano. (LER NA PÁGINACENTRAL)
As instalações do Ciclo Preparatório estão junto ao recinto da feira do 23. Todos os meses os 300 e tal alunos têm um dia de aulas paredes meias com a barafunda mercantil
tão acentuado: 2.689 residentes segundo o censo de 1960 transformaram-se em 2.325 de acordo com os dados de 1970, baseados numa estimativa a 20 por cento (sujeita a restrições, conforme advertência expressa do I.N.E.). Quer dizer que o êxodo afectou preponderantemente as aldeias, onde há inúmeros casos de famílias que emigraram na totalidade - pais, filhos, parentes próximos. Estes emigrantes voltarão, não voltarão? Num outro texto daremos eco às duas hipóteses. Para já a agricultura ressentiu-se com a sua ausência, ao ponto de vermos trabalhar quase só mulheres, homens idosos e jovens à espera da convocatória para o s e r v i ç o m i l i t a r. A s «jeiras» (jornas) subiram, já não se pagam 10$00 ou 20$00 por dia como era prática de anos atrás: quem quiser dois braços tem de oferecer
Verão) para aplicar na compra de prédios rústicos, na aquisição de títulos de férias, na construção de casas algumas na vila - , na educação dos filhos que deixaram em Portugal. «Isto esteve mais cheio de dinheiro do que está agora» - disse-me um comerciante da vila - , «mas mesmo assim não anda mal.» Andou melhor até que há um ou dois anos, termo visível de um eldorado; a regressão dos envios de divisas parece hoje facto consumado e explica-se pela crescente atracção exercida por oportunidades de investimento nos países para onde marcharam os emigrantes, França e Alemanha Federal à cabeça. -«Os tipos desataram a comprar andares em lamentou-se França» um homem que ainda no Verão de 1973 lidou com centenas de contos da emigração. - «É a mania dos étages…»
«coração» duma vila. Na «praça» vêem-se carros de aluguer, camionetas de carreira ao pé da paragem, «São estudantes da Escola Secundária» - explicaramme.AEscola não é secundária,
mas Industrial, com uma secção do Liceu de Mirandela incorporada. Frequentam-na cerca de 400 alunos, os quais, motorizadas - e gente, essa gente de Moncorvo que, não fazendo ideia aonde ir, cai na «praça» sem remédio. Viam-se dezenas de jovens. Somados aos 300 e tal do anexo Ciclo Preparatório, dão a bela conta de mais de 700. Compare-se este número com a última estimativa da população da vila: é gritante. Os jovens com quem me cruzei nesse domingo inaugural limitavam-se a dar voltas, fumando cigarros e conversando em voz baixa. Não têm diversões - apurei logo a seguir. Eram rapazes escusava de acrescentar; as raparigas estavam em casa. Vários senhores de traje impecável entremetiam-se nos grupos e recebiam cumprimentos. Mito da terra: tratava-se dos «doutores», designação pejorativa para os bem instalados. «Só doutores somos quinze» - teria dito um deles há dezenas de anos, dando peso ao mito. Opiniões recolhidas forneceram-me a ideia de que Moncorvo foi sendo, ao correr dos séculos, uma vila senhorial, ciosa (na superestrutura) dos seus direitos e prerrogativas. Agora mesmo, filas compactas de mansões estão desertas, sem vivalma, às vezes só com uma janela aberta (é a mulher da limpeza no trabalho). Os proprietários não vivem em Moncorvo, estão noutras terras. - Aparecem em Setembro. «Vivem muitos deles no
A 400 METROS DE ALTITUDE Torre de Moncorvo está a 400 metros de altitude média, sensivelmente a meia encosta d a s e r r a d o R e b o re d o . Compõe-se de um núcleo principal, a vila em si, e de alguns bairros suburbanos situados mais abaixo: Corredoura, Prado, Carrascal, Montesinho. Na Corredoura, no Prado, no Carrascal, no Montesinho dizse habitualmente «vou à vila» para significar que se vai subir até ao centro de Moncorvo. Esgotos, em alguns casos luz eléctrica, ruas largas e bem pavimentadas tardaram ou tardam ainda nesses sítios, onde por outro lado o comércio, de tão escasso, parece quase inexistente. Em Moncorvo há para apreciar sobretudo a igreja matriz, de grandes proporções, construída a partir de meados do século XVI. Já não há o castelo com a sua torre de ,menagem, rodeado por quatro Cortinas e quatro torres
angulares e respectivas barbacãs, tudo em cantaria (segundo o «Guia de Portugal», II vol. de «Trás-osMontes e Alto Douro», p. 813), que um mandante antigo da vila pura e simplesmente deitou abaixo. Esta, pelo menos, foi a insistente versão que apurei, é certo que sem mais pormenores. Ainda em Moncorvo, o visitante dado aos roteiros monumentais verá a capela da Misericórdia, do século XVI, e várias casas senhoriais, como a antiga casa do general Claudino Pimentel (fachada brasonada) e a do primeiro visconde de Vila Maior, ou também o solar dos Doutéis, a casa brasonada dos Carvalhos e Sá, a casa dos Tenreiros. Perto da vila, o castro do Baldoeiro e restos do que foi a povoação de Santa Cruz da Vilariça atrairão as atenções do turista com vocação para a história antiga.
A «praça» (Francisco Meireles) é o coração de Moncorvo: vai-se lá ter várias vezes ao dia, passeia-se nela, ou muito simplesmente está-se sentado nos bancos. Em ponto dominante existiu, até ao século passado, o velho castelo da vila, que uma vereação «iluminada» sacrificou à arquitectura paisagística entendida ao contrário.
Porto. São antigos senhores da vila e já reduziram isto a um sítio para passar férias» - eis um comentário que registei. Estando noutras terras, nunca lhes passou pela cabeça (passou raramente) alienar as suas mansões. Moncorvo, que tem tantas casas «boas» entregues às moscas e às mulheres da limpeza, não tem casas para recém-vindos assentarem arraiais. Ouvi oferecer 1.050$00 por uma cave pequeniníssima na Rua dos Sapateiros: o proprietário ficou surpreso, pois recebia de renda quatro ou cinco vezes menos. AO SUL DO DISTRITO
Pelos seus muitos problemas Moncorvo está numa «zona quente». Mas em termos climatéricos a verdade anda próxima desta expressão: parte do concelho encontra-se em terra efectivamente quente, brindada com um microclima mediterrâneo que lhe possibilita as amendoeiras, as oliveiras, o vinho (do Porto e de consumo corrente), os produtos hortícolas. O restante pertence à terra fria serrana, onde predominam os castanheiros e os carvalhos. Um técnico agrícola acrescentaria especiosos considerandos. Fiquemo-nos pelo esquema, que não é incorrecto. A poucos quilómetros de Moncorvo há o riquíssimo vale da Vilariça, tão rico que o consideram uma «superhorta». «É a região mais fértil do País» - garantiram-me. Na Vilariça, parte da qual está no concelho de Moncorvo, dá-se de tudo. Já lá experimentaram algodão, imagine-se! Tem vinhas, amendoais, olivais, hortas, pomares, pastos, uma ribeira (da Vilariça) que desagua no Sabor, até um viveiro de trutas (possivelmente bogas, para não exagerarmos). Falaremos da «super-horta» mais de espaço. Com tudo isto, e mais os jazigos de ferro do Carvalhal, por ora praticamente parados, Moncorvo tem em potência o que um dia, reformadas as mentalidades, reestruturada a
vida, desfeito os equívocos, virá certamente a ser de uma importância extrema para a economia nacional. O seu óbice - e padece dele claramente - é geográfico: fica ao sul do distrito de Bragança, afastado da ligação natural com o Porto, que passa por Macedo de Cavaleiros e Mirandela. Os próprios caminhos de ferro jogaram às escondidas com a vila, oferecendo-lhe a via reduzida da linha do Sabor, que vai do Pocinho a Duas Igrejas. Assim, um moncorvense que queira utilizar o comboio para o Porto tem de fazer 9 quilómetros em via reduzida e ir apanhar a via larga no Pocinho; para Lisboa, vai a Vila Franca das Naves. Ironicamente é a vila do distrito de Bragança mais próxima de Lisboa e está a 400 e tal quilómetros dela (mas já tem uma carreira semanal de camioneta de e para a capital). Inquiri da cobertura sanitária do concelho. É como segue: um hospital concelhio (Hospital Dona Amélia) onde prestam serviço três médicos não especialistas e dois auxiliares de enfermagem não diplomados; esse hospital é subsidiário do Hospital Distrital de Mirandela, onde já há Raios X e serviços de Análises Clínicas. De Moncorvo a Mirandela são bem 60 quilómetros. Um politraumatizado, por exemplo vítima de queda de uma motoreta, está duas horas, no mínimo, entregue tanto aos cuidados médicos como à sua resistência física… Na aldeia do Peredo abriramme uns grandes olhos quando perguntei pelo médico. Nos Estevais, idem. Na Póvoa, pior. Conclua o leitor. Com um pouco de paciência iremos conhecer Moncorvo por dentro, e não apenas a vila, mas algumas aldeias do concelho. Não pretendo ser exaustivo, nem podia sê-lo com uma estadia de uma semana; entretanto apercebi-me de coisas que a distância (e a ignorância) me escondiam de todo. Lá chegaremos por partes.
GIL VICENTE ENTRE JOVENS Na noite do primeiro dia que passei em Moncorvo sucedeu-me aquilo que não esperava: ver a «Trilogia das Barcas», de Gil Vicente, representada por alunos da Escola (Industrial/Secundária) sobre encenações de professores. Como teatro não foi um espectáculo arrebatador; como lição de coisas, interessou-me bastante e não esquecerei tão cedo as quase três horas e meia passadas no Cine-Teatro local. Era a récita dos finalistas, pela primeira vez integrando gente do Curso dos Liceus, e bom número deles provinha do povo, o que vim a saber nessa mesma noite. Assim, houve tempo em que o rapazinho que vi fazer de «parvo» da «Barca do Inferno» não teve em Moncorvo o almoço à espera: professores localizaram esse drama avulso e a cantina da Escola alargou a mesa para mais um. O «Diabo» da «Barca do Purgatório» vem todos os dias de uma aldeia até à vila, cumprindo o itinerário que o pai emigrante lá de longe lhe mandou fazer. Outros finalistas ainda, porque a festa era deles, puderam passar os melhores bilhetes à parentela, e com algum espanto (alheio) esta foi sentar-se nas cadeiras que anos atrás pertenciam a quem de teres e haveres. O director da Escola, Dr. Pires Cabral, oriundo da Faculdade de Letras de Coimbra, expressou antes do espectáculo o seu «muito apreço» pela equipa de jovens professoresencenadores, um deles jovem de espírito que não de idade, e falou directamente aos finalistas para fazer votos por que «saibam e possam sempre ser cidadãos úteis, conscientes, dialogantes,
num mundo que desejamos seja de todos». Depois surgiram as «Barcas», antecedendo danças regionais, críticas aos professores em jeito de sketches (vários deles contundentes, ou não fosse noite vicentina) e poesia por um coro falado, dito de «Jograis».
«Bispo», trajando qualquer coisa entre a véstia eclesiástica e o vulgar pijama, não prescindiu do anel (de bugalho). O «Cardeal» - e como Gil Vicente teria gozado com a graça! - vinha de vermelho, sim, mas o vermelho de um fato de treino. Esta distanciação pela farsa à sobreposse resultou em cheio. A AGRESSÃO DA POESIA
«AGRESSIVIDADE DEMOLIDORA» Gil Vicente não foi apresentado sem explicação. Do programa copiografado constavam notas acerca da sua personalidade, do lugar que ocupa na dramaturgia portuguesa e da actualidade que para ele se reclama. Aliás, a encenação das «Barcas» autoclassificou-se de «recreativa» e «educativa», neste ultimo caso por três razões: por ser Gil Vicente um autor constante do plano de estudos; pelo facto de a sua actualidade não sofrer «reparo de ninguém» («a agressividade da sua critica social ainda hoje se pode considerar demolidora e tocante às pessoas que nos rodeiam e às pessoas que somos»); e pelo «fundo moral, sugestivo» da trilogia, onde a Morte e os Anjos resistem «à tentativa de suborno dos homens». A novidade veio com a «Barca da Glória». O professor-encenador, ciente da influência erasmiana no texto e seu aspecto tipicamente doutrinário, decidiu combater o estatismo sempre perigoso com um esforço de re-leitura, ou «ruptura com o carácter tradicional da encenação», como escreveria. Deste modo as personagens do «Conde» e do «Duque» ostentavam, nas costas, cartazes com os dizeres «Eu sou O…» («Conde», «Duque»). O «Rei» trazia um soberbo capacete de motocicleta. O
Os coros falados («Jograis») propuseram um programa com Mário Cesariny, Manuel da Fonseca, Manuel Bandeira, Jorge de Sena, Alberto Pimenta e uma receita de «O Grande Livro de São Cipriano». Ouvi assobios e dichotes de vários assistentes incomodadíssimos com o que se lhes trazia em noite de festa: era a agressão deliberada… De Jorge de Sena foi escolhido, com «dedo», o poema dos «Exorcismos»: «O Beco sem saída, ou Em resumo». Aí o poeta serve-se de um tom violento, premeditadamente duro e sem concessões, para no final, dirigindo-se à sua própria poesia, exclamar: Canção, se te culparem De infame e malcriada, Subversiva ou não, ou de, mais que imoral, [desesperada; se te disserem má, mal [inventada, responde que te orgulhas; humano é mais que pulhas e mais que humanidade mal [lavada. Também os moços e as moças dos «Jograis» estavam orgulhosos: ao cabo de um longo par de meses tinham podido dizer a Moncorvo que o tempo dos salameleques está a passar. Sem remédio.
Aqui foi, em séculos passados, aquilo que o vulgo chama a «inquisição», possivelmente um local de detenção temporária para os arguidos, do Santo Ofício enquanto os não transferiam para o cárcere de Coimbra.