Revista campos monteiro 4 versão final ii

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Revista Campos Monteiro hist贸ria, patrim贸nio, cultura

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Torre de Moncorvo 2009


Ficha Técnica Directora Subdirector

Adília Fernandes José Alfredo Sousa

Conselho de Redacção Conselho Editorial

Adília Fernandes, José Alfredo Sousa, Maria da Assunção Carqueja Rodrigues, Maria da Conceição Salgado

Conselho Científico

Adriano Vasco Rodrigues, Fernando Machado, Fernando de Sousa, José Marques, José Viriato Capela, Maria Norberta Amorim, Norberto Cunha

Propriedade

Associação dos Alunos e Amigos do ex-Colégio Campos Monteiro

Edição Capa

Palimage

Apoio

Igreja Matriz de Torre de Moncorvo, fotografia s/data do acervo do Núcleo Museológico da Fotografia do Douro Superior, Torre de Moncorvo, gentilmente cedida pelo seu proprietário ­– Arnaldo Silva

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ISSN

Adélio Amaro, Adília Fernandes, Adriano Vasco Rodrigues, Anunciação Matos, Carlos d´Abreu, Carlos Seixas, Fina d´Armada, Gaspar Martins Pereira, Graça Abranches, José Marques, Júlia Guarda Ribeiro, Justino Magalhães, Maria da Assunção Carqueja Rodrigues, Maria da Conceição Salgado, Maria Engrácia Leandro, Maria Helena Alvim, Maria Ivone da Paz Soares, Maria Marta Lobo de Araújo, Maria Otília Pereira Lage, Odete Paiva, Paula Mateus, Ricardo Silva, Sónia Diz Rodrigues, Virgílio Tavares

CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar – Cultura, Espaço e Memória; Cordeiros Galeria; Município de Torre de Moncorvo Associação dos Alunos e Amigos do ex-Colégio Campos Monteiro 961833810; e-mail: lilabento@sapo.pt Terra Ocre - edições Apartado 10032 3031-601 Coimbra Tel./ Faxe 239 087 720 e-mail: palimage@palimage.pt site: www.palimage.pt

1646-2181

Depósito Legal

227022/05

Data de edição

Dezembro 2009

Execução Gráfica

Palimage / Publito

Palimage é uma marca editorial da Terra Ocre – edições


Revista Campos Monteiro hist贸ria, patrim贸nio, cultura

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Editorial Adília Fernandes José Alfredo Sousa Olhando o passado à distância de cinco anos, período que nos remete para o primeiro número da Revista, observamos, com legítima alegria, a sua evolução. Em nenhum momento duvidámos de que era credível, logo, possível. Em nenhum momento, também, deixou de ser clara a necessidade de a fazermos bem, predicado indispensável à sua continuidade e progressiva afirmação. Neste sentido, pequenos e sucessivos atalhos têm sido percorridos sem hesitar, sustentados no diálogo com quem apoiou esta iniciativa e desde o início nela apostou e aposta emprestando a sua experiência e saber – o editor, Dr. Jorge Fragoso, os Professores Adriano Vasco Rodrigues, Fernando de Sousa, Norberto Cunha. No decurso deste tempo, precisaram-se os propósitos que nos guiavam: tornar visível uma instituição educativa pautada pela impor­ tância da sua actuação e projecção; acolher, como expressão de uma política interdisciplinar desejada, investigadores de várias áreas do saber em torno do conhecimento da região transmontana e de assuntos de pertinente actualidade. Tem constituído uma preocupação – que se revelou salutar e já foi anteriormente manifestada – esta opção pela diversidade epistemológica dos estudos, incipiente nos dois primeiros números e que tem vindo a ampliar-se sem deixar, no entanto, de se articular pela unicidade que o sentido da génese da Revista lhe confere. Os artigos agora presentes, e tal como os que integraram os dois exemplares anteriores, dão-nos a perceber essa polissemia cultural em Número quatro

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Editorial

que matérias variadas estruturam um mosaico que relaciona e questiona as significações que importam. Olhando o futuro, assistir-nos-á a permanente elevação cultural da Revista, no campo conceptual e programático, em consonância com as exigências de uma consciencialização crescente da sua importância, directriz e compromisso que a todos, colaboradores, responsáveis e amigos, respeitam. Acompanhou-nos outra preocupação: congregar à qualidade dos autores convidados e das temáticas tratadas um conjunto de requisitos que consagrassem o resultado da nossa tarefa como isento, racional e científico, princípios incontornáveis a que nos obrigámos. Esse intento foi alcançado com a criação de um regulamento e a formação de um honroso Conselho Científico que prestigia já este número. Damos as boas vindas aos elementos que o constituem e endereçamos-lhes a maior gratidão por estarem connosco na consecução desses objectivos maiores. O desenvolvimento deste processo tem imposto uma adequação das suas secções. Atentos ao que, culturalmente, enriquece a região, cumpre- -nos disso dar conhecimento em rubrica própria não esgotando, porém, todas as realizações nesta área. Ao nosso registo, e porque perfilhamos esta mesma perspectiva que visualizamos como um ideal, associamos a satisfação por tão meritórios gestos.

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Estudos



Entre a tolerância e a repressão A problemática da prostituição feminina Adília Fernandes*

(…) que mais sórdido, ignóbil e vergonhoso se pode descrever do que as prostitutas (…)? Entretanto, suprimi-as dentre os homens e a sociedade se turbará na libertinagem. Sto. Agostinho

Historicamente, a maternidade, destino lógico da essência feminina, e a capacidade biológica de reprodução centralizam a condição das mulheres no seu todo e justificam a sua sexualidade que se apresenta como um acto natural e vital. Considera-se que, para além desta específica situação, a actuação sexual das mulheres entra no campo das paixões desordenadas, do instinto, do incontrolável, do domínio do corpo sobre a mente. O desequilíbrio patológico que domina a feminilidade1 tem na Investigadora do CEPESE (Universidade do Porto) e do CITCEM (Universi­ dade do Porto/Universidade do Minho). 1 Cf. Denis Diderot, “Bijous indiscrets” e “Sur les Femmes”, in Oeuvres Completes, Paris, Clube Français du Livre Éd., 1969-1973. Para este autor, a mulher é um sexo que fala. As mani­fes­­tações de desejo ou de sexualidade femininos são consideradas possessões demoníacas e levam muitas mulheres à morte. No séc. XV, a obra Martelo das Feiticeiras (1487) ou, no seu título original, Malleus Maleficarum, escrita pelos monges beneditinos James Sprenger e Heinrich Kraemer com a aprovação do Papa Inocêncio VIII, e que se torna o manual da Inquisição, defende a destruição das feiticeiras. Esta designação contempla, também, aquelas que não mantêm o domínio esperado sobre a sua sexualidade. *


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prostituição a sua representação máxima, por se afigurar como a esfera da sexualidade condenada, estéril e transgressora do sistema normativo e das virtudes religiosas. A partir dos contributos de Freud, no século XIX, a sexualidade desvincula-se de determinados valores tradicionais e religiosos e passa a ser definida por um discurso de racionalidade científica que se contrapõe, de acordo com uma sociedade progressivamente secularizada, ao discurso moralista até então predominante. Constata-se, neste momento, que é desordem e doença o que antes é tido como pecado, pelo que se incum­ bem especialistas em medicina e direito de disciplinarem os desman­dos sexuais e de estabelecerem novas e transparentes regras de convivência. As mulheres prostitutas são particularmente visadas nestes propósitos pela sua particular responsabilidade na tão receada degeneração física e mental, fruto, essencialmente, do flagelo das doenças venéreas, em espe­cial, da sífilis. Enca­radas como conse­­quência da libera­lização dos com­por­tamentos sexuais e verda­deiras anunciadoras do fim do mundo, por colocarem em risco a herança biológica e a integridade gené­tica das gerações futuras e da Nação, remete-se para elas a maior culpa na propagação destas molés­tias. Assim, a prosti­tui­ção representa, ao lado da ameaça moral, um problema social e de saúde pública convertendo- -se num assunto do Estado, a cuja supervisão e tutela fica a subor­ dinar-se. Contudo, não se tem em vista erradicá-la, porque, e parado­xal­ mente, é tomada como útil por assegurar a fidelidade, a monogamia, logo, o matrimónio que não admite desvios nem excessos, e a família, concebida como um mundo de ordem e de valores morais e como alicerce do corpo social. Necessária, então, para a tranquilidade social, Amadeo de Souza-Cardoso, Étude du nu,1912 10

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mas perigosa, a sua prática não é aceite nem proibida é, antes, tolerada, exigindo rígidos mecanismos de controlo da deterioração geral que representa. O regulamentarismo e os seus fundamentos O regulamentarismo, ou o conjunto de medidas que reforça a política higiénica, que estabelece a fiscalização sanitária das prostitutas e a profilaxia e que orienta o exercício das casas de sexo tem, como finalidade, minimizar os nefastos efeitos da prostituição tanto sobre as mulheres que envolve como sobre o resto da população. Este sistema pretende resolver a peculiar contradição que leva a sociedade a assumir a sua existência: ela concorre para a ordem mas ameaça-a. Daí ser indispensável que ao mantê-la, a mantenha sadia. O regulamentarismo é concebido por Parent Duchâtelet nos seus princípios elementares e a influência da sua obra2 De la prostituition dans la ville de Paris considerée sous la rapport de l´higiène publique, de la morale et de ládministration, de 1836, na literatura e nas políticas prostitucionais francesas é imediata e permanece até ao século XX. Vigoram as preocupações natalistas e eugenistas, a apologia de uma sociedade sã e a exaltação da maternidade, por ser esta a época em que as nações pugnam por repartir o universo colonizado, conferindo à população uma importância fundamental como potencial básico para as ambições expansionistas3. Por estas razões, o pensamento de Duchâtelet impõe-se, A. J. B. Parent-Duchâtelet, De la prostituition dans la ville de Paris considerée sous la rapport de l´higiène publique, de la morale et de ládministration, J. B. Ballière Ed., Paris, 1837. Para Duchâtelet, a prostituição, contra-cultura, permite a existência da cultura e da sociedade, tal como o mundo subterrâneo e excremencial da cidade permite o seu funcionamento. 3 Este aspecto transforma a maternidade numa questão pública de primeira impor­tância. A preocupação com a infância e com a mortalidade infantil irrompe dos discursos nacionalistas das potências ocidentais e reclama a saída das mães da intimi­dade do lar para o centro das políticas de reformismo social, protagonizando o processo de profissionalização da maternidade. Impõe-se-lhes a sobrevivência e o forta­ le­cimento físico dos seus filhos, iniludível dever patriótico. A medicina apresenta as 2

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também, como modelo nos outros países europeus, tanto em termos teóricos como práticos, para os quais, a prostituição simboliza, de algum modo, a incerteza da sua continuidade. Duchâtelet, que se debruça sobre les filles publiques (fechadas ou livres), as que representam um perigo real mas possível de controlar, deixa fora da sua atenção as prostitutas clandestinas (que escapam entre a total marginalidade) e outras categorias que se movimentam em meios sociais mais protegidos. Sublinha, por um lado, que a prostituição é inevitável e indispensável para a ordem social, e, assinala, por outro, a devassidão inerente ao carácter da prostituta, mulher autónoma, liberta da influência da moral sexual e que encarna a instabilidade e a turbulência. Define a linha metodológica a adoptar – identificar e isolar para melhor controlar – pelo que a circunscreve a um meio fechado, separado, disciplinado, transparente para os que o vigiam embora invisível para os outros4. A análise das causas da prostituição faz eco das mudanças sociais e culturais do século XIX: o declínio da influência da Igreja e a menor imposição da sua disciplina; a disseminação do livre pensa­ mento e a consequente circulação de diferentes ideias; o progresso do liberalismo que torna mais difícil a repressão policial; a grande mobilidade social que aumenta o risco de contágio; os males da industrialização deplorando-se, sobretudo, a promiscuidade entre os operários que englobam, em escala crescente, as mulheres; a evolução que traz a transitoriedade; a cidade corruptora e que atrai e reúne o lado negro da vida (a prostituição, a delinquência, a mendicidade). E, também, a predisposição hereditária, a atracção da noite, da transgressão, da sedução e do prazer são razões a aduzir. suas credenciais de saber científico e positivo legitimadas num maior conhecimento do corpo feminino, conhecimento que já vem do século XVIII. Mas a medicalização da mater­nidade processa-se, ainda, em torno desta como o eixo definitório da identidade feminina. 4 Cf. Alain Corbin, Les Filles de noce – Misère sexuelle et prostitution au XIX siècle, Paris, Champs Flammarion, 1978, p. 25. 12

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A mulher prostituta, garante da estabilidade dos costumes e obstáculo à manifestação erótica da mulher burguesa, conduz a uma profícua e inovadora produção literária que ressalta, no dizer de Alain Corbin5, o sentido patriótico que lhe subjaz. As personagens de Les Fleures du Mal (1857), de Charles Baudelaire (Ô vierges, ô démons, ô monstres, ô martyres6) ou a Irma, de Guy de Maupassant, protagonista da obra Le lit 29 (1884)7 e que está afectada pela sífilis, revelam o drama que lhes advém da sociedade que as explora e sustenta. Distanciados dos parâmetros líricos e românticos do seu tempo e conhecedores do ambiente em que as suas heroínas se movem, os poetas malditos descrevem-nas entre a idolatria e a rejeição e num decadente pano de fundo: a cidade anónima, caótica e subversiva que observam e que alimenta os debates sobre a modernidade. O regulamentarismo em Portugal O regulamentarismo, também designado por sistema francês, chega a Portugal pela mão de Francisco Inácio dos Santos Cruz, médico, vice- -presidente do Conselho de Saúde Pública e autor da obra Da prostituição na cidade de Lisboa, de 1841, o primeiro trabalho entre nós a incidir na análise deste fenómeno.Traz-nos algumas significações históricas, como as que reporta à presença da prostituição, desde a mais remota antiguidade até hoje, entre todos os povos do mundo. Pelos livros sagrados coligimos que existiam prostitutas no tempo de Moisés e que elas se entregavam a todo o tipo de deboche (…) o povo as exprobrava, e acusava, de serem a origem das diferentes guerras e dos funestos acontecimentos do século (…); devido tudo às iras e cóleras do Céu, que elas desafiavam com as suas torpezas e provocavam com a sua Idem, ibidem, p. 39. Baudelaire, “Femmes Damnées”, in Les Fleurs du Mal, Paris, Librairie Générale Française, 1999, p.169. 7 Alain Corbin, Les Filles de noce... op. cit., p. 40. 5 6

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imoralidade e impudicos manejos. Não obstante estes anátemas e estas fulminações contra as prostitutas, elas não só [não] se extinguiam, como ainda o seu número não diminuía (…)8. Acrescenta, que em países de costumes bárbaros, pode ser um sinal de devoção, uma homenagem à divindade, uma profissão legítima ou um acto de hospitalidade e, nos países civilizados, um abuso de ordem social. No entanto, em todos, é um negócio de interesse9. Santos Cruz elabora, em 1837, um projecto de regulamento policial e sanitário para as prostitutas e casas de toleradas, base dos regulamentos que vão, posteriormente, aparecer (o primeiro é promulgado em 1858: Regulamento Policial das Meretrizes e Casas das Toleradas da Cidade de Lisbao). Nele propõe: autorização, sob licença da administração pública, do exercício da prostituição e estabelecimento das casas de toleradas; controlo policial e sanitário das prostitutas; prescrição da idade mínima. Os regulamentos, emanados dos governos civis e extensivos aos concelhos rurais, vêm a ter, com algumas variantes, uma estrutura semelhante tanto nos assuntos que abordam como nas medidas que determinam. Antecedidos de uma introdução que começa por esclarecer que se destinam a acautelar os riscos que decorrem da acção dessa classe miserável, passam à definição de meretrizes como as mulheres que se entregam a uns e a outros por dinheiro. Dividem-nas em dois grupos: as que vivem em comum e debaixo da direcção da dona da casa e as que vivem, isoladamente, em casa própria. São, todas, obrigadas a matricularem-se num livro de registo existente na repartição de polícia ou de administração local. É-lhes entregue, no momento da inscrição, um livrete contendo os seus dados pessoais e que têm de exibir sempre que a polícia ou a inspecção sanitária o solicite. A idade mínima obrigatória para se poderem inscrever varia de regulamento para regulamento (pode oscilar entre os dezasseis e os vinte Francisco Inácio dos Santos Cruz, Da prostituição na cidade de Lisboa (1841), Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984, p. 53. 9 Idem, p. 54. 8

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e um anos) e, por não ser necessária a certidão de nascimento, facilmente se ultrapassa este requisito com falsos depoimentos. A inscrição é também negada àquelas que são reclamadas pelos pais, marido ou tutor, a não ser que se comprove que já se prostituem. Matriculadas, as meretrizes (sinónimo de prostitutas ou mulheres públicas) deixam de ser clandestinas e passam a designar-se por toleradas. Ficam, então, submetidas a rígidas prescrições e apertada vigilância e, na sequência de infracções ao que se lhe é determinado, a punições com todo o rigor das leis. Assim, arrendar casa pressupõe uma prévia licença policial, igualmente necessária para mudança de habitação ou ausência superior a cinco dias. Tal habitação não deve localizar-se junto de templos, escolas, botequins, hospedarias, tabernas e jardins. Não podem fazer-se acompanhar de filhos maiores de três anos, divagarem de noite pelas ruas, passeios e praças e provocarem os transeuntes por palavras ou por acções. São obrigadas, com a criação de dispensários junto das subdelegações de saúde para revisão sanitária, a uma visita semanal para este fim, que pode ser substituída por consulta domiciliária paga. As tole­radas infeccionadas de moléstias contagiosas são hospitalizadas. Os Livros de matrículas das toleradas10 A matrícula é o ponto de partida do sistema regulamentarista. Consiste na inscrição do nome da mulher no livro para esse fim destinado, onde se registam, ainda, as datas das inspecções, a filiação, idade, estado, profissão, naturalidade, morada, épochas em que deram á prostituição, casos que a levam a esta, signaes característicos e particulares e observações. Dada a escassez de dados do Livro de registo das toleradas de Torre de Moncorvo, de 1911-1912, contidos nos quatro registos existentes, recorremos ao nosso trabalho “Considerações em torno de um Livro de Matrículas das Toleradas de Vila Nova de Famalicão”, in Boletim Cultural, Vila Nova de Famalicão, Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, 2009, para uma melhor apreensão deste documento. Livro de Registos das Toleradas (1911-1912), Arquivo Municipal de Torre de Moncorvo, Fundo Administração do Concelho de Torre de Moncorvo, 1, pt. 371. 10

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É reservado um espaço para inspecções syphiliticas soffridas, por ser a sífilis, entre as enfermidades indecorosas ou morbus indecens, a doença venérea mais preocupante. Já em 1902, na segunda conferência internacional de Bruxelas (a primeira tem lugar em 1899), sobre o perigo venéreo, se declara que os médicos devem estar tão familiarizados com o estudo da sífilis que, a propósito de não importa que doença, a ideia dela deve estar presente no seu espírito. Reconhece-se, comtudo, face ao receio de uma syphilisação geral, quão illusorias e inefficazes são as medidas adoptadas (…) porque, por exemplo, se toda a prostituta syphlitica deve ser enclausurada, porque não usar do mesmo processo para com os homens?11 As mulheres podem inscrever-se voluntariamente ou impelidas a isso pela administração. A primeira situação implica um breve interrogatório e um exame médico feito por um facultativo nomeado pelo governo. Verifica-se a segunda quando a mulher não matriculada é apanhada em delito de aliciamento, facto que pode levá-la à prisão. A análise dos Livros de Matrícula das Toleradas permite-nos concluir que, entre as causas que levam as mulheres à prostituição, é a sedução a que ocupa a primeira posição seguida da indigência ou necessidade de meios. A libertinagem, a tentação para o gozo de prazeres sexuais, a leviandade, o abandono do marido, do namorado ou do amante, as baidades, a promessa de casamento e o amor explicam-na da mesma forma. Podemos, ler, nas observações, se a mulher está limpa ou suja, se é suspeita de ter sido contagiada pela sífilis, se apresenta vegetação síphlitica, se fica retida para nova inspecção ou se sofre de outras moléstias como de cancros molles, bem como o número de vezes que é encaminhada para o hospital. Nesta rubrica, dá-se ainda conta dos locais a que correspondem as matrículas, se as mulheres seguem, já, a vida honesta, se estão grávidas, desaparecidas ou sob a alçada do juiz de direito.

Ângelo Vaz, Neo-Malthusianismo, Typ. Da Empreza Litteraria e Typographica, Porto, 1902, p. 36. 11

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Livro de registo das toleradas, Moncorvo, 1911

Auto de Exame feito nas prostitutas abaixo assinadas – 1851 Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e cinquenta e um, aos vinte e quatro dias do mês de Agosto do dito ano nesta Vila da Torre de Moncorvo e Paços do Concelho, aonde veio o Administrador substituto dele, Francisco António de Castro, o Médico do Partido Francisco Diogo de Sá, comigo escrivão do seu cargo para o fim de serem examinadas pelo mesmo facultativo as prostitutas desta vila e que para compareceram a este acto se achavam legalmente intimadas e sendo por ele Administrador encarregado ao mesmo facultativo o Juramento devido para que debaixo dele examinasse as mulheres questionadas e fizesse declarações das que encontrasse atacadas deVenéreo, sendo por ele recebido Número quatro

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e assim o prometeu receber, passou em seguida em bem quatro uma a uma as mulheres que lhe foram apresentadas, fazendo em resultado – declaração e de acharem atacadas de venéreo as seguintes (…) às quais pelo mesmo Administrador foi ordenado ao Carcereiro tivesse as mesmas em detenção até segunda determinação sendo tão bem examinadas outras prostitutas que se vão achando atacadas desta moléstia depois de advertidas pelo mesmo Administrador lhe ordenou se retirassem. E sendo tão bem presente a prostituta Rita, natural de Chacim, ele Administrador a intimou para no prazo de quinze dias a contar da data deste, sair para fora destaVila e Concelho com a pena de ser capturada pelo mandato que tem contado e está correndo com a desenvoltura de sua língua e com os seus maus exemplos de vícios e torpezas e por isso incapaz de se avizinhar com famílias honestas e recatadas dando ele administrador este Auto por concluído que assinou com o médico referido e carcereiro comigo João António de Campos que o escrevi e de tudo assim se passar dou fim12. O fim do regulamentarismo Apontadas como agentes de corrupção e de contaminação, as prosti­ tutas são olhadas, ao mesmo tempo, como vítimas das injustiças sociais sob as quais escravizam a dignidade e a consciência. Condena-se a falta de atenção das autoridades às precárias condições de vida das mulheres que as conduzem à prostituição: a pobreza, a fome, a deficitaríssima educação que não as prepara para a vida, a sua vulnerabilidade nas fábricas, sujeita à concupiscência de patrões e capatazes, a exiguidade do salário, ou a falta dele, quando o desemprego as atinge. Este protesto é recorrente na imprensa do início do século XX. Os senhores legistas, que a canto bradam a necessidade inadiável de cicatrisar esta pústula fétida que roe a sociedade, nunca procuraram saber quaes as causas que levam essas mulheres que eles castigam a negociar os Arquivo Municipal Torre de Moncorvo, Fundo Câmara Municipal, Auto de Exame feito nas prostitutas abaixo assinadas – 1851, 1, pt. 343. Transcrição. 12

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seus encantos. E é desse mal precisamente que enfermam todas as leis que publicam sobre este assunto13. Perseguidas, enclausuradas, violentadas nas revisões médicas, para elas convergem as preocupações pela higiene pública mais do que sobre a prostituição como sistema. Sobre este, as propostas vão, não no sentido de pôr fim ao que está estabelecido, mas de introduzir mudanças: É preciso demolir, arrasar, destruir a organização policial das meretrizes, e substituir este sistema por um outro mais racional, mais equitativo e mais justiceiro14. Já em 1869, Josephine Butler, uma feminista inglesa da Federação Abolicionista Internacional, cria, com a mesma inquietação, uma organização que pretende a abolição das leis que haviam instituído o regulamentarismo. Reflecte, em 1875, que Se a prostituição é uma necessidade social, uma instituição de saúde pública, então os ministros, os prefeitos da polícia, os altos funcionários, os médicos que a defendem, faltam a todos os deveres, não lhe consagrando as suas filhas15. Tal contestação é reforçada pela impunidade dos homens ausentes das regulamentações que condenam, apenas, as mulheres. Na verdade, na complexidade do sistema regulamentarista, a prostituição é identificada, unicamente, com as prostitutas, mecanismo que oculta que os homens são o seu outro elemento integrante. Este procedimento liberta-os da fatalidade desta conduta e exonera-os de sanções. Em Portugal, A Liga Abolicionista Portuguesa realiza dois congres­ sos, respectivamente, em 1926 e 1929, com a colaboração do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. No seu decurso, acentua-se que o João Maria D’Almeida, “Tribuna da Mocidade – Edificante”, in República Social, 27 de Novembro de 1926, p. 3. 14 Arnaldo Brazão, “Página Abolicionista”, in República Social, 28 de Setembro de 1929, p. 3. 15 Citado por Carlos Oliveira Santos em “A prostituição em Portugal nos séculos XIX e XX”, in História, n.º 41, Março, 1982, pp. 2-21. 13

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regulamento das meretrizes é a legalização da prostituição e que deve ser extinguido. O encerramento das casas de tolerância é outra medida de defesa moral e de higiene social que as razões de civilização plenamente sustentam. Incide-se, do mesmo modo, contra o tráfico de brancas ou escravatura branca, títulos que designam a exportação de mulheres para o estrangeiro, iludidas pelas promessas de ventura sem limites, quando é certo que os interessados em tão vergonhoso tráfico apenas têm em vista entregá-las à prostituição16. O Primeiro Congresso Feminista e de Educação, organizado em Lisboa, em 1924, com a presença do Presidente da República, Bernardino Machado, bem como o Segundo, realizado em 1928, confluem em idênticos cuidados e orientações. O movimento abolicionista mobiliza milhares de mulheres e congre­ ga feministas da classe média em defesa das prostitutas de origem operá­ ria. Reclamam disposições legais relativas à moral, à ordem e à saúde que sejam, indistintamente, aplicadas a homens e a mulheres e contestam os privilégios masculinos. Debatem, pela primeira vez, publicamente, o tema da sexualidade e dos seus direitos neste campo: aprovam a difusão de novas técnicas anticonceptivas e de planificação familiar, mas denunciam o receio quanto ao controlo da natalidade pelas prerrogativas que trazem aos homens; criticam a ignorância e a imprecisão vindas de médicos e de cientistas no que à sua fisiologia respeita; admitem, com Freud, que o seu lado sexual está ainda rodeado de obscurantismo; alertam para os estereótipos ligados à sexualidade masculina. As questões que advogam são, nas suas intenções, o apelo à constru­ ção de uma sociedade que honre a mulher, até agora desprezada pelas leis que não fez e enobreça o homem, até agora aviltado pelas vantagens que não mereceu17.

Alfredo David, “Misérias Sociais ­– Escravatura Branca”, in República Social, 8 de Novembro de 1930, p. 2. 17 Eduardo Moreira, “Moral única”, “Página Abolicionista”, in República Social, 23 de Fevereiro de 1929, p. 5. 16

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O abolicionismo difunde-se pelo mundo e ganha foros de doutrina. Em Portugal, também este movimento denuncia a ineficácia do regula­ mentarismo, dado que Ângelo da Fonseca reforça, em 1902, na obra, Da Prostituição em Portugal. Baseado em inquéritos e inspectorias de saúde de todo o país confirma o grande aumento da prostituição, o reduzido número de matriculadas face ao das clandestinas e uma actuação sanitária quase inexistente. Assevera, por fim, serem os regulamentos locais arbitrários e contraditórios. É tempo de concluir, escreve, que o sistema até hoje seguido degrada a mulher sem que dessa degradação possa resultar a profilaxia das doenças venéreas18. A I.ª República apresenta uma reduzida produção de leis específicas, adoptando, na sua maioria, as que pertencem à Monarquia. Recorre-se, quase sem alterações, à legislação que já vem desde meados do século XIX. O regime ditatorial, saído do 28 de Maio de 1926 e cristalizado no Estado Novo, começa por reformular parte do enquadramento legal existente, o que se revela pouco eficaz nos seus resultados. Em 18 de Março de 1949, e na sequência da ratificação da Convenção de Genebra aprovada, neste ano, pela Organização das Nações Unidas para a repressão da prostituição, é levada à Assembleia Municipal, pelo Ministério do Interior, uma proposta das normas a observar no combate às doenças contagiosas e na criação dos estabelecimentos e serviços necessários ao seu desenvolvimento. Refere-se, na base XV: A autoridade administrativa determinará o encerramento das casas em que exerçam a prostituição menores de vinte e um anos ou quando se verifique que as mesmas funcionem em contravenção das normas de higiene por ela estabelecidas ou ainda quando, constituindo focos de infecção, representem perigo grave para a saúde pública19.

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Ângelo da Fonseca, Da Prostituição em Portugal, Porto, 2002, p. 169. Diário das Sessões n.º 172, de 11 de Março de 1949. Número quatro

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Esta proposta é considerada limitada pela Câmara Corporativa que defende que a citada base XV deve estabelecer o pronto encerramento de todas as casas de tal actividade, promover o seu despejo, abolir as matrículas das prostitutas e extinguir todos os regulamentos, alvarás e serviços em vigor. Pela lei n.º 2 036, aprovada por unanimidade em 9 de Agosto daquele ano de 1949, não podem realizar-se novas matrículas nem serem abertas mais casas mantendo-se as já existentes. Neste ano, e perante dados fornecidos pela Câmara Corporativa, o total de mulheres inscritas é de 6000 em todo o país (em 1928 é de 2674), número que não é, em absoluto, representativo do conjunto da prostituição. De fora, ficam as clandestinas que vivem à revelia do sistema. Em 1962, o Governo decide, por decreto-lei n.º 44 579, de 19 de Setembro, impedir, finalmente, a partir do início do ano seguinte, o seu exercício, mandar encerrar as casas e confiscar os seus bens, destruir os livretes, livros de registo e documentos similares. As prostitutas, para efeitos de aplicação de medidas de segurança, ficam equiparadas aos vadios, podendo conhecer a prisão ou serem forçadas a trabalhar. Esta legislação e outras que se lhe seguem, concretamente a dos anos setenta, com um carácter indiscriminadamente repressivo, revelam-se infrutuosas na plena consecução dos seus objectivos. Com a entrada em vigor do Código Penal de 1982, a partir de 1 de Janeiro de 1983, a prostituição é despenalizada, tendo por base de referência, ainda, a Convenção de Genebra de 1949, cuja insuficiência neste campo havia sido reconhecida pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Descriminação contra a Mulher, aprovada pela Organização das Nações Unidas em 1979. Conclusão A inquietude suscitada pela eventual libertação da sexualidade femi­ nina decorrente das mudanças generalizadas que atingem a socie­dade no século XIX, nomeadamente o urbanismo, aparece nas preocupa­ções 22

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Entre a tolerância e a repressão

regulamentaristas. Esta diferente experiência da mulher conduz à intro­ missão da medicina e do Estado que passam a impor constrangimentos às suas acções e ao seu corpo. Em nome do eugenismo profissionaliza-se e medicaliza-se a maternidade e é também em seu nome que se marginaliza a prostituição, percebida como não pertencendo ao campo da normalidade. Segundo Alain Corbin, o regulamentarismo simboliza, em última instância, o exorcismo20 da sensualidade feminina.

Alain Corbin, Les Filles de noce… op. cit., p. 484.

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A entrada dos Muçulmanos na Península, em 711, veio alterar profundamente o quadro político Peninsular, destruindo a unidade do reino visigótico. A República Cristã correu o perigo de soçobrar, perigo só superado com a vitória de Charles Martel no ano de 732, expulsando os Muçulmanos da França. No Mediterrâneo, a Sicília e o sul da Itália eram objecto de constan­- tes ataques. No Oriente, Constantinopla estava exposta ao assalto Islâmico. Na Ásia, os Árabes encontraram novos aliados submetendo e convertendo os Turcos, fundando um Império, que se estendia da China às fronteiras do Império Romano do Oriente. Os Turcos ficaram, inicialmente, às ordens dos Califas mas acabaram por dominar os Árabes colocando-se ás ordens de Chefes Turcos, designados por Sultões, deixando aos Califas apenas a autoridade religiosa. O exército turco prosseguiu com a Guerra Santa vigorosamente, avançando para a Ásia Menor e Bacia do Mediterrâneo. Jerusalém caiu na mão dos turcos. O Mundo Medieval tinha o culto dos Lugares Santos, aqueles onde se conservavam restos dos corpos dos Apóstolos, realizando peregrinações a esses lugares. Quando os Árabes ocuparam Jerusalém continuaram a acolher os peregrinos cristãos com respeito e apoio, pois constituíam uma fonte de rendimentos. Mas Jerusalém ficou interdita ao passar para a mão dos turcos. O fanatismo destes não admitia a presença de Professor universitário

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cristãos. Os Ocidentais, ao terem conhecimento dos excessos dos turcos, conceberam o projecto de libertar os Lugares Santos. A guerra contra os muçulmanos tomou uma forma de penitência. A perda de Jerusalém foi como a perda de um importante símbolo da Igreja, equivalente à perda do berço da Cristandade. Que fazer para reconquistar a Terra Santa e opor-se ao vastíssimo Império Islâmico? Tão grande que se estendia até ao Hindus e confins da China e, para o Ocidente, desde a Ásia Menos até à Península Ibérica, dominando o mar Mediterrâneo. Em Novembro de 1095, o Papa Urbano II reunia na Catedral de Clermont mais de 250 Bispos e descrevia-lhes a situação na Terra Santa invadida por turcos, persas, árabes e agarenos, desprezando o túmulo de Cristo, destruindo várias cidades cristãs, ocupando a Palestina e a Síria, arrasando Igrejas e imolando os Cristãos como bestas. Com eloquên­cia fez um apelo à cavalaria cristã, habituada a combater os maus. A Europa feudal despertou ao apelo do Papa. Seguiu-se o período das cruza­ das, evidenciando-se no seu arranque o pregador Pedro, o Eremita, e os cavaleiros Godofredo do Bulhão e seu irmão Balduino. Em 1099, Jerusalém foi libertada e Godofredo convidado para Rei do Reino de Jerusalém, mas este duque da Baixa-Lotaringea (Bélgica) recusou justificando-se: não querer usar uma coroa de ouro onde Jesus fora coroado com uma de espinhos. Aceitou apenas ser Defensor do Santo Sepulcro. Talvez uns 20 anos depois da libertação de Jerusalém, um grupo de cavaleiros franceses dirigiu-se ao Patriarca da Cidade e à sua frente, fizeram voto de castidade, pobreza e obediência com a promessa de defenderem pelas armas a Terra Santa e proteger os peregrinos. Foi esta a origem duma Ordem Santa de cavalaria, a que foi dado o nome de Ordem dos Templários, por ficarem instalados no lugar onde fora o Templo de Salomão, pelo que os designaram de Templários. Uma das suas divisas era: Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Vosso Nome concedei a Honra! Consideram, tradicionalmente, a fundação da Ordem ocorrida 20 anos depois de 1099, isto é, em 1119, ou talvez ainda em 1118. Alguns investigadores atrasam esta data para 1114. Em face dos dados que possuímos opto pela data de 1119, aquela em que se prostraram perante 26

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A Ordem dos Templários e a Independência de Portugal

o Patriarca. Oito anos depois, no Outono de 1127, seis dos componentes do grupo deslocaram-se a Itália solicitando ao Papa a aprovação da nova Ordem e da Regra para a gerir. Entre estes cavaleiros deslocados à Europa, estava o Hugues de Payns, que foi o primeiro Mestre. Dirigiu- -se depois para a Grã-Bretanha e Escócia, em busca de apoios. Um seu companheiro, Godofredo do Bulhão, da Flandres Belga, foi lá buscar ajudas. Outros, Payen de Mondier, Hugues Rigaud e André de Montbard, tio do Abade Bernardo de Claraval, a quem se deve a elaboração da Regra, procuraram recursos nas terras das suas origens. A mais antiga referência à presença dos Templários no Condado Portucalense respeita à doação feita em 1128, em Braga, pela Condessa D. Teresa, do Castelo de Soure (Coimbra), na presença de seu sobrinho D. Afonso VII. É surpreendente, pela precocidade, esta vinculação de uma terra portuguesa a um templário, feita meses depois da chegada do primeiro grupo à Europa. Quais as motivações? Não podem ser excluídas as ligações familiares ao Conde D. Henrique de Borgonha, marido de D. Teresa, então já falecido, mas com descendentes, entre eles o futuro Rei de Portugal, D. Afonso Henriques. O Templário seria Gundemaro, portador de cartas de Bernardo (S.) e de André, com recomendações e garantias borgonhesas. Além do Conde D. Henrique e de seu primo D. Raimundo, vieram outros fidalgos e religiosos borgonheses, abades e bispos, para a Península. As ideias independentistas de Afonso Henriques correspondiam ao desejo dos habitantes do Condado Portucalense. Em 1140, Afonso Henriques declarou-se independente. Embora o primo, Afonso VII, se propusesse reconhece-lo, mediante a aceitação de uma relação de vassalagem, fazendo-o Senhor de Astorga, D. Afonso Henriques não aceitou pretendendo uma independência total, obedecendo apenas ao Papa. Em 1148, o Arcebispo de Braga, acompanhado por um cavaleiro do Templo, viajou para Roma com a proposta de independência do Condado Portucalense – Portugal. Ao morrer D. Afonso VII, em 1157, D. Afonso Henriques mantinha o contencioso com o primo. Um dos seus apoiantes foi São Bernardo de Claraval, falecido em 1153. Conseguira Número quatro

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que a Santa Sé lhe concedesse o título de Dux, mas só em 1174 aceitou tratá-lo por Rex. Os Templários, praticamente desde a sua entrada em Portugal, apoiaram as pretensões do filho do Conde D. Henrique, ajudando-o na batalha de S. Mamede, lutando contra a Mãe para tomar o governo do Condado. Nove meses depois daquela batalha, D. Afonso Henriques confirmava a doação de Soure aos Templários, nestes termos: e pelo amor cordial que vos tenho e porque na vossa Irmandade e em todas as vossas obras sou irmão. Esta declaração mostra a profunda ligação de D. Afonso Henriques à Ordem, considerando-se um dos seus. A preocupação da linha de defesa dos castelos da Estremadura foi uma constante, à medida que a Reconquista avançava. A essa linha, outra se lhe associava, a dos territórios do Côa, reivindicada pelos Portugueses. Em 1160, D. Afonso Henriques com D. Fernando II de Leão, chegou a ter um encontro em Celorico da Beira: o rio Côa faria a separação entre os dois reinos. Um ano depois, o Rei de Leão repovoava Cidade Rodrigo reivindicando a posse de toda a margem direita do Côa, desde o Sabugal a Castelo Rodrigo. D. Afonso Henriques não se conformava, considerando português esse território. Na sequência do Rei Fernando de Leão ter ordenado a fortificação de Cidade Rodrigo, cercando-a de muralhas, D. Afonso Henriques que considerava este repovoamento uma ameaça para Portugal, invadiu o território leonês acompanhado por seu filho D. Sancho. Aproveitou a circunstância do Rei de Leão estar desavindo com seu sobrinho, Alonso, Rei de Castela. O Rei de Leão e o Rei de Portugal encontraram-se no Campo de Argáñán, no lugar de Barquilla, a três léguas de Cidade Rodrigo. O Rei de Portugal foi batido quer a Ordem do Pereiro e a Ordem do Templo se recusarem a combater ao lado do Rei de Portugal, pois este integrara no seu exército Mouros confederados. Segundo o Regulamento da Ordem do Templo era-lhe interdito combater ao lado de infiéis contra cristãos. Os cavaleiros da Ordem de S. Julião do Pereiro puseram-se ao lado do rei de Leão. 28

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A Ordem dos Templários e a Independência de Portugal

D. Afonso Henriques reagiu ocupando terras na Galiza. Depois marchou para o Sul indo cercar Badajoz, conquistando dois terços da praça. Os mouros refugiaram-se na cidadela. Segundo o acordo celebrado entre D. Afonso Henriques e D. Fernando de Leão, na Primavera de 1165, na Galiza, Celanova, quanto às Terras a reconquistar, Badajoz ficaria em território destinado a operar o Rei de Leão. Por essa razão correu em socorro dos muçulmanos. Foi então que D. Afonso Henriques partiu a perna e ficou prisioneiro do primo, ele e o Mestre Gualdim Pais que o acompanhara neste empreendimento. O Rei de Leão mostrou-se generoso, mandou-o tratar e libertou-o. D. Afonso Henriques não mais se recompôs. Corria o ano de 1169. O espírito e a intenção com que a Ordem do Templo se fixou em Portugal são diferentes dos adoptados nos outros reinos cristãos da Península. Dois anos depois da entrada do primeiro templário em Portugal, em 1130, a principal força militar que servia o Condado Portucalense era a Ordem do Templo. D. Afonso Henriques contava com os Templários não só para combater os Mouros mas para ir firmando a independência, opondo-se pela força ao Rei de Leão. Em 1137 os cavaleiros da Ordem,

Torre de Menagem do Castelo de Longroiva edificada por Mestre Gualdim Pais (1176)

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esquecendo a Regra, combateram ao lado de Dom Afonso, em Tui, obrigando os Leoneses – galegos a aceitarem uma trégua de três anos. Dois anos depois, a Ordem do Templo ajudava no glorioso triunfo da Batalha de Ourique, que daria a Dom Afonso Henriques legitimidade reconhecida por Roma para se intitular Dux. Em 1140 enfrentou, novamente, o Rei de Leão, em terras de Limia, reivindicando a independência e o título de Rei. Papel relevante tomaria, a partir de 1144, o primeiro Mestre português da Ordem, Gualdim Pais, muito contribuindo para a indepen­ dência do Reino de Portugal. Quem era Gualdim Pais? Sabe-se que nasceu em Amares, na diocese de Braga, em 1118, e, jovem ainda foi prestar serviço como pajem na Casa de Afonso Henriques, aonde passou a seu escudeiro.Viria a estudar numa das escolas conventuais de Coimbra, formação que lhe permitiria conciliar a religião com as armas. Na Batalha de Ourique combateu ao lado de Afonso Henriques, que o armou cavaleiro. Em 1144 entrou como iniciado na Ordem dos Templários participando na tomada de Santarém. Como militar desta Milícia, combateria de 1151 a 1156, na Terra Santa, regressando a Portugal para desempenhar o cargo de Mestre da Ordem, a partir de 1158. Não só a luta contra os Mouros o motivava mas também a independência de Portugal. Em 1160, constrói o Castelo de Tomar, que se transforma na sede da Ordem dos Templários Portugueses. Seguem-se o de Almourol, integrado na estratégia de fortificar a linha do Tejo, antecedida pela Linha da Estremadura (terras afastadas dos extremos do rio Douro), onde se evidência Longroiva, citada no testamento da Condessa Mumadona, incluindo Trancoso, Marialva, Numão, Penedono, Alcarva. A preocupação da linha de defesa dos castelos da raia com Leão e da raia com as terras ocupadas pelos Mouros, foi uma constante acompanhando a Reconquista. O castelo de Penas Roias, dos Templários, não distante de Mogadouro e de Santa Cruz da Vilariça, foram marcos nessa defesa nos reinados de D. Afonso Henriques, D. Sancho I, até D. Afonso III. A sul do Douro associavam-se os castelos da margem esquerda do rio Côa. 30

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A Ordem dos Templários e a Independência de Portugal

Santa Cruz da Vilariça (1954)

A 10 de Junho do ano de 1145, Dom Fernão Mendes de Bragança, rico-homem, Conde e cunhado de Dom Afonso Henriques fez doação do Castelo de Longroiva ao templário Dom Hugo de Martónio. Longroiva situava-se, então, no território da Metrópole de Braga. A partir de D. Dinis reforçou-se a fortificação de Torre de Moncorvo tornan­ do-se esta vila estrate­gica­ mente importante na defesa do trânsito entre o norte e o sul do Douro.

Porta da Vila de Torre de Moncorvo, Reinado de D. Dinis.

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Em 1977, ao fazerem obras na Capela da Senhora do Torrão, que foi edificada pelos Templários junto da sua necrópole de sepulturas antropomórficas (séc. XII), foram encontrados testemunhos da consa­ gração do pequeno templo a Santa Maria, São Nicolau Confessor e outros santos. A consagração feita em Latim foi encontrada numa ara romana, dedicada a Júpiter. Estava acompanhada por um relicário com restos vindos, certamente, de Jerusalém. O texto diz: DEDICATA EST ECLIÃ A DNO IOHANE ARCPICPÕ BRACAREN HONORE SCAE MARIAE SCI NIVOLAI CONF ET A IOR SCRUZ ERECTA MCLXXXIIII.

Tradução: Esta Igreja foi dedicada por Dom João, arcebispo bracarense em honra de Santa Maria, de São Nicolau Confessor e outros Santos. Levantada em 1183. A data de 1183 da Era de César corresponde a 1145, data em que D. Fernão Mendes de Bragança fez a doação de Longroiva ao templário D. Hugo de Martónio. A torre de Menagem e a cidadela do Castelo de Longroiva foram remodeladas ou edificadas, pela primeira vez em 1176, com acrescida segurança, por Gualdim Pais, com os seus cavaleiros, como se lê numa inscrição, gravada na fachada poente da referida torre: IN ERA MCCXIII… CAES GVLDIM CONDVCTOR PORTVCALENSIVM MILITVM TENPLI REGNANTI ALFONSO POTVCALENSIVM REGE, CVM MILITIBVS SVIS AEDEFICAVIT HANC TVRRIM

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A Ordem dos Templários e a Independência de Portugal

Tradução: Na Era de César de 1214 anos (1176 da Era de Cristo), Gualdim, Chefe dos cavaleiros portugueses do Templo, edificou esta torre com os seus soldados, reinando Afonso Rei de Portugal. Em 1176, Gualdim Pais considerava já Dom Afonso Henriques rei de Portugal, embora o reconhecimento deste título só viesse a ser feito, pelo Papa (1179). Em 1161 e 1199, já no reinado de Dom Sancho I, foram fortificados numerosos castelos entre o Tejo e o Mondego, abrangendo terras serranas da Estrela e confiados aos Templários. O repovoamento e edificação do Castelo da Guarda, por Dom Sancho I, obedeceu á estratégia de travar o expansionismo leonês para Ocidente e também reforçar a defesa do território face às investidas dos Muçulmanos. Dom Afonso Henriques faleceu em 1185 e D. Gualdim Pais em 1195. Sucedeu-lhe D. Lopo Fernandes que continuou a prestar a Dom Sancho I igual apoio ao que prestara Gualdim Pais a Dom Afonso Henriques. Consolidada a independência de Portugal, os Templários podiam dedicar-se á Guerra Santa contra os Muçulmanos. A importância da Ordem do Templo em Portugal foi tão grande que os primeiros reis se identificaram com ela. A variante orbicular da Cruz dos Templários fixados em Portugal, foi usada como selo pelos primeiros Reis, para autenticar documentos e batidas nas moedas. As igrejas dos Templários eram encimadas por cruzes orbiculares.

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Igreja dos Templários em Marialva, encimada pela Cruz orbicular da Ordem do Templo

Bibliografia AZEVEDO, Rui, Documentos dos Condes Portucalenses e de D.Afonso Henriques, AD – 1095-1185, Tomos I e II, Academia Portuguesa de História, 1958-62. GALVÃO, Duarte, Crónica de D. Afonso Henriques, ed. 1932. DEMURGES, Alain, Les Templiers, une chevalerie chrétienne au Moyen Age, Paris, Éd. Seuil, 2005. HUCHET, Patrick, Les Templiers, Rennes, Éd. Quest France, 2009. CARQUEJA, Maria de Assunção, Documentos Medievais de Torre de Moncorvo, Torre de Moncorvo, ed. da Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, 2007. RODRIGUES, Adriano Vasco, Terras de Meda, Meda, ed. da Câmara Municipal da Meda, 2002.

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Diálogo com Jorge Amado Anunciação Matos*

Conheci-te, ilegalmente, na idade dos treze para os catorze anos, quando invadi a cave da casa dum Chefe dos Correios de Angola, cave essa que estava repleta de literatura proibida A sensação foi muito forte pois quando ali entrei parecia que nas paredes estava inscrito “é proibido”, “é proibido”, “é proibido”, sensação que crescia, crescia e me deixava cada vez mais deslumbrada. O que é que eu vi inicialmente? Caixotes com literatura maldita, poesias em Jorge Amado forma de corpo feminino, Mao-Tse- -Tung aos pontapés, Karl Marx com a barba ao contrário e, também, Diderot com a sua Freira no Subterrâneo. Nada daquilo me parecia mal, pelo contrário, tinha a partir daquele momento uma biblioteca insondada à minha disposição. Avancei de peito feito nesta descoberta, qual marinheiro em busca das ilhas Desertas. Abri as caixas, * **

Escritora, pintora. Todas as ilustrações são da autoria de Anunciação Matos. Número quatro

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manuseei cada livro com a curiosidade inerente à situação. Restava a última! Estava lacrada e cintada, mas, triunfalmente, foi aberta… meu Deus! Dei de imediato com os olhos em ti, ou melhor, dei de caras com Os subterrâneos da liberdade. Levei-te para casa: li-te, olhei-te, amei-te. E tomei contacto, pela primeira vez, com o significado de palavras interditas, como comunista e liberdade. E tomei conhecimento de que existiam prisões repletas de homens inocentes, um pungente conheci­ mento. Passei a conhecer o teu pensamento mais íntimo. Falavas um Portu­ guês açucarado mas eu entendia. Li os teus outros livros avidamente. Afundei-me no Mar Morto. Travei amizade com os personagens dos Capitães de Areia. Derreti-me com Jubiabá. Eu nada sabia da vida, nunca me tinham tirado a liberdade, mas entendia as tuas mensagens. Continuei a ir à cave até ao momento em que o Chefe dos Correios descobriu alguma irregularidade e mudou a fechadura, impedindo-me de lá voltar. Essa aventura durou, pelo menos, três a quatro meses, o equiva­len­te às férias grandes da época. Deu-me tempo para contactar a clandes­ti­ nidade literária que corria pelo mundo. Eras o meu segredo, os teus olhos invadiam o meu sossego de adolescente. A minha idade ia dilatando. Entre os dezoito e os dezanove anos, voltei a encontrar-me contigo numa biblioteca privada, mas já com a maturidade de uma namorada antiga. Fiquei embriagada com Teresa Batista Cansada da Guerra. Que mulher! Quanta humanidade derramaste nesta personagem… ela perten­cia ao mundo e eu só queria ser parecida com ela, só isso. Se me conhecesses, também me convidarias para entrar nos teus romances. Eu ajeitar-me-ia a esse universo de oxós, orixás, candomblés e, de certeza, que iria ser aluna de D. Flor e seus dois maridos. Mas não tive essa sorte! Continuei a tua amiga secreta.Vi-te envelhecer através dos jornais, vi-te receber prémios em todos os salões literários, vi-te aos abraços aos famosos, às mulheres amantes dos livros, aos amantes que amam essas mulheres, às mulheres que te apaparicavam. A tua cabeleira ficou branca como o chapéu de uma montanha cheia de caracóis. Os teus olhos ainda ficaram maiores, pareciam duas rolas 36

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Diálogo com Jorge Amado

quietas e mansas. A tua barriga cresceu. E todos cabiam nela, desde a prostituta, ao cínico, ao aventureiro, à baiana, à mulata, ao vendedor de passarinhos e, até, ao chulo simpático. Mostravas carinho por todos. Só eu não entrava nessa galeria de personagens extravagantes. Estava sempre excluída. Conheci outros escritores, entreguei-me a eles. A tua pose literária já me cansava. Já não tinha saudades do Jesuino Galo Doido que sonhava com um carregamento de quatrocentas e oitenta mulatas… já não queria copiar a sensualidade das tuas mulheres. Entreguei-me a outras causas. Fui crescer para outro continente. Já mulher feita, voltei a encontrar-te pela mão de D. Flor e os seus dois maridos. Li-o, porque estava na moda e a televisão te adoptou, mas fi-lo com distanciamento. Todos me avisavam das tuas novas andanças. Aparentemente, eliminei-te. De repente, morreste! A comunicação social era escandalosa e noticiava a tua morte com laivos de marketing. As editoras decoravam as montras com os teus livros e, aí, de novo a tua imagem, outra vez a tua cabeleira branca, outra vez a tua barriga enorme. Meu Deus! A tua universalidade tocou-me fundo, as saudades abrasaram-me a alma, até o Quincas Berro d’Agua se fez gente, voltou. E fui ler, mansamente, Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. O amor entre os dois bichos toldou-me os olhos. E, mais uma vez, me afastei de ti. Afastei-me quase definitiva­mente. Hoje, à luz da minha distância, entendo que te devo esta “escrita” e a leitura, de novo, de D. Flor e os seus dois maridos. O meu coração já não bate como batia, mas devo-te esta atenção, afinal foste o meu primeiro namorado. Agarrei neste belíssimo romance e fui para a minha aldeia, enchi o frigorífico com alimentos fáceis de cozinhar, baixei as persianas, encostei a porta e entreguei-me de alma à leitura desta ficção. Fi-lo por ti, pois conhecer-te foi uma viciante aprendizagem, primeiro na clandestinidade, depois à luz da liberdade. Contigo descobri um novo vocabulário, despi a minha primeira pele. Tantos anos já passaram desde Os Subterrâneos da Liberdade, mas a verticalidade dos teus ideais envolveu-me de novo, não resisti, deixei que a adolescente regressasse. Atrevi-me a apreciar as personagens de D. Flor. Número quatro

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Dona Flor

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Diálogo com Jorge Amado

Ah! Quem me dera ter sido aluna de D. Flor! Como ela sabia pôr a medida certa do azeite doce e do óleo de palma para amaciar o peixe! Como inventaste esta personagem? Há quem diga (li nas tuas biografias) que te baseaste numa história verídica e que esta mulher existiu mesmo. O primeiro impulso que tive, após ter feito a primeira leitura, foi desenhá-la nua. Nua como o seu primeiro marido, o Vadinho, tanto gostava e desejei passar essa nudez para o papel, mas tenho receio que fiques ofendido. E já decidi, vou desenhá-la com um vestidinho mais ou menos subido no peito. Não sei se coloque um lenço a tapar qualquer indiscrição… não quero de maneira nenhuma desvirtuar esta menina, até porque, Flor, fundamentalmente, era uma professora de formação, séria e empenhada que se iniciou na doçaria de melhor qualidade entre os camarões com gengibre e limão. Para mim só tinha uma pequena falha, era muito bem comportada em sociedade. Podia dar uma escapadela subtil, por exemplo, nas suas aulas de culinária, ou revelar às suas alunas os ensinamentos que tinha aprendido na intimidade com o seu marido Vadinho. Mas, mulher-dama ela não era. A dureza da moral católica era dura e bem orientada pela mão da sua mãe, D. Rozilda, que lhe abafou o seu melhor lado e a risada espontânea. Com quem simpatizo mesmo é com D.Rozilda, mãe de Flor. Ela não é culpada do seu mau feitio, de querer grandezas, de sonhar com príncipes para as suas filhas ou, mesmo, de ultrapassar as barreiras do sonho sensato. Ela era assim mesmo até porque não era fácil para uma mulher daquela época ficar viúva com escasso património e ter de sustentar três filhos, duas moças para casar e um rapaz pouco apto para a vida. Precisava de assegurar a sua velhice com mordomias e dar brilho às suas crias, sentimento que não é condenável. Era uma mãe preocupada, autoritária, capaz de pegar na chibata e surrar, sem dó nem piedade, a sua filha Flor, uma menina tão dócil. Era uma incansável mãe a farejar um genro rico, doutor, proprie­ tário, filho de fazendeiro… obsessão que estragou tudo, porque fez a filha descambar no Vadinho.Tinha de ser! A menina era tão pressionada para a Número quatro

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Dona Rozilda

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Diálogo com Jorge Amado

postura de donzela que só podia ir para o casamento sem o seu sagrado cabaço. Por um lado, D. Rozilda não conhecia a palavra contenção. A sua verborreia era incansavelmente ácida e foi cavando a sua própria sepultura. Reconheci-lhe convicções, mas achei-a mediocre­- mente esperta. Homem bonito, bigode fininho, corpo bem musculado, mas pro­ míscuo até dizer chega. Jorge, criaste este Vadinho de uma maneira tão maliciosa, terna e crua que não podia deixar-me indiferente. Mas, aviso-te já, não é com o que eu mais simpatizo. Era excessivamente mentiroso e mulherengo. Como podia agradar a D. Rozilda? Aquela falta permanente de emprego certo não podia dar estabilidade à menina casadoira e acabou por desenvolver na sogra uma linguagem onde só os insultos cabiam. Ao menos ele podia ser taxista da noite, já lhe podia dar margem para as suas folias carnavalescas. O que fazia ele? Passava a vida entre fumaças, champanhe e enrolado nas mulatas, essas mulheres doidas de sabedoria e miséria, que engolem os homens incautos.Também não concordo literariamente com a morte dele no carnaval. Podia, por exemplo, ter morrido na procissão do corpo de Deus. É que, assim, D. Rozilda, sua sogra, podia perdoá-lo. Diz-me Jorge, eras frequentador deste tipo de serviço? Ou um mero observador? É que conheces tão bem esta temática que às vezes chego a pensar que eras um assíduo utente. Não, não te levo a mal, até porque na tua profissão tens que dominar tudo. Em todos os teus romances falas tanto delas, com tanto carinho, tanto saber, nomes e casos tão concretos, chalaças que elas contavam, misérias solidárias que faziam doer a alma, negócios montados com gestão contabilística, que sou levada a sonhar, também, com elas… E porque as pintas de roxo, verde e amarelo? Fico um pouco constrangida perante essas mulatas, oriundas do submundo, manipuladas vezes sem conta, encostadas às janelas aos pares, sempre à espera duma migalha… Narras, frequentemente, nos teus romances que havia ruas inteirinhas com mulheres às janelas… decotes profundos, rosas vermelhas nos negros e azeitados cabelos, risinhos tontos, bocas provocadoras… Foram inventadas? Ou pertenciam ao catálogo turístico que a cidade oferecia aos desesperados? Número quatro

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Vadinho

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E falas delas sempre com afecto, sinto que facilmente puxas a tua espada para as defenderes, elas humanizam extraordinariamente os teus romances. Já agora, queres seguir o meu pensamento? Repara, as senhoras da sociedade, todas ou quase todas, escondiam um segredo familiar, caminhavam pela rua espalhando honra e honestidade. Depois, as donzelas casadoiras eram monótonas, porque sonhavam dia e de noite com o príncipe… Quanto ao homem, há duas espécies: os domésticos que regressam às cinco da tarde a casa com o jornal na mão e os ricaços de idade avançada que buscam no espaço extra-conjugal o deslumbramento da novidade. Estes últimos são repetitivos e cheios de moral, sobretudo se forem políticos. Por isso, continuo a considerar, depois de alguma reflexão, que são estas coitadas que trazem esperança às tuas histórias. Numa primeira abordagem, apresentam um perfil psicológico falsamente positivo, pois os seus egos, à custa da chibatada são enormes. Acham-se especiais, alindam- -se muito e têm consciência de que são capazes de apagar muitos fogos. No meu entender prestam incessantemente bons serviços à comunidade, porque têm a seu favor a esperteza da necessidade e muita vontade de agradar, de dar prazer, de criarem uma atmosfera de profunda iniciação à vida. Já viste Jorge, por exemplo, o que fazia uma mulher-dama quando apanhava um rapazinho ainda tenro? Era uma mistura de mãe da vida e mãe dos prazeres. Se esta profissional fosse asseada, alegre, bem nutrida de formas, era capaz de marcar na memória do imberbe o gosto para a eternidade. Um prazer bem executado deixa um registo de ondas no cérebro que jamais se apagará. E como tu sabes, o cérebro, essa ondulação misteriosa, atira-nos muitas vezes para as profundezas da alma, mas também a memória desses momentos é capaz de fazer do ser humano uma pessoa com asas. Glória para ti, que viste muito longe! Esta foi a personagem que mais ternura provocou em mim. É tanto o fubá e tanta a tropicalidade, tanta e imensa a mestiçagem que no Brasil espalha! Número quatro

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Mulher-dama

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Diálogo com Jorge Amado

No meio da rotina brasileira, onde todos opinam sem excepção, alteram constantemente a língua mãe e utilizam em demasia os condimentos na cozinha e na moral, encontrei no Dr. Teodoro algum equilíbrio que me aquietou. Não, não me apaixonei por ele, mas senti uma delicadeza escondida que derreteu a mulher lusa-africana que sou. Diverti-me a apreciar os preparativos para o seu casamento com D. Flor, a forma pacata como fez o tempo de namoro, mãozinha dada no cinema e um beijo mais ousado na véspera do casamento. Nele tudo estava no lugar, a contabilidade da farmácia em dia, sendo já sócio da maior parte, utilizando a toda a hora o seu cronómetro suíço, flor à botoeira, exigindo tudo na hora, mas incapaz de uma indelicadeza. Podia-se confiar nele. Além disso, D. Rozilda logo gostou do futuro genro. Quanto a isso, Flor podia ficar sossegada. Mas, Jorge, tinhas que arranjar no escurinho do seu passado tão liso uma mulher-dama… À primeira vista este boticário podia ser um pouco mais picante, menos Santa Inquisição, mas convenhamos que D. Flor tinha de aprender a acalmar tanto ímpeto, enfim, habituar-se a calendarizar todo o fogo dessa intimidade que se avizinhava. Também era necessário dar o tempo e o ritmo certo a este farmacêutico para se habituar, quer na cama quer na mesa, a conhecer todas as iguarias doces e salgadas com que a sua esposa tão prendada o iria brindar. Não é imediatamente fácil conhecer e digerir novas regras, hábitos, rituais que a sua amada Flor já possuía. Sinto-me pacificada por chegar ao fim desta “escrita”. Não interpretes mal a minha ousadia literária. Longe de mim pretender fazê-lo. Deixo essa tarefa para os críticos e para os estudiosos da tua obra. Há, de certeza, por aí muitas teses sobre ti, gente que vasculha a tua intimidade com intenção de brilhar literariamente. Isso eu não pretendi. Quis apenas mostrar a minha afectuosa subjectividade face ao teu tamanho intelectual criativo. Os filósofos da antiguidade diziam que a afectuosa subjectividade é o açúcar que se passa debaixo da mesa quando temos um convidado especial na nossa casa. A minha afectividade por ti, homem, por ti, escritor, por ti, ser universal é oceânica, líquida e azul, porque conseguiste fazer da tua obra a abrangência de afectos, Número quatro

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de culinária, de conhecimento, da solidariedade, da profundidade do ser humano. Ma o mais belo, o mais profundo, o mais divino foi mostrar abertamente a grandeza da tua negritude.Trataste os brancos e os negros com a mesma dignidade, se bem que foste notoriamente mais afectuoso com as mestiças… tudo era odor, desigual, abrasador. Viveste o Brasil com as tuas entranhas, o teu cérebro e a tua enorme humanidade. Hoje, mais do que nunca, sou capaz de te distinguir entre os maiores e podes sentar-te confortavelmente ao lado de Picasso, porque a teu jeito, foste capaz de pintar uma nação, cuja mestiçagem é um nunca mais acabar e utilizaste cores espirituais, cores da terra e cores do teu coração. Além disso, tinhas a elegância das misturas finas, as tuas personagens, mesmo as secundárias, eram irrepetíveis e o teu jeitinho era perfeito quando chegavas às mulheres. Com a voz embargada, digo-te que Teresa Batista Cansada da Guerra foi a minha escola oculta.

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A Confraria e Irmandade de Santa Cruz do Peredo dos Castelhanos Os estatutos e o património artístico (1618-1873)1 Carlos d’Abreu*

Em lembrança do poeta Gil T**

1. Introdução Por pertencermos à Comissão Municipal de Arte e Arqueologia de Torre de Moncorvo, tivemos conhecimento através da Junta de Freguesia do Peredo dos Castelhanos, da intenção de virem a proceder a obras de reabilitação da Capela de Santa Cruz, razão pela qual, em companhia do amigo Basílio Lázaro, então Presidente desse órgão autárquico, deslocamo-nos ao local em 21.IX.1993, onde realizámos um levantamento topográfico e fotográfico do conjunto (edifício e demais elementos artísticos), com vista à colaboração na elaboração de um projecto de restauro e conservação2.

Comunicação apresentada no âmbito das VII Jornadas Culturais de Balsamão (Chacim e Vila Real), 9-12.IX.2004. * Técnico Superior Principal (ME); Mestre em Arqueologia (FLUP); Mestre em História Moderna (USAL). ** João António Gil, Peredo dos Castelhanos (07.XI.1956-04.VIII.2001). 2 Carlos d’Abreu, Processo da Capela de Santa Cruz – levantamento do património artístico religioso edificado e móvel, manuscrito, Peredo dos Castelhanos, 21.IX.1993. 1

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Consequentemente, chegou a elaborar-se o esboço de um contrato com a Junta de Freguesia, para a realização de uma “Monografia da Capela de Santa Cruz da Paróquia de S. Julião do Peredo dos Castelhanos (Torre de Moncorvo) e proposta de reabilitação e restauro do seu património construído e artístico religioso móvel”, ideia que por qualquer razão que já não temos bem presente mas certamente relacionada com as conhecidas dificuldades financeiras por parte da Câmara Municipal para colaborar neste tipo de actividades, se não concretizou. Passado um ano, a edilidade consegue reunir condições para intervir no edifício, o que motivou nova deslocação ao Peredo, em 18.IX.1994, onde encontrámos as obras em curso e na fase de desreboco das paredes exteriores, o que permitiu detectar em silhares de ambos os pilares da fachada, vários números gravados3 como adiante se descreve, sugerindo que se aproveitasse a ocasião para os deixar a descoberto, o que não aconteceu. Como era urgente intervir ao nível da cobertura através da sua reparação e substituição da telha, e considerando a importância das pinturas do tecto que se encontravam em estado algo avançado de degradação motivada pela infiltração das águas pluviais, disponibilizámo- -nos para contactar técnicos na área da Conservação e Restauro ligados ao então Instituto José de Figueiredo para colaborarem nessa missão. Essas diligências realizaram-se, pessoalmente, em Lisboa, cabendo a decisão à Junta de Freguesia, cuja presidência, se não estamos em erro, mudara entretanto de mãos4. Por esta altura o pedrano poeta Gil T entregou-nos fotocópias dos Estatutos da antiga Confraria e Irmandade de Santa Cruz e dois outros documentos, precisamente para que os estudássemos e nos pudessem ser úteis ao trabalho proposto. Como não obtivemos qualquer resposta Idem, Processo da Capela de Santa Cruz – levantamento do património artístico religioso (e outros documentos). Visita às obras de restauro do imóvel – novas fotografias, manuscrito, Peredo dos Castelhanos, 18.IX.1994. 4 Idem, Carta ao Presidente da Junta de Freguesia do Peredo dos Castelhanos sobre o restauro da Capela de Santa Cruz, Livro de Registo de Correio, I / Pasta de Arquivo do Correio Emitido (1993-94), 10.XII.1994. 3

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por parte dos autarcas sobre o projecto de restauro do património móvel da Capela, foi este material aguardando por oportunidade. Não sabemos onde aquele nosso velho amigo recolhera os documen­ tos ou lhe tivera acesso, sendo provável até que os originais estivessem em sua posse, pois no seu gabinete instalado no rés-do-chão da sua casa, para além dos livros e dos seus próprios escritos – inéditos na sua grande maioria –, objectos de arte (antiga e outra de sua autoria nomeadamente escultura), havia códices e outros manuscritos. Curiosamente pensáramos em consultá-lo precisamente para dele obter algumas informações com vista a este trabalho, quando fomos surpreendidos pela sua precoce, inesperada e repentina morte5. Durante a elaboração deste artigo voltámos em 02.IX.2004 mais uma vez à Capela de Santa Cruz, para confirmar alguns pormenores e realizar novas fotografias, momento em que tivemos o grato prazer de, no cabido da Capela, ler os Estatutos da Confraria para alguns pedranos aí sentados6. Lamentavelmente o projecto de restauro e conservação bem como a respectiva monografia não se concretizaram e a arte do interior da Capela, mormente as pinturas do tecto, continuam a aguardar pela intervenção técnica. E volvidos onze anos após o início deste trabalho, agora a ele se voltou com vista à sua apresentação nestas Jornadas (também em Setembro). Vale mais tarde do que nunca... Resta-nos agradecer a colaboração da Flávia Margarida na leitura paleográfica dos Estatutos e a Teresa Machado o contributo em algumas das leituras iconográficas.

5 António Júlio Andrade, “Gil T – uma alma de artista”, in Terra Quente, Ano XII, n.º 240, Mirandela, 15.XVIII.2001, p. 3. 6 Carlos d’Abreu, Processo da Capela de Santa Cruz – levantamento do património artístico religioso. Novo levantamento fotográfico do conjunto, manuscrito, Peredo dos Castelha­nos, 2.IX.2004.

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2. Bosquejo histórico da Freguesia Peredo dos Castelhanos é Freguesia do Concelho de Torre de Moncorvo localizando-se no seu extremo Sul, limitando a N com a Açoreira, a E com Urros, a S com Castelo Melhor e a O com Vila Nova de Foz Côa, estas duas separadas pelo rio Douro; apesar de não limitar fisicamente com a Freguesia de Maçores fica-lhe muito próxima o que lhe permite com ela ter relações de boa vizinhança. Tem uma superfície de 17,83 Km2 o que corresponde a 3,35% da área total do município7. Alguns documentos arqueológicos Pré-históricos atestam a presença humana no território actualmente da Freguesia do Peredo, nomea­- da­mente uma lâmina de machado em pedra polida, recolhida à superfície pelo amigo Gil T no lugar de Espadana/Centeais, artefacto que nos ofereceu e nós depositámos no Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo. Da toponímia com elevado interesse arqueológico, registe-se os sítios de Casais da Póvoa, Valverde8, Castelo e Atalaia9. A primeira e mais antiga referência escrita ao Peredo – por nós conhecida –, surge no foral outorgado aos moradores de Orrios ou Vrrios (hoje Urros) em 11.IV.1182. Aí, na descrição dos limites do novo Concelho se refere que eles mediavam trans Dorio plo Perido et per Rabia et per fundo do uilar de Mazoores et azima do uale da Cardicha et a cabeza de Pelagio de Gouuinas et nazinia da Sazeda et inde ao Requeixo et inde a la cabeza de Calabria et pela cabeza de las Tanagas et inde per foz de Cola10. Idem, Torre de Moncorvo: Percursos e Materialidades Medievais e Modernos, dissertação de Mestrado em Arqueologia, Porto, FLUP, 1994 -1998, p. 5. 8 Augusto Soares de Azevedo de Pinho Leal, “Perêdo dos Castelhanos”, in Portugal Antigo e Moderno..., VI, Lisboa, Livraria Editora de Tavares e Irmão, 1886, p. 668. 9 Carlos d’Abreu, “O Património Cultural do Sul do Distrito de Bragança Segundo o Abade de Baçal – tentativa de elaboração de índices temáticos às Memórias Arqueológico-Históricas”, sep. Brigantia revista de cultura, XXII, 1/2, Bragança, 2002, p. 35. 10 Portugaliae Monumenta Historica – Leges et Consuetudines, “1182, Abril, 11 – Foral Concedido aos moradores de Urros (c.Torre de Moncorvo)”, in Documentos 7

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Todavia, este informe não significa forçosamente que o Peredo existisse enquanto sítio povoado e a corroborar esta hipótese está o facto da referência ao Peredo não ser precedida da palavra vilar (aldeia) como acontece com Maçores, sendo no entanto também verdade que o mesmo se passa relativamente a Rabia (S. Salvador de Rabanais coetâneo de Urros, actual S.ra do Castelo de Urros?), assim como à “azenha da Sarzeda” (sítio de Trá-la-Aldeia-de-Sarzeda), ambos com vestígios de ocupação humana. Certo e sabido é que Urros se veio a despovoar pouco depois em função das guerras leonesas, pois aparece ermo após 1218 ou 1220 e autorizado o seu repovoamento pelo Concelho de Freixo de Espada à Cinta por volta de 123611. Várias referências ao Peredo, ou pelo menos a um território com essa designação, encontramo-las na documentação, mormente a relacio­ nada com as vias de comunicação, nomeadamente a uma barca que andava no Doiro desde o “porto velho ata cerca do porto do seixo e ata direito do Peredo” em 1302 e em 1396, assim como ao “Caminho do Peredo” utilizado pelos viandantes que atravessavam o Rio de S para N, em 145912. Resulta do facto do Peredo não ter tido durante a Idade Média a importância administrativa de Urros a escassez de fontes para este período da sua História, no entanto comprovadamente existiu enquanto lugar povoado pelo menos ao longo da segunda metade do século XIV, porquanto a documentação assim o atesta13, senão vejamos: Medievais Portugueses – Documentos Régios, comp. Rui de Azevedo, vol. 2.º, Lisboa, 1958-1961, p. 463. 11 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, “Urros”, vol. XXXIII, Lisboa, Editorial Enciclopédica, Ld.ª, 1945, pp. 552-553, e ainda, Francisco Manuel Alves, “Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança”, IV, Bragança, reed. fac-similada (4.ª ed.), Museu Regional do Abade de Baçal, 1990, pp. 434-435. 12 Carlos d’Abreu & José Ignacio de la Torre Rodríguez, “O Douro, Vila Nova de Foz Côa e Torre de Moncorvo – duas margens de alguma conflituosidade na Idade Média”, in Côavisão, n.º 0,Vila Nova de Foz Côa, Câmara Municipal, 1998, pp. 69-77 e, ainda, Carlos d’Abreu, “A Itineração na antiga Comarca de Torre de Moncorvo”, in Douro – Estudos & Documentos, vol. VIII, 15, GEHVID, Porto, UP / UTAD / IVP, 2003, pp. 87-101. 13 Carlos d’Abreu, “Torre de Moncorvo: Percursos e Materialidades Medievais e Modernos”, op. cit., p. 30. Número quatro

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– em 1366, são os moradores do Peredo e Urros obrigados a trabalhar na construção das muralhas de Torre de Moncorvo; – em 07.V.1370, os julgados de Urros e Peredo e as aldeias do Souto, Castedo e Lousa são concedidos e integrados ao Concelho de Torre de Moncorvo; – em 31.VII.1376, é proferida uma sentença real no sentido do “concelho & julgado durros fosse termo & aldea da vjlla de meencorvo”, integrando-se assim definitivamente no Concelho de Torre de Moncor­ vo14, arrastando consigo o Peredo; – em 1398, voltam os moradores do Peredo a serem obrigados a trabalhar nas obras de fortificação da vila de Torre de Moncorvo. Terá entretanto a nossa aldeia porventura sido arrolada pela crise demográfica do século XV e, como várias outras na região, ter-se-á despovoado uma vez que as fontes são unânimes em afirmá-lo. Ora, segundo um códice dos finais do século XVII da autoria do P.e Pascoal Ferreira – nado e falecido no Peredo (02.IV.1640-1720) – intitulado Livro de Rezam... e que nós reputaríamos de importante contributo para a História Moderna desta Freguesia se acaso conhecêsse­ mos o seu paradeiro, códice que pertenceu à colecção do Abade Tavares15 e que foi consultado pelo Abade de Baçal que em boa hora dele extraiu algumas informações, como esta que indica que Este lugar do Peredo se começou no anno de 1530 e a igreja de S. Julião se fez no anno de 156316. É esta a informação repetida pelos corógrafos posteriores sem mais pormenores, contando-se de seguida a história de que o repovoamento foi realizado por oito castelhanos provenientes de La Fregeneda (vila raiana e próxima), através de um contrato de aforamento com Gomes Borges de Castro, aproveitando ainda para explicar a etimologia do

Idem, ibidem, p. 141. Idem, “O Património Cultural do Sul do Distrito de Bragança Segundo o Abade de Baçal...”, op. cit., pp. 9-96. 16 Francisco Manuel Alves, “Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança”, VII, op. cit., 3.ª ed., 1986, p. 729. 14 15

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topónimo17, se bem que tudo leva a crer que a designação de Castelhanos seja algo relativamente recente, porquanto só a detectamos em período pós-Moderno (século XIX?). É certo que a igreja matriz ostenta numa epígrafe sobre a porta lateral uma data relativa ao século XVI (provavelmente 1563), não sendo contudo prova suficiente para daí se inferir ter sido o templo construído nesse preciso ano. Todavia, através da existência de dois documentos e partindo do princípio que o primeiro deles respeita a Urros e Peredo (de Moncorvo) e não a Urrós e Peredo “de Bemposta” (Mogadouro), em 10.VI.1566 lavrou-se um Auto de desmembração das igrejas de Urros e Peredo e, em 3 de Julho do mesmo ano assinou-se uma Concórdia sobre a divisão dos padroados de Urros, Peredo e Maçores, constituindo-se três abadias em vez de uma só como até então acontecia18, ora, esta informação parece provar a existência por essa altura, de um aglomerado organizado de fiéis, motivando tal facto a necessidade de se reformar o território paroquial, pois subentende-se que anteriormente a igreja do Peredo fosse sufragânea da de Urros. Existem assim sérias possibilidades para que o repovoamento da aldeia, ou pelo menos um incremento do seu povoamento, tenha ocorrido na época referida pelo P.e Pascoal Ferreira. Relacionado com este período ressalta para a História desta comu­ nidade a emergência da família Borges de Castro que, como acima se viu, parece estar na origem do aforamento da terra aos castelhanos e que a partir daí, terão vindo a constituir um morgadio que incluía o Peredo19. Acontece porém que os seus descendentes, em determinado momento, decidiram aumentar desmesuradamente o valor das rendas o Augusto Soares de Azevedo de Pinho Leal, “Portugal Antigo e Moderno...”, Perêdo dos Castelhanos, op. cit., p. 669. 18 Idem, ibidem, pp. 669-670, e ainda, Carlos d’Abreu, “O Património Cultural do Sul do Distrito de Bragança Segundo o Abade de Baçal...”, op. cit., p. 75 (62-63). 19 Francisco Manuel Alves, “Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança”, VI, op. cit., p. 327. 17

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que motivou uma queixa à rainha D. Maria I por parte dos moradores. Daí resultou a provisão de 28.VI.1781 que, embora reconhecendo essa família como senhorio, reduziu as terras a prazo com foro competente ao Concelho e Terça Real e determinou que a pensão cujo valor fora agora revisto e reduzido à décima parte, fosse recolhida pelos Borges de Castro mas de seguida entregue ao Concelho20, pois tudo indicava resultar esse “direito” de uma apropriação indevida de baldios. 3. Confrarias e/ou irmandades Segundo os dicionaristas a palavra confraria provém do francês antigo confrarie, hoje confrérie e significa congregação ou irmandade que conformam alguns devotos com autorização eclesiástica para se dedicar a obras piedosas; tem ainda o sentido de grémio, companhia ou união de pessoas que exercem a mesma profissão ou têm o mesmo modo de vida21 (Grande 2004). A esta explicação devemos acrescentar que as confrarias tinham como principais finalidades a assistência material e espiritual, sobretudo aos seus membros, bem como o fomento do culto, com destaque para a veneração do respectivo patrono e a realização da sua festa, momento alto da sociabili­dade confraternal22. Os termos confraria e irmandade – é esta a fórmula empregue nos Estatutos aqui estudados –, a averiguar pela bibliografia compulsada são sinónimos, tendo sobre o tema a mesma opinião outros autores que consideram serem estas ainda conhecidas por confraternidades e fraterni­ dades23. A designação dessas associações de fiéis surge na bibliografia que tivemos oportunidade de consultar, de várias formas, entre elas Maria Isabel Alves Baptista, “Peredo dos Castelhanos – Subsídios para a sua História”, in Brigantia, XI, 3-4, Bragança, 1991, pp. 153-159. 21 Grande Enciclopédia Universal, Confraria,VI, Lisboa, Durclub, S.A. Ediciones / Correio da Manhã, 2004, p. 3533. 22 Pedro Penteado, “Confrarias”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, A-C, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 459-470. 23 Idem, ibidem, p. 459. 20

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a de confraria e irmandade, irmandade e confraria, ou tão só confraria, ou irmandade. Usaremos aqui indistintamente uma ou outra. Foi grande o universo confraternal, pois sabemos que este tipo de associações – assumindo diversas designações e variados patronos –, se encontravam por todo o País24 e mundo cristão desde a Idade Média25, assistindo-se mesmo entre os séculos XVI a XVIII a um surto imensurável de confrarias e irmandades, esmagadoramente localizadas em paróquias, a maior parte delas centradas nas devoções do Santíssimo Sacramento, das Almas do Purgatório e de Nossa Senhora do Rosário26. Com invocação das Almas temos conhecimento da existência de confrarias em Seixo de Ansiães27 e Lousa28, da Senhora do Rosário

J. Pinharanda Gomes, “Confrarias, Misericórdias, Ordens Terceiras, Obras Pias e outras associações de fiéis em Portugal nos séculos XIX e XX. Bibliografia Institucional (Contributo)”, sep. Lusitania Sacra, 2.ª s., n.º 8/9, s/l, 1996-1997, pp. 611-648/617-631. 25 Fernando da Silva Correia, “Estudos Sôbre a História da Assistência. Origens e Formação das Misericórdias Portuguesas”, Lisboa, Instituto para a Alta Cultura / HenriqueTorres – Editor, 1944, Iria Gonçalves & Maria de Fátima Botão, “As Confrarias Medievais da Região de Alcanena”, in Boletim do Centro de Estudos Históricos e Etnológicos, IV, Ferreira do Zêzere, Câmara Municipal de Alcanena, 1987, Maria José Pimenta Ferro Tavares, “Para o estudo das confrarias medievais portuguesas: os compromissos de três homens bons alentejanos”, Porto, Centro de Estudos Humanísticos, 1987, pp. 55-72, Margarida Teodora Trindade & Leonor Damas, “Confrarias medievais da região de Torres Novas: os bens e os compromissos”, Temas Torrejanos, 20, Torres Novas, Câmara Municipal, s/d., Sérgio Luís de Carvalho, “Assistência e Medicina no Portugal Medieval”, Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, Marco Manuel Pires, “A Confraria Medieval de Alcorochel: o compromisso e o tombo dos seus bens”,Torres Novas, Câmara Municipal, 1999, e ainda, António José de Oliveira, “Diogo Martins, Almoxarife do Rei em Guimarães e Oficial da Confraria do Serviço de Santa Maria”, in Actas das IV Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval – As Relações de Fronteira no Século de Alcañices, II, sep. Revista da FLUP – Série de História, XV, II S., Porto, 1998 (2000), pp. 1181-1195. 26 Pedro Penteado, “Confrarias”, op. cit., p. 463. 27 Arquivo Histórico Municipal de Torre de Moncorvo, Livro de despesas da confraria das Almas, Seixo de Ansiães, doc. 211, 1777-1809. 28 Carlos d’Abreu, “A estação arqueológica do Castelejo (Lousa, Torre de Moncor­vo) – sua descoberta e tentativa de interpretação”, in Brigantia, XVII, 3/4, Bragança, 1996, p. 16. 24

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em Marzagão, Lousa29 e Maçores30, e invocação mista – Santíssimo Sacramento das Almas – em Torre de Moncorvo31, entre várias outras na região. Contabilizaram-se no País no ano de 1861, 8 704 irmandades, 22 das quais no Concelho de Bragança32 Foram estas colectividades como se percebeu, arroladas pelas malhas das reformas liberais que as foi sujeitando às autoridades civis, sendo que através do decreto de 21.X.1836 se previa em determinadas circunstâncias a aplicação dos seus bens e rendimentos para fins públicos33, o que na nossa região sucedeu em sessão da Junta Geral do Distrito de Bragança em 24.VIII.1837, onde após ter sido presente o Auto de posse dos bens da Confraria das Almas do Vimioso (...) cujo capital consiste em cento oitenta e um mil seiscentos e quarenta réis, e cujo producto se mandou applicar para a sustentação dos presos pobres do Districto34; relativamente à aplicação dos bens ou rendimentos de Irmandades e Confrarias extintas, segundo a portaria de 19.V.1838, afirma-se na Acta de encerramento da mesma sessão que nenhuns bens, ou rendimentos se acharam desta natureza além dos da Confraria das Almas doVimioso35. O que terá ocorrido quando sabemos que no novel Distrito Adminis­ trativo existiam ao tempo muitas instituições similares? Todas as outras

Idem, “O Património Cultural do Sul do Distrito de Bragança...”, op. cit.,

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p. 77.

Arquivo Histórico Municipal de Torre de Moncorvo, Livro da confraria de Nossa Senhora do Rosário, Maçores, doc. 208, 1874-1875. 31 Idem, Livro das contas da confraria do Santíssimo Sacramento das Almas, Torre de Moncorvo, doc. 209, 1857-1901. 32 Pedro Penteado, “Confrarias”, op. cit., p. 466. 33 “Colecção de Leis e Outros Documentos Oficiais Publicados desde 10 de Setembro até 31 de Dezembro de 1836”, VI S., 2.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional, 1930, pp. 42-43. 34 Diário do Governo, “Administração Geral de Bragança. Acta da Sessão da Junta em 24 de Agosto de 1837 para dar applicação aos bens e rendimentos das Irmandades e Confrarias extintas, nos termos do Artigo decimo do Decreto de 21 de Outubro de 1836”, n.º 24, Sabbado 27.I.1838, p. 93. 35 Idem, “Administração Geral de Bragança. Acta da Sessão do encerramento da Junta Geral do Districto”, n.º 24, Sabbado 27.I.1838, p. 94. 30

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se adaptaram ao novo figurino legal ou pura e simplesmente deixaram de ter actividade extinguindo-se lentamente? Para se perceber melhor a situação neste período será forçosamente necessário estudar a legislação, o que nós de momento fizemos somente pela rama. Com efeito sabemos que através das portarias de 23 de Julho e de 30.XII.1852, as confrarias eram obrigadas a terem os seus Compromissos aprovados pelo Governo36. Muitas terão sido as irmandades (re)criadas posteriormente, como é o caso por exemplo da Confraria de Santo Antão da Barca que publica novos estatutos em 1895 reformulando-os em 191137, outra vez por imposição legal mas agora republicana, regime político que também condicionou a actividade das confrarias através da Lei de Separação do Estado das Igrejas de 20.IV.1911 (promulgada a 18 de Novembro desse ano), segundo a qual as irmandades não podiam aplicar para o culto mais que um terço da sua receita, sendo o restante destinado a obras de subsistência, beneficência e instrução dos filhos dos irmãos pobres, situação que igualmente ocorreu – e para não sair da nossa região – com a Confraria das Almas da Freguesia de S. Miguel de Fontelas, anterior a 178538. Foram as confrarias dedicadas a Vera Cruz, Santa Cruz, Santos Passos, ou ainda de Santa Cruz e Passos de Nosso Senhor Jesus Cristo – como se designou em tempos a dos Santos Passos de Oeiras39 –, também nume­ rosas apesar desta invocação se não incluir nas três mais vulgares como acima se viu. Este poderoso movimento das confrarias exerceu ao longo de séculos um relevante papel no reforço do sentimento religioso e da

Pedro Penteado, “Confrarias”, op. cit., p. 466. António dos Santos Lopes, O Santuário de Santo Antão da Barca. Parada – Alfândega da Fé, Alfândega da Fé, Câmara Municipal, 1994, p. 35. 38 Alípio Martins Afonso, Fontelas, perfil monográfico, Chaves, 1970, p. 93. 39 Oeiras na internet, “Oeiras Actual – A Procissão do Senhor dos Passos em Oeiras”, in http:// www.cm-oeiras.pt/Boletim/1998_04/iniciativas.html (consultado em 30.VI.2004). 36 37

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solidariedade profissional40, mesmo entre os clérigos, pois conhecemos, aqui bem perto, a existência da Irmandade de Sacerdotes de novo erecta na Igreja de S. Pedro de Santa Comba da Villariça Comarca da Torre de Mencorvo, como reza o frontispício dos seus Estatutos de 1706 a cujo original tivemos recentemente acesso, curiosamente em mãos particulares e fora de Portugal, depois de ter pertencido à colecção do Abade Tavares e à Biblioteca do Seminário de Vinhais41. Para alguns dos irmãos das confrarias – mormente no meio urbano – o seu ingresso na instituição funcionava como um meio de acesso à promoção social e para outros como forma de confirmar e ostentar a posição social já detida42, pois conhecem-se inúmeros casos em que os oficiais da confraria exerciam cargos administrativos, talvez por serem também estas as pessoas mais letradas. 3.1. Os Estatutos da Confraria de Santa Cruz Como na Introdução se informou, possuímos fotocópias do livro original manuscrito dos Estatutos da Confraria de Santa Cruz, oferecidas pelo saudoso Amigo Gil T, a partir das quais pudemos fazer a sua leitura paleográfica e tentame de síntese interpretativa. Foram os referidos Estatutos mandados elaborar no ano de 1618 pelo Abade do Peredo Manuel Álvares, provavelmente logo após à criação da Confraria – que talvez tenha ocorrido nesse mesmo ano43, pois tinha já 40 Francisco Bethencourt, “Os equilíbrios sociais do Poder – a Igreja”, in História de Portugal, J. Mattoso (dir.), vol. III (No Alvorecer da Modernidade, J. R. Magalhães, coord.), s/l, Editorial Estampa, 1993, p. 152. 41 Manuel António Pires, “Antiga irmandade de sacerdotes para fins de sufrágio e de assistência”, in Brigantia, XII, 2, Bragança, 1992, pp. 3-19, ainda, Carlos d’Abreu, “O Património Cultural do Sul do Distrito de Bragança...”, op. cit., 77 (140) e, ainda, Carlos d’Abreu, “O Abade Tavares, precursor da Arqueologia do Sul do Distrito de Bragança e o processo de concurso para pároco de Carviçais (1899)” sep. Brigantia, XXII, 3/4, Bragança, 2002, pp. 153-164. 42 António José de Oliveira, Diogo Martins,Almoxarife do Rei em Guimarães e Oficial da Confraria do Serviço de Santa Maria, 1196. 43 Livro dos instatutos e regras da Confraria e Irmandade de Santa Cruz do lugar do Peredo..., manuscrito, Peredo dos Castelhanos, 1618, fl. 4.

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oficiais eleitos como no frontispício se afirma, sendo provedor o P.e João Fernandes, escrivão João Durão e mordomo Domingos Francisco44. Pena é não conhecermos o paradeiro do livro dos confrades pois para além de conter o nome dos fundadores45 e eventualmente a data da sua inscrição, certamente referiria outros dados identificativos que nos permitiriam hoje ajuizar melhor da condição social dos promotores da iniciativa. Presume-se que a capela-ermida tenha sido construída propositada­ mente para albergar a confraria, como mais adiante se verá. [fol. 3] Livro dos instatutos e regras da Confraria e Irmandade de Santa Cruz do lugar do Peredo os quais se fizerão sendo provedor da dita Irmandade o P.e João Frz46, e Escrivão, João Durão e Mo= rdomo Dom= ingos Fra= ncis~~ Livro dos Estatutos da Confraria e ~co~ Irmandade de Santa Cruz (folha de rosto) * Os quais mandou fazer Manoel Alvres Abb.e 47 do dito lugar Anno de 1618.

Ibidem, fl. 3. Ibidem, fl. 4. 46 Abreviatura de “Fernandez”. 47 Idem, de “Álvares” e “Abbade”. 44 45

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Os Estatutos estão, assim, estruturados: 1 – [Intróito] 2 – DasVesporas e Missa que hade dizer;Vesporas e dia da invenção da Cruz 3 – Da Missa geral dos defuntos 4 – Da Missa que cada mez se hade dizer 5 – Das Missas que se hão de dizer no altar da Confraria pello Confrade que falecer 6 – Acerqua dos que faltarem 7 – Dos Irmãos 8 – De como se hão de Reconciliar os Irmãos que estiverem em odio 9 – Dos officiaes da confraria 10 – De como hão de thomar as contas 11 – Do Officio do Provedor 12 – Do Escrivão 13 – Dos mordomos 14 – Do Thezoureiro 15 – [requerimento a solicitar a aprovação canónica] 16 – [processo burocrático da aprovação] 17 – [adenda ao Compromisso] 18 – [confirmação da adenda] Ao longo deste Compromisso se esclarecem tanto as atribuições da Confraria, como os direitos e deveres dos confrades, a composição dos seus corpos gerentes e suas responsabilidades, bem como as sanções disciplinares – algumas deixadas ao livre arbítrio do provedor – a que os seus membros estavam sujeitos: a) – assim, no 2.º item determina-se que se cantassem as vésperas, se dissesse uma missa e realizasse uma procissão no dia da Invenção da Cruz, processo que se repetiria na comemoração da Exaltação da Cruz, obrigando à presença dos confrades com seus círios acesos, na qual festa o provedor e demais membros comungariam; b) – no 3.º, que em dia à escolha mas posterior ao dos Fiéis Defuntos, se dissesse uma missa cantada com responso pelos irmãos falecidos para 62

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a qual exporiam os mordomos no interior da igreja e ao centro a Cruz – tangendo-se o sino na noite de véspera –, realizando de seguida uma procissão em redor da Igreja; c) – no 4.º ordena-se a realização de uma missa no altar da Confraria na primeira sexta-feira de cada mês pelos confrades defuntos, com responso no final à porta da Igreja, tendo o provedor a obrigação de convocar os irmãos; que falecendo algum irmão os mordomos tinham a obrigação de avisar o provedor e demais confrades que na terra se encontrassem para se juntarem na “Igreja de Santa Cruz” e acompanharem o defunto com suas vestes de confraria, Cruz e círios, caminhando o provedor atrás com sua vara, ordenando a procissão o escrivão e os mordomos até à Igreja onde se realizaria o enterro, regressando todos após o funeral à capela de Santa Cruz onde um sacerdote diria um responso com as orações contidas no livro da confraria, avisando o provedor os confrades para a obrigação de rezarem cinco Padres Nossos e Avé Marias; determina também que o provedor escolhesse os irmãos que deveriam transportar o corpo do confrade defunto se este não tivesse quem o levasse; d) – no 5.º ordena-se que cada irmão defunto tenha direita a duas missas de requiem ditas por sacerdote, e a cinco Padres Nossos e Avé Marias por parte dos confrades; que se algum irmão morresse fora da Freguesia e não pudesse ser acompanhado que se lhe dissessem as missas a que tinha direito enquanto confrade; que cada dois irmãos diriam uma missa pelo defunto; que os mordomos eram obrigados a arrecadar a esmola da missa a que cada confrade estava obrigado pela morte de um irmão, esmola essa que seria entregue no prazo de um mês após o óbito, sob pena de serem condenados pelo livre arbítrio do provedor; f) – no 6.º dispõe-se a condenação dos irmãos que faltassem às suas obrigações, como acompanhamento das procissões “de quinta feira da ceia” e da Ressurreição, enterros e outras, situações estas em que o escrivão deveria registar os faltosos no rol para que o provedor decidisse da pena a aplicar; g) – no 7.º lembra-se a obrigação que os irmãos tinham de se visitarem aquando da enfermidade de algum deles e caso a doença Número quatro

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fosse grave o provedor e restantes oficiais deveriam fazê-lo com muita regularidade, dormindo cada um à vez em casa do doente e, prolongando- -se a agonia, o provedor distribuiria as noites pelos confrades, que seriam condenados caso desobedecessem sem motivo justificado; h) – no 8.º ordena-se aos membros dos corpos gerentes da Confraria que tivessem o cuidado de saber se havia confrades desavindos, pois nestes casos tinham a obrigação de colaborar na reconciliação; aqui introduz-se um parágrafo de grande importância para a economia da Confraria, pois lembram-se as obrigações e os fracos rendimentos para as satisfazer, assentando-se que para além da esmola que um dos mordomos tirasse todos os domingos pelas portas, os corpos gerentes em grupo recolheriam por casa dos confrades no “verão no tempo das colheitas” uma esmola de grão, da qual se faria assento em livro próprio; i) – no 9.º referem-se os cargos no governo da Confraria – 1 pro­vedor, 1 escrivão, 2 mordomos, 1 tesoureiro, 1 procurador e 2 ajudantes dos mordomos –, todos conhecidos pela designação geral de oficiais, cujo mandato tinha a duração de um ano realizando-se a eleição entre os oito dias anteriores e os quinze dias posteriores à festa da Invenção da Cruz (i. é, entre 23 de Abril e 17 de Maio), tendo os mordomos a obrigação de convocar todos os confrades para se juntarem na ermida da confraria, onde a Mesa (composta pelo provedor, escrivão e mordomos) escrutinava a eleição, por voto secreto, sendo eleitos e aclamados os mais votados, prestando juramento na tomada de posse e passagem do testemunho; no final se lavrava acta no “Livro da confraria” que seria assinada pelos oficiais cessantes e os recém-eleitos; j) – no 10.º ordena-se aos novos oficiais que no prazo de oito dias após a eleição, tomassem posse dos bens da Confraria incluindo os dinheiros; l) – no 11.º define-se o perfil e atribuições do provedor, figura máxima da hierarquia; m) – no 12.º o mesmo para o escrivão que teria um livro de Recebi­ mento onde registaria pormenorizadamente todo o dinheiro que o tesoureiro recebesse; 64

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n) – no 13.º idem dos mordomos, que tinham a obrigação de cuidar dos bens da Confraria, manter a Igreja muito limpa e o altar muito bem conservado, estando às ordens do provedor; o) – no 14.º idem do tesoureiro, que juntamente com um irmão recebia o dinheiro, incluindo o das penas, estando inteiramente subordinado ao provedor; noutro parágrafo se determina a pena de 100 réis para o irmão eleito que se escusasse ao cumprimento do cargo, pena que poderia ir até à expulsão; dá ainda a possibilidade a qualquer pessoa doente ou recém falecida a tornar-se confrade beneficiando dos mesmos direitos dos demais irmãos; que nenhum mordomo estava autorizado a gastar no dia da festa a expensas da confraria, quantia superior àquela que gastasse com os sacerdotes, sob pena da associação poder vir a ser por si ressarcida. Ao longo do texto percebe-se que a irmandade possuía vários livros, nomeadamente, o do registo dos confrades (item 1), o das orações (item 4), o do rol dos faltosos (item 6), o de assento da recolha da esmola do cereal no Verão (item 8), o de actas dos actos eleitorais (item 10) e o de recebimento (contabilidade) (item 12). Livros a que não tivemos acesso e que seriam importantes para um estudo mais aprofundado deste tema, permitindo colaborar certamente numa aproximação da reconstituição do quotidiano da aldeia. As festas de Santa Cruz ocorriam a 3 de Maio, dia da Invenção da Santa Cruz48 – achamento da Santa Cruz49 ou invocação da Santa Cruz50 – e a 14 de Setembro, dia da Exaltação da Santa Cruz. Entre 22 de Março e 30.IV.1618 desenvolveu-se todo o processo de aprovação canónica dos Estatutos, sendo que na última das datas é passada a provisão de confirmação. Manoel Rodrigues (ed.), OVerdadeiro Almanaque Borda d’Agua Reportório útil a toda a gente Para 1952 (Bissexto) Contendo todos os dados astronómicos e religiosos e muitas indicações úteis de interesse geral, Lisboa, Livraria Minerva, 1952. 49 Almanaque de Santo António para 1961, Braga, Editorial Franciscana, 1960, 51. 50 José de Campos Faria Bravo (org.), Almanaque 1984, Lisboa, Direcção-Geral da Educação de Adultos, Dezembro de 1983, 120. 48

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Em 12.I.1667 já dera entrada na sede da Diocese (em Braga) um requerimento a solicitar a confirmação canónica dum aditamento aos Estatutos, o que acontecerá a 13 de Junho do mesmo ano. Sofre assim o compromisso a sua primeira alteração volvido 49 anos após a criação da Confraria. Consiste genericamente a adenda em coagir os irmãos mesmo que ausentes a satisfazer a sua obrigação com a esmola para as missas dos que faleciam ou pagar as fintas lançadas, no prazo de um ano a contar da festa de Maio, caso contrário seriam expulsos; acrescentava ainda a alteração proposta, a substituição do vintém da quota anual por um alqueire de trigo, a pagar até ao dia de N.a S.ra de Agosto, podendo ainda a irmandade em caso de necessidade recorrer ao lançamento de fintas. Parece-nos que esta medida teria por fim facilitar o pagamento da obrigação anual por parte de cada irmão, eventualmente por que seria mais fácil para um lavrador pagar em género do que em metal. Provavelmente durante todo este período as mulheres estariam excluídas da confraria, situação considerada normal no contexto do movimento associativo de então51, se bem que esta situação já se encontrava alterada volvido trinta anos, aquando do Breve das indulgên­ cias, pois aí inequivocamente se referem os confrades e confradas como adiante se poderá verificar. Apesar de não termos tido oportunidade de cotejar o texto destes Estatutos com outros do mesmo período e invocação, parece-nos que obedecerão a um modelo mais ou menos padronizado em voga ao tempo. Resta acrescentar que, em acto de visitação, António José Aguiar elabora os termos de abertura e de encerramento e rubrica todas as folhas do livro que contém os Estatutos, em 08.VII.1713.

Maria Marta Lobo de Araújo, “As traves mestras da Confraria do Santíssimo Sacramento da Igreja da Misericórdia de Vila Viçosa: o Compromisso de 1612”, in Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. XLI, fasc.s 3-4, Porto, Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, 2001, p. 138 51

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Em face destas informações, podemos afirmar que esta Irmandade criada por 1618, subsistia em 1713, em 1758, muito provavelmente em 1799 (data do arranjo ou construção da janela na sua ermida) e seguramente ainda em 1873, ano da elaboração das pinturas do tecto considerando o tema aí tratado e a sua íntima relação com a invocação da confraria. Gostaríamos de um dia ter acesso ao espólio do poeta Gil T, pois aí poderá haver documentação que responda a esta e outras questões. 3.2. Breve do Papa Inocêncio XII Apensou o Amigo Gil T às fotocópias dos Estatutos dois documentos avulsos de dimensões sensivelmente superiores ao tamanho hoje designa­ do por A3. Incluímos no final do Apêndice documental a transcrição daquele que está directamente relacionado com o assunto aqui tratado, sendo que o outro, em latim, merecerá um estudo à parte. Trata-se da notícia de um Breve do Papa Inocêncio XII, mandada passar e remeter à Confraria de Santa Cruz pelo D.r António Álvares de Sequeira, Cónego Magistral da Sé de Braga, Desembargador, Governador, Provisor e Vigário [geral?] do Arcebispado, em 20.IV.1697, onde é concedido um Jubileu perpétuo à Confraria de Santa Cruz do Lugar do Peredo Comarca da Torre de Mencorvo52, concedendo várias indulgências plenárias “aos confrades e confradas”, a saber: a) – que a partir daí ingressassem na Confraria se no primeiro dia de sua entrada e depois de verdadeiramente confessados e arrependidos recebessem o Santíssimo Sacramento; b) – que na hora da morte depois de verdadeiramente confessados e comungados, ou pelo menos contritos, invocassem o Sagrado Nome de Jesus;

Breve de Inocêncio XII, Jubileo perpetuo concedido a Confraria de Santa Cruz do Lugar do Peredo Comarca da Torre de Mencorvo, manuscrito, Sé de Braga, 20.IV.1697. 52

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c) – que verdadeiramente confessados e comungados visitassem a Igreja Capella da Confraria no dia da festa de Santa Cruz aos três de Maio desde a primeira vespora até ao pôr do Sol do mesmo dia festivo em qualquer ano, e aí devotamente rezassem e orassem a Deus Nosso Senhor, à paz e concórdia dos Príncipes Cristãos, extirpação dos hereges e exaltação da Santa Madre Igreja que alcancem tambem misericordiosamente no Senhor Indulgencia plenaria e Remissão de todos os seus pecado; d) – que verdadeiramente confessados e comungados visitassem a Igreja ou Capela no dia de S. Julião; ou em Agosto na festa de N.a S.ra da Glória; ou na festa de N.a S.ra do Rosário; e no dia de S. Sebastião, em cada ano cujas festas tivessem sido escolhidas e decididas pelos confrades da dita Confraria e ali rezassem e orassem; e) – por todas as vezes que assistissem às missas e ofícios divinos que ao longo do tempo se celebrassem na dita Igreja, ou cappela, e aos ajuntamentos públicos ou particulares da dita confraria que em qualquer parte se realizassem; f) – dessem hospedagem aos pobres; g) – fizessem (ou tentassem) a paz entre os inimigos; h) – acompanhassem os corpos dos defuntos tanto confrades como dos demais cristãos até à sepultura; i) – acompanhassem qualquer procissão autorizada, bem como o Santíssimo Sacramento em procissão; j) – os enfermos que ouvindo o toque do sino a chamar à missa e estando impedidos de se deslocarem, rezassem um Padre Nosso e uma Avé Maria, ou cinco vezes pelas almas dos confrades; l) – levassem algum desencaminhado para o caminho da Salvação; m) – ensinassem aos ignorantes os preceitos de Deus, e aquelas couzas que lhe são necessárias para se salvare; n) – por qualquer destas acções obteriam da Igreja o desconto (?) de sessenta dias de penitência que lhe tivessem sido impostos. Este Breve pontifício revela de algum modo a importância da Confraria ou de alguns dos seus membros, pela influência exercida em conseguirem o rescrito e com tão importantes graças, apesar de conhecermos várias 68

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outras confrarias indulgenciadas nos mesmos moldes, nomeadamente as de Santa Cruz de Bragança e do Santíssimo Sacramento de Candoso53 (Vila Flor) e a das Almas de Fontelas54 (Peso da Régua) – estas na nossa região – e a do Santíssimo Sacramento de Vila Viçosa55. 4. O Património Artístico Religioso 4.1. Imóvel A Capela de Santa Cruz localiza-se sensivelmente ao meio do povoado (zona Poente) que se estende longitudinalmente através de duas vias principais – a Rua de Diante e a Rua de Trás – assentando-se nesta última, fronteira ao Largo a que dá o nome. O edifício é de planta rectangular dividida em dois corpos, a capela de nave única e sem abside e o alpendre (ou cabido), este localizado na fachada e aberto ao exterior através de três acessos, um frontal e dois laterais; apresenta orientação canónica (E – W), é construída com o material geológico mais abundante na Freguesia – a piçarra –, obrigando a espessas paredes cuja largura média oscila entre 0,74m nas paredes laterais e 0,8625m no frontispício e retaguarda; possui a ombreira da porta 1m graças a uma saliência para o interior do alpendre de 0,16m. Apresenta as seguintes dimensões pelo exterior: comprimento 13,55m no alçado lateral Norte e 13,42m no alçado Sul, sendo que 8,40m e 8,45m respectivamente correspondem ao corpo principal da capela; a largura da fachada é de 6,26m e da traseira 6,14m.

Adérito Custódio, “A Confraria do Santíssimo Sacramento da Freguesia de S. Sebastião de Candoso nos Meados do Século XVII”, in Actas do Congresso Histórico Comemorativo dos 450 anos da Fundação da Diocese, Bragança, Comissão Executiva das Comemorações, 1997, p. 398 54 Alípio Martins Afonso, Fontelas perfil monográfico, Chaves, 1970, p. 95. 55 Maria Marta Lobo de Araújo, “As traves mestras da Confraria do Santíssimo Sacramento da Igreja da Misericórdia de Vila Viçosa: o Compromisso de 1612”, op. cit., p. 139. 53

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Capela de Santa Cruz – antes e depois da intervenção

A estrutura da cobertura do átrio é suportada por pilares levantados em xisto, formando cunhais de avantajada espessura, o que concede um aspecto robusto e algo invulgar ao conjunto arquitectónico. É vedado por um murete de 0,73m de altura e possui como atrás se disse três acessos, um frontal relativamente centrado de 1,55m de largura e dois laterais junto à parede divisória dos dois corpos com 0,92m. Considerando que o local onde se implanta o imóvel é algo desnivelado, o acesso ao interior é feito através de dois degraus, que se descem se se aceder pelo lado Norte e se sobem se o fizermos através do lado contrário. Naturalmente que essa galilé toma localmente a designação de cabido, por aí se reunirem os corpos sociais da confraria, pois está dotado de bancos adossados à parede -igualmente construídos com piçarra- à sua volta pelo interior; actualmente os alçados E e S ostentam também estes poiais pelo exterior. Expõe uma única janela, rectangular, ao alto, no lado S, elaborada em lajes de xisto aparelhado de 0,20m de largura, localizada a uma altura de 0,96m a partir do solo e a uma distância de 1,54m da esquina com a parede traseira; ao centro do dintel a data gravada de 1799; é gradeada. Possui o edifício sobre a porta um pequeno arco em granito, encimado por uma cruz para albergar a sineta (hoje inexistente). Foram todas as suas paredes revestidas a cal hidráulica até às repara­ ções efectuadas em 1994, altura em que depois de picadas se rebocaram 70

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a cimento químico, solução hoje tão em voga mas de conhecidos efeitos negativos em restauro. Nestas reparações foi alterada a fachada da galilé, pois os dois possantes pilares foram unidos entre si através de vigamento de betão e preenchida todo esse espaço com um inestético “frontão”, formando como que uma larga porta frontal, quando anteriormente toda essa zona era aberta até ao cúmeo das duas águas, vendo-se apenas as traves em madeira de suporte do telhado. Alteração deveras criticável uma vez que nada a justificou. A cobertura da capela é em telha vermelha moderna e todo o seu piso é revestido com grandes lájeas xistosas. Segundo informação obtida no levantamento realizado em 1993, a capela terá tido em tempos um compartimento nas traseiras que servira de porão (cadeia); haverá alguma possibilidade desse compartimento em tempos remotos ter sido “capela-mor” ou mesmo sacristia? Infelizmente não estivemos presentes aquando do desreboco dessa parede em 1994 para averiguar a estratigrafia murária... A construção da capela-ermida data certamente do início do século XVII, pois tendo sido criada a Confraria por volta do ano de 1618, no intróito dos seus Estatutos claramente se afirma que instituirão a dita Confraria e Irmandade em hua irmida da invocação da Sancta Cruz que pera iso fizerão pera nella se dizerem os sacrifícios todos da dita Confraria56, intuindo-se que a capela tenha sido construída adrede para sede da confraria já existente ou a criar. Nos arranjos exteriores do edifício realizados em 1994 e após o desreboco, deparou-se com dois conjuntos de números gravados, cada um em seu pilar da fachada. No pilar direito (segundo a orientação canónica), sensivelmente a meio da altura, num silhar que ocupa toda a largura da estrutura, próximo da esquina interior, o número “16”, que eventualmente poderá estar relacionado com os dois primeiros dígitos do ano de construção, ou, num outro tipo de leitura algo inverosímil, o 16.º “passo” do ciclo Livro dos instatutos e regras da Confraria e Irmandade de Santa Cruz do lugar do Peredo..., op. cit., fl. 4v. 56

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da paixão, i. é, os quinze considerados, mais o regresso à ermida da procissão dos Passos. No pilar esquerdo, à mesma altura da gravura anterior, num pequeno silhar colocado no ângulo externo, a data “1890”, correspondente certamente a alguma intervenção realizada no imóvel. Infelizmente e apesar das nossas recomendações foram esses petróglifos outra vez recobertos com o reboco.

Localização das duas inscrições reveladas após o desreboco das paredes

Em 1799 já sofrera também o edifício seguramente obras, ano em que terá sido rasgada ou ampliada a janela existente a Sul, como se viu. E fora restaurada luxuosamente, em 1873, quando se pintaram os quadros do tecto, melhoramentos devidos aos mesários Joaquim Basílio Thomaz e António Caetano Fernandes57. Curiosamente os Estatutos da Confraria referem-se várias vezes à ermida como Igreja de Sancta Crux58, chamando-lhe o Breve papal Igreja Capella ou Igreja ou Capela59. Augusto Soares de Azevedo de Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno..., op. cit., VI, p. 669. 58 Livro dos instatutos e regras da Confraria e Irmandade de Santa Cruz do lugar do Peredo..., op. cit., fl. 5. 59 Breve de Inocêncio XII, Jubileo perpetuo concedido a Confraria de Santa Cruz…, op. cit. 57

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4.2. Móvel 4.2.1. O retábulo A Capela possuiu no inte­rior um retábulo de talha barroca portu­ guesa, dourado, de estilo nacional – do último quartel do século XVII ao primeiro quarto do século XVIII60 –, constituído por um painel central ladeado por duas colunas torsas ou salomónicas, de fuste espiralado, decoradas com parras, gachos, fénices e anjos...; o seu estado de conservação requer restauro. Apresenta ao centro do altar e incluídos no conjunto retabular, dois painéis ou tábuas pintadas, eventualmente O Retábulo da Capela de Santa Cruz de cronologia anterior, repre­ sentando N.a S.ra Mãe de Jesus e Maria Madalena (?), ambas chorando o Crucificado; o seu estado de conservação é razoável. Colocado ao centro do altar encontra-se uma escultura em madeira de grandes dimensões representando Cristo Crucificado tendo sobre a cabeça a tabuleta com as inicias INRI e sob os pés uma caveira com dois ossos grandes cruzados; a escultura é ladeada pelas duas figuras femininas pintadas no retábulo; é igualmente razoável o seu estado de conservação. Sendo a Capela da invocação da Santa Cruz e nela existindo uma Confraria do mesmo nome é natural que a figura principal seja a Cruz. Não sofreu este altar as alterações saídas do Concílio Vaticano II, o que indicia a fraca utilização do templo desde então para cá. Desconhecemos se durante as reparações mais recentes – neste caso aquando do levantamento topográfico e fotográfico já haviam ocorrido – N. M. Ferreira Alves, “Talha”, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 467. 60

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o desreboco da face interior das paredes não terá eventualmente destruído algumas pinturas murais que eventualmente integrariam algum altar de cronologia anterior ao retábulo em talha dourada que, como é relativamente normal, se encontrariam nesta altura cobertas a cal. 4.2.2. As pinturas do tecto Apresenta o corpo da capela um tecto em forma de abóbada de berço, em madeira, decorado com um conjunto de grande policromia, dividido em quinze quadros pintados e numerados em árabe – de acordo com as estações do ciclo da Paixão de Cristo – e dispostos paralelamente. Estes conjuntos picturais existentes em muitas das nossas igrejas constituíram autênticos elementos de catecismo religioso e de cultura humana para as nossas gentes61. Estas pinturas – eventualmente executadas por artista local, digamos sem “escola” – revelam nas diversas cenas, figuras humanas algo toscas, pouco expressivas, onde a técnica da perspectiva é mal dominada e o volume mal conseguido, mas não deixando de possuir um importante Um aspecto do tecto da Capela de Santa Cruz valor iconográfico (a bíblia dos pobres). Junto ao quadro 13 e sobre a porta encontra-se igualmente pintada a data 1873, correspondente à execução das pinturas, o que poderá significar a pervivência da Confraria para além das dificuldades infligidas pelas reformas liberais.

P.e António Rodrigues Mourinho Jr., “As pinturas do tecto da Igreja de S. Bento da cidade de Bragança: seu autor e valor iconográfico”, in Brigantia, 1, 0, Bragança, 1981, p. 69. 61

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Todo o conjunto se apresenta em mau estado de conservação e a necessitar de restauro urgente, tendo todavia a substituição do telhado em 1994 desacelerado de algum modo o processo de degradação da madeira nestes últimos dez anos como se confirma através da comparação dos respectivos levantamentos fotográficos. Distribuição e leitura da Via-Sacra no conjunto pictórico:

N

3

6

15

11

9

2

5

14

12

8

1

4

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7

1873

As estações: 1 – agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras, de vestes longas, barba e farta cabeleira, onde reza prostrado de joelhos, vendo-se no quarto superior direito um anjo que lhe oferece o cálice; 2 – prisão de Jesus por quatro soldados agredindo-O um deles, possuem elmos (alguns de penacho) e couraças estando três armados de lança, vendo-se no canto esquerdo a figura de Judas a escapar-se com o saco dos trinta dinheiros; 3 – condução e flagelação de Jesus desnudo ao longo do percurso até à casa do Sumo Sacerdote Caifás (por parte de dois indivíduos que vestem túnica à moda romana), onde será julgado e sentenciado à morte, vendo-se entre Jesus e o carrasco da direita um pote; Número quatro

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4 – condenação de Jesus à morte por parte do governador Pôncio Pilatos (de rica indumentária) no palácio deste, vendo-se o Nazareno com as mãos atadas e agarrando a “caninha verde” do lado direito com os ombros cobertos por uma curta capa vermelha; 5 – Jesus carrega a cruz às costas, vestido com uma comprida túnica castanha de pano grosseiro, acompanhado por dois soldados, um que o açoita e outro que o puxa pela corda que O cinge; 6 – Jesus continua o percurso carregando a cruz às costas em direcção ao Calvário, acompanhado por quatro soldados, um de guarda com lança ao alto, outro que o puxa pela corda e o chicoteia, tocando os demais instrumentos musicais – tambor e trombeta –, sendo que este último segura, baixa, na mão esquerda uma alabarda desembainhada; 7 – Jesus a ser auxiliado no carrego da cruz por Simão Cireneu (vestido à camponês barbado) e acompanhado de Verónica que Lhe enxuga o rosto; 8 – Jesus continua a ser ajudado por Simão Cireneu por imposição da guarda com receio que o Divino venha a morrer antes de chegar ao Gólgota; a cena revela ainda dois soldados armados; 9 – Jesus cai pela primeira vez vergado ao peso da cruz e dos tormentos infligidos, vendo-se um soldado que puxando pela corda O tenta erguer e um outro que lhe bate; 10 – Jesus cai pela segunda vez voltando a ser aliviado da cruz por Simão, e puxado pelo soldado que o flagela com um chicote de cinco pontas reforçadas por nós ou esferas, na presença de um escolta armado de lança e espada; são seguidos pelas Santas Mulheres, a Sua Mãe Santíssima e Maria Madalena (?); 11 – Jesus consola as filhas de Jerusalém aqui representadas por três mulheres; o quadro mostra ainda dois soldados, um de guarda e outro a chuçar Jesus; 12 – Crucificação de Jesus; a cena revela Jesus deitado na cruz despojado das suas vestes – que já contém na parte superior a tabuleta mandada aí colocar por Pilatos com as iniciais INRI –, de braços abertos a ser nela pregado por três indivíduos que ostentam na mão direita um martelo levantado, sendo que dois deles vestem apenas um saio; no 76

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canto inferior direito do quadro uma personagem segura no antebraço esquerdo a cesta com os cravos; 13 – Jesus perdoa e morre na cruz, ladeado por Sua Santíssima Mãe e por sua prima Isabel (?); na cabeceira deste quadro foi o conjunto iconográfico datado, como se viu (1873); 14 – O Divino Corpo é descido da cruz pelo discípulo José de Aritmeia acompanhado por Nicodemos para ser sepultado, tendo-O a aguardar N.a S.ra Sua Mãe, a sua prima Isabel e Maria Madalena; 15 – Ressurreição de Jesus Cristo; três soldados armados de lanças, “perturbados no sono e alteados em convulsões nervosas”62 ao encontrarem o túmulo aberto; o quadro revela na parte superior central a Ascensão do Senhor. O Ciclo da Paixão é actualmente representado por 14 estações63 assim distribuídas (para o efeito consultámos e comparámos os Passos da igreja matriz de Vila Nova de Foz Côa): 1 – Jesus é condenado à morte; 2 – carrega a cruz às costas; 3 – cai pela primeira vez; 4 – encontro com sua Mãe; 5 – Simão ajuda-O a carregar a cruz; 6 – Verónica enxuga-Lhe o rosto; 7 – cai pela segunda vez; 8 – consola as filhas de Jerusalém; 9 – cai pela terceira vez; 10 – é despojado das suas vestes; 11 – é pregado na cruz; 12 – morre na cruz; Vitor Serrão, “Pintura. Ressureição de Cristo”, in Foz Côa Inventário e Memória – Programa de Inventário do Património Cultural Móvel das Paróquias do Arciprestado deVila Nova de Foz Côa, Coord. João Soalheiro, Porto, Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2000, p. 124. 63 João S. Clá Dias, Via Sacra, Lisboa, Associação dos Custódios de Maria, Lisboa, Fev. 2002. 62

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13 – é descido da cruz; 14 – é sepultado. Ora, como se verifica, o conjunto iconográfico do tecto da capela de Santa Cruz, revela algumas “nuances” relativamente aos catecismos actuais, pois para além de possuir mais uma estação, a introdução ao tema é mais longa, sendo Jesus condenado à morte só na quarta representação, carrega a cruz às costas apenas na quinta, a sexta está a mais, a sétima junta a 5.ª e a 6.ª actuais (a 5.ª actual ainda possuiu a oitava), a nona corresponde à 3.ª, a décima à 4.ª e 7.ª (não está representada a terceira queda), a undécima à 8.ª, a duodécima à 10.ª e 11.ª, a décima terceira à 12.ª e as décimas quarta e quinta às 13.ª e 14.ª. Na vizinha Espanha – como é sabido – a Semana Santa constitui um dos momentos mais festejados do calendário, existindo muitas Cofradías do Santo Ecce-Homo – algumas das quais se designavam anteriormente por Vera Cruz64 – ou do Dulce Nombre de Jesús Nazareno, que na cidade de León por exemplo, integra na Procesión de Los Pasos treze conjuntos escultóricos que correspondem a outras tantas estações do Ciclo da Paixão, a saber: La Oración del Huerto; El Prendimiento; La Flagelación; La Coronación; Ecce Homo; Nuestro Padre Jesús Nazareno; La Verónica; El Expolio; La Exaltación; La Crucificaxión; Cristo de la Agonía; San Juan; Dolorosa”65, podendo significar que aí se consideram apenas treze as estações da Via Sacra.

64 Antonio M. Díaz Carro, Historia de Bembibre, Bembibre [Bierzo, León], Ayuntamiento, 1993, 128. 65 Cofradía del Dulce Nombre de Jesús Nazareno, La Ronda. La Procesión de Los Pasos (Declarada de Interés Turístico Nacional), León, Junta de Castilla y León, s/d (200?).

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Pinturas do tecto da Capela: Via Sacra

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Nota: ao texto elaborado para este estudos foi suprimido o apĂŞndice documental (Setembro 2009).

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Uma figura Trindadeana e o motim de Lamego Carlos Seixas*

Introdução De entre a malta estudantil felgarense que frequentou, na Lusa Atenas, o ensino universitário no último quartel do século XIX1, quero trazer à colação a figura do António Sérgio Carneiro, que aí se formou em Direito, na perspectiva do estudante e, posteriormente, na de probo magistrado, aqui destacando, tão só, o seu papel de sindicante no inqué­rito aos acontecimentos ocorridos na cidade de Lamego, no dia 20/07/1915. Queremos, assim, prestar a nossa singela homenagem à figura do Dr. Ramiro Salgado, digno pedagogo, e do Colégio Campos Monteiro, reconhe­cendo o enorme papel que tal instituição teve na difícil arte de educar e de ensinar a juventude Moncorvense durante as cerca de quatro décadas que esteve em funcionamento.

Advogado; investigador. Sem contabilizar os alunos liceais, nesta altura, felgarenses também a estudar e formados em Coimbra, descortinamos sete estudantes das famílias Santiago, Salgado e Leal, o que revela um ratio interessante de frequência universitária. * 1

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1. O grilo António Sérgio Carneiro nasceu no Felgar, na Rua de Trás da Igreja, aos 23/09/1862, sendo filho de José Manuel Carneiro e Teresa de Jesus Carneiro, daí naturais e residentes, tendo vindo a falecer aos 27/12/1922, em Amarante, solteiro e onde era Magistrado Judicial. Conforme consulta ao respectivo assento, foi baptizado aos 18/10/1862 na igreja matriz do Felgar e foram seus padrinhos o morgado António de Carvalho e Castro Freire Cortez, viúvo, e sua filha D. Emília Augusta de Carvalho e Castro, de Torre Residência na Rua de Trás da Igreja de Moncorvo, representados no acto pelos procuradores e abastados proprietários felgarenses Dr. António Maria Esteves Freire Falcão (1818-1874) e sua mulher D. Teresa Luísa da Conceição Salgado Negrão (1843-1918). Aos 02/10/1879 matricula-se em Coimbra no 1.º ano da Faculdade de Direito, tendo aí concluído a sua formatura aos 14/06/1886, tendo ficado aprovado nemine discrepante. Durante a sua permanência em Coimbra, viu-se que os livros e demais calhamaços não eram a sua principal prioridade na vida estu­ dantil2, uma vez que, como se constata nos sete anos aí passados, outros afazeres se levantavam. Sabemos, isso sim, que foi colega de curso e de república daquele que veio a ser o grande escritor transmontano Trindade Coelho (1861-1908) natural do Mogadouro. Socorrendo-nos do seu livro que melhor relata a estúrdia estudantil, invocando a Coimbra À semelhança de outro seu conterrâneo felgarense e também célebre figura Trindadeana, o cara fatal, de alcunha e de seu verdadeiro nome Artur Pires (18621929) o qual, devido à boémia e espírito folgazão, nunca se chegou a formar, mas que se veio a evidenciar noutros campos: o jornalismo e a politica local. 2

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académica, vemos a seguinte referência: “(…) e então o António Sérgio Carneiro, a quem chamávamos o Grillo por ser miudinho e fallar muito (…) ”, ao descrever os seus colegas de república3. Com este ilustre escritor e antigo condiscípulo continuou o António Sérgio Carneiro a trocar numerosa correspon­ dência4, visto terem continuado a ser amigos e até colegas na magistratura, profissão pela qual ambos iriam enveredar. Mas, antes, acabado o curso académico, O Grilo, no acto da formatura António Sérgio Carneiro veio montar banca de Advogado aqui em Torre de Moncorvo, onde parece que também exerceu o professorado5, por certo no recém-criado colégio de Santo António. Entretanto, por 1887, também começou a desempenhar as funções de sub-delegado e, por duas vezes, de Administrador, – de 15/02/1889

E, em obediência à letra do fado da república, para ir aparelhado teria outro de igual porte: (…) também o Libaninho, porque sabia de cor os diálogos do Crime do Padre Amaro, em que entrava o Libaninho – e está agora delegado na Carrazeda. Cf. “In Illo Tempore”, 1ª ed., 1902, pp. 289-290. Ao grande investigador da obra Trindadeana, Hirondino P. Fernandes devemos a chamada de atenção para o pormenor curioso e particular do nosso protagonista, enquanto estudante em Coimbra, ter, afinal, 2 alcunhas (Grilo e Libaninho) situação que era assaz rara. Cf. Brigantia, vol. XXVII, 2007, p. 310. 4 Praticou um autêntico crime de lesa cultura quem se apropriou de todas estas cartas remetidas por Trindade Coelho ao seu amigo felgarense e delas fez sumiço sem se dignar dar conhecimento devido do seu conteúdo. Sabemos que do espólio de António Sérgio Carneiro constam dezenas de fotografias dos seus condiscípulos e amigos de Coimbra com dedicatória, e uma, entretanto também desaparecida, de Trindade Coelho, estudante em Coimbra, que a ofereceu com dedicatória ao seu amigo António Sérgio Carneiro. Igualmente ofereceu a este seu amigo o seu discurso sobre o Marquez de Pombal, proferido no comício anti-jesuítico, aos 07/05/1882, no Teatro Académico e que foi impresso. 5 Cf. Pe. Joaquim M. Rebelo,“ Um notável Felgarense ”, in jornal Mensageiro de Bragança, 04/08/1961, p. 3. 3

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a 21/01/1890 e de 24/12/1890 a 13/05/1891 – cargo que teve de interromper por ter sido nomeado Conservador em Mogadouro6. Contudo, em 1893, enveredou pela Magistratura, tendo sido nomeado delegado do Procurador Régio na ilha das Flores, donde foi transferido, no final deste ano, para Figueira de Castelo Rodrigo7, a que se seguiu Vila Flor, Carrazeda de Ansiães8, Albufeira e Alijó. Sendo, à altura, esta Magistratura vestibular da Magistratura Judicial, já após a implantação da República, foi o António Sérgio Carneiro promovido a Juiz. Começou as novas funções nas comarcas da ilha de São Jorge, Alijó, Moga­ douro, Valença e Amarante, cidade onde a morte o veio surpreender, tendo 60 anos e ainda no pleno exercício das suas funções de Presidente deste Tribunal e de jurisconsulto de mérito. O seu corpo está enterrado num jazigo, no cemitério de Torre de Moncorvo. O magistrado 2. O motim de Lamego Enquanto exercia as funções de Juiz de Direito na comarca de Mogadouro, em 1915, deu-se em Lamego um episódio ou um aconteci­ mento deveras interessante, de consequências altamente imprevisíveis, e que, no dizer de alguém, constituiu um dos 5 marcos históricos da região duriense9. Cf. Caderneta de Lembranças, ed. Amigos de Bragança, 1975, p. 10. Cf. Moncorvense, n.os 180 e 182, de Abril de 1895. 8 Cf. Moncorvense n. os 222, 226 e 254 de Março e Setembro de 1896. No Archeologo Português, vol. III, n.os 1 e 2 de Jan. e Fev. de 1897, descortinamos esta saborosa notícia: o Dr. Sérgio Carneiro, meritíssimo delegado na comarca de Carrazeda ofereceu para o Museu Municipal de Bragança uma linda photografia do dólmen doVilarinho, da referida comarca. 9 No dizer certeiro do Prof. Dr. Gaspar Martins Pereira, profundo conhecedor da história do Douro, e a par dos outros quatros marcos: a classificação do Douro como 6 7

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Uma figura Trindadeana e o motim de Lamego

Não é nosso objectivo fazer a história do motim de Lamego10, mas, tão só, limitarmo-nos a dar conhecimento da visão que o Dr. António Sérgio Carneiro teve do mesmo, na sua qualidade de sindicante e o que narrou num folheto de 26 páginas impresso e intitulado: “Relatorio dos Acontecimentos ocorridos na cidade de Lamego, no dia 20 de Julho de 1915, apresentado pelo sindicante, exmo. snr. Dr. António Sérgio Carneiro, Juiz de Direito da comarca do Mogadouro” e publicado no semanário lamecense, A Tribuna. Este original está, por oferta, na nossa posse e pertencia ao próprio sindicante, por lhe estar endereçado para Mogadouro e estampilhado com um selo de ½ cêntimo com a esfinge da República. O relatório, cujo conteúdo seguiremos de ora em diante, resultou da nomeação ministerial do sindicante pela Portaria de 10/08/1915 e é uma excelente peça jurídica que muito honra o seu autor, jurista de reconhecido mérito e magistrado douto, integro e honesto, que conse­ guiu fazer o seu inquérito com a única missão de investigar a verdade e com a absoluta convicção moral de que os manifestantes é que contribuíram, com desastroso resultado, para o eclodir deste motim11.

Património Mundial, aos 14/12/2001; a figura de D. Antónia Ferreira (1811-1896); a Quinta do Vesúvio enquanto guarda-avançada na conquista do Douro Superior; a construção da linha-férrea (1873-1887), obra estruturante que levou o comboio até Barca d’Alva. Cf. O Expresso de 08/07/2006. 10 A isso nos impede as limitações de tempo para a consulta dos periódicos nacionais, O Comércio do Porto e O Século, e dos de âmbito regional como O Independente Regoense e, mesmo, as visões antagónicas do politicamente sucedido perspectivadas nos jornais locais, A Tribuna e A Fraternidade, ambos de Lamego. Contudo, o artigo de Carla Sequeira, Da missão de Alijó ao motim de Lamego, in “Douro – Estudos e Documentos”, n.º 21, Porto, GEHVID, 2006, faz uma excelente síntese do sucedido. 11 Este termo nunca é utilizado no relatório pelo juiz sindicante. Usamo-lo por força da tradição e por uma questão de simplificação, embora reconheçamos que houve um tumulto popular com doze mortos e dezanove feridos, mas não se registaram incêndios aos edifícios públicos, à semelhança do sucedido anteriormente em varias localidades limítrofes. Sobre as diferenças, do ponto de vista militar, entre o motim, o levantamento, o pronunciamento, as insubordinações, o golpe de estado, ver Vasco Pulido Valente, Os militares e a politica (1820-1856), INCM, 1997, pp. 9.19. Número quatro

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Relatório, página de rosto

Independentemente de tal constatação, certo é que as conclusões do relatório logo sofreram acérrimas críticas, vindas fundamentalmente da parte da oposição à Câmara de Lamego, com maioria do Partido Democrático, e foi logo acoimado de exagerado pendor político. Ora, tal visão é muito redutora da realidade em si, esquecendo uma factualidade extremamente importante para a compreensão do sucedido, ou seja, os antecedentes: a) A nível nacional, o ambiente politico estava, nesta altura, demasiado tenso. Tinha ocorrido a revolução de 14 de Maio 86

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de 1915 – a mais mortífera da história da República – e com as eleições gerais de 13 de Junho os democráticos passaram a dominar todas as instituições politicas dirigentes. Qualquer tentativa de alteração à ordem estabelecida pelos democráticos, seria duramente reprimida pelos sequazes do PRP, que costumavam justificar-se alegando a ameaça putativa do papão da restauração da Monarquia ou a subjugação doentia do povo à superstição católica12. b) A nível regional, aos brandos protestos e pacificas reclamações iniciais, manifestados em comícios e reuniões levados a cabo por instituições – Câmaras Municipais e Associações – contra o Tratado de Comércio entre Portugal e a Inglaterra, de meados de 1914, em especial, contra a questão duriense de aceitação deste Reino como vinho do Porto ou da denominação de origem Porto para vinhos das outras regiões do País, sucederam-se formas mais violentas de pressão e exaltados protestos. Estes actos foram dirigidos por alguns destacados lavradores durienses com algum apoio popular e que descambaram, até, em alterações graves à ordem instalada ou em verdadeiros tumultos populares com destruições e incêndio de várias repartições públicas, um pouco por toda a região do Douro. c) Ora, aos 19 de Julho, já constava em Lamego que os povos de Cambres, Valdigem, Figueira e Sande, queriam vir à cidade em grande número por causa da questão duriense, dizendo-se que vinham queimar a casa da Câmara e as repartições públicas, à semelhança do já sucedido na Régua e em Armamar, e se a questão duriense não ficasse resolvida “pelo menos lucravam em não pagarem contribuições durante algum tempo ”. Sobre este período muito conturbado e de enorme tensão da história nacional, ver o excelente estudo de Vasco Pulido Valente, Ensaios de História e de Política, Aletheia, 2009, de Vasco Pulido Valente, pp. 86-103, onde alude (…) ao clima de histeria em que se assassinavam e espancavam impunemente pessoas pelas ruas. 12

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Aliás, os regedores destas aldeias já tinham, por um lado, avisado o Administrador da cidade para essa possibilidade, o que o levou a requisitar a força militar precisa, e, por outro lado, alertavam que os dirigentes dos populares eram todos reconhecidamente monárquicos, em especial, alguns padres desafectos à República que também, montados a cavalo, lideravam as hostes dos seus paroquianos. d) A forma como a turba popular entrou na cidade, armados, exaltados e a dar morras ao sul e vivas à Monarquia e, tendo em conta os precedentes dos outros concelhos, era, dizíamos, uma forma que não era própria de quem vem ordeiramente a pedir justiça, parecendo que o seu intuito era tomar conta e apossar-se da cidade, para depois nela mandar. De qualquer modo, a força militar foi distribuída de forma a tomar todas as embocaduras das ruas que davam acesso aos Paços do Concelho, impedindo o livre acesso ou o cometimento de excessos. e) De igual modo, não obstante as providências tomada pela autoridade administrativa, os elementos republicanos civis da cidade, justamente alarmados pela manifestação popular, e desconfiando dela, espontaneamente se prontificaram a defender a República e a ordem se fosse preciso. f) Com as forças militares, compostas de 78 praças sendo em grande número recrutas, assim instaladas e impedindo os populares que chegassem aos Paços do Concelho, parte do povo debandou para o castelo, onde estava a cadeia, para tentarem libertar os presos e do alto do castelo, da torre de Almacave e da Sé, tocaram os sinos a rebate, a fogo e afinados ou como sabiam e como calhou. Tudo isto conjugado com a ingestão de vinho por alguns populares, facultado nos armazéns de alguns dirigentes, criou um ambiente de enorme exaltação ou, como diz o sindicante, de autêntico terror. 88

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g) Contudo, o Administrador permitiu que uma comissão dos mesmos populares, fosse conferenciar com ele e com a Comissão Executiva da Câmara Municipal. De tal conferência nada resultou devido à exaltação dos intervenientes, tendo os membros da comissão, assegurado que a manifestação seria ordeira e não politica, tendo-se esforçado para conter o povo na ordem e garantido, sob palavra de honra, que o povo só o que queria era passar e que não faria mal algum. O Administrador autorizou que o povo passasse pela frente dos Paços do Concelho e mandou retirar a força militar que na rua Marquez de Pombal impedia a marcha do povo. Só que este em vez de passar, estacionou em frente da Casa da Câmara. Esta multidão, de trezentos ou mais populares, aglome­ rada em frente ao portão de entrada da Câmara Municipal, começou a insultar a tropa e pretendia entrar no edifício, apesar de neste estar a decorrer uma reunião entre a comissão dos manifestantes e a comissão executiva da Câmara Municipal. h) A situação era deveras explosiva: a força militar estava no pateo para impedir a entrada ao povo, e este estava em grande número em frente do portão para entrar, afim de deitar fogo a tudo. E tão convicto estava o sindicante desta situação, que logo peremptoriamente acrescentou: Nenhuma dúvida tenho de que a intenção dos populares era essa, apesar de frisar que nem todos os populares quisessem tal, uma vez que um grande número estava em atitude ordeira, só outros queriam decididamente, por sua conta e risco, invadir o edifício e incendiar as repartições. A tentativa de incêndio era obstaculizada pela força militar que estava no pátio a impedir o acesso e pelo elemento civil que estava nas varandas do edifício em auxilio daquela. O momento oportuno para o assalto deu-se quando as praças estavam a comer o rancho, tendo os populares, alguns munidos de foices e machados, entrado de repelão, o que levou a força militar, sem esperar por ordens nem voz de fogo, a responder a tiro, que foram em número de 99 quasi todos Número quatro

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por alto, pois que se as pontarias fossem todas baixas, seria enorme o número da vitimas. Igualmente, neste momento, do jardim fronteiro e da retaguarda do edifício houve disparos com tiros de pistola automática ou revólver que não pertenciam aos militares, o que levou alguns soldados a ripostar sobre os populares ficando alguns mortos. Para o sindicante, o conflito foi provocado pelos populares. Os mili­ tares ao dispararem evitavam ser vítimas da multidão e a serem destruídas as repartições.Tanto acreditou em tal que não se coibiu de escrever que, só por isso, os soldados mereciam ser louvados. Tudo isto aconteceu num espaço de dois a três minutos apenas. Apesar da sua gravidade, os antecedentes do motim de 20 de Julho de 1915 não fariam crer que se atingisse um resultado tão doloroso de doze mortos. Não nos parece correcto aludir ao sucedido reduzindo-o à factualidade de que o povo foi atacado, como alguma imprensa e alguma ficção quis fazer crer. As conclusões do sindicante Dr. António Sérgio Carneiro, Juiz do Mogadouro, no inquérito por si elaborado, após ter efectuado as diligências que considerou necessárias ao apuramento da verdade, ilibam a força militar por esta ter impedido o incêndio do edifício e ter feito uso legitimo das armas, e os elementos republicanos civis, que, cooperaram e auxiliaram aquela, não tiveram fim criminoso e agiram em legitima defesa. Responsabiliza é os populares pelo sucedido, visto que a responsabilidade derivada dos acontecimentos pertence evidentemente aqueles dentre os populares que agrediram a força militar, e que agrediram os elementos civis, sem que nem estes, nem aquela, provocassem ou dessem motivo a qualquer agressão. Curiosamente, parece que no dia da tragédia, o Governo já teria cedido. Assim sendo, e visto que o mal já tinha acontecido, restava à memória colectiva eleger e recordar os seus mártires e heróis.

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O Sufrágio Feminino em Portugal (Cronologia) Fina d’Armada*

Em Portugal, entre a data em que se falou no “Parla­ mento”, pela primeira vez, no sufrágio feminino e a sua plena concretização, mediaram 154 anos! Eis as datas mais significativas: 1820 – Primeiras eleições portuguesas, eleitores masculinos. 1822 – O deputado pelo Brasil, Dr. Borges Barros, propôs, nas Cortes Constituintes, que se desse direito de voto às mães de seis filhos, porque “ninguém dá mais a um País do que quem lhe dá seus cidadãos”. Logo o deputado Borges Carneiro opinou: “Trata-se do exercício dum direito político e deles são as mulheres incapazes”. E as Cortes recusaram discutir o assunto. 1868 – Fundação do 1.° jornal feminista da Europa, AVoz Feminina, em que se defendem direitos políticos para a mulher iguais aos do homem. O jornal foi mal recebido pela sociedade lisboeta e, no ano seguinte, mudou de nome. *

Historiadora. Número quatro

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Fina d’Armada

1905 – Publicação do livro feminista Às Mulheres Portuguesas, da autoria de Ana de Castro Osório, onde se defende o voto para as mulheres. 1910 – Implantação da República. As republicanas eram todas sufragistas. 1911 – A médica Carolina Beatriz Ângelo vota nas eleições para a Assembleia Consti­tuinte, em Arroios, Lisboa, em 28 de Maio, invocando a Ana de Castro Osório sua qualidade de chefe de família (era viúva e mãe). Fora-lhe permi­ tido recensear-se devido à decisão judicial do juiz João Baptista de Castro, pai de Ana de Castro Osório. Foi a primeira eleitora na Europa dos Doze e no mundo latino. Carolina Beatriz Ângelo

1913 – 2 de Junho – o deputado Jacinto Nunes entrega uma moção à Câmara Legislativa propondo uma alteração ao Código eleitoral com o alargamento do sufrágio aos analfabetos e às mulheres. «Se, em harmonia com o artigo 74.° da Constituição, são cidadãos, para os efeitos dos direitos políticos, todos os que estejam no gozo dos direitos civis, às mulheres deve ser concedido o direito de voto». Não teve repercussão nos outros mem­­bros. Carolina Beatriz Ângelo e Ana de Castro Osório, no dia do 1.º voto feminino (O Século, 29.05.1911)

1913 – Atribuição do direito de voto explicitamente aos cidadãos do sexo masculino, que saibam ler e escrever. – Lei n.º 3, de 3 de Julho de 1913. 92

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O Sufrágio Feminino em Portugal

1914 – Criação do “Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas” que irá lutar sobretudo pelo direito de voto. Filiou-se mais tarde na Aliança Internacional para o Sufrágio Feminino. 1919 – “As mulheres comerciantes, matri­ culadas como tais no registo comercial, são eleito­ ras e elegíveis para o júri comercial” – decreto n.° 5 647, de 10 de Maio de1919. 1922 – Criação da Comissão do Sufrágio, Adelaide Cabete dentro do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Foi presidido por Fabia Arez, depois por Fabia Ochoa (1924), Victo­ria Pais Madeira (1925), Aurora de Castro Gouveia (1926), Sara Beirão (1927) e Elina Guimarães (1929). 1931 – Inclusão de algumas por­tuguesas, pela primeira vez, en­ tre os cidadãos eleitores – Decreto com força de lei n.º 19 694, de 5 de Maio de 1931. Para as Juntas de Freguesia, podiam votar as chefes de família – viúvas, divorciadas ou judi­cialmente separadas, com família própria, e as casadas cujos maridos estivessem ausentes nas colónias ou Sátira ao voto feminino, 1911. Para as no estrangeiro. Mas não votavam se mentes da época, os homens seriam o vivessem em “comunhão de mesa único assunto das deputadas. e habitação com a família de seus parentes até ao 3.º grau por consanguinidade ou afinidade”. Câmaras Municipais e eleições legislativas – Atribuição do direito de voto às diplomadas com cursos superiores ou secundários, “comprovado por diploma respectivo”. A nível nacional não votaram, porque não houve eleições. Número quatro

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Fina d’Armada

1933 – 19 de Março – Algumas votam pela primeira vez a nível nacional. Foi no Plebiscito Constitucional aprovando a Consti­ tuição de 1933.

Aurora de Castro Gouveia (Joaquim Vieira, “Crónica em imagens”)

1933 – No decreto-lei n.° 23 406, de 27 de Dezembro, para a Junta de Freguesia, acrescentam-se “as solteiras maiores ou emancipadas, com família própria e re­co­­­nhecida idoneidade moral” se não vive­rem “em comunhão de mesa e habitação com a família de seus parentes”. Abrangia um número redu­zido, porque não podiam ter filhos (idonei­ dade moral) e tinham de sustentar ascendentes ou colaterias.

1933 – Assembleia Nacional e Presidente da República – Após a apro­ vação da Constituição de 1933 e pelo mesmo decreto-lei n.° 23 406, de 27 de Dezembro, foi concedido direito de voto para AN e PR às cidadãs maiores “com curso es­ pe­cial, secundário ou su­ perior, comprovado por diploma respectivo”. As As mulheres votam a 1.ª vez, a nível nacional, para o Plebiscito Constitucional, 1933. mesmas podem ainda (Joaquim Vieira, “Crónica em imagens”) votar para as “Juntas Gerais dos distritos Autónomos de Funchal, Ponta Delgada e Angra de Heroísmo e conselhos de província”. Aos homens exige-se apenas que saibam ler e escrever. 94

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O Sufrágio Feminino em Portugal

Domitila de Carvalho

1934 – 16 de Dezembro – Primeiras mulheres eleitas deputadas para a 1.ª Assembleia Nacional do Estado Novo – Maria Guardiola, Domitila de Carvalho e Maria Cândida Parreira. Todas tinham cursos supe­riores.A 1.ª sessão fun­cio­- nou a 12 de Janeiro de 1935.

Maria Guardiola

1946 – 16 de Fevereiro – Uma comissão de mulheres do Conselho Nacional entrega ao Presidente da Assembleia Nacional uma exposição onde se exprime a urgência de promulgar uma nova lei eleitoral que conceda o voto feminino nas mesmas condições do voto masculino. Maria Cândida Parreira

1946 – 26 de Fevereiro – Discussão na Assembleia de novo recenseamento eleitoral. Nessa discussão, três deputadas negaram-se a ratificar a lei sem emendas às cláusulas referentes ao direito de voto feminino.

Maria Lamas – presidente (a última) do CNMP de 1945 até Salazar o encerrar em 1947

1946 – 28 de Maio – Alargamento da lei eleitoral a maior número de mulheres, mas exigindo-se mais requisitos para as eleitoras que para os eleitores da Assembleia Nacional e para a Presidência da República, e mais às casadas que às solteiras (Lei n.º 2 015). Mulheres – maiores ou emancipadas, com curso geral dos liceus, do magistério primário, das Belas Artes, do Con­ser­vatório Nacional ou do Conservatório de Número quatro

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Fina d’Armada

Música do Porto, dos institutos industriais e comerciais (art.° 3.º); as chefes de família (viúvas, divorciadas, judicialmente separadas ou solteiras) que soubessem ler e escrever ou pagassem ao Estado quantia não inferior a 100$00 por impostos directos (art.° 4.°); as casadas que soubessem ler e escrever ou pagassem contribuição predial não inferior a 200$00 (art.º 5.°). Homens – eram eleitores os que soubessem ler e escrever ou pagassem ao Estado 100$00. 1966 – Aprovação do “Pacto dos Direitos Cívicos e Políticos das Nações Unidas”, estabelecendo a igualdade dos sexos relativamente aos direitos políticos. Isto terá reflexos em Portugal dois anos depois. 1968 – Lei n.° 2 137, de 26 de Dezembro de 1968, que determina a igualdade de direitos políticos do homem e da mulher, seja qual for o seu estado civil. Quer dizer, as mulheres adquirem o direito de voto para a Assembleia Nacional, mas para as Juntas de Freguesia continuam só a votar os chefes de família. Foi assim até 1976, sendo «possível a amante de um homem casado ter o voto negado à esposa legítima» – gracejava Elina Guimarães.

Elina Guimarães

1974 – 25 de Abril – revolução que restaurará a democracia. 1974 – Abolição de todas as desigualdades baseadas no sexo relativamente à capacidade eleitoral. – Decreto-Lei n.° 621/A/74, de 15 de Novembro. 1976 – 12 de Dezembro – Com a entrada em vigor da nova Constituição Portuguesa, os órgãos autárquicos passam a ser eleitos por 96

Revista Campos Monteiro


O Sufrágio Feminino em Portugal

sufrágio directo. As mulheres casadas (e outras que não eram chefes de família) votam e podem ser eleitas efectivamente para as autarquias, pela primeira vez. As portuguesas votam igualmente, ao fim de 154 anos, após um deputado ter proposto o direito de voto para as mães de 6 filhos!

Beatriz Pinheiro

Maria Veleda

Na província, também existiram famosas republicanas sufragistas. Beatriz Pinheiro era de Viseu e Maria Veleda de Faro.

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Fina d’Armada

Bibliografia seleccionada ESTEVES, João, As Origens do Sufragismo Português, Lisboa, Bizâncio, 1998. GORJÃO, Vanda, A Reivindicação doVoto no Programa do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (1914-1947), CIDM, 1994. GUIMARÃES, Elina, Mulheres Portuguesas Ontem e Hoje, Lisboa, CCF, 1986. Jornal A Capital, 29 de Abril de 1911 (Sentença favorável ao recensea­mento de Carolina Beatriz Ângelo dada pelo juiz João Baptista de Castro). Jornal O Século, 29 de Maio de 1911. Jornal de Notícias, Porto, 30 de Maio de 1911. Jornal Diário de Lisboa, 22 de Novembro de 1934. LAMAS, Rosmarie Wank-Nolasco, Mulheres Para além do seu Tempo, Bertrand, 1995. MARQUES, A. H. Oliveira, História de Portugal, I, Palas Editores, 8.ª ed., 1978. NUNES, Jacinto, “Discurso”, in “Diário das Sessões da Câmara dos Deputados”, 6 de Janeiro de 1913, in A Mulher Portuguesa, n.º 5, Fevereiro de 1913, p. 39. OLIM, Ivone e MARQUES, Margarida, Luta de Mulheres peloVoto, Lisboa, Ed. Mulheres, 1979. SILVA, Maria Regina Tavares, Carolina Beatriz Ângelo, Lisboa, CIDM, 2005. SOUSA, Maria Reynolds, in “As Primeiras Deputadas Portuguesas”, A Mulher na Sociedade Portuguesa, Actas, vol. II do colóquio de 20-22 de Março de 1985, Coimbra, Faculdade de Letras, 1986, pp. 427-444. VÁRIOS, História da República, Lisboa, ed. O Século, 1960.

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O rural e o urbano no Douro vinhateiro* Gaspar Martins Pereira**

1 – À primeira vista, o tema desta breve reflexão pode parecer, hoje, ultrapassado. De facto, as grandes referências teóricas sobre a dicotomia rural/urbano datam dos anos sessenta e mesmo as questões das novas ruralidades ou novas urbanidades, tão em voga há pouco mais de duas décadas, parecem, nos nossos dias, um pouco fora de moda, no plano académico. Isso tem a ver, em grande medida, com a evolução rápida da sociedade contemporânea, em especial da sociedade europeia, em que as transformações das tecnologias, da mobilidade e dos sistemas de relações do mundo rural foram bem mais precoces que no caso português. Basta referir, por exemplo, que, ainda em 1970, a percentagem de população urbana portuguesa, apesar de ter crescido bastante na década anterior, era apenas de 29%, muito longe da média europeia, que já andava nos 63%1. Além disso, a tendência para a crescente adopção de hábitos Mais do que nunca, na sequência da recente formalização do eixo urbano Vila Real-Régua-Lamego na Associação «Douro Alliance», parece-me oportuna a reflexão sobre a relação entre o rural e o urbano na região do Douro. O modesto contributo aqui publicado retoma, em grande parte, o texto-base de uma conferência proferida em Alijó, em 19 de Julho de 2003, intitulada «O rural e o urbano no Douro vinhateiro». ** Professor catedrático do Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Coordenador científico do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memorio», unidade de I&D financiada pela Fundação Ciência e Tecnologia. 1 Paul Bairoch, De Jéricho à Mexico. Villes et économie dans l’ histoire, Paris, Gallimard, 1985, p. 288. *

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Gaspar Martins Pereira

urbanos no mundo rural, com a estandardização de modos de vida, de tempos e de espaços-tempo, conduziu a um aparente apagamento das distinções teóricas tradicionais. Assim, pode falar-se hoje em «cidade não urbanizada» e em «campo urbanizado»2. 2 – Nos últimos quarenta anos, a percentagem de população urbana portuguesa passou de menos de 30% para mais de 70%. Mas esta urbanização tardia, rápida e desordenada da população portuguesa não criou, de facto, um sistema de cidades, antes acentuou a condição «assimétrica, desequilibrada e ‘invertebrada’» do fenómeno urbano, como salientou o sociólogo Vítor Matias Ferreira3. Mais do que de urbanização deve falar-se, de resto, de «suburbanização», se tivermos em conta que as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, onde pesam sobretudo os subúrbios, somam hoje quase metade do total da população portuguesa. Além disso, acentuou-se a litoralização demográfica, com 85% da população a viver na faixa costeira. Às assimetrias na ocupação territorial do país, agravando a tradicional bipolarização litoral/interior, junta-se, em especial no interior, a falta de cidades médias4, capazes de estruturar uma rede urbana eficaz e representativa dos diversos contextos regionais, quer em termos económicos e sociais quer, especialmente, em termos culturais. Tendo-se processado mais em quantidade do que em qualidade, o fenómeno da urbanização nem sempre foi acompanhado por um processo sócio-cultural de construção de urbanidade. Esta urbanização tardia, rápida e desordenada não contribuiu para uma melhor organização territorial, mas, antes, para agravar as já profundas assimetrias regionais, para o desperdício de potencialidades e para a falta de eficácia das cidades na difusão de dinâmicas colectivas de inovação e desenvolvimento. É que, sobretudo no Portugal interior, Jean Rémy, Liliane Voyé, A Cidade: rumo a uma nova definição, Porto, Afrontamento, 1992, p. 17. 3 Vítor Matias Ferreira, “Portugal XXI – da urbanização ao reencontro da urbanidade”, in Portugal na Transição do Milénio – Actas, Lisboa, Ed. Fim de Século, 1998, p. 249. 4 Idem, ibidem, p. 254 2

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O rural e o urbano no Douro vinhateiro

as mudanças na ruralidade, desde os anos sessenta para cá, foram marcadas por processos específicos que convém não desprezar, já que determinaram distorções quer no meio rural quer no meio urbano, ambos demasiado frágeis. Os fenómenos de emigração e desertificação das aldeias, se quebraram a ruralidade dominante, não introduziram dinâmicas urbanas com capacidade para empreender processos de reestruturação territorial. E, por outro lado, as políticas regionais seguidas não conseguiram introduzir ou estimular factores de inversão das tendências estruturais, quer ao nível da retenção do potencial humano, quer ao nível do aproveitamento dos recursos, quer ao nível do desenvolvimento sócio-cultural. 3 – A par de factores históricos, a evolução recente revela sobre­tudo a falência dos princípios orientadores do planeamento regional do Estado central, em especial da adopção do conceito de «regiões polarizadas» na divisão territorial do País, esperando ingenuamente que os pólos de desenvolvimento litoral induzissem ao desenvolvimento das suas áreas interiores de influência, através do princípio da «interdepen­ dência». Aconteceu precisamente o contrário. O desenvolvimento das zonas litorais e, em especial, das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto não só não arrastou ao desenvolvimento contínuo do interior como atraiu crescentes recursos humanos (sobretudo população activa e jovem) e recursos materiais das áreas mais pobres para as áreas mais ricas. Que esta lógica continua a presidir às políticas regionais prova-o, por exemplo o estudo produzido, em 2006, pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte para orientar as prioridades do QREN5. Esse documento, sob muitos aspectos lúcido nos diagnósticos, assumindo, por exemplo, «a ineficácia dos investimentos apoiados pelas ajudas comunitárias na reestruturação do tecido produtivo regional e o panorama desolador das qualificações escolares e profissionais dos

NORTE 2015. Competitividade e Desenvolvimento – UmaVisão Estratégica, Porto, CCDRN, 2006. 5

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Gaspar Martins Pereira

cidadãos nortenhos»6, ou que «o êxodo agrícola e rural pode chegar a um extremo, na ausência de políticas activas, que pode originar uma tal degradação do capital social que impeça a mobilização do capital natural (sobretudo do interior da Região) para fins produtivos»7, acaba por traçar uma estratégia de desenvolvimento regional, a aplicar pelo QREN, que revela bem a perspectiva que muitos elementos das elites portuenses têm sobre o Norte. As 3 prioridades de intervenção aí definidas, com a luminosa hierarquia: «I – NORTE ITEC – Promover a Intensificação Tecnológica da Base Produtiva Regional; II – NORTE SCORE – Asse­ gu­rar, sustentadamente, a Competitividade Regional; III – Norte EQUALITY – Promover a Inclusão Social e Territorial», significam, simplesmente, que, acima de tudo, se procurará o desenvolvimento metropolitano do Porto e dos centros litorais. Como aí se diz, concentrar os investimentos na primeira prioridade (traduzida, também, paradigmaticamente, por «Norte tecno-(metro)politano», «com centro no Porto e com um raio de 60-80 km»8) «não significa abandonar todas as outras linhas de intervenção. Significa que terão de ser concentrados na área de investimento prioritária os recursos indispensáveis à sua realização com um mínimo de expectativa de êxito; significa que outras áreas de investimento poderão ganhar ou perder prioridade em função do grau de complementaridade ou de sinergia que se mostrem capazes de estabelecer com a área de investimento prioritária; significa que a realização de outros objectivos poderá ter de ser re-calendarizada, adiada mas, quem sabe, mais tarde reforçada, caso a área entretanto escolhida como prioritária venha a revelar-se bem sucedida; significa, enfim, que tudo o resto terá que ser feito na medida em que os recursos indispensáveis para a concretização da área prioritária não sejam postos em causa»9. Os da segunda prioridade, o tal «coração do Norte», continuarão a bater, essencialmente, no Porto e no litoral, já que se destinam, como aí se diz, a «acções que relevem de maiores complementaridades e sinergias 6 7 8 9

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Idem, ibidem, p. 12. Idem, ibidem, p. 97. Idem, ibidem, p. 109. Idem, ibidem, p. 115. Revista Campos Monteiro


O rural e o urbano no Douro vinhateiro

com a primeira prioridade»10. Finalmente, a coesão territorial e a correcção das desigualdades fica para terceiro plano. Se sobrar alguma coisa. O tal «Norte em rede», de um afirmado modelo policêntrico, percebe-se logo, é uma miragem. Lê-se e não se acredita: «Por fim e na medida dos recursos disponíveis, pensamos que continua a haver margem de manobra para outros investimentos menos relacionados com a prioridade dada à intensificação tecnológica e que se prendem, mais, com a promoção de uma sociedade e de um território inclusivos (Prioridade Estratégica III – Norte EQUALITY – Promover a Inclusão Social e Territorial). Importa, neste âmbito, promover a igualdade de oportunidades e a melhoria da equidade dos cidadãos no acesso aos principais bens e serviços públicos. Por outro lado, como referimos, do ponto de vista territorial, o acréscimo de competitividade da economia da Região tenderá a trazer mais concentração espacial e a atirar mais territórios para a exclusão. Apostar neste ou naquele sector de actividades económicas tem consequências em termos territoriais, pelo que se impõe definir para cada território as suas oportunidades de desenvolvimento»11. Ou seja, haverá umas migalhas para o interior, essencialmente para os sectores que se articularem melhor com a dita «área de investimento prioritária». O actual modelo de orientação da política regional para o Norte do País prevê, assim, maior «concentração espacial» e maiores desigualdades territoriais. 4 – Neste domínio, os múltiplos estudos, portugueses e estrangeiros, sobre o que se passou nestas últimas duas décadas e pouco, que coincidiram com a aplicação de biliões de contos de fundos comunitários para promover o desenvolvimento regional, revelam bem a incapacidade de o Estado português se libertar das tendências centralistas e assumir princípios de justiça distributiva, racionalidade e eficácia no desenvolvi­ mento harmonioso do todo nacional. Basta referir, por exemplo, que, no primeiro Quadro Comunitário de Apoio, 72% das verbas do FEDER 10 11

Idem, ibidem, p. 115. Idem, ibidem, p. 116. Número quatro

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Gaspar Martins Pereira

foram utilizadas no litoral, grande parte das quais em Lisboa e Porto12. E, nos QCA seguintes, não só não se inverteu completamente essa tendência perversa, como se utilizou o argumento de utilização de algumas verbas do QCA no interior para justificar a menor afectação de verbas do OE para a realização de investimentos públicos nacionais necessários nessas regiões. A isto haveria de juntar outros indicadores, bem sintomáticos da acção prejudicial do Estado central no desenvol­ vimento equilibrado do território nacional. Bastaria referir o caso dos investimentos directos estrangeiros, a maior parte deles promovidos pelo ICEP e por instâncias do Estado central. A esmagadora maioria dos investimentos estrangeiros em Portugal situaram-se, entre 1991 e 1995, no distrito de Lisboa (perto de 76%) e, em segundo plano, no distrito do Porto (10%) 13. Os «índices de desenvolvimento relativo», utilizados na análise do território português por Jean-Paul Carrière, em 1998, são bem eluci­ dativos. O Douro, tal como Trás-os-Montes e boa parte das regiões do Interior, lá aparece com índices inferiores a 30%, bem longe dos 72% da Grande Lisboa e dos 55% do Grande Porto14. E, em termos demográficos, o facto de o Douro apresentar ainda uma perda de mais de 8% da sua população, entre 1991 e 2001, é bem esclarecedor do falhanço total das políticas ditas de desenvolvimento regional promovidas pelo Estado central. No caso português, não parece legítimo criar expectativas de altera­ção sensível das disparidades regionais, nem sequer dos fluxos de investimentos ou de pessoas, sem políticas voluntaristas de compensação Jean-Pau Carrière, “La mise en oeuvre de la politique régionale communau­ taire renforce-t-elle la nécessité du pouvoir regional au Portugal?”, in III Jornadas de Estudo Norte de Portugal-Aquitânia – Actas: «O Poder Regional: Mitos e Realidades», Porto, Universidade do Porto/Centro de Estudos do Norte de Portugal–Aquitânia, 1996, p. 72. 13 Jean-Paul Carrière, “Essai de mesure et de représentation des disparités régionales. Application au cas portugais”, in François Guichard (org.), Articulation des Territoires dans la Péninsule Ibérique, Bordéus, Presses Universitaires de Bordeaux, 2001, p. 392. 14 Idem, ibidem, p. 502. 12

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O rural e o urbano no Douro vinhateiro

das desigualdades e de reorganização territorial. O litoral e, sobretudo, a área metropolitana de Lisboa e, em menor grau, a do Porto continuarão a usufruir de vantagens comparativas inegáveis, acumuladas durante séculos e significativamente ampliadas nas últimas décadas. Além disso, a difusão de uma cultura de «urbanidade»15, novos padrões de consumo, a elevação da escolaridade, a desvalorização da agricultura e a terciarização, as novas estruturas viárias e meios de comunicação conduzirão, directamente, ao reforço do papel polarizador negativo das cidades do litoral. E o mesmo efeito terá, a meu ver, qualquer modelo de regionalização baseado nas actuais regiões-plano das CCDRs. Como escreveu Jean- -Paul Charrière, «criar colectividades territoriais dotadas de um poder regional a partir das actuais regiões-plano conduziria provavelmente ao agravamento das assimetrias regionais, em razão da própria dinâmica do litoral»16. 5 – A alteração desta tendência estrutural de litoralização do país e de enfraquecimento contínuo do mundo rural exige, todos o sabem, medidas políticas voluntaristas que nenhum governo tem tido a coragem de tomar, nem sequer em nome da coesão nacional. Tais políticas passam, necessariamente, pelo reforço das cidades (e da rede urbana) do interior, dotando-as de infraestruturas de base, capazes de as tornar atractivas para os investimentos e para as pessoas que aí vivem. Mas exigem também estratégias específicas de defesa das identidades regionais, desde os incentivos aos investimentos produtivos que apresentem vantagens comparativas até à criação de infraestruturas agroindustriais, à reestruturação agroflorestal, a políticas de preservação do património natural e cultural.

No sentido em que refereVítor Matias Ferreira, “Portugal XXI: da urbanização ao reencontro da urbanidade?”, op. cit, pp. 265-268. 16 Jean-Paul Carrière, La mise en oeuvre de la politique régionale communautaire renforce-t-elle la nécessité du pouvoir regional au Portugal?, op. cit., pp. 76-77. 15

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6 – Todos estes aspectos, que poderiam referir-se a qualquer região do interior do país, são bem visíveis na região duriense. Porém, no caso do Douro, a abordagem da questão rural é ainda mais complexa. Por múltiplas razões. Historicamente, o Douro foi, é e continuará a ser uma região de ruralidade dominante, em que os principais factores de identidade se jogam na actividade vitivinícola. Mas essa ruralidade específica não significa, ao contrário de outros contextos rurais, fechamento. Dada a precoce internacionalização do produto principal da sua actividade rural, o Douro constituiu um espaço aberto a intensos contactos, trocas culturais e influências exteriores. Por outro lado, as características de povoamento no vale vinhateiro e a relação intensa e privilegiada com o Porto determinaram, desde há mais de duzentos anos, uma grande fragilidade das estruturas urbanas da região. Ao longo do último meio século, o Douro perdeu continuamente população. Alguns concelhos têm já menos de metade da população do que a que tinham antes do início do êxodo emigratório dos anos sessenta. Causa e efeito de progressos técnicos na viticultura, a grande quebra da população atingiu sobretudo as aldeias. Nas últimas décadas, verificou-se mesmo um crescimento, embora tímido, da população de algumas cidades e vilas da região. Mas esse processo de urbanização, ainda em curso, não está a contribuir para a necessária reestruturação e revitalização do tecido rural duriense, nem para a defesa do seu património ambiental e cultural, nem para o aumento generalizado da qualidade de vida das populações das aldeias. 7 – Creio que, no caso do Douro, o «urbano» terá, mais tarde ou mais cedo, de ser entendido como indissociável do território mais abran­ gente, que só tem sentido se souber conjugar a actividade vitivinícola com outras, tradicionais ou modernas, que sejam capazes de garantir a autenticidade, a integridade e a qualidade da vida dos seus habitantes, das actividades económicas e do ambiente natural e cultural. Não haverá crescimento consistente e harmonioso das vilas e cidades da região se o desenvolvimento não atingir todo o território. Ou seja, falar de cidade aqui tem a ver, mais que em qualquer outra região, com centros de decisão 106

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O rural e o urbano no Douro vinhateiro

e organização de um sistema de relações, desde logo com as aldeias e a actividade agrícola, única grande fonte de criação de riqueza e identidade. Mesmo outras actividades emergentes, em especial o turismo, só terão verdadeiramente futuro se se apoiarem no mundo rural revitalizado por um indispensável desenvolvimento sócio-cultural. O modo como se conjuga a urbanidade e a ruralidade é, por isso, aqui, fundamental. Penso que o papel motor das cidades se exprime sobretudo na forma como a urbanidade conquista o mundo rural, não pela destruição do património herdado e dos valores identitários e tradicionais, mas pela sua valorização, gerando novos equilíbrios e introduzindo as «novidades» que sejam capazes de reforçar a cidadania. E este é, a meu ver, o carácter mais consistente da urbanidade. Não há cidade sem cidadania. E a cidadania deve assentar na cultura (entendida aqui no seu sentido amplo) e na capacidade crítica de assumir a diferença e a identidade. Essa capacidade, tipicamente urbana, de assumir a diferença e a identidade só se consegue desenvolver no contacto com o outro, na abertura ao mundo. E isso, o Douro sempre teve. Mas, em contrapar­ tida, faltou sempre ao Douro a capacidade de se unir e auto regular. Disperso e dividido, o Douro nunca teve instâncias unitárias de decisão e representação e creio que isso decorreu, entre outros factores, da fraqueza do seu sistema urbano. Hoje, com a rapidez das comunicações que nos transportam a qualquer ponto do globo pela Internet ou pela televisão, somos todos, tendencialmente, cidadãos planetários. Neste contexto, só poderemos compreender a cidade enquanto pólo estruturador de relações de um dado território regional em relação com o mundo. Esse cunho regional da urbanidade assume hoje uma importância crescente, não só pela necessidade de reforçar identidades – de ser –, mas sobretudo como um espaço adequado de intervenção cívica – de agir –, entre o nível local e o nacional e também entre o local e o transnacional. Afinal, como escreveu Torga, «o universal é o local sem paredes» e, por isso, o «agir local» não pode dissociar-se do «pensar global». Ora, a universalidade do local, para que tendem a urbanidade e a cidadania, exprimem-se hoje em acessibilidades, que podem ser directas, Número quatro

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Gaspar Martins Pereira

por via da Internet e outras formas de comunicação, ou indirectas e territorializadas, através das estradas, caminhos-de-ferro ou outras vias. E estas são ligações fulcrais que estruturam um território. Neste domínio, as acessibilidades rodoviárias no Douro são hoje bem melhores do que poderíamos imaginar há vinte anos, mas, em contrapartida, no mesmo período, foi profundamente mutilada a rede ferroviária da região, com danos irreversíveis no sistema de relações quer com centros dinâmicos de Trás-os-Montes, como Chaves e Bragança, quer com Salamanca. Seria preciso reabilitar e modernizar totalmente, com sentido de futuro, essa rede ferroviária. Antes de mais, recuperar a «espinha dorsal» ferroviária que deveria religar a região a Salamanca e investir numa mais rápida e operacional ligação ao Porto. Apostar nesse eixo, sem esquecer as suas ligações a Trás-os-Montes, é, a meu ver, fundamental na revitalização urbana do Douro. Se a revitalização das «velhas centralidades» tem de saber conjugar, pelo menos, Vila Real e Lamego, Alijó e Pesqueira, Moncorvo e Foz Côa, Freixo de Espada à Cinta e Figueira de Castelo Rodrigo, as «novas centralidades», que poderão estar na Régua, no Pinhão, no Pocinho e em Barca de Alva, deverão qualificar-se como nós de união das «velhas centralidades». E creio que, no interesse da região, só haverá a ganhar no reforço do diálogo com outras centralidades exteriores à região – com Salamanca e com o Porto, com Bragança, Chaves, Viseu ou Guarda. Mas, para que esse diálogo não reproduza as formas tradicionais de submissão, dependência e periferização que têm caracterizado a relação secular com o Porto, a região tem de criar uma centralidade operatória, não apenas topográfica, que parece corporizar-se, naturalmente, no eixo Vila Real/Régua/Lamego, mas sobretudo ideográfica, capaz de unificar um projecto e uma estratégia colectiva, assentes na sua identidade e geradores de desenvolvimento. Tem de «ser» e tem de «agir». O que implica a territorialização das políticas para a região. A derrota dos projectos de regionalização não pode significar, neste domínio, o cruzar de braços perante os desafios e oportunidades que hoje se colocam à região. 108

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O rural e o urbano no Douro vinhateiro

8 – Acredito que é possível inverter o ciclo de depressão do Douro, reinventando e rejuvenescendo o mundo rural e as suas aldeias, a par do reforço da sua rede urbana. Estarei, provavelmente, a ser utópico. Mas não vejo outra saída. Creio que a aposta na urbanidade, na preser­ vação do património natural e histórico, na viticultura de qualidade e no enoturismo terá de conjugar-se com investimentos sérios na cultura, na atracção e fixação de jovens, tanto como na valorização do tecido social existente, como vectores de verdadeiro desenvolvimento, enraizado nas identidades da região e numa nova cidadania.

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A crise demográfica dos séculos XIV e XV, no Leste transmontano Alguns aspectos 1

José Marques*

1. Introdução O estudo da história local e regional, que atrai sempre o interesse das populações desejosas de conhecerem o passado da sua terra, das gentes que aí os precederam e lhes legaram a realidade social para que foram despertando, à medida que tomavam consciência da sua identidade colectiva, deve ser valorizada e aprofundada, devidamente integrada no quadro da história Pátria e no contexto de fenómenos históricos mais vastos, embora nem sempre seja fácil a concretização de tais desideratos. Para além do conhecimento de áreas mais restritas, como paróquias e concelhos, é indispensável dominar bem a história, a geografia, os aspectos sociais e até as mentalidades das populações naturais das unidades regionais mais vastas, sem esquecer as comunidades, eventual­ mente, aí residentes, especialmente quando se pretende avançar para a regionalização administrativa, evitando, assim, que a mesma se faça, a esquadro, nos gabinetes e ao arrepio da vontade das populações, que deveriam ser as principais interessadas. Poderá estar aí, pelo menos em parte, a explicação da recusa do povo a sufragar o projecto de *

Professor catedrático da Universidade do Porto. Número quatro

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José Marques

regionalização que lhe foi apresentado, com a agravante de ter sido posto em causa o princípio de descentralização, que lhe estava subjacente. Neste cenário, vem a propósito recordar os fenómenos do povoa­ mento das várias regiões e as vicissitudes por que passaram ao longo dos tempos. Apesar de neste breve artigo centrarmos a nossa atenção no leste transmontano, não perdemos de vista toda a vasta região a norte do Douro e até o próprio Reino, como algumas referências documentais comprovarão. Como o título em epígrafe indica, tentaremos oferecer algumas perspectivas sobre a situação demográfica, com particular incidência na grave crise de despovoamento ou recessão demográfica que, nos meados do século XV, atingiu a maior expressão, na sequência do processo de despovoamento que se vinha acentuando ao longo do século XIV. Porque de estudo de síntese se trata, por contraste com a mencio­nada situação de progressivo despovoamento, a que aludimos, procuraremos oferecer alguma informação do longo e complexo processo do povoamento transmontano, apresentando, de seguida, alguns testemunhos da situação de grave crise demográfica a que se chegou, em paróquias envolventes de Moncorvo, com inevitáveis reflexos na organização eclesiástica, e também algumas medidas tendentes à superação da lamentável situação, a que se tinha chegado. 2. Notas sobre o moroso e complexo povoamento trans­ montano O problema do povoamento transmontano, em vários períodos históricos, tem merecido a atenção de vários autores, a que, por mais de uma vez, também nos associámos1, procurando contribuir para José Marques, “Povoamento e defesa na estruturação do Estado Medieval Português”, in Revista de História, vol. VIII, Porto, Cento de história da Universidade do Porto, 1988, pp. 9-34. Idem, “Aspectos do povoamento do Norte de Portugal nos séculos XII-XIV”, in Actas do Congresso Histórico Comemorativo dos 150 Anos do Nascimento 1

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A crise demográfica dos séculos XIV e XV, no Leste transmontano

o esclarecimento de certos aspectos que a documentação permitia aprofundar, parecendo-nos oportuno retomar este apaixonante tema, numa tentativa de, por contraste, se poder analisar e compreender melhor a fase terminal da conhecida crise demográfica, que flagelou toda a Europa e que, no Norte de Portugal, atingiu o limiar inferior, nos meados do século XV, como teremos oportunidade de documentar. Isso implica que, em traços rápidos, recordemos o projecto de povoamento da extensa região transmontana, que durou cerca de dois séculos, sabendo-se que, na fase terminal, se foram detectando indícios da inversão da curva demográfica, no sentido ascendente. O longo ciclo povoador a que acabamos de nos referir iniciou-se já na segunda metade de século XII, em pleno reinado de D. Afonso Henriques, durante uma pausa nas actividades bélicas, indelevelmente assinaladas pela conquista de Lisboa, em 1147. A dedicação prioritária do nosso primeiro Rei ao avanço da reconquista para sul não lhe deixava tempo nem lhe proporcionava condições para desenvolver um plano de povoamento do território sob o seu domínio, incluindo o que tinha herdado já pacificado, como era o caso do Além Douro transmontano. No entanto, a par do recurso ao apoio que pôde e soube encontrar no âmbito da clerezia diocesana, e, sobretudo, monástica e nas Ordens Religiosas e Militares, acolheu o conselho – se não mesmo o pedido – de Fernão Martins para outorgar a carta de foral a Freixo de Espada à Cinta2, que, apesar de Alexandre Herculano a atribuir e fixar em 1152, é um pouco mais tardia, segundo a data crítica fixada por Rui Pinto de Azevedo, entre 1155 e 11573.

de Alberto Sampaio, Guimarães, 1995, pp. 209-234. Idem, “Os municípios dionisinos nos finais do século XIII”, in O Tratado de Alcanices e a importância histórica das terras de Riba Côa. Actas do Congresso Histórico Luso-Espanhol. 12-17 de Setembro de 1997, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1998, pp. 211-231. 2 Documentos Medievais Portugueses. I. Documentos Régios (D. M. P. I. D. R.) (1095-1185), Lisboa, A. P. H., 1958, pp. 309-313. Nos casos seguintes, citarei: D. M. P. I, seguidos da página ou páginas. 3 D. M. P. I, pp. 309-313. Número quatro

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Mediante esta carta de foral, outorgada por conselho, sugestão e iniciativa de Fernão Mendes e com o auxílio de Gonçalo de Sousa – e não motu proprio do nosso primeiro Rei –, Freixo de Espada à Cinta foi elevada à condição de município, com a clara intenção de promover um melhor povoamento da localidade, competindo-lhe, além de outras funções, atrair e acolher quantos aí se quisessem fixar: – «vobis homines de Fresno qui ibidem populatores estis sive illis qui veneri[n]t ad populandum facimus cartulam sicut et fecimus per scripturam et preceptum nostrum firmiter teneatis ut habeatis foro bono sicut habent alios homines cum meliores foros»4. A par deste objectivo, mesmo sem se poder falar abertamente de um projecto de povoamento estratégico, não há dúvida de que o monarca olhava para este núcleo de povoamento como um elemento importante para a defesa da fronteira, como decorre da dispensa, concedida aos homens de Freixo, de participarem no fossado e de pagarem fossadeira, atentas as responsabilidades inerentes ao facto de estarem situados numa zona de fronteira, que os obrigava a uma atitude de permanente vigilância, se não face a incursões muçulmanas, numa inequívoca manifestação de alteridade política em relação a Castela: – «Et vos homines de Fresno non faciatis fossado nec detis fossadeira pro que estis in fronteira»5. Não pretendemos analisar com mais pormenor o clausulado deste e de outros forais, que já realizámos noutro momento e de que, agora, legítima e parcialmente, nos socorremos6, convindo ter presente que a criação do concelho de Freixo constituiu um importante ponto de partida para o povoamento e a dimanização económica e social do sudeste transmontano. O projecto régio de povoamento transmontano, aqui iniciado, prosseguiu, poucos anos depois, com a outorga, em Dezembro de 1160, D. M. P. I, p. 309. D. M. P. I, p. 309. 6 José Marques, “Moncorvo e os seus antecedentes, no contexto transmontano, na Idade Média”, in Moncorvo: da tradição à modernidade, Fernando de Sousa (coor.), Porto, CEPESE, 2009, pp. 27-36. Esta referência aplica-se também aos restantes forais, a seguir referidos. 4 5

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pelo mesmo monarca da carta de foral à localidade de Mós, contígua à de Freixo, com idêntico objectivo de que a sua elevação à categoria de concelho conduzisse ao povoamento do castelo de Mós: – «Ego rex Alfonsus do et concedo a vobis concilio de Molas ad popular illo castello qui vocatur Molas per foro de Salamanca, ut illos homines qui ibi populaverint habeant foros bonos quomodo habent homines qui bonos foros habent»7. Tal como fizemos em relação ao foral de Freixo, também não vamos determos longamente sobre este. Apesar disso, apraz-nos observar que, nesta carta foralenga, além da necessidade de colonizar e desenvolver economicamente o território, é inequívoca a preocupação do monarca com a activação das estruturas militares defensivas, que, estando relativamente próximas da fronteira, poderiam ser chamadas a cumprir as suas funções específicas. Mós, apesar de não estar directamente sobre a linha da fronteira, estava relativamente perto e a sua activação era indispensável até para reforço e apoio de Freixo. Por isso, no foral, não há qualquer limitação ao número de povoadores que aí se quisessem fixar, independentemente dos motivos subjacentes à sua transferência para este novo espaço de liberdade que os acolhia, com excepção daquele que se fizesse acompanhar por mulher alheia, vinculada a outro por casamento canónico solene ou «de bênçãos», nem faltavam terras para lhes conceder. A par do desejo de rápido povoamento desta região, mediante a fixação de pessoas vindas de outras terras, já que pela via da natalidade tudo seria muito lento, temos de reconhecer que andava também a vontade de um certo “ordenamento” territorial, traduzido na delimitação dos concelhos, por vezes bastante minuciosa, como acontece com este de Mós8, a ponto de, ainda hoje, ser possível definir-lhe os seus primitivos contornos e acompanhar os reajustamentos sofridos, posteriormente9.

D. M. P. I, p. 363-366. D. M. P. I, p. 365. 9 José Marques, “A administração municipal de Mós de Moncorvo, em 1439”, in Brigantia – Revista de Cultura, vol. V, n.os 2-3-4, 1985, pp. 11-12. 7 8

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Quase vinte anos depois, em 11 de Abril de 1182, prosseguia a concretização da política régia de povoamento desta faixa transmontana da margem direita do rio Douro, com a outorga do foral de Urros, vindo a propósito observar, por contraste com o que tinha acontecido em relação a Freixo, que D. Afonso Henriques faz questão de acentuar que os moradores que estavam em Urros, à data da concessão do foral, seus primeiros destinatários e beneficiários, aí se encontravam por sua ordem: – «Ego rex A[lfonsus] Portucalensis una cum filiis meis et qui exierit de me vos homines de Orrio qui ibidem populatorem estis per mandatum meum morandi faciendi sive qui venerit ad populandum facimus vobis, cartulam et fecimus...»10, denotando uma clara mudança de atitude, se confrontada com a referida, quase vinte e cinco anos antes, acerca de Freixo de Espada à Cinta. Estamos perante mais uma carta de foral, semelhante às referidas anteriormente, valendo a pena, no entanto, verificar que se vai ampliando o número de beneficiários de alguns privilégios, como o da isenção da aposentadoria, que aqui é extensiva aos cavaleiros, alcaldes e abades, isto é, aos párocos11, surgindo também uma cláusula de protecção aos clérigos, incorrendo o transgressor na multa de quinhentos soldos e de uma mealha de ouro12, chegando-se, mesmo, ao ponto de determinar em que condições os clérigos podiam conservar as suas casas e quem seriam os seus sucessores, no caso de falecerem ab intestato, isto é, sem testamento13. Quarenta e três anos depois, ao terminar o primeiro quartel do século XIII, em 6 de Junho de 122514, D. Sancho II, outorgou carta de foral a Santa Cruz da Vilariça, que permaneceu como sede do concelho D. M. P. I, pp. 462-466. D. M. P. I, p. 464, 12 D. M. P. I, p. 464: – «Et qui percusserit presbiter pectet D. solidos et una menaga de ouro». 13 Ibidem. 14 P. M. H., Leges, pp. 601-604. Reproduzido por Gonçalves Bernardino, Sandra Virgínia Pereira, Sancius Secundus Rex Portugalensis – A Chancelaria de D. Sancho II (1223-1248), Coimbra, 2003, pp. 205-2011. (Dissertação de mestrado, inédita). 10 11

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do mesmo nome, até que D. Dinis a transferiu para Moncorvo, por carta de foral, outorgada, em Lisboa, em 12 de Abril de 1285. Convém, por isso, observar, desde já, que, embora diplomaticamente se trate de dois forais, como os três anteriores, elaborados segundo o paradigma de Salamanca, na prática, podemos dizer que se trata do mesmo foral, com as inevitáveis alterações, essencialmente, restringidas à substituição do nome Vilariça por Moncorvo, e a ligeiras alterações de cunho literário, patentes na actualização de alguns termos arcaicos ou que assinalam já o máximo grau de evolução fonética por formas do latim tabeliónico, susceptíveis de induzirem o leitor menos preparado a considerá-los diferentes. Atentas estas duas diferenças, podemos dizer que o foral de Moncorvo de 128515 não passa de uma cópia actualizada do da Vilariça de 1225, realidade confirmada também pela posição na estrutura do texto da descrição dos mesmos limites nas duas cartas de foral e pelas notas apostas no verso do pergaminho, numa das quais consta textualmente: – «Tralado do foro da Torre de Moom Corvo. Da Torre de Mencorvo», a que acresce a omissão dos confirmantes, que no da Vilariça estavam distribuídos em duas colunas. Chamámos a atenção para estas medidas dinamizadoras do povoa­ mento, que não é ousado considerar estratégico e defensivo, concreti­ zadas por D. Afonso Henriques, D. Sancho II e D. Dinis, mas não podemos esquecer a intensa acção povoadora levada a cabo por D. Afonso III e o esforço de D. Dinis, conducente à imposição do respeito pela linha de fronteira, antes e depois do tratado de Alcanices, sistematicamente, violada por castelhanos16. 15 A. D. B.,. Gaveta das NotíciasVárias, n º 15. Publ. in Os Forais de Torre de Moncorvo. Edição fac-similada e transcrição, com nota introdutória de Maria Alegria Fernandes Marques, Município de Moncorvo, 2005, pp. 51-56. Publ. também por Carlos d’ Abreu, Torre de Moncorvo. Percursos e materialidades…, pp. 141-144; Ilda Fernandes, Torre de Moncorvo. Município tradicional, C. M. de Torre de Moncorvo, 2001, pp.415-470. 16 José Marques, “Os municípios dionisinos nos finais do século XIII”, in O Tratado de Alcanices e a importância histórica das terras de Riba Côa. Actas do Congresso Histórico Luso-Espanhol. 12-17, de Setembro de 1997, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1998, pp. 216-228.

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Nesta longa fase de crescimento demográfico e de povoamento, sobretudo durante os séculos XII e XIII, documentámos a convergência de vários agentes povoadores nesta zona que bordeja a margem direita do Douro, desde o rei, aos mosteiros, cavaleiros, arcebispo de Braga, ordens militares, clérigos e muita gente anónima17. A documentação avulsa, até 1258, apesar de não ser abundante, e as Inquirições deste ano, deixam perceber um certo fervilhar de todos estes elementos humanos, expressão de um período de crescimento demográfico e económico, que nas primeiras décadas do século XIV, se inverteria, iniciando uma longa fase depressionária, cujas consequências se fizeram sentir também na região em estudo. 3. A crise demográfica. Alguns testemunhos. Chegados a este ponto do nosso estudo, cremos poder afirmar que esta rápida abordagem do complexo processo de povoamento transmontano permitiu a implantação de numerosas paróquias, nos tempos seguintes, duramente marcadas pela depressão demográfica. Durante o seu longo reinado, D. Dinis (1279-1325), que celebrou o Tratado da Alcanices, em 12 de Setembro de 1297, prestou redobrada atenção às questões do povoamento fronteiriço, especialmente nas zonas de fronteira terrestre transmontana, escasseando, no entanto, as referências alusivas à linha fluvial do Douro, naturalmente, melhor protegida do que quaisquer outros segmentos da fronteira. Antes de prosseguirmos, convém recordar que os séculos XII e XIII marcaram as linhas de rumos do povoamento nesta região, que também viria a sofrer os graves efeitos da recessão demográfica dos séculos XIV e XV a que vamos aludir, em linhas gerais. Ver os nossos estudos citados na nota 1: José Marques, “Povoamento e defesa …”, pp. 13-20. Idem, Aspectos do povoamento do Norte de Portugal nos séculos XII-XIV, pp. 217-2228. Idem, Os municípios dionisinos nos finais do século XIII, pp. 216-228. 17

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São conhecidos os estudos efectuados sobre as causas e conse­ quên­cias da quebra demográfica destas duas centúrias18, pelo que nos limitaremos a oferecer apenas alguns indicadores, a fim de melhor situarmos os dados que pretendemos apresentar sobre as vicissitudes, neste domínio, ocorridas no leste transmontano. Entre os factores responsáveis pela inversão de sentido da curva ascendente, a que se assistiu durante todo o século XIII, bem repercutida na expansão do povoamento, temos de entrar em linha de conta com a série de crises cerealíferas, com as subsequentes fomes, que fragilizavam os organismos, tornando-os vulneráveis às mais variadas doenças, especialmente às pestes. Desde 1313-131719 até 149620, está inventa­ riada uma longa série de crises alimentares, que, se nem todas tiveram amplitude nacional, nem por isso deixaram de minar a resistência humana, nas áreas em que se fizeram sentir21. Para não ficarmos, apenas, em afirmações genéricas, vale a pena recolher o testemunho que o arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira, nos deixou nas constituições sinodais de 1333, que reflecte bem a crise demográfica, económica e social que já nesse ano assolava a vasta diocese Veja-se Teresa Ferreira Rodrigues, “A crise dos séculos XIV-XV (1325-1480)”, in História da população portuguesa. Das longas permanências à conquista da modernidade, Teresa Ferreira Rodrigues (coor.), Porto, CEPESE – Edições Afrontamento, 2009, pp. 101-137. 19 Para fixar esta primeira data, apoiamo-nos em Ruggiero Romano – Alberto Tenenti – Los fundamentos del mundo moderno, 1.ª edição em castelhano, Madrid, 1971, pp. 3-4, que afirmam textualmente: – «Pero los años 1313-1317 iban a infligir un duro golpe a aquella confianza generalizada: sobreviene una carestia general en toda Europa. Desde aquel momento, se intensifica el ciclo recurrente entre carestias y epidemias: una población debilitada por la subalimentación a que la han sometido uno, dos, tres años de malas cosechas, oferece menos resistencia a los ataques de la enfermedad; los prejuicios que esta crea, al redicir el numero de brazos disponibles para el trabajo – sin reducir, por outra parte, en la misma proporción el numero de bocas que alimentar –, aumentan la posibilidad de sucesivas carestias». 20 A. H. de Oliveira Marques, Introdução à história da agricultura em Portugal, pp. 257-282. 21 José Marques, A peste de 1362, na diocese de Tui. Estudo inédito, elaborado a partir da documentação latina das Confirmações de Tui (1352-1366). Arquivo Distrital de Braga (A. D. B.), Registo geral, n.º 314. Neste período, a diocese de Tui estendia-se até ao rio Lima. É possível que a peste tenha atingido também as populações da margem esquerda deste rio, mas não dispomos de informações sobre o assunto. 18

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de Braga, provocando, mesmo, uma generalizada situação de absentismo do clero, apontada pelo Prelado como uma das causas da situação verificada através da Arquidiocese e por ele descrita nos seguintes termos: Nós Gonçalo pela merçee de Deus e da sancta eigreja de Roma arcebispo de Braga, visitando os moesteiros e as eigrejas do nosso arcebispado, assi como somos teudos de nosso offizio, porque achamos que moitas dessas eigrejas, som hermas e despovoradas e as casas derribadas e as searas das vinhas desfeitas e que se nom dizem hi missas nem Horas, nem se faz hi o serviço de Deus, nem se manteem en elas hospitalidade nemhũa, e os freegueses nom acham quem lhis dê os sagramentos da sancta Eigreja quando os hi veen demandar, esto hé grande perigoo e encarrego da nossa alma e das suas e daqueles que am dali cura, e que outrossi nom som manteudas no temporal e no spiritual assi como devem, e esto todo hé porque os rectores nom moram en ellas nem fazem residença assi como devem e som teudos22. É certo que o Prelado detectou a situação de absentismo do clero, que responsabiliza pela situação descrita, mas, descontado algum exagero inerente a textos desta natureza, temos de admitir que a realidade era muito difícil e que o absentismo considerado como causa da situação era, em muitos casos, efeito dela. Se lhe acrescentarmos o conjunto de epidemias e, sobretudo, a conhecida Peste Negra, de 1348, para não evocarmos outras que foram surgindo durante esta e na centúria seguinte23, e a série de guerras, em que o reino andou envolvido, desde D. Dinis, passando pela três guerras 22 Synodicon hispanum. II. Portugal, António Garcia y Garcia (dir.), Madrid, Biblioteca da Autores Cristianos, 1982, p. 47. 23 Sobre este tema, veja-se Humberto Carlos Baquero Moreno, “A peste de 1453-54”, separata da Revista de Ciências do Homem, vol. I, Série A, 1968, p. 23; e ainda a listagem apresentada por Teresa Ferreira Rodrigues, O. c., pp. 114-115, dipensando-nos de citar os conhecidos historiadores portugueses da Medicina, como Maximiano de Lemos, Silva Carvalho e Mário da Costa Roque, que estudou As pestes medievais europeias e o «Regimento proveytoso contra a pestenença», Lisboa,Valentim Fernandes [1495-1496].

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fernandinas e pela da Independência24, teremos o principal quadro de referência explicativo do despovoamento, que, em alguns pontos do reino atingiu percentagens de mais de 50% e até 60%, no período compreendido entre 1422 e 1458-6825 Apontado o contexto e o sentido geral da realidade demográfica, em Portugal desde o primeiro terço do século XIV, é lícito interro­garmo- -nos sobre o que se passou nas paragens transmontanas mais ou menos paralelas à fronteira do Douro. Não é viável tentar seguir de perto o que neste domínio aconteceu individualmente nas freguesias ou paróquias desta zona periférica do reino e da arquidiocese de Braga a que pertencia, mas a menção de alguns dados qualitativos ajudar-nos-á, sem dúvida, a captarmos alguns aspectos da depressão demográfica quatrocentista – a única de que temos registos mais abundantes – e da perturbação por ela causada no sector eclesiástico. No intuito de evitarmos a dispersão de informação, dispensamo-nos de aduzir aqui um conjunto de testemunhos sobre este tema recolhidos sobre o estado demográfico do reino e, particularmente, sobre a arquidiocese de Braga, em que esta vasta área estava integrada26, para lá remetendo os leitores interessados, parecendo-nos, contudo, oportuno recordar a lucidez com que o Infante D. Pedro, no seu parecer desfavorável à projectada expedição a Tânger, interpelava o rei D. Duarte, seu irmão, sobre o destino de mais esta praça marroquina, caso viesse a ser conquistada: – «Mas posto caso que pasaseis he tomaseis Tanger he Alcaçeer he Arzila, queria, senhor saber que lhe fareis por que povoardelas com reino tam despovoado he tão minguado de gente como he este voso, he jnposivel»27. Aproximando-nos mais do nosso campo de observação, vem a propósito observar que nas Cortes de 1439, os procuradores de Bragança A. H. de Oliveira Marques, O. c., p. 32. A. H. de Oliveira Marques, O. c., pp. 24-25. 26 José Marques, A Arquidiocese de Braga no século XV, Lisboa, IN-CM, 1988, pp.267-317. 27 A.N.T.T., Gaveta 2, m. 7, n.º 2. Publ. por Domingos Maurício Gomes dos Santos, D. Duarte e as responsabilidades de Tânger (1433-1438), Lisboa, 1960, pp. 83-84. Citado por José Marques, O. c., p. 273. 24 25

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informaram que estava «despovorada e herma», pois dos duzentos vizinhos que costumava ter, nesse ano, não tinha mais de vinte e cinco, pedindo, em consequência, que ali fosse instituído um couto para cinquenta homiziados, número oficialmente elevado para duzentos, em 145428. Passando agora para o cenário geográfico a que temos estado confinado e para paróquias relativamente próximas, vejamos o que nos dizem os registos eclesiásticos relativos ao seu governo pastoral, reunidos nas conhecidas Confirmações de D. Fernando da Guerra, para o período 1423-1468, conservadas no Arquivo Distrital de Braga. Antes de iniciarmos a exposição das anunciadas situações demográficas, reafirmamos que não de trata de realidades exclusivas desta zona de fronteira, pois, através da arquidiocese e mesmo nas proximidades de Braga, no coração do Minho, tradicionalmente, mais densamente povoado, encontram-se casos idênticos, descritos de forma minuciosa, que nos ajudam a compreender o alcance profundo do laconismo de alguns registos relativos a paróquias desta zona. Para começar, diremos que não faltam os casos de ermamento ou de despovoamento completo de algumas paróquias, que obrigavam o prelado diocesano a tomar as medidas mais adequadas à situação, evitando a perda de personalidade jurídica ou extinção das paróquias, na esperança de um futuro repovoamento, que permitisse a reorganização da vida religiosa. A título de exemplo, vejamos como resolveu o problema da paróquia de Santa Maria de Penoucos – actualmente, apenas um lugar integrado na freguesia de Cervães, Vila Verde –, ao anexá-la a S. Romão da Ucha, a poucos quilómetros da sede do arcebispado, em 10 de Junho de 1431: – «porque assi he sem cura e em ella nom ha fregueses nom se ham em ella de dizer outras misas soomente pollo dia do orago»29. Situação idêntica verificava-se na freguesia transmontana de Serapicos (Cerapicos) «que era herma», pelo José Marques, O. c., p. 277. A.D.B., Confirmações de D. Fernando da Guerra, fl. 31. Nos casos seguintes citaremos de forma abreviada Conf., fl. 31. José Marques, O. c., p. 278. 28 29

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que o arcebispo decidiu anexá-la «im perpetuum» à de Vimioso, de que então era pároco Gonçalo Afonso30. Repare-se que, apesar de não ter fiéis e o pároco de Vimioso só ter a obrigação de lá ir celebrar uma vez por ano, no dia do orago, isto é do padroeiro, o arcebispo D. Fernando da Guerra não extinguiu canonicamente esta paróquia, que, um dia mais tarde, quando tivesse o mínimo indispensável de pessoas para se autonomizar, seria desanexada. S.Tomé de Abambres, na Terra de Ledra, esteve erma até que se reiniciou o seu repovoamento com quatro fogos, conforme consta do registo de anexação à paróquia de Mascarenhas, em 1 de Agosto de 1438: «a quall anexa senpre ataa este anno foe despovorada que se pera sua freeguesia vierom morar IIII freegueses»31. Passando, agora, para a terra de Miranda, sabemos que, em Outubro de 1458, a freguesia de São Pedro de Avelanoso, que tinha estado erma, desde o tempo das guerras, isto é, durante quarenta e seis ou quarenta e sete anos, se contarmos este período apenas desde as tréguas ou paz provisória assinada com Castela, em 1411, começou a ser repovoada por dez ou doze fogos, foi anexada à de S. Cibrão ou Cipriano de Angueira32. De 22 de Novembro de 1459, data a notícia do recente povoamento de Santa Eulália de Genísio (Olalha de Ginzo) de Paradela, na terra de Miranda, que nesse dia foi também anexada a São Cibrão de Angueira33. Estes registos comprovam à saciedade o despovoamento completo ou ermamento destas paróquias, que ficaram de fogo morto, como aconteceu a muitas outras da região transmontana e do Reino. Mas sem chegarem a tal grau de despovoamento, houve outras freguesias da área delimitada para este estudo ou relativamente próximas que ficaram vagas, isto é, sem pároco ou simples cura que o substituísse, dado o reduzido número de fregueses e a incapacidade de o sustentarem. A.D.B., Conf., fl. 176. A.D.B., Conf., fl. 87. 32 A.D.B., Conf., fl. 203: «a quall anexa he vaga des os tempos das guerras. E pouco tempo ha se povorou hüua a de a herma de X ou XII freegueses». 33 A.D.B., Conf., fl. 208: «A quall anexa senpre foe despovorada e ora se povora... E porque asy era herma ha muito que he vaga». 30 31

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Foi o que aconteceu com Santa Eugénia de Ala (Santa Ogenha de Alha), que, em 30 de Agosto de 1453, foi anexada a São Jerónimo de Val de Prados, porque «a dicta egreja d’Alha ha mais de dez annos que esta vaga»34. Anos mais tarde, quando em 11 de Agosto de 1461, Santa Maria de Bruçô com a anexa, Santo Antão de Lagoaça, junto a Mogadouro passaram a ter pároco próprio na pessoa de João Gonçalves, afirmou-se explicitamente que: «muitos anos ha que he vaga»35, detectando-se uma situação precisa­ mente igual, na terra de Bragança, com Santa Maria de Rebordões, que, em 16 de Março de 1450, foi anexada a São Mamede de Rebordões, porque «tenpo ha que he vaga»36. Não são muitos os casos de ermamento ou simples despovoamento apontados para a área que nos interessa neste momento, mas indiciam, sem dúvida, uma situação generalizada e muito difícil, que, em algumas freguesias chegou à ausência de vida e actividade humana. E é fácil prever os reflexos desta situação na vida administrativa municipal e económica da região, que demorou a recompor-se. Através de documentação eclesiástica específica pudemos levantar a ponta do véu de silêncio que pairava sobre a situação concreta das paróquias destas zonas, embora houvesse notícias relativas à depressão demográfica, desde o último quartel do século XIV, registadas a propósito das guerras fernandinas. Assim, a par das medidas de governo eclesiástico das paróquias, tomadas durante o longo arquiepiscopado de D. Fernando da Guerra (1417-1467), determinadas pelo despovoamento e início de repovoamento de várias paróquias deste extremo oriental da arquidiocese bracarense, podemos aduzir outra fonte de preocupações e medidas, patentes na documentação régia. É o que faremos, quando nos referirmos à implantação de coutos de homiziados nesta região.

A.D.B., Conf., fl. 178. A.D.B., Conf., fl. 220. 36 A.D.B., Conf., fl. 153v. 34 35

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3.1. Repercussões sócio-religiosas Conforme o arcebispo D. Gonçalo Pereira referiu, em 1333, uma das graves situações por ele detectadas, através da Arquidiocese, era a ausência dos párocos dos benefícios que lhes estavam confiados, embora, conforme já dissemos, não se possa atribuir a tal facto, que, mesmo assim, deverá ser reduzido às devidas proporções, a responsabilidade do panorama descrito. Anos depois, na sequência da Peste Negra, de 1348, a situação demográfica, económica e religiosa agravou-se e chegou ao lamenável estado que as citadas Confirmações de D. Fernando da Guerra permitiram comprovar. Este Prelado teve de conviver com esta realidade, a vários níveis, chegando a esclarecer que algumas paróquias, mesmo estando anexas, não conseguiam garantir a côngrua sustentação dos párocos seus titulares, aí radicando o absentismo de muitos deles. Na sua constante itineração pela Arquidiocese, verificava que algumas paróquias eram tão pobres que não lhes podia destinar qualquer clérigo «sem grande seu obpoblio», isto é, opróbrio, como afirma37. Não sabemos se era uma situação idêntica a esta que estava subja­ cente ao absentismo do pároco de S. Tiago de Moncorvo, originando um longo processo, movido contra ele pelo concelho da Torre de Moncorvo, que reclamava a sua presença. A gravidade e duração deste litígio, apesar da falta de outra documentação, pode ser comprovada pelo facto de ter implicado o recurso à Cúria Romana e, posteriormente, a apelação para o rei D. Duarte, como nos revela um pergaminho do Arquivo de Moncorvo38, cujo conteúdo se integra perfeitamente no âmbito do A. D.B., Conf. fl. 29. Ver o nosso estudo “Subsídios para o estudo da Arquidiocese de Braga no século XV”, in Bracara Augusta, Braga, vol. 30,Tomo I, 1976 (Jan.-Junho), p. 79. 38 Arquivo Municipal de Moncorvo (A. M. M.), Pergaminhos, n.º 12. Era esta a cota que tinha quando, em 1979, aí tivemos oportunidade de o copiar, tendo-o conservado inédito, até agora. Não sabemos se, entretanto, lhe foi atribuída outra cota, esperando que, se tal aconteceu, tenha sido feita a respectiva correspondência. 37

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presente estudo. Trata-se da sentença do Desembargo régio, datada de Lisboa, em 17 de Agosto de 1436, que encerrava esse longo processo, enviada aos juízes de Freixo de Espada à Cinta. Porque apresentamos o seu teor, na íntegra, em apêndice, limitamo-nos a indicar aqui os aspectos essenciais, condensados na reconstituição sumária dos factos, que justificaram a sentença régia. – O processo foi instaurado pelo concelho de Torre de Moncorvo contra o abade de S. Tiago dessa mesma vila, por não cumprir a lei da residência canónica neste benefício, que lhe estava confiado. Não sabemos quanto tempo o processo andou pelo tribunal eclesiástico, nem qual foi a sua decisão, que, provavelmente, não terá sido favorável ao concelho autor, vendo-se obrigado a apelar para Roma, donde Gonçalo Barroso, morador em Vilvestre, na qualidade de seu procurador, trouxe a decisão pontifícia, que entregou ao concelho, isto é, à vereação da Torre de Moncorvo, cujo teor ficou omisso, pois não interessava para o ulterior processo de apelação para o Desembargo régio. Esta nova fase ou, melhor, este novo processo surgiu por causa dos quinze ducados e seis dobras, que o concelho devia pagar ao mencionado Gonçalo Barroso. Face às dificuldades levantadas ao pagamento e como, indevidamente, pretendiam que Gonçalo Barroso recorresse ao corregedor João Jusarte, optou pelo recurso para o Rei, cujo Desembargo determinou que lhe fossem pagos os referidos quinze ducados e as seis dobras, segundo a equivalência fixada na ordenação sobre o valor das moedas. É apenas uma amostra dos efeitos provocados pela crise demográfica, que se repercutiram neste contencioso jurídico. 4. Tentativa de resposta à crise: os coutos de homiziados A recuperação demográfica, ao longo do Reino, pela via do aumento da natalidade seria muito lenta e não faltava quem se queixasse da falta de braços para o amanho das terras, com evidentes repercussões na falta de 126

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produção que ajudasse a diminuir as carências alimentares e permitisse pagar os direitos reais. Além disso, tornava-se difícil guarnecer a defesa da fronteira com Castela. A consciência da necessidade de obviar a esta delicada situação de natureza política, levou D. Dinis a iniciar a criação de coutos de homiziados, tendo sido o de Noudar o primeiro a ser instituído, em 16 de Janeiro de 130839, seguindo-se-lhe outros ao longo da fronteira e em diversos pontos do Reino, durante os séculos XIV a XVI40. Pensamos, concretamente, na série de coutos de homiziados, instituídos pela Coroa ao longo deste tramo de fronteira transmontana, a que nos vamos referir, porque o seu conhecimento, se por um lado revela a gravidade da quebra demográfica e consequente repercussão negativa na defesa da fronteira com Castela, por outro, é expressão inequívoca da vontade dos sucessivos monarcas em concentrarem em certos pontos da fronteira, inclusive fluvial e marítima, pessoas que, estando sob a alçada da Lei, aqui podiam gozar de liberdade, explorar, dentro de certas condições, terras abandonadas e contribuir para a defesa do Reino e, eventualmente, algum aumento da natalidade. Percorramos, por isso, os diversos coutos de homiziados instituídos pela Coroa, neste segmento duriense da fronteira transmontana. O primeiro a ser instituído – qual guarda avançada frente a Castella – foi o de Miranda do Douro, transformada em couto de homiziados por carta do rei D. Fernando, de 4 de Fevereiro de 1379, que aí permitia a instalação de duzentos homiziados, entre homens e mulheres, com o propósito claro de que a presença de tão significativo número de novos moradores contribuísse para «mjlhor defesa» e rápido povoamento da vila e seu termo. Esta carta de instituição do couto fixava também um conjunto de normas quanto às relações dos homiziados com as autoridades e eventuais acusadores, estabelecendo as suas regalias e as condições em que delas podiam beneficiar, mesmo quando saíssem dos limites 39 Humberto Baquero Moreno, “Elementos para o estudo dos coutos de homiziados instituídos pela Coroa”, in Portugaliae Historica, vol. II, Lisboa, Faculdade de Letras – Instituto Histórico Infante Dom Henrique, 1974, pp. 23-24. 40 H. B. Moreno, O. c., especialmente pp. 23-63, onde se encontra a síntese relativa a cada um.

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do couto. Miranda do Douro era um ponto avançado e estratégico no plano defensivo. Foi por isso que, em 4 de Agosto de 1406, D. João I o designou como um dos coutos onde podiam concentrar-se os homiziados das províncias de Entre-Douro-e-Minho e de Trás-os-Montes, e, em 14 de Novembro desse mesmo ano, abria a possibilidade de até sessenta homiziados portugueses poderem ir para este couto, sendo de notar que desta vez o monarca impedia a entrada de culpados de homicídio, de aleive ou traição. Perante esta decisão, conviria saber se estas sessenta vagas resultavam da falta de candidatos para preencher o número inicial ou se eram para responder a novos pedidos de aceitação. Em 15 de Maio de 1408, D. João I determinava que os homiziados que andassem em Castela poderiam entrar livremente neste couto de Miranda do Douro, que, ulteriormente, recebeu privilégios de D. João II, D. Manuel e D. João III41. Embora se desconheça a data da instituição do couto de Freixo de Espada à Cinta, em 4 de Agosto de 1406, ficava aberto aos homiziados que não quisessem residir no de Miranda. As condições por que se regia eram, praticamente, as mesmas do anterior, mas é interessante anotar que D. Manuel I decidiu que os coutos não poderiam receber os culpados de sodomia, de falsificação de moeda, escrituras, etc., e aqueles a quem a Igreja recusava direito de asilo42. A instituição destes dois coutos, embora tendo subjacente uma função povoadora, era facilmente compreensível, atendendo ao clima de guerra em que se vivia: em 1379, as guerras fernandinas; em 1406, conquanto decorressem as primeiras tréguas, que viriam a ser renovadas, em 1411, não convinha aliviar a defesa face a Castela. Quanto ao couto de Mós, de acordo com a primeira referência até agora conhecida, mais do que as preocupações bélicas, que juntamente com as pestes contribuíram para dizimar a população deste município, sobressaem os intuitos povoadores, solicitando-se a D. Afonso V a concessão para os Humberto Baquero Moreno, “Elementos para o estudo dos coutos de homizia­ dos instituídos pela Coroa”, in Portugaliae Historica, vol. II, Lisboa, 1974,pp. 30-32. 42 Humberto Baquero Moreno, O. c., pp. 38-39. 41

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homiziados de Mós as mesmas facilidades que tinham os de outros coutos para poderem andar livremente fora do couto alguns meses por ano, devendo regressar no prazo que lhes fosse consignado. O pedido pareceu equilibrado ao monarca, que, à semelhança do que tinha outorgado aos homiziados de Arronches, em 23 de Março de 1450, lhes concedeu autorização para durante dois meses irem trabalhar as suas propriedades ou ganhar uma soldada para poderem sustentar-se em Mós43. Em relação à data da instituição deste couto, deveremos fixá-la em 1439, se não nos finais de 1438, porque no primeiro item do capítulo das despesas do concelho de Mós, inteiramente preenchido pelo que hoje designaríamos artigos de papelaria ou material de escritório, há uma referência explícita à aquisição de papel para se fazer o tombo ou livro de registo dos homiziados: – «Item primeiramente deu por papel pera este livro e para as cartas e enformaçõoes e cousas que ao dicto concelho perteencem e pera o livro do tombo dos omiziados e pera livro das coymas – XIII reaes»44. Esta rubrica de despesa não está datada, mas, pela própria natureza dos produtos adquiridos, deve ser do início do ano de 1439. Como se trata de ainda fazer o tombo ou livro de registo dos homiziados, é de admitir que os primeiros ainda não tinham chegado, mas a carta de instituição pode muito bem ter sido outorgada nos finais de 1438. Em qualquer dos casos, podemos afirmar que foi instituído onze anos antes da data do primeiro documento até agora conhecido. Tal como acontecia em Arronches, além do registo inicial, as saídas dos homiziados, para irem amanhar as suas propriedades ou para trabalhar por conta de outrem, a troco de uma soldada, bem como as entradas de regresso, deviam ficar registadas no livro do tombo, a fim de se evitar abusos e confusões45. A preocupação de D. João I de atrair população para a proximidade da fronteira com Castela, já nos princípios de século XV bastante Humberto Baquero Moreno, O. c., pp. 50 e 33. Arquivo Municipal de Moncorvo (A. M. M.), Pergaminhos, nº 16, fl. 13. Publicado por José Marques, “A administração municipal de Mós de Moncorvo, em 1439”, in Brigantia – Revista de Cultura, Bragança, vol. V, n.os 2-3-4, pp.32-50, concretamente, p. 38. 45 Humberto Baquero Moreno, O. c., p. 33. 43 44

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despovoada, levou-o a transformar também a vila de Penas Roias em couto para todos os homiziados que aí fossem residir, como consta da carta de 1 de Setembro de 1407, confirmada por D. Afonso V, em 14 de Outubro de 144946. Além destes quatro coutos sedeados dentro da área do nosso estudo, tal como dissemos em relação as outras medidas de povoamento, também fora dela encontramos outros coutos de homiziados de instituição régia: Outeiro de Miranda (1421), Bragança (1439) e Vimioso (1494)47, para só referir os mais próximos. Com os dados até aqui expostos, cremos ter contribuído para veicular uma visão global do povoamento da área actualmente distribuída pelos concelhos de Miranda do Douro, Mogadouro, Freixo de Espada à Cinta e Torre de Moncorvo, podendo acrescentar que do que era a vida administrativa é possível ter uma pálida ideia a partir do caderno da prestação de contas do exercício municipal de Mós de Moncorvo, mandado elaborar pelo procurador João Gonçalves Carrasco ao tabelião e escrivão desta Câmara, Pedro Martins, que estudámos e publicámos em apêndice ao estudo A administração municipal de Mós de Moncorvo, em 1439, onde perpassam os problemas concretos da população concelhias, os seus anseios e tensões e até alguns problemas de natureza religiosa. Para além de tudo o mais, a existência e a acessibilidade que proporcionámos à leitura desse importante documento, transcrevendo-o e publicando-o, traz a primeiro plano a consciência do grave prejuízo que representou para a memória do passado desta região o desaparecimento dos livros de actas ou acordãos das vereações municipais desta zona de fronteira e dos registos dos contos de homiziados.

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Humberto Baquero Moreno, O. c., p. 39. Humberto Baquero Moreno, O. c., pp.43, 46 e 56, respectivamente. Revista Campos Monteiro


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5. Conclusão Com este breve estudo, cremos ter contribuído para alertar, sobretudo, os leitores desta revista cultural transmontana para o muito que ainda é possível apurar em relação aos aspectos históricos de Moncorvo e de outras localidades de toda a província de Trás-os-Montes e, mais concretamente, da sua parte leste. Fixámo-nos, em particular, na situação demográfica desta região nos finais da Idade Média, tendo chamado a atenção para a importância dos forais de Freixo de Espada à Cinta, Mós e Urros, outorgados por D. Afonso Henriques, todos segundo o paradigma do foral de Salamanca, que, além de elevarem estas localidades à condição de concelhos, desempenharam uma função importante no projecto do povoamento e da defesa desta região. Referimos, depois, os forais da Vilariça, de 122548, que se ficou a dever a D. Sancho II, e ao de Moncorvo, outorgado em 1285, por D. Dinis, como uma decisão histórica ao transferir a sede do concelho da Vilariça para Moncorvo49, não sendo novidade afirmar que o de Moncorvo, com algumas diferenças acidentais, é substancialmente, copia do da Vilariça. Além destes forais, para a região de Trás-os-Montes, já tivemos diversas oportunidades de identificar outros forais e diversas cartas de povoamento, sobretudo do século XIII, que será bom ter presentes ao analisar o problema da crise demográfica, particularmente sentida no leste transmontano, nos meados do século XV. Registámos também alguns indícios de tentativas de repovoamento, através de pequenos grupos de povoadores, com aconteceu com S.Tomé de Abambres, que, em 1 de Agosto de 1438, apesar de já contar com quatro fregueses (possivelmente, fogos), ficou anexa à paróquia de Mascarenhas50. Mais de vinte anos depois, em Outubro de 1458, a freguesia de S. Pedro de Avelanoso, que esteve erma durante várias Cf. nota 15. Cf. nota 7, O. c., pp. 31-33. 50 A.D.B., Conf., fl. 87. 48 49

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décadas, passou a contar com dez ou doze fogos, constituídos por moradores que para aí se transferiram, sendo, no entanto, anexada à de S.Cibrão ou Cipriano de Angueira51. No ano seguinte, em 22 de Novembro de 1459, D. Fernando da Guerra, apesar de saber que Santa Eulália de Genísio (Olalha de Ginzo) de Paradela, na terra de Miranda, dispunha, havia pouco tempo, de alguma população, decidiu anexá-la nesse dia, à de São Cibrão de Angueira52. Estes registos comprovam quanto foi difícil dinamizar o repovoa­ mento destas localidades e ajudam a compreender os motivos que levaram os nossos monarcas a instituir diversos coutos de homiziados, durante o longo período de 115 anos, nesta linha de fronteira ou nas suas proximidades, mais concretamente, entre o de Miranda do Douro, em 1374, e o de Vimioso, em 1494. Para encerrarmos este ponto, podemos acrescentar que conhece­ mos, documentalmente, o que se passou nas vizinhas terras de Riba Côa, que se situa numa linha de coerência com a drástica experiência destas paragens transmontanas. Como cenário desta realidade, nestas duas regiões, não perdemos de vista o que se passou em Portugal e na Europa, embora saibamos que a recuperação se foi processando, a partir de datas e prosseguiu a ritmos diferentes, tanto nas várias regiões europeias, como nas portuguesas.

A.D.B., Conf., fl. 203: «a quall anexa he vaga des os tempos das guerras. E pouco tempo ha se povorou hũua a de a herma de X ou XII freegueses». 52 A.D.B., Conf., fl. 208: «A quall anexa senpre foe despovorada e ora se povora... E porque asy era herma ha muito que he vaga...». 51

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Apêndice documental 1436, Agosto, 17 – Lisboa D. Duarte, por sentença do seu Desembargo, enviada aos juízes de Freixo de Espada à Cinta, decidiu a favor de Gonçalo Barroso a apelação por ele interposta no tribunal régio contra o concelho de Torre de Moncorvo, obrigando-o a pagar ao autor quinze ducados e seis dobras, que lhe devia, pelos serviços que lhe tinha prestado em Roma, na sequência do litígio com o abade absentista de S. Tiago desta vila. A. M. de Moncorvo, Pergaminhos, nº 12. – «Dom Eduarte pela graça de Deus rei de Portugal e do Algarve e senhor de Cepta. A vos juizes de Freixo d’Espada Cinta saude. Sabede que perante nos foy apresentado huum stromento d’agravo que ouvemos por appelaçom na quall era contheudo antre as outras cousas que preito e demanda foy ordenado perante vos antre Gonçallo Barrosso morador em Vilvestre autor da hũa parte e o concelho da Torre de Meem Corvo per seu procurador reo da outra mostrando o dicto autor perante vos huum stromento de contrauto que foy fecto antre elle e o dicto concelho per razom de certas leteras que o dicto auctor trouvera do Papa de Roma ao dicto concelho da Torre de Meemcorvo per razom de demanda que o dicto concelho avia com o abade de Santiago da dicta villa e per razom da regedencianque o dicto abade em a dicta egreja avia de fazer53 as quaes letras o dicto procurador entregara sobre as quaes leteras o dicto autor e o dicto Pero Saraiva procurador do dicto concelho ficarom que de todo aquello que disesse Diego Afonso Vieira criado de Roy da Cunha per sua verdade que as dictas leteras e escripturas ao dicto autor custarom em Corte de Roma que o dicto concelho da Torre de Meemcorvo lho pagasse e mais seis dobras d’ouro que o dicto concelho prometeu ao dicto autor d’alvisera com quaesquer outras cousas que o dicto autor do dicto concelho devesse d’aver de direito com a quall certidom do dicto Diego Afonso veera se o dicto procurador em nome do dicto concelho se obrigara parecer perante vos a certo tempo sob certa pena pera el autor em cada huum dia poendo logo o dicto Pero Sarayva procurador do dicto concelho em cauçam em poder de Joham Fernandez mercador dessa vila de Freixo d’Espada Cinta per vosso mandado setecentos reaaes brancos e um calez de prata segundo em o dicto stromento de contrauto mais compridamente era contheudo dizendo o dicto autor que pois o dicto concelho nom fora perante vos com a certidom do dicto Diego Afomso ao thermo que ficara e emcorrera na pena que lhe fezessem entregar a dicta cauçom e lhe mandássemos dar carta pera citar o dicto concelho de Torre pera ir em persoa de seu procurador e lhe fora assinaado certo termho a que parecesse perante vos. 53

A seguir está cortado: sobre. Número quatro

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José Marques E estando asi esto da parte do concelho da Torre de Meemcorvo vos foy apresentada hûa carta de Joham Jusarte corregedor em essa comarca per a quall vos mandou que nom conhecessedes mais do dicto fecto e se o dicto auctor sobre esta razom tevesse alguum direito que fosse demandar perante elle. E visto todo per vos julgastes que as dictas partes fossem perante o dicto corregedor alegar cada hũa seu direito. Da quall sentença o dicto autor pêra nos apellou e vos lhe non recebestes a apellaçom e elle o pos por agravo segundo em o dicto stromento mais comprimadamente era contheudo, o quall visto per nos havemollo por apellaçom e mandamos citar as partes que veessem alegar do seu direito. E ao termho que ouveram de parecer pareceo o dicto autor e nom pareceo o dicto concelho nem seu procurador e foy reu e aa sua revelia antes que em o dicto fecto dessemos final livramento julgamos que a auçom do dicto autor que perente nos pos pretendia e aa revelia do dicto conclho foy contestada per negaçom e o dicto autor deu a ello sua prova per scripturas pruvicas. E nos visto todo com o dicto fecto, presente o procurador do autor e aa revelia do dicto concelho e o que se per ell mostra, julgamos que nom he bem julgado em remeterdes o fecto ao corregedor e corregendo o autor despender em as dictas leteras quinze ducados. Porem condepnamos o dicto concelho em os dictos quinze ducados e mais seis dobras, as quaes lhe foram prometidas d’alvisera ou por cada huum ducado cento e trinta reaaes e por dobra cento e viinte segundo a ordenaçom. E asolvemos o dicto concelho das penas visto como se nom mostra o procurador teer poder pera a las prometer, e condenamos a parte nas custas e pois mandamos a vos e a todollas outras nossas justiças a que esta carta for mostrada que façades conprir <e> guardar este nosso juizo pella guisa que aqui per nos he julgado e fazede vender e rematar tantos dos beens movis do dicto concelho ante apregoados per três nove dias per que o dicto autor os dictos quinze ducados e seis dobras como lhe aqui per nos som julgadas e mais oytocentos e LXXVIIIº reaaes brancos cinco pretos de custas da nossa Corte e dallo d’atirar d’escripturas carta vista procurador e da persoa, as quaaes foram contadas com o dicto autor em aa revelia do dicto concelho per Dieg’Alvarez contador dellas em a nossa Corte. E se o movil nom avondar fazede lhes vender a raiz como he contheudo em a nossa ordenaçom. Unde al nom façades. Dada em a cidade de Lixboa XVII dias d’Agosto. El Rey o mandou per Joham d’Alpoiim seu vassallo sobrejuiz e per Roi Taveira seu vassallo e procurador dos fectos por o quall Roi Taveira esta senteça passou por que aa feitura della o dicto Joham d’Alpoiim nom era na Corte. Afomso Perez a fez. Pedr’Eannes escripvam em o fecto desta carta. Era do naci­ mento de Nosso Senhor Jhesus Christo de mil e quatrocentos e trinta e seis annos. XXX reais. Nom seja duvida o respançado das custas onde diz LXXVIIIº que eu o escripvam o fiz e corregi. (Assinado): RODERICUS». 134

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Quem foi Violante Gomes, a Pelicana Júlia Guarda Ribeiro*

Comecei a pensar em escrever sobre Violante Gomes, a Pelicana, há certamente mais de 10 anos, porque em Moncorvo reza a tradição que ela terá nascido nesta vila transmontana. Para além da tradição, há ainda alguns indícios que tendem a apontar no sentido de algo mais do que a simples tradição1. Venho lendo estudos, capítulos e páginas de historiadores, investiga­ dores e estudiosos e descubro que, nas suas obras e escritos vários, apresentam apenas uma ou duas linhas sobre Violante Gomes e ainda o fazem sempre indirectamente, uma vez que a figura estudada é seu filho, D. António, Prior do Crato e, menos frequentemente, o Infante D. Luís, pai do mesmo D. António. O denominador comum entre todos esses historiadores e estudiosos é o complexo processo da legitimidade ou ilegitimidade do Prior do Crato. Daí dependeria a razão de ser da sua candidatura ao trono de Portugal deixado vago após Alcácer-Quibir e, pouco depois, a morte do Cardeal D. Henrique. Só a este propósito se lêem algumas palavras, às vezes, uma breve anotação sobre a bela Pelicana. E, justamente porque Violante Gomes é por uns ignorada, por outros apelidada de judia, cristã-nova, cristã-velha, por aqueloutros de Escritora. “Consta que era natural de Moncorvo, a célebre Violante Gomes (a Pelicana) amante (alguns dizem mulher) do Infante D. Luiz, filho do rei D. Manuel, e mãe do infeliz e mal aconselhado D. António I, o prior do Crato”. Cf. Pinho Leal: “Portugal Antigo e Moderno” – “Moncorvo ou Torre de Moncorvo” – vol.V, 1875, pp. 381-390. Ed. online http://www.archive.org/stream/portugalantigoe02ferrgoog#page/ n381-390/mode/1up *

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mulher de vida incerta, plebeia, concubina, prostituta2 ou ainda de dama da pequena nobreza, cristã, esposa, Pelicana, Pandeireta, é que decidi escrever este pequeno artigo para a revista do nosso velhinho Colégio, focando o olhar não nos escassíssimos e contraditórios dados históricos sobre a “fermosa Pelicana”, mas sim no que sobre ela possa encontrar na Literatura. Para além do facto de, na História de Portugal, Violante Gomes não passar da obscuridade nas margens dessa mesma História, há outra razão pela qual dei outro enfoque a este escrito. Essa razão é simples mas muito forte: não tendo eu formação específica em História, em vez de meter a foice em seara alheia, voltei-me para uma seara que me é mais familiar: a Literatura. Daí o título (e o conteúdo) do presente escrito. Todavia, após leitura ou releitura das obras que, em seguida, vou registar, observo que também no campo literário,Violante Gomes surge figura nebulosa e, em muitos aspectos, contraditória. Há obras em que nem como figurante ela nos aparece. Sobre seu filho D. António há volumes e volumes em português, francês, italiano, espanhol. Sobre a Pelicana, como figura central, rigorosamente nada. São estes os títulos das obras que li/reli e sobre as quais procurarei tecer algumas considerações. No final, se for caso disso, tentarei inferir algumas ilações. – Virgínia de Castro e Almeida, A história mais triste de todas – história infanto-juvenil, n.º 35 da Coleccção Pátria, editada pelo S.P.N., 1943.

2 Deparei com este insulto em alemão, escrito por um soldado mercenário bávaro, Franz Hunnerisch, que lutava com as tropas do rei Filipe, contra D. António: “Don Athoni…/ Kham von khoniglichen stamen her/ Von einer Judiam in uneher/ Aus hurnerey kham er auff (…)” . Em português: “D. António/ vem de tronco real/ de uma judia amancebada/ de prostituição ele vem (…)”. “Über die Eroberung Portugals durch Philipp II, im Jahre 1580” (Acerca da conquista de Portugal por Filipe II no ano de 1580), in Revista da Universidade de Coimbra, vol. XII, p. 927, apud Mário Brandão “Coimbra e D.António, Rei de Portugal”, vol. I, 1939, pp. 45-46. Se os soldados de Filipe II até cantavam esta toada, é porque o insulto corria livremente.

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– Camilo Castelo Branco, D. Luís de Portugal, neto do Prior do Crato, Quadro Histórico (1601 -1660), Livraria Chardron, Lello & Irmão, 2.ª ed., Porto, 1896. – Júlio Dinis, Inéditos e Esparsos, Secção: “ Escritos Incompletos”, Porto, 1910, pp. 580-596. – Aquilino Ribeiro, “António I, o Rei Efémero”, in Príncipes de Portugal – Suas Grandezas e Misérias, Lisboa, Livros do Brasil, 1952, pp. 195-217. – Jorge de Sena, O Indesejado (António, Rei), tragédia, Edições 70, 3ª ed., Lisboa, 1986. (escrita entre Dez. de 1944 e Nov. de 1945, publicada em 1951; representada em Portugal em 1986). – Jaime Gralheiro, A Longa Marcha para o Esquecimento, tragi-farsa, publicada e representada em 1988/89 pelo Círculo Experimental de Teatro de Aveiro. – Fernando Campos, O Lago Azul, romance, DIFEL, Lisboa, 2007. – Urbano Tavares Rodrigues, Os Cadernos Secretos do Prior do Crato, novela, Lisboa, Ed. D. Quixote, 2007. Julgo que a amostra apresentada, ainda que reduzida, poderá ser aceitável, pela variedade de géneros literários e porque abarca um período de mais de 100 anos, o que me parece tempo suficiente para se terem apaziguado paixões, diluído ódios e amores e aclarado ideias. Comecemos pela pequena história infanto-juvenil que li pelos meus 9 anos3. Chamava-se A história mais triste de todas e falava-nos das lutas do Prior do Crato pelo trono de Portugal contra Filipe II de Espanha, depois Filipe I de Portugal, e da sua derrota frente ao poderoso exército comandado pelo Duque d’Alba. Lembrava-me do título e de pouco mais. Por isso, procurei o livrinho e encontrei-o na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Da autoria de Virgínia de Castro e Almeida4, Estes livrinhos, que enalteciam determinadas figuras históricas, eram então distribuídos nas Escolas Primárias aos alunos da 4ª Classe. 4 Virgínia de Castro e Almeida, A história mais triste de todas, n.º 35 da Colecção Pátria, ed. S. P. N. (Secretariado de Propaganda Nacional), 1943. 3

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o nome de Violante Gomes é aqui simplesmente omitido. D. António é o herói, o rei que a Pátria desejava e que o povo aclamava. Mas havia questões legais a ultrapassar. Ora, tendo a escritora assumido que esse herói não era filho de um legítimo matrimónio, o nome da mãe é escondido. Assim, a autora, não vê outra saída airosa senão escrever que D. António era filho natural5 do grande, mui culto e generoso Infante D. Luís. O nome do pai, porque príncipe, estava ali, engrandecido. Nem outra coisa seria de esperar, pois estava-se em pleno Estado Novo e a nova trindade era Deus, Pátria e Família. Família legítima, entenda-se. Portanto, de Violante Gomes, nem uma palavra. Quanto ao Quadro Histórico (1601-1660) que nos é apresentado por Camilo (já D. António havia morrido em 1595, no exílio em Paris, na mais triste pobreza), ainda está bem vivo o ódio do Escritor não só pelo derrotado Prior do Crato, mas por toda a sua descendência e ainda pelo Infante D. Luís, seu pai, a quem apoda de vil, infame e pérfido, ao contrário dos historiadores que consultei e que tecem rasgados elogios a este príncipe. Porém, é Camilo quem, numa longa nota de rodapé nos dá uma assaz razoável opinião sobre a Pelicana e o seu casamento com D. Luís. Ouçamos, pois, o escritor: Violante Gomes (…) Digo suposta judia, porque apesar da quase unanimidade dos historiadores, creio queViolante Gomes era christã velha. O pae deViolante era Pêro Gomes que residia em Évora em junho de 1554. (…). Os que dizem queViolante professou em Almoster e ao mesmo tempo a reputam judia, não reparam na incompatibilidade da profissão com o sangue inquinado. É certo, porém, queViolante nunca professou. Para mim, como para qualquer outra criança de 9/10 anos, era absolutamente claro que o filho de D. Luís fosse natural. Simplesmente desconhecíamos o sentido tão camuflado da palavra. E não é para admirar: no Grande Dicionário de Morais, só à 20ª entrada do adj. “natural” é que vem o sentido de “filho ilegítimo”; no Houaiss nem aparece esse sentido e, buscando num dicionário corrente (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 5ª Edição, s/d), tal sentido também não aparece. As crianças não compreendiam por que razão o Prior do Crato não podia ser rei. 5

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Esteve alguns anos em Vairão, e d’ahi passou para Almoster, onde morreu [em 1568], sobrevivendo quatorze anos ao infante6. Para muita gente está ainda indeciso se D. Luiz casou ou não casou com a mãe de D. António. Os documentos officiaes convencem de que não houve um casamento canonicamente válido; mas eu pendo a crer que houve um casamento simulado, uma fraude pouco menos de infame, uma perfídia para remover as dificuldades que Violante punha a deixar-se possuir. As minhas suspeitas esteiam-se em um documento coevo em que Pedro ou Pêro Gomes, pai deViolante, é nomeado sogro do Infante D. Luiz. No livro dos baptizados de uma freguezia de Évora lê-se o seguinte assento: Em 15 de julho de 1544, baptizou o bacharel della (da parochia, o Padre Diogo VidaL, a Luiz filho de uma escrava de Pêro Gomes sogro do infante D. Luiz, foram padrinhos (…), e por verdade assigneij. DiogoVidal Cura (…)7. O Abade de Baçal considera que esta não é uma razão válida, justificando: (…) vê-se pelos muitos presbíteros que nas listas das diversas inquisições de Portugal aparecem condenados por judaísmo (…). Cf. Alves, Francisco Manuel, Abade de Baçal, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança – Os Notáveis, Tomo VII, pp. 208-212, Edição da Câmara Municipal de Bragança/ Instituto Português dos Museus – Museu do Abade de Baçal – Bragança, 2000. Mas lembremos que D. Luís e Violante viveram maritalmente durante 9 anos e não consta em documento algum que lhes tenha sido negada a comunhão. Tinham mesmo os seus confessores privados. 7 Este assento de baptismo, de que muito se tem falado ultimamente, como tendo sido descoberto por Luís de Mello Vaz de São Payo e apresentado em um estudo recente (?): D. António, Prior do Crato e Outros Cavaleiros da Ordem de S. João, 1997, e que seria importantíssimo para provar a legitimidade do Prior do Crato, não parece ser uma descoberta assim tão recente. Deste estudo não achei rasto. Mas o mais curioso é que Veríssimo Serrão nos diz que o documento em causa foi descoberto por António Francisco Barata que dele falou a Camilo, tendo sido divulgado em primeira leitura por este escritor. Afirma que nele não consta (…) Pero Gomes sogro do Iffante dom Luís (…), mas sim (…) Pero Gomes sobrinho do Iffante dom Luís (…). Francisco Barata sustenta que no séc. XVI viveram muitas famílias de apelido Gomes na cidade de Évora e poderá tratar-se de um sobrinho de Violante Gomes, o qual seria também sobrinho por afinidade de D. Luís. Veríssimo Serrão não crê que o documento tenha sido forjado, mas admira-se que, escondendo D. Luís o seu casamento com a Pelicana para não ferir D.João III, o Piedoso, como permitiu que o seu nome figurasse naquele papel? Remata dizendo: A menos que D. Luís não se encontrasse presente na cerimónia do baptismo. Cf. Veríssimo Serrão em, O reinado de D. António, Prior do Crato, Coimbra, 1956, pp. LXIII-LXIV. Este assento não só está no livro competente, mas também se encontra copiado na Biblioteca de Évora no Códice CIII /1-17, fl. 56. 6

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Se aqui não há falsificação contemporânea a fim de fortalecer as pretensões de D. António à legitimidade em 1580, este documento tem grande valor para justificar a desmoralização do infante e a resistente virtude deViolante, enganada vilmente pelo aparato de um casamento em que também foi enganado o pai da atraiçoada e o cura que baptizou o filho da escrava. (…) Estes casamentos com falsos padres clandestinamente não eram extraordinários na sua sociedade”8. O mesmo assento de baptismo é transcrito de Camilo pelo Abade de Baçal que dele faz leitura bem diversa: “Este documento constituirá uma prova esmagadora a favor da legitimidade de D. António se realmente não foi forjado para reforçar as pretensões de D. António ao trono português”9. É esta também a opinião de Veríssimo Serrão e de vários investiga­ dores. Aliás, este historiador, a começar pela a sua tese de doutora­ mento10, tem procurado, com o seu labor, pesquisa e estudo aturado de documentos da época em Portugal e no estrangeiro, muitos deles inéditos, dar continuidade àquilo que o Visconde de Faria começara e a que podemos chamar a reabilitação da figura de D. António, muito denegrida durante a dinastia filipina, pois poucos historiadores se tinham interessado verdadeiramente por trazer luz a esta figura que tanto tempo permaneceu obscura, desgarrada e de tal modo esquecida que os seus ossos ainda repousam fora da Pátria. Todavia, esta questão foi aqui trazida, não para confirmar ou infirmar historicamente da legitimidade do Prior do Crato, mas porque, do ponto de vista literário, é sempre essencial aclarar ideias sobre o carácter e o modo de ser das personagens. Neste caso, os heróis, infelizes e trágicos, seriam D. António e sua mãe, Violante Gomes.

8 Camilo Castelo Branco, D. Luís de Portugal, neto do Prior do Crato, Quadro Histórico (1601-1660), Livraria Chardron, Lello & Irmão, 2.ª ed., Porto, 1896. pp. 112-119. 9 Alves, Francisco Manuel, Abade de Baçal, Memórias Arqueológico-Históricas… op. cit. p. 212. 10 Veríssimo Serrão, op. cit.

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Passemos a Júlio Dinis e ao seu Escrito Incompleto.Trata-se apenas de um esquema, nada mais que 16 páginas, orientadas talvez para novela, talvez para teatro. Júlio Dinis, nesta mancheia de páginas, é o único escritor a mencionar o nome de Marta de Évora, de quem há remotas suspeitas que possa ter sido a mãe de Violante Gomes. Historicamente nada se sabe da mãe da Pelicana e na Geneall está representada por um N, o que significa incógnita, desconhecida. A ter Júlio Dinis concluído a obra em mente, qual teria sido a acção principal? Quais as acções secundárias? Como se teria desenvolvido o enredo? É que, para além da existência de Marta de Évora, (supostamente filha bastarda de D. Diogo, duque de Viseu – irmão da rainha D. Leonor e de D. Manuel – assassinado por D. João II, e criada como filha por Briolanja Henriques11 e parece que, posteriormente, pelo médico e Chanceler da Casa do Cível, Dr. Vasco Fernandes de Lucena), sugere o autor que Marta estaria destinada pelo rei a casar com Antão de Figueiredo, camareiro de D. João II, mas que, por oposição da Rainha a tal casamento, acabaria a donzela por casar com Pedro Gomes (pai de Violante Gomes), ainda pertencente à família de Antão de Figueiredo. Porém, para além desta história, há ainda outro mistério a desvendar: o rapto de uma judia de nome Ester pelo Infante D. Afonso, filho de D. João II e herdeiro da coroa, o qual veio a morrer da queda de um cavalo junto da Ribeira de Santarém. O que teria acontecido a Ester? E não são os únicos estes dois núcleos de acção. Outros parecem delinear-se, como o destino de D. Jorge, filho bastardo de D. João II, criado por sua tia, a Infanta D. Joana de Aveiro. Por morte desta, seu pai, o rei, decidiu trazê-lo para a corte.

Esta senhora surge na crónica de Garcia de Resende, nas festas do casamento do Príncipe D. Afonso, filho de D. João Ii, a dançar e a tocar pandeiro: (…) e em vindo el-rey da See com o principe e o duque e con muito grande estado lhe sayo aa rua cantando com hum pandeiro na mão Dona Briolanja Anrriquez dona muito honrrada molher d’ Aires de Miranda; e el-rey com prazer a tomou nas ancas da mula e a levou assi com muita honrra onde a raynha estava. Cf. Garcia de Resende, Vida e Feitos d’El-Rey Dom João Segundo, p.151. (Texto da ed. crítica preparada por Evelina Verdelho, CELGA – Fac. Letras, Universidade de Coimbra, 2007). 11

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Como o destino de D. Afonso, outro filho bastardo do mesmo D. Diogo, Duque de Viseu, e criado em Pinhel às escondidas do rei. Ou o destino de uma outra criança, D. Beatriz, filha do Duque de Bragança, decapitado em Évora, e que a rainha D. Leonor protegia. Todos estes fios e estas vidas parecem entrelaçar-se, só não sabemos como Júlio Dinis o teria feito. Mas que têm estas dramáticas intrigas a ver com Violante Gomes? Apenas o seguinte: se todas as personagens e factos descritos e sugeridos por Júlio Dinis são verdadeiros ou têm a sua base histórica, porque o não seria Marta de Évora? Assim, pelo menos a Literatura poderia ter um nome para atribuir à mãe de Violante, e um nome de linhagem real, além de uma alcunha12. Príncipes de Portugal, Suas Grandezas e Misérias, de Aquilino Ribeiro. Já atrás ficou dito que o âmbito do presente trabalho é muito reduzido, no entanto não poderia deixar de fora esta obra, pois todos sabemos que é incontornável. Na sua nota de advertência ao leitor, os editores informam que o critério de Aquilino Ribeiro foi o do romancista: interessou-lhe tudo o que não é comum. Revisitado o seu ensaio, António I, Rei Efémero13, verifica-se de ime­ diato que Mestre Aquilino não foi nada meigo para com os progenitores do Prior do Crato. Logo de entrada e sem mais delongas, mimoseia D. Luís com os epítetos de: “(…) medíocre de entendimento, sagaz no viver, piedoso mas com boa dose de hipocrisia”, acrescentando: “(…) ele é o perfeito filho segundo de monarcas, tipo acabado de parasita Inúmeras vozes vêm sugerindo que D. Briolanja Henriques, que terá criado Marta de Évora, a terá ensinado a tocar pandeiro tendo, por isso, a menina recebido a alcunha de “Pandeireta” e terá passado essa alcunha a sua filha Violante. (Ver: «Marta de Évora – Debate sobre a “Legitimidade de D. António, Prior do Crato”», in Geneall-Forum -Geneall.net/Geneall.pt/Fórum/Guarda-Mor/Livraria). 13 Aquilino Ribeiro, “António I, o Rei Efémero”, in Príncipes de Portugal – Suas Grandezas e Misérias, Lisboa, Livros do Brasil, 1952, pp.195-217. 12

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nacional”. É com fina ironia que remata, dizendo o que dele ficou para a História: “(…) era pessoa de muito saber, amador de música (…)”14 e pouco mais. Sobre Violante Gomes não é muito mais brando. No entanto, na voz de Aquilino perpassa um certo tom de pesar pelo que o destino reservou à bela e infeliz Pelicana: (…) uma Violante Gomes, judia bonita e salerosa, alcunhada no bairro de Pelicana e ainda de Pandeireta, que [D. Luís] fez claustrar no Convento de Santa Maria de Almoster, quando se saciou dela e para atalhar ao engulho dos reais parentes que não podiam levar à paciência ter-se metido com uma criatura tão baixa e para mais rescendendo todos os ranços da Sinagoga15. Quanto à tragédia, O Indesejado (António, Rei) de Jorge de Sena, obra grande no cenário da Literatura Portuguesa, buscaremos as palavras que o autor escreveu no Pós-Fácio: Esta peça é uma tragédia, uma tragédia histórica. Uma tragédia em verso. (…) Sendo a tragédia a representação simbólica de uma crise dialética (…)16. Qual a crise dialética nesta tragédia? Os gregos chamavam hamartia à culpa que o herói carregava sobre si, mas que herdara dos antepassados. D. António é o filho bastardo, o filho de D. Luís, sim, mas também o filho da Pelicana, da Pandeireta. Ele é o bode expiatório do pecado dos pais. É o próprio Jorge de Sena quem nos diz: O Prior do Crato sofre as consequências de seu nascimento, da legitimidade duvidosa de sua pretensão17.

Idem, p. 195. Idem, ibidem. 16 Jorge de Sena, O Indesejado (António, Rei), tragédia, Edições 70, 3.ª ed., Lisboa, 1986. (Escrita entre Dez. de 1944 e Nov. de 1945, publ. em 1951; representada em Portugal em 1986), p. 153. 17 Idem, p. 154. 14 15

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A explicação surge logo no 1.º Acto, em diálogo entre D. António e o Bispo da Guarda, seu fiel seguidor: D. António: (…) E eu sou um homem. Que sou mais que um homem? Que uma ambição lutando contra tudo (…). Bispo: (…) Se tivéssemos Com que comprar todas as memórias, todos se lembrariam de nós. Perdão, senhor, de vós, do vosso nome. D. António: Qual? O que minha mãe não me concede? E tantos me contestam? Bispo: Esse ou outro. Ninguém, senão a Igreja nos baptiza. O resto: alcunhas, quando não são títulos. D. António: Alcunhas (…) “Pelicana” (…) “Pandeireta” (…) Bispo: Nomes de vossa mãe (…)Deixai que falem! Judeu, bastardo – tudo vos chamaram18 D. António, o bastardo, o não legitimado, sente que tem de salvar o seu povo. É essa a sua missão. Mas é, ao mesmo tempo, um homem indeciso, inseguro. D. António: (…) E sou tão frágil eu, nesta aventura Que só por ambição ainda flutuo (…)19. Olhando para o Homem que carrega, qual cruz, a culpa legada por seus pais e que se move entre a ambição e a fragilidade, sentimos que é aí que reside o trágico. Portanto, o fado, a moira terá de cumprir-se: derrotado, não será rei.

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Idem, pp. 23-24. Idem, p. 24. Revista Campos Monteiro


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Muito, muito mais há a dizer sobre esta obra imensa, mas que não cabe no objectivo nem no âmbito deste pequeno escrito. Temos agora na nossa frente a peça de teatro de Jaime Gralheiro, A Longa Marcha para o Esquecimento. À minha pergunta se classificaria a Longa Marcha como farsa ou como tragi-comédia, o autor respondeu-me sem hesitar: tragi-farsa. E porque introduzi esta tragi-farsa, justamente a seguir à tragédia de Sena? A obra foi escrita a propósito de grandes homens que deixaram obra notável e hoje estão totalmente esquecidos. Para concretizar este objectivo, o autor lançou mão da crise dinástica de 1580, com os seus traidores, os vira-casacas do tempo, o seu herói, D. António, e a sua ascendência, particularmente sua mãe. O autor considera que a nobreza atribuiu tão pouca importância à mãe do Prior do Crato que produz o seguinte diálogo entre um nobre – que nem sabe ao certo o nome da mãe de D. António – um mercador e um clérigo, ou seja, os representantes das três classes sociais. As franjas, isto é, a plebe também está em cena, mas não dialoga. Escuta e dá vivas: Real! Real! Por D. António, rei de Portugal!20 Nobre: Bom! D. António, Prior do Crato, é filho do Infante D. Luís, irmão do sr. Rei D. João III, que Deus guarde, e de uma tal Guiomar… Clérigo: Filho do pecado!… Mercador: Eu diria… filho do amor… Nobre: Não! Não! Filho do pecado… Diz bem o Sr. Padre Francisco: filho do pecado. Mercador: Pronto! Fica filho do pecado. E depois?… Nobre: Como filho ilegítimo que é, está impedido de ser rei de Portugal…

Jaime Gralheiro, A Longa Marcha para o Esquecimento, tragi-farsa, publicada e representada em 1988/89 pelo Círculo Experimental de Teatro de Aveiro, p. 4. 20

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país?

Mercador: Ah! Quer dizer: os filhos da puta não têm lugar neste 21

Depois de o Nobre e o Clérigo se terem escandalizado com tal linguagem, ao que o mercador responde: É a linguagem da gente da minha terra22, continua perguntando aquilo que realmente lhe interessa: se o Prior do Crato tem dinheiro para aguentar o comércio das Índias, para a guerra contra Filipe II, para a crise em que o país está… Todos se calam, mesmo os que aclamavam D. António como rei. Chega então Cristóvão de Moura que distribui moedas de ouro às mancheias a toda a gente e logo o grito de todos passa a ser: Real! Real! Por D. Filipe, rei de Portugal23. Talvez o leitor se pergunte se esta peça tem lugar neste trabalho, ou se terá sido trazida aqui para chocar pela linguagem. Primeiro, esta linguagem hoje não choca ninguém. Segundo, que querem dizer sábios historiadores e doutos investigadores ao apodarem Violante Gomes de “concubina, amante, mulher ignóbil, criatura baixa, mulher de vida incerta”? Nem mais nem menos do que aquilo que Jaime Gralheiro pôs na boca do mercador. Por outro lado, Gralheiro escreveu a Longa Marcha mantendo um pé na crise de 1580 e o outro na crise (ou na sequência de crises) que o país vem atravessando. Relembremos ainda que na crise de 1383- -85, D. João I, apesar de filho ilegítimo de D. Pedro I, fora eleito rei de Portugal. A questão da legitimidade nunca então foi posta, nem houve aproveitamento da origem social da mãe para a cobrir de insultos e, por essa via, denegrir o futuro rei. Contudo, se o caso era rigorosamente paralelo, em termos pessoais, ao de D. António, era muito diferente em termos conjunturais.

Idem, pp. 5-6. Idem, p. 6. 23 Idem, p. 20. 21 22

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Abordaremos, agora, o romance Lago Azul de Fernando Campos24. Gostaria de dizer uma palavra a propósito do título. Poderá haver quem pense tratar-se de uma novela leve, um romance cor-de-rosa. Nada mais longe da verdade. A referência é ao Lago Lehman, junto do qual viveram D. Manuel de Portugal, filho de D. António, Prior do Crato, e sua mulher Emília de Nassau e Orange, filha de Guilherme de Orange. Casamento de amor que, depois de 10 anos e oito filhos, acabou em turbulenta separação. Dentre as obras que seleccionámos é a que mais longamente se refere à Pelicana e que dela nos dá um retrato atraente, cheio de graça. O narrador omnisciente é o vento que nos fala da morte, omnipre­ sente e omnipotente: Tão formoso! Loiro, bom parecer, prazenteiro com todos, até com o sapateiro Simões Gomes que gosta de deitar as sinas dos futuros, galante com as damas e no vestir (…). Tanto projecto matrimonial falhado! Mas consta que se casou a furto com a formosa e jovemViolante Gomes. Paixão ardente. Ela, porém, honesta, só consentiu amores após o casamento. – Sois mancebo viçoso e florescente, meu senhor – passeavam os dois namorados à tardinha, pelo recolher das aves ao gasalhado da folhagem. – Fico muito honrada com a vossa afeição, mas… – Mas! – interrompia, desolado o infante D. Luís a sua amada – … mas esperam-vos, eu sei, toda a gente fala, casamentos com princesas, com infantas. Quem sou eu para me entremeter nos assuntos da vontade de el-rei nosso senhor? – Minha princesa sois vós,Violante. Outra não quero… (…). Sois de tal jeito insensível? Deixais-me para aqui como as ondas a bater em penedo na Serra da Arrábida? – Donzela virtuosa e honesta minha mãe me ensina não dever dar ouvidos a galanteios de príncipes. Insensível não sou e com ternura meu coração recebe as vossas mostras de afecto, justas galantes, músicas, motes e cantigas em meu louvor, que não mereço… Fernando Campos, O Lago Azul, romance, DIFEL, Lisboa, 2007.

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– Mereceis isso e muito mais. – (…) porém,virtude e honestidade me obrigam.Cumpre-me obedecer-lhes. – (…) discrição e graça que mais vos eleva a meus olhos. (…) Casaríeis comigo? – Oh! Meu senhor! – Casaríeis? – El-rei não consentiria. – Casaríeis? – E a princesa Maria de Inglaterra?… E a princesa Cristina da Dinamarca? E a princesa Edviges da Polónia? – Não, não! – balbuciava o jovem infante. – (…) Grandes e importantes são os negócios de matrimónios entre as famílias reais da Europa… – A todas rejeito – segurava-lhe Luís as mãos, decidido, caloroso. – Casaremos a furto. – Não sei.Tenho medo… – El-rei, meu irmão, de nada saberá. (…) – (…) Que dirão as pessoas? Vão maldizer-me, amaldiçoar-me… Já me chamam Pelicana… – … porque sois formosa… Não temais. Estareis sob a minha protecção. Nove anos viveram casados Luís eViolante. [Mas ela] compreendeu que o príncipe pertencia mais à república que a ela e nem sequer era senhora do filho, (…) entregue a colégios de frades.Tomou então a resolução de se sacrificar para os não prejudicar… e recolheu-se a sepultar a virtude no convento deVairão (…)25. Após esta longa citação, creio que o leitor terá construído um retrato, talvez aproximado do real, talvez beneficiado, de Violante Gomes. Por isso, poupo-me a quaisquer considerações.

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Idem, pp. 21-22. Revista Campos Monteiro


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Resta-nos a novela de Urbano Tavares Rodrigues: Os Cadernos Secretos do Prior do Crato26. Numa entrevista dada pelo escritor a Ricardo Paulouro e António Melo, em 1.06.2009, Urbano Tavares Rodrigues diz que esta sua obra é um livro da procura da serenidade, através da angústia e através do remorso, da perplexidade e da luta. Considera ainda que O Prior do Crato é um herói de causas perdidas (…)27. E que nos traz, de novo, de Violante Gomes, mãe do Prior do Crato? De novo, propriamente, nada. Coloca na boca de D. António cerca de duas dúzias de palavras de conveniência: Correm calúnias sobre minha mãe, Violante Gomes, senhora da peque­na nobreza, com quem meu pai fez um casamento secreto. Dizem-na agora cristã-nova, de origem judaica. Nada tenho contra os judeus, mas é redonda­mente mentira28. Teremos em conta que, nesta altura, o escritor nos apresenta D. António exilado em Paris, velho, doente, cansado e pobre. Daí, os seus pensamentos de homem exausto e rei vencido, aquela saudade característica dos velhos e quiçá alguns remorsos: (…) minha mãe, a quem chamavam na mocidade “a bela pelicana”. Lembro-me vivamente dela, mas deixámos muito cedo de conviver quando, com o consentimento de meu pai, ela recolheu ao mosteiro de Almoster. Os recados que algumas vezes me mandou eram sempre descoroçoantes, a aconselhar-me reserva, moderação, abandono da luta. Não obstante, sinto ainda correr por mim um fio de amor quando alguém ma lembra ou ela vem ter comigo em sonhos29. Urbano Tavares Rodrigues, Os Cadernos Secretos do Prior do Crato, novela, Lisboa, Ed. D. Quixote, 2007. 27 Revista A. 23 online, propriedade da Associação Cultural, Guarda. 28 Urbano Tavares Rodrigues, Os Cadernos Secretos do Prior do Crato, op. cit., p. 35. 29 Idem, p. 71. 26

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É a primeira vez que Violante Gomes nos é apresentada no seu papel de mãe, aconselhando o seu filho único que, bem cedo, havia sido afastado dela. Para tentar atar todas estas pontas ou, pelo menos, algumas delas, haverá que responder a algumas perguntas: Quem foi a mãe de Violante Gomes? Não há mais do que um leve indício, ainda que os intervenientes em Geneall–Forum, insistam neste ponto: Marta de Évora, filha de D. Diogo, Duque de Viseu, seria a mãe de Violante Gomes. Todavia, ao lado de opiniões equilibradas, ponderando documentos, indícios, sinais, acontecimentos históricos, penso que surgem neste debate ideias peregrinas que, por vezes, quase atingem as raias do delírio. Onde nasceu? Três terras se reclamam de ser seu berço: • Torre de Moncorvo, hipótese sustentada por Vilhena Barbosa e por Pinho Leal, citados pelo Abade de Baçal30, e pela tradição da vila, onde é voz corrente que aqui nasceu a “bela Pelicana” e nos é apontada a casa em que terá nascido.Também na ficha biográfica de Violante Gomes que se encontra em Geneall (Web), aparece Torre de Moncorvo como o lugar do seu nascimento31. A breve nota sobre Violante que Pinho Leal nos apresenta no seu “Portugal Antigo e Moderno”32 é demasiado vaga para poder ser considerada como prova histórica. O historiador refere apenas que “consta” que Violante Gomes era natural de Moncorvo. Mas, se à luz da

Alves, Francisco Manuel, Abade de Baçal, Memórias Arqueológico-Históricas …, op. cit., p. 209. 31 Nota Biográfica de Violante Gomes, “A Pelicana”: *Torre de Moncorvo, Torre de Moncorvo c. 1510 + Almoster 16.07.1568. Pai: Pedro Gomes. Mãe: N. Casamentos – Évora? D. Luís, infante de Portugal, 5.º duque de Beja *03.03.1506. Filhos: D. António Prior do Crato *1531. Cf. GENEALL – WEB. 32 Leal, Pinho: “Moncorvo ou Torre de Moncorvo”, in Portugal Antigo e Moderno, op. cit., p. 388. 30

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História está longe de poder ser aceite como prova vem, no entanto, corroborar a tradição. O PARM (Património Arqueológico da Região de Moncorvo) e o site sobre Moncorvo fazem-se eco destes informes. Há, também, uma interessante versão romanceada num artigo do jornal Terra Quente33, que segue a tradição e acompanha o artigo uma fotografia da casa onde terá nascido a Pelicana. Quanto às minhas pesquisas, lamento dizer que apenas encontrei umaViolante Gomes ligada a Moncorvo pelo casamento de uma filha com Francisco de Arosa Pinto, desta vila. Outros Arosas Pinto de Moncorvo surgem nessas páginas. Nada têm a ver com Violante Gomes, a Pelicana. A obra em causa intitula-se “Pedatura Lusitana”34. • Évora, é a terra onde vive seu pai, Pedro ou Pero Gomes, e onde, sua suposta mãe, Marta de Évora, terá sido criada por D. Briolanja Henriques, filha de D. Fernando Henriques, 2º senhor das Alcóçovas e de Branca de Melo, senhora de Barbacena, casada com Aires de Miranda, alcaide-mor de Vila Viçosa. O Infante D. Luís era Duque de Beja e muito se alongava pelo Alentejo, até porque a corte também pousava com frequência por terras de Montemor, Évora, Beja… Por outro lado, parece que toda a família de Violante era de Évora e/ou vivia em Évora (Violante Gomes teria uma irmã, Clara Gomes, e sobrinhos, entre os quais Frei Diogo Carlos, teólogo e orador, que acompanhou o primo D. António no exílio)35. Fgan (Maria Fernanda Guimarães), n.º 14 da série “Caminhos Nordestinos de Judeus e Marranos”, in Terra Quente, 01.11.1999. 34 Morais, Cristóvão Alão de, “Pedatura Lusitana”, in Nobiliário de Famílias de Portugal, Tomo V, vol. II, ed. Livraria Fernando Machado, 1943-1948, pp. 31-32. Biblioteca Nacional Digital, http://purl.pt/12118/4/hg18226-v-hg-18226-v_ item3/P9./html 35 “Frei Diogo Carlos, (…) acompanha numa assistência constante D. António, de quem era conselheiro. Perseguido por Filipe II e pregador eloquente, deixou na Universidade de Paris fama de grande teólogo e orador e nessa cidade redigiu o testamento de D. António em 1595. (…) É geralmente dado como tio materno de D. António. Porém, Camilo Castelo Branco atribui a sua filiação a Francisco Carlos e 33

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Provavelmente será esta a hipótese mais convincente. • Covilhã, ao que tudo indica, fundamenta a sua pretensão no facto de D. Luís ser senhor da Covilhã, como era senhor de Moura, Serpa, Seia e Marvão. Não parece, pois, ser essa base suficientemente forte para apoiar a sua pretensão. Seria Violante Gomes judia, cristã-nova, cristã-velha, cristã? É tão difícil responder com certezas a esta pergunta como às anteriores. Não podemos perder de vista que todos os documentos referentes a D. Luiz, incluindo o original do próprio testamento, desaparecido da Torre do Tombo, ( Veríssimo Serrão, op. cit. p. LIV), bem como os respeitantes ao filho D. António e, naturalmente, os que mencionassem Violante Gomes, desde que o seu teor fosse contrário aos interesses de Filipe de Espanha, foram todos bem rebuscados e destruidas, como nos diz este historiador. Transcreve cartas e partes delas entre Cristóvão de Moura e o rei Filipe que provam a busca (até o roubo) e a destruição sistemática dos documentos que o não favoreciam. De igual maneira procedeu o cardeal-rei reduzindo a cinzas tudo o que favorecesse o sobrinho António, a quem votava um ódio de morte 36. Este ponto: espionagem, roubo e destruição de documentos é, não só de grande importância para a História, como também para a ficção, pelo mistério envolvente e de que o leitor sente fortemente o apelo.

Clara Gomes (…) irmã de Violante Gomes, a Pelicana”. Cf. “Frei Miguel dos Santos e a luta contra a União Dinástica”, pp. 351-352, Notas 102 e 106, 1997, in Revista da Fac. de Letras: História, Porto, ed. online – http://ler, letras, up, pt./ficheiros/2084, pdf. Comparar com Camilo: “O pai de Violante (…) Pero Gomes, tinha outra filha, chamada Clara, que casou com Francisco Carlos. D’estes nasceu Diogo Carlos, que foi frade franciscano (…) e acompanhou seu primo D. António, cujo testamento escreveu em Paris em 1595”, in Camilo Castelo Branco, D. Luís de Portugal, neto do Prior do Crato, Quadro Histórico (1601 -1660), op. cit., p.112. 36 Cf. Veríssimo Serrão em, O reinado de D. António, Prior do Crato, op. cit., pp. LV, LIX, LXI e LXII. 152

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Quem foiViolante Gomes, a Pelicana

Teria Violante Gomes casado, de facto e canonicamente, com o Infante D. Luís, ou isso não terá passado de uma tentativa de logro por parte do Prior do Crato para fazer valer a sua candidatura ao trono como filho legítimo, como admitem alguns historiadores e estudiosos da nossa História, incluindo o probo Alexandre Herculano? Ou o casamento, a ter existido um casamento, tal acto não passou de uma farsa, como quer Camilo? Sofreu a ludibriada Violante realmente a terrível humilhação de saber que o seu “marido”, falso como Judas, a enredara numa mentira medonha durante dez anos? Ou a bela Pelicana foi, por sua vontade, a apaixonada amante do seu Príncipe? O que levou Violante Gomes a separar-se de D. Luís e, antes dos 30 anos, enterrar-se num convento? Também aqui, pela falta de documentos, é impossível dar respostas definitivas, sejam elas afirmativas ou negativas, embora cada um de nós tenha já, porventura, posto de lado algumas conjecturas e guardado outras no bolso, porque pendendo para um lado ou para outro, todos formamos os nossos juízos. E tudo leva a crer que a personagem, Violante Gomes, será capaz de atrair sentimentos profundos. Então o que nos resta sobre a bela Pelicana? Penso que, para a História, a não aparecerem documentos que comprovem estas ou aquelas hipóteses, resta pouquíssimo. Tudo o que sabemos com certeza, caberá em um ou dois curtos parágrafos. E o que resta para a Literatura? Aqui o caso muda de figura. Um escritor, romancista, homem de teatro, poeta, pegando na situação, que é riquíssima, com a sua liberdade de ficcionar episódios e criar diálogos em volta de alguns núcleos de accção reais e verdadeiramente dramáticos, terá certamente abundante material para nos dar uma visão não muito distante nem muito desfocada do que terá sido a vida da “fermosa Pelicana”, no enlevo do seu grande amor, nos seus sonhos, alegrias e ilusões e depois, jovem mulher secando Número quatro

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Júlia Guarda Ribeiro

na solidão de uma cela, atada no nó da sua amargura, procurando abafar o grito rouco da desilusão. Bibliografia História:

Alves, Francisco Manuel, Abade de Baçal, “Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança – Os Notáveis “,Tomo VII, pp. 208-212, Edição da Câmara Municipal de Bragança/ Instituto Português dos Museus – Museu do Abade de Baçal – Bragança, 2000. Faria, António de Portugal Faria (Visconde de Faria), “D. António, Prieur de Crato, XVIII Roi de Portugal et sa descendence”, 1917, pp. 5-7. Resende, Garcia de, Vida e Feitos de El-Rey Dom João II, Texto da edição crítica por Evelina Verdelho, CELGA – Fac. Letras, Univ. de Coimbra, 2007. Jokubauskas, Carlos “As jornadas de um bastardo: guerras antoninas pela coroa portuguesa” (1580-1589), in Anais do XVIII Encontro regional de História – O historiador e o seu tempo, Univ. de S. Paulo/Assis, 24 a 28 de Julho de 2006, cd-rom; http://www.anpuhsp.org.br/downloads/cd/20XVIII/pdf/ PAINEL/20 pdf Leal, Pinho, “Moncorvo ou Torre de Moncorvo”, in “Portugal Antigo e Moderno”, 1875, vol. V, pp. 381-390; ed. online: http://www.archive.org/stream/ portugalantigoe02ferrgoog#page/n381-390/mode/1up Marques, João Francisco, “Frei Miguel dos Santos e a luta contra a União Dinástica” – “O Contexto do Falso D. Sebastião de Madrigal”, in Revista da Fac. de Letras: História, Porto, II Série, vol. XIV, 1997, pp. 351-352, notas 102 e 106; ed. online, http://ler,letras,up,pt,/ficheiros/2084, pdf / html Moraes, Cristóvão Alão de, “Pedatura Lusitana”, in Nobiliário de Famílias de Portugal, Tomo V, vol.II, pp. 31-32, Livraria Fernando Machado, Porto, 1943-1948, Biblioteca Nacional Digital, http://purl.pt/12118/4/hg18226-v-hg-18226-v_ item3/P9./html Serrão, Joaquim Veríssimo, O Reinado de D. António, Prior do Crato (Tese de Doutoramento), Coimbra, 1956, pp. XV-LXVII. Serrão, Joaquim Veríssimo, “O Século de Ouro (1495-1580)”, in História de Portugal, vol. III, Verbo, Lisboa, 1978. Sites de: Covilhã, Évora e Moncorvo: http://www.covilhã http://www.évora http://www.torredemoncorvo 154

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Quem foiViolante Gomes, a Pelicana PARM: (Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo) http://www.parm “Torre de Moncorvo – a Tradição e a Casa da Pelicana”, 20 de Março de 2008 WEB: GENEALL (Famílias e Costados); http://www.geneall.net/geneall.pt/ GENEALL-FORUM (Debate sobre a legitimidade de D. António, Prior do Crato)

Literatura:

As obras registadas no corpo do texto e:

Cândido, António, Noções de Análise histórico-literária, Associação Literária Humanista, São Paulo, 2005. Cardoso, Patrícia, “Um Rei não morre – Poder e justiça em duas tragédias portuguesas”, in Revista Letras, Curitiba, n.º 68, Jan/Abr, 2006, pp. 101-114. Menegaz, Ronaldo, “O Indesejado”, de Jorge de Sena: “O rei que foi apenas um homem” in Revista Semear, n.º 6, pp. 335-357, Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses, Rio de Janeiro, Março, 2002 Entrevista a Urbano Tavares Rodrigues, feita por Ricardo Paulouro e António Melo, in A.23 online, n.º 4, 01.06.2009, Associação Cultural da Guarda, Guarda, pp. 32-33.

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Mundialização – Breve Reflexão Maria da Assunção Carqueja Rodrigues *

A palavra mundialização é usada no sentido cultural, social e político. Os especialistas concordam não ser fácil enumerar todas as características do conceito, pelo que a sua definição se torna, sob o ponto de vista lógico, impossível pois nunca será reversível. As implicações da mundialização são numerosas e abrangem vários problemas. O primeiro é o de saber se o fenómeno pode ser explicado por causas sociais ou se pelo contrário é ele que as explica. Os defensores da primeira hipótese consideram como um fenómeno que começa no Paleolítico, ganha grande amplitude com as descobertas marítimas mas que, na realidade, só se revela com o desenvolvimento social recente, em virtude das experiências realizadas no espaço e no tempo. O espaço e o tempo são construções culturais, sociais, e as alterações da sua percepção são um produto da ciência e da tecnologia, que mutuamente se implicam e produzem a mundialização, na medida em que se não confinam a um território (desterritorialização), provocando movimentos sociais, uma forma de desraizamento, como escreveu A. Karogeorgieva1. Este fenómeno caracteriza a vida moderna, como se verifica nas cartas geográficas e mapas, abrangendo todo um mundo novo. Muitas actividades sociais como o comércio, comunicação e ciência deixaram de ser localizadas. A descoberta de novas redes de informação permite reunir os interve­ nientes em determinado domínio, independentemente da sua localização. Investigadora. XVII Congresso Internacional da A.I.P.P, 2008.

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Maria da Assunção Carqueja Rodrigues

A comunicação torna-se cada vez mais rápida e o mundo pode ser visto numa pluralidade de aspectos. A globalização é a inter-dependência transnacional, económica e social, que põe em acção mecanismos de controlo dirigido por organi­zações internacionais. A mundialização da ciência e da tecnologia também originaram uma realidade diferente nos domínios da arte, da religião e da filosofia. A reflexão filosófica alargou-se a problemas específicos como a morali­ zação da ciência, da legitimidade de algumas investigações e sua incorpo­ ração na vida social e cultural. Por essa razão existem comités de Ética em algumas clínicas e hospitais, desenvolvendo regras e justificações sociais em domínios sensíveis, como o da fertilização e da genética. Também a reflexão filosófica se alargou ao campo da economia – ética da economia. A moral incide sob os limites dos agentes económicos. Uma característica da globalização ou mundialização, conceitos correspondentes mas com origens diferentes, é o desenvolvimento das ciências humanas e o progressivo interesse que despertam no mundo inteiro. Num mundo global verifica-se a procura da identidade pessoal, recorrendo à memória histórica, pessoal e colectiva. Entre as muitas consequências da mundialização do comércio vamos recordar uma que, nos últimos tempos tem despertado mais atenção: o acréscimo da obesidade. A alimentação modificou-se. Há nos mercados produtos de outras regiões e fora de época. Ao mesmo tempo surge a chamada civilização do fast-food, que se difunde cada vez mais. Numa perspectiva política a mundialização diminui a diferença entre nacionais e estrangeiros, mas a descentralização política cria a necessi­ dade de organizações supra-nacionais em alguns domínios mais sensíveis como, por exemplo, na ecologia. As preocupações globais alargam- -se procurando meios para problemas mundiais como o da fome ou dos desalojados. 158

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Emigração do concelho de Torre de Moncorvo para o Brasil (1856-1901) 1

Maria da Conceição Salgado*

Introdução Desde o longínquo fenómeno dos Descobrimentos e da colonização dos novos mundos, nenhum outro fenómeno marca de forma tão decisiva como a emigração portuguesa a história do nosso país. A emigração nacional para o Brasil, autêntica nova “epopeia”, por vezes trágica, reflecte a difícil situação económica e social que Portugal ciclicamente atravessa no período em análise: numa primeira fase, a devas­tação causada pela guerra civil entre irmãos, com as consequentes perdas de vida e produtividade; depois, já no 3º quartel do século XIX e até final da centúria uma grave crise financeira criada pela política de “progresso material” – levada a cabo pela Regeneração e agravada pelo Ultimato – com toda a agitação política e social que se segue. Assim, pelos condicionalismos históricos internos e externos e ainda pela nossa geografia podemos traçar o percurso da emigração portuguesa em direcção ao Brasil. Durante o séc. XIX, milhares de portugueses emigram para aquele destino, por aventura ou necessidade: muitos na esperança de conseguirem fortuna de forma fácil e rápida; e outros aliciados pelo trabalho dos engajadores (agentes) ou pelo apoio dado por conterrâneos Investigadora do CEPESE.

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Maria da Conceição Salgado

estabelecidos na diáspora. E se alguns conseguem mudar de vida e estatuto, muitos outros regressam tão pobres como partem ou por lá vivem e morrem anónimos, silenciosamente anónimos. Vários acontecimentos no Brasil tornam imperativa a substituição de mão-de-obra: primeiro, a extinção do tráfico negreiro, em 1850; depois, a lei do Ventre Livre que garante a liberdade a todos os filhos de escravo nascidos a partir desta data, em 1871; a seguir, a lei dos Sexagenários, em 1885, que torna livre os escravos a partir dos 65 anos, finalmente, a Lei Áurea, em 1888, que põe fim à escravatura. De facto, esses acontecimentos provocam elevados prejuízos à economia brasileira, que se encontra em franco desenvolvimento pela exploração do café e depois, pela borracha, levando o governo desse país à criação de incentivos à imigração, o que origina uma forte corrente migratória não só nacional como estrangeira. Esse fluxo migratório nacional atinge então cifras de tal modo elevadas que o nosso governo é levado a tomar medidas de controlo da emigração legal e de repressão sobre a emigração clandestina, pois atribui aos fluxos de mão-de-obra para o exterior o atraso português. Contudo, o discurso parlamentar utilizado, ora se insurge contra a chamada “ escravatura branca”, ora faz ressaltar a importância das remessas dos emigrantes para o equilíbrio da nossa economia. Para obter informações rigorosas sobre a real situação do país relativa ao estado da emigração nos vários distritos, são elaborados inquéritos parlamentares por comissões eleitas para o efeito, nos anos de 1843, 1873, e ainda em 1885. No que concerne ao distrito de Bragança, os primeiros revelam que, neste distrito, existe pouca emigração. Porém, o Inquérito Parlamentar de 1885, enviado a todos os presidentes de câmaras municipais, administradores dos concelhos e escrivães da fazenda dos vários distritos, apresenta resultados que nos mostram entre outros assuntos, o estado da agricultura, a existência ou não de indústrias e, finalmente, informações sobre o número de emigrantes, local de destino, presença ou não de acompanhantes, razões da saída, idades com que 160

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partem, emigrantes regressados com fortunas, existência ou não de emigração clandestina e de engajadores. 1. Breves considerações sobre o concelho de Moncorvo A interioridade do concelho, como aliás de todo o distrito, acrescida de um relevo fortemente acentuado – o que mais ainda o tem distanciado do centro das decisões políticas – torna-o numa região quase esquecida e as suas populações votadas a um total isolamento. O Relatório da Junta Geral de Bragança, em 1853, refere que as comunicações no interior são difíceis e que as estradas se encontram num estado lastimável, dificultando o acesso à estrada que liga Bragança à foz do Sabor, lamenta ser o seu estado de tal forma que “se o viajante estrangeiro nos avaliar por ela, considerar-nos-ia como um povo bárbaro”1. Vivendo da agro-pecuária, a indústria é praticamente inexistente e os seus imensos recursos minerais, nomeadamente o ferro, encontram- -se por explorar. Segundo a mesma fonte, “as subsistências, quando abundam, não conseguem chegar aos mercados consumidores, devido ao isolamento em que esta região se encontra do resto do país, morrendo os produtos arreigados ao solo”2. 2. Os registos de passaporte do Governo Civil de bragança, fonte privilegiada deste trabalho Os registos de passaporte são documentos únicos. Em nenhum outro país senão em Portugal, existe este tipo de fonte, daí resultando que o seu estudo e interesse sejam relevantes para o estudo e análise da mobilidade, permitindo ainda uma investigação micro-analítica de 1 2

Relatório Geral da Junta de Bragança, 1853, p.3. Relatório da Junta Geral de Bragança de 1866, p..9. Número quatro

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contextos sócio-familiares, económicos e culturais, contribuindo para um melhor conhecimento das populações e consequente enriquecimento da história local. Existem numerosos estudos publicados sobre a temática da emigração não sendo, por isso, um assunto novo. Contudo, no que respeita ao Distrito de Bragança, a abordagem que propomos baseia-se fundamentalmente nos Livros de Registo de Passaportes do Governo Civil de Bragança, uma vez que, à semelhança do que se passa em todos os distritos, a concessão de passaportes para fora de Portugal é da competência dos Governos Civis. Assim, agora disponibilizados no Arquivo Distrital de Bragança, encontram-se 43 livros de Registo de Passaportes Deferidos, com início em 1844 até 1969, com algumas lacunas3. No estudo que apresentamos, o que afecta a exposição dos nossos resultados é o que diz respeito ao período compreendido entre 22 de Maio de 1889 e 2 de Outubro de 1890, por extravio do livro de registo. Para o presente trabalho, foram analisados os registos de passaportes a partir de 1856 – pois ninguém no concelho de Moncorvo solicita passaporte antes deste período – até 1901, num total de 13 livros. Os registos não se apresentam formalmente uniformes: uns contêm formulário impresso; outros apresentam texto totalmente manuscrito. E, muito embora se verifiquem falhas de informação em alguns deles, podemos saber quem partiu, quando o fez, com que idade, donde é natural, local de destino, se partiu só ou levou acompanhantes, quem fez uma ou mais viagens, se vai ou não engajado. Verificação das suas características físicas – pois no período em questão não é ainda utilizada a fotografia – e ainda, a partir de 1876, o local de embarque e filiação do titular4. Não existem registos de passaporte para os seguintes períodos: de 22 de Maio de 1889 a 2 de Outubro de 1890; de 18 de Abril ao fim de Dezembro de 1905 e de 1 de Janeiro a 14 de Março de 1906. 4 Para este estudo lançámos os dados numa base informalizada e criada pelo CEPESE – Centro de Estudos de População, Economia e Sociedade, da Faculdade de Letras do Porto, centro este dirigido pelo Prof. Dr. Fernando de Sousa. 3

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Convém frisar que a emigração que nos propomos analisar é a emigração legal requerida apenas no Governo Civil de Bragança, não entrando em linha de conta com os pedidos de passaporte que tenham sido solicitados em outras partes do país, mormente nas cidades do Porto ou Lisboa, para onde muitos partem, decidindo-se, mais tarde, por outras paragens. Porém, como a quantificação dos dados obtidos não responde a dúvidas suscitadas pelos resultados da pesquisa, procurámos informação em outros documentos ou textos que nos ajudassem a encontrar justificação de ordem local/regional para a compreensão destes resultados. 3. Efectivos migratórios registados pelo Governo Civil de Bragança quanto ao concelho de Moncorvo O primeiro registo de passaporte pedido por um indivíduo do concelho de Moncorvo aparece em 1856. Até esta data, não há qualquer registo para este concelho. Assim sendo, e até ao final da nossa da nossa observação, que tem como término 1901, sabemos que foram requeridos para vários destinos 170 passaportes, fazendo-se acompanhar alguns requerentes (titulares) por familiares, sobretudo mulher e filhos no mesmo passaporte. Uns almejam o Brasil, outros visam outros destinos, sobretudo Angola e Moçambique. Os que pretendem alcançar esse império mítico querem sair, não importando onde desembarcar. O que interessa é ir para o Brasil, o porto de destino sabê-lo-á posteriormente. É que nos registos, nem sempre é mencionado pelo amanuense o porto de desembarque; mas apenas referido que o titular se dirige para o “império do Brasil”, devendo “apresentar-se no local de desembarque ao cônsul português aí residente”.

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Figura 1 – Registo de Passaporte: José Maria do Sacramento, Exposto, primeiro titular de passaporte, natural de Mós, concelho de Moncorvo, registado no 1º Livro de Registos de Passaporte do Governo Civil de Bragança.

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3.1. Destino declarado pelos emigrantes Nem todos os registos indicam o porto de chegada dos emigrantes. Sabemos, contudo, por estudos já efectuados nos censos brasileiros5 e nas Listas de passageiros desembarcados no Brasil, ser o Rio de Janeiro o local privilegiado, muito embora, na nossa observação, seja referido apenas em 28 registos. A indicação do local de desembarque ocorre, provavelmente, quando o requerente é aguardado por familiares ou conhecidos no destino, ou já sabe onde pretende desembarcar. Quanto à partida, o embarque é feito, geralmente, na cidade do Porto, inicialmente na barra do Douro, e, mais tarde, nos finais do século XIX, meados da década de 90, no porto de Leixões. Quadro n.º 1 – Indicação de destino dos titulares de passaporte e acompanhantes (1856-1901) Total de Destinos Titulares Acompanhantes Emigrantes Baía 1 1 Brasil (local não identificado) 98 52 150 Minas Gerais 1 1 Pará 1 1 Rio de Janeiro 28 10 38 S. Paulo 24 33 57 Total 153 95 248

3.2. Registo anual dos emigrantes Quando analisamos os registos, constatamos que periodicamente se verificam mais ou menos ocorrências, havendo anos em que são inexistentes. Inicialmente, o emigrante parte só, não leva acompanhantes Lená de Menezes no artigo “A presença dos portugueses no Rio de Janeiro, segundo os Censos de 1872, 1890, 1906 e 1920: dos números às trajectórias de vida “, p. 103, da Revista do CEPESE “Emigração portuguesa”publicada em 2007, refere a sua forte presença naquela cidade. 5

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e por isso, o número, quer dos titulares, quer dos acompanhantes, é pouco relevante até finais até 1893, pautando-se por um número reduzido de efectivos. Assim sendo, notamos que, de 1856 a 1893, durante 37 anos, apenas requereram passaporte 41 titulares, acompanhados por 8 pessoas. No período compreendido entre 1894 e o fim da nossa observação, em 1901, e em apenas 7 anos, o seu número alcança a centena de efectivos. Constatamos ainda que entre, 1894 e 1896, o número dos titulares (35) é o mesmo dos acompanhantes (35). Início de uma emigração familiar, certamente. Gráfico n.º 1 – Evolução do ritmo de registos por períodos

3.3. Género e grupos etários dos emigrantes Procedendo à verificação dos emigrantes por género ou sexo, constatamos que, até 1882, não existe nenhuma mulher a requerer passaporte. E, até final do período observado, existem apenas 16 passaportes solicitados por mulheres. A maior parte vai como acompanhante (24%), integrando um passaporte colectivo, na companhia do marido, do pai e, por vezes, de um irmão. 166

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Emigração do concelho de Torre de Moncorvo para o Brasil (1856-1901) Gráfico n.º 2 – Emigrantes por género (1856-1901)

Esta é uma emigração essencialmente masculina, ou seja, titulares e acompanhantes do género masculino perfazem 70% do total de emigrantes. Inicialmente, o homem parte só, registando-se, até 1893, apenas 9 acompanhantes (3 do género masculino e 6 do género feminino). A partir desta data e até ao fim da nossa observação, estes números aumentam. 3.4. Grupos etários dos emigrantes A distribuição dos emigrantes por grupos de idade mostra-nos que o grupo mais representativo se encontra nos indivíduos com idades compreendidas entre os 25 e os 29 anos seguido do grupo etário dos 20 aos 24 anos. Depois dos 40 anos, o número de efectivos é diminuto.

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Maria da Conceição Salgado Quadro n.º 2 – Distribuição dos emigrantes por grupos etários (1856-1901) Total de Titulares Acompanhantes Anos % Masculino Feminino Masculino Feminino Emigrantes 0-4 17 13 30 12,1 5-9 1 9 8 18 7,3 10-14 17 8 5 30 12,1 15-19 10 1 5 16 6,5 20-24 24 4 6 34 13,7 25-29 37 4 1 8 50 20,2 30-34 22 1 4 27 10,9 35-39 13 2 5 20 8,1 40-44 6 2 8 3,2 45-49 3 3 6 2,4 50-54 4 1 5 2,0 55-59 3 3 1,2 60-64 1 1 0,4 Total 137 16 36 59 248 100,0

Gráfico n.º 3 – Distribuição dos emigrantes por grupos etários (1856-1901)

Em relação aos acompanhantes, o grande número obervado está relacionado com as crianças com menos de 10 anos de idade que, como é óbvio, não têm idade para requererem passaporte. É também significativo o número de titulares com menos de 14 anos de idade.

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Emigração do concelho de Torre de Moncorvo para o Brasil (1856-1901)

3.5. Estado civil Quadro n.º 3 – Distribuição dos emigrantes por estado civil (1856-1901) Estado Civil Titulares Acompanhantes Total de Emigrantes Solteiros 70 63 133 Casados 68 30 98 Viúvos 4 4 Sem Indicação 11 2 13 Total 153 95 248

Quanto ao estado civil, se tivermos em linha de conta todas as idades, temos uma emigração com predomínio de emigrantes solteiros (54%). Se, porém, apenas considerarmos os maiores de 18 anos, assistimos a um equilíbrio nas saídas: solteiros (49,7%) e casados (50,3%). Gráfico n.º 4 – Emigrantes por estado civil (1856-1901)

3.6. Freguesias de origem dos emigrantes Ao levantarmos as freguesias de origem dos emigrantes, constatamos que nos Estevais, Junqueira e Vide, a emigração foi praticamente inexistente e que Maçores, Moncorvo, Açoreira e Carviçais foram, relativamente àquelas, maiores exportadoras de mão-de-obra. Verificamos ainda que é de Açoreira que partem titulares com um número significativo de acompanhantes. Número quatro

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Maria da Conceição Salgado Quadro n.º 4 – Distribuição dos emigrantes pelas freguesias do concelho de Moncorvo (1856-1901) Naturalidade Titulares Acompanhantes Total de Emigrantes Açoreira 11 21 32 Adeganha 5 3 8 Cabeça Boa 5 5 10 Cardanha 5 3 8 Carviçais 15 11 26 Castedo 10 10 Estevais 1 1 Felgar 9 10 19 Felgueiras 3 7 10 Junqueira 1 1 Larinho 4 2 6 Lousa 5 5 Maçores 35 11 46 Moncorvo 27 3 30 Mós 2 3 5 Peredo dos 5 10 15 Castelhanos Souto da Velha 4 3 7 Urros 5 3 8 Vide 1 1 Total 153 95 248 Gráfico n.º 5 – Distribuição dos emigrantes pelas freguesias do concelho de Moncorvo (1856-1901)

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3.7. Profissões e sectores de actividade Na profissão declarada, vemos que quem emigra é o trabalhador rural, ou seja o jornaleiro e o agricultor (82%); uns por não terem “eira nem beira”, outros, por apenas possuírem pequenas parcelas de terra, cujo granjeio se torna insuficiente para sustento da família. Quadro n.º 5 – Distribuição dos emigrantes por profissão (1856-1901) Profissão Titulares Acompanhantes Total de Emigrantes Agricultor 32 33 65 Alfaiate 3 3 Barbeiro 3 3 Caixeiro 1 1 Comerciante 1 1 Estudante 3 3 Guarda-livros 1 1 2 Jornaleiro 49 54 103 Negociante 3 1 4 Presbítero 1 1 Proprietário 9 3 12 Sapateiro 3 3 Serralheiro 1 1 Sem indicação 43 3 46 Total 153 95 248

Podemos então afirmar que é entre a população ligada ao sector primário, o que não surpreende dada a ruralidade da região, que encon­ tramos o maior número de indivíduos que partem o Brasil. 3.8. Passaportes por meses do ano Examinando a data de concessão de passaporte, constatamos que os picos se situam preferencialmente nos meses de Março e Fevereiro. Se atendermos a que esta população vive essencialmente da agricultura, verificamos que se trata do período imediatamente após a apanha da Número quatro

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azeitona e a feitura do azeite, e que se esses picos se verificam igualmente em Outubro e Novembro, após a safra da amêndoa, das vindimas e colheita de outros géneros da terra, de onde o candidato a emigrar espera realizar algum dinheiro que lhe permita partir. Nos meses de Verão, o número de registos decai, por motivos que se prendem, provavelmente com os afazeres do campo. Quadro n.º 6 – Registo de passaportes, por meses do ano (1856-1901) Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Total Titulares 7 18 23 16 12 10 3 5 13 23 16 7 153 Acompanhantes 3 15 25 4 6 1 4 6 9 9 12 1 95 Emigrantes 10 33 48 20 18 11 7 11 22 32 28 8 248 Gráfico n.º 6 – Registo de passaportes, por meses do ano (1856-1901)

3.9. Registo de passaportes do distrito de Bragança (1844-1890)

O estudo já efectuado nos registos de passaportes do distrito de Bragança, no período compreendido entre 1844 e 1890, permite-nos comparar a emigração do concelho de Moncorvo com a dos restantes concelhos do distrito. Deparamos com dois concelhos fortemente afectados – Vinhais e Mirandela – por oposição a outros onde pratica­ mente, não se verificam registos – Miranda do Douro e Freixo de Espada 172

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Emigração do concelho de Torre de Moncorvo para o Brasil (1856-1901)

à Cinta. Será que esta disparidade se deve à grande interioridade destes últimos? Ou será que existiram movimentos migratórios, ou mesmo contrabando para Espanha, o que permitia suprir o défice dos produtos? Estamos em crer que sim, pois, em 1858, é afirmado que “nos concelhos da raia seca e pelo rio Douro se faz muito contrabando de gado vacum, aguardente, tecidos de lã e seda e de cereais”6. À medida que caminhamos para o fim da nossa observação, um acontecimento, porém, explica o crescente fluxo de emigrantes na maior parte dos concelhos: a presença do caminho-de-ferro. Moncorvo, surge-nos, neste contexto, como um concelho onde, pelo menos a emigração legal, não foi relevante. A corrente migratória pode ser considerada moderada, originada, talvez, pela existência do Vale da Vilariça, próspera região agrícola capaz de suprir as necessidades alimentares. Quadro n.º 7 – Comparação dos dados da emigração do Concelho de Moncorvo com a emigração dos restantes concelhos do distrito de Bragança (1844-1890) Concelhos Titulares Acompanhantes Total de Emigrantes Alfândega da Fé 16 11 27 Bragança 92 16 108 Carrazeda de Ansiães 161 16 177 Freixo de Espada à Cinta 9 9 Macedo de Cavaleiros 70 15 85 Miranda do Douro 3 3 Mirandela 350 91 441 Mogadouro 18 10 28 Torre de Moncorvo 42 1 43 Vila Flor 67 13 80 Vimioso 20 20 Vinhais 376 144 520 Sem Indicação 21 21 Outros Concelhos 22 7 29 Total 1267 324 1591

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Relatório Geral da Junta de Bragança, p..5. Número quatro

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Conclusão Sendo a emigração um fenómeno complexo e diversificado, o pre­ sen­te estudo não pode ambicionar mais do que indicar alguns aspectos de um projecto de investigação em desenvolvimento. Ao recuperar um fundo documental, ainda não explorado para o século XIX – os passa­portes do Governo Civil de Bragança – pretendemos, sobretudo, apresentar um olhar regional sobre o concelho de Moncorvo, focando aspectos micro-analíticos conducentes a um estudo comportamental do indivíduo perante o fenómeno migratório. O trabalho elaborado neste âmbito, quando aprofundado com outras fontes, poderá dar um contributo importante à problemática da emigração numa região em que a população se foi auto regulando ao longo do tempo, vencendo sucessivas crises económicas, mas que, a partir de um dado momento, aproveitando as facilidades proporcionadas pela chegada/partida do comboio7 ao Pocinho e com ligação ao porto de Leixões, decidiu ir em busca de uma vida melhor, emigrando para outros destinos, sobretudo para o Brasil. Fontes Manuscritas Arquivo Distrital de Bragança. Livros de Registo de Passaportes. (1844-1901; livros 1-13)

Impressas COMMISSÃO Parlamentar para o Estudo da Emigração Portuguesa, anno de 1885, Lisboa, Imprensa Nacional. 1886. DISTRICTO de Bragança, Consulta Geral da Junta do Distrito de Bragança, do anno de 1843, Lisboa, 1845. A linha do Douro chega ao Tua em 1883, a Barca d’Alva em 1887, e o porto de Leixões fica concluído em 1892. 7

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Emigração do concelho de Torre de Moncorvo para o Brasil (1856-1901) DISTRICTO de Bragança, Consulta Geral da Junta do Districto de Bragança, do anno de 1854, Lisboa, 1854. DISTRICTO de Bragança, Consulta Geral da Junta do Districto de Bragança, do anno de 1858, Lisboa, 1858. DISTRICTO de Bragança, Consulta Geral da Junta do Districto de Bragança, do anno de 1861, Lisboa. 1861. DISTRICTO de Bragança, Relatório do Governador Civil do Districto de Bragança, do anno de 1866. Lisboa, 1866. DISTRICTO de Bragança, Relatório apresentado à Junta Geral do Districto de Bragança, na sessão ordinária de 1872, pelo Governador Civil do mesmo Districto, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1873.

Bibliografia ALVES, Jorge, “Atalhos Batidos –A emigração nortenha para o Brasil”, Revista Brasileira de História, vol. 23, n.º 45, 2003. MARTINS, Ismênia de Lima e SOUSA, Fernando de (orgs.), Portugueses no Brasil, Migrantes em Dois Atos, CEPESE/FAPERG, Rio de Janeiro, Muiraquitã, 2006. SOUSA, Fernando de e MARTINS, Ismênia (orgs.), A Migração Portuguesa para o Brasil, CEPESE/FAPERG, Porto, Edições Afrontamento, 2007. SERRÃO, Joel, Demografia Portuguesa, Lisboa, Colecção Horizonte, 1973. VEIGA, Teresa Rodrigues, A população Portuguesa no século XIX, CEPESE, Porto, Edições Afrontamento, 2004.

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Apêndice documental Titulares de passaporte do concelho de torre de Moncorvo, por data de registo e naturalidade 1856-08-14 1858-05-07 1858-06-28 1859-02-21 1864-06-13 1865-11-13 1868-05-26 1869-04-13 1869-04-15 1872-02-05 1872-06-11 1872-06-11 1872-06-18 1872-10-22 1874-04-13 1874-04-13 1874-10-07 1875-10-12 1875-11-10 1876-05-27 1878-01-07 1878-02-19 1878-02-19 1878-02-19 1880-06-15 1881-04-04 1881-04-05 1882-02-20 1882-05-15 1882-05-16 1888-06-22 176

José Maria do Sacramento Luís António de Menezes António Joaquim de Campos José Joaquim Esteves António Manuel Zilhão Alfredo Augusto da Fonseca Manuel Joaquim Rego António Cândido de Barros José do Nascimento Durão Francisco José Ferreira de Carvalho António Augusto de Sousa Cardoso José de Sousa António de Sousa António Joaquim dos Reis António Manuel Guimarães Praça Francisco Bernardo Gonçalo Manuel António António Manuel Santana Álvaro José dos Reis Maximiliano Elísio Botelho João Pedro José Ramos da Mota Manuel Augusto de Barros Miguel Augusto de Barros José dos Santos Cavalheiro Luís Maria Henrique Luis Miguel Augusto Ferreira de Carvalho Abílio Maximino Ferreira Pontes Ana Maria Ferreira Pontes Manuel António de Morais Revista Campos Monteiro

Mós Junqueira Cabeça Boa Larinho Carviçais Torre de Moncorvo Torre de Moncorvo Torre de Moncorvo Torre de Moncorvo Torre de Moncorvo Lousa Lousa Torre de Moncorvo Urros Felgar Felgar Torre de Moncorvo Larinho Torre de Moncorvo Torre de Moncorvo Castedo Adeganha Adeganha Torre de Moncorvo Torre de Moncorvo Carviçais Carviçais Torre de Moncorvo Peredo dos Castelhanos Peredo dos Castelhanos Felgar


Emigração do concelho de Torre de Moncorvo para o Brasil (1856-1901) 1890-11-06 1890-12-17 1891-11-28 1892-04-05 1892-06-08 1892-11-22 1893-03-27 1893-09-14 1894-02-23 1894-02-23 1894-04-05 1894-09-09 1894-09-14 1894-12-10 1894-12-17 1895-01-14 1895-01-23 1895-02-05 1895-03-27 1895-03-30 1895-03-30 1895-04-02 1895-05-29 1895-07-18 1895-08-14 1895-09-17 1895-10-04 1895-10-07 1895-10-07 1895-10-07 1896-05-16 1896-05-16 1896-06-11 1896-06-11 1896-08-04 1896-08-04

José Moutinho António Joaquim António Manuel Guimarães Praça José Cândido Amado João Baptista Abílio Maximino António Emílio Machado Antónia Júlia João Luís José António Pimentel Casimiro António de Assis Diocleciano Augusto Alídio Júlio Topete João do Espírito Santo Delgado Manuel Antóno Morgado José António Trigo Manuel dos Santos Cancela Gabriel dos Anjos Quintino Augusto Piconez Manuel António Piconez Bernardo Agostinho Lamego António Maria de Almeida Luis Antóno da Silva José Joaquim Pires António José Neiva Carlos Alberto António Maria Vitor Augusto de Vasconcelos Augusto César de Abreu António Joaquim de Castro António Eugénio Fins Francisco Manuel dos Santos José Marçal Fontes José Manuel Fontes António José Francisco Manuel Cordeiro

Maçores Lousa Felgar Urros Urros Peredo dos Castelhanos Torre de Moncorvo Maçores Castedo Castedo Torre de Moncorvo Estevais Carviçais Castedo Carviçais Castedo Vide Castedo Felgar Felgar Felgar Felgar Castedo Cabeça Boa Torre de Moncorvo Larinho Felgueiras Torre de Moncorvo Torre de Moncorvo Torre de Moncorvo Torre de Moncorvo Peredo dos Castelhanos Cardanha Cardanha Açoreira Açoreira Número quatro

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Maria da Conceição Salgado 1896-08-18 1896-09-16 1896-09-18 1896-09-21 1896-10-13 1896-10-13 1896-10-17 1897-01-23 1897-01-23 1897-01-30 1897-02-06 1897-03-17 1897-06-23 1897-07-29 1897-10-01 1897-10-09 1897-10-09 1897-10-09 1897-10-09 1897-10-18 1897-10-18 1897-10-18 1897-10-25 1897-11-16 1897-11-25 1897-11-26 1897-12-07 1897-12-07 1897-12-07 1898-03-08 1898-03-12 1898-03-28 1898-05-21 1898-10-12 1899-04-26 1899-05-13 178

Albino Joaquim Cristóvão José Neves Francisco Cândido João José Gaspar Alexandrina Amália Manso Chaves Maria Angelina Manso Chaves Eduardo de Assunção Lopes Luciano dos Santos Maria Joaquina José António Pereira Augusta Leonida Sendas Vicencio Marcolino Rodrigues António Manuel Sieiro Alberto António de Campos Alípio José Cordeiro Ana Joaquina Francisco Manuel Gouveia António Manuel Antónia da Conceição José Francisco José Júlio António Manuel Gaspar Jacinto António d’ Andrade Francisco José Luís Ana Vitorina Manuel Joaquim Sá Água Fernandes Francisco de Jesus Gabriel António Júlio Rodrigues José António Felizardo Justiniano Francisco José Mendes Alfredo Augusto Álvaro Augusto Antunes João Baptista Alves Salgado Eleutério Augusto dos Reis Tarrinho Revista Campos Monteiro

Cardanha Cardanha Açoreira Maçores Torre de Moncorvo Torre de Moncorvo Cabeça Boa Adeganha Urros Urros Cardanha Maçores Lousa Torre de Moncorvo Carviçais Carviçais Carviçais Carviçais Carviçais Carviçais Carviçais Mós Maçores Lousa Castedo Adeganha Maçores Maçores Maçores Castedo Maçores Maçores Torre de Moncorvo Maçores Carviçais Cabeça Boa


Emigração do concelho de Torre de Moncorvo para o Brasil (1856-1901) 1900-02-18 1900-02-22 1900-09-26 1900-09-26 1900-09-28 1900-09-28 1900-09-28 1900-11-22 1900-11-23 1900-11-24 1900-11-28 1900-11-28 1900-11-28 1901-01-03 1901-02-04 1901-02-04 1901-02-04 1901-02-11 1901-02-12 1901-03-06 1901-03-06 1901-03-14 1901-03-14 1901-03-14 1901-03-14 1901-03-14 1901-03-18 1901-03-18 1901-03-27 1901-03-27 1901-03-27 1901-03-27 1901-03-30 1901-04-03 1901-04-03 1901-04-03

Carlos Alberto António Manuel António Francisco Esteves António Marcelino Baptista Luís Marcelino Mendes Luís Marcelino Manuel Joaquim António Joaquim António Joaquim Serafim dos Anjos Joaquim Maria Manuel Joaquim António Manuel Dinis João António Pontes Serafim José Melenas João José Gaspar Júlio Augusto dos Santos Valério Augusto João Baptista José Joaquim Crisóstemo Francisco Rodrigues Manuel Joaquim Martins António Manuel António Joaquim Leonardo António Joaquim Lopes José Joaquim João Maria Dias João Manuel Dias Antóno Joaquim Manuel Joaquim Tomás Inácio Serafim dos Anjos Francisco António Trindade Marcelina Cândida Ana Maria Alves Joaquim Maria

Larinho Souto da Velha Maçores Maçores Maçores Maçores Maçores Maçores Maçores Açoreira Maçores Maçores Maçores Maçores Maçores Maçores Peredo dos Castelhanos Carviçais Souto da Velha Açoreira Felgueiras Açoreira Açoreira Açoreira Felgueiras Maçores Açoreira Açoreira Maçores Maçores Maçores Maçores Maçores Maçores Maçores Maçores Número quatro

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Maria da Conceição Salgado 1901-04-03 1901-04-04 1901-04-10 1901-05-04 1901-05-14 1901-07-20 1901-10-17 1901-10-21 1901-11-11 1901-11-21 1901-12-09

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Maria Joaquina Ferreira Antóno Manuel Baptista Albertina Conceição Alves Salgado António José Macedo Dionísio António Delmina dos Anjos Francisco do Nascimento José dos Santos José Maria Teixeira Maria José Artur Adriano Pires

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Maçores Maçores Carviçais Torre de Moncorvo Castedo Souto da Velha Felgar Souto da Velha Cabeça Boa Açoreira Felgar


Da família aos riscos perante a saúde 1

Maria Engrácia Leandro*

O sentimento de insegurança é a consciência de estar à mercê dos acontecimentos R. Castel A multiplicação das nossas capacidades electrónicas, informá­ ticas e farmacêuticas para detectar e tratar a doença não parecem ter trazido novos recursos para a nossa procura de sentido do bem e do mal Marcel Drulhe

Introdução Nos últimos trinta anos, parece que se vem instalando, nas socie­ dades ocidentais, uma nova contextualização da insegurança e respectivos riscos que parecem tornar-se extensivos a todas as dimensões da vida humana e social. Estas designam-se de sociedades do risco e de modernidade reflexiva, precisamente, e em grande parte, porque são decorrentes do próprio desenvolvimento económico, tecnológico e social a que deram azo e da reflexão que se afigura necessária a este propósito. Na verdade, muitos dos riscos que assolam, hoje, as sociedades modernas multiplicam-se e grande parte deles, tidos como “naturais”, são forjados Professora de Sociologia da Universidade do Minho; Consultora Científica Interna­cional da ONU para o CIGEF (Centro de Investigação Género e Família). *

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pelos seres humanos através de um uso incontrolado da ciência e da tecnologia e de uma instrumentalização do desenvolvimento económico, tendendo a fazer do mundo inteiro uma mercadoria. No entanto, nunca nenhuma sociedade será capaz de irradiar a totalidade dos riscos e dos perigos de que o futuro é portador. Na prática, constata-se antes que logo que os riscos mais ameaçadores parecem dominados, logo o cursor da sensibilidade perante eles se desloca e faz aparecer novos riscos. Pense-se, por exemplo, no domínio de certas doenças infecto-contagiosas que se consideravam extintas como voltam a emergir ou vão dando lugar ao deflagrar de outras. A questão da VHI/SIDA, nos anos 1980, e a situação que estamos a viver, hoje, com a gripe AH1N1 não são as menos emblemáticas, para não falar ainda dos efeitos perversos decorrentes de muitos investimentos e acções sociais. Por outro lado, tendo presente “os trinta gloriosos”, ou seja, um período entre 1945-1974, em que o desenvolvimento económico e social, mais intenso nas sociedades salariais, permitiu atingir condições de trabalho estáveis e usufruir de sistemas de protecção assegurados e até de uma protecção civil eficaz, dava a impressão de se terem realizado, enfim, as ideologias prometaicas do progresso, proclamadas desde o século XVIII-XIX. Mas, logo a seguir, a realidade sócio-económica veio deitar por terra estas sensações. A partir das crises petrolíferas de 1973 e 1978, os indivíduos e os grupos que mais são atingidos pelos efeitos sócio-económicos daí decorrentes, sentem-se ameaçados quanto ao emprego e respectivas prerrogativas, encontrando-se frequentemente numa situação de fragilidade. São trabalhadores sem trabalho, o que tantos riscos e angústias suscita na actualidade. Por tal, há uma sensação de mais insegurança quanto ao futuro, alguma confusão, quiçá sentimento de “desordem”, que pode alimentar a insegurança civil perante as várias situações de dissociação social. Doravante, todos, ainda que de modos diferentes, passarão a ter de se confrontar com mais inseguranças e com a possibilidade de mais riscos. Este sentimento tende a reflectir-se em todas as vertentes da vida individual, familiar e social a que também não escapam as questões acerca da saúde e da doença. É inegável que, pelo menos até aos anos 182

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Da família aos riscos perante a saúde

1990, nunca em época nenhuma da história a sociedade portuguesa beneficiou tanto dos sistemas de saúde, mormente após a criação do Serviço Nacional de Saúde, em 1978. Basta pensar que no século XX ganhámos à morte mais de 30 anos1. Ao mesmo tempo, passámos de uma taxa de mortalidade infantil de 77,5/ºº, em 1960, (a mais alta dos países ocidentais) para 3,5/ºº em 2006, isto é, igual à dos referidos países. De registar ainda que, no princípio deste século, Portugal foi conside- rado pela OMS o 12º país do mundo onde os efeitos do sistema público de saúde tinham atingido melhores resultados, classificação essa que subiu, agora, para o 9º lugar. Todavia, muita gente tende a fazer uma apreciação pessimista destes serviços. Com certeza que há uma forte razão para haver insatisfação, não obstante crescer a procura destes serviços e respectivas exigências, que há muito trabalho a fazer e muitos aspectos a modificar, inclusiva­ mente ao nível dos comportamentos. Acontece, porém, que desde os anos 1990, em todos os países ocidentais, o aumento das despesas com a saúde, mas também a transformação das fontes de financiamento e os modos de gestão deste sistema sob a pressão da economia neoliberal, têm conduzido a políticas públicas de mais restrição. Manifestam-se, por exemplo, na “desospitalização”, no aumento das taxas moderadoras e num insistente apelo à participação da família, do campo do doméstico e do privado em matéria de cuidados de saúde. É deste conjunto de questões que nos propomos falar neste trabalho. Noção de risco Risco, de origem latina, resecum, (1557), pode ter, quanto à sua noção, várias conotações, a mais comum parecendo ser aquela que evoca o que se relaciona com um perigo mais ou menos previsível Um risco, na verdadeira acepção da palavra, é um acontecimento de que se podem Em 1912, em Portugal a esperança de vida era para os homens de 35,8 e para as mulheres de 40. Hoje, é de 74 e 80 anos, respectivamente. 1

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prever as probabilidades de se produzir e o custo dos danos que dele poderão decorrer. Pode, desta maneira, ser indemnizado como objecto de “mutuação”, isto é, a possibilidade de ser coberto por um seguro feito antecipadamente em consonância com a previsão dos prováveis prejuízos. Os primeiros seguros surgiram em Itália, no século XIV, seguros marítimos criados para colmatarem os prejuízos causados pelos naufrágios dos navios carregados com mercadorias2. A procura de segurança é, então, a grande tecnologia (e actualmente há muitos artefactos a este respeito3) que permite o domínio dos riscos, repartindo os efeitos no interior de um colectivo de indivíduos que se querem solidários face a diferentes ameaças previsíveis, não se confundindo totalmente com o perigo. O risco aparece como uma probabilidade exterior aos humanos, ao passo que o perigo os acompanha. O velho adágio popular diz que Onde está o homem está o perigo, isto é, o perigo faz parte das nossas vivências quotidianas. De qualquer maneira, embora omnipresentes, percepções desta natu­ reza não se revelam assim tão prementes na nossa vida quotidiana, ainda que a coesão social esteja, nos nossos dias, mais fragilizada. Também é frequente, em caso de acidente ou doença grave, falar-se de correr ou não perigo de vida e não risco de vida. De facto, o risco pode prever-se e podem prevenir-se as suas consequências, ao passo que não se asseguram, antecipadamente, os malefícios do perigo4. Em contrapartida, no atinente aos comportamentos nefastos para a saúde fala-se, frequentemente, dos riscos que daqui podem decorrer, ainda que se afirme que a saúde é um dos valores fundamentais das sociedades ultramodernas.

Cf. Patrick Peretti-Watel, La société du risque, Paris, La Découverte, 2001. Pense-se, tão só, no uso do cajado pelos homens nas aldeias, até ainda há bem pouco tempo, o recurso ao cão de guarda “mau”, os mirolhos nas portas, os alarmes, as câmaras de vídeo-vigilância e os sistemas de segurança de toda a ordem, o aumento e sofisticação de armas… 4 Cf. Patrick Peretti-Watel, La société du risque, op. cit. 2 3

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Da família aos riscos perante a saúde

Hoje, há de tal forma uma inflação da cultura do risco5, que chega a confundir-se risco e perigo, como refere Robert Castell6. Mas tais atitudes não impedem que se tente prever os riscos e até construir indemnizações antecipadas, é muito mais difícil prever e controlar o perigo. Ademais, cada um de nós sabe que vai morrer um dia mas ninguém o acredita verdadeiramente. Talvez até por isto se invista tanto na procura do controle dos riscos e dos perigos que, por um lado, podem abreviar a morte e, por outro, afastá-la no tempo. Nunca houve tantos recursos médicos, farmacêuticos, tecnológicos, alimentares e outros para combater a doença, tanta procura dos serviços de saúde oficiais, de medicinas paralelas e técnicas de diminuição do stress, visando o prolongamento da vida com saúde. Aliás, a ideia, segundo a qual a humanidade poderia um dia vencer inteiramente as doenças, ainda que incapaz de evitar a morte, está fortemente associada aos contextos das sociedades modernas. As descobertas científicas e tecnológicas não têm parado sobre estes aspectos. Por vezes, temos a sensação de que actualmente se vivem extremos paradoxos neste sentido. Procura-se o prolongamento da vida por todos os meios, por vezes até em casos de difícil ou mesmo incapa­ cidade, e, ao mesmo tempo, vive-se uma cultura de morte biológica e social: fome, intensas desigualdades sociais, guerras, atentados, catástro­ fes naturais, atentados à vida de toda a ordem e em todas as idades. Contudo, nenhuma sociedade poderá pretender irradiar todos os perigos e riscos de que o futuro é portador, por vezes até dos mais inesperados, como acontece, frequentemente, com certos fenómenos da natureza e até do agir humano, como tem vindo a acontecer nos últimos anos com as inundações, tsunamis, tremores de terra, bem como derrapagens do capitalismo financeiro. Constata-se, antes, que logo que os riscos mais ameaçadores parecem banidos, o cursor da sensibilidade aos riscos desloca-se e faz aparecer novos horizontes dos Cf. Antony Giddens, “Risk Society: The Context of British Politics”, in J. Frenklin, The Politics of Risk Society, Cambridge, Polity Press, 1998. 6 Robert Castell, “De la dangerosité au risque”, in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 47-48, pp. 119-127. 5

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mesmos. A própria cultura do risco em que hoje vivemos7 forja o perigo, o que é algo contraditório, dado que nunca houve tantos mecanismos e artefactos de segurança. Não obstante, há mesmo casos em que nos confrontamos com eventualidades nefastas, ameaças, ou perigos que provavelmente vêm a acontecer, sem que se disponha de tecnologias e meios adequados para os assumir, como acontece, usualmente, com os efeitos da poluição sobre o ambiente e respectivas consequências para a saúde das populações, o que exige outro tipo de medidas políticas e comportamentais. Mas também vivemos num tempo em que se assiste a uma inflação da noção de risco, embora seja certo que vivamos mais sensíveis às novas ameaças das sociedades “hipermodernas” e tecnológicas. A instrumentalização da saúde como risco Para mostrar a pertinência e fecundidade potencial desta forma de olhar as realidades pense-se, tão só, numa certa instrumentalização da saúde e da doença por parte, por exemplo, das companhias de seguros que tendem a fazer delas uma mercadoria ao tirarem partido da ansiedade das pessoas e das famílias, aproveitando, antecipando e ampliando a situação para daí retirarem mais lucros. Na prática, tudo parece funcionar bem enquanto a doença não se manifesta e, inversamente, quando ela se revela, o que se constata em inúmeras situações muito concretas, como no caso das neoplasias ou doenças similares, obrigando a gastos mais avultados para os respectivos tratamentos. Assiste-se, assim, a um desenvolvimento da mercantilização da saúde, numa sociedade onde tudo tende a tornar-se mercadoria, o que em si não evidencia menos um risco das sociedades da ultramodernidade. A este propósito, consideramos estar perante

Cf. Antony Giddens, “Risk Society: The Context of British Politics”, op. cit. e ver, ainda, Ulrich Beck, La société du risque. Sur la voie d´une autre modernité, Paris, Aubier, 2001 (1986). 7

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Da família aos riscos perante a saúde

Uma ideologia cujo principal objectivo consiste em conseguir um controlo da vida e da morte, em que a identificação e a luta para reduzir/ /eliminar os factores de risco se tornaram em actividades de uma importância e de um prestígio considerável no seio dos profissionais de saúde8. Retendo, ainda, a ideia de inflação da noção de risco, tomemos um exemplo trivial associado à relação entre família-alimentação- -saúde.Tanto no passado, nas sociedades de carência, como no presente, em muitas sociedades, a fome foi, era e é o verdadeiro risco alimentar. Em contrapartida, nos países ricos e desenvolvidos, e actualmente para os grupos não atingidos ou menos atingidos pela crise, é o facto de comer e de comer sem preocupações saudáveis que é problemático e constitui, para muitos, um risco para a saúde. São os excessos da alimentação que se tornam problemáticos e factores de risco. Para além da carne das vacas loucas, dos suínos com febre aftosa, das aves com gripe, a lista dos alimentos cancerígenos, dos que mais contribuem para aumentar o colesterol, os diabetes em idades cada vez mais precoces e as doenças cardiovasculares alonga-se todos os anos ou, mesmo, todos os meses. Outro tanto se diga em relação a outras doenças devidas ao excesso de gorduras e de açúcar em muitos dos nutrientes que se consomem ou, ainda, a excessos alimentares, enquanto outros morrem de fome. Quase diríamos que o remédio seria não comer por suspeição de tudo ou por precaução e ansiedade. Mas, então, adoecia-se e morria- -se por carência alimentar ou, pelo menos, nutritiva. Nesta situação, a insegurança está, de igual modo, no prato: no que contém e, quiçá, no material de que foi fabricado, no detergente com que é lavado… É caso para reactualizar o aforismo: Não se morre da doença, morre-se da cura, ainda que se diga, também, que Prudência e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

J.-A. Skolbekken Skolbekken, “The Risk Epidemic in Medical Journals”, in Social Science and Medicine, 40, 3, 1995, p.297. 8

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O facto de se insistir no risco em tudo e em todo o lado, também pode levar à desconfiança nas pessoas e na sociedade, podendo conduzir a situações exageradas de ansiedade e de desconfiança de uns sobre os outros. Invocar legitimamente o risco não consiste em colocar a incerteza e o medo no centro de todas as vivências do presente e do futuro. Ao contrário, agir de modo a fazer do risco um redutor de incertezas poderá contribuir para que seja possível construir sociedades e famílias de mais confiança, desenvolvendo os meios próprios para as tornar mais seguras, logo, com menos riscos. Todavia, trata-se de algo que pode ou não vir a acontecer, mas que, frequentemente, causa medo ou ansiedade. Porém, o risco está também associado a uma vontade de tudo fazer para dominar os imponderáveis da natureza, os efeitos aliados a uma civilização que investe sobretudo no económico pelo económico, em busca do lucro desenfreado de uns em detrimento ou à custa da pobreza de outros. Daí que as desigualdades sociais se acentuem dando azo a muitos riscos sociais e sanitários extensivos, designadamente, aos indivíduos, às famílias e aos grupos sociais mais fragilizados, mas que, ao mesmo tempo, vão deixar outros totalmente impunes. U. Beck9 fala da sociedade do risco generalizado que atravessa, doravante, as barreiras de classe e será democraticamente partilhado, risco que é o produto do desenvolvimento industrial e que escapa ao controle das instituições. Adianta, mesmo, que passámos de uma distribuição das riquezas para uma distribuição dos riscos.Tais riscos têm sobretudo que ver com a energia nuclear, o aquecimento da atmosfera, a morte das florestas, a poluição, a alteração do clima, os efeitos perversos de uma alimentação cada vez mais industrializada e que tantas questões levanta em termos de saúde, com a intensidade de várias rupturas familiares e dos efeitos qeu daqui podem advir, por exemplo, em termos de fragilidade dos laços parentais e filiais, do ter que viver com menos poder económico, do individualismo, das desigualdades sociais… Estes novos riscos que ameaçam o planeta, as sociedades e os indivíduos, nem sempre são palpáveis nem visíveis, no sentido em que não existem 9

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Ulrich Beck, La société du risque. Sur la voie d´une autre modernité, op. cit. Revista Campos Monteiro


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por si mesmos. Se a sua concretização pode ter um princípio como aconteceu, por exemplo, no caso de Tchernobyl e de Bhopal, não têm um fim à vista dado que os seus efeitos jamais se podem apagar, como está a acontecer com o crescimento das neoplasias nas regiões mais directamente atingidas por estes fenómenos. Todavia, muitos governos continuam a apostar na esfera nuclear pelo mundo fora para muitos e variados fins, sendo os mais imediatos a afirmação de poder perante outras potências políticas e a busca do lucro. Claro que entre os riscos que lhe estão associados relevam os de doença, de possíveis atentados à vida de forma alargada e de responsabilidade face às futuras gerações. Para U. Beck10 e, também, para R. Castel11, embora com entendi­ mentos diferentes sobre as consequências universais dos riscos, a proble­ mática moderna dos riscos, prende-se, paradoxalmente, com a relativa segurança material alcançada pelas sociedades modernas, criando elas próprias inseguranças muito profundas. Dito de outra maneira: hoje, estar protegido significa também estar ameaçado de muitas e variadas formas, a começar pelo facto das sociedades modernas se construírem, de algum modo, sobre um terreno frágil, investindo essencialmente na valorização do indivíduo. Só que este não encontra, como até um passado recente, nem nele nem na sua envolvência mais imediata, em muitas situações inclusive na família e nos grupos de proximidade, a capacidade para assegurar a sua protecção, o que pode contribuir para o aumento da ansiedade e da depressão e a muitas outras doenças. Ademais, a Organização Mundial de Saúde (OMS), ainda há bem pouco tempo, alertou para o facto do século XXI ser o das doenças depressivas. Não é por acaso que as taxas de suicídio, designadamente nos jovens e nos idosos, têm vindo a aumentar vertiginosamente, o que tem muito que ver com a fragilidade dos laços familiares e sociais, talvez até com a falta de sentido para a existência. Idem, ibidem. Ver Robert Castel, “De la dangerosité au risque”, op. cit., 47-48, pp 119127 e, ainda do mesmo autor, L’insécurité sociale. Qu’est-ce qu’ être protégé?, in Coll. “La République des Idées”, Paris, Seuil, 2003. 10 11

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É inegável que as sociedades modernas e democráticas ao proporem e investirem no indivíduo, promovem também a sua vulnerabilidade, uma vez que são construídas sobre terrenos de insegurança, que os indivíduos não encontram em si mesmos nem nos seus círculos mais próximos a capacidade de assegurarem a sua protecção. Se é verdade que estas sociedades promovem o indivíduo, também favorecem a sua vulnerabilidade. Daqui resulta que a intensa procura das protecções estatais é consubstancial ao desenvolvimento deste tipo de sociedades. Mas esta procura, em alguns aspectos, também deixa margem para filtrar o perigo. O sentimento de insegurança não é exactamente proporcional aos perigos reais que ameaçam a população. É, antes, um efeito de distância entre uma expectativa socialmente construída de protecções e as capacidades efectivas de uma sociedade para as realizar. Sobre muitas vertentes, o risco e a insegurança são em larga medida o reverso da medalha de uma sociedade que anseia por mais seguranças de toda a ordem. Daí uma maior procura de protecções e seguranças vindas do estado e dos seus mecanismos. Tais expectativas manifestam-se, insistentemente, perante qualquer “mal” que possa advir, muito em particular no que à Segurança Social e Civil diz respeito, mas também, frequentemente, devido a vários tipos de incúrias individuais, familiares e sociais. O caso de certas doenças que têm, essencialmente, que ver com os comportamentos não preventivos, como, por exemplo, as sexualidades desprotegidas, as formas de condução rodoviária, o consumo e abuso de certos produtos alimentares, o excesso de bebidas alcoólicas, visível em idades precoces, a alteração de horários e o tempo diminuto de sono, as trocas da noite pelo dia, para além do trabalho por turnos, como acontece frequentemente com o lazer nocturno e a caça desenfreada aos jovens, mais por razões económicos do que com o intuito de lhes proporcionar lazer de qualidade, não são os menos significativos a este propósito. De referir, ainda, o aumento do desemprego e com ele as fragilidades económicas e sociais de muitas pessoas e famílias. Normalmente, perante vários problemas que daqui decorrem pretende-se que o estado, na sua dimensão social, opere essencialmente como um redutor e provedor 190

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perante os riscos ocorridos ou que poderão vir a ter lugar, mas que em certos aspectos se poderiam evitar se todos e cada um tivessem comportamentos preventivos e promotores de saúde. Tal facto tende a manifestar-se, também, quanto aos indivíduos que sofrem de uma maior fragilidade dos laços familiares e dos tradicionais grupos de proximidade. Basta, apenas, reter os riscos associados à violência doméstica, aos conflitos, às rupturas familiares... Para muitas pessoas, trata-se de ficarem sujeitas a tornarem-se portadoras de riscos que as fazem navegar à deriva no meio dos escolhos, sendo solicitadas a gerirem elas próprias os seus próprios riscos. Ao mesmo tempo, crescem as dificuldades do Estado Providência em assegurar um conjunto de medidas de segurança social, inclusive em termos de saúde, o que resulta em políticas mais restritivas a este respeito. Neste sentido, faz-se cada vez mais apelo à responsabilidade dos indivíduos e das famílias em termos de prevenção da doença e promoção da saúde, exigindo-se a que cada direito corresponda um dever. Simultaneamente, insiste-se, na adopção de comportamentos saudáveis, tendo presente que a saúde se constrói todos os dias e nas interacções com os outros. Não obstante esta galáxia de riscos, as sociedades modernas são caracterizadas por uma segurança acrescida, mercê do progresso tecnológico que permite a precaução contra os inúmeros riscos que assolavam as sociedades tradicionais, como os que advinham da natureza (catástrofes naturais), doenças infecto-contagiosas, grandes epidemias12, fome e outros. Estes riscos, considerados ultrapassados, nem por isso permitem afastar a emergência de novas formas de vulnerabilidade na origem de catástrofes inéditas13. Daí a questão predominante: até que ponto as sociedades da ultramodernidade se mostram aptas a diminuir os riscos que teimam em persistir, aumentar e espreitar de vários lados? Nos nossos dias, têm vindo a agravar-se com a crise económica e finan­ ceira à escala mundial, que entre muitos outros aspectos, traz o aumento Cf. Claudine Herzlich et Janine Pierret, Maladies d’hier, maladies d’aujourd’hui, Paris, Payot, 1984. 13 Cf. Juan Short, Sociologie des genres de vie, Paris PUF, 1991. 12

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do desemprego, única fonte de sobrevivência de muitos indivíduos e famílias nas sociedades do emprego e, por conseguinte, mais riscos de pobreza e exclusão social e, com elas, riscos de doença, à semelhança de outros tempos, em que grassavam as doenças de carência. No século XIX, era, a este propósito, mais atingida a classe operária, cujas características estão muito bem identificadas no célebre trabalho de V. Hugo14, Os miseráveis, e por L. Chevalier15 que também se debruça sobre as designadas classes perigosas. Com o aumento deste tipo de riscos, a que se pode associar muita da criminalidade existente16, não estarão as sociedades hodiernas a forjar novas modalidades de classes perigosas, em virtude da implementação de modelos económicos e financeiros que contêm em si muitos riscos, nomeadamente, em termos de desigual­ dade social? No mesmo sentido actua a vulnerabilidade, particularmente vinca­da nas sociedades modernas, decorrente da diferenciação social de que já falou insistentemente E. Durkheim17, opondo uma forma de solida­riedade mecânica, vigente nas sociedades tradicionais, a uma solida­riedade orgânica, predominante nas sociedades modernas, onde a divisão social do trabalho é bastante intensa. Esta crescente diferenciação dos indivíduos, graças ao desenvolvimento industrial e tecnológico, implica uma forte interdependência uns dos outros. Ora, a distinção social e as distinções sociais do nosso tempo só podem existir com base na confiança, particularmente, nos sistemas abstractos dos peritos muito correntes nas sociedades da hipermodernidade. Essa confiança torna-se mais necessária porque hoje não nos é permitido aceder ao conjunto das informações acerca desta ou daquela actividade particular e, muito menos, aos meandros que a envolvem. Victor Hugo, Os miseráveis, Mem-Martins, Publicações Europa-América, Lisboa, s.d. (1862). 15 Louis Chevalier, Classes laborieuses et classes dangereuses à Paris pendant la première moitié du XIX siècle, Paris, Hachette, 1984. 16 Cf. Hélder Machado, Ciência & Humanismo. Novo paradigma da relação médico-doente, Combra, Almedina, 2003. 17 E.Durkheim, E., Le suicide, Coll. “Quadrige”, Paris, PUF, 1985 (1897). 14

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O risco numa perspectiva da saúde Em epidemiologia, o risco é A probabilidade que um indivíduo tem de ficar doente ou morrer durante um período de tempo, numa determinada idade18. Todavia, neste sentido, a concepção de risco, designadamente no que se relaciona com a saúde e os reveses da vida, vem de tempos de antanho, em que era, sobretudo, associado à intervenção das forças transcenden­ tais. Mas nem por isso o indivíduo, ou algum dos seus familiares, estava menos no centro da questão, na medida em que a doença aparecia quase sempre associada à natureza da falta cometida por alguém e, por consequência, a uma punição divina. Hoje, pese embora a crença e a esperança depositadas nos efeitos da ciência e da tecnologia médicas – quais omnipotências modernas – tais atitudes revelam-se, por vezes, muito firmes. Decerto, não tanto em virtude de uma consciência de comportamentos de falta-culpa- -castigo no sentido transcendental, mas antes material, relacionados com comportamentos de risco, dando azo a doenças para as quais a medicina não consegue dar resposta milagrosa. Constatamos que, perante situações desta natureza, há cada vez mais pessoas a implorar as forças sagradas como único recurso de salvação. Manifesta-se, também aqui, uma das características modernas da religião vivida de maneira fragmentada, do recurso a ela e da crença, tendendo muitas pessoas a passarem pela mediação das igrejas para implorarem a ajuda e protecção das forças divinas, apesar da racionalidade imperar nas sociedades modernas. Com efeito, as concepções da doença, da saúde e, mais largamente, do corpo, mobilizam os sistemas simbólicos que são os eixos de toda a cultura. Estas concepções colocam frequentemente em jogo o religioso como sistema simbólico de uma sociedade e repertório facilmente mobilizável de temas e de imagens, e, ao mesmo tempo, como recurso milagroso do possível.

Mickael Last, A Dictionary of Epidemiologiy, New York, Oxford University Press, 1995, p. 149. 18

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Ao introduzirmos estas considerações queremos, somente, lembrar que em todas as dimensões da vida e das sociedades não há certezas absolutas, a não ser a da morte e que, perante situações desesperadas, designadamente quando está em causa a saúde e a doença corrói, há centelhas de fé e esperança transcendentais que continuam a prevalecer, embora de forma bastante distinta de passados próximos ou longínquos. Tentando forjar uma nova visão acerca da problemática da saúde e da doença, de certo modo até libertar as forças divinas de tamanha responsabilidade, Hipócrates (séc. IV e III a. J. C) introduziu rupturas importantes ao racionalizar a doença, sobretudo através da Teoria dos Humores. Mesmo assim, a apreensão dos seus factores ou de outros males que atingem os humanos continuaram, por muito tempo, ligados à intervenção dos deuses ou de outras forças sagradas conduzindo a riscos19. F. Lauteman et al.20 consideram que a referência religiosa tem também por efeito conferir sentido à doença.

Hoje, admitimos que os médicos e os outros profissionais de saúde são os novos mentores morais no que à saúde e doença diz respeito, aconselhando, admoestando, prescrevendo comportamentos normativos rígidos para se evitar os riscos que as ameaçam e ameaçam a própria vida, ainda que a morte seja a única certeza que nos habita. Porém, na realidade quotidiana, não pensamos nisso. Tanta certeza não suscita dúvidas, o que não significa que não continuem a subsistir medos e fantasmas, desejos de eternidade terrena e a formular-se muitas questões a este respeito. Desde o século XIX, têm particular destaque as questões Referenciamos, apenas, o caso de uma senhora são tomense que vivia em Portugal e a quem foi detectada um cancro. Foi então marcada uma intervenção cirúrgica num hospital de referência. Só que no dia marcado a senhora não apareceu. Indagadas as razões de tal ausência, veio a saber-se que tinha ido para São Tomé para solicitar a intervenção de um magico-curandeiro, convicta, bem como os seus familiares, que o mal de que era acometida tinha tão só que ver o “mau olhado”. Com o decorrer do tempo, a doença agravou-se e a senhora veio depois a falecer. Situações desta natureza acontecem com muita frequência em contextos migratórios internacionais, mas não só (D. Fassin, 1998, 1999, 2001; M. E. Leandro, 2006, 2009). 20 Cf. Françoise Lautman et al. (dir.), Gestions religieuses de la santé, in Coll. “Santé, sociétés et cultures”, Paris, L’Harmattan, 1995. 19

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atinentes às desigualdades sociais e sanitárias perante a mesma.Todos os estudos sobre estas problemáticas revelam que não se adoece e morre da mesma maneira quando se vive neste ou naquele tempo, se nasce nesta ou naquela sociedade, se pertence a este ou àquele grupo social, se se é homem ou mulher... Seja como for, a concepção de pecado/castigo no sentido da transgressão do que devem ser os comportamentos saudáveis, ditados pelos deuses na matéria, e as consequências que daqui podem advir em sociedades que tanto valorizam a saúde, até em função da capacidade para o trabalho, continua muito presente. Actualmente, ainda que as formas de pensar, sentir e agir, a eficácia da ciência, da tecnologia e as políticas sejam diferentes, continua a imprimir-se o sentido da falta/ /punição e a probabilidade desta vir a verificar-se, pois a transgressão ou o desvio de condutas consideradas saudáveis, pode levar à doença e até abreviar a morte. Desta maneira, as entidades transcendentais tendem a ser substituídas pelos deuses do saber ou da reprovação individual, familiar, médica e social. Os profissionais de saúde, especialmente os médicos, aparecem agora como os novos mentores morais em termos de comportamentos relativos à prevenção da doença e à promoção da saúde. Voltando atrás no tempo, importa realçar que nos séculos XVIII e XIX, com a implementação da industrialização, os governos dos respectivos países são confrontados com uma dupla questão. Por um lado, dão-se conta que uma população com boa saúde é necessária ao funcionamento da sociedade industrial e, por outro, a própria industrialização representava um importante factor de degradação do estado de saúde de certas camadas da população. Trabalhando cerca de 14 horas por dia, vivendo em espaços degradados e habitação insalubres, fazendo trabalho desgastante e sub-alimentando-se, tudo contribuía para o aparecimento e a extensão de várias doenças, designadamente de índole infecto-contagiosa, mais concretamente as chamadas doenças da miséria e da carência: a peste branca associada à tuberculose, provocando a morte de muitas pessoas, sobretudo operárias e demais pobres. Perante este fenómeno, a implementação de estruturas de saúde pública, Número quatro

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através de políticas sanitárias dos respectivos governos e a moralização dos costumes, visavam, essencialmente, diminuir os factores de risco. Muitos destes estavam associados a vários tipos de “vício”, talvez as necessidades face a tanta penúria em que se vivia, procurando encontrar aqui alguma compensação à vida desumana em que estavam mergulhados. Assumem particular relevo neste contexto, o alcoolismo e as sexualidades promíscuas de que resultavam muitas doenças venéreas, ameaçando a saúde e a ordem familiar e social. Para obstar a tal situação muito contribuiu o movimento higienista que se desenvolveu durante os séculos XVIII-XIX (L.Villermé em França, Virchow na Alemanha, Chadwick na Inglaterra), mostrando, abundante­ mente, o impacto das desigualdades sociais, a extrema pobreza e a falta de medidas políticas, inclusive de ordem sanitária, que estavam na origem das doenças mais mortíferas da época. Daí a necessidade de um corpo de reformas abrangentes. Neste conjunto de mudanças é feito grande apelo às famílias, procurando que estas adoptem, também, medidas de higiene e outros modos de vida capazes de fazerem inverter a situação em que viviam. É, então, que os médicos se dirigem cada vez mais ao domicílio, não apenas para observarem os doentes, mas também para conhecerem in loco as condições sociais em que viviam, pois só assim poderiam intervir mais eficazmente no combate à doença e na promoção da saúde. Por outro lado, tinham ainda a função de controlo no seio da família, porque ao agirem deste modo não só prescreviam medicamentos como fomentavam, também, a mudança dos comportamentos dos seus elementos tendo, sobretudo, em mente formar as mulheres-mães para exercerem cuidados informais de saúde, fazendo delas as enfermeira domésticas. No seu dicionário sobre saúde, Fonssagrives diz que O médico prescreve e a mãe executa21. Com efeito, antigas iniciativas de saúde pública, com o objectivo de combater ou evitar riscos, sendo muito antigas22, sido acentuadas com Cf. Jacques Donzelot, La police des familles, Paris, Éd. de Minuit, 1997. Pense-se, apenas, nas infra-estruturas de cariz profilático criadas pelo Império Romano nos vários territórios onde se ia implantando. 21 22

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o decorrer dos tempos através do empenhamento de várias instâncias, tanto de cariz político e social como de especialistas, designadamente os profissionais de saúde ou outros responsáveis nesta matéria. Nos nossos dias, é de realçar os importantes contributos da ciência e da tecnologia e o apelo à mudança de comportamentos, visando não só curar a doença, mas sobretudo evitá-la, assim como atenuar os efeitos do próprio envelhecimento, aumentando a esperança de uma vida com plena saúde, qual forma de “imortalidade” terrena paradisíaca23. Porém, o entusiasmo com que estes avanços são concebidos nem sempre se ajusta às realidades. Com a longevidade aumentam as modificações no perfil das doenças, como as patologias crónicas, merecendo destaque as neoplasias, as cardiologias, designadas de doenças de civilização, dado terem muito que ver com os novos modos de vida individuais, familiares e colectivos, mercê de mudanças profundas de toda a ordem nas sociedades hodiernas. M. Drulhe24, fala do aumento das doenças degenerativas e das sociopatias, ou seja, neste último caso, as doenças decorrentes das influências profissionais, económicas, sociais e culturais e comportamentais nas sociedades da “hipermodernidade”. Analisando o processo de transição epidemiológica e societal, desde o século XVI-XVII até aos nossos dias, M. Drulhe considera que quanto mais se avança na civilização mais a parte do social tem influência no desencadear da doença ou, ao invés, na promoção da saúde25. Para além da nova etiologia das doenças actuais, deve-se referir que a esperança de vida era, no tempo de Cristo, de 22 anos, nos finais do século XVIII atingiu os 30 anos nos países mais desenvolvidos, enquanto hoje, em algumas das sociedades ocidentais, já ultrapassa os 80 anos para as mulheres e os 75 para os homens, sendo que OMS preconiza a esperança media de vida com saúde. Actualmente, os índices mais elevados encontram-se no Japão, em primeiro lugar, com 81,9 anos e na Suíça, 23 Cf. Maria Engrácia Leandro, “A saúde no prisma dos valores da modernidade”, in Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Vol. 41 (3-4), 2001, pp. 67-93. 24 Cf. M. Drulhe, Santé et société. Le façonnememt sociétale de la santé, in Coll. “Sociologie d’aujourd’hui”, Paris, PUF, 1996. 25 Idem, ibidem.

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em segundo lugar, com 80,6 anos. Em França e no Canadá estes índices são de79,8, ocupando o décimo lugar, os Estados Unidos estão no vigésimo oitavo. Mas se se considerar a esperança de vida com saúde, a OMS coloca, mais uma vez, o Japão e a Suíça nos lugares cimeiros: 73,5 e 72,5 respectivamente. Claro que estas conquistas estão relacionadas com o progresso científico e tecnológico da medicina, tendo particular destaque a descoberta das vacinas nos anos 1870, dos antibióticos em 1945 ou dos transplantes de órgãos (o primeiro a ser feito foi o do coração, em 1967). Não obstante, estes avanços só por si não teriam sido suficientes. Sabe-se, por exemplo, que já no tempo das grandes epidemias dos séculos XV-XVIII, os grupos sociais abastados eram muito menos afectados do que os outros, usufruindo já de uma esperança de vida superior aos demais26. No século XVIII, o médico Cheyne atento ao que se passava com os grupos dominantes, aristocracia e burguesia, inclusive a própria família real inglesa, no que concernia aos malefícios associados à abundância traduzida num super consumo alimentar e alcoólico, chamava a atenção para os riscos que daqui podiam advir para a saúde. Contra tais riscos propunha antes princípios de frugalidade para uma boa digestão, única garantia para ter um espírito lúcido e racional. Apelava assim, para a importação da correlação alimentação/digestão/circulação do sangue e de outros líquidos no corpo, o que permitia usufruir de capacidades racionais claras. A par do apelo à mudança de atitudes e comportamentos foi necessá­ rio que o médico recorresse a uma racionalidade científica, visando dar às pessoas elementos fundamentais para a necessidade de modificarem os seus comportamentos relativos às questões de saúde.Tal facto reenvia-nos para outro não menos importante e que tem que ver com a resistência das mentalidades logo que se trate de modificar gostos alimentares e outros hábitos bastante encrostados. Esta atitude tem exigido alterações por vezes radicais no que à promoção da saúde e da saúde pública diz respeito, o que não está menos patente nos nossos dias, apesar do ritmo 26

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Cf. D. Fassin, L’espace politique de la santé, Paris, PUF, 1996. Revista Campos Monteiro


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vertiginosos de transformações em que vivemos. Vários estudos a este propósito vêm mostrando que, na realidade, os gostos alimentares são o que há de mais refractário à mudança27. Quem não se lembra daquele prato saboroso ou daquele petisco que nos oferecia a nossa avó, a nossa mãe, tia, amiga, vizinha… quando éramos crianças! Que o digam os migrantes internacionais e outros grupos deslocados!... Em termos sociais e sanitários, algo de importante está a alterar-se e representa, decerto, ganhos de vulto para a saúde das populações, logo que se trata de identificar os riscos. Há cada vez mais consciência que estes não são apenas de cariz material pelo que é imperiosa a necessidade de mudanças que abranjam todos os sectores sociais e, simultaneamente, os comportamentos familiares e individuais em todas as idades e domí­ nios da vida. Aludindo, mais uma vez ao significado do desenvolvimento científico e tecnológico e aos grandes avanços da medicina, é cada vez mais certo que estas intervenções são apenas uma parte da questão que não poderá menosprezar, de modo algum, outros contributos28, tendo presente que a saúde se constrói todos os dias através de rotinas e rituais. Por outro lado, a medicina domina melhor os efeitos das doenças letais de índole infecciosa do que as doenças crónicas e degenerativas e até algumas sociopatias, para as quais muitas das curas são ainda uma miragem. Aliás, pelas suas características, as doenças crónicas têm reduzido a pertinência do modelo bio-médico e legitimado o novo modelo bio-psico-social. Estão mais associadas a múltiplos factores familiares, económicos e sociais, logo mais difíceis de tratar e até de explicar. Estão, também, ligadas ao progressivo aumento da longevidade29. Daí a doença tornar-se, frequentemente, numa forma de vida exigindo mudanças de atitudes e mais cuidados formais e informais, a começar pelo próprio Cf. J.-M Bouure, La diététique du cerveau. De l’intelligence et du plaisir, Paris, Ed. Odile Jacob, 1990. 28 Cf. D. Fassin, L’espace politique de la santé, op. cit., e, ainda, Helder Machado, Ciência & Humanismo. Novo paradigma da relação médico-doente, op. cit. 29 Cf. Louis-Vincent Thomas, La mort en question. Question de mort, mort de la question, Paris, l’Harmattan, 1991. 27

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indivíduo e respectiva família. Só assim se pode usufruir de uma vida saudável. Compreender-se-á, na sequência das novas circunstâncias de saúde e de doença, que a sua gestão ao longo do tempo tem exigido estas transformações, individuais e familiares, refutando a exclusividade das competências biomédicas, exigindo ainda uma melhor articulação entre estas e as dos leigos, nomeadamente a família. Sabe-se que mesmo havendo bem-estar material, não estão excluídos alguns riscos e efeitos perversos, designadamente quando se torna difícil a articulação entre a vida familiar e profissional, os cuidados informais de saúde, bem como os efeitos decorrentes de certas rupturas ou fragilidades dos laços fami­ liares, concretamente, entre pais-filhos. As novas relações familiares e sociais afiguram-se hoje mais complexas, no sentido de exigirem mais articulações e adaptações comportamentais de todos: mulheres, homens, pais-filhos, escola-família, patrões-empregados-família, profissionais de saúde-profanos, medidas políticas-medidas sociais… Em suma, a reorganização da sociedade no seu conjunto. Tratar-se-á de novas dinâmicas individuais, familiares e colectivas de gestão dos riscos sanitários e das políticas com ela relacionadas. Se é certo que ao longo dos dois últimos séculos se tem vindo a acentuar a valorização e responsabilidade do indivíduo, inclusive na etiologia das doenças, e a necessidade de assumir os imponderáveis a que está sujeito, a verdade é que o indivíduo não apareceu na sociedade como um ET. Alguém o chamou à vida, actualmente até por desejo dos pais, sendo objecto de programação, sujeito a um longo processo de socialização, em que lhe são transmitidos valores, saberes, tradições, exemplos, testemunhos, representações, maneiras de ser e de agir que fazem dele um ser social, influenciando largamente o seu destino, embora possa vir a enveredar por vários caminhos. Sendo assim, advém um “sujeito-actor”30 de vários tipos de relação, de um viver-em-conjunto,

Cf. Maria Engrácia Leandro, Au-delà des apparences. Les portugais face à l’insertion sociale, Coll. “Migrations et Changement”, Paris, CIMI – L’Harmattan, 1995. 30

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sendo nesta rede de interacções que procura prevenir os riscos que afectam a saúde e, ao contrário, investir na sua promoção. No entanto, não deixa de ser notório que, actualmente, sobretudo os profissionais de saúde e respectivas autoridades de saúde, façam intenso apelo aos “estilos de vida” para legitimar a emergência e prevalência de vários doenças (consumo de tabaco, álcool, toxicodependência, alimentação…) esquecendo que se estes aspectos são relevantes, mais importantes ainda são os “modos de vida” e os contextos familiares e sociais, ou seja, tudo o que tem que ver com as condições sociais da existência associadas a vários tipos de desigualdade social. Ora, é sobe­ jamente sabido que estas, desde todos os tempos, e hoje ainda com mais intensidade – o que até se torna mais claro com o aumento da esperança de vida e da esperança de vida com melhor saúde – constituem um dos mais importantes factores desencadeadores de doença ou de vida com saúde mais debilitada31. É que, socialmente falando, é mais fácil apontar o dedo ao indivíduo do que à sociedade no seu conjunto, mas é esta que forja as infra-estruturas e estruturas sociais que sustentam estas situações. Interessa anotar, por outro lado, que nos nossos dias todos estão mais informados acerca dos riscos que ameaçam a saúde, o que não significa que se adoptem comportamentos considerados mais favoráveis à saúde. Contradições desta natureza foram já observadas na literatura americana, através de trabalhos qualitativos nos quais os autores mostraram que há uma dissonância entre conhecimentos, ideais e práticas. Mesmo em casos de elevado risco essa dissonância existe, como, por exemplo, na toxicodependência, na falta de exercício físico, nos abusos alimentares, nos acidentes rodoviários... temos de concluir que há muita dificul­dade em traduzir em termos pragmáticos o risco cuja probabilidade o indi­ víduo pensa ser fraca, ainda que o não seja. O que levará, então, as pessoas e as sociedades a enveredarem por tais atitudes e comportamentos? Três aspectos se afiguram relevantes. Cf. D. Fassin, L’espace politique de la santé, op. cit., e, do mesmo autor, Les enjeux politiques de la santé, Paris, Kartala, 2000. 31

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Em primeiro lugar, importa referir que os indivíduos, mas também as famílias, são capazes de considerar que os riscos existem e até o que eles comportam, bem como a sua amplitude, sem contudo, se sentirem abrangidos pelos mesmos. Há ainda o que consideram “riscos aceitáveis”, relacionados com situações relativamente seguras e susceptíveis de tratamento e cura, e “riscos significativos”, incluindo situações em que sabem que o risco é muito elevado. Diferentes critérios entram aqui em linha de conta (construção de escalas, necessidades emocionais, desejo sexual, relações estatutárias…), designadamente em termos de prazer imediato e prazer diferido. Colocar a saúde em perigo como contrapartida do prazer imediato ou reconhecimento social é um fenómeno corrente. Pondo em pers­ pectiva os benefícios e os riscos, observa-se frequentemente, nos comportamentos individuais e familiares explícitos, que a qualidade de vida, que envolve certas práticas como o consumo de álcool ou de tabaco, pode parecer mais importante do que acelerar a doença e até a morte. E isto é tanto mais significativo quanto há uma distância no tempo associada à noção de risco, uma vez que as práticas nefastas não são incompatíveis com o facto de se sentir de boa saúde no presente. Por conseguinte, colocar a saúde no centro das preocupações não é necessariamente pertinente por parte de todos as pessoas. Há mais tendência a procurar um equilíbrio entre o que se considera ser bons e maus comportamentos, por exemplo, comer bem, quiçá em excesso, e depois fazer ginástica, tomar chás para emagrecer, o que aparentemente até pode permitir uma certa sensação de conformidade relativamente às expectativas de saúde pública. Estes raciocínios afastam-se e demarcam-se das mensagens de prevenção que colocam acima de tudo os benefícios a longo prazo. Assim, a relação com o futuro, podendo ser variável segundo as categorias sociais, intervém nas concepções construídas acerca dos riscos. A valorização de um futuro incerto e abstracto, por exemplo, não é pertinente para os toxicodependentes que se sentem vulneráveis no presente. O mesmo se diga dos desesperados da vida numa situação prolongada de desemprego, de contrariedades e desgostos 202

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sucessivos32, e tantos outros aspectos. Quando as pessoas enveredam pelo alcoolismo ou outros produtos podendo gerar toxicodependência, frequentemente procuram, em parte, a evasão perante as agruras que a vida lhes traz. Interessa deixar também claro que as crenças e os valores se adaptam em função das circunstâncias. As representações sociais acerca da saúde e da doença comportam uma elaboração psicológica complexa onde se integram, em imagens significantes, as experiências de cada um, os valores e as informações que circulam na sociedade. À priori não há realidade objectiva, pois toda a realidade é representada, isto é, apropriada pelo indivíduo ou o grupo, reconstruída no seu sistema cognitivo, integrada no seu sistema de valores, dependendo da história de cada um e do contexto social e ideológico que o envolve33. Um segundo aspecto, afecta as concepções dos riscos, integrando as experiências vividas no contexto social de proximidade. Constata-se que os indivíduos e famílias tendem a observar e interpretar os casos de doença e de morte que tiveram lugar à sua volta, quer nas redes pessoais e familiares quer no domínio público. Associados a dados formais e informais de outras fontes (rádio, televisão, revistas…) tais atitudes conduzem à construção de uma “epidemiologia profana”34. Através deste trabalho quotidiano de observação, confirmado ou não por explicações oficiais, as ligações que estabelecem progressivamente e as regularidades que contribuem ou não para mais prevenção, segundo esses riscos foram mais ou menos ameaçadores, os profanos tendem a retirar daí vários tipos de ilações. Enfim, um terceiro mecanismo – algo contrário ao anterior – consiste em construir as representações dos riscos, demarcando-se dos Conhecemos de perto o caso de um médico em Paris que enveredou pela vida de clochard após um divórcio familiar. 33 Cf. J. C. Abric, “Les représentations sociales : aspects théoriques”, in J.-C. ABRIC (coord.), Pratiques sociales e représentations, Paris, PUF, 1994, p. 12. 34 Cf. C. Davison et. al, “Lay Epidemiology and the Prevention Paradox: the Implications of Coronary Candidacy for Health Education”, in Sociology of Health and Illness, 13 (1), pp. 1-19. 32

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outros. Neste sentido, a distância social estabelecida com as vítimas típicas de uma afecção particular traria o sentimento de pouca vulnerabilidade. Denota-se, deste modo, uma tendência para se subestimarem os riscos reais e a distância social estabelecida entre si e as pessoas afectadas. Trata-se de mecanismos para se colocar longe do risco, de poder vir a contrair tal ou tal doença, o que serve para estabelecer fronteiras, confir­ mando o sentimento individual de invulnerabilidade. Interacção entre riscos familiares e sociais relativos à saúde Com a procura desenfreada do lucro económico e da afirmação de poder de umas sociedades e grupos sociais em relação aos outros, numa época de uma nova globalização, têm aumentado os níveis de poluição, trazendo, por exemplo, as alterações do clima e o aumento dos riscos para o ambiente e para a saúde das populações em geral. Neste sentido, desde os anos oitenta do último século, com a identificação da HIV/SIDA, esse mal, então misterioso, que atacava e continua a infeccionar muitos indivíduos, leva a apelar mais aos comportamentos preventivos. Como acentua M. Drulhe35, sendo uma doença viral, propaga-se essencialmente a partir de uma das maiores molas da sociabilidade: o encontro sexual. Assim, há várias doenças relacionadas com diversos comportamentos, sem que as pessoas estejam realmente convictas dos riscos de uma sexualidade desprotegida com desconhecidos ou conhecidos que frequentam desconhecidos. Esta falta de investimento na prevenção pode não deixar de fora os riscos que podem ter lugar no seio da própria família, por exemplo, quando um dos cônjuges tem relações sexuais com outros parceiros sem antes tomar qualquer medida preventiva, podendo depois vir a contagiar o outro. Daí o aumento da SIDA em Portugal entre casais heterosexuais. Cf. M. Drulhe, Santé et société. Le façonnememt sociétale de la santé, in Coll. “Sociologie d’aujourd’hui”, Paris, PUF, 1996. 35

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Há ainda várias doenças que são desencadeadas pela alimentação de origem animal, também elas decorrentes das transformações alimentares impostas a animais cuja biologia está preparada para uma alimentação de tipo herbáceo e que de um dia para o outro passa a ser de farinhas, provenientes sabe-se lá de quê, mas que seguramente vão ao arrepio do organismo destes animais, sujeitos a estas “torturas”. Como se trata de animais utilizados para a alimentação dos humanos, estes novos elementos só podem produzir múltiplas alterações, susceptíveis de serem transmitidas também às pessoas, como é, por exemplo, o caso da doença Creutzfeldt-Jacob associada à crise das vacas loucas, ou os efeitos secundários do excesso de hormonas na alimentação animal … tendendo a universalizar-se. Até porque, actualmente, sem deixar de existirem, há cada vez menos doenças mais características desta ou daquela sociedade e cultura, em virtude da circulação planetária dos produtos alimentares. Há ainda que ter em conta a migração das doenças, quer através de fenómenos atmosféricos, quer de mobilidade dos indivíduos36. A actual situação, com a difusão da gripe AH1N1, é uma situação paradigmática a este respeito, até pela sua grande capacidade de contágio e dos efeitos das migrações de turismo. Idênticas considerações podem ainda ser feitas acerca da alimentação no seio da família. Se é certo que, pelo menos anteriormente à crise que se tem vindo a instalar desde 2008, o aumento do poder de compra das famílias até lhes permitia melhorar a qualidade alimentar, o que na prática se tem verificado é que as pessoas e as famílias acedem a uma maior abundância de alimentos, mas nem sempre estes e a sua confecção correspondem a uma melhoria alimentar. Passou a comer-se muito mais carne, gorduras, salgados, molhos e doçarias, mas muito menos peixe, vegetais, cereais e fruta. Na confecção há maior recurso aos fritos, à alimentação fast-food, às conservas e menos aos cozidos, à sopa ou grelhados. Além do mais, certas carnes, proporcionalmente, até não encareceram. E se se compara com o preço do peixe, mesmo aquele que Maria Engrácia Leandro, “Famílias, pobreza e exclusão social”, in Brotéria, Vol. 64, 2007, pp. 155-170. 36

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até há bem pouco tempo era considerado comida de pobre, a diferença é substancial. E o aforismo popular diz que Peixe não puxa carroça. Nesta perspectiva, tenha-se presente que para a grande maioria das pessoas, o trabalho não é hoje tão desgastante como no passado, porque exige, em geral, muito menos esforços físicos, dado o aumento da intervenção da tecnologia em todas as actividades profissionais, inclusive no âmbito do trabalho doméstico. Por outro lado, a introdução de carne e de muita carne na alimentação de grupos de condição social modesta tem sido mais valorizada, também como sinal de mais poder de compra das famílias, o que até pode significar uma desforra de um passado de pobreza e de privação. Se tivermos em conta o castigo do pecado após a queda do paraíso, o pão aparece como símbolo de toda a alimentação: Comerás o pão com o suor do teu rosto… (Gen. 1, 19). Aliás, o pão nas suas múltiplas variedades e composições é considerado o alimento mais universal e, por isso, o mais simbólico dos alimentos para a vida, tal. O vinho foi escolhido por Cristo para incarnar o Seu próprio corpo, através da transubstanciação (Lc. 22,19). Porém, a carne desde o século XIX, e particularmente o bife, na sua expressão individualizada – o que também se inscreve no espírito de individualização das sociedades modernas – veio a tornar-se o protótipo da boa alimentação. Nos finais dos anos oitenta do século passado, quando procedíamos à recolha de informação através de entrevistas junto de portugueses que vivem na região parisiense, ao perguntarmos-lhes quais as principais razões de e/imigração, um homem com 72 anos, tendo e/imigrado em 1958, respondeu-nos: Emigrei para ganhar o pão de cada dia para a mulher e para os filhos, ao passo que um outro de 36 anos, tendo partido em 1967, com 17 anos, dizia-nos: É preciso ganhar para o bifteck. A comparação entre estes dois discursos, reportando-se a tempos, espaços e condições sociais diferentes vividos por duas gerações distintas, interiorizando também efeitos de experiências pessoais e familiares diversificadas nos períodos antes e depois da e/imigração, atestam bem esta valorização da carne na alimentação familiar por parte das gerações mais novas, em contraponto com as anteriores. Mas o que esta transformação significa também 206

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tem que ver com mudanças de contextos sociais e simbólicos, tendo presente a passagem de um comportamento alimentar de “necessidade por preocupação” para um outro de “necessidade de consumo livre”. Frise-se que atitudes desta natureza tendem a prevalecer na socie­ dade portuguesa, onde as gerações mais novas, muito precocemente, mostram pouca propensão para uma alimentação à base de peixe. Ouve-se, muitas vezes, dizer aos jovens que esse facto tem que ver com as espinhas que é preciso retirar. Não será essa uma desculpa, mais uma forma de comodismo, ou antes a manifestação de um processo de socialização alimentar familiar e escolar onde o peixe, apesar de melhor para a saúde, é preterido em favor da carne, dos congelados, da alimentação fast-food, optando-se pelo pronto a consumir sem grande esforço e ao pronto a deixar de lado, mesmo de deitar fora ou recusar indo de encontro às lógicas da sociedade do desperdício? Ressalte-se, ainda, outro factor de extrema importância, prendendo- -se com a falta de tempo para se dedicar à cozinha e, muito menos, a uma cozinha mais cuidada e refinada que podem ocupar várias horas. Ora, a vida profissional das famílias e das que não podem pagar a alguém do exterior ou usufruir da ajuda de familiares, mais correntemente as mães, quando muito só nos fins de semana se poderão permitir estes “luxos”, que até há pouco tempo integravam as práticas quotidianas das famílias. Daí também o recurso a outro tipo de refeições confeccionadas no exterior. Ainda mais quando estas se afiguram mais baratas do que outra refeição, que até pode ser de melhor qualidade, confeccionada em casa. Tenha-se, ainda, presente que, na década em que vivemos, o preço dos legumes e frutas frescos aumentou cerca de 120%, enquanto o dos sumos, das doçarias, dos salgados, dos pré-cozinhados e das conservas aumentou muito pouco, comparativamente. Frise-se que, actualmente, 47% das semanadas ou mesadas que os pais dão aos filhos crianças e jovens são gastos em guloseimas. Fica aqui aberta, mais uma vez, a interpelação, constantemente renovada, às famílias, às escolas e aos comerciantes, para a necessidade de, por um lado, investirem na socialização de gostos saudáveis e, por outro, não fazerem dos produtos alimentares apenas mais Número quatro

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um produto de sedução consumista que, sendo rentável no imediato, pode conter muitos riscos, produzindo efeitos mais ou menos nefastos para a saúde das populações a médio e longo prazo e, de sobremaneira, quando nos projectamos para o futuro. É muito comum afirmar e reconhecer que aumentam vertigino­ samente as despesas do Estado com a saúde, mas exigirem-se mais melhorias nos serviços de saúde e, ao mesmo tempo, constar o facto que – provavelmente também terá que ver com um maior e mais fácil acesso à aquisição de medicamentos, graças aos benefícios da segurança social – muitas pessoas, com a conivência dos respectivos familiares, com doenças que exigem certos regimes alimentares comerem o que lhes apetece e tomarem, no mesmo momento, um comprido para anular as possíveis consequências que daí possam advir. O que se nos afigura dizer é que para além de vivermos em sociedades do hedonismo, acresce também a adopção de comportamentos incautos no que aos gastos, pessoais, familiares e colectivos diz respeito, bem como aos efeitos secundários daí decorrentes para a própria saúde de todos, podendo, mesmo assim, vir agravar-se. Perguntamos então: qual o sentido da cidadania activa para construir uma sociedade onde a saúde e o acesso aos respectivos cuidados para a preservar possa dar lugar ao preconizado na Carta de Alma Ata, da OMS, de 1978: “A saúde para todos no ano 2000”? Já lá vão praticamente 10 anos e temos de constatar que esse objectivo continua a ser uma miragem. Estão aqui implicados tanto as políticas públicas de saúde, como os indivíduos e respectivas famílias. É que se a saúde preocupa, todos são chamados a dar o seu contributo. Ademais, a saúde é um bem colectivo e ainda que em muitas situações o direito à saúde esteja longe de ser uma realidade, o certo é que todos esperamos da sociedade e, designadamente, do Estado, as prestações que permitem preservá-la e melhorá-la. Mas a ideia de “direito” implica sempre a de um “dever”. As novas concepções de saúde acentuam também as responsabilidades pessoais e familiares. Interessa anotar, por outro lado, que o peso das despesas públicas com a saúde leva as instâncias públicas a fazerem mais apelo a uma esfera privada e familiar saudável, ao mesmo tempo que 208

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assistimos a uma viragem do ambulatório, exactamente numa época em que a família está mais dispersa durante o dia: os pais no emprego, os filhos na escola e quiçá os familiares doentes, mesmo se depen­dentes, todo o dia sozinhos em casa. A vida familiar, pesem embora as grandes mudanças de que tem sido alvo, comporta regras de permuta simbólica e materiais, hábitos, práticas domésticas onde se tecem relações afectivas entre parceiros e entre gerações. É isto mesmo e nesta convivência procurada e obrigada que se constitui a esfera doméstica. Nesta perspectiva, o espaço doméstico, como o sublinha G. Balechard37 é um espaço construído por relações afectivas, Habitar uma casa é um acto individual ou familiar que releve da afectividade. É indissociavelmente ligada a esta componente afectiva que se estabelece e se transmite o trabalho sexuado, as respectivas maneiras de fazer que se forjam nas identidades íntimas, que se incorpora uma relação com os objectos, confirmando a força dos hábitos adquiridos. Na verdade, a família continua a ser o principal pivot das solidariedades de proxi­ midade entre os seus elementos, de suporte social em qualquer situação da vida, uma vez que é aqui que se assume a maior responsabilidade pela saúde, a doença, em suma, a vida dos seus elementos. Actualmente, o domicílio aparece, também, como uma nova forma de “hospitalização”, podendo até contar com mais participação de profissionais de saúde, visando evitar alguns riscos para o doente e para a família, mas também alguma derrapagem económica do orçamento neste campo. A idade elevada, a cronicidade que daqui poderá advir, as incapacidades, as fragilidades, as deficiências e/ou as dependências, induzidas pela doença, engendram mais necessidades de cuidados de saúde médicos, de enfermagem e de extra-profissionais de saúde no interior do domicílio. Os riscos associados a situações desta natureza podem aumentar para as famílias que não disponham de condições para serem elas próprias a ocuparem-se a tempo inteiro dos pacientes, tendo de pagar a quem o faça. Cf. G. Bachelard, La poétique de l’espace, in Coll. «Quadrige», Paris, PUF, 1984 (1957). 37

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Tudo isto tem que ver com o facto de poderem ser fornecidos, pelas instâncias públicas de saúde, serviços de profissionais gratuitos, mas não no que se refere ao designado “serviço doméstico” no dia-a-dia, exigindo uma forte mobilização da família. Frequentemente, nas famílias de condição social modesta um dos cônjuges – mais habitualmente a mulher, dada a tarefa que lhe tem sido atribuída desde tempos de antanho, de principal cuidadora da saúde – corre o risco de ter de deixar o emprego, pelo menos temporariamente, de concorrer para a redução dos recursos económicos de que a família precisa, mercê da falta de vencimento e, com o decorrer de tempo confrontar-se com mais risco de doença em virtude do desgaste físico e psicológico que daqui possa decorrer. Como se observa, mesmo tratando-se de duas esferas porosas das sociedades hodiernas, a família continua a constituir um importante “recurso de ajuda”, o principal parceiro da rede de serviços públicos de saúde, uma vez que a sua prestação é quotidiana. Estamos perante situações em que o público envia fortemente para o privado, para a esfera doméstica, os “cuidados domiciliários” de duração imprevisível. Trata-se, aqui, de uma constelação nevrálgica cujas formas de cuidados e de suporte se querem fazer recair sobre a família. Tenha-se presente que, apesar das grandes mudanças nas relações de género neste domínio, são essencialmente as mulheres, e mais uma vez, a serem chamadas para exercerem estas tarefas. Quando a família tem condições económicas, recorre-se, frequentemente, a outras mulheres do exterior para o efeito. E quando não têm essa possibilidade, que fazer? Enviar a pessoa fragilizada e dependente para um Lar? Como vai esta reagir? E se não aceitar, quem arrisca deixar o emprego? A realidade indica que são ainda as mulheres que continuam como as principais cuidadoras informais e a assumirem estas responsabilidades, ainda que os homens já participem mais nos cuidados informais de saúde no espaço doméstico38. 38 Os dados do projecto de investigação O contributo (in)visível. A gestão familiar do cuidados de saúde, financiado pela FCT, sob a nossa responsabilidade, apoiados por 1067 inquéritos a famílias, de índole comparativa, incluindo os concelhos de Braga, Caldas da Rainha, Évora e Vila Real, embora com menos participação no concelho de Braga, revelam que os homens participam cada vez mais nos cuidados

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Sintetizando, podemos dizer que vivemos hoje em sociedades que forjam cada vez mais riscos, sobretudo em virtude dos mecanismos económicos e tecnológicos postos, frequentemente, ao serviço do lucro pelo lucro e não na melhoria das condições de vida de todos os cidadãos, mas também valores muito orientados para o individualismo, podendo trazer consigo várias fragilidades, tanto para o indivíduo, como para a coesão social. Uma questão central da gestão dos riscos prende-se com a saúde das populações e a segurança, que afinal mais não são do que a preservação da vida contra a morte, enquanto ela nos deixar poder alimentar esta sensação. Enquanto no passado os saberes e as normas relativas à saúde e salvação do corpo e do espírito eram ditadas pelas instâncias religiosas, a ciência, designadamente a medicina, a tecnologia e, também, um insis­ tente apelo à adopção de comportamentos saudáveis, vieram a impor-se nas sociedades hodiernas. Com a modernização das sociedades, os avanços dos conhecimentos científicos e tecnológicos e com a ajuda de populações informadas augurava-se minimizar todos os imponderáveis da vida. Ora, os desenvol­ vimentos tecnológicos, e especialmente, os acidentes e crises que têm assolado as sociedades, abalaram bastante este optimismo agravado pelas várias investigações científicas que têm vindo a denunciar riscos invisíveis ou decorrentes de interacções inesperadas entre riscos distantes, o que vem suscitando uma desconfiança generalizada sobre as mais varia­ das dimensões da vida quotidiana. Perante situações desta natureza, aumentam as incertezas e as inseguranças, que não integram apenas os riscos que ameaçam a saúde, ainda que esta seja um valor fundamental das sociedades modernas. Todavia, nem sempre os comportamentos individuais, familiares e sociais abonam no mesmo sentido. Vive-se, frequentemente, numa familiares de saúde no seio da família, sem no entanto retirarem o lugar cimeiro às mulheres. Muito deles, idosos, são até coagidos a fazê-lo em virtude de doença da mulher tornando-a dependente. Também aqui se confirma um dado estatístico em termos de morbilidade, isto é, são as mulheres que adoecem, com dependência, mais do que os homens nestas idades da vida. Número quatro

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lógica de racionalidade-irracionalidade que pode conter riscos de vária ordem, vindo, alguns, das próprias estruturas da sociedade, uma vez que nem todos os indivíduos e famílias são iguais perante a saúde devido às condições sociais de desigualdades em que são obrigados a viver. Daí, uns estarem sujeitos a mais riscos do que outros. Mas não tem menos relevo o facto de muitas pessoas e famílias resistirem a certas medidas de prevenção, por estarem, frequentemente, associadas a sistemas de valores que investem mais na qualidade de vida no imediato do que no futuro. Podemos, assim, dizer que os diferentes comportamentos e culturas dos riscos variam em função do olhar teórico dos peritos, das representações sociais acerca da saúde, mas, também, do olhar pragmático que cada um projecta na realidade quotidiana.

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Uma duquesa, um reino, um destino Da luta pelo trono 1

Maria Helena Alvim*

Do desastre de Alcácer Quibir resultou uma perigosa conjuntura que pôs em risco a independência do reino. Não é que as armas portuguesas não houvessem conhecido, na dinastia de Avis, o travo da derrota: Tânger e Toro ainda estavam vivas na memória colectiva. Nestas batalhas, porém, não se havia perdido o rei, a fina-flor da nobreza e o grosso do exército, nem deixado cativos tanto e tão valiosos reféns. E, além de tudo isto, o que tornava a situação mais grave e preocupante era o facto de não haver sucessor directo: o jovem Sebastião não deixara descendência e com ele extinguia-se a dinastia que representava. Era necessário achar solução rápida e prudente numa situação tão gravosa. Extinta a linha de D. João III, apresentaram-se seis possíveis sucessores, enquanto o reino era, transitoriamente, gerido pelo velho e fragilizado Cardeal D. Henrique, de quem não se esperava que pudesse vir a desempenhar papel político de tamanha importância. Era filho do segundo casamento de D. Manuel I com D. Maria e, na altura em que ocupou o trono, contava cerca de sessenta e seis anos. A sua educação foi a de um príncipe destinado à carreira eclesiástica: teve mestres de Nota: Este estudo dá continuidade ao que a autora apresenta no número anterior, com o título Uma duquesa, um reino, um destino. * Professora universitária; presidente da APHIM (Associação Portuguesa de Inves­ti­gação Histórica sobre as Mulheres). Número quatro

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primeira água, como Pedro Nunes, com quem aprendeu os mistérios da Matemática, e Nicolau Clenardo que o instruiu nas Humanidades. Culto, mas “de sua condição encolhido e vergonhoso (…) pouco mimoso e severo, continente e temperado nas palavras”1, votado e dedicado aos princípios da Igreja Católica, D. Henrique tomou ordens muito jovem e, aos vinte anos, era já Arcebispo de Braga, donde, volvidos três anos, transitou para Évora por ter sido elevado à Sé daquela arquidiocese. Aí, à boa maneira renascentista, criou, entre 1540 e 1562, uma corte de letrados, músicos, cantores e charameleiros, às suas próprias expensas. Designado Inquisidor Geral do Reino e elevado ao Cardinalato, em 1552, Roma nomeou-o legado apostólico em Portugal. Após alguns anos em Lisboa, à frente da terceira arquidiocese do Reino, nem por isso esqueceu Évora à qual retornou e onde muito contribuiu para a criação, em 1559, de uma Universidade. Foi durante a menoridade de seu sobrinho D. Sebastião que, no período de 1562 a 1568, ocupou o cargo de regente. Quando o jovem rei atingiu a maioridade e recebeu o ceptro, o Cardeal D. Henrique manteve-se junto dele como o seu principal orientador e como membro do Conselho de Estado. Enquanto regente, desenvolveu acção profícua: aumentou os réditos da Coroa, esforçou-se por organizar o governo, evitou despesas supérfluas, mandou reparar fortalezas no continente e no ultramar e tomou medidas contra a guerra de corso que franceses e ingleses moviam contra a marinha comercial portuguesa. As orientações que o jovem rei ia seguindo na condução da política do Reino levaram-no, contudo, a afastar-se dos cargos que ocupava por não concordar “com os caminhos que El Rey seu Sõr fazia, e como os fazia”, recolhendo-se ao Mosteiro de Alcobaça por volta de 15732. Pressentindo o desfecho catastrófico do projecto africano do sobrinho verberou, por carta, os privados do monarca que o afastavam da governação do Reino e mais não eram do que “favorecedores e louvadores de tamanhos malles 1 2

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Bibliothèque National de Paris, Fonds Portugais, Códice 8, fl. 239 Idem. Revista Campos Monteiro


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(…) os quais não merecem menos porem-lhes o fogo que os Judeus que queimaram nos autos da Santa Inquisição”3. Quando, em Janeiro de 1578, D. Sebastião lhe foi solicitar o consentimento para a empresa de Alcácer Quibir, o Cardeal não lho concedeu nem, tão pouco, aceitou a regência durante a ausência do monarca. Chegada ao Reino, em 23 de Agosto, a fatídica notícia do desastre em África, D. Henrique viu-se obrigado a assumir o comando. Logo nos primeiros dias do seu governo, que durará ano e meio, expediu dezenas de cartas em que convocava para Cortes os Estados do Reino, empenhado em resolver a situação em termos nacionais. Neste sentido, tratou, também, de escrever ao Papa Gregório III pedindo dispensa dos votos. Era sua intenção contrair matrimónio com a rainha-mãe de França, com o fim de prover o Reino de descendência directa. Este projecto não se concretizou conforme referimos na primeira parte desta pesquisa4. As Cortes haviam sido convocadas para 15 de Novembro, em Almeirim, mas não chegaram a reunir-se. Neste ínterim, Filipe II de Espanha, que seria o mais poderoso dos pretendentes, foi urdindo a teia na qual se enredará o monarca português, pressionado, cansado e doente. Chronica do Cardeal Rei D. Henrique e vida de Miguel de Morera, Escripta por Elle mesmo, Publicada com Algumas Anotações, Lisboa, 1840. 4 Acerca do “negócio” do casamento do Cardeal-Rei, não resistimos a transcrever algumas passagens de D. António Caetano de Sousa: “ Achava-se El-Rei D. Henrique inábil pelo estado para dar sucessor ao Reino, e cheio de anos (…) mas era tão veemente o desejo dos Povos de ver perpetuar a Coroa” que, face à insistência, embora com grande repulsa, o Cardeal-Rei “se deixou vencer das importunas instâncias dos Vassalos (…) ainda que se considerasse velho, decrépito e inábil para o tálamo”. Não era, porém, a rainha-mãe de França – D. Isabel de Áustria, viúva de Carlos IX – a única presumível noiva. A par desta dama serôdia era-lhe proposta para esposa “a Senhora D. Maria, filha primeira do duque de Bragança, D. João, a qual contava pouco mais de catorze anos de idade”. Mas não é que este possível consórcio com a jovem Bragança “que com grande segredo se tratara no seu gabinete, foi logo penetrado pelos Ministros d´El-Rei Católico?”. Estes e outros segredos eram quase de imediato conhecidos do Espanhol, como a identidade de quatro dos cinco Governadores “que El-Rei D. Henrique havia nomeado tinham seguros [ os espiões de D. Filipe II], assim como três dos quatro vereadores do Senado da Câmara”. Ver História Genealógica, Tomo III, Livro IV, pp. 381-382. 3

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Com o pretexto de apresentar condolências ao seu velho parente, pela morte abrupta de D. Sebastião e de lhe oferecer auxílio no resgate dos prisioneiros portugueses detidos em Alcácer-Quibir, Filipe II despachou para Lisboa um hábil diplomata – Cristóvão de Moura – com o intuito de ir manobrando entre os conselheiros do Reino e a nobreza, realçando os direitos do filho de Carlos V e as vantagens de Portugal ficar sob o ceptro do herdeiro do “Império onde o sol nunca se punha”. O Cardeal Rei convocou, de novo, as Cortes, desta feita para Lisboa, e mandou notificar os candidatos ao trono para que apresentassem as razões com que arguiriam os direitos de candidatura ao Reino. Eram, os pretendentes ao trono, em número de seis: Filipe II de Espanha, neto de D. Manuel I, filho da Infanta D. Isabel, primeira filha do dito Rei Venturoso; D. Catarina, mulher de D. João, o primeiro do nome Duque de Bragança (D. Catarina era filha do Infante D. Duarte, irmão do Cardeal-Rei D. Henrique); o Duque de Sabóia, Manuel Felisberto, também neto de D. Manuel I, por ser filho de D. Brites, filha do Venturoso; Rainúncio, príncipe de Parma, filho de D. Maria que, por sua vez, era filha do Infante D. Duarte (tal como D. Catarina de Bragança); D. António, Prior do Crato, outro neto de D. Manuel, mas pela linha bastarda, filho do Infante D. Luís; finalmente, D. Catarina de Médicis, outra rainha-mãe de França, viúva de Henrique II, que remontava a sua pretensão ao tempo dos Afonsinos (considerava-se legítima descendente de D. Afonso III de Portugal e de sua mulher, D. Matilde de Bolonha). Desta meia dúzia de pretendentes à Coroa portuguesa, apenas três tinham possibilidade de virem a impor-se: o Espanhol, a Bragança e o Prior do Crato. Dos dois portugueses, a duquesa de Bragança congraçava a vontade da nobreza que nela reconhecia uma candidata legítima. D. António, rejeitado pelos nobres legalistas, estava associado ao povo e às ordens religiosas (ele próprio era Prior da Ordem do Crato). Convicto de que, caso conseguisse provar a sua legitimação teria o trono ganho, procedeu nesse sentido e conseguiu o reconhecimento do casamento secreto de seus pais, o infante D. Luís com Violante Gomes. Esta atitude desagradou ao Cardeal Rei que o expulsou da Corte, privando-o de bens e honras. A partir daqui – Março de 1579 – a movimentação política do 216

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Prior do Crato ficou ferida de clandestinidade, tendo contra si a vontade real: o monarca proferiu sentença de ilegitimidade do sobrinho. A reunião das Cortes, tão necessária nesta conjuntura – um candidato poderoso, um decisor timorato, uma situação grave para a independência do país – não avançou: quer o prudente Filipe II, quer a duquesa de Bragança não estavam interessados na decisão dos três Estados uma vez que, defendendo os procuradores o princípio da eleição por cabeça, seria D. António Prior do Crato quem recolheria o maior número de votos. A verdade, porém, é que acabaram por reunir-se nos inícios do mês de Junho de 1579, tendo o secretário Miguel de Moura dito, da parte do rei, “Que a causa porque os mandava chamar a Cortes, foi para tratar da quietação e socego destes Reinos, em caso que de sua Alteza não ficassem descendentes, ou em sua vida não tomasse determinação na sucessão deles”5. D. Henrique determinou, ainda, para maior solenidade do acto, que a cidade de Lisboa, tendo embora já feito o juramento pelos seus procuradores, o fizesse também pelos vereadores, juízes e os vinte e quatro representantes dos mesteres. O duque de Bragança jurou “só e separadamente” nesse mesmo dia 4 e D. António no dia 13. D. António Caetano de Sousa infere, deste procedimento, que o monarca (…) já neste tempo preferia o duque de Bragança ao senhor D.António, por que se não fora assim não jurara primeiro no auto das Cortes, que é o mais solene do reino, em que se vêem as preferências (…). De mais que o duque no auto das Cortes esteve assentado no primeiro lugar da parte da mão direita d´El-Rei em cadeira com almofada preta (…), e porque tardou, El-Rei o mandou chamar lhe disse que só por ele esperava6.

D. António Caetano de Sousa, História Genalógica da Casa Real Portuguesa, ed. fac-similada, Atlântida Livraria Editora Lta., 1948 (ed. original: Officina Sylvana da Academia Real, Lisboa Occidental, 1783), Tomo VI, p. 101. 6 Idem, ibidem. 5

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Partidário confesso da causa de Bragança, D. António Caetano de Sousa regista que “D. Catarina tendo sido em todo o tempo o objecto de afeição de seu tio El-Rei D. Henrique, estava agora tão, inclinado à justiça da sobrinha, que esteve resoluto em a declarar, no dia seguinte, sucessora do Reino”7. Pergunta-se que terá sucedido, então, para que tal não acontecesse. A falta de descrição, ainda que de um vassalo fiável, ou as artes de um ardiloso diplomata, responder-se-á. Com efeito, segundo conta Caetano de Sousa, o monarca terá confidenciado a D. João de Mascarenhas, em quem muito confiava, a intenção de indicar a duquesa de Bragança como sua sucessora. Fraco serviço prestou D. João à nação ao dar com a “língua nos dentes”, como popularmente se diz, junto ao ouvido atento de Cristóvão de Moura. Falou [este] resoluto e forte a El-Rei, em quem o génio, com a debilidade dos espíritos [levou] a suspender a nomeação: e isto só bastou para tirar a Coroa à senhora D. Catarina, e a dar a El-Rei de Castela; porque El-Rei D. Henrique, já caduco, se preocupou de medo, e depondo as leis, que o obrigaram a fazer justiça à Sereníssima Casa de Bragança8. Tão atemorizado ficou o Cardeal D. Henrique que, contrariando aquela que até então parecera ser a sua inclinação, chegou ao ponto de aconselhar a sobrinha a “contentar-se com o que lhe oferecia El-Rei D. Filipe, para que desistisse da pretensão”9. Não foi o Espanhol avaro nas promessas de recompensa aos Braganças pela desistência da realeza em troca da qual estava disposto (…) a largar-lhe(s) o Estado do Brasil, de que os duques poderiam intitular-se Reis; ou em Portugal o Reino do Algarve e as terras que foram dos Infantes e que lhe(s) concederia perpétuo o Mestrado da Ordem de Cristo, e todos os privilégios e isenções que pudessem ainda mais engrandecer a Idem, p. 102. Idem, ibidem. 9 Idem, ibidem. 7 8

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Casa de Bragança, que teria licença para todos os anos poder mandar por sua conta uma nau à Índia Oriental, e que casaria seu filho, o príncipe D. Diogo com uma das suas filhas qual D. Catarina escolhesse10. D. Catarina não se deixou engodar com estas promessas. Na reali­ dade, Filipe II, assim que reconheceu que o trono já estava seguro, escreveu ao duque de Bragança “de própria mão (…) dizendo que os letrados lhe afirmavam que não podia fazer em boa consciência alheação de tão grande parte do reino”. Face ao rumo que a questão estava a tomar, que não lhe era, de todo, favorável, a duquesa resolveu escrever uma carta ao monarca português. Datada de 20 de Outubro de 1579, solicitava, entre outras palavras, e com a maior subtileza, licença ao seu velho tio para “lhe ir beijar a mão”11. E foi-lhe lembrando que “a notória justiça da sua pretensão era quase uniforme em todos os maiores letrados do Reino”12, aduzindo mais razões tão convincentes quanto verdadeiras. Não esperou D. Catarina pela resposta e tendo notícia de que ele “se passava” a Almeirim, saiu de Vila Viçosa, onde se encontrava, e pôs-se a caminho ao seu encontro. Chegou a Almeirim a tempo, que El-Rei quase se estava expirando; porém como conservava inteiro o juízo, e a voz desembaraçada, teve lugar de conferir com ele largo espaço, e saiu desta conferência com semblante tão alegre, que todos os que a viram tiveram o negócio por concluido a seu favor13. Após a morte do rei, ocorrida a 31 de Janeiro de 1580, ao abrir-se o testamento verificou-se que, afinal, não deixara o preto no branco, apenas recomendava aos cinco governadores que o Reino se “entregasse a quem Idem, ibidem. Idem ibidem. 12 Idem, ibidem. 13 Idem, ibidem. 10 11

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tivesse mais justiça”. Os cinco governadores nomeados pelo defunto monarca tomaram posse nesse mesmo dia, pelo que a administração do Reino ficou à sua responsabilidade. Eram eles: D. João de Mascarenhas, o arcebispo de Lisboa, Francisco de Sá, Diogo Lopes de Sousa e D. João Telo de Meneses. Todos defensores do princípio legalista, inclinava-se ainda o arcebispo de Lisboa para as razões da duquesa e D. João Telo de Meneses veio a mostrar-se adepto do Prior do Crato. Os restantes não escondiam a simpatia pelo Espanhol. Todavia, desde o início do seu governo, tentaram cumprir a lei sem tomadas de posições partidárias. Entretanto, os procuradores às Cortes insistiam na sua realização e Cristóvão de Moura esforçava-se no sentido de obter deles um documento em que nomeassem Filipe II rei de Portugal. Nos finais de Maio de 1580, ordenaram fazer Cortes em Almeirim. Em breve, os governadores ficaram reduzidos a três, uma vez que o arcebispo de Lisboa adoeceu e D. João Telo de Menezes, desiludido com a marcha dos acontecimentos – “as cousas andavam de feição que não tinham ordem” – como refere um cronista coevo, resolveu afastar-se do cargo. A cena estava livre para os restantes, apaziguados com o Espanhol. Prior do Crato teria, então, sugerido um entendimento com os Braganças, mas o duque D. João, convicto da justiça dos direitos de D. Catarina, recusava qualquer resposta. Alguns dias mais tarde, em 18 de Junho, chegou a notícia (inexacta) de que Filipe II já havia invadido Portugal e que estaria no Alentejo. Foi quanto bastou para que, de imediato, D. António fosse aclamado rei de Portugal com a adesão de grande parte do reino. Começou a distribuir mercês, a mandar cunhar moeda, a nomear partidários para ofícios civis e cargos religiosos. Com as tropas castelhanas já em solo português e o duque de Alba, que as comandava, a derrotar a oposição, D. António não desistia. Porém, os três governadores dispararam um golpe violento contra os seus direitos ao publicarem o documento de Castro Marim, nomeando, em 17 de Julho, Filipe II “por rei e sõr natural nosso de todos os ditos reinos e señorios da coroa de Portugal, como de direito é e lhe pertence” e declarando D. António como rebelde. Este documento levou muitos portugueses indecisos, que aguardavam a decisão dos governadores, a adoptarem a 220

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“posição legal”, ou seja, a reconhecerem Filipe II como rei de Portugal. Os duques de Bragança foram dos primeiros a aceitar a realeza espanhola, a par de muitos outros nobres. Sob o ponto de vista militar, D. António conheceu a derrota na batalha de Alcântara, travada em 25 de Agosto de 1580. No Norte, para onde fugiu, ainda tentou organizar um foco de resistência mas as circunstâncias não o favoreceram. Face à crise da Independência, D. Catarina tomou duas atitudes diferentes, ambas dignas do nosso respeito. Primeiramente, candidatou- -se ao trono, como vimos, mas, quando o curso dos acontecimentos a desviaram dele recolheu-se em Vila Viçosa rodeada da sua família, mas não tão retirada que Filipe II não se lembrasse da ilustre parente que espoliara. Na fase da luta pelos direitos ao trono, a duquesa rodeou-se de hábeis jurisconsultos que basearam a sua argumentação no “benefício da representação”. Arguiam eles que, uma vez que D. Duarte, seu irmão, o candidato com preferência sobre ela pela linha da varonia tinha falecido sem deixar descendência, D. Catarina substituiria o seu pai, representando-o, uma vez que ele já não era vivo. Com este argumento a duquesa colocou-se com mais vantagens relativamente aos outros candidatos. Designado Alegações de Direito, que se ofereceram ao muito alto & muito poderoso Rei Dom Henrique, nosso senhor, na causa da sucessão destes Reinos, por parte da Senhora Dona Catarina, filha do Infante D. Duarte, seu irmão, este processo jurídico, datado de 22 de Outubro de 1579, constituiu um valioso tratado. São seus autores Félix Teixeira e Afonso De Lucena, coadjuvados por dois sábios professores da Universidade de Coimbra: António Vaz Cabaço e Luís Correia. Não se ficou por aqui o plano da duquesa. Conhecedora da impor­ tância dos jogos da diplomacia enviou embaixadores aos reinos de França e de Inglaterra e à Santa Sé com o duplo intuito de esclarecer estes responsáveis das razões que lhe assistiam e de angariar possíveis apoiantes para a sua causa. No xadrez político da Europa de então, não conviria à França impedir o aumento do poder – de si já tamanho – Número quatro

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do vizinho espanhol? E com a Inglaterra, que iniciava a sua ascensão, não poderia passar-se algo de semelhante? Depois, para sancionar alianças ou lembrar outras instituições, lá estaria Roma, árbitro omnipresente nas questões entre os príncipes da Cristandade. O destino, contudo, não permitiu que a força da razão prevalecesse sobre a razão da força. O duque D. João “fiado na sua justiça tão clara, a representava com repetidas instâncias aos governadores. Seguiu-os àVila de Santarém, para onde se retiraram [vindos de Almeirim]. Passou com eles a Setúbal, que buscaram por asilo contra a peste, em que por algumas partes ardia o Reino; até que desenganado finalmente, de que todas as diligências eram infrutuosas, e que já parte da nobreza estava corrompida coma as promessas del-Rei de Castela, e o povo estenuado, e sem forças; não querendo unir-se ao Prioir do Crato, nem aceitar os partido del Rei Filipe, que por D. Cristóvão de Moura se lhe faziam, se retirou à vila de Portel, na província do Alentejo, deixando em uma alegação, feita pela Universidade de Coimbra (que está impressa), a sua justiça tão clara, que a não ser o medo, e a ambição, não houvera dúvida em se proferir a seu favor a sentença14. A 5 de Dezembro de 1581, Filipe II entrou em Portugal pela cidade de Elvas e, dali, logo mandou o seu fiel servidor, D. Filipe de Córdoba e Aragão, visitar a duquesa de Bragança. Conta D. António Caetano de Sousa: “Passou a Elvas toda a nobreza, sendo um dos primeiros o duque de Bragança, que da vila de Portel passou com a sua casa a Vila Boim, lugar também seu, a uma légua de Elvas”15. O duque de Bragança entrou em Elvas seguido do duque de Barcelos, seu filho, e com grande acompanhamento formado por um magnífico séquito de fidalgos da sua Casa. O Espanhol, com quem se encontrou a uma légua de distância, dispensou-lhe as mais vivas demonstrações de

Idem, pp. 103-104. Idem, vol. VI, p. 106.

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afabilidade e cortesia. No dia seguinte, o rei foi aVila Boim cumprimentar a duquesa. A senhora D. Catarina esperava a El Rei à porta da sala, da banda de dentro, com uma só dama, que lhe trazia a cauda (…) e assim que El Rei chegou foi a beijar-lhe a mão, que ele retirou, e instando ela, lhe tomou a mão direita, e abraçou-a, e com singular expressão de carinho se saudaram16. Querendo distinguir a prima como princesa e como dama, Filipe II apresentou-lhe o braço, para ela se apoiar, mas a duquesa, (…) com comedimento e reverência, recusou-o (…). Não houve coisa com que El Rei não lisonjeasse a prima; chegou a proferir o tratamento de Alteza, querendo com esta política suavizar a queixa, que depois havia de sentir em não serem correspondentes as mercês às propostas, com que a mandara em outro tempo persuadir17. No modo algo reservado, mesmo esquivo, com que D. Catarina recebeu as homenagens do soberano, reencontramos a altivez com que os seus biógrafos referem ser-lhe inata. Aliás, Filipe II devia estar bem informado acerca da sua personalidade, já que avisou o duque de Alba, o mais nobre senhor das Espanhas, de que quando a fosse visitar não receberia dela o tratamento a que estava habituado. De facto, narram as fontes que no momento em que aquela visita foi feita, D. Catarina não o tratou nem de Senhoria, Alteza ou Excelência iniciando, antes, as frases que com ele trocou por Jesus, palavra dita como interjeição, em tom exclamativo, logo seguida de Senhor Duque. A forma de trata­ mento tinha, nesta época, uma enorme importância e, em sociedade, alguma omissão ou equívoco podia constituir falta grave.

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Idem, ibidem. Idem, vol. VI, p. 107. Número quatro

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Filipe II, como lhe competia, mandou convocar Cortes que se reuniram em Tomar a 16 de Abril de 1581. Nelas quis destacar a qualidade da Casa de Bragança. O duque de Bragança, Condestável do Reino e que, “por ao presente preceder a todos os Grandes do Reino” (como consta do auto), foi agraciado pelo rei com a atribuição da Ordem do Tosão de Ouro, “lançado” pelo próprio monarca, provavelmente, também, no sentido de amaciar fundados ressentimentos. Com estas e outras honras foi o Espanhol entretendo os nobres familiares portugueses. D. António Caetano de Sousa refere que as demonstrações em relação aos Braganças “não foram vistas com gosto dos Grandes de Castela”, mas a verdade é que Filipe II os “distinguiu mais com honras pessoais do que com mercês que aumentassem o seu Estado”18.Tais favores públicos de desagravo decorriam da subtileza política do “prudente” monarca e dos pareceres dos conselheiros, como veremos adiante. D. Catarina entendeu, entretanto, ter chegado a altura de apresentar ao rei uma petição na qual enumerava as contrapartidas devidas à Casa de Bragança, em consequência da usurpação do trono. Começou por lhe pedir que casasse o príncipe herdeiro, D. Diogo, com a sua filha mais velha, pedido a que se seguiu um extenso rol deles, nomeadamente, a recuperação: – das terras, jurisdições, padroados, ofícios e sisas que possuíra a rainha D. Catarina, viúva de D. João III, com a faculdade de as poder transmitir aos seus filhos; – da vila de Guimarães, que era da Casa, com tudo o que dela houvera; – da cidade de Beja, com as vilas de Serpa e Moura, com vinte e cinco mil cruzados de renda e o título de duque para o filho segundo; – das terras, rendas e jurisdições que haviam pertencido ao infante D. Duarte, seu irmão, com o título de duque para o filho terceiro, tudo de juro e herdade, fora da lei mental, com jurisdição cível e crime como a mais privilegiada de Castela. Pretendia, ainda que: Idem, p. 110.

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– ao duque de Barcelos se dessem os mestrados das Ordens de Santiago e Avis e outros privilégios com elas conotados; – se lhe desempenhassem quatro contos de reis de juro que tinham vencido sobre as dízimas do pescado de Lisboa e do reguengo de Santarém e que jamais pudessem ser unidas à Coroa; – se cobrassem, para o duque, em Lisboa, as dízimas dos bacalhaus e atuns, bem como outras rendas do pescado de Lisboa e de terras da Casa de Bragança; – fosse concedida a faculdade para mandar vir da Índia, em cada ano para sempre, cem quintais de cravo e cem de canela e trezentos de pimenta, livres de direitos; – se confirmassem diversas doações e mercês; – pudessem prover um capitão das naus da viagem da Índia com várias regalias; – a D. Catarina e ao duque se desse o título de infantes e fossem tratados, eles e seus filhos e todos os duques de Bragança e seus sucessores, para sempre, como fora tratado D. Duarte; – se lhes dirigissem como Excelência e fossem tidos por Grandes, ainda que não tivessem herdado este título; – se lhes melhorassem as armas; – pudessem usufruir de privilégios diversos nas idas às Cortes; – não servissem senão no Reino e em sua defesa; – não se pusessem presídios nas suas terras; – se restituísse Vila Viçosa e tudo o que lhe fora tomado. Nesta longa petição, para além do elevado valor material dos bens referidos, nota-se uma particular preocupação com as questões de tratamento: os filhos segundo e terceiro deveriam ser elevados a duques; a filha mais velha seria princesa herdeira por via do casamento com o herdeiro de Filipe II; o ofício perpétuo de Condestável ficaria para o filho mais velho, o duque de Barcelos, e para D. Catarina e seu marido o tratamento de infantes19. 19

Idem, pp. 131-132. Número quatro

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Pelo que nos tem sido dado a conhecer da personalidade da duquesa, parece-nos podermos afirmar que estaria, essencialmente, empenhada na concretização dos seus pedidos: neta de reis, filha de infantes, educada nos paços da rainha em pé de igualdade com os príncipes-infantes, não seria a ambição a comandá-la na luta pelo trono mas, antes, a convicção de merecer por direito e criação tais mercês. Conta-nos D. António Caetano de Sousa que foi criticada por alguns autores por a considerarem demasiado altiva. Entre eles está D. Francisco Manuel de Melo, um dos mais destacados escritores do seiscentismo nacional. D. António rebate-o alegando estar mal informado e acrescenta: (…) alguns críticos censuraram-na, condenando-lhe, por vaidade, até os nomes dos seus filhos; porque não contente (o disseram eles) dos nomes conhecidos, próprios e comuns da pátria, os buscara desusados e peregrinos, como Teodósio, por dois imperadores, Duarte, por muitos reis,Alexandre, por um monarca que valeu por muitos. E nas filhas esquecendo-se das vocações humanas, passara às sobrenaturais, nomeando uma Angélica, outra Serafina e outra Querubina (…). Foi errado e falso o discurso dos que com paixão, ou inveja referiram as acções desta sereníssima Casa e seus príncipes, dizendo que ela, até nos nomes que elegia, mostrava a sua altivez; não reparando que Jaime,Teodósio, Constantino, Fulgêncio e outros nomes foram anteriores á senhora D. Catarina.20 Entende, também, Caetano de Sousa que relativamente ao facto da duquesa de Bragança (…) falar por vós aos homens fidalgos, e com menos tratamento dos que alguns queriam (…), consideradas as circunstâncias da sua pessoa, que era real, parece tinha motivos que a pudessem relevar desta nota, porque D. Catarina era filha do infante D. Duarte (…), último filho varão de D. Manuel I e D. Maria, infanta de Castela [cujos pais eram os Reis

Idem, p. 132.

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Católicos] e [tinha por mãe] a infanta D. Isabel, filha de D. Jaime, 4.º duque de Bragança, jurado príncipe herdeiro do Reino (…)21. Além disso: (…) achava-se [D. Catarina] em mui propíncuo grau de consan­ guinidade com poderosos monarcas, porque era sobrinha del Rei D. João III, prima co-irmã del Rei D. Filipe II de Espanha, tia del Rei D. Sebastião, sobrinha del Rei D. Henrique, último da sua linha, pelo que era sem controvérsia a sua imediata sucessora na Coroa, com filha de seu irmão, o infante D. Duarte, a quem representava [vide «Alegações»], se o poder del rei não a embaraçara com um tão injusto negociado22. Não resiste o autor da História Genealógica a apresentar um derra­ deiro argumento: (…) nunca se intitulou duquesa e se assinava somente Catarina; nem os reis lhe deram outro título nos alvarás de mercês, nem nas cartas particulares mais que o do grau de parentesco em que se achavam, como o de sobrinha, tia e prima e assim foi tratada por infanta.Todos a nomeavam por senhora D. Catarina e lhe falavam por Alteza (excepto seu marido que a tratava por Excelência, sendo para ambos recíproco este tratamento, como vimos em muitas cartas). E talvez fosse este o motivo por que na consulta dos governadores do Reino, sobre a lei dos tratamentos, dissessem a el Rei lhes parecia na pragmática se não falasse da sua pessoa deixando-a na permissão de Alteza, com a qual universalmente lhe falavam23. Quando Filipe II recebeu a petição de D. Catarina apresentou-a aos Conselheiros de Estado, pois desejava saber o que sobre ela alvitravam, provavelmente, não para seguir a sua opinião mas para respaldar a sua Idem, ibidem. Idem, p. 133. 23 Idem, ibidem. 21 22

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resposta. Quis ainda o monarca ouvir a de um ministro, cujo nome desconhecemos, mas que “naquele século foi muito atendido pela sua pessoa”. Em documento datado de 27 de Agosto de 1580, reconheceu este servidor o direito que a casa de Bragança tinha à Coroa e recomendou que os duques deviam ser entretidos com grandes esperanças, para ficarem sempre “muito dependentes do que o monarca mais lhes poderia ofertar”. Entretanto, dada a grandeza dos duques, o ministro aconselhou o monarca que seria de boa política tratá-los como amigos e menos como súbditos, cuidando de afagar o seu justificado orgulho mais com honras do que com bens, por ser a Casa de Bragança a mais poderosa de Espanha. Lembra ainda que se deveria diminuir o poder da família dispensando-a, isto é, casando os descendentes em Espanha ou em outro reino da Europa e proporcionando a ocasião para que alguns seguissem a carreira eclesiástica. Este ministro espanhol, além de sagaz era conhecedor da história da Casa de Bragança, que nascera e crescera com políticas de estreita coesão familiar, experimentando, embora, algumas uniões extra-muros em busca de alianças vantajosas. Ponderados os pareceres daqueles que quisera ouvir, Filipe II, que tinha pressa em tornar a Castela, responde à petição da prima portuguesa. Deixando no ar certas esperanças quanto ao casamento do príncipe herdeiro com uma das filhas dos Braganças, e do duque de Barcelos com uma arquiduquesa da Casa da Áustria, despachou a pendência da forma seguinte: O ofício do Condestável para a pessoa do duque e, pelo seu falecimento passaria para o duque de Barcelos, e depois para o seu herdeiro e sucessor da Casa. Para o filho segundo um lugar bem em Castela, de mil vizinhos, pouco mais ou menos, e mil cruzados de renda, com o título de Marquês, tudo de juro. Para o filho terceiro uma comenda em Castela, de cinco mil cruzados. Duzentos mil cruzados em dinheiro, pagos em quatro anos, para desempenhar a Casa e pagar as suas dívidas. Que possa mandar trazer da Índia, por tempo de seis anos, cem quintais de canela, e outros tantos de cravo, e outros cem de noz moscada, tudo forro dos direitos que se pagam a 228

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sua Majestade. Que a todos os sucessores da Casa de Bragança, depois que a herdarem, se fale por excelência, assim como o duque a tinha por mercê del rei D. Henrique. Que o privilégio que o duque tinha em sua vida para não pagar chancelaria passe, por seu falecimento, ao duque de Barcelos, e depois a seu neto, herdeiro e sucessor da casa, assim como o duque agora o tinha24. Filipe II confirmou, também, todas as doações da Casa de Bragança, conforme o costume do reino, sem embargo de serem de juro e herdade e, dispensada a lei mental, pôs termo à resposta à petição. Magra resposta para quem tanto pretendia, legitimamente, uma vez que o dano causado à Casa de Bragança fora não só a perda de um Reino mas, também, a de um Império. Podemos calcular a decepção de D. Catarina e, porque a conhecemos, sabemos que esta resposta não ficaria sem contra-argumentação. Anos mais tarde, já após a morte de D. João, voltará a insistir nestas matérias, desta vez, através de D. Rodrigo de Lencastre, fiel representante da Casa de Bragança.

Nota: A conclusão deste estudo será publicada no próximo número desta Revista.

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Idem, pp. 117-118. Número quatro

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Percursos Devassados por Torre do Moncorvo Maria Ivone da Paz Soares * Se Deus castigar a luxúria, pode ficar só no céu. Provérbio

As mãos e, frequentemente, os pés dos Arcebispos, penetraram na construção do arcebispado, na consolidação da estrutura religiosa das suas ovelhas, no erradicar das ervas daninhas, na vivificação do seu pastoreio. Desde os Arcebispos D. Fr. Baltazar Limpo e D. Fr. Bartolomeu dos Mártires até D. Fr. Caetano Brandão, vários visitaram pelo seu pé a comarca de Torre de Moncorvo; outros delegaram competências e poderes para os representarem nas visitações paroquiais1. Acompanhemos, por ora, Pedro do Cenáculo Pinto e Loureiro, abade de S. Cosme e S. Damião de Arcos, por montes e por trás dos montes e dos vales para sentir o pulsar de graníticos povoados, cansados de trabalho e de sonhos perdidos. Por entre florestas densas de carvalhos e castanheiros gigantes, as altas serras de mais de mil metros que se rasgam para deixar passar as veias do Douro, vive um povo robusto e inteligente2. Docente no Conservatório de Música Calouste Gulbenkian; Mestre em História das Instituições e da Cultura Moderna e Contemporânea. 1 Franquelim Neiva Soares, Visitações e Inquéritos Paroquiais da Comarca de Torre de Moncorvo de 1775-1845, Braga, 1981, pp. CVI-CX (quadro n.º 21). 2 Francisco Manuel Alves, Trás-os-Montes, Lisboa, Escola Tipográfica da Imprensa Nacional de Lisboa, 1929, pp. 5-9. Muito do seu revestimento florestal foi impul­ sionado nos finais do século XVIII e inícios do XIX. Fernando de Sousa, “A Memória *

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Enfrenta rigores de solidão seca, de clausura pela neve e interioridade, de esquecimento do progresso, porém as belas paisagens que dialogam mais de perto com as aves, acolhem frutos, queijos, hortaliças, pão com vinho, postas de carne que se espraiam pelo mundo. E não vêm só da Vilariça, aquele vale que o olhar repousa, após os nós montanhosos. Ribeiro de Castro, em 1796, fez uma pintura minuciosa deste recanto. Destacaremos as parcelas humanas: Os homens são corpulentos, robustos e muito aptos para o serviço militar por causa da aspereza da situação, valentes e cobiçosos de honra. As mulheres são igualmente fortes e ajudam seus maridos na cultura das terras. No entanto, denunciou que as terras poderiam ser mais produtivas, se os seus habitantes não fossem preguiçosos, porque deixavam mais de metade das terras por cultivar e não aproveitavam as águas dos rios mais próximos3. E Pedro do Cenáculo, visitador ordinário pelo Arcebispo bracarense D. Fr. Miguel da Madre de Deus, vai conduzir-nos pelo mês de Outubro que correu pelo ano de 1824, para uma visita pela 1.ª parte de Torre de Moncorvo (esta comarca está dividida em três com 124 igrejas paroquiais). Seguiremos mais tarde, pela Primavera de 1831, atrás de José Joaquim da S. e Silva, reitor de Vila Flor, em representação do Vigário Capitular do Arcebispo. E muitos desvios detectaram nesta deambulação iniciada em Lourinho e terminada em Maçores, passando por Moncorvo4: desonestidade e devassidão, mancebia, mulher parideira, vidas separadas de cônjuges, má-língua e sacerdotes com criadas com má fama ou sem ela. Apenas estes. Contudo, outros delitos foram apontados na segunda e terceira parte desta comarca, neste período, que não foram na primeira referenciados: espancadores, tunantes e tocadores de viola, não ouvir missa, benzedeiras, dos abusos praticados na Comarca de Moncorvo de José António de Sá (1790)”, in Revista da Faculdade de Letras, Série de História, vol. IV, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1974, pp. 50-56. 3 José Maria Amado Mendes, Trás-os-Montes nos fins do século XVIII segundo um manuscrito de 1796, Coimbra, INIC, 1981, p. 158. 4 Confrontar com o mapa n.º 1 e o quadro n.º 17 delineado por Franquelim Neiva Soares, Visitações e Inquéritos Paroquiais da Comarca deTorre de Moncorvo (…), op. cit., p. LVIII. Foi diferente o roteiro de 1831, pois iniciou por Torre de Moncorvo. 232

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feiticeiras, padres por não usarem hábitos talares ou trabalharem, … Todavia não se localizaram denúncias de judaísmo, reformismo, heresia, incesto, lenocínio e outras desonestidades, superstições, sacrilégios, ódios, onzenas, alcoolismo, desvio da confissão, serões, espadeladas e fiadas, … que devem ter sido erradicados das vivências transmontanas pela muita actuação dos párocos, visitadores, missões populares ou, simplesmente, não denunciados. Porém, Portugal estava em grande transmutação política com a passagem calamitosa e renovadora dos franceses, eclodindo num liberalismo telúrico que se repercutirá na vida económica com a alteração do status da propriedade5. Consequentemente, a evolução da sociedade. com decadência da nobreza e do clero e a ascensão da burguesia, aprofundou uma postura anti-religiosa/clerical, apesar de na Constituição de 1822 se considerar a religião católica como a religião da Nação (art.º 25º). No entanto, este anti-clericalismo reflectiu-se mais no plano económico que no político ou ideológico6. E como estas ondas transformadoras, evolutivas chegaram às faldas das serranias interiores? E como ecoaram nas posturas, no perfil sociológico? Outros estudos com cruzamento de fontes diversas poderão aproximar-se da resposta. Apenas deixamos um singelo contributo. Antes de continuarmos, um breve apontamento sobre como entendemos as devassas e visitas; estas deviam ser consideradas como mecanismo normativo, de controlo social, meras

5 Confrontar com Victor de Sá, “Factores da crise do Liberalismo em Portugal”, in O Liberalismo na Península Ibérica na Primeira Metade do Século XIX, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1982, vol. I, pp. 27-29. 6 M. Braga da Cruz, “As Relações entre a Igreja e o estado Liberal – do «Cisma» à Concordata (1832-1848)”, in O Liberalismo na Península Ibérica na Primeira Metade do Século XIX (…), op. cit., vol.1, p. 231; J. Borges de Macedo, O anti-clericalismo em Portugal no século XIX. Ensaio de uma perspectiva sociológica, Communio, 2, 1985, pp. 440-450; Alberto Osório de Castro, A “missão Abreviada” do Padre Manuel Couto – um abeiramento contextualizado, Chaves, Grupo Cultural Aquae Flaviae, 2002, pp. 21-31.

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correcções fraternas, pelas quais os Prelados Eclesiásticos querem evitar os pecados escandalosos das suas ovelhas, para que vivam como devem e a correcção dos súbditos há-de ser temperada, e não excessiva, de forma a não destruir a fama, nem molestar com aspereza os súbditos7; para introduzir a paz e a concórdia e procurar a reformação de todos, para que se arranquem da igreja os abrolhos dos pecados8. Era nos pecados públicos que residia o cerne da questão, que apesar de íntima, se dimensionava na colectividade, perigando o indivíduo que o cometera e os que o rodeavam, pelo seu mau exemplo. Bastava que não fosse permitido administrar o sacramento da eucaristia aos públicos pecadores, como eram os públicos excomungados, interditos, feiticeiros, mágicos, sortilégios, blasfemos, usurários, e públicas meretrizes, barregueiros e os que estão publicamente em ódio e todos os pecadores que se não arrependessem notoriamente9. Desta forma, a fama tornava-se publicamente notória… e destruidora. A leitura dessas fontes deve ser criteriosa e crítica por a verdade- -verdadeira andar nebulosa. O clima de insegurança que se vivia, enquadrado pelo sistema político de fiscalização estatal, era propício a atear malquerenças e despeitos. Incriminar era e sempre foi fácil, não sabemos porquê. Por termos como herança o pecado: se não o é, já o António Vanguerve Cabral, Pratica Judicial, Lisboa, 1711, p. 79, parágrafos 3 e 4. Se a pena de degredo fosse excessiva, podia-se apelar. António de Sousa Araújo, Visitas Pastorais na Arquidiocese de Braga. Assiduidade dos Visitadores nos séc. XVXIX, Itinerarium, Braga, 23 (98), 1977, pp. 284-307. Joaquim Ramos de Carvalho, A jurisdição episcopal sobre leigos em matéria de pecados públicos: as visitas pastorais e o comportamento moral das populações portuguesas do Antigo Regime, in Revista Portuguesa de História, Coimbra, 24, 1988, pp. 121-163, esclarece este mecanismo normalizador que tomou um carácter especial em Portugal por ter bebido integralmente as medidas tridentinas, tornando-as lei nacional. Ver a instrução aos visitadores em Fernando de Sousa, Subsídios para a História Social do Arcebispado de Braga. A Comarca de Vila Real nos fins do Século XVIII, in Bracara Augusta, Braga, 30 (82), 1976, pp. 438-444. 8 Registo do juiz dos residuos e regimento dos visitadores do arcebispado de Braga, Biblioteca Nacional de Lisboa (doravante BNL), MS n.º 9868, fol. 16. 9 António Xavier de Sousa Monteiro, Manual de direito Ecclesiástico Parochial para uso dos Parochos, Coimbra, Livraria Portugueza e Extrangeira, 1874, p. 53, parágrafo 45. 7

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foi? Apesar de os testemunhos terem sido dados sob juramento, não sobrevalorizámos nem percentrámos os dados por os encararmos como referências epidérmicas e sintomáticas. Visitemos, então, na companhia de Pedro do Cenáculo e de José da Silveira, as terras que circundam Torre de Moncorvo. Acompanham-nos quatro criados, quatro cavalgaduras por quarenta e dois dias, tendo-se gasto 68$720 reis, incluindo despesas com o salário, as estalagens, o papel para o Livro da Devassa, as ferragens das cavalgaduras e três pares de solas para os sapatos dos criados. Deixemos o esboço de um possível perfil da “sociedade pecadora” moncorvense. Não julgámos prudente tirar deduções conclusivas. Embora toda a processologia visitacional estivesse imbuída de cuidados múltiplos para afastar qualquer injustiça, muitas intrigas, animosidades, invejas, ciúmes ocultos, retaliações, vinganças, despeitos, estiveram na raiz de um cochicho, de uma delação, e outras não foram conhecidas por medo, por coacções. Nem sempre, claro. Em Freixo de Espada à Cinta tal aconteceu. O visitador José J. da Silveira e Silva foi alertado, depois de ouvidas doze testemunhas, concluída e encerrada a devassa que três pessoas inimigas de Gaspar Joaquim depuseram contra ele (foi acusado de mancebia) por ódio que lhe tinham por motivo de ter o mesmo cumprido com os deveres de oficial da alfândega desta vila. Argumentaram que Gaspar apenas cumpria as ordens dos seus superiores. Para comprovar esta versão, foram ouvidas três pareceres, lavradores de cerca dos sessenta anos, vizinhos, fidedignos que confirmaram a sua conduta moral. Sublinharam que ele vivia em boa harmonia com a esposa e que a sua vida política e moral era boa, sem nota, nem se constava que fizesse acções que o desacreditassem, pois era exacto nas suas obrigações de guarda da alfândega, razão por que tem inimigos que o costumam intrigar. Tinham sabido que houvera declarações falsas, porque os delatores se gabaram o tinham culpado10. Arquivo Distrital de Braga (doravante ADB), Visitas e Devassas, n.º 140, fol. 14 v-18 v. 10

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A admoestação terá controlado a língua de Ana F., de Vale de Porco, casada com o carpinteiro Francisco B. (um diz que é solteira), visto que ela tem muito má língua dizendo mal de casadas e solteiras, de sorte que a sua reputação muitas vezes periga e causa intrigas e desordens entre os vizinhos e graves incómodos11. Todavia, muitos foram acusados sem serem ilibados. Prosse­ guimos. Marcelina C. e Joana R. (optámos por não indicar os apelidos), de Açoreira, foram acusadas e admoestadas por serem mulheres devassas, de pública desonestidade e daquelas a que chamam de porta aberta, por João I. e Luís V., jornaleiros, na casa dos 20-30 anos, por João B., sapateiro, de 54 anos, por Luís G. e João D., lavrador, de 60 e 40 anos, respectivamente. Mas Antónia Maria, casada, de 32 anos, nada disse. Numa pequena povoação, só os homens ouvidos viram, dizendo que sabiam por ser público e notório12. O que é certo, é que a admoestação ou as razões que terão levado a tal procedimento tiveram o condão destas duas jovens não voltarem a ser acusadas na devassa de 1831. Contudo, outras seis testemunhas apontaram o dedo a duas irmãs por serem meretrizes e uma delas acrescentou que José, solteiro, cortador no açougue, era cúmplice na sua má vida. Mas deram mais relevo à mancebia de Domingos M. e Maria P., de Manuel M. e de Ana Maria e José N. e Augusta E. Realçaram que Domingos em virtude da qual mancebia trata sua mulher muito mal tanto de acções como de palavras. Também Augusta abandonou seu marido, do qual vive separada, sem autoridade superior, e que entre estes cúmplices tem havido filhos: Francisco M., lavrador de cerca de 60 anos afirmou que tudo quanto tinha deposto o sabia por ser público e notório, ver e presenciar. Outros que nunca viram, só ouviram dizer. Duas outras testemunhas atendidas nos interrogatórios disseram nada, por nada saberem ou por não quererem saber?13. ADB, Visitas e Devassas, n.º 140, fol. 36 v-38. ADB, Visitas e Devassas, n.º 139, fol. 54 v-56. 13 ADB, Visitas e Devassas, n.º 140, fol. 6-8 v. 11 12

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Entretanto, em S. Miguel de Felgar, o marido de Maria Violante abandonou-a e saiu da freguesia por andar amancebada com Manuel R., solteiro. Em Bruçó, outros casais conviviam em desacordo com os preceitos da Igreja, isto é, em 1824, as seis testemunhas aos costumes disseram nada, mas passados sete anos, de novo uma mutação nos procedimentos. Bárbara C. e Luís S., ambos solteiros, estavam envolvidos com consenti­mento da mãe, tida como alcoviteira, de que resultou uma gravidez denunciadora. Mas Luís (para uns era solteiro, para outros casado: estranho num povoado pobre de cerca de cem fogos) também andava amancebado com público e geral escândalo com Francisca F., solteira também, de quem tinha filhos. Mas, a sexta testemunha de nada sabia14. Por vezes, a mancha do pecado herdava-se e insidiosamente era apontado no depoimento. João António R., casado de trinta anos, de Fornos, denunciou que Teresa de S., solteira, filha de Joana, solteira, é pública e desonesta em seu concubinato, de sorte que, vivendo amancebada com uns e outros, disto procede ter havido filhos que actualmente está criando, porém que não sabe quem são seus pais15. Em outras freguesias, Pedro do Cenáculo insistia, até, em alguém trazer alguma denúncia. Ou o visitador já sabia por partilha do pároco, ou pelo confessionário, ou criando situações de suspeição. Então, como entender que em Freixo de Espada à Cinta foram ouvidas nove testemunhas seguidas que nada disseram e só à décima, a viúva Maria do Carmo G. foi tida como mulher devassa, com vários filhos e que vive amancebada com Francisco, casado?16 E reincide na visita seguinte, juntamente com novas mulheres devassas e casais amancebados. Francisco X. chegou mesmo a sublinhar que o seu depoimento sobre Maria do Carmo era verdadeiro por o ver, saber e ouvir. E António J. testemunha também que Bartolomeu F., casado, mas amancebado ADB, Visitas e Devassas, n.º 140, fol. 26 v-28v. ADB, Visitas e Devassas, n.º 140, fol. 20-22v. 16 ADB, Visitas e Devassas, n.º 139, fol. 43v-45v. 14 15

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com Isabel N. e que desta mancebia procedia tratar a sua própria mulher com muito rigor dando-lhe e espancando-a. E outro homem da terceira parte da comarca que surgiu acusado de tunante, arruaceiro, tocador de viola, bravo, por tomar-se de vinho e dizer palavras desonestas, por dar mau trato à mulher, espancando-a e não fazendo vida (houve 12 em 402 condenações). Já foram expostos alguns casos de violência doméstica, nesta primeira parte da comarca. O que seria “dar maus tratos” à mulher, no século em estudo? Com tanta submissão, sujeição, estes tratamentos deviam ser mesmo vergonhosos, excessivos para que se comentasse no lugar e fosse caso de delação. E quanto a JoaquinaV. da freguesia de Carviçais, casada, vivia separada de seu marido há tempos, e que é mulher devassa e que vive desonestamente dando escândalo aos vizinhos. Foi acusada igualmente de ter má-língua e ser alcoviteira, pois recolhia em sua casa homens e mulheres para fins desonestos. E não estava só: mais duas Antónias e Rosa, solteiras, incorriam dos mesmos escândalos, sendo admoestadas o que terá resultado em retracção, pois sete anos depois, na visita de 1831, estes nomes não voltaram a ser apontados. Todavia, outros ainda com mais veemência o foram: quatro casais que viviam amancebados com tanta publicidade que a sua má vida se faz notável e serve de muita ruína espiritual aos moradores daquela freguesia. Além da Joaquina, Inácia, Ana e Marcelina, mulheres públicas e desonestas cuja perversa vida tem servido de laço a muitas almas inocentes, acariciando aqueles homens que as procuram, esta última deixando a casa de seus pais para viver com mais liberdade. E desta vez, todos tiveram como pena o primeiro termo em forma17. Que ventos soprariam neste recanto? Ou em Valverde, ou Felgar, ou Lagoaça, ou Meirinhos, ou Poiares, ou Vale da Madre, ou Freixo de Espada à Cinta – freguesias onde se contabilizaram mais sentenças? Que ventos faziam erradicar a mancebia, a devassidão das freguesias de Nossa Senhora da Assunção de Castelo Branco, de Meirinhos, de Peredo dos Castelhanos, de Urros como por artes mágicas, em tão 17

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ADB, Visitas e Devassas, n.º 139, fol. 9v-10v; n.º 140, fol. 58-61v. Revista Campos Monteiro


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curto espaço de tempo: seis espectadores do quotidiano tiveram dados para acusarem antes e, sete anos depois, cinco testemunhas ao conteúdo nos interrogatórios da devassa disseram nada18? As admoestações que já sabiam que viriam e que do púlpito ou do confessionário perseguiam os infractores, o constrangimento, a ostracização da comunidade, o núcleo habitacional cerceando as entradas e saídas das casas em horas desoras seriam a terapia vívida? No entanto, em Vale da Madre, a reincidência inusitada surgiu tanto com José P., casado, amancebado com Josefa E. (ou M., na visita seguinte), como com Inácio taberneiro e Mafalda R. A fama já deveria vir de outras visitações paroquiais, pois foram sentenciados com o primeiro termo em forma. A situação agudizava-se, pois Inácio dava má vida a sua própria mulher. E João Manuel L. gaba-se do mal que faz com Feliciana, causando ruína espiritual à freguesia19. A mancebia e o concubinato eram os pecados mais frequentes20, ou os mais visados, ou os mais denunciados – ou todos estes vectores em consonância, conforme a parte lesada: ou pelo indivíduo e suas fraquezas, ou pelas normas prioritárias da igreja, ou pelos princípios da sociedade comunitária. O arcebispo exigia aos párocos que tirassem exactas informações e denunciassem esses casos. Nos livros de devassas de 1824 e 1831, da primeira parte da comarca de Torre de Moncorvo, nas suas trinta e cinco freguesias, responderam às acusações 70 e 50 condenados, respectivamente. A incidência recaiu na mancebia (47 e 35 para cada ano) e 19 mulheres por desonestidade e devassidão ou 13 para 1831. Nos 24 casos testemunhados na segunda ADB, Visitas e Devassas, n.º 139, fol. 14-15v; n.º 140, fol. 53-54. ADB, Visitas e Devassas, n.º 139, fol. 25-26; n.º 140, fol. 42-44. 20 António Franquelim Sampaio Neiva Soares, A Arquidiocese de Braga no século XVII. Sociedade e mentalidades pelas visitações pastorais (1550-1700), vol. 2, Braga, Universidade do Minho, 1993, tese de doutoramento, pp. 186, 668-9, 881-887 e 892-896, apresenta-nos números bem conclusivos e sintomáticos, senão vejamos: 70 delitos de concubinato em 60 diversos, auscultados entre 1537-1559, no Arcebispado de Braga; 602 em 1004 casos, entre 1571-1694 (Monte Longo); 606 em 1286 delinquências, entre 1613-1700 (Vinha), por exemplo. Maria da Conceição Meireles Pereira, “O concubinato e a pastoral da culpabilização a partir de processos matri­ moniais setecentistas”, in Revista de História, Porto, 7, 1986-1987, pp. 209-227. 18 19

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parte da Torre de Moncorvo, em 1824, todos eram delitos por concubi­ nato. E na terceira parte, 321 por mancebia (quase o mesmo número de homens e de mulheres) e 43 por devassidão das mulheres21. É igualmente o sector feminino da comunidade que mais sentenças recebia: por exemplo, treze homens e vinte e oito mulheres, nos termos dos culpados de 1831. Por que havia uma procura assídua às mulheres casadas em núcleos habitacionais tão diminutos e, em consequência, mais atentamente correctivos? Por que é que os homens casados mantinham ligações com solteiras, por vezes com crime de consanguinidade? Em regra, a pena pecuniária era mais pesada para ele que para ela e duplamente: quem pagaria a da mulher que estava sempre sob tutela de pais, maridos ou tutores? Nove sentenciados, em 1831, não pagaram em virtude da sua pobreza (apenas um homem foi relatado). Não foi referida qualquer sentença com a pesada pena de degredo. Temos notícia de outras visitas que Torre de Moncorvo terá sido destino desta pena, como este quadro nos revela22. Torre de Moncorvo, um dos caminhos do degredo RÉU

ACUSAÇÃO

PENA DEGREDO PECUNIÁRIA

OBS. Condenado em pena e degredo comutado, antes

Gervásio Inveterado e ilícito 24 mil reis Antunes concubinato; má custas dos casado - freg. de vida à mulher autos Goães

Torre de Moncorvo: 2 anos

Rosa, fª de Pedro da Silva - solt.- freg. de S.ta Maria de Chorense

Comutação Torre de do degredo Moncorvo: para Braga; 2 anos absolvida

Adultério e gravidez de Manuel Soares, casado

6 mil reis custas dos autos

21 Franquelim Neiva Soares, Visitações e Inquéritos Paroquiais da Comarca de Torre de Moncorvo (…), op. cit., pp. LXXXIV, LXXXVIII, XC, XCIV-XCV. 22 Maria Ivone da Paz Soares, E a sombra se fez verbo – Quotidiano feminino setecentista por Braga, Braga, Associação Comercial de Braga – Comércio, Serviços e Turismo, 2009, pp. 238-239.

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Seria uma forma de erradicar e reflectir sobre a acusação ou seria mais um foco a abrir no local da nova residência? Não sabemos a razão da presença de Joaquina, em Valverde, moradora nesta freguesia e natural da província do Minho, onde vivia com grande escândalo de desonestidade23. Atentemos de novo na situação dos que tinham, aparentemente, condições para se unirem na Igreja. Joaquim C. e Eufémia C., de Lagoaça, ambos solteiros, por vezes iam para Espanha e alguns (porquê só alguns?) referiram que esse trato amoroso terá levado a prenhez pública. O mesmo ocorria com Manuel M. e Maria de Jesus, por ele sustentada e mantida entrando e saindo um em casa do outro. Então, por que razão não assumiam a união? Pobreza, processo burocrático do matrimónio demorado e oneroso (para os desafortunados uma galinha e uma rosca e, por vezes, mais uma candeia tornava-se incomportável) eram as principais causas. A distinção entre esponsais e casamento, na prática, diluía-se e era apenas a legitimação dos filhos, a aproximação da morte e a não administração dos sacramentos que levavam à renúncia do pecado, acrescido de um discurso de culpabilização. É que a bastardia trazia desvantagens e a mulher ficava caluniada e despojada de quaisquer direitos, tendo no casamento a solução da má vida. Consequentemente, salta à ribalta a mulher de amor fácil e tentador que era ostracizada quando engravidava; as alcoviteiras e consentideiras nas ligações perigosas, no seu temperamento indómito e as feiticeiras. Estranhamente, nenhuma destas foi apontada nas três partes da comarca moncorvense. Surpreendemo-nos por as mulheres devassas (devassa é também a acção inquiridora e purificadora da igreja e do estado) não terem pena pecuniária:

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ADB, Visitas e Devassas, n.º 139, fol.18-19v. Número quatro

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E achando q alguma mulher são devassas do seu corpo as admoestará sem pena, que vivam honestamente, e não se emendando até à terceira admoestação, e reincidindo em 4.º lapso serão pronunciadas, e se lhes dará pena pecuniária, ou de prisão conforme a frequência, e continuação de tais culpas24. O que normalmente não ocorria. Será aceitação tácita, mal menor, mal necessário ou realmente pouco numerosas e escandalosas? A miséria atraía outras misérias. As deficientes condições econó­ micas e sociais ou mesmo opções poderiam conduzir passos femininos para a marginalidade; ansiavam ultrapassar a sobrevivência e o desejado dote, para iniciar uma «vida estável» ou normalizada. Se uma mulher fosse vista à janela acarretava consigo um desgastante “diz-se” de se estar a prostituir, quanto mais as que se moviam, falavam, dançavam, cantavam, representavam em cenários teatrais, com o palco considerado um bordel… Papéis normativos e papéis transgressores davam prioridade à sexualidade e ao corpo feminino, isto é, aos que mais ameaçavam a dominação patriarcal25. O desejo de poder da igreja e a negação da sexualidade eram complementares, o que estava em consonância com o critério profundamente patriarcal dos homens de Deus: daí o controlo imprescindível da mulher; daí amarrá-la à honra, à virgindade, ao medo. Todo o cerceamento de contactos, a vida miserável que esperava uma mulher sem dote e a falta de meios de subsistência desenvolveu mecanismos paralelos de “protecção”. Registo do juiz dos residuos e regimento dos visitadores (...), BNL, MS n.º 9868, fol. 22-22v. Outrossim, nenhuma sofreu pena pecuniária na 1.ª parte de Moncorvo. Confrontar Franquelim Neiva Soares, Visitações e Inquéritos Paroquiais da Comarca de Torre de Moncorvo (…), op. cit., quadro n.º 17. 25 Eric A. Nicholson, “As mulheres e o teatro, 1500-1800. Imagens e repre­ sentações”, in Georges Duby e Michelle Perrot (dir.), História das Mulheres no Ocidente, vol. 3, Porto, Edições Afrontamento, 1991, pp. 341-367. Nickie Roberts, A prostituição através dos tempos na sociedade ocidental, Lisboa, Ed. Presença, 1996, pp. 13, 15, 22, 25 e 73. Ver igualmente o frontal discurso de M.ª Helena Sánchez Ortega, La Mujer y la sexualidad en el Antiguo Régimen. La perspectiva inquisitorial, Madrid, Akal, 1992, onde revela o erotismo convertido em pecado por excelência. 24

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Aludimos, assim, a um núcleo social prescrito, banido, normalmente constituído pelo segundo sexo ou a ele adstrito. Apesar das leis, posturas, costumes, princípios morais e religiosos, o “mal” foi-se alastrando pelos séculos, sem em tempo algum ter sido cabalmente banido. Perseguições a feiticeiras e adúlteras foram realizadas, mas não temos notícia de a prostituição ter sido alvo de semelhante acossamento. O convívio – não considerado pecado – era mais ou menos tolerado pela lei e pelos costumes (mais tarde, virão a ser denominadas de “toleradas”) e denunciado26, sem grandes penalizações. Como proceder com as mulheres comuns a todos? Devia-se admoestar paternalmente na primeira vez e se continuassem, devia-se proceder como for justiça27. Castigo pouco coactivo, como constatámos nas visitas e devassas. Dizia Santo Agostinho que é lícito permitir lugares públicos aonde se venda a desonestidade28, pois quando se abolir a prostituição a sociedade será assolada pela concupiscência29: era então a abstinência uma fraude e a prostituta um dreno do efluente sexual impeditivo da aproximação divina? Apesar de alertas contínuos, o proibido atraía: As meretrizes desejam a seus amigos todos os bens, excepto o juízo, e prudência. As mulheres desonestas não somente são indignas de ser amadas, mas moços, e velhos devem fugir delas como de coisa abominável.

26 Constatámos que até ao final do séc. XVII, uma grande parte do Minho não denunciava uma grande devassidão, pelo rastreio efectuado pelas visitas: 20 por alcoviteirice e 28 por devassidão, em Monte Longo (1571-1694), no total de 1606 casos; mas já o mesmo não podemos afirmar em Vinha que em 1492 denunciados, 142 eram devassas. Atribuiu-se à presença de grande número de marinheiros e comerciantes portugueses e estrangeiros naquela região litorânea. António Franquelim Sampaio Neiva Soares, A Arquidiocese de Braga no século XVII, (...), op. cit., pp. 887 e 669, respectivamente. 27 Miscelânea, ADB, MS n.º 608, fol. 97. 28 Não conseguimos confirmar a afirmação que vinha citada em Maximas e Reflecções, sobre vários assumptos por F.R.D.S.I.B.M.B. anno de MDCCLXXVIII, ADB, MS n.º 140, fol. 66. 29 Nickie Roberts, A prostituição (...), op. cit., pp. 73-74.

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A beleza das meretrizes é hum veneno adoçado, hum engano escondido, e uma tácita traição. As mulheres sem honestidade, não se podem verdadeiramente chamar mulheres. (…)30 Continuando por terras moncorvenses. Catarina Maria de Fora (a sua procedência já se incrustara ao nome), da freguesia de Souto da Velha, mulher desonesta e de má-língua, foi igualmente acusada que teve vários partos constando mesmo que na ocasião dum deles assassinara o filho ou filha que teve. Este testemunho não é nada frequente, não deixando dados suficientes para tirar ilações se era amiudado ou escasso este procedimento. No entanto, na devassa seguinte, o seu nome não é mais referido. Ter-se-á ausentado da freguesia?31 Outras sabiam que Isabel de M. estava prenhe, assistente na freguesia de S. Lourenço de Brunhoso, mas apenas ela foi admoestada. Mas as testemunhas nunca a rotularam de devassa.Terá fugido da sua aldeia por vergonha, por ostracização, por talvez desejar uma nova vida para o filho de mãe solteira. E passados sete anos, os sete depoimentos revelaram uma população sem nenhuma prevaricação32. Várias mulheres mal procedidas achando-se pejadas vão parir a outras freguesias para se encobrirem dos visitadores que não viam nos livros dos baptizados as suas culpas, nem os próprios filhos (por tal o pároco era obrigado a mandar o traslado para o da freguesia onde as mães viviam). Num bando de 13-1-1751, obrigava-se os mesteirais se virem examinar e notificar as mulheres solteiras que andarem prenhas, para darem conta das crianças33. Pelos parâmetros desta sociedade pouco restava à mulher que perdera a honra, a virgindade. Uma vida mais solitária, com uma criança ou não nos braços, legitimado ou exposto, uma vida que não mais sairia 30

3-4.

Miscelânea, ADB, MS n.º 154, fol. 289-289v. Confrontar com Provérbios 5,

ADB, Visitas e Devassas, n.º 139, fol. 8-9. ADB, Visitas e Devassas, n.º 139, fol. 21-21v; n.º 140, fol. 47-48. 33 Livro das Actas da Câmara, Arquivo Municipal de Braga, Livro 43, fol. 94. 31 32

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da boca das pessoas, até que a benesse do tempo tornaria longínquo o sucedido e surgisse palidamente uma pequena oportunidade de possuir uma centelha de vida. Finalmente, Pedro do Cenáculo chegou à freguesia de Nossa Senhora da Assunção da vila da Torre de Moncorvo, a 23 de Outubro, situada na fralda do Monte Reboredo e ornada, em 1796, de muralha envolvente e de um castelo quadrado com duas torres. Um sumptuoso templo o recebeu, com um bom rendimento proveniente das terras sitas na Ribeira da Vilariça. Um convento de Religiosos Capuchos, um Recolhimento, a Casa de Misericórdia, um hospital usufruídos por uma população que tinha vindo a diminuir e cada vez mais pobre devido a uma agricultura e comércio pouco desenvolvidos e a ausência de fábricas34. Inusitadamente, nesta devassa Pedro do Cenáculo vai ouvir testemunhar cinco habitantes do género feminino. Juntamente com a de Açoreira, já anteriormente referida, foram vozes que tiveram a palavra para apresentar directamente o seu parecer, colaborar na reconstrução do tecido social. Comummente, era o homem que pela boca testemunhava, quando chamado e jurado sobre os Santos Evangelhos, com base nas confidências, nos olhos atentos, nos comentários, nas mexeriquices transmitidas pela mulher ao ouvido do marido; ou pelas mulheres da família: o ser “público e notório”. E, naturalmente, também por ver. Os denunciantes, em muitos casos, testemunhavam pelo ouvir geral.Tal era o peso coercivo e controlador dos fregueses. Por este ouvir geral, não como testemunhas oculares, deduzimos que seria através da boca das mulheres da casa que não podiam servir de testemunhas denunciantes, mas o seu depoimento, via boca do homem, já era utilizado para justiçar.

José Maria Amado Mendes, Trás-os-Montes nos fins do século XVIII (…), op. cit., pp. 231-239. O reitor desta vila apresentou outros dados no inquérito de 1775.Ver Franquelim Neiva Soares, Visitações e Inquéritos Paroquiais da Comarca de Torre de Moncorvo de 1775-1845 (…), op. cit., pp. 281-289. 34

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Por norma a mulher não era convocada a depor nem se chama­ vam, apenas excepcionalmente, como em S. Cristóvão de Abação (Guimarães)35. Mas nesta primeira parte da comarca de Torre de Moncorvo, ela foi escolhida. Ela. Ela que raramente tinha espaço de ser protagonista, apenas ser a trabalhadora, a mulher submissa, a denunciada, a criada, a devassa, a alcoviteira, a má-língua, a desonesta. Mudança de posturas com os novos ventos liberais emancipadores? Todavia, nenhuma assinou o seu depoimento, sem qualquer explica­ ção, como se executou na segunda parte desta comarca; por vezes aparecia a explicação: e por ser mulher e não saber assinar assinei eu de seu rogo ou e por não saber assinar e ser mulher assinei de seu rogo ou e por ser mulher me rogou assinasse por ela… Interessante cotejarmos os dois procedimentos. Para elas: e de como assim o disse assinou ele rev.º visitador. Para eles: e de como assim o disse assinou com ele rev.º visitador. Mais, a assinatura do visitador vinha por extenso e não acompanhada do nome da testemunha feminina, enquanto o nome da testemunha masculina figurava do lado direito em lugar oposto do nome do visitador que surgia apenas com o último sobrenome. E como testemunha era veemente nas informações: Maria Joaquina, casada com José B., disse que sabe que duas irmãs da rua do Cano, uma solteira, outra casada eram mulheres mal reputadas, aquela alcoviteira, mal procedida e desonesta; esta amancebada com Francisco N., solteiro. Maria da Assunção, da rua das Flores (a identificação não foi feita pelo nome do marido), reitera o depoimento anterior sobre o amanceba­ mento e acrescentou: que o tem visto entrar e sair da casa da dita concubina, aonde come e bebe muitas vezes. Com tais pormenores de denúncia, porque é que a Igreja não convocava mais frequentemente as mulheres para testemunhar?

Franquelim Neiva Soares, Visitações e Inquéritos Paroquiais da Comarca de Torre de Moncorvo de 1775-1845 (…), op. cit., p. XCIX. 35

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Foi convidada para prestar depoimento uma prima de Maria que confirmou o amancebamento, mas nada disse da outra irmã. Não saberia da sua reputação? Estranho igualmente que Maria José A., assistente da rua da Misericórdia, nem a uma nem a outra se referiu, mas sim a Francisca G., desonesta, pois a viu sair desta vila na companhia de uns empregados militares, (…) do qual comportamento ela testemunha a repreendeu, e depois disto sabe que, recolhendo-se a esta vila, a dita Francisca continua a ser mal procedida. Mais estranho ainda é que Francisca Teresa, viúva, de quarenta e nove anos, da rua da Praça disse nada a todos os artigos da visita. A comunidade não via com bons olhos visitas frequentes de homens a casa de mulheres, mesmo havendo grau de parentesco, o que incorria no grave pecado de incesto. Só o parar junto à porta, ou o dançar, levava à murmuração. E quando se tornava público e notório que uma Maria ia assiduamente a casa dum Manuel, que entrava e saía, todas as vezes que queria e que por vezes lá ficava a dormir, o escândalo rebentava. Os homens convocados reiteraram as denúncias em causa e acrescentaram outras de mancebia, como o ferrador Rafael de M. sobre o vizinho João Filipe, viúvo. Sabe que em casa deste vive uma mulher chama­ da Maria Tiago, criada, mas não sabe se há tratos ilícitos, mas ouviu dizer que sim. Outro visado foi o Padre Manuel A. de S.Tanto. O mestre relojoeiro Manuel B. S., como o mestre alfaiate, José da C. sabiam que na sua casa vivia uma mulher chamada Alexandrina, mas desconheciam se havia tratos desonestos. No entanto, teve de assinar termo de fama cessanda. Sete anos depois destas dez testemunhas, apenas três foram ouvidas mas que de nada sabiam. De novo, ventos erradicaram as moléstias que enfermavam esta vila36. Por vezes, os párocos eram visados, apesar de poucos fregueses terem talvez coragem de o fazer ou valorizarem determinados procedi­ mentos, como ocorreu em Estevais, das sete testemunhas apenas uma ADB, Visitas e Devassas, n.º 139, fol. 56v-59v.

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denunciou o pároco António P. L. por frequente absentismo. João B., casado, lavrador, de 57 anos, afirmou sob juramento, que era público nesta freguesia que Francisco Pereira morrera sem sacramentos por o padre não se achar no momento e que já anteriormente fora culpado pelo mesmo crime. Disse que era frequente ele ausentar-se por três e quatro dias sem deixar quem faça as suas vezes37. Estranho que outros delitos não ocorressem. Pelo menos em 1824, pois na visita seguinte, a mancebia e a prostituição estavam presentes. O Reverendo Francisco José F., de Mazouco, teve que assinar termo de fama cessanda e despedir de sua casa Joana, sua criada, de nação espanhola, que parece não ter cinquenta anos de idade, porque tem tido mau procedimento tanto assim que tem andado no exército com os soldados. No entanto, os três depoimentos foram consentâneos em desconhecerem se havia tratos ilícitos com o pároco. Esta criada talvez estivesse dentro dos parâmetros exigidos nas cartas pastorais do século XVIII, onde estava expresso que o contacto feminino dos clérigos devia ser feito apenas por parentesco chegado, com amas e criadas de mais de cinquenta anos, com o crivo do confessionário de permeio. Não são frequentes as delações aos párocos, apesar de haver consciência que nem sempre teriam posturas modelares. São homens. Já os Arcebispos bracarenses do século XVIII tinham tomado medidas para combater desvios e alicerçar a formação e continuadas pelo século seguinte38. Quatro testemunhas de S. Pedro de Poiares asseveraram que era público e notório que o Padre Martinho A., vive há muitos anos escanda­ losamente amancebado com Antónia M., solteira, da qual concubina tem tido diferentes filhos. Acusaram-no de ter sido aderente ao governo constitucional e que mostrava ainda a mesma adesão ao dito governo. Pedro M. chegou ADB, Visitas e Devassas, n.º 139, fol. 12-13v. Maria Ivone da Paz Soares, E a sombra se fez verbo (…), op. cit., pp. 67-72. Inês Martins de Faria, A Igreja, a Terra e os Homens – As visitas pastorais – 1761/1833 – e outros achados em Curvos, Arcebispado de Braga, Curvos, Junta de Freguesia de Curvos, 2003, pp. 64-67. Alberto Osório de Castro, A “missão Abreviada” do Padre Manuel Couto (…), op. cit. pp. 32-38. 37 38

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mesmo a acrescentar que se havia comportado escandalosamente durante o tempo do governo constitucional e que continuava a mostrar pouca fidelidade a El-Rei e nos sentimentos religiosos. Que chegava ainda a mostrar ter paixão pelo tal governo. A sua sentença foi pesada: Livramento ordinário. Lateralmente, na margem acrescentaram: Tem sido processado este Padre no competente juízo daquela comarca por estes crimes39. Não temos informação que idade teria o referido pároco, mas de certo teve de fazer promessa de obediência às várias pastorais que iam chegando à recôndita freguesia: em 1800, terá chegado uma Pastoral sobre a obediência e fidelidade ao governo; em 1820, uma Circular a jurar fidelidade ao Rei, às Cortes e, no ano seguinte, outra sobre a protecção aos governantes (e contra os pedreiros-livres)40. Deviam ser tempos conturbados; alguns optavam por uma opção política e de vida, confrontando tudo e todos. E sete anos depois tudo estava erradicado daquela freguesia. Que foi feito do padre, da sua companheira, dos filhos, das opções? O Tribunal terá desarreigado tudo? Outras fontes (livros de assentos de nascimentos, de casamentos, de óbitos, róis de confessados, outros livros de visita) terão de ser analisados e cruzados novos dados para que a paisagem humana com as nuances da vida tenha luz própria. Compulsámos anteriormente o Roteiro dasVisitas de Lanhoso eVieira41, de 1730 a 1831, e os Livros dos Termos das visitas de Entre Homem, e Cavado, e Valle do Tamel 42, desde 1723 a 1731, em busca de um latejar de vivências,

39 ADB, Visitas e Devassas, n.º 139, fol. 46-47v. Outros casos sobre a conduta política do clero, ver em Franquelim Neiva Soares, Visitações e Inquéritos Paroquiais da Comarca de Torre de Moncorvo de 1775-1845 (…), op. cit., p. LII. 40 Inês Martins de Faria, A Igreja, a Terra e os Homens – As visitas pastorais (…), op. cit., pp. 158-162. 41 Roteiro dasVisitas de Lanhoso eVieira, ADB, Visitas e Devassas, n.º 315. 42 Livros dos Termos de Entre Homem, e Cavado, eValle do Tamel, ADB, Visitas e Devassas, n.º 251-254 e 275-294. Maria Ivone da Paz Soares, E a sombra se fez verbo (…), op. cit., pp. 184-187.

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das principais preocupações, do que consideravam realmente pecado. Verificámos, tanto nas terras minhotas como nas transmontanas, que os escândalos eram o “termómetro” que a sociedade setecentista mediatizou para controlo e auto-controlo. Surgiu-nos frequentemente nos diversos documentos compulsados: porque tinha dado grande escândalo, ou ainda causado grande escândalo, ou para que assim ficasse cessando o escândalo (…). Fez-nos conscientizar o alerta em que vivia a população, alerta esse não só alimentado pela curiosidade natural e pela família, mas também pela própria igreja, confrarias leigas e religiosas que mantinham uma apertada vigilância denunciadora dos seus fregueses e confrades. Mas nem todos aceitavam este repto, pois encontrámos frequentemente e aos costumes, reflexo de que cada um era responsável pela sua própria vida ou o receio de represálias ou de que um dia chegaria a sua vez. Larinho, Ligares, Maçores, Mós e Paradela nem em 1824, nem na visita seguinte, ouvidos vários testemunhos, revelaram qualquer mácula naquelas pequenas comunidades. Nem na pequena freguesia de S. Miguel de Figueira, com cerca de quarenta moradores que contribuíam com apenas oito mil reis anuais de côngrua e que lutavam pela sua vida que se fundia com a Natureza, não deixaram brechas para o escândalo durante os sete anos em estudo ou não se revelaram dos escaninhos pedregosos. Os pecados escandalosos mais frequentes ou os mais “incriminados” neste período, mais ou menos aleatoriamente escolhidos, correspondem grosso modo aos de outras regiões estudadas. Agrupámo-los em sete campos de incriminação: sexualidade, linguagem, lazer, agressividade, feitiçaria, religiosidade e campo financeiro. Homens e mulheres de uma larga região minhota postos a julgamento, mais casados que solteiros, de idade incógnita, no entanto poderemos inferir que o número de mulheres será elevado, pelos cuidados que diziam ter os visitadores em não as nomear ou então querendo demonstrar a herança pecaminosa. Como atalhar este “mal social” – a mulher – numa sociedade controladora de pessoas e consciências? O único meio encontrado foi encerrá-la em casa (não por moralismo mas por defesa) para as tarefas domésticas, procriação e fundamentalmente para salvaguarda da sua 250

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honra, da sua honestidade. Devia ter como modelo a Virgem43 – naVirgem Maria uniu Deus as perfeições das mulheres mais perfeitas44 – e ostentar-se como a mulher ideal: assexuada, passiva, recolhida, silenciosa, obediente, conformada, trabalhadora e modesta45. Estes custos foram muito elevados e violentos e a arte barroca reflectiu bem esta luta agónica entre as elites do poder e a vontade individual, entre o controlo e a liberdade. Proliferaram actos neuróticos e zelos pervertidos: o adúltero era um mal social, mas não se castigava o marido homicida que cumprira a sua função controladora; a defesa da honra aumentou o número de expostos; o pai podia assumir a paternidade ilegítima, nunca a mãe que devia ser açoitada “pedagogicamente”, como exorcismo e catarse. Deveríamos ver, então, as visitas e devassas, os sermões, as pastorais, as missões46, a Inquisição, as leis como elementos restauradores das consciências e não como instrumentos repressivos? Até os estalajadeiros eram obrigados a fazer um rol das pessoas que pernoitavam nas suas hospedarias para saber quem chegou, e se é pessoa conhecida, ou de suspeita, etc.47 Não nos devemos surpreender com a rebeldia e a contestação face à superintendência e ao condutismo impostos, por serem atitudes bem barrocas. Para um itinerário da perfeição, a Igreja pôs ao dispor da alma humana para seu alimento, conservação e crescimento,

Chegou-se a descrever a estatura e dotes naturais de Nossa Senhora, bastante abrangentes, como exemplo a seguir: … foi mediana ainda que alguns dizem que foi mais que mediana, a Cor do Rosto era trigueira, o Cabelo Louro, e da cor de ouro, os olhos vivos, as meninas deles um pouco coradas, as sobrancelhas arqueadas, negras, e graciosas. O Nariz hum pouco comprido, os beiços formosos e de muita suavidade no falar; o rosto mais cumprido que redondo, as mãos e dedos compridos, seu aspecto grave, e modesto sem nenhum género de fausto melindres nem afectação, mas singelo e humilde. Maximas e Reflecções (...), ADB, MS n.º 140, fol. 68-68v. 44 Miscelânia temas morais, ADB, MS n.º 436, fol. 302. 45 Maria Antónia Lopes, Mulheres, Espaço e Sociabilidade, Lisboa, Livros Horizonte, 1989, p. 21. 46 Importante obra sobre a acção das missões na edificação comportamental de Louis Châtellier, A Religião dos Pobres.As missões rurais na Europa e a formação do catolicismo moderno. Séc. XVI-XIX, Lisboa, Ed. Estampa, 1995. 47 Causas cíveis e causas crimes, ADB, MS n.º 473, fol. 60v, parágrafo 29. 43

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pregações, confissões, direcções de consciência, colóquios ou trato pessoal, exercícios espirituais, meditações, comentários, leituras, orações, ensinamentos ascéticos, compêndios de doutrina, tratados de oração mental, guias de pecadores48. Parecia-nos consequente que a Igreja tivesse uma palavra a norma­ tizar a conduta de uns e outras, que apontasse algum procedimento à comunidade e não se esquivasse na pretensa purificação dos costumes, com uns mil reis e uma palavra de exortação à reconciliação, à emenda. Não pretendemos tirar ilações precipitadas de que a sociedade transmontana era depravada, veiculada de maus costumes; está bem longe de tal podermos concluir, enquanto não se cobrir todo o território (ou zonas significativas) com estudos sociológicos, demográficos, culturais, de ética, de género que nos possam fornecer uma leitura abrangente e percentagens correctas e integradas, para fugirmos a conclusões eivadas de fáceis pressupostos. Semelhantes “gelosias psicológicas”, coercivas, eram mais claustro­ fóbicas que os losangos desenhados em madeira ou os furos numa folha de ferro. E os dois em consonância tolheram, fizeram murchar, manietaram, provocaram explosões. Sabemos, no entanto, que a norma e a prática não seguiam sempre o mesmo trilho do qual emergia a individualidade.

MargaridaVieira Mendes, A Oratória Barroca de Vieira, Lisboa, Editora Caminho, 1989, p. 35. Sobre a importância da parenética dos oratorianos nas festividades, ver Eugénio dos Santos, O Oratório do Norte de Portugal. Contribuição para o estudo da história reli­giosa e social, Porto, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982, pp. 276-282. 48

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O contributo das Memórias Paroquiais para o conhecimento da religiosidade popular portuguesa 1

Maria Marta Lobo de Araújo *

O rastreio efectuado às paróquias portuguesas em 1758 colheu uma informação preciosa para a vida das comunidades locais, destacando as potencialidades do inquérito que lhes foi dirigido. A vida religiosa ganha expressão nas questões n.os 6, 13 e 14 do inquérito, tornando possível conhecer e analisar o equipamento religioso das populações, as devoções, a sua prática religiosa e ainda melhor apreender a distribuição geográfica do devocionário. Contrariamente a outros relatores, os párocos do actual concelho de Lousada não foram muito pródigos em informação sobre as práticas religiosas dos seus fregueses, fazendo apenas uma memória sucinta das suas realizações e do envolvimento dos fiéis. Esta circunstância, limita- -nos a análise, embora seja possível uma aproximação ao fenómeno. Estiveram, contudo, mais activos na descrição das igrejas paroquiais não admirando o relevo que lhes foi dispensado. Centro de todas as atenções, as igrejas paroquiais eram quase sempre os principais templos da localidade, onde se faziam os grande projectos de obras e onde se localizavam alguns dos mais importantes cultos. Destacaram também as capelas existentes, referindo, quando oportuno, as adorações que nelas se encontravam. *

Professora do Departamento de História da Universidade do Minho. Número quatro

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Das diversas freguesias que compõem o actual concelho de Lousada, apenas nove possuíam mais que três altares. Assim, as paróquias de Boim, Lodares e Vilar do Torno tinham igrejas com quatro altares cada, enquanto que as de Cristelos, Lustosa, Meinedo, Silvares, Nogueira e Sousela estavam dotadas de cinco altares cada. As informações sobre os edifícios de culto são também muito escasas, embora se saiba que algumas igrejas tinham apenas uma nave, como acontecia em Aveleda, Nevogilde e Pias. Já a igreja de Covas possuía duas naves e sobre as restantes foi mencionado que “não tem nave”1. Sobre algumas foi ainda referido serem pequenas, como é mencio­ nado para a de Cernadelo. Estruturas de pequena dimensão, as igrejas reflectiam o tamanho das freguesias em que se encontravam implantadas, bem como as possibilidades económicas dos seus fregueses. Alguns relatores falam da pobreza dos moradores para justificarem a falta de confrarias ou de outros equipamentos religiosos. Sobre o local em que se encontravam situadas, as menções, quando existem, são muito sucintas, embora em alguns casos sejam bem sugestivas. O abade Francisco Álvares de Azevedo referiu que a igreja da sua paróquia distava da casa mais próxima “hum tiro de espingarda para a parte Norte e […] do primeiro morador para a parte Poente dous tiros”. Mais distante do povoado encontrava-se a igreja de Abadia, locali­ zada “solitariamente quazi fora da freguezia”, sendo que o vizinho mais próximo se encontrava distante “a três tiros de espingarda”, assim a localizou o reverendo Manuel Nunes Neto. As igrejas estavam quase sempre situadas em lugar destacado e afastadas do aglomerado populacional. As habitações mais próximas eram normalmente a residência paroquial, quando existia, e, por vezes, a casa de habitação do caseiro do passal. José Viriato Capela; Henrique Matos, Henrique; Rogério Borralheiro, As fregue­sias do Distrito do Porto nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História e Património, Braga, ICS, 2009, pp. 293-335. 1

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Qualquer que fosse o espaço geográfico em que o edifício estava situado, a igreja ocupava um lugar fundamental na estruturação da vida das populações locais. A sua centralidade provinha da necessidade da cura das almas e do objectivo último de todos os homens que consistia na sua salvação. Imperativo maior que tornava os homens pios, a salvação da alma fazia-os gravitar em torno do sagrado, na esperança do perdão dos pecados e de com ele acederem ao reino celestial. Mas o poder da igreja ia muito para além da protecção espiritual dos fiéis. Materializava-se na capacidade de reunião dos fregueses, nas manifestações de culto, nas instituições que albergava e ainda no poder que o pároco e os equipamentos religiosos expressavam. Células de maior ou menor dimensão, as paróquias constituíam na Idade Moderna marcos importantes de identificação que tinham na igreja o epicentro de reunião, sendo simultaneamente gerador de sentimentos de pertença. Para além das igrejas, quase todas as paróquias estavam apetrechadas com capelas ou ermidas: umas pertencentes às freguesias, enquanto outras eram propriedade particular. O concelho de Lousada possuía em 1758, 56 capelas ou ermidas, sendo 31 pertença da freguesia, 24 de particulares ou administradas por particulares e uma, situada na freguesia de Cernadelo, que estava ao cuidado da Câmara. O estatuto desta capela não é perceptível. O pároco informa apenas que era ornamentada pelo Município. Comparando a pequenez das igrejas com o número de capelas ou ermidas, este último não deixa de ser significativo e até de certo modo estranho. Com excepção das freguesias de Nogueira e Vilar do Torno, que não possuíam à época nenhuma capela ou ermida, todas as restantes estavam dotadas deste equipamento religioso. O número de capelas ou ermidas administradas por particulares assume também particular relevo. Num concelho com 23 freguesias, ter 24 capelas particulares ou adminis­ tradas por eles parece evidenciar a existência de proprietários com posses. Sobre algumas é mencionado integrarem quintas ou grandes quintas como ficou referido num caso apenas. Número quatro

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A existência de capelas particulares está associada à representação do poder e prestígio de algumas famílias, mas também à “privatização” da oração. A valorização do recolhimento, do silêncio e do “encontro” com Deus ganhou adeptos junto dos fiéis, sensibilizando-os para a prática da oração mental2. Esta prática trouxe alterações à vida dos fiéis, originando comporta­ mentos mais intimistas e criando lugares onde esta oração fosse possível. O surgimento de oratórios e capelas particulares responde a uma espiritualidade individualizada, onde o silêncio e a reflexão convidam à contemplação e à oração. Nestes lugares de culto eram colocadas imagens onde os fiéis oravam. Em algumas capelas do concelho de Lousada os fregueses estavam organizados em confrarias e tinham culto regularmente. Por todo o país e no império foi espalhada esta modalidade de rezar, criando-se novos espaços orantes e respondendo a uma religiosidade mais intimista. O inquérito faz ainda luz sobre o estado de conservação dos edifícios. Para algumas igrejas é mencionado terem sofrido obras de remodelação recente, ou estarem a precisar de restauro. Já outras se encontravam em escombros. A única capela que existiu na freguesia de Nogueira estava em 1758 “alagada”. As únicas informações de relevo dizem respeito à existência de altares com talha dourada em algumas igrejas e às pinturas “raras” feitas por três irmãos do termo de Guimarães, existentes na igreja de Lustosa. A população do concelho de Lousada tinha, pois, um número significativo de igrejas e capelas ou ermidas onde assistia ao culto, fazia preces e outras manifestações de religiosidade popular que ocorriam ao longo do ano, ritualizando a fé e a prática religiosa.

Veja-se para este assunto João Francisco Marques, “Orações e devoções”, in Azevedo, Carlos Moreira (dir.), História Religiosa de Portugal, vol. 2, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 603. 2

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As devoções organizavam-se em diferentes espaços, corporizando um calendário litúrgico que se desenrolava ao longo do ano e materiali­ zando uma relação afectiva que se mantinha com os santos, originando romarias, clamores, peregrinações e festas3. Estas devoções expressavam-se no imaginário que repousava nos altares das igrejas e das capelas, mas também se intensificaram nas confrarias. As adorações mais veneradas eram a de Nossa Senhora, na invocação de Nossa Senhora do Rosário, Santo António, S. Sebastião, S. José, Santa Ana, S. Gonçalo e o Menino Jesus.Todavia, o devocionário era extenso e materializava-se nas imagens que se encontravam espalhadas nas igrejas paroquiais e nas capelas ou ermidas. O culto ao Santíssimo Sacramento, a Nossa Senhora e às Almas foi reforçado em Trento, fazendo enxamear estas três adorações ao longo dos séculos que se seguiram. No actual concelho de Lousada, estas três invocações ganham igualmente relevo, sendo certo que o culto a Nossa Senhora atingiu expressão maior, ramificando-se num alargado conjunto de títulos: da Ajuda, do Pilar, da Conceição, da Oliveira, do Carmo, da Consolação, da Piedade, do Amparo, da Lapa, do Bom Sucesso, da Assunção, das Neves, dos Remédios, da Penha de França, de Guadalupe e da Glória. Na cadeia das invocações, Nossa Senhora assume um lugar privile­ giado enquanto mãe de Jesus e simultaneamente mãe dos homens. Por sua vez, ela é no imaginário popular o ideal de mulher, o exemplo a seguir por todas as mulheres. Estabelecia-se assim uma relação de grande proximidade com todos os santos, mas particularmente com a Virgem Maria a quem se recorria nas horas de aflição, mas também a quem se agradecia as graças recebidas. A piedade mariana expressava-se ainda na hora da morte, quando se registavam as últimas vontades. Entregava-se-lhe a alma, para que Confira-se José da Silva Lima, “Religiosidade popular”, in Azevedo, Carlos Moreira (dir.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, p. 111. 3

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intercedesse junto de Deus e como mãe de Misericórdia contribuísse para o perdão dos pecados4. A forte presença do culto mariano encontra-se já comprovada em todo o Minho e em Trás-os-Montes para este período5. Este crescimento foi feito um pouco à custa da diminuição do papel ocupado pelos santos padroeiros, tendo a Virgem Maria alargado a sua “funcionalidade”, desdobrando-se em muitas invocações. Ganhou ainda visibilidade nas imagens, nos altares e nas associações e cerimónias religiosas6. A devoção a outros santos está muito patente não apenas nas imagens que povoam os altares das igrejas e das capelas ou ermidas como acontece com os santos já mencionados, devocionário que recolhe muitos crentes e se expressa nas manifestações de religiosidade popular que decorrem ao longo do ano. Várias destas imagens, pelo significado que têm para os crentes, agregam os fiéis à sua volta muitas vezes no decurso do ano, ou pelo menos no dia da festa7. Estas práticas atestam a necessidade do homem ter uma ligação próxima à santidade, mas igualmente uma relação afectiva que se mistura com o sagrado.

4 João Francisco Marques, “Orações e devoções”, in Carlos Moreira Azevedo (dir.), História Religiosa de Portugal, vol. 2, pp. 627. 5 Veja-se José Viriato Capela, As freguesias do Distrito de Braga nas Memórias Paroquiais de 1758. A construção do imaginário minhoto setecentista, Braga, FCT, ICS, 2003, pp. 733-757; Capela, José Viriato (coord.), As freguesias do Distrito de Viana do Castelo nas Memórias Paroquiais de 1758. Alto Minho: Memória, História e Património, Casa Museu de Monção, ICS, 2005, pp. 867-870; José Viriato Capela; Matos, Henrique; Rogério Borralheiro, As freguesias do Distrito de Vila Real nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História e Património, Braga, FCT, ICS, 2006, pp. 663-670; José Viriato Capela; Henrique Matos, Rogério Borralheiro; Carlos Prada, As freguesias do Distrito de Bragança nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História e Património, Braga, ICS, 2007, pp. 835-843. 6 Leia-se a propósito Carlos Ferreira de Almeida, “O culto a Nossa Senhora, no Porto, na época moderna”, in Revista de História, 2, 1979, p. 15. 7 Consulte-se Isabel Luísa Morgado de Sousa Silva; Isilda Maria Braga da Costa Monteiro, Lousada. Percusos de Memória, Paredes, Câmara Municipal de Lousada, 2008, pp. 71-75.

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Em muitas ocasiões, os párocos referem as peregrinações e romagens que os fiéis faziam aos santos8. Vindos da paróquia ou das freguesias vizinhas, as romagens juntavam sempre muitos populares para venerarem os santos da sua devoção. Na freguesia da Aveleda, a imagem de São Barto­ lomeu, sedeada na capela da mesma invocação, exercia uma forte atracção de populares, sobretudo no dia da sua festa, mas também noutros dias. Romagem maior ocorria ainda em Agosto para venerar Santo Ovídio numa romaria que se prolongava por três dias. Para além das festas, os domingos, dias de pausa no trabalho, eram também ocasiões para cuidar do espiritual e dar azo a práticas de religiosidade popular. Em Boim, quase todos os domingos e dias santos os populares visitavam a imagem do Senhor dos Desamparados, onde rezavam e faziam novenas. A celebração de missa nos altares onde se encontravam as imagens constituía mais um motivo para as populações se abeirarem dos seus santos. Era, pois, a devoção popular que motivava as festas, as romagens, os clamores, a compra de imagens, de alfaias religiosas, a manutenção do templo e o pagamento ao sacerdote. Era ainda nesta paróquia que os fiéis realizavam uma festa a São Jorge que integrava missa cantada, sermão e procissão. Associada à festa, ocorria ainda uma feira de bois. Os animais eram trazidos pelos donos para junto do santo, servindo a ocasião para directamente lhes solicitarem protecção9. Em Silvares, freguesia cabeça do concelho, era a Câmara quem se responsabilizava pela festa anual a São Francisco de Bórgia. Realizava-se a 10 de Outubro com missa cantada, sermão e procissão e contava com a presença dos camaristas e de um representante de cada casa do concelho, por ordem régia de 1756. Esta determinação garantia uma manifestação grandiosa de fé, na glorificação que se fazia a São Francisco. O culto das relíquias era frequente na Idade Moderna, tornando-se responsável por uma grande mobilidade de crentes em direcção ao local 8 Leia-se António Mesquita, “Os romeiros do Vale do Neiva”, in Barcelos. Revista, 2ª série, nº 1, 1990, pp. 231-245. 9 José Viriato Capela; Henrique Matos; Rogério Borralheiro, As freguesias do Distrito do Porto nas Memórias Paroquiais de 1758: Memórias, História e Património, Braga, 2009, p. 968.

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onde o culto estava sedeado. Na freguesia da Aveleda, a relíquia de Santo Amador, considerada “milagroza” era venerada com grande devoção e fazia com que muitos populares se deslocassem para junto dela rezar. Uma outra modalidade era a dos clamores. Em certas épocas do ano, os populares deslocavam-se para fazer adoração a uma invocação, sendo esta expressão de fé corrente em muitas paróquias10. Estas manifestações de súplica podiam ocorrer também no dia da festa do padroeiro e congregavam todos os que num determinado momento imploravam o sobrenatural para os amparar e proteger do que os atormentava11. Às romagens e os clamores associavam-se as peregrinações e as festas. Rituais cumpridos por devoção, não por obrigação, como vincavam alguns sacerdotes. As confrarias eram responsáveis por um culto organizado e prepa­ rado para honrar uma certa invocação. Enquadrados em instituições de leigos, os fiéis do actual concelho de Lousada davam corpo a um ténue movimento confraternal. Embora espalhadas pelas igrejas (36) e capelas ou ermidas (4), as irmandades existentes são, quando comparadas com as de outros concelhos já estudados para o mesmo período, em número reduzido. Sobre algumas é ainda mencionado o seu estado de pobreza. As associações com mais expressividade eram as das Almas, as de Nossa Senhora do Rosário, as do Santíssimo Sacramento e as do Subsino. Eram também as mais representadas em quase todas as paróquias de seiscentos e setecentos. O movimento confraternal surgiu na Idade Média e foi renovado na Época Moderna, quando estas instituições medievais se encontram em crise e necessitavam de profunda alteração. Essencialmente viradas para o culto, as confrarias modernas perderam grande parte da sua vocação caritativa e ganharam espaço no campo da promoção do Para um melhor conhecimento dos clamores leia-se Franquelim Neiva Soares, A Arquidiocese de Braga no século XVIII. Sociedade e mentalidades pelas visitações pastorais, Braga, ICS, 1997, p. 562. 11 Franquelim Neiva Soares, “Cataclismos, medo e piedade.Votos e clamores na arquidiocese de Braga (1550-1900)”, in Piedade Popular. Sociabilidades-Representações e Espiritualidade. Actas, Lisboa, Terramar, 1999, pp. 453-455. 10

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devocionário popular. Estas instituições cumpriam outras funções não menos relevantes, como por exemplo, a construção e reforço de identidades, reforço dos processo de integração e coesão social, ao mesmo tempo que criaram oportunidades de sociabilidade onde as festas, as peregrinações, as romarias e os clamores assumiram um grande signi­ficado12. Simultaneamente, formaram círculos de poder local, criando espaço para outros grupos sociais se afirmaram e desenvolveram solidariedades sobretudo entre os seus membros13. Estas associações tiveram um papel muito relevante em termos religiosos e sociais, contribuindo em larga escala para um maior dinamismo da vida religiosa das populações locais. Nas Memórias Paroquiais de Lousada, o desempenho das confrarias é visível principalmente enquanto promotoras de culto, ganhando realce particular as festas em torno do santo padroeiro. A comemoração do orago coincidia normalmente com as eleições dos corpos gerentes e celebrava-se com uma festa. Todavia, na confraria do Santíssimo Sacramento de Avelada realizavam-se duas festividades: uma feita pelos mesários que assinalava o fim do seu mandato e uma outra que marcava o início de funções dos novos corpos directivos. Ritos de passagem a demarcarem o fim e o início das actividades dos corpos gerentes desta instituição. As confrarias das Almas são instituições especialmente vocacionadas para a salvação das almas e para o culto dos mortos. Os homens da Idade Moderna inscreviam-se nestas associações com o objectivo de conseguirem mais esforços na “família invisível” a que pertenciam e, desta forma, mais facilmente alcançarem a graça salvífica. Em várias capelas, encontrava-se a representação das almas em paneis pintados, chamando a atenção para os horrores do Inferno e para o sofrimento em que as almas se encontravam. Pedro Penteado, “Confrarias portugueses da Época Moderna: problemas, resultados e tendências da investigação”, in Lusitânia Sacra, 2ª série, 7, 1995, p. 15. 13 Estas funções encontram-se em José Viriato Capela, “Confrarias”, in As fregue­ sias do Distrito de Braga nas Memórias Paroquiais de 1758, p. 594. 12

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A preparação da morte e a prestação de serviços aos mortos, desde logo a mortalha para o corpo, missa de corpo presente e acompanha­ mento fúnebre eram aspectos garantidos por estas instituições. A força da morte estava tão presente que em algumas destas confrarias havia defuntos inscritos como membros avivando a imploração pelas suas almas e fazendo recair nelas mais sufrágios. Os crentes agremiados procuravam congregar esforços para, através das suas súplicas, tirar as almas do sofrimento do Purgatório. Considerado um lugar de passagem, de onde as almas podiam ser remidas, era possível resgatá-las através de súplicas, ofícios divinos e do exercício da caridade. A igreja católica assumiu um lugar importante de intermediária entre os vivos e os mortos enquanto as confrarias, sobretudo as das Almas se transformaram em patrocinadoras de benefícios espirituais que almeja­ vam resgatar as almas do fogo do Purgatório. Movidos por sentimentos de compaixão para com as almas sofredoras, os fiéis organizaram-se em instituições especialmente vocacionadas para sufragar as almas14. Culto maior, o Santíssimo Sacramento serviu de mote para incen­ tivar os fregueses a pertencerem a estas confrarias e a beneficiá-las com as suas esmolas. Esta era uma forma de tornar viáveis estas instituições, ao mesmo tempo que se incrementava a agregação dos fiéis em movi­ mentos colectivos de veneração ao culto. Presentes em muitas comunidades, embora com distintas expressões em termos paroquiais, as irmandades tornaram-se um instrumento de enquadramento dos leigos na Igreja. As confrarias do Santíssimo Sacramento objectivavam a devoção da eucaristia, principalmente através de acções como a exposição e veneração deste culto. Muito associadas a assembleias de crentes, estas ocasiões significavam igualmente a oportunidade de dar origem a

Leia-se Maria Marta Lobo de Araújo, “Rezar e cantar pelos vivos e pelos mortos: as confrarias das Almas do Pico de Regalados no século XVIII”, in Boletim Cultural, n.º 1, Câmara Municipal de Vila Verde, 2005, p. 225. 14

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outras práticas religiosas, de que se destacam as procissões, responsos e missas15. O culto da comunhão foi desenvolvido com a Reforma católica e está largamente associada às confrarias do Santíssimo Sacramento16. O banquete espiritual encontrava-se disponível para todos, mas para se lhe aceder era necessário reunir condições, como, por exemplo, fazer previamente a confissão. A oração estava presente em todas estas associações, mas as irman­ dades de Nossa Senhora do Rosário eram particularmente vocacionadas para a reza do terço. Os irmãos juntavam-se para orar em comunidade e eram obrigados a fazê-lo também individualmente17. A oração do rosário não estava confinada aos espaços sagrados. Devia ser efectuada no seio das famílias e ao longo do percurso das procissões ou de outras manifestações de culto. Podia ainda ocorrer em monólogo, mas era uma “oração eminentemente comunitária”, que agregava os fiéis à sua volta18. Muitas irmandades estudadas encontravam-se em dificuldade financeira, fazendo adivinhar o percurso trilhado ao longo da segunda metade do século XVIII. Quase todas eram suportadas pelos seus membros, denunciando outra falta de rendimentos que não fossem as quotas de entrada, os anuais e as esmolas dos irmãos. Como os párocos frequentemente referiram, eram sustentadas pelos seus membros, não conseguindo efectuar grandes programas festivos, nem mesmo grandes obras nos seus altares ou capelas. François Lebrun, “As Reformas: devoções comunitárias e piedade individual”, in Ariès, Philippe; Duby, George (dir.), História da vida privada. Do Renascimento ao Século das Luzes, Porto, Ed. Afrontamento, 19990, pp. 89-98. 16 Veja-se Maria Marta Lobo de Araújo, A confraria do Santíssimo Sacramento do Pico de Regalados (1731-1780), Vila Verde, ATAHCA, 2001, p. 25. 17 Consulte-se Marie-Hélène Froeschle-Chopard, “La devotion du rosaire a travers quelques livres de pieté”, in Histoire, Economie, Societé, vol. 10, n.º 3, 1991, pp. 311-324. 18 Para uma análise mais aprofundada sobre a oração do rosário consulte-se João Francisco Marques, “Rituais e manifestações de culto”, in Azevedo, Carlos Moreira (dir.), História Religiosa de Portugal, vol. 2, pp. 581-582. 15

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Apesar do fervor religioso que se encontra presente nas Memórias é já possível compreender as mudanças operadas em Setecentos no campo religioso. Estes sinais são ainda ténues, mas não devem ser ignorados. A falta de romagens em algumas paróquias do concelho de Lousada, ou o seu desaparecimento, como se verifica em Alvarenga, quando é dito que “as romagens destas imagens se acabaram” e tudo o resto está em “demenuição de concurço”, faz sentir um tempo de mudança e a aproximação de um período em que a igreja católica será confrontada com novos ideais. Através dos relatos paroquiais, é possível analisar as dinâmicas da religiosidade popular das populações de Lousada em meados do século XVIII. Apesar das particularidades existentes, não é discutível a sintonia registada entre a sensibilidade religiosa desta população e a das populações já estudadas. Contextos sociais, mentais e religiosos similares deram origem a resultados muito semelhantes, embora expressos em diferentes modalidades. Manancial de informação, as Memórias Paroquiais de 1758 consti­ tuem uma prestimosa fonte não apenas para os diferentes aspectos aqui abordados, como disponibilizam elementos preciosos para outras abordagens.

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Portugal ‘Volframizado’: mudança social e arco de emigração (1930-1960)1 Maria Otília Pereira Lage* Tomar períodos de tempo curtos pode, de alguma maneira, constituir a melhor forma de captar a verdadeira extensão da mudança social quando ela é acentuada 2.

1. Reportamo-nos a um nosso estudo do volfrâmio – minério metálico de elevado potencial estratégico, intensamente explorado em Portugal, como na vizinha Galiza, em especial no período da II Guerra Mundial. Nesse estudo3, tomado como “objecto de fronteira” identificamos algumas das principais implicações económicas, sociais e culturais desse processo na sociedade portuguesa das décadas de 1930 a 1960, cuja análise transversal efectuámos.

Professora; doutora em História; directora dos Serviços de Documentação do IPP. 1 Versão escrita da comunicação oral ao XIII Congresso Internacional de AHILA (Asociación de Historiadores de Latinoamérica y del Caribe),Universidade dos Açores, S.Miguel – Ponta Delgada, 3 a 6 de Setembro 2002. Simpósio: Países del Sur de Europa y de América Latina: história de la familia, historia de la sociedad y dinâmica demográfica. 2 Immanuel Wallerstein, “Mudança social? A mudança é eterna. Nada muda, nunca”, in Revista Crítica de Ciências Sociais, 44, (Dez. 1995), p. 4 3 Maria Otília Pereira Lage, Wolfram=volfrâmio: Terra revolvida, memória revolta. Para uma análise da sociedade portuguesa (anos 1930-1960), Braga, Uminho, 2001. *

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Aqui, partimos da biografia do objecto técnico volfrâmio reconsti­ tuída no quadro das tecnociências e das sociotécnicas e da reconstrução, sob diversas escalas, do correspondente processo social e histórico da sua extracção e exploração, episódio central à sociedade portuguesa nos meados do séc XX. Donde, assinale-se desde já, a metá­fora inicial do título deste texto. Procedemos a uma abordagem do processo social e histórico do que foi chamada a ‘Questão do Volfrâmio’, do seu impacto, nos planos local, regional e nacional, na construção da nossa contemporaneidade, sua relação com a “economia-mundo” e correspondente posição semi- -periférica de Portugal no sistema mundo capitalista. Neste enquadramento conceptual e empírico, damos particular atenção ao estudo das mobilidades sociais, à entrada generalizada das mulheres no mercado de trabalho e ao arco de emigração para a Europa que a partir daí se desenhou, variáveis importantes da mudança social verificada. Nessa perspectiva, analisamos com maior detalhe, o regime e o registo específicos dessa mudança social profunda e difusa verificada na sociedade portuguesa. Esta análise é feita no quadro de uma Sociologia Histórica do Portugal Contemporâneo que, a nosso ver, importa cons­ truir e para a qual este texto concorre. 2. Para a segunda metade do séc. XX, em matéria de movimentos migratórios, importa identificar previamente as alterações surgidas (ou não) nas correntes migratórias, desde logo, em termos espaciais de origem e destino dos migrantes. Para essa identificação, levantámos dados e materiais que permitem avançar com a hipótese da formação de um arco de emigração no país, mais concretamente, a partir dos anos 1950, o qual, em grande medida, recobre o espaço geográfico da anterior e intensa exploração de volfrâ­ mio, isto é: as zonas de Trás-os-Montes, Beiras e parte do Alto Minho. Esta hipótese justifica e carece de estudo englobante a desenvolver, partindo de tal perspectiva. 266

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3. Feito este enquadramento conjuntural prévio, é de referir, em traços muito sumários, que aqui se subsumem apenas algumas conclusões a que chegámos ao estudar o processo sóciohistórico da exploração mineira do volfrâmio em Portugal. Centramo-nos no tópico da mudança social então ocorrida a qual pode ajudar a explicar o terreno sócio-cultural em que se ancora, historicamente, esse arco de emigração que pauta o último grande surto emigratório português, já não para o Brasil ou E.U.A., mas um surto intra-europeu que abre para o chamado “segundo ciclo da emigração”. Qual então o interesse deste texto, que à partida parece estar fora do âmbito mais abrangente deste número da Revista, no que concerne ao relacionamento das populações e sociedades do continente europeu, em marcos históricos que as aproximam e de que foram importante elo de ligação? É já lugar comum que a mudança de orientação das correntes migratórias se ficou a dever a factores exógenos, nomeadamente à intensa procura de mão-de-obra para as tarefas de reconstrução da Europa central industrializada no pós II Guerra Mundial. Porém, o estudo dos factores endógenos, que exige a análise das sociedades de origem, tem sido, em nosso entender, bem menos expressivo, apesar da sua importância explicativa. Daí que se pretenda com este pequeno contributo ajudar a compre­ ender o que nos factores endógenos, em Portugal, país da Europa do Sul, pode ter contribuído para o estancamento da emigração transatlântica e sua substituição histórica pelo surto emigratório intra-europeu. 4. Entrando mais directamente no tema Portugal ‘Volframizado’, anos 1930 a 1960, pomos em destaque um processo sócio-histórico, curto no tempo mas com um amplo espectro de efeitos sociais e históricos analisados em profundidade na nossa tese de doutoramento, já referida. Desse nosso estudo que supôs larga e vasta pesquisa empírica, bem como uma análise pormenorizada dos poderes ocultos que sobre esta Número quatro

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matéria se guardam em arquivos nacionais e estrangeiros que consultámos (de Portugal à Inglaterra, Alemanha, França e Áustria passando pelos E.U.A e Brasil), retiramos, para aqui, apenas uma pequena parte das conclusões a que chegámos. Protagonista fulcral nesse processo é, naturalmente, o volfrâmio, wolfram, tungsténio, mineral metálico dos mais recentes da história dos minerais, já que apenas isolado em laboratório, em finais do séc. XVIII, com múltiplas aplicações industriais desde o início do séc. XX e que em períodos de guerra (I Guerra Mundial, Guerra Civil de Espanha, II Guerra Mundial, Guerra da Coreia) foi objecto de intensa procura, dada a sua aplicação em material bélico e, por isso, de alto potencial estratégico. Protagonistas centrais da sua exploração, foram-no também centenas de milhares de homens e mulheres, jovens e crianças que, sobretudo de 1938 a 1944, se dedicaram à “apanha” do minério de que Portugal foi o primeiro produtor europeu, nos filões aluvionares, e ainda as empresas de capital maioritariamente estrangeiro que o exploraram através de circunscrições mineiras sob sua administração directa. Diga-se aliás, de passagem, que este texto, ao partir do estudo de um mineral, acentua, indirectamente, a história imbricada de vários países sobretudo nos continentes europeu e americano, a qual foi, em grande medida, conformada por este veio subterrâneo de procura dos metais, como pertinentemente observa a estudiosa americana Sandra Harding. 5. No título deste texto estão condensados os argumentos principais que trazemos para debate. Basta para tanto recordar que sendo Portugal um país de balança comercial cronicamente deficitária, só nos anos de 1941 a 1943, apresentou um saldo positivo, em grande medida devido às exportações de volfrâmio para os países beligerantes da II Guerra Mundial, as quais atingiram 32% do volume total das exportações portuguesas. Isto, para além do seu impacto em termos de mudança da sociedade portuguesa então maioritariamente rural, mudança induzida, ainda que num regime específico, como a seguir se explicita. 268

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A exploração (extracção, preparação laboratorial e industrial, comér­cio, etc.) deste minério metálico, apodado por seus especialistas – engenhei­ros de minas e administradores de empresas – de “a última especiaria” da nossa história, envolveu centenas de milhares de homens, muitos deles prematuramente dizimados pelo “mal da mina” (silicose e tufo) mas também mulheres, cuja entrada maciça e repentina no mercado de trabalho tornando-as assalariadas, induziu profundas mudanças sociais. Essa forte movimentação gerou intensas migrações internas de sentido oposto ao tradicional, ou seja, do litoral e das cidades para as zonas rurais que, subitamente, se tecnologizaram. De facto, por acção da intensa actividade mineira do volfrâmio, muitas zonas rurais passaram a estar dotadas de tecnologias de ponta, novos e melhores meios de comunicação, desde estradas à instalação de luz eléctrica, e equipamentos sociais e urbanos. Refira-se, a mero título de exemplo, a Central Eléctrica das Minas da Bejanca então construída para apoio à actividade mineira do volfrâmio e estanho, a qual era mais potente do que a que abastecia, na altura, Viseu, a vizinha cidade desse lugar mineiro cuja grandiosidade das actuais ruínas de lavarias, armazéns, oficinas, ainda hoje impressiona e testemunha a importância desse centro mineiro de exploração alemã. Esta envolvência da sociedade rural portuguesa, ou uma parte muito significativa dela, esta paleo-indústria, o contacto em massa com novos hábitos de consumo proporcionados, por sua vez, pela subida súbita e mais alargada de rendimentos, fruto de factores múltiplos em que relevam, conjunturalmente, as altas cotações que o volfrâmio atingiu no mercado e os negócios de todo o tipo que proporcionou ou favoreceu (contrabando, mercado negro, candonga…) os novos padrões de vida assim induzidos, confluíram para desenhar contextos de uma profunda e irreversível mudança social. Esta não encontrou resposta no retorno aos campos, após o termo da exploração intensa do volfrâmio, “minério”, “volfro” ou “volfrão” como em termos populares era designado. Número quatro

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Estavam assim criadas as condições para ir “à procura fora do que se perdera cá dentro”. Foi afinal neste terreno social, com a saturação demográfica no campo, intensa e repentina, que se veio a desenhar esse arco de emigração no período de 1950 a 1974, caracterizado pela saída de Portugal de mais de 2 milhões de indivíduos, parte muito substancial dos quais oriundos dessas mesmas zonas do Norte do país onde teve lugar a exploração mais intensa do volfrâmio. 6. Como caracterizar então esse terreno social definido num período de transição? Como enquadrá-lo, passando de uma escala de observação local/ /regional a uma escala nacional/internacional, uma vez que só neste outro quadro se mostra possível a sua mais cabal compreensão? Vimos, em primeiro lugar, o minério volframite (volfrâmio é o metal) ganhar um protagonismo a tal ponto que não só “revolveu”, profundamente, as regiões Norte e Centro do país onde se localizavam as centenas de pequenas e médias minas e os 2 ou 3 grandes complexos mineiros (Panasqueira ou Beralt &Tin, Minas da Borralha, Empresa Mineira de Sabrosa e Companhia Mineira do Norte de Portugal) como contribuiu, em definitivo, para incorporar Portugal num mercado mundializado. Enquanto actividade económica, então dominante, estrutura-se numa cadeia de mercadorias que atravessa as fronteiras nacionais ao ponto de, jogando até com elas, formar o contexto do chamado “Quadrilátero do Volfrâmio” que abrange parte da Espanha, designadamente, a Galiza. Este aspecto define uma unidade de análise que desloca as fronteiras políticas nacionais, sobrepondo-lhe um espaço cujas fronteiras coincidem com as ocorrências da província estano-tungstífera da Ibéria, uma das sete províncias mundiais (Malaio-Chinesa, Brasil, etc.). Este fenómeno, para além de favorecer e propiciar o contrabando e mercado negro de grande amplitude, apresenta conjunturais implicações políticas, ao facilitar até o registo de concessões mineiras inexistentes 270

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para se furtar ao condicionamento imposto ao trânsito do minério através das “guias”. Ilustração evidente do que se afirma é o que chamamos de “minas especulares” ou “em espelho”. 7. Os aspectos introduzidos que recenseámos a partir de uma multitude de outros, influem, quais elementos intrusivos, nas profundas transformações sociais e culturais que então, e em grande medida por efeito deste processo socio-histórico que consideramos episódio central e elo perdido da contemporaneidade portuguesa, se verificaram. Os mesmos configuram já traços específicos de um retrato social singular do Portugal do nosso tempo que adiante se apresentam. Passamos então a enunciar as características mais marcantes dessa mudança social cujo registo e regime nos propusemos abordar: – elevada taxa de actividade feminina, actualmente contabilizada em 49,6%; – elevada percentagem de trabalhadores por conta própria, isto em termos relativos; – persistência de um “mercado paralelo” percentualmente muito significativo na actividade económica global do país; – ausência crónica de formação de uma reserva de mão-de-obra trabalhadora; – acentuada compulsão para o consumo, etc., etc. – permanente e elevada percentagem de mão de obra nacional poten­ cialmente mais qualificada, no estrangeiro, com inegável signi­ficado económico e social das avultadas remessas dos emigran­tes 8. Em síntese, julga-se ter deixado esboçados, com alguma clareza, embora de modo necessariamente esquemático, os principais indícios de explicação do registo e regime de uma subterrânea mudança social colhida no seu início. Designamos tal mudança de “metassomática”, por homologia com o fenómeno geológico que algumas rochas apresentam de, mantendo embora a crosta exterior inalterável, sofrerem uma transformação interna na sua própria composição, por efeito da acção de factores invasivos, por exemplo de natureza hidrotermal. Número quatro

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Será, no entanto, de perguntar porque se manteve invisibilizada na historiografia portuguesa esta mudança abafada da sociedade portuguesa e que atrás designámos pela metáfora de “Portugal volframizado”. Porque, simultaneamente, possibilitou ao Estado Salazarista, regime político da altura até 1974, a tesaurização de meios financeiros (o estado português foi detentor de uma das maiores reservas de ouro do mundo) o que permitiu ao regime salazarista, em contexto de generalizada mudança europeia de regimes políticos, no pós II Guerra Mundial, endurecer a sua armadura político-institucional, designadamente, através da instituição, em 1948, do julgamento em “tribunais plenários” dos chamados delitos de opinião, a par da manutenção de uma polícia política relativamente bem equipada e treinada, para além da ofensiva bélica mantida nas colónias africanas. Vem assim a propósito, continuando a reportar-nos a uma nova história social, salientar que a mudança já não é a modalidade natural da marcha da história, é um processo complexo, contraditório no interior da sociedade onde se confrontam inovações e resistências: a mudança tornou-se problemática. E, a concluir, evocar com Marc Bloch4 que a história é a ciência de uma mudança e a muitos propósitos uma ciência de diferenças. 9. Finalmente, ao nível teórico e conceptual, alguns fundamentos gerais se advogam ainda, como necessários ao desenvolvimento de um quadro analítico dinâmico de Sociologia Histórica do Portugal Contemporâneo, para o qual se procurou contribuísse o estudo sócio- -histórico do “objecto” volfrâmio, assim reconstruído, narrativamente descrito e reinterpretado. Como proposta de fundamentos para uma socio-história da nossa contemporaneidade, sintetizamos, então: Marc Bloch cit. por André Burguière, “Le changement social: brève histoire d’un concept”, in Bernard Lepetit, Les formes de l’experiènce: Une autre histoire sociale, Paris, Albin Michéle, 1995, p. 253 4

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a) práticas e saberes não antropomórficos; b) incorporação da historialidade; c) consideração dos espaçostempos não como parâmetros, mas como operadores; d) contingência e irreversibilidade; e) singularidade e regularidade; f) lixiviação dos saberes disciplinares; g) coprodução raízes /opções; h) colocação do conhecimento, em cultura e na crítica; i) considerar as ciências sociais e humanas como uma terceira cultura, ponte entre humanidades e ciências naturais. Tal proposta passa, necessariamente, pela incorporação nas práticas de análise social e historiográfica, da emergência da sociologia e da historicidade da representação e narrativa históricas, como disciplinas interligadas. Bibliografia AKRICH, Madeleine, “Comment sortir de la dichotomie technique/societé: Presén­ta­ tion des diverses sociologies de la technique ”, in LATOUR, Bruno et LEMON­ NIER Pierre (dir.), De la préhistoire aux missiles balistiques: l’intelligence sociale des techniques, Paris, La Découverte, 1994. ARRIGHI, G., A Ilusão do desenvolvimento, Petrópolis, Vozes, 1997. BAGANHA, Maria I. e GÓIS, Pedro, “Migrações internacionais de e para Portugal: o que sabemos e para onde vamos?”, in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 52/53, Nov.1998/ Fev.1999, pp. 229-271. BALIBAR, É. et WALLERSTEIN, I, Race, nation et classe: les identités ambigues, Paris, La Découverte, 1997. BURGUIÈRE, André, “Le changement soci:al brève histoire d’un concept”, in LEPETIT, Bernard, Les formes de l’experiènce : Une autre histoire sociale, Paris, Albin Michéle, 1995, pp. 253-272. ESTANQUE, Elísio, MANUEL MENDES, José, Classes e desigualdades sociais em Portugal: Um estudo comparativo, Porto, Afrontamento, 1998. ESTANQUE, Elísio, MANUEL MENDES, José, “Análise de classes e mobilidade social em Portugal”, in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 52/53, Nov.1998/ /Fev.1999, pp. 173-198. Número quatro

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Nas Estações da vida – encontros entre Campos Monteiro e Flora Castelo Branco Odete Paiva*

Biografia de Flora Castelo Branco1 Flora Augusta de S. Miguel de Seide Correia Botelho Castelo Branco nasceu em Landim, freguesia contígua de S. Miguel de Seide, em 11 de Janeiro de 1886 e faleceu em 1963. Foram seus pais Nuno Castelo Branco e Ana Rosa Correia. Casou em 1908, com António Vilaça, natural de Guimarães, com quem teve vários filhos. Neta de Camilo Castelo Branco e de Ana Plácido, revelou-se também poetisa de mérito.

Flora Castelo Branco, Outonais.

Investigadora do CEPESE (Universidade do Porto) e do CITCEM (Universi­ dade do Porto/Universidade do Minho). *

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Flora Castelo Branco e o romancista Campos Monteiro A produção poética de Flora Castelo Branco rompe as fronteiras da domesticidade e adquire visibilidade no espaço público, em 1906, quando a autora publica em Ocidente e, mais tarde, (1917), Nuno Catarino Cardoso insere pequenos poemas seus, em Poetisas Portuguesas. É, contudo, com a edição do livro Outonais1, prefaciado pelo escritor Campos Mon­teiro2, que se emancipa. Este reconhece o mérito da sua produção poética, fora de qualquer ligação ao avô, pois, enfatiza que, quando começou a apreciar a sua poesia, lhe era alheia a relação familiar de Flora com Camilo Castelo Branco. Ao lermos o prefácio, é notório que há duas fases na relação de Flora e Campos Monteiro. Uma primeira em que o escritor moncorvense estabelece um vínculo indi­recto com a autora, através da leitura Outonais (reprodução da capa) de algumas das suas poesias, apreciando nelas a doce simplicidade e graça espontânea3, e outra em que entra na sua esfera familiar4, observando-a numa postura discreta e

Flora Castelo Branco, Outonais, Porto, Companhia Portuguesa Lta., s/d. O Prefácio regista, no final, o ano de 1925. Alguns poemas apresentam, também, data sendo a mais recuada a que corresponde ao poema A Borboleta, 1902. 3 Prefácio, p. VII. 4 Idem. 1 2

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Nas Estações da vida – encontros entre Campos Monteiro e Flora Castelo Branco

digna, como mãe dedicada e abnegada, guardiã da sua prole, protótipo de vocação materna, a par da poetisa distinta5. A marca autobiográfica nos seus versos é ressaltada por Campos Monteiro, que aqui a aproxima de Camilo, na dor, no desespero, embora nos lembre que Flora não lhe herdou (…) o temperamento impulsivo, nem o desiquilíbrio nervoso6. Por antítese, os observa novamente, o avô romancista fértil na sua produção e a neta escrevendo nos interstícios do lar, centro das suas atenções, numa pirâmide afectiva em que as suas endeixas ocupavam posição subalterna face à de esposa e mãe, numa quase renúncia de si mesma, numa vivência pelo outro, numa quase inexistência. Mulher culta e discreta, no seu papel tradicional7 de esposa e mãe, não é uma mulher citadina e burguesa. Neste “prólogo”, perpassa Camilo e Ana Plácido, o primeiro como um escritor marcante para Campos Monteiro, a segunda por ser a companheira do romancista de Seide. Ao prefaciar o “filho literário” de Flora, os Outonais, a relação estreita-se e intensifica-se. A admiração pelo avô, que leva o médico-escritor a colocá-lo como personagem dos seus romances, como em Camilo Alcoforado, ganha tecituras quase familiares e, à boa maneira cavaleiresca, Campos Monteiro apadrinha o livro de Flora, estabelecendo uma relação espiritual com a neta. Quando se pronuncia sobre os méritos literários da poetisa, Campos Monteiro alerta o leitor para o facto de não encontrar nos seus “versos” qualquer matiz modernista, ganhando estes, quanto a ele e, por isso, em autenticidade. Em síntese, Campos Monteiro, traça-nos, num quadro perfeito, o retrato de Flora, onde estão presentes a inteligência e o equilíbrio de carácter, considerando a sua poética digna de figurar ao lado da obra do avô. Faz o paralelismo com Ana Plácido, sua avó, também ela mulher Idem. Idem. 7 Lembre-se que no início do século XX, o denominado Código Seabra, de 1867, obrigava a mulher casada a prestar obediência ao marido e não a autorizava, sem o consentimento deste, a administrar, adquirir, alienar bens, publicar escritos e a apresentar-se em juízo. 5 6

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escritora, mulher mãe, mulher mártir, a santa de Seide8. Recorre a Victor Hugo para no-la dar a conhecer melhor «de cristal para gemer, de bronze para resistir». Desfolhando os Outonais Os Outonais, constituídos por dezoito poemas, andam em torno de quatro eixos temáticos, a saudade, o misticismo, a dor e o sonho. É pregnante um certo determinismo, parecendo que o sujeito poético caminha, apesar de momentos de alguma felicidade, para a inevitável tormenta. Logo na dedicatória do livro, a poetisa nos indicia uma paleta temática muito na linha de uma Florbela e mesmo de algumas produções camilianas. A tragédia grega e a percepção da desventura estão presentes nos seus Outonais. Neles, encontramos uma continuidade – a luta entre a luz e as trevas. Uma ventura só em projecto, um paradoxo de vida, o desabrolhar da flor em chão de morte9. A força do determinismo inscrita na sua poesia é marcante, conduzindo a um túnel de que ela parece não poder sair. Eu sei que se não muda a minha sorte10, diz-nos ela. Não obstante, momentos há em que a luz esvoaça no seio de uma amargura latente e inscrita na sua obra e as antíteses habitam na semântica narrativa. Apercebemo-nos que a autora constrói pontes no desejo de se salvar, apesar de o “Fado” lhe lembrar a sua humana dôr11. A ideia do lenitivo pela força mística mariana, contrariando o “Fado”, é visível no poema AVirgem12, única produção em que Flora Castelo Branco apôs o local em que a escreveu – S. Miguel de Seide. Tal circunstância parece não ser anódina. A sua casa, o seio maternal, a pureza da infância, a saudade de um tempo celestial, o da meninice, a eterna procura do Éden, a topografia do sonho são corporizados nos dois últimos versos: Flora Castelo Branco, op. cit., Prefácio, p. VIII. Idem, p 14. 10 Idem, ibidem. 11 Flora Castelo Branco, op. cit., p. 13. 12 Idem, p. 16. 8 9

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Nas Estações da vida – encontros entre Campos Monteiro e Flora Castelo Branco

Volve a mim teus olhos ternos Sou tua filha tambem… O eterno retorno aos tempos do refúgio de Seide vem logo no poema Saudade13, dedicado à avó, Ana Plácido, o anjo da sua infância. No transcorrer do poema, a autora parece encontrar algum apazigua­ mento, ao oferecer-se como vítima à morte, que lhe levou a avó, não sem antes a desafiar. Esta saudade da infância revela-se pungente quando, num poema sem título, escreve: Quando em pequena saltava A colher mimosas florês, Não conhecia esta vida De maguas toda opprimida, Só de tristezas e dôres14. A mulher mãe é um dos temas de Flora. No poema Pobre Mãe15 constrói uma atmosfera de demolição, em que tudo conflui, desde a Natureza furiosa, ao inferno da tortura da dor materna, com a morte como clímax. Na tormentosa noite de agro inverno, Quando o vento gemia fortemente A mãe fitava o filho ali doente, Seguindo o seu olhar sereno e terno16. Campos Monteiro, em Camilo Alcoforado17, transporta-nos para idêntica atmosfera e desenha-nos uma personagem-mãe de igual dramatismo, quando descreve Josefina da Nóbrega, grávida, cavalgando pela noite chuvosa e de breu, no desespero de ainda salvar o marido. Idem, p. 17. Idem, p. 34. 15 Idem, p. 20. 16 Idem, p. 22. 17 Campos Monteiro, Camilo Alcoforado, Porto, Livraria Figueirinhas, s/d. 13 14

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A matriz telúrica encontra expressão no poema A Borboleta18 dedicado a Dona Maria Henriqueta Pimentel e Primavera19. No primeiro, a Natureza, através da borboleta, é a confidente e a mensageira. No segun­do, o simbolismo desta estação traz ao poema o elogio à esperança, descobrindo-se nele, quanto a nós, um dos raros momentos de equilíbrio existencial. A tristeza, as lágrimas, o estar cativa de amor, a dialéctica entre a liberdade e a prisão, o desalento da pomba ferida, que na sarça vai morrer20, caminham na sua poesia. E também o efémero do amor, a antítese do viver, o lado lunar e solar, o pranto da maldição21, sendo recorrente, nesta, um onirismo anteriano com a presença marcante da amargura e da morte. No poema Uma Prece22, Flora parece escrever o diário do avô, intervindo nele como personagem: Meu Deus, porque me não levas Deste amargo sofrimento? Onde sempre atribulada A minha alma angustiada Vagueia em duro tormento! Termina os Outonais com duas ideias base na sua poesia: a morte como refrigério para o mártir e a esperança, esta última presente na expressão paradoxal do poema Súplica23: Além da campa há trevas E àlém da campa há luz.

Idem, p. 41. Idem, p. 43. 20 Idem, p. 27. 21 Idem, p. 33. 22 Idem, p. 35. 23 Idem, p. 55. 18 19

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A Poesia e o Mistério em Armando Martins Janeira Paula Mateus*

No dia 1 de Setembro completaram-se 95 anos sobre o nascimento do embaixador Armando Martins (1914-1988) 1, que hoje todos recordam, mesmo no meio diplomático, como Armando Martins Janeira, nome com que se distinguiu na literatura. Dedicou muito estudo ao Japão, país onde representou Portugal em dois períodos, num total de uma década, e onde confessa ter vivido os anos mais felizes da sua vida. Dessa convivência, deixou-nos obras basilares como O Impacto Português sobre a Civilização Japonesa, Japanese andWestern Literature – A Comparative Study e Figuras de Silêncio – A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje; ou O Jardim do Encanto Perdido – Aventura Maravilhosa de Wenceslau de Moraes no Japão e Peregrino, que constituem importantes fontes de documentação para a análise da vida e da obra do autor d’O Bon-Odori em Tokushima; ou ainda estudos que atestam quão fundo quis penetrar na cultura nipónica como Nô,Teatro Lírico Japonês ou as crónicas que reuniu em Caminhos da Terra Florida – A Gente, a Paisagem, a Arte Japonesa.

Editora; estudiosa de Armando Martins Janeira. De 29 de Agosto a 30 de Outubro, a Câmara Municipal de Torre de Moncorvo homenageou este seu notável, natural de Felgueiras, no Centro de Memória da vila, com a exposição Armando Martins Janeira ou a Busca do Homem Universal, que traçava o seu percurso na vida e no mundo através de algum do seu espólio, uma parte dele cedida para esta iniciativa pela sua viúva, Ingrid Bloser Martins, e outra parte por ela entretanto doada ao Município. * 1

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Foi Armando Martins o grande responsável pela reactivação das relações culturais luso-japonesas no século XX, contribuindo assim para a recuperação da imagem de Portugal no Japão, através da divulgação da língua e da cultura portuguesas, bem como para a difusão e a incrementação do interesse pelo estudo no nosso país da cultura e da civilização orientais. No entanto, a riqueza da sua extensa Obra, a sua imensa cultura e o seu espírito universalista transformam-no numa personalidade muito para além do japonólogo. É verdade que desde muito novo mostrou largo interesse pelo Oriente e por toda a literatura oriental. Contase que Armando Martins ia a pé para a escola para guardar o dinheiro que o pai lhe dava para as viagens de autocarro, para poder comprar os livros de Wenceslau de Moraes, que lhe traziam, pelos olhos de um português, impressões sentidas de um destino exótico e ambicionado. Mas é também verdade que o seu desejo de conhecimento era inesgotável. Armando Martins escreveu igualmente sobre o romance, a poesia, especialmente de Camões e Fernando Pessoa, e o teatro em Portugal, e em relação ao teatro interessou-se em particular pelo de Gil Vicente, que aproximou do teatro nô japonês no ensaio O Teatro de Gil Vicente e o Teatro Clássico Japonês; publicou um livro de contos: Esta Dor de Ser Homem, duas peças de teatro: A Grande Feira do Mundo e Linda Inês, que mais tarde reescreveu e a Pássaro de Fogo editou postumamente com o título Linda Inês ou o Grande Desvairo, sendo este sem dúvida um dos mais belos textos que já se escreveram em língua portuguesa sobre o drama de amor de Pedro e Inês desde as crónicas de Fernão Lopes; fez um trabalho pioneiro sobre Direito Consular, registado em vários livros; e debruçou-se ainda sobre os mais diversos temas nos inúmeros artigos que escreveu para jornais e revistas. De notar que os seus inéditos, em que se distinguem mais de dez peças de teatro e estudos exaustivos sobre as religiões do mundo, são parte muito significativa da sua Obra. Os três primeiros livros que publica, fundamentais na sua carreira intelectual, contêm já o germe dos seus futuros trabalhos. O crítico António Quadros, na escolha que faz dos melhores livros do ano de 282

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A Poesia e o Mistério em Armando Martins Janeira

19482, destaca “uma estreia brilhante, a de Mar Talegre”, pseudónimo então usado por Armando Martins, com Esta Dor de Ser Homem e «dois ensaios valiosos», Três Poetas Europeus – Camões, Bocage, Pessoa e Sentidos Fundamentais do Romance Português. A poesia é a revelação do Desconhecido, do mundo nebuloso e mágico, oculto sob a superfície da realidade certa. E como as regiões do Desconhecido são infinitamente mais extensas e mais ricas do que as da realidade já possuída, a Poesia é a mais rica e mais complexa expressão do Homem e do Mundo. O Poeta aplica o seu ser total à descoberta e compreensão do universo de si próprio: o pensamento, a fantasia, o inconsciente, a alucinação, o sonho; todas as forças racionais, irracionais, sobrenaturais, de que dispõe, são pontes que o levam ao país fantástico do Desconhecido. Daí o carácter maravilhoso do fenómeno poético. É de ser empreendida com a utilização de todos os poderes do ser humano que a obra poética recebe o seu cunho de síntese – e de universalidade3. Os dados estão lançados nestas palavras com que Armando Martins se estreia na literatura. Não é por acaso que a Poesia e o Mistério protago­ nizam o primeiríssimo dos seus livros, Três Poetas Europeus. O apareci­ mento desta obra numa altura em que o conceito de Europa é batido por uma das mais sérias crises que o atingiram reveste-se de acrescida importância. O autor pretende conferir aos três poetas escolhidos, Camões, Bocage e Pessoa, uma eternidade europeia que os plasme na poesia planetária e os liberte assim do restrito nacional. Neste exercício de defesa do sentimento poético universal, sem grilhões a prendê-lo a um tempo e a um espaço específicos, o jovem Mar Talegre, ou Armando Martins, cai, ou antes, eleva-se, nas profundezas do seu próprio ser. Ao admitir que a fonte de inspiração de qualquer poeta é um milagre, só permitido pelo poder de forças que existem no homem, mas que ele António Quadros, “Ainda a Crise do Livro – Literatura de Rotina”, in Diário Popular, 5 de Janeiro de 1949. 3 Mar Talegre, Três Poetas Europeus – Camões, Bocage, Pessoa, Livraria Sá da Costa – Editora, Lisboa, 1947, p. 7. 2

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próprio desconhece, o autor está simultaneamente a pressentir a sua quididade, aquilo que ele é em si, aquilo que traz pronto no seu interior. Diz ele que “a Poesia é anterior à sua expressão verbal, vive diluída na essência dos seres e das coisas, onde a têm bebido tantas almas sensíveis que nunca escreveram versos. Esta Poesia pura existe, não em si mesma, mas esparsa no universo, como a cor, o som, o perfume, a luz, a tristeza, o sorriso, que só existem multimodamente nas coisas ou nas almas”4. Sem dúvida, este seu ensaio contribuiu para o estudo dos fundamentos filosóficos da nossa poesia, mas o que aqui ressalta, para a compreensão da personalidade do autor, são os seus próprios traços originários: Camões, Bocage e Pessoa souberam apreender a essência do Mistério e as riquezas do Universo e transmiti-las com generosidade, pela poesia, aos homens, e é, afinal, também esse o desígnio de Armando Martins. O sentimento profundo e indefinido, a inquietação vaga que magoa as raízes mais fundas do ser humano; a aspiração incerta, a angústia veemente e inapreensível, que se escapa dos dedos da alma como fiapos de nuvens; a beatitude clara que voga ao de cima da alegria pura; a libertação pelo sonho e o arroubo místico pelos raptos da fantasia; a atracção aflitiva para o convívio privado consigo próprio; o terror da sua própria alma e dos recantos misteriosos e sombrios onde se geram os seus poderes sortílegos e incontroláveis; o trágico sentimento dos limites, onde, dentro de nós mesmos, cessa a intervenção do espírito, a liberdade do seu querer, das fronteiras do mundo escuro e larvar de cujas lodosas profundidades sobem rebates indistintos em que a vontade se quebra; o pressentimento vago dum movimento que impele a nossa vida e do devenir universal de que esse movimento provém; a intuição da necessidade metafísica da morte; a suspeita viva de que em dados momentos roçamos pelo Desconhecido – isto e tudo o mais que está para além das disciplinas da Razão e da Palavra pertence exclusivamente ao domínio da Poesia5.

Idem, ibidem, p. 12. Idem, ibidem, pp. 11-12.

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A Poesia e o Mistério em Armando Martins Janeira

Deixando que os seus sentidos se impregnem daquilo que verdadeiramente é, a orientação poética de Armando Martins movi­ menta-se nos dois mundos: o real e o misterioso. A sua primeira passagem pelo Oriente no início da década de 1950 ditou-lhe sentires renovados: é o contacto directo – intelectual e espiritual – com todo um sistema filosófico e religioso, já intuído pelo seu ser interno, que lhe ensinará, ou reafirmará, o significado da vida e da felicidade, e orientará os seus estudos sempre no sentido de uma integração no universal, no eterno, no plano intemporal das grandes obras da literatura. Há vidas claras, directas, sem hesitações nem tumultos, exactas e largas como a planície à luz meridiana; e há vidas perturbadas e sinuosas, ora escuras e descendo a abismos, perdendo-se entre sombras, ora plenas, radiosas, abertas como um grande rio que, depois de atravessar sinistras cavernas, surge largo e deslumbrante ao Sol. Se aquelas podem oferecer um exemplo de felicidade sem sombras, são estas, que se mancharam na maldição e se purificaram na graça, que alargaram os limites do Homem e do seu conhecimento de si mesmo6. Armando Martins tinha o dom do poeta de transformar a escrita em sentimento. Sensibilidade atenta, vestia os seus textos de uma beleza admirável que fazia dele um escritor penetrante e de excepção, traçando a sua estrada sem desvios, luminosamente. Prova disso é por exemplo o livro Peregrino em que, partindo quase do pretexto da descrição de um acontecimento concreto – a inauguração em Tokushima, no Japão, de um monumento a Wenceslau de Moraes –, o autor revela na sua forma literária não apenas orientalismo nem exotismo, mas também, e sobretudo, espiritualismo e efusão lírica, pela adoração que dedica tanto à Vida como à própria Poesia. Em Peregrino, o leitor está perante um investigador do Mistério com a curiosidade de se debruçar sobre

Armando Martins Janeira, Peregrino, 2.ª ed., col. “A Oriente”, Pássaro de Fogo Editora, s.l. (Carcavelos), 2008, pp. 71-72. 6

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o âmago da paisagem humana, uma paisagem onde esse investigador, Armando Martins, se inclui, e que protagoniza através de um acto de meditação, em que a prece e a contemplação encontram abrigo nas suas palavras. A qualidade da escrita de Armando Martins reside na delicadeza com que transporta o leitor a mundos mais ou menos subtis onde se partilham emoções. Conheci o lugarejo de Yokoseura, pobre reminiscência da próspera cidade. Cheguei lá numa manhã de sol criador. Sobre a estrada, ao longo das águas verde-violeta, espargiam-se aromas de balsas e cintilações do mar. De quando em quando um pinheiro desgarrado surgia numa ilhota de dois palmos, entre um penedo e um pequeno momiji vermelho, tão debruçado sobre o mar que dir-se-ia enamorado da sua própria imagem ondulante. Depois, subitamente, ao tornar duma curva, surge Yokoseura. O lugarejo arrumou numa tira de terra modesta, entre a estrada e o mar, as suas duas dúzias de casas pobres de pescadores. Ao cimo da aldeia ergueram, em 1962, o monumento comemorativo que é o símbolo de toda a sua glória. Quase em frente, o ilhote de S. Pedro, encimado de novo por uma cruz de madeira, de oito metros de altura, levantada na celebração do quarto centenário da fundação da cidade deYokoseura. Ainda há almas piedosas que não deixam morrer a memória dos feitos dos homens e persistem em fazer reviver à terra as suas horas de grandeza. Parámos ao pé do monumento, juncado de flores, engalanado de fitas festivas. Nenhuma cerimónia estava prevista. Era simplesmente a visita, de passagem, do Embaixador de Portugal. Na minha frente, o pequeno grupo dos habitantes deYokoseura olhava-me com curiosidade, quase com espanto. Pareceu-me descortinar no olhar daquela gente um fundo de simpatia, de afinidades invisíveis, que quatro séculos de ausência não haviam conseguido apagar. Um impulso irresistível, que me vinha do fundo da alma, levou-me a aproximar-me. Dei uns passos para o grupo. E falei-lhes. Recordei-lhes como há quatro séculos homens do meu longe país ali tinham vindo visitar os seus maiores para lhes trazer a palavra e o amor do Ocidente. E que eu agora ali voltava para lhes reafirmar a mesma amizade. Em Cristo e em Buda, todos somos irmãos, e o mesmo Sol ilumina todos os homens e fecunda a terra inteira. Em nome de Portugal vinha saudá-los e exortá-los a que 286

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A Poesia e o Mistério em Armando Martins Janeira

nos guardassem a antiga amizade. E jurei-lhes a nossa amizade, em nome deste mar sagrado que nos aproximou. Respondeu-me o silêncio claro da manhã – e o olhar da gente, agora cordial, de humana compreensão. Depois, inesperadamente, um por um, primeiro os homens, a seguir as mulheres com as crianças pela mão, desfilaram diante de mim e me fizeram a vénia de saudação japonesa, que retribuí, profundamente comovido. Havíamos quebrado quatro séculos de ausência7. Mesmo na sua narrativa clara da descrição histórica dos factos, há graça e encanto, frequentemente com eloquência; e, sempre que o acaso permite, o autor oferece visões perspicazes e profundas das gentes de que fala. Por detrás de tudo o que escreve, sente-se em Armando Martins uma leitura vasta e sólida. Vale a pena dizer de novo: ele é verdadeiramente culto. Todavia, de natureza insatisfeita, sempre numa busca contínua da perfeição, o escritor não dava um estudo seu por completamente definitivo. Havia sempre algo a depurar, algo mais que pudesse até aprender, ou depreender, e enriquecer a sua obra. Nos seus inéditos, por exemplo, não são raras as notas manuscritas nas margens das páginas ou até versões diferentes de um mesmo trabalho, o que revela o burilar constante do seu pensamento literário. Em 1969, Janeira publicou no Japão, através da prestigiada editora Charles E. Tuttle, um livro de escassas 50 páginas, em língua inglesa, com o título The Epic and the Tragic Sense of Life in Japanese Literature, e que passou despercebido à crítica e ao público. O seu conteúdo, profundo e interessantíssimo, tê-lo-á Janeira considerado de especial relevo, pelo que o reviu e melhorou e o incluiu integralmente num dos seus mais elogiados estudos, Japanese and Western Literature – A Comparative Study, publicado um ano depois pela mesma editora, também em língua inglesa. O suplemento literário do The Times de 20 de Agosto de 1971 escreve Armando Martins Janeira, Figuras de Silêncio – A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, Lisboa, 1981, pp. 150-152. 7

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que “Janeira traça o panorama da literatura japonesa com uma riqueza de erudição e percepção extremamente esclarecedora para o leitor europeu (…) e exprime com clareza numa língua que não é a sua os pontos essenciais que caracterizam a tradição literária japonesa”. Classifica ainda este ensaio como “a obra mais notável publicada sobre as relações entre o Japão e o mundo ocidental”. Pisando terreno então virgem, Armando Martins junta-se à lista de brilhantes diplomatas estrangeiros que deram uma contribuição significativa para o estudo da cultura japonesa, como Aston, Eliot, Satow, Sansom ou Claudel, mas deixa bem claro que a pretensão deste livro é tão-só o estudo do homem, ou mais precisamente do homem universal. O mistério do homem universal não está no Oriente nem no Ocidente, mas no próprio homem. Este tema – o Mistério de todas as coisas –, tão caro a Armando Martins, é aqui de novo abordado assertivamente nos capítulos que o escritor recuperou de The Epic and the Tragic Sense of Life in Japanese Literature. As diferenças acentuadas que se encontram entre o Japão e o Ocidente derivam principalmente do pensamento e do sentimento budistas que deram toda a densidade e profundidade à literatura japonesa. O que na cultura japonesa é fluido e nebuloso e na cultura ocidental é profundo e imenso é o conceito de vida e a consciência do valor da morte. Não é nos conceitos divergentes de pecado que assenta uma das maiores diferenças entre o Oriente e o Ocidente; é em algo mais profundo, de que depende a extensão do pecado: a reverência pela vida e o valor da morte. Na filosofia do homem ocidental, formada por vinte séculos de influência cristã, a morte é a medida de todas as coisas, a medida absoluta, derradeira. A morte é o limite trágico: confere à vida o mais elevado dos valores, pois há apenas uma vida: o homem não tem hipóteses de se tentar salvar ou remir em reencarnações futuras. No Oriente (China, Coreia, Japão), a morte é sinónimo de nada. Na inescrutável distância entre estes dois opostos vivem todas as grandes criações da literatura e da arte ocidentais e orientais. A dor da perda é mais profunda no Ocidente; a alegria de uma iluminação que não mais se repetirá é mais realçada quando é atingida. Alcançar a felicidade é mais difícil, uma vez que o caminho para a perfeição 288

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A Poesia e o Mistério em Armando Martins Janeira

é mais espinhoso e mais árduo. Para um xintoísta é fácil ser feliz: os seus deuses são fáceis de satisfazer e não exigem grande coisa dos homens. O deus cristão exige do homem mais do que ele consegue alcançar. Daí a tensão do homem ocidental e a sua ansiedade para atingir a perfeição absoluta8. Armando Martins vê a literatura como uma disciplina fundamental da humanidade. Mais do que qualquer outra, ela permite penetrar no próprio significado da vida: as maravilhas da vida e os mistérios da morte. Todavia, não é o Mistério apenas – o Mistério enquanto Mistério – que encanta Armando Martins, mas também o eventual poder da razão para o racionalizar. Daí ainda a sua maior ambição, várias vezes confessada: ser poeta para “descobrir os signos secretos que são as portas por onde o homem penetra na harmonia universal”9. Com grande surpresa recebi telegramas e cartas a felicitar-me por ascender ao posto de Londres. Dizem-me que é como uma promoção. Os meus verdadeiros amigos parecem contentes. Dizem que é a coroação duma carreira. Não compreendo. Eu, no fundo, estou triste. Sinto que estou a chegar ao fim.Vejo já o muro que se depara duro ao fim dos meus esforços. Lanço o olhar sobre o curto pedaço de caminho que me falta trilhar e sobre o longo caminho percorrido. E fico triste. Porque falhei. Falharam as minhas ambições, perdi pela viagem, como dissolvido no ar, o meu maior sonho. O meu sonho na vida era ser poeta. Não era ser funcionário, era prender aquela luz criadora que ilumina o mundo e o faz girar e que só penetra na alma dos poetas. Os raios dessa luz que entraram na minha alma apagaram-se na sombra dos papéis de ofício. Quis ser poeta para cantar a alegria e as belezas do mundo. Para cantar a luz alegre, a bondade e a beleza do meu país. Ou não tive inspiração ou não deixei que ela entrasse em mim.Truncado, abandonado daquela grande bênção criadora, procurei com apego e com labor levar ao menos a contribuição do meu esforço para

Armando Martins Janeira, Japanese and Western Literature – A Comparative Study, Charles E. Tuttle, Tóquio, 1970, p. 270 (tradução). 9 Excerto de inédito não datado. 8

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uma grande obra de engrandecer Portugal. Creio que no Japão aumentei o nome de Portugal. Porém, visto agora quase do fim da jornada, tudo o que fiz é muito pouco. Desta pouquidade só posso retirar um ensino – a obrigação da humildade. Se a Embaixada em Londres é o cimo da carreira, ao menos uma coisa levo comigo – a humildade que aprendi. E levo ainda a ambição que não esmoreceu de aumentar Portugal10. O poema existe em Armando Martins. Mas não é um poema apenas para se ver com os olhos. O escritor tinha consciência dos meandros da poesia e do «caminho» que a ela conduzia, embora, na humildade que sempre o acompanhou, a elevação que conferia ao Poeta, isto é, àquele que ilumina a existência do homem vulgar pela poesia, nunca o tivesse deixado ver-se. A obra em Armando Martins nasce de uma paixão. Nasce da sua poesia.

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Inédito não datado [1976]. Revista Campos Monteiro


Incursões pelo quotidiano de uma comunidade religiosa feminina através das visitações: o convento do Espírito Santo de Murça na primeira metade do século XVII 1

Ricardo Silva *

O quotidiano das comunidades religiosas femininas era regulado pelas disposições dos estatutos, em muitos casos atribuídos pelos fundadores, e pelas regras da ordem que professavam. O cumprimento dessas determinações mostrava-se necessário a fim de garantir uma sã convivência entre os membros de cada cenóbio, mas também para assegurar a vivência cristã característica desses institutos. Esses regulamentos disciplinavam, ao mesmo tempo, as religiosas, procurando incutir-lhes uma rotina marcada pela obediência aos superiores, interiores e exteriores ao convento, pela prática da oração, que estreitava a sua relação com Deus, de modo a enquadrarem a sua conduta, e pelo respeito, entreajuda e amor entre todas as religiosas. Essas disposições derivavam da necessidade de se organizar uma massa humana que, em alguns casos, assumia grandes proporções. Não obstante a existência de um conjunto de regras bem definidas desde a criação destas fundações, as autoridades eclesiásticas sentiram a necessidade de criar um outro mecanismo que regulasse a vida interior da clausura, funcionando como subsidiário daqueles, na medida em que procurava auscultar as vivências das religiosas e, oportunamente, servir de regulador dos desvios das linhas iniciais traçadas. As visitas dos Doutorando da Universidade do Minho; Bolseiro da FCT.

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Ricardo Silva

prelados ou de delegados seus aos conventos passou, então, a funcionar como uma estratégia de fiscalização do cumprimento das normas que deveriam seguir, mas também como medida preventiva, de forma a antecipar os desvios às disposições definidas, evitando a sua ocorrência. As recomendações deixadas nesses momentos procuravam funcionar como dispositivos reformadores do comportamento da comunidade, mas também como auxiliadores da organização da clausura a diferentes níveis como veremos de seguida, acudindo as diversas situações que não estavam previstas nas regras nem nos estatutos das comunidades1. Na primeira metade do século XVII, o convento do Espírito Santo de Murça (Trás-os-Montes), que fora fundado em 1587 para receber religiosas da ordem beneditina, conheceu um total de 10 visitas2, das quais apenas duas foram feitas pessoalmente pelos arcebispos3, tendo as outras ficado a cargo de funcionários que se encontravam ao seu serviço4. O espaço temporal que medeia as diversas visitas é diverso, pelo que não nos é permitido estabelecer uma periodicidade das mesmas5, podendo concluir, no entanto, que a sua frequência aumentou na década de 40 do século XVII. Sobre a interferência dos arcebispos no governo e no funcionamento dos cenóbios leia-se Isabel Frutos Arenas, Dos arzobispos de México – Lorenzana y Núñez de Haro – ante la reforma conventual femenina (1766-1775), Universidad de León, 2004, p. 49. 2 Essas visitas ocorreram em 1604, 1614, 1623, 1625, 1628, 1632, 1639, 1642, 1646 e 1649. 3 Frei Agostinho de Jesus e D. Rodrigo da Cunha foram os únicos prelados braca­renses que visitaram pessoalmente o convento, em 1604 e 1632, respectiva­mente. 4 A extensa área da diocese de Braga justificou a delegação de muitas competências por parte dos seus arcebispos num conjunto alargado de funcionários que se encontravam ao seu serviço. Ao contrário das visitações efectuadas nas paróquias, as que se realizavam nos conventos, eram da exclusida responsabilidade do arcebispo ou dos seus delegados.Veja-se para este assunto, Franquelim Neiva Soares, “Aspectos da vida sócio-religiosa da Comarca de Moncorvo nos últimos séculos da administração Bracarense. O desmembramento desta Comarca da Diocese de Braga e a renúncia do Arcebispo”, in Brigantina, vol. II, n.º 1, 1982, pp. 5-24. Franquelim Neiva Soares, “As visitas pastorais – Mecanismos institucionais da Arquidiocese de Braga durante o Antigo Regime”, in Arqueologia do Estado, pp. 781-798. 5 Veja-se para este assunto Ricardo Silva, “Violar a clausura, romper a castidade”, in Revista Campos Monteiro – história, património, cultura, n.º 3, 2008, pp. 185-201. 1

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As disposições que resultaram destes actos são diversas, ainda que uma grande parte delas seja recorrente. Analisar o seu conteúdo e perceber o alcance das mesmas permitirá conhecer de uma forma mais sistemática o quotidiano daquelas que ingressavam na religião, já que tocam em muitos dos aspectos das vivências claustrais. As recomendações da primeira visita do século XVII, a de 1604, alertavam para a necessidade de se assistir aos ofícios divinos com assiduidade, devoção, atenção e silêncio6. Estas advertências continuaram a merecer atenção ao longo da primeira metade do século, o que evidencia não só a grande preocupação por parte das autoridades eclesiásticas em relação esta situação, mas também o facto de não serem respeitadas pelas religiosas. (…) Fomos informados pella visitação, que nesta casa fizemos, que o officio divino se não reza no choro com a tenção exterior, e nelle se não guarda silencio, avendo de ser muito contrario, pões neste acto falamos, e comunicamos com o Altissimo Deus e Senhor nosso (…)7. A obrigatoriedade da assistência aos ofícios estava consignada nas regras das diferentes famílias monásticas e nas exortações dos prelados, e constituía um dos principais objectivos da vida conventual8. O incum­ pri­mento destas obrigações anulava a vertente religiosa e a possibi­lidade da comunhão espiritual com Deus, logo, a salvação da alma, pelo que a abadessa deveria castigar as faltosas, privando-as das refeições do dia9. Deveriam cumprir com todas as determinações que exigissem o culto colectivo, aconselhando-se a reza pausada como forma de melhor manifestar a sua reverência perante o seu “esposo”. Arquivo Distrital de Braga (doravante ADB), Visitas e devassas, 225, fl. 7. ABB, Visitas e Devassas, 225, fl. 11v. 8 Leia-se Artur Teodoro de Matos, “Virtudes e pecados das freiras do Convento da Glória da Ilha do Faial (1675-1812): uma devassa à sua intimidade”, in O Faial e a Periferia Açoriana nos Séculos XV a XX, Actas do Colóquio, Ilhas do Faial e a S. Jorge, 12 a 15 de Maio de 1997, pp. 155-170. 9 Sobre a importância da oração no seio das comunidades religiosas femininas leia-se Nuria Simaro Salazar, “Monjas y benefactores”, in Ramos Medina, Manuel (coor.), El Monacato Femenino en el Imperio Español. Monasterios, beaterios, recogimientos y colégios, Centro de Estudios de Historia de México, 1995, pp. 193-212. 6 7

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Eram os diversos momentos de devoção que enquadravam o carácter espiritual característico dos cenóbios. As manifestações devocionais concorriam para o aperfeiçoamento da alma e promoviam o sentimento do amor divino, potenciado pela mensagem da salvação que a doutrina da Igreja transmitia. O carácter colectivo destas ocorrências contribuía para promover o sentimento comunitário através da comunhão de um conjunto de valores idênticos. Este facto favorecia a união das religiosas em torno dos mesmos objectivos, imprimindo o sentimento de partilha e de colaboração e, em última instância, disciplinava a comunidade. A ausência de alguma das religiosas quebrava estes compromissos, não só a nível individual, mas também colectivo e punha em causa a coesão do grupo claustral, podendo funcionar como precedente para a quebra dos laços comunitários. Relativamente aos ofícios divinos, as missas dominicais e dos dias de festa mereceram particular atenção, recomendando-se que não se rezassem outras missas, nomeadamente em altares específicos, sem que o capelão tivesse rezado a missa da comunidade. Garantia-se, assim, um dos preceitos fundamentais que era o culto em comunidade que assumia relevância em relação ao culto particular das devoções individuais. Exalta-se o princípio da vida em comum e da partilha dos exercícios espirituais. A concentração necessária nestes momentos desaconselhava a ida às grades, a troca de recados entre as religiosas ou entre elas e aqueles que estivesses na grade, a não ser em situações de grande necessidade, como a da entrada do confessor ou do físico. A ausência de algumas das religiosas no coro deveria ser castigada pela abadessa e se não corrigisse o seu comportamento, as autoridades religiosas deveriam ser informadas para procederem à correcção da sua conduta. Porém, não temos qualquer informação quanto a nenhum procedimento deste género e, tendo em conta a recorrência das advertências sobre este aspecto, leva-nos a indagar sobre a possibilidade das abadessas encobrirem estas situações, tornando-se cúmplices das prevaricadoras. Efectivamente, a denúncia de comportamentos incorrectos dentro da clausura por parte prelada ao arcebispo punha em causa as suas 294

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qualidades enquanto abadessa, demonstrando a sua incapacidade em disciplinar a comunidade. Porém, a insistência com que estas advertências eram feitas demonstra que os visitadores estavam inteirados da insistência do incumprimento de determinados preceitos, mas também não se conhece nenhum processo que demonstre a sua actuação de forma a corrigir esses desvios. A ocorrência destas evasivas poder-se-á explicar pela necessidade de quebrar o carácter recorrente e rotineiro que os momentos de devoção atingiam dentro da clausura, mas também pela leveza do castigo com que eram admoestadas ou até a ausência do mesmo. Logo, o carácter devocional e o espírito de comunidade eram princípios que não correspondiam ao ideal de várias religiosas. O silêncio não deveria ser apenas respeitado durante os momentos de culto mas, de uma forma geral, em qualquer situação e em qualquer momento. Porém, a ocasião em que se recolhiam ao dormitório, que deveria ocorrer depois da refeição da noite, seguido da assistência ao coro, exigia particular cuidado com esta postura, como se comprova pela vigilância apertada que exerciam as abadessas que deveriam certificar-se de que todas as religiosas estavam nas suas celas, ficavam com as respectivas chaves e encarregavam a sua vigilância à madre prioresa e às madres mais velhas, depois de lhes lançar água benta quando todas se tivessem recolhido. Esta postura decorreu do facto dos momentos de descanso não estarem, em grande parte, preenchidos com actos de devoção, podendo-se proporcionar as conversações. Também durante as refeições as religiosas eram convidadas a guardar o silêncio, ouvindo a lição espiritual do momento. Este aspecto demonstra o carácter complementar que estas ocasiões constituíam em relação às práticas de devoção no interior da clausura, contribuindo para que todos os actos das religiosas fossem revestidos de carácter espiritual – à excepção do capítulo – não dando espaço, portanto, ao relaxamento e à conversação, como por vezes acontecia. As parcas palavras proferidas eram boas conselheiras da modéstia e da virtude, pois evitavam momentos de convívio que podiam degenerar na expressão de desejos ou lamentos que a sua condição justificava, Número quatro

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que provocariam, certamente, o afastamento da contemplação espiri­tual. Portanto, o silêncio anulava as vontades e disciplinava os comporta­- mentos, evitando que as religiosas trocassem palavras pouco aconselhá­ veis, como é sabido que se verificava10. A necessidade de dialogar, comportamento que permitiria exterio­ rizar os seus anseios e as suas preocupações, aliviando o isolamento a que estavam sujeitas, era constantemente coarctada, sendo o silêncio uma das determinações das regras seguidas nos diferentes institutos. A persistência com que a Igreja combateu a comunicação oral está bem patente nas recomendações produzidas pelas visitas, que proibiam constantemente que se falasse no locutório. Esta proibição assumiu particular relevo na de 1604, porque a inexistência de grade acarretava outros perigos para as religiosas, nomeadamente o contacto físico que se poderia estabelecer com pessoas exteriores à clausura e que para o convento em questão não era novidade, como se pode comprovar pela facto de uma religiosa daquela instituição ter engravidado no ano anterior11. As exortações, no entanto, vão mais longe, pois a troca de correspondência e de presentes na portaria e na roda estava igualmente proibida, evitando assim o estabelecimento de amizades, sobretudo com o sexo masculino, sendo apenas permitido falar na grade da igreja e na portaria, desde que fosse com a mãe, irmã ou cunhada. A comunicação com elementos do sexo masculino apenas estava autorizada aos pais, irmãos e cunhados, somente de quinze em quinze dias12. O convívio com elementos exteriores ao convento era, assim, limitado aos membros da família. Este facto procurava, certamente, contribuir para uma clausura mais apertada, onde as relações interpessoais aconteciam, quase exclusivamente, entre as religiosas, permitindo não só Veja-se Maria Antónia Lopes, “Repressão de comportamentos femininos numa comunidade de mulheres – uma luta perdida no recolhimento da Misericórdia de Coimbra (1702-1743)”, in Revista Portuguesa de História, Tomo XXXVII, 2005, pp. 189-229. 11 Consulte-se Ricardo Silva, op. cit., p. 187. 12 Estas conversas poderiam ocorrer na presença de outras religiosas que procuravam intimidar aquela que recebia a visita, no sentido de proferir discursos menos aconselháveis. Leia-se para este assunto Isabel Arenas Frutos, op.cit. p. 116. 10

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estreitar os laços entre elas, sobretudo em termos espirituais, criando-se assim espaços de sociabilidade privilegiados, mas também para as afastar das vivências da sociedade civil13 que poderiam constituir um entrave ao seu aperfeiçoamento espiritual e ao seu enquadramento institucional. Os reduzidos contactos permitiam, ainda, proporcionar-lhes uma maior disponibilidade para a execução das suas tarefas, nomeadamente devocionais14. As relações dos membros da comunidade com aqueles que eram exteriores à clausura também mereceram a atenção destes actos. De forma a evitar que o contacto fosse mais permanente, as religiosas estavam proibidas de confeccionar refeições para as pessoas que não fossem do cenóbio, assim como de fazerem doces, sobretudo entre o advento e o dia de Reis, segundo a visita de 164215. Esta última proibição foi levantada na visita de 1649, por se verificar que a assistência ao coro era assídua. A aceitação de moças leigas para se criarem no convento também estava proibida. Na visita de 1614, a questão relacionada com a comunicação voltou a figurar nas recomendações deixadas. Alertou-se para a necessidade de se guardar o silêncio nos dormitórios, reafirmou-se a proibição de se falar com homens que não fossem pais nem irmãos, e contrariou- -se uma das determinações da visita anterior. Ou seja, as conversas na portaria, ainda que estabelecidas com elementos femininos, eram agora proibidas. Porém, na visita seguinte, em 1625, as “conversas na roda”, desde que fossem sobre negócios do convento, eram permitidas mas, em 1628 proibiu-se essa situação, sobretudo nos dias em que o Santíssimo Sacramento estivesse exposto. Em 1639, acrescentou-se a

Leia-se para este assunto Nuria Salazar Simaro, op. cit., p. 193. Consulte-se Rosa Mário, “A religiosa”, in Rosário Villari (dir.), O Homem do Barroco, Lisboa, Ed. Presença, 1994, p. 182. 15 Consulte-se para este assunto Ricardo Silva, “Os caminhos da devoção: as religiosas do convento de S. Bento de Barcelos na segunda metade do século XVIII”, in IV Congresso Histórico de Guimarães, Do Absolutismo ao Liberalismo, Braga, Câmara Municipal de Guimarães, 2009, pp. 563-581. 13 14

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estas disposições que não se falasse na grade, a não ser com pais e irmãos, e nunca durante os ofícios divinos. As inúmeras exortações relativas a esta questão deixam transparecer a ausência de uma linha condutora de actuação, revelando ambiguidade e falta de determinação na postura dos visitadores, ora permitindo, ora proibindo aquilo que tinham autorizado, pelo que poderá estar na origem da violação do silêncio, proporcionada por esta ambivalência. O carácter recorrente com que foram feitas as advertências sobre este assunto permite concluir que a cada determinação produzida pelo visitador, as religiosas procuravam contorná-la, criando a cada momento um conjunto de novas situações que só eram acauteladas nas visitas sucessivas. Associado ao isolamento a que estavam sujeitas ao nível da interacção, muitas outras determinações procuravam evitar o contacto físico e visual com pessoas exteriores à clausura. A entrada no cenóbio estava proibida a qualquer elemento exterior à comunidade, à excepção do médico e do confessor16. Os prelados alertavam, por isso, para a obrigatoriedade de se manterem as portas fechadas, nomeadamente durante a noite. Abrir-se-iam apenas para permitir a entrada daquilo que não podia ser entregue através da roda. A porteira era a responsável pelas chaves, que as entregaria à abadessa ao pôr-do-sol, e esta estava encarregada da abertura da porta durante a noite, acompanhada da oficial da chave ou, na impossibilidade de o fazer, a madre prioresa com a dita oficial. Daí que estes cargos fossem de extrema responsabilidade, geralmente atribuídos as freiras mais velhas, habituadas aos rigores da clausura, com uma postura muito mais disciplinada e suficientemente conscientes das suas obrigações e dos perigos que corriam caso não respeitassem o que estava determinado.

Consulte-se para este assunto Robert Lemoine, Le monde des religieux. L’époque Moderne (1563-1789), Tomo XV, vol. II, Paris, Éditions Cujas, 1976, p. 254. Artur Teodoro de Matos, “Vivências, comportamentos e percursos das recolhidas de Santa Bárbara de Ponta Delgada nos séculos XVII a XX. Contributos para uma monografia”, in Actas do Colóquio Comemorativo dos 450 Anos da Cidade de Ponta Delgada, Ponta Delgada, 1999, pp. 141-152. 16

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As condições materiais do convento eram essenciais para garantirem a clausura. Nesse sentido, a necessidade de se reformar a cerca, não só para que se tapassem os buracos neles existentes, mas também para que se aumentasse a sua altura, de modo a evitar a entrada de pessoas indesejadas, foi outra das recomendações da visita de 1623. Os visitadores deveriam, portanto, actuar de forma a garantir que as condições materiais contribuíssem para a preservação da condição das religiosas. De forma a assegurar de maneira mais evidente a clausura, as próprias criadas estavam sujeitas a estas determinações, não podendo as de dentro sair, nem as de fora entrar. Mesmo os confessores e os médicos deveriam executar os seus serviços de forma rápida, não se demorando muito no seu interior, evitando-se assim quer a ocorrência de intimidades, quer a possibilidade de conhecimento por parte das religiosas das notícias sobre a vida no século que a conversação poderia ocasionar. Este isolamento asseguraria a preservação da honra das recolhidas, evitando o contacto com as pessoas do século. A proibição desta ligação procurava manter a sua integridade moral, evitando a possibilidade da ocorrência de encontros sexuais, mas também o afastamento das vivências mundanas que representariam o pecado em que viviam muitos dos seculares. Dessa forma, a reclusão permitiria o ambiente necessário para a contemplação, porque se procurava criar um espaço de perfeição ao nível dos comportamentos, necessário para o aperfeiçoamento espiritual17. Ouvir os ruídos produzidos pelo século e visualizar as imagens desenhadas pela sociedade constituíam, segundo a mentalidade da época, dois grandes factores incompatíveis com a vida religiosa. Não obstante todas estas proibições, a visita de 1628 deixa perce­ ber que algumas religiosas conseguiam estabelecer conversações com o exterior, através da torre do sino, comportamento que volta a ser condenado em 1639, proibindo-se que se falasse do miradouro. Em 1642 o visitador dá a conhecer que aquela que frequentasse o mira­ Sobre a importância da clausura para o aperfeiçoamento espiritual consulte-se Leila Mezan Algranti, Honradas e devotas: mulheres da colónia. Condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822, Rio de Janeiro, José Olympo Editora, 1993, p. 191. 17

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douro durante o decorrer dos momentos de culto ficasse privada das grades por três meses. Pelo exposto, parece evidente a necessidade sentida por algumas freiras do contacto, pelo menos visual, com o mundo. O espaço físico em que se movimentavam, a clausura, ter-lhes-á provocado, dia após dia, o sentimento de esquecimento e de desprezo que a sociedade exibira. Olhar para além dos muros que as cercavam, aliviar-lhes-ia o sentimento de renúncia que o mundo parecia evidenciar. A par destas proibições, e procurando evitar o contacto visual com o exterior, em 1623 e 1642 alertou-se para a necessidade de se reformarem as gelosias do dormitório, do miradouro e do coro, disposição que foi alterada em 1649, quando se ordenou que se retirassem as mesmas gelosias para permitir uma melhor arejamento da casa, devido às doenças que ali se contraíam. A complexidade que as normas que regulavam a vida religiosa atingiram, terão estado na origem destas incongruências relativas às disposições emanadas pelas sucessivas visitas. A modéstia era outra das atitudes que se exigia às religiosas. Come­ çando pela obrigatoriedade do uso dos trajes, que deveriam enver­gar em qualquer situação, proibindo-se a posse de quaisquer adornos e desapro­ vando-se o uso de cores pouco honestas, aconselhando-se o roxo, azul, preto e parda. Estavam proibidas de vestir trajes seculares, normalmente usados em representações, actos que também lhes estavam vedados. O uso do hábito anulava a sua individualidade e até o seu estatuto social, procurando criar um ambiente que favorecesse a igualdade, valor necessário à convivência entre todas de forma a proporcionar uma ambiente saudável e o espírito comunitário. A renúncia aos adornos pretendia anular a vontade das religiosas relativa aos bens materiais que deveriam ser substituídos pelos bens espirituais, marcando o seu desprendimento do século e o abraçar da religião18.

Leia-se para este assunto Arturo Morgado García, “Los conventos de monjas concepcionistas en el Cádiz del siglo XVIII”, in La Ordem Concepcionista. Actas del I Congreso Internacional, vol. I, León, Universidad de León, 1990, pp. 299-311. 18

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O próprio edifício não deveria ser ornamentado, a não ser o altar por ocasião da festa do santo que ele representava. Neste caso, os adornos procuravam estar ao serviço do culto do santo evocado, como forma de melhor lhe prestar culto. Os enfeites funcionavam como um mecanismo de expressão da fé e do zelo da devoção, por parte de quem o enfeitava. As questões relacionadas com a conduta das religiosas estão presentes, ainda que implicitamente, em todas estas determinações que foram produzidas para regular o seu modo de actuar segundo os preceitos religiosos e os valores da sociedade de então. Porém, algumas delas foram produzidas exclusivamente com essa intenção. Assim, as recomendações relacionadas com a obrigatoriedade da confissão mensal e da comunhão nos actos religiosos, sobretudo no primeiro domingo do mês e nos dias de festa da comunidade, ganham relevo nestes documentos, assim como o conselho relativo à aprendizagem do canto por todas as que tenham voz para melhor servirem o culto divino. A confissão, acto segundo o qual as religiosas assumiam a sua culpa e, através da penitência, reformavam a sua actuação, era um mecanismo muito importante de perfeição espiritual, daí a atenção disponibi­ lizada pelos visitadores. Preocupação semelhante merece a comunhão, pois funcionava como momento de união com Deus. Tendo em consideração que a clausura não era apenas composta pelas religiosas, mas também pelas criadas, em inúmeras visitas se recomenda a atenção para a urgência da atestação dos bons costumes das mesmas. Ignorar este pormenor colocava em causa a reputação e a honra das recolhidas. Procurava-se, portanto, que a clausura fosse um espaço perfeito em todos os sentidos e abrangesse todas as suas habitantes. Além das preocupações relacionadas com a postura individual e colectiva das religiosas, os visitadores procuraram verificar o estado da organização da instituição, querendo contribuir, de alguma forma, para a sua melhoria. Na visita efectuada em 1614 e nas seguintes, recomendou-se à abadessa a constituição de um tombo, essencial para se registarem todas as propriedades do domínio do convento. Essa necessidade justificava-se para melhor controlar o pagamento das rendas por parte daqueles que Número quatro

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trabalhavam as propriedades que lhe pertenciam. Porém, em 1649, o visitador recorda essa urgência e lamenta que o tombo ainda não estivesse organizado. O zelo administrativo da casa, segundo o visitador, não estaria a decorrer nos moldes que seria aconselhável, sugerindo algum desleixo da abadessa neste aspecto. Não obstante, estes documentos seriam objecto de inspecção pelos visitadores, pelo que estes se inteirariam das propriedades e das rendas da instituição, podendo avaliar a sua capacidade financeira. Sabendo nós que os prelados podiam interferir na gestão financeira dos conventos, como veremos de seguida, o desmazelo da abadessa poderá ter sido intencional, funcionando como uma estratégia de contornar a fiscalização das suas contas, cuja acção poderia coarctar a sua relativa autonomia e controlar os actos da comunidade de uma forma mais efectiva19. E para verificar de uma forma mais eficaz as somas que eram devidas ao convento, a comunidade deveria organizar um rol as respectivas prestações em atraso, cabendo ao feitor da casa a obrigação de cobrar as dividas e o respectivo juro. Na visita de 1639 chegou-se a recomendar que não se pagasse ao feitor enquanto este não apresentasse as contas a que estava obrigado, tendo em conta o descuido que ultimamente tinha caracterizado a sua actuação, aconselhando-se a abadessa, inclusive, a contratar outro feitor, desde que fosse mais eficiente. Do aprovisionamento financeiro da casa dependia, em certa medida, a estabilidade da vida claustral, uma vez que as deficiências monetárias poderiam pôr em perigo o abastecimento da clausura e, consequentemente se conheceriam períodos de fome, nada propícios ao bem-estar das religiosas. A abadessa deveria organizar uma relação dos gastos das diferentes oficiais para se inteirar do zelo que cada uma dispunha no exercício das 19 Sobre os actos de desobediência por parte das comunidades religiosas femininas aos prelados leia-se Fernando Campo del Pozo, “Monasterios de augustinas en el nuevo reino de Granada y Quito”, in I Congreso Internacional del Monacato Femenino en España, Portugal y America, 1492-1992, Tomo I, León, Universidad de León, 1992, pp. 279-2297.

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suas responsabilidades. Paralelamente, aconselhava-se a organização de um cartório, onde se compilassem todos os documentos que dissessem respeito aos assuntos do cenóbio, de onde só poderiam sair sob decisão tomada em capítulo20. Pelo exposto, podemos concluir que as diversas recomendações visavam facilitar a acção do visitador em futuras acções de fiscalização e controle. Ou seja, aparentemente este cenóbio carecia de alguma organização administrativa, pelo que dificultaria ao oficial a sua tarefa de fiscalização dos actos da comunidade. Portanto, a organização que se recomenda ajudaria, em última instância, a tarefa do visitador. O capítulo funcionava como um acto comunitário que imprimia uma certa democraticidade à comunidade. Os negócios da instituição deveriam ser ali discutidos e aprovados através do voto individual e secreto de cada uma das religiosas que dessa maneira tomavam parte na vida activa da instituição. Afastadas da maior parte dos cargos, sobretudo daqueles que exigiam grandes responsabilidades e dos quais dependia o bom nome da casa e o garante da honra das recolhidas, todas as religiosas eram chamadas a partilhar a responsabilidade nas decisões relacionadas com a gestão do património da instituição. Essa responsabilidade colectiva justificar-se-á, nomeadamente, pelo facto de todas contribuírem para a sua constituição e aquisição, pois todas elas pagavam no momento da entrada no cenóbio com o dote. Esta prestação financeira, destinada a assegurar a sua sobrevivência, era posta a render, dada a juros, em alguns casos, ou era aplicada na compra de propriedades. Portanto, todas eram chamadas a decidir sobre o que lhes pertencia, até porque a entrada no cenóbio marcava a perda da propriedade individual, caso ela existisse, e dava início à constituição da propriedade colectiva da comunidade. As decisões em comunidade eram de tal forma importantes que a falta de alguma das religiosas ao capítulo era castigada.

Consulte-se José Miguel Pereira dos Santos Oliveira, A contabilidade do Mosteiro de Arouca: 1786-1825, Maia, RIRSMA, 2005, p. 81. 20

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As preocupações financeiras justificaram um outro tipo de atenção, relacionada com a provisão de um conjunto de receitas indispensáveis à sua manutenção. Com esse objectivo, proíbe-se a entrada de noviças sem a atribuição da prestação para os alimentos, assim como se interditava a profissão sem que o pagamento do dote estivesse completo, não se podendo aceitar freira sem ele21. Por essa razão, exorta-se para a criação de um livro onde se registaria a data da entrada da noviça, para melhor controlar a altura em que esta deveria satisfazer o dote. Mereceu, ainda, a limitação do número de 30 freiras a admitir no convento, uma vez que este não tinha capacidade financeira para albergar mais do que esse quantitativo. A comunidade estava proibida de fazer obras na instituição que ultrapassasse o montante de 8 000 réis sem autorização do arcebispo, do mesmo modo que não podia vender, dar, trocar ou emprestar quais­ quer bens do convento, sobretudo os paramentos e as alfaias litúrgicas, pois costumavam ser devolvidas em mau estado, acarretando uma despesa suplementar a sua reparação. Os próprios vencimentos daqueles que prestavam os mais diversos serviços à comunidade eram tabelados pelo prelado, podendo este autorizar o aumento da sua remuneração assim como do montante a atribuir a cada religiosa para a alimentação de cada semana quando as contas da instituição estivessem equilibradas e as suas receitas fossem mais abundantes, como aconteceu em 1646. Este facto reforça a nossa convicção manifestada anteriormente, relativa à necessidade sentida pelo visitador quanto ao conhecimento do estado financeiro da instituição através dos diversos documentos que pretendeu ver organizados para, de uma forma mais eficaz, tomar determinadas decisões. Como ficou evidente, a acção do prelado em relação às questões financeiras teve um carácter bastante amplo, começando pelas recomen­­ dações relativas à captação de receitas, passando pela aplicação das O dote era composto por 300 000 réis, mais as peças para a sacristia e para a enfermaria. Para este assunto leia-se Maria Marta Lobo de Araújo, “Dotes de freiras no mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Braga (século XVII)”, in Noroeste, Revista de História, 1, 2005, pp. 113-136. 21

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mesmas, não esquecendo os aspectos relacionados com as dívidas existentes em relação ao convento, procurando garantir um equilíbrio das contas da instituição. Estas preocupações estão na base da criação de um sistema burocrático gerado pela complexificação que a organização dos cenóbios atingiu. De modo a garantir uma maior seriedade e independência no exercício dos cargos relacionados com a gestão dos bens patrimoniais, as familiares da abadessa não poderiam ser eleitas para os cargos de provisora, escrivã, celeireira, ou outro que se reportasse à gestão da fazenda do convento22. Procurava-se deste modo evitar situações de cumplicidade entre as religiosas ao nível da gestão da casa, acautelando a ocorrência de gestões danosas para o convento. Aliás, noutros momentos da vida da instituição, a redes familiares ali constituídas causaram vários problemas, sobretudo através da captação de benefícios atribuídos pela abadessa a algumas das suas parentes23. O desempenho de diferentes funções dentro da instituição criava uma estrutura hierárquica de dependência, mas também de colaboração entre os seus membros24. Esta hierarquia funcionava em duas instâncias. A primeira entre as religiosas, e a segunda entre estas e as criadas, ao ponto de as últimas deverem obediência às primeiras. Esta hierar­quia chegava a ter reflexos na própria organização espacial da instituição, ao ponto dos dormitórios das religiosas e das criadas serem separados. As visitas e as determinações delas resultantes vigiavam, também, o respeito por essa mesma hierarquia e o zelo emprestado ao desempenho das actividades pelas quais estavam responsáveis. A tendência para favorecer a ocupação de determinados cargos por parte das familiares da abadessa era uma realidade comum, por exemplo, em inúmeros institutos religiosos franceses na Época Moderna. Leia-se para este assunto Robert Lemoine, op. cit. p.216. 23 Veja, para este assunto, Ricardo Silva, “Violar a clausura, romper a castidade”, in Revista Campos Monteiro – história, património, cultura, n.º 3, 2008, pp. 185-201. 24 Leia-se Rosalva Lopez Loreto, “Los espacios de la vida cotidiana en los conventos de calzadas de la cuidad de Puebla 1765-1773”, in I Congreso Internacional del Monacato Femenino en España, Portugal y America, 1492-1992,Tomo I, León, Universidad de León, 1992, pp. 201-216. 22

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Assim, desde logo exortavam a comunidade para a necessidade do respeito pelo mandato trienal das abadessas25. A figura da abadessa, que representava o topo da hierarquia e a quem toda a comunidade devia respeito, era o garante da ordem e da estabilidade da vida em comunidade. Porém, essa situação só se alcançava se a comunidade interiorizasse o verdadeiro espírito de obediência e se a prelada exercesse as suas funções de forma a conquistar a autoridade no seio da comunidade.26 (…) Na obediencia que he hum dos tres votos essentiaes da religião consiste todo o bom governo della pello que exhortamos a todas, e a cada hua das religiosas desse mosteiro que tenhão muita obediência e sobjeição a madre Abadessa e em todo o tempo e lugar, e cada hua das mais offiçiaes no que pettençer a seus officios obedecendolhes com toda a promptidão de animo (…)27. Além das funções administrativas anteriormente expostas, esta figura de topo era a responsável, entre outros aspectos, por dar a conhecer à comunidade, através da realização do capítulo, as disposições produzidas em cada visita e garantir a sua preservação, de modo a poder recordá-las às religiosas sempre que achasse que se desviavam do respeito das normas veiculadas. No seguimento da vigilância do cumprimento destas disposições, deveria também assegurar-se do cumprimento das disposições incluídas na regra que a comunidade professava. A abadessa tinha também o poder de disciplinar a comunidade, cabendo-lhe repreender e punir aquelas que desobedecessem às ordens expressas ou faltassem aos actos de religião ou outros que lhes tivessem sido atribuídos. Os castigos de que dispunha, em geral, resumiamse à privação da refeição durante determinado período. Na ausência Sobre a importância da obediência leia-se Leila Mezan Algranti, op. cit.,

25

p. 199.

26 Sabe-se que, por vezes, a postura das abadessas contribuíram para a perda da autoridade necessária para manter a paz na clausura. Veja-se Ricardo Silva, “Violar a clausura, romper a castidade”, in Revista Campos Monteiro – história, património, cultura, n.º 3, 2008, pp. 185-201. 27 ADB, Visitas e Devassas, 225, fl. 16v.

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da correcção do comportamento de alguma das religiosas, deveria informar as autoridades religiosas para estas procederem de forma mais contundente28. Do exposto fica evidente que a autoridade máxima sobre os destinos da comunidade residia fora dos muros da clausura ao ponto dos arcebispos poderem determinar o ritmo do seu quotidiano. No entanto, e como já ficou exposto, o poder disciplinar dos prelados raramente foi exercido, ficando-se pelas exortações expressas nos autos exarados em cada visita29. Além da obediência à prelada, cujas penitências deveriam ser aceites com humildade, tomando-as como conselhos, deveriam ainda respeito às irmãs mais velhas. A antiguidade era, de facto, um posto dentro da instituição. Os cargos que exigiam mais responsabilidade, como o de porteira, escrivã, mestra das noviças, entre outros, deveriam ser exercidos pelas religiosas mais antigas da casa. A tomada dos lugares nos actos de comunidade deveria, também, respeitar a antiguidade de cada uma, que começava a contar desde o momento da profissão. O mesmo procedimento tinha lugar na tomada das celas das religiosas que faleciam. A primazia das mais antigas funcionaria como um estímulo para as mais novas, na medida em que representava uma recompensa pelo exercício das funções desempenhadas mas, ao mesmo tempo, funcionava como um acto de reconhecimento do valor das suas virtudes, sobretudo quando lhes eram atribuídos cargos de grande responsabilidade, traduzindo-se em exemplos a seguir pelas mais jovens30.

Idem. Conhece-se, no entanto, para o ano de 1604 a acção disciplinadora do arcebispo, aquando da devassa a que o convento foi sujeito. Este facto leva-nos a indagar sobre a possibilidade da intervenção dos prelados apenas em casos de extrema gravidade. Leia-se Ricardo Silva, “Violar a clausura, romper a castidade”, in Revista Campos Monteiro – história, património, cultura, n.º 3, 2008, pp. 185-201. 30 Porém, as tensões existentes entre as diferentes gerações representadas no mesmo espaço eram frequentes. Leia-se Adínia Santana Ferreira, A reclusão feminina no convento da soledade: as diversas faces de uma experiência (Salvador-século XVIII), Brasília, 2006, tese de mestrado policopiada, p. 45. 28 29

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Ricardo Silva

Embora a hierarquia da instituição fosse um facto evidente, determi­ nados actos da comunidade revelavam uma procura pela igualdade entre todos os membros, sobretudo quando se trata de decisões que afectam toda a comunidade e, em particular, o seu futuro. Assim, a aceitação de novos membros, ainda que sujeita à aprovação do prelado, era submetida a votação em capítulo, onde as religiosas, através do uso das favas pretas e brancas, expressavam a sua vontade em relação ao assunto, assim como a eleição das oficiais que iriam desempenhar os cargos dentro da clausura. Mas também no que se refere à decisão relativa aos assuntos financeiros do cenóbio se exercia o escrutínio, como ficou anteriormente exposto. Daí que em 1614 o visitador tenha alertado para a necessidade de não se subornar os votos, de forma a garantir um justo processo eleitoral. Por outro lado, às criadas exortava-se que servissem com igualdade, dando o mesmo tratamento a todas as religiosas. Uma outra fonte de preocupações dos visitadores prendeu-se com a assistência à saúde de que as religiosas beneficiavam. Nesse sentido, na visita de 1614, o visitador alertou a abadessa para a necessidade de providenciar o necessário na assistência à doença em relação a todas as religiosas, pois havia a notícia de que assim não se procedia. Por essa razão, na visita de 1623, o visitador ordenou que a abadessa escolhesse uma freira para servir de enfermeira, ficando esta obrigada a tratar as demais com caridade, e uma criada para servir as doentes. Fica, portanto, evidente, que a assistência na doença não carecia só de cuidados médicos, mas também de afecto e compreensão. Estes momentos constituíam excepções ao nível da manifestação de sentimentos dentro da clausura. Muitas outras determinações foram produzidas por estes instru­ mentos com carácter menos incisivo, ainda que tenham contribuído para marcar o ritmo de vida das recolhidas. Assim, ora se proíbem os braseiros nos dormitórios no Inverno e a abertura das suas portas até mais tarde no Verão, ora se permite que os braseiros sejam feitos para aquecer aquelas dependências e se possibilite a abertura das portas dos dormitórios até mais tarde no Verão para se refrescarem. Também se exortava o capelão a verificar o nome das pessoas que deixavam missas instituídas no convento e satisfazer esses legados, devendo rezar pelas 308

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religiosas defuntas da casa aos domingos e nos dias em que não estivessem instituídas missas em honra de outras almas 31. A partir da visitação de 1625, assiste-se, com recorrência, à chamada de atenção para a necessidade de se cumprirem as determinações das visitas passadas. Este facto deixa transparecer que os visitadores tinham consciência que muitas das disposições não eram respeitadas pelas religiosas. Das disposições emanadas pelos actos visitacionais podemos indagar o quotidiano claustral, segundo os princípios comungados pelas autoridades religiosas, e o modo como as religiosas o entenderam e executaram. Os pontos de vista destes dois agentes nem sempre coincidiram, conhecendo-se momentos de ruptura e de incumprimento das determinações prescritas. Portanto, as vivências das religiosas pautaram-se, em certa medida, entre os princípios vigentes nas regras que regiam os seus institutos e a vontade sentida pela comunidade de não se sujeitar ao jugo controlador e asfixiante dos barões eclesiásticos. Os vigários dos prelados imiscuíram-se em todos os aspectos do quotidiano dos cenóbios. As decisões tomadas deixam transparecer o carácter prescritivo das mesmas e o autoritarismo que as autoridades desempenharam, na ânsia de levar a cabo os preceitos tridentinos. Contudo, estes autos revelam que a actuação destes oficiais nem sempre se pautou pela coerência das disposições produzidas, pelo que terão provocado, certamente, no seio da comunidade, o sentimento da falta de determinação dos prelados em vigiar de uma forma efectiva os seus comportamentos, constituindo as visitas um processo rotineiro, meramente burocrático, cuja principal mais valia foi transmitir à posteridade alguns dos aspectos do interior daqueles institutos. Por outro lado, o espaço temporal que medeia as diferentes visitas a que estavam sujeitas, terá suavizado a vontade controladora das suas posturas.

Leia-se para este assunto Ricardo Silva, “A assistência à alma no convento de Nossa Senhora dos Remédios de Braga nos finais do Antigo Regime”, no prelo. 31

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Portanto, entre a determinação que certamente povoava o espírito dos prelados em exercer a sua vigilância em relação a estes institutos e a verdadeira actuação dos mesmos, poderá estar a origem de muitas das infracções cometidas. O modelo visitacional não era, desde logo, favorável à actuação das autoridades eclesiásticas. Neste caso em concreto, das dez visitas que na primeira metade do século XVII o convento do Espírito Santo de Murça recebeu, apenas duas delas foram realizadas pelo mesmo visitador, não sendo, porém, sucessivas, ou seja, uma delas ocorreu em 1625 e a outra em 1642. A mudança constante de visitador, ainda que estes pudessem ser conhecedores das determinações produzidas na visita anterior, não favorecia a acção destes oficiais no que se refere ao zelo relativo à reforma dos costumes da comunidade. De certa maneira, esta rotatividade não responsabilizava ninguém em concreto pelo estado de laxismo que por vezes se conheceu nos cenóbios. Por outro lado, a complexificação da vida conventual, provocada pelo número crescente de religiosas e de institutos religiosos existentes, assim como a complexificação da sua organização administrativa, poderá explicar a ineficácia de muitas das determinações produzidas. O carácter normativo e vigilante que a acção das religiosas mereceu, conheceu contornos muito contundentes, pelo que as infracções às mes­ mas não seriam difíceis de ocorrer dado o cerco a que estavam sujeitas. Portanto, a ineficácia destes dispositivos terá origem em si mesmo, ou seja, na sua concepção e no seu próprio modelo de actuação. Bibliografia ALGRANTI, Leila Mezan, Honradas e devotas: mulheres da colónia. Condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822, Rio de Janeiro, José Olympo Editora, 1993. ARAÚJO, Maria Marta Lobo de, “Dotes de freiras no mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Braga (século XVII)”, Noroeste, Revista de História, 1, 2005, pp. 113-136. FRUTOS, Isabel Arenas, Dos arzobispos de México – Lorenzana y Núñez de Haro – ante la reforma conventual femenina (1766-1775), Universidad de León, 2004. 310

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Incursões pelo quotidiano de uma comunidade religiosa feminina POZO, Fernando Campo del, “Monasterios de augustinas en el nuevo reino de Granada y Quito”, in I Congreso Internacional del Monacato Femenino en España, Portugal y America, 1492-1992, Tomo I, León, Universidad de León, 1992, pp. 279-2297. FERREIRA, Adínia Santana, A reclusão feminina no convento da soledade: as diversas faces de uma experiência (Salvador-século XVIII), Brasília, 2006, tese de mestrado policopiada. LEMOINE, Robert, Le monde des religieux. L’époque Moderne (1563-1789), Tomo XV, Vol. II, Paris, Éditions Cujas, 1976. LOPES, Maria Antónia, “Repressão de comportamentos femininos numa comunidade de mulheres – uma luta perdida no recolhimento da Misericórdia de Coimbra (1702-1743)”, in Revista Portuguesa de História, Tomo XXXVII, 2005, pp. 189-229. LOPEZ, Rosalva, “Los espacios de la vida cotidiana en los conventos de calzadas de la cuidad de Puebla 1765-1773”, in I Congreso Internacional del Monacato Femenino en España, Portugal y America, 1492-1992, Tomo I, León, Universidad de León, 1992, pp. 201-216. MATOS, Artur Teodoro de, “Virtudes e pecados das freiras do Convento da Glória da Ilha do Faial (1675-1812): uma devassa à sua intimidade”, in O Faial e a Periferia Açoriana nos Séculos XV a XX, Actas do Colóquio, Ilhas do Faial e a S. Jorge, 12 a 15 de Maio de 1997, pp. 155-170. MATOS, Artur Teodoro de, “Vivências, comportamentos e percursos das recolhidas de Santa Bárbara de Ponta Delgada nos séculos XVII a XX. Contributos para uma monografia”, in Actas do Colóquio Comemorativo dos 450 Anos da Cidade de Ponta Delgada, Ponta Delgada, 1999, pp. 141-152. GARCÍA, Arturo Morgado, “Los conventos de monjas concepcionistas en el Cádiz del siglo XVIII”, in La Ordem Concepcionista. Actas del I Congreso Internacional, vol. I, León, Universidad de León, 1990, pp. 299-311. OLIVEIRA, José Miguel Pereira dos Santos, A contabilidade do Mosteiro de Arouca: 1786-1825, Maia, RIRSMA, 2005. ROSA, Mário, “A religiosa”, in Villari, Rosário (dir.), O Homem do Barroco, Lisboa, Ed. Presença, 1994. SALAZAR, Nuria Simaro, “Monjas y benefactores”, in Ramos Medina, Manuel (coor.), El Monacato Femenino en el Imperio Español. Monasterios, beaterios, recogimientos y colégios, Centro de Estudios de Historia de México, 1995, pp. 193-212. SILVA, Ricardo, “Violar a clausura, romper a castidade”, in Revista Campos Monteiro – história, património, cultura, n.º 3, 2008, pp. 185-201. SILVA, Ricardo, “Os caminhos da devoção: as religiosas do convento de S. Bento de Barcelos na segunda metade do século XVIII”, in IV Congresso Histórico de Número quatro

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Ricardo Silva Guimarães, Do Absolutismo ao Liberalismo, Braga, Câmara Municipal de Guimarães, 2009, pp. 563-581. SILVA, Ricardo, “A assistência à alma no convento de Nossa Senhora dos Remédios de Braga nos finais do Antigo Regime”, no prelo. SOARES, Franquelim Neiva, “Aspectos da vida sócio-religiosa da Comarca de Moncorvo nos últimos séculos da administração Bracarense. O desmembra­ mento desta Comarca da Diocese de Braga e a renúncia do Arcebispo”, in Brigantia, vol. II, n.º 1, 1982, pp. 5-24. SOARES, Franquelim Neiva, “As visitas pastorais – Mecanismos institucionais da Arquidiocese de Braga durante o Antigo Regime”, in Arqueologia do Estado, pp. 781-798.

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Tráfico de seres humanos 1

Sónia Diz Rodrigues *

Estima-se em cerca de meio milhão, o número de mulheres de crianças que são traficadas anualmente para a União Europeia para exploração sexual. Conselho da Europa

Tráfico de seres humanos: definição do conceito Falar de tráfico é falar de um negócio fraudulento, de comércio proibido e ilegítimo. O tráfico viola os direitos humanos pelo abuso do poder relativamente à vulnerabilidade do “outro”. É um “mal” que não conhece fronteiras e que se encontra em franca expansão representando, actualmente, a terceira fonte mundial de rendimentos ilegais, logo a seguir ao tráfico de armas e droga. O tráfico de seres humanos implica, sempre, acção, meios e um objectivo. A acção diz respeito ao recrutamento, transporte, tranferência e recepção de pessoas, enquanto que os meios estão relacionados com o engano, a fraude, o uso da força e de formas de coerção entre uma posição de poder e outra de vulnerabilidade. O objectivo desta prática é a exploração das vítimas.

Socióloga; responsável pelo CLAII (Centro Local de Apoio à Integração dos Imigrantes), Cruz Vermelha Portuguesa, Braga. *

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Segundo dados recentes da Organização das Nações Unidas, cerca de 2,5 milhões e pessoas em todo o mundo são, anualmente, vítimas de tráfico humano e das suas diversificadas formas de exploração. A Convenção do Conselho da Europa contra o tráfico de seres humanos, assinada em Varsóvia em 2005, constitui um marco importante na luta contra este fenómeno, pois é o primeiro documento internacional que contém uma definição de vítima de tráfico com uma acentuada relevância na questão dos direitos humanos e prevê, ainda, a assistência às vítimas nos mais diversos aspectos, como saúde, representação jurídica e serviços de tradução. No seu artigo 4º, pode ler-se: a) Tráfico de seres humanos significa o recrutamento, transporte, abrigo e recolha de pessoas através da ameaça, uso da força ou de outras formas de coerção, fraude e decepção, pelo abuso do poder e à custa da vulnerabilidade da própria pessoa, devido ao pagamento de remuneração e/ou de outros benefícios para obter o seu consentimento com a finalidade da exploração sexual. A exploração inclui, no mínimo, a exploração advinda da prostituição de alguém e/ou de outras formas de exploração sexual, trabalho e/ou serviços forçados, escravatura ou práticas semelhantes à escravatura, servidão e tráfico de órgãos humanos. b) O consentimento de uma vítima de tráfico em face da exploração em vista, tal como considerada na alínea a) do presente artigo, é irrelevante, desde que qualquer das formas referidas tenha sido utilizada2. A definição de tráfico de seres humanos surge, ainda neste artigo, em sentido lato, o que permite abranger todas as formas de exploração (para fins sexuais, trabalho forçado e outros), bem como todo o processo do tráfico que se estende a todos os intervenientes (entre traficante, transportadores ou quem aloja as vítimas).

Convenção do Conselho da Europa relativa à Luta Contra o Tráfico de Seres Humanos, Council of Europe, Treaty Series, n.º 197. Site:http://www.coe.int/t/dg2/ trafficking/campaign/Source/PDF_Conv197_Portuguese.pdf. 2

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Apesar de o documento não ter sido ratificado pelos 47 países membros do Conselho da Europa, a Declaração entrou em vigor em 1 de Fevereiro de 2008 e representa, hoje, um instrumento mais eficaz na luta contra formas de escravidão modernas (…) um marco dentro dos esforços da Europa para bloquear esta situação escandalosa.3 Este documento prevê, também, reforçar a cooperação internacional na investigação e detenção de traficantes, a criação de um sistema de monitorização permanente entre os países e a sua aplicação a todas as vítimas de tráfico de seres humanos, devendo, para tal, ter presente e obedecer ao princípio da não discriminação. Portugal, através da Resolução n.º 1/2008, da Assembleia da Repú­ blica, aprovou a Convenção em 16 de Maio de 2005. De referir que exigia a ratificação por dez países para poder entrar em vigor, sendo que oito teriam de ser membros do Conselho da Europa. Um aspecto importante a ter em conta prende-se com a diferença entre o conceito de tráfico de seres humanos e o auxílio à imigração ilegal ou smuggling. Ambos os fenómenos se relacionam com a imigração ilegal tendo em vista a obtenção de lucro.Tem-se procurado, quer ao nível dos estudos sobre a temática da imigração, quer ao nível dos documentos internacionais, fazer uma distinção entre estes dois fenómenos de imigração irregular, atendendo a que o tráfico de seres humanos ultrapassa problemas de controlo de fronteiras e é uma sistemática forma de violação dos direitos humanos. Arononowitz4 faz as seguintes distinções entre os dois fenómenos: – no tráfico podemos encontrar coação, engano e até rapto; as pessoas traficadas são, em grande parte das situações, exploradas; conhecem a dependência em relação aos traficantes logo no pagamento da viagem, Terry Davis, ex - Presidente do Conselho da Europa. Declarações publicadas pela Agência Lusa em 2 de Fevereiro de 2008. 4 Cf. Boaventura de Sousa Santos et al., Tráfico de mulheres em Portugal para fins de exploração sexual, Execução Gráfica, Porto, Clássica – Artes Gráficas, 2008, p. 165. 3

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paga com uma percentagem inicial saldando-se o restante à chegada; esta dependência pode continuar nos países de destino; – o smuggling refere-se, apenas, a uma forma de facilitar a passagem no controlo das fronteiras e, no país de destino, a pessoa é livre de gerir a sua vida não ficando presa a redes; as pessoas que recorrem ao sumggling fazem-no de uma forma voluntária; os contactos com os traficantes verificam-se, apenas, no momento do pagamento da viagem, à partida. Em ambas as modalidades as pessoas traficadas podem vir a ser cooptadas para a prática de outras actividades criminosas, nomeadamente, no recrutamento de novas vítimas. Convém registar que algumas situações de smuggling, pese embora uma posição de aceitação por parte do imigrante, se transformam em tráfico quando os imigrantes entram no país em vista e se vêem envolvidos em redes de exploração por parte dos traficantes. Para Aronow 5, só quando uma pessoa chega ao destino é que, efectivamente, ficará a saber se é ou não vítima de tráfico. A fronteira entre os dois conceitos é, por vezes, dificil de perceber. No entanto, parece existir entre diferentes autores unanimidade relativamente à sua primordial distinção: o uso de meios involuntários está claramente ligado aos processos de tráfico, o smuggling associa-se ao auxílio da imigração ilegal e, neste processo, as pessoas acolhem as condições de pagamento e de viagem. Por último, parece-nos importante fazer uma referência ao tráfico enquanto processo e não apenas como um conjunto de casos isolados. Apesar de o tráfico de seres humanos retratar situações particulares não deve ser visto segundo um prisma de ofensas únicas. Cada pessoa envolvida apresenta aspectos particulares (pessoas diferentes, rotas distintas e expectativas diversas), mas existem, também, aspectos comuns inerentes ao recrutamento, transporte de pessoas, controlo e exploração 5

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Idem, p.19. Revista Campos Monteiro


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da vítima e “lavagem” do dinheiro que resulta dessa exploração. Este entendimento do tráfico como um processo permite ajudar a investigação criminal no combate ao tráfico e desmantelamento de redes. As vítimas do tráfico de seres humanos As mulheres e as crianças representam o maior número de pessoas traficadas. Desde 1930, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) proíbe toda e qualquer forma de trabalho forçado ou obrigatório. Contudo, segundo estimativas da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), as crianças representam mais de 30% do tráfico de seres humanos no mundo, estimando-se que 1,2 milhões de crianças são vendidas anualmente para a mão-de-obra na agricultura, minas ou para a exploração sexual. As mulheres são, hoje, aproximadamente, metade dos migrantes a nível mundial. Segundo o relatório do Banco Mundial, de 2007, entre 1960 e 2005 a percentagem de mulheres migrantes aumentou de 46,7% para 49,6%, o que traduz um total de 95 milhões de mulheres. Esta feminização das migrações está relacionada com a nova economia global, com as transformações sociais e com a própria reorganização do trabalho que se encontra sujeito a mutações cada vez mais rápidas face às exigências dos mercados. As mulheres passaram a deslocar-se sozinhas, não só na procura de empregos tradicionalmente femininos (trabalho doméstico, limpezas, prestação de cuidados a idosos, enfermagem e indústria do sexo entre outros) mas, também, porque gradualmente ganharam consciência de si enquanto pessoas portadoras de direitos e deveres, procurando esse exercício de cidadania fora de sociedades que as limitam na sua vontade de emancipação. Novos grupos de mulheres migrantes emergem, incluindo jovens solteiras e mulheres chefes de família que se movem na procura de melhores oportunidades de vida para si e para os seus familiares. Número quatro

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Em todas as etapas do percurso migratório, as mulheres estão particularmente vulneráveis à violência, à exploração e à discriminação. Os empregos por elas ocupados são, na maior parte dos casos, os mais precários e fora dos sistemas de protecção previstos pelas legislações nacionais. Comparativamente com os imigrantes masculinos, as trabalha­ doras migrantes são, de forma mais frequente, vítimas de explo­ração, nomeadamente pelo tipo de empregos que ocupam (em especial no trabalho doméstico). Muitas destas mulheres estão expostas à violência, condições de trabalho precárias e, cada vez mais, ao comércio do sexo. Outras formas de exploração prendem-se com o trabalho forçado na agricultura e nas indústrias manufactureiras. O tráfico de mulheres para casamentos forçados está também a aumentar, concretamente na Ásia, (Tailândia e Coreia do Sul)6. Em muitos países, as atitudes negativas relativamente a divorciadas, viúvas, sem filhos e solteiras, apesar do número crescente das que, hoje, têm acesso à educação e uma maior consciência dos seus direitos, constituem incentivos para que, independentemente daqueles factores, procurem emprego e novas experiências no estrangeiro. Trata-se de uma tentativa de ganhar independência e autonomia em países terceiros. Muitas vezes, as mulheres sujeitam-se a redes de auxílio à imigração ilegal por oferecerem meios mais baratos e, supostamente, mais seguros para chegarem aos países de destino, que seleccionam em função das oportunidades de trabalho. Embora tenham alcançado uma significativa emancipação quanto às questões migratórias e aos mercados de trabalho, formais e informais, é importante ter em linha de conta que elas são as principais vítimas do tráfico de seres humanos. De acordo com o plano nacional de luta contra este tráfico, entre os grupos que apresentam uma maior vulnerabilidade a tornarem-se vítimas de tráfico (…) as mulheres (…) estão mais expostas a situações de exploração sexual e laboral. De facto, a pobreza tem um rosto

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marcadamente feminino o que revela a fragilidade das mulheres no mundo actual do trabalho7. As crianças apresentam-se também como um grupo mais vulnerável, sendo esta realidade um atentado ao direito inalienável de crescer num ambiente protegido e acolhedor e de ser livre de qualquer forma de abuso e/ou exploração8. Concluímos que o tráfico não é indiferente às populações mais frágeis, “alimentando-se” da pobreza, da exclusão e das desigualdades sociais. Medidas da União Europeia no combate ao Tráfico de Seres Humanos Temos assistido, no contexto da União Europeia, ao desenvolvi­ mento de acções em função da protecção dos grupos mais vulneráveis a este tipo de tráfico: as mulheres e as crianças. A União Europeia, através de directivas e regulamentos comunitários, pretende não só proteger as vítimas como, também, promover meios de prevenção e luta contra este fenómeno, especificamente pelo reforço da cooperação e coordenação das autoridades judiciais e policiais dos Estados Membros. Ao nível regional, tem vindo a apelar aos países que a integram maiores esforços na promoção de iniciativas e acções regionais que incentivem a cooperação à escala europeia. Introduziu, neste sentido, 7 A pobreza estrutural tende a incidir mais intensamente nas mulheres por várias vias: o desemprego afecta, em primeira linha, as mulheres; são as mulheres as mais atingidas pelo trabalho precário, muitas vezes sem qualquer tipo de regulamentação laboral e sem direito a qualquer benefício (…) para a realização da mesma tarefa, as mulheres recebem salários menores do que os homens; são protagonistas do trabalho familiar não remunerado (…) continuam a ser as bases das redes sociais de apoio não-estatais, tendo a seu cargo vários dependentes. Cf. Boaventura Sousa Santos, et al., op. cit., p.165. 8 Comissão para a Igualdade de Género, Plano Nacional Contra o Tráfico de Seres Humanos (2007-2010), Lisboa, Presidência do Conselho de Ministros, 2008, p.16.

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disposições comuns relacionadas com sanções, criminalização e com circunstâncias agravadas nas questões de tráfico. Paralelamente, verifica- -se uma crescente preocupação na protecção das vítimas e na possibilidade destas poderem vir a ter um estatuto de residência legal, caso decidam colaborar com a justiça. Desde a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950, que questões relacionadas com o tráfico de pessoas têm estado presentes na agenda do Conselho da Europa. Esta preocupação ganha crescente atenção e interesse na aprovação de diversas recomendações ligadas a este fenómeno. De referir que o tráfico de seres humanos passou a constituir uma prioridade na agenda política da União Europeia, no que toca ao domínio da justiça e dos assuntos internos, em 1996. Neste ano, teve lugar a primeira Comunicação ao Conselho e ao Parlamento Europeu sobre o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. Desde esta data, foram criados vários instrumentos legislativos no que toca a este fenómeno criminal. Em 2005, com a Convenção sobre a luta contra o tráfico de seres humanos9, incidiu-se na importância de se estabelecer um consenso nos vários instrumentos legislativos de combate ao tráfico. Também a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa tem desempenhado um papel muito importante, nomeadamente, através do Plano de Acção para Combater o Tráfico de Seres Humanos10, em que o principal objectivo é assegurar aos Estados-Parte meios para que estes possam dar resposta às suas obrigações no combate ao fenómeno do tráfico.

Nesta Convenção, a definição de tráfico de seres humanos corresponde àquela que foi prevista no Protocolo de Palermo: Significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou outras formas de coação, rapto, à fraude, ao engano ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração, in Protocolo de Palermo, Decreto n.º 5 017, de 12 de Março de 2000. 10 Decisão n.º 557, de Julho de 2003. 9

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Referimos, por fim, que, em Outubro de 2007, durante a presi­ dência portuguesa da União Europeia, teve lugar na cidade do Porto a Conferência sobre tráfico de seres humanos e género, na qual se apelou ao Conselho, à Comissão e aos Estados-Membros o desenvolvimento e implementação de medidas subjacentes à prevenção e luta contra este fenómeno. De entre as recomendações feitas, podemos destacar: – a criação de (…) mecanismos comuns de referência europeus que permi­ tam monitorizar o tráfico de seres humanos nas vertentes do conhecimento do fenómeno, da prevenção, identificação e reintegração das vítimas de tráfico de seres humanos; de uma linha telefónica de emergência europeia com um número comum, que permita a potenciais vítimas receberem apoio e informação imediata; – o desenvolvimento de campanhas de sensibilização (…) identi­ ficando claramente os grupos mais vulneráveis e os métodos e actividades associados, de forma a abranger todas as etapas deste processo, prevenção, identificação, repressão, integração e retorno das vítimas de tráfico; – a promoção e implementação de (…) estratégias na área da prevenção, levando em consideração a perspectiva de género e todas as formas de discriminação e violência contra as mulheres, combatendo os estereótipos associados e desenvolvendo estratégias de acesso efectivo das mulheres ao mercado laboral; – a implementação de uma abordagem coordenada ao nível nacional e internacional para uma acção e intervenção multidisciplinar (social, administrativa, judicial, das forças policiais, dos serviços de imigração e de organizações não governamentais); – a promoção de esforços (…) para que seja dado aos nacionais de países terceiros, vítimas de tráfico de seres humanos, um prazo de reflexão que lhes permita recuperar e escapar à influência dos autores das infracções, de modo a poderem tomar uma decisão informada sobre se cooperam ou Número quatro

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não com as autoridades competentes, conforme o quadro legal estabelecido na Directiva 2004/81/CE, de 29 de Abril de 2004; – o desenvolvimento (…) de medidas de protecção e apoio às vítimas numa óptica de direitos humanos, quer numa perspectiva de integração nos seus países de acolhimento, como no possibilitar o regresso em segurança aos seus países de origem, tendo em conta em especial as necessidades dos grupos mais vulneráveis como mulheres e crianças.11 Exemplos de boas práticas no combate ao Tráfico de Seres Humanos em Portugal • Projecto CAIM Em Portugal, o combate ao tráfico de seres humanos tem vindo a merecer mais atenção por parte do governo que lançou o primeiro plano de acção no combate ao tráfico de mulheres, com o projecto CAIM (Cooperação, Acção, Investigação e Mundivisão) que integra a Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres (CIDM), o Ministério da Administração Interna, o Ministério da Justiça, o Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e o Espaço Pessoa (centro de apoio a prostitutas e prostitutos) da Associação para o Planeamento da Família (APF). Trata-se de um projecto que visa o estudo das características e dinâmicas do tráfico, atendendo também ao desenvolvimento de acções de sensibilização para o fenómeno, reflectindo nas respostas e nos recursos materiais e humanos no seu combate.

Eclesia – http://www.portal.ecclesia.pt/instituicao/pub/23/noticia. asp?jornalid=23&noticiaid=32534 11

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Os princípios e boas práticas, que o projecto tem vindo a procurar implementar, prendem-se com a protecção dos direitos das vítimas de tráfico, e com a criação e a acessibilidade dos serviços de apoio12. Os serviços de apoio e protecção devem ser acessíveis a todas as categorias de tráfico. Por outro lado, os mecanismos de protecção das vítimas devem incluir serviços especializados, de acordo com as necessidades de cada pessoa, e estarem solidamente alicerçados na defesa dos Direitos Humanos. Este projecto tem o financiamento da Iniciativa Comunitária EQUAL e constituiu um projecto-piloto na área da Prostituição e Tráfico de Mulheres Para Fins de Exploração Sexual (TMPFES). Resultaram, no âmbito da sua Acção 2 (2005-2007), três instrumentos que abarcam os diferentes eixos do fenómeno tráfico de seres humanos: sistema de monitorização; kit de apoio à formação para a prevenção e assistência às vítimas; guião para sinalização, identificação e integração de mulheres vítimas de tráfico para fins de exploração sexual. Ligado à monitorização é desenvolvido um sistema de georeferen­ciação construído em adequação com o perfil do problema, dos seus contextos e agentes de articulação. Quanto ao kit de formação, o objectivo é a sua distribuição entre instituições para que as questões de tráfico possam ser conhecidas e trabalhadas. Os seus conteúdos prendem-se com modalidades de formação experimentadas e tidas como adequadas e necessárias para o conhecimento dos técnicos/agentes que lidam com esta problemática. Por fim, no guião para Sinalização, Identificação e Integração é trabalhada a necessidade da existência de serviços vocacionados para o atendimento e acolhimento de mulheres vítimas de tráfico, de maneira a que os seus direitos fundamentais sejam garantidos.

Linha SOS Imigrante, Linha Nacional de Emergência 144, Focal Point: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Polícia Judiciária, Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana. 12

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Sónia Diz Rodrigues

• I Plano Nacional Contra o Tráfico de Seres Humanos O Governo Português, através da Resolução do Conselho de Minis­ tros n.º 81/2007, criou um Plano Nacional Contra o Tráfico de Seres Humanos e que estipula um conjunto de acções entre 2007 e 2010. Este Plano assenta em quatro áreas estratégicas de intervenção, que são entre si complementares: “conhecer e disseminar”, que visa informar acerca da problemática, com a manutenção de um observatório; “prevenir, sensibilizar e formar” os vários agentes sociais que lidam ou poderão vir a lidar com questões de tráfico; “proteger, apoiar e integrar” as vítimas de tráfico de seres humanos; “investigar criminalmente e reprimir o tráfico”, através dos organismos policiais competentes. Neste Plano está implícita uma visão abrangente e integrada deste fenómeno, visão que parte de uma articulação efectiva entre as instituições públicas e a sociedade civil com intervenção nesta área. Contempla vários mecanismos para melhor conhecer o fenómeno do tráfico de seres humanos: identificação de traços e contornos específicos desta prática, conjunção de procedimentos e disseminação de boas práticas. A operacionalização do Plano está a cargo de uma Comissão Técnica de Apoio e Coordenação do Plano que é constituída por representantes dos agentes do Estado com responsabilidades nestas questões: Ministério dos Negócios Estrangeiros, Ministério da Justiça, Ministério do Trabalho e da Segurança Social e Ministério da Administração Interna. Considerações finais O tráfico de seres humanos é um crime de escala universal e que afecta essencialmente mulheres e crianças. Trata-se de um negócio altamente rentável e explora sem escrúpulos as suas vítimas em regime de escravatura. É um “negócio” imoral que atenta contra os direitos fundamentais dos seres humanos e que estabelece o terror nas suas vítimas privando-as de liberdade. 324

Revista Campos Monteiro


Tráfico de seres humanos

As redes estão fortemente instituídas em todo o mundo e afectam os países de origem, de trânsito e de destino. São redes de difícil desmantelamento pois são muito diversificadas e a cada momento alteram as suas estratégias. O dinheiro envolvido é o principal motor deste negócio que não conhece barreiras físicas ou morais. A luta contra o tráfico resulta numa tarefa difícil, não só pelos argumentos atrás referidos, mas também porque as vítimas têm alguns constrangimentos na denúncia: assumir-se como vítima que esteve sujeita a uma vida em condições sub-humanas, encontrar-se em situação de irregularidade fora do seu país de origem, o medo causado pelo terror vivido e a destruição psicológica, são alguns dos obstáculos à sua colaboração com a justiça. Não podemos esquecer, também, que estas vítimas vivem o pânico das ameaças feitas pelos traficantes relativamente aos familiares que têm nos seus países de origem, responsabilizando-as e chantageando-as do que de mau possa acontecer aos “seus”. Para além da legislação que existe a nível Internacional, daquela produzida pela União Europeia e por cada um dos países, torna-se necessário que todos nós estejamos atentos a este fenómeno que pode afectar qualquer pessoa. Para além do suporte jurídico existente e algo frágil é necessário dotar o combate de acções cívicas no dia a dia de cada um de nós. É também necessário lutar contra o preconceito, nomeadamente, quando as vítimas se encontram ligadas à indústria do sexo. Finalizo este trabalho com a confissão de uma de uma vítima de tráfico e que nos leva a concluir o quanto este perigo está próximo de nós: Tinha apenas 15 anos quando deixei a Roménia. Quando fiz 12 anos a minha mãe morreu, o meu pai tornou-se alcoólico, e batia-me a mim e ao meu irmão. Um primo disse-me que me tirava daquela situação para eu ter uma “vida normal”.Vendeu-me como escrava13.

CAIM, Tráfico de Mulheres para Fins de Exploração Sexual, Kit de Apoio à Formação para a Prevenção e Assistência àsVítimas, Porto, 2008, p. 51. 13

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Arqueologia Industrial em Torre de Moncorvo: os Telheiros da Saíça e da Lameira do Lagarto na Lousa 1

Virgílio Tavares*

Introdução O trabalho que agora vem a público, com o título Arqueologia Industrial em Torre de Moncorvo: Os Telheiros da Saíça e da Lameira do Lagarto na Lousa, é o resultado de uma investigação local na freguesia de Lousa, concelho de Torre de Moncorvo, a que se juntaram outros elementos por nós recolhidos ao longo dos anos naquela localidade, na vida profissional, nos diversos arquivos que temos consultado e nas bibliotecas que vamos frequentando. Da leitura atenta que se fizer, pode parecer que é um trabalho limitado e de menor importância dado o carácter espacial e, de certo modo, familiar. Contudo, mesmo tratando-se de um povoado rural interior e transmontano duriense, o tema não perde valor nem carácter relevante, bem pelo contrário, ganha dimensão exemplificativa das muitas indústrias artesanais rústicas ligadas à construção civil e ao homem, que não se podem ignorar, pois dele fizeram parte. Ainda que limitado ao espaço lousense, verificaram-se outras situações idênticas na região e fora dela. É a partir destes confrontos

Professor, Doutor em História; investigador do CEPESE, colaborador da Revista Campos Monteiro. *

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que se faz a história de um povo, que se participa no levantamento da génese e construção da identidade cultural regional. Por tal, congratulamo-nos com a oportunidade de o tornar público através da Revista Campos Monteiro, de o colocar ao serviço de todos, em particular dos investigadores que se interessam pela história regional e local. Este trabalho pretende chamar à atenção para o mundo de infor­ mações sobre a arqueologia industrial que as nossas terras possuem e que se vai perdendo com o tempo. No caso, a arqueologia ligada à actividade artesanal do fabrico da telha portuguesa. Deste modo, regista-se aqui a arte de fazer telha na freguesia de Lousa, que, como a olaria e a telha do Felgar, são exemplos distintos de indústrias artesanais que marcaram uma época, uma sociedade, serviram variadíssimas gerações que viveram em contemporaneidade com aquelas actividades. O período a que nos referimos decorre no século XX, desde o seu início até ao fim do 3.º quartel. Arqueologia Industrial em Torre de Moncorvo: Os Telheiros da Saíça e da Lameira do Lagarto na Lousa é um modesto contributo para o estudo arqueológico do concelho de Moncorvo, sendo também um alerta para os arqueólogos que a nível concelhio tratam destes assuntos, no sentido de conhecerem (se ainda não conhecem), ou lembrarem-se de que também a telha na Lousa teve a sua tradição e história, e merece igual tratamento de outros aspectos culturais e arqueológicos do concelho. É que a nossa terra possui encantos arqueológicos ainda por explorar, por vezes, simplesmente ignorados por quem de direito, porque não os referem nem tratam. Porém, este livro é também uma homenagem com alma, coração, dignidade e verdadeiro sentir lousense, a todos quantos ajudaram na construção desta querida terra, os que sempre ali viveram, mas em especial os migrantes. Sim, todos os que vieram para a Lousa de terras distantes, ou que dela partiram para terras longínquas. Tantos são os emigrantes que deixaram o nosso recanto natal para reconstruir suas vidas bem longe, mas sempre com o coração na sua terra. Qualquer deles procurando uma vida melhor. Aqui estão incluídos os telheiros, 328

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personalizados na família Olas. Família que, afinal, trouxera essa arte para a nossa terra, ensinando-a, ocupando-se dela até ao seu desaparecimento exigido pelas transformações que as modernidades não perdoam. No que respeita à apresentação deste estudo, começa por caracte­- rizar o espaço como terra de migrantes, referindo as actividades arte­ sanais ali existentes naquela época, para depois se entrar na arte de fazer a telha, situando os respectivos fornos, caracterizando não só a forma primitiva de produção como a da distribuição. Sem se usar uma metodologia demasiado técnica e específica, utilizam-se os métodos descritivo, analítico e comparativo com recurso a algumas imagens. A nível de fontes, destacam-se as orais daqueles que conheceram e participaram nessa actividade da arte de fazer a telha, mas também se recorreu ao nosso conhecimento pessoal e a bibliografia essencial como a do Padre Manuel Alves, Adriano Vasco Rodrigues, Amado Mendes, João da Chela, Viale Moutinho, entre outros. Deseja-se que todos entendam a mensagem aqui transmitida e que o seu conteúdo cultural e histórico não desapareça e sirva para enriquecer as gerações futuras, em especial as moncorvenses e lousenses. Ao mesmo tempo, que dê alegria e orgulho na recordação àquelas gerações que, como nós, ainda assistiram ao fabrico da telha, ainda conheceram os fornos e as pessoas envolvidas nessa actividade económica. Acreditamos que é desta forma simples e natural que conseguiremos valorizar a cultura da região. Lousa: terra de migrantes O espaço geográfico em que se passa o conteúdo deste trabalho localiza-se na aldeia de Lousa. Situa-se na parte ocidental do concelho de Moncorvo, paredes-meias com o concelho de Carrazeda de Ansiães, através da freguesia de Vilarinho da Castanheira. Para norte e nordeste fica o Castedo da Vilariça, para oriente a Cabeça Boa e Cabeça de Mouro, e a sul é o rio Douro que banha os seus terrenos na sua margem direita. Número quatro

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Vista parcial da aldeia de Lousa, virada para o Douro

Esta área tem características montanhosas, com elevações sobres­ saindo e envolvendo um planalto com alguns terrenos férteis pelo meio, e com encostas e vales muito acentuadas e viradas para o Douro. A aldeia de Lousa apresenta dois contrastes nítidos no termo: toda a zona norte tem terrenos constituídos por solo variado, que vai desde o quartzo, mica, algum feldspato, bem como zonas volfrâmicas e argilosas. Nesta zona o clima é mais rigoroso, claramente transmontano, com invernos frios e gelados, verões quentes e abrasadores. Também a vegetação é diferente, já que os pinheiros, castanheiros, carvalhos, giestas, sobreiros, brotam entre os campos cultivados. Nos terrenos virados para o Douro encontramos o granito até à zona que vai da Barreira, Pias, Sargaçal, Parada, seguindo para o Ribeiro de Sio e toda a zona da Serra e Penedo Galego até á Fraga. Desta demarcação (cerca de 600 metros de altitude) até ao Douro, é o xisto que compõe os terrenos e as áreas de cultivo são ocupadas pela vinha de benefício do vinho generoso, olivais, amendoais, algumas figueiras (que noutros tempos eram muitas), laranjais. Nesta zona o clima é mais ameno no inverno, não atinge temperaturas muito baixas e não neva, mas, em 330

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contrapartida, no verão o calor é imenso e sufocava quem por lá andava a trabalhar de forma tradicional. É o Alto Douro em plenitude1. Como que fazendo vigia para o rio e, ao mesmo tempo, ocupando uma encosta protegida pelo Monte da Santa Bárbara, observada pela Sr.ª da Assunção de Vilarinho da Castanheira e também de Vilas Boas no lado oposto, ergue-se o povoado que é conhecido pela formosa e grande aldeia de Lousa. O casario alonga-se já desde a Chã (estrada que segue para Castedo e Moncorvo) até ao sopé do Monte de Santa Bárbara, numa extensão de cinco quilómetros, e alarga-se desde os Moinhos de Vento do Convento e da Portela até ao Cabo da Aldeia, Espírito Santo, Fundo da Aldeia e Borralheira, numa disposição em encosta virada para sul. É esta povoação de Lousa uma freguesia que, administrativamente, pertence ao concelho de Moncorvo desde 1853, data da extinção do concelho de Vilarinho da Castanheira a que pertenceu até àquela data. É uma terra de migrantes com tradições muito antigas que remontam a épocas certamente seculares. O próprio Frei Antão Gonçalves, Superior e fundador do Convento da Santíssima Trindade da Lousa, para ali viera de outras paragens (Seixo de Ansiães) e por lá ficara. Ora, do século XVII ao XIX, o Convento da Lousa mantém-se em actividade intensa e notável pelo ensino ministrado gratuitamente aos pobres. Ensinava Estudo de Humanidades, notabilizando-se no ensino do Latim e era frequentado por muitos alunos da Comarca de Moncorvo que, no fim do século XVIII tinha 20 vilas e 163 freguesias, 14 406 fogos e 51 611 almas2.

Virgílio Tavares, Lousa: História e Tradições, edição do autor com o Patrocínio da Câmara Municipal de Moncorvo, 1995, pp. 20 e 21. 2 J. M. Amado Mendes, Trás-os-Montes nos fins do século XVIII segundo um manuscrito de 1796, 2.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Junta Nacional de Investigação Científica, Junho de 1995, p. 240. Antes já a Comarca de Moncorvo chegara a ter 26 vilas. 1

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Local onde existia o Convento da Santíssima Trindade, vendo-se o resto da muralha do mesmo

Mas não era só da Comarca de Moncorvo que recorriam ao ensino que era ministrado no Convento da Lousa. Ali vieram parar muitos estudantes e professores da região e fora dela, desde Lamego e até Santarém. Certamente alguns por ali ficaram e ajudaram a engrandecer a povoação. Quando, em 1834, os frades Trinitários são expulsos da Lousa e os bens vendidos e comprados por particulares devido à reforma religiosa em Portugal que era anti clerical, esse centro importante de cultura perdeu-se e, com ele, a possibilidade de a Lousa se desenvolver mais nesse campo. Porém, o movimento da população para aquele povoado ou para fora dele continuou, expandindo-se por territórios mais longínquos. Na segunda metade do século XIX e princípios do XX, a procura do Brasil, Canadá e dos Estados Unidos passou a ser alvo dos lousenses, informados dos sucessos de outros, nomeadamente os minhotos, e na ânsia de uma vida melhor3. Daqui saíram famílias de emigrantes inteiras, Tal como do Minho, também a nordeste chegavam as notícias do Brasil e impulsionavam os naturais a saírem à procura de melhor sorte na vida. Então aquelas 3

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cujos descendentes ainda podem testemunhar as suas passagens. Há ainda muitos lousenses filhos desses emigrantes que tiveram sucesso e outros que regressaram quando se deu a crise económica de 1929, depois da recuperação da Europa com o auxílio dos Estados Unidos. Eram às dezenas e dezenas os nossos emigrantes! João da Chela fala- -nos dessas partidas para a África Portuguesa no seu livro África Lusíada, fazendo um retracto vivo da sociedade lousense desse tempo: Quando a notícia chegou, para largarem da terra a caminho de Angola com destino à Cela (…) já estavam prontos os arranjos da viagem, e também pronta estava a alma para a luta com a saudade e o desapego do ninho. Estavam preparados os novos povoadores. Era só botar a jaqueta ao ombro, chale às costas e agarrar na taleiga que conduzia a roupa. Malas? A caixa de pinho ou de castanho, não lá muito grande, encardida e negra pelo pó dos anos, levava o resto: um martelo, uma enxó, a goiva e o formão, uma verruma e um trado.A uma banda, metida em saca própria de flanela lisa, que frescas mãos de mulher lavaram de arabescos encantadores, figurando ramos de oliveira, umas cerejas, uma pálida imagem de trovador enamorado, ia a guitarra das noites de serenatas e das tardes animadas dos bailes do terreiro… Os outros, os da enxada e do arado, levavam somente as mãos, única riqueza de ferramenta que possuíam, cotada, contudo, sempre, em toda a parte e em todos os tempos, como a mais preciosa e a que estava em

terras que davam para o rio Douro eram mais propícias à saída através do rio, chegando ao Porto e daí atravessavam os mares. Como nos diz Jorge Alves, a barra do Douro vai tornar-se o principal ponto de escoamento da emigração oitocentista… Efectivamente, todos os anos, ao longo do século passado, alguns milhares de emigrantes do Norte de Portugal largavam da barra do Douro, atravessavam em lentos e incómodos veleiros o Oceano e desembarcavam nas terras do Brasil. Era um movimento de pessoas cuja importância numérica ganhou significado ao longo do século XVIII, sedimentando na barra portuense à medida que o Porto polarizou o dinamismo económico do Norte. Polarização essa, em grande parte, encorajada pelas medidas administrativas que, desde o pombalismo, contribuíram para despojar os outros portos provinciais do seu tradicional papel de plataformas no diálogo luso-brasileiro. Cf. Jorge Fernandes Alves, Os Brasileiros, Emigração e Retorno no Porto Oitocentista, Gráficos Reunidos, Porto, 1994, p. 11. Número quatro

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primeiro lugar. E levavam como os outros, uma alma, uma esperança, um sonho, valores do mesmo modo preciosos, escada por onde tantas riquezas subiram!4. Repare-se na quantidade de informações importantes que nos dá sobre a vida e cultura da Lousa: indica a existência dos carpinteiros que também partiam, de pastores, de tocadores nas horas livres, de poetas, de rendeiras que trabalhavam encantadoramente os seus panos usados em ocasiões especiais. Por outro lado, observe-se também o sonho e a esperança que acompanhava os que deixavam a terra. O frondoso olmo do Rossio, junto do Raboleiro, ficava no semblante de cada um que ia viajar nem sabia muito bem para onde. Partiam a pé, malas carregadas nos burros, nos machos, lá iam até ao Douro. A barca do Daniel passava-os para a outra margem. Em Freixo de Numão apanhavam o comboio para o Porto. Como no tempo de João da Chela, outras gerações nos anos 50 e 60 lhe seguiam o exemplo. Nós, estudantes nos anos 60, também percorremos esses caminhos, já com a saudade a encher-nos a alma, a lágrima aparecendo nos olhos da despedida de familiares, em particular da mãe, caminhando com o pai puxando a rédea do macho castanho e possante que carregava os alforges com a merenda, a engoreta do vinho e as malas com as roupas e livros. E as partidas sucediam-se. Mas também as chegadas. Ou seja, ao longo do século XX vão abordando a Lousa e por lá ficando várias famílias que eram atraídas pela fama de ali haver muita riqueza, abundância de trabalho e de produtos, fartura, e também possibilidade

João da Chela, África Lusíada, Crónica Colunado da Cela, pp. 59 e 60. Este autor é natural da Lousa, e usava este pseudónimo, tendo também sido migrante, primeiro para Espinho, depois para Angola. Manuel de Jesus Pinto (o seu nome verdadeiro) passou para os seus livros, com um realismo fantástico e uma descrição apropriada e cheia de palavras de sentimento verdadeiramente vivido por ele, a cruz da sua vida, a diáspora que teve de percorrer desde tenra idade. É um bom exemplo de lousense que partiu, mas levou no seu coração a alma da sua (nossa) querida Lousa. Leia-se o livro citado, ou então Caminho Eterno, e viva-se essa época de migrações apaixonantes... 4

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Capela da Parada por onde passava o caminho para o Douro. Ao lado, na parede, a marca da ferradura da burrinha que transportou Nossa Senhora, segundo tradição oral popular

de melhorarem suas vidas. São as contradições do Homem: o que para uns não serve, para outros é lugar de governo de vida. É na década de 60 que a emigração para os países da Europa (França, Alemanha, Espanha, Bélgica, Luxemburgo, Holanda, Suíça, Itália, entre outros) que leva centenas de lousenses. De tal forma que, de 1960 para 1970 a população da Lousa diminuiu 492 habitantes, enquanto que na década de 50 para 60 só diminuíra 103. Foram quase meio milhar de lousenses que partiram nessa década. Na sua grande maioria para a Europa. Nos dias de hoje, essa emigração continua, mais para a Suíça e países da América, ao mesmo tempo que também vão para as cidades do litoral, ou para outras terras do país. Mas também continua a haver a chegada de outras gentes que, principal­ mente por casamento, aqui se querem radicar. Por isso dizemos que a Lousa foi procurada por muitos e é Terra de Migrantes. Ora, os telheiros fazem parte dessa mobilidade das pessoas de que o português há séculos nos foi habituando. Eles entenderam que a Número quatro

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povoação era grande, tinha muita gente, que ali havia muitas habitações, e o seu produto teria saída. Além disso, a situação dos Fornos da Telha na Lousa foi escolhida por quem sabia que a matéria-prima, o barro, e os elementos principais, a água e a lenha, não faltavam por ali. Ficavam todos na parte norte da povoação, nos terrenos de cultivo, concretamente na Saíça, zona de solos barrentos e argilosos e até com Volfrâmio, e na Lameira do Lagarto, já a caminho da povoação na estrada que vem de Moncorvo e Carrazeda. Não era só o fabrico da telha, havia uma intensidade de indús­ trias muito considerável e que animava a localidade, como a seguir se refere. As Actividades artesanais (indústrias) A freguesia da Lousa teve tradições importantes no domínio das indústrias artesanais, particularmente em meados do século XX. Dado ser uma localidade muito populosa e bastante isolada, longe dos grandes eixos de comunicação, na sua profunda interioridade, sem estradas e das mais afastadas do concelho, era necessário auto abastecer- -se com produções locais, quer agrícolas, quer industriais. A nível de produtos da terra para se alimentarem, não havia grandes problemas em consegui-los dado que o seu termo tem terrenos muito férteis. No entanto, os processos de cultivo, a inclinação e aspereza de parte dos seus terrenos, faziam com que o homem fosse mais rijo e mais forte, para conseguir domar a natureza e fazê-la dar lindos e apetitosos frutos para saciar a fome. Para muitos, era o trabalho de sol a sol o pãonosso de cada dia. Mas lá iam arranjando para comer e sobreviver. Quanto aos produtos artesanais, também ali houve quem zelasse por eles. As famílias iam aprendendo as artes e os ofícios, outras vinham de fora e ensinavam-nos aos que ali nasciam e deixavam descendência. Encontra-se uma actividade artesanal intensa em meados do século e que se prolonga até aos anos 70. A vida social e cultural da aldeia sentiu que essa arte lhe deu valor e que contribuiu para a sua economia. Era até 336

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Um selim para andar a cavalo num muar, principalmente em viagem, feito por João Queijo (encontra-se no Museu da Associação Cultural)

motivo para fazer versos populares em ocasiões como no Julgamento do Galo no Carnaval, ou pela Páscoa5. Em 1940 estão registados no Anuário Comercial, 4 barbeiros, 2 ferra­dores, 1 ferreiro, 2 latoeiros, 1 fábrica de moagem e 1 serralharia civil. Mas este número foi aumentando, e, por exemplo em 1950, a nível de barbeiros, havia 7 registados no Anuário Comercial. Muitos outros ofícios não vinham registados no anuário, mas eles existiam. Como os carpinteiros (4), os canastreiros (5), (aliás únicos no concelho), sapateiros, alfaiates, costureiras, pedreiros… Havia ali quem fizesse também os arados e as charruas, as albardas, os portões de ferro, os móveis de cozinha, os pulverizadores, belfas, jugos, carros de bois e seus apetrechos, os telhados e a telha, bem como todo um conjunto de utensílios imprescindíveis na vida do homem rural. 5 Uma dessas quadras dizia. “Cá está o funileiro/um funileiro de fama/concerta os candeeiros/até as barras da cama”. Cf.Virgílio Tavares, Lousa… pp. 126-127. A vida cultural da povoação durante o século XX é digna de estudo e registo, pois ali houve Banda de Música em 1920/38, ali se fizeram representações teatrais, organizaram-se bailes, formaram-se grupos de tocadores e cantadores.

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O tratamento do linho depois de cultivado, ou a da seda depois de produzida, ou a da lã depois de tosquiadas as ovelhas com duas dezenas de rebanhos de gado, todos estes trabalhos e a transformação dos produtos respectivos tinham nas mãos das mulheres da Lousa uma arte especial. Havia até quem acabasse por ficar com o alcunho de tecedeira, albardeiro, ferreiro, latoeiro, pedreiro ou caldeireiro, devido às tarefas que executava.

A Arte de Canastreiro executada por José Pulgas em 2005, na sede da Associação Cultural e Recreativa de Lousa

Outras actividades artesanais que não faltavam eram as ligadas aos produtos agrícolas. Desde o pisar das uvas no lagar do vinho, o fazer do azeite ou a moagem, passando pelas malhadas nas eiras, era intensa a sua actividade. No ciclo do pão, e dada a dimensão da povoação que tinha mais de 1660 pessoas no censo de 1960, a Lousa teve um papel relevante, pois abastecia inclusive as aldeias vizinhas. As azenhas no Douro transformavam os grãos de trigo e do centeio em farinha. Depois foram os moinhos de água do Ribeiro da Gola já virado para a Fraga do Poio. A seguir, contemporâneos da arte dos telheiros, foram construídos os 338

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moinhos de vento da Portela e do Convento. Mais tarde, no fim dos anos 40 apareceram as 2 moagens, uma na Fonte da Cruz, dos irmãos António e Porfírio Durão, outra na rua Direita, ao ir para a Canelha, do Arrepia. A par disso havia os fornos de cozer o pão para o público, chegando a contar-se cinco, trabalhando toda a semana, havendo até padeiras que faziam profissão da venda do pão. Os fornos da telha Os Fornos da Telha são locais onde se cozem as telhas que se fizeram em formas, cheias de barro adequado e preparado, e com uma cavidade inferior para colocar a lenha a fim de manter o calor necessário à cozedura. Há que distinguir o Forno, do Telheiro ou da Telheira. O Forno é apenas o local da cozedura da telha, muito importante certamente, mas é um dos elementos que constituem a Telheira. Porque esta é a chamada fábrica da telha e envolve todo o equipamento e o processo do fabrico que inclui a cozedura. Quanto ao Telheiro é o termo que designa aquele que fabrica a telha, o artesão, o operário. No entanto, no plural, confunde-se, por vezes, o sentido duplo que é dado aos telheiros: por um lado os artesãos que fabricam a telha, mas também os locais onde se fabricava esse produto, incluindo os Barreiros donde se extraía o barro, bem como os locais da transformação até terem a forma de telha. Neste estudo usa-se o termo telheiros no sentido das pessoas que trabalhavam o barro e produziam a telha, embora também haja alguma conotação com o significado de locais onde trabalhavam esses artistas que davam a forma de telha ao barro.

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Os telheiros da Saíça e da Lameira do Lagarto Na Lousa havia 3 fornos telheiros. Um situava-se na Lameira do Lagarto (ou Chã, como hoje é mais conhecida), restando apenas o local mas completamente modificado. Há algumas pedras graníticas numa parede do referido terreno que serviram para o muro frontal do forno, onde tinha a cavidade de entrada da telha, e também a abertura para a lenha. Entre essas pedras está uma com a inscrição LOUZA 17-5-1933 A. A. Conforme pudemos confirmar junto de várias pessoas, essa pedra pertencia ao forno, e as iniciais significam António Almeida, que era o proprietário.

A pedra que estava no forno da Telha da Chã ou Lameira do Lagarto, agora colocada numa parede da estrada Municipal 623

Como se pode ver é dos inícios da década de 30, e chegou até ao fim dos anos 80. Na nossa juventude, era ali que íamos esperar a Banda de Música, no sábado de Festa, no primeiro fim-de-semana de Setembro. Aquele local, para nós era conhecido pelo Forno da Telha. Ainda hoje, 340

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quando se fala na Chã (em vez de Lameira do Lagarto) e se quer referir àquela área, diz-se, frequentemente, Forno da Telha. Foi construído por Manuel José Olas e alguns dos seus filhos, no terreno do sr. António Almeida, ficando propriedade deste. Ali trabalhou o construtor até à sua morte, bem como o filho António. Depois da sua morte ficou um outro filho a dirigi-lo, Jacinto de Jesus Olas, com os seus descendentes6. Este forno ficava junto da estrada n.º 623 que liga a Lousa com a Portela, passando pelo Castedo, Vide, Horta e dando saída para Moncorvo, Alfândega da Fé ou outras terras. Recebia o barro da Saíça, para ali transportado em carros de bois, percorrendo cerca de 2 quiló­ metros, sem grandes desníveis, isto é, quase planos. Nos terrenos onde se situava o forno havia abundância de água. Quanto à lenha, também não faltava, pois estava rodeado de pinheirais e matagais que continuavam para o Couto (zona de Vilarinho) e para a Cabeça Boa/Cabeça de Mouro. Andavam sempre limpos de mato, e, por isso estavam protegidos contra os incêndios (que raramente havia, nessa altura). Os outros dois fornos situavam-se na Saíça. Um deles no terreno do sr.Víctor e o outro na propriedade do Carvoeiro que depois emigrou para a França. Foram igualmente construídos pelo patriarca da família, Manuel José Olas e seus filhos. Era aqui que se reuniam as condições excelentes aliadas às que a natureza oferecia, para o fabrico da telha. Água em abundância. Poço aberto que nunca secava e com uma nora puxada a força animal7. Lenha, era à fartura, ainda mais que noutro qualquer local. Os pinheirais, as matas de carvalhos, os soutos situavam-se para esse lado e prolon­

Segundo Mário António Félix, natural da Lousa e a residir em Moncorvo, com 84 anos, em 2005, fora o seu pai, Manuel de Jesus Félix, casado com Estela Olas e filho de Albano Augusto Félix e Joaquina da Conceição Marques, que participara na construção do Forno da Telha da Lameira do Lagarto. 7 A água da Saíça era tão abundante que foi o local escolhido para, na década de 80 ser explorada e canalizada para abastecimento da povoação da Lousa. 6

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gavam-se por uma grande extensão até penetrar nos termos de Vilarinho da Castanheira e da sua anexa Pinhal do Douro. A matéria-prima, o barro, era só tirá-lo do solo, pois aquela terra é vermelha e ali existe em abundância. É terra onde mais tarde se explorou também o Volfrâmio, com companhias estrangeiras a ali se instalarem, e com a vinda de pessoas doutras terras a participarem nesses trabalhos. Que melhor? Só faltava a força do Homem, a vontade de trabalhar e a energia de vencer. E isso existe sempre que o homem quer. Actualmente ainda restam os Fornos da Saíça: um no terreno que pertenceu a Víctor Machado, tapado pelas silvas, e que bem merecia ser salvaguardado e recuperado. Perto dele está também a casa de habitação onde viviam os mestres telheiros e família; outro, no terreno do Carvoeiro (que pertencia ultimamente ao filho mais velho do sr. Gemelgo), e que está em melhor estado de conservação. A ida à Lousa ainda levava 45 minutos para cada lado, a pé, por caminhos pedregosos e íngremes, já que tinham um vale profundo formado pela Ribeira do Poço da Gôla que era preciso descer e subir. Esse caminho era muito estreito, pelo que, para transportar mercado­ rias em carro de bois usava-se mais frequentemente um outro mais longínquo, pela Chã. É que além de ser mais largo, era plano e fazia-se com menos esforço. A arte de fazer a telha Fabricar a telha é uma arte tão valiosa como a de fazer objectos domésticos de barro, a tradicional olaria. Por isso nem todos podem pretender que a obra lhe saia bem logo à primeira, sem terem aprendido. Sendo o barro a matéria-prima principal, é necessário tê-lo por perto, em abundância e qualidade, bem como a lenha, água e fieitos (fetos). Precisa de ter igualmente a ajuda de mais que um trabalhador e da força animal. 342

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Em primeiro lugar preparavase o barro, que era uma tarefa muito dolorosa, pois, sendo pesado, custava a mover. Era necessário arrancá-lo do solo, carregá-lo no carro de bois e levá-lo para o Barreiro8. Este era o local onde ia ser trabalhado. Era ali que se fazia Uma telha encontrada no telhado de Sílvia Barbosa, a mistura com água, ou, por vezes, na rua Direita, junto ao Rossio, cedida à Associação pelo filho, Manuel Varela, onde se pode também a mistura com outros Cultural ver a data de 1940 e as iniciais AAO tipos de barro mais cinzento ou avermelhado, conforme o efeito que se pretendia obter. Depois de aguado e cavado, era amassado com as patas pesadas e robustas dos bois9. A seguir, juntava-se o barro numa espécie de Queijo Gigante, cobria-se com fetos e diariamente molhava-se para não secar, mantendo a mesma qualidade até ser consumido no fabrico da telha.Também diariamente era transportado

Barreiro é o local onde se trata o barro para depois estar preparado para o fabrico das telhas. 9 Na Lousa, como noutras povoações rurais do concelho, eram os bois os animais mais usados nos transportes, por serem corpulentos, fortes, resistentes, aos quais era atrelado o carro de duas rodas que servia para qualquer tipo de transporte. Desde as uvas, ao vinho, do feno à palha e ao próprio cereal, passando pela lenha, pela azeitona e outros produtos agrícolas. Era com os bois que se puxavam as mós que trituravam a azeitona nos lagares tradicionais, era com os bois que se lavravam as terras para as sementeiras, eram os bois que puxavam ás pedras para levar à povoação e construírem as habitações. Ou seja, o boi era um animal excelente nas seis primeiras décadas do século XX, pois dava também a carne para alimentação das pessoas e as peles para o calçado, para os próprios arreios de carga entre outras utilidades. Por isso, em terras abastadas e populosas como a aldeia de Lousa, ao mesmo tempo com terrenos inclinados e difíceis de trabalhar e vencer, a ajuda dos bois era preciosa e imprescindível. Daí haver imensas juntas de bois, pois eram várias as famílias que não dispensavam a sua ajuda. Nos anos 50, a título de exemplo, conseguimos identificar os seguintes lousenses (famílias) que possuíam juntas de bois: Arnaldo Filipe, Adolfo, Mesquita, José Alças, Carvalho, José da Sóquinha, Fontes, Meneses, Marcolino, Cleto, Gemelgo (pai e filho), Tavares (da Fonte da Cruz), Taricha. 8

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à cabeça, do barreiro até à estada ou local onde se fazia a telha. Mas só era transportada a quantidade necessária para cada dia de trabalho10. Era na estada, ou seja a plataforma onde eram executados todos os trabalhos do fabrico da telha, que a arte do telheiro era posta à prova. Ali tinha que dar as voltas necessárias, amassar e moldar, colocar formas previamente preparadas, com a ajuda do ferro ou da madeira, e com o formato de capa ou caleira. Ou seja a capa, era a telha que cobre, a caleira, era a telha onde corre a água, formando um sulco ou canal. Após terem moldado as telhas, seguiam, também usando a força humana, para o forno. Eram colocadas e empilhadas com técnica de modo que não se estragassem. Uma vez no forno a quantidade suficiente para a fornada (cerca de 6.500) era altura de se acender o lume na fornalha da parte inferior. Claro que já tinham ido à lenha em quantidade suficiente, o que também dava bastante trabalho, e já estava ali perto do forno. A arte da cozedura era tão importante e cautelosa como a da moldagem. O calor tinha que ir em doses certas, pelo que, ao telheiro cabia a responsabilidade de cozer a telha utilizando toda a sua técnica que era controlar o fogo, nem forte nem fraco, chegando a fazer algumas rezas como faziam as padeiras quando coziam o pão. Demorava oito dias a ficar completa a cozedura, pelo que consumia bastante lenha. O lume apenas estava aceso cerca de 20 horas. A telha ficava reluzenta 2 ou 3 dias e só oito dias depois é que podia ser desenfor­ nada. Eram 300 molhos de lenha e silvas para cada fornada. A melhor lenha era a de zimbro, embora usassem a de pinheiro, as giestas, carvalhos, castanheiros e toda a que pudessem arranjar. Terminado o tempo de cozedura da telha, havia que desenfornála, contando-a. Logo de seguida distribui-la pelos intervenientes do processo. A parte que cabia ao telheiro era para vender. A parte do dono do barro, do dono da lenha, e do proprietário do local que ocupavam As frases em itálico foram proferidas por um telheiro jovem da família Olas (o António Eduardo) que gentilmente nos foi fornecendo elementos para esta nossa investigação. 10

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(água utilizada a partir do poço e mais equipamentos) era-lhes entregue. Cada um fazia da sua parte o que entendesse. Os telheiros, da sua parte retiravam o seu rendimento para que tivessem uma vida digna, onde o pão não faltasse para a boca dos filhos e família. Muitas das vezes eram os carros de bois que levavam as telhas até junto das obras em construção. Outras vezes eram arrumadas nos anga­ relos (cambos) dos machos e burros que chegavam a transportar mais de cem telhas de cada vez em cada um. Calcorreavam caminhos pedregosos, calçadas á antiga portuguesa em locais onde os lamaçais se acumulavam, ou zonas íngremes mais escorregadias, aqueles veículos animais faziam chegar a telha a várias povoações para onde era vendida. Aliás, normalmente, eram os interessados que iam à Saíça, junto do forno, comprar a telha, vendida só a dinheiro. Às vezes havia fiados, mas todos pagaram as suas dívidas, ninguém ficou a dever nada11.

No Felgar, também do concelho de Moncorvo mas na parte oposta à situação da Lousa, já na margem esquerda do Sabor, há igualmente argila com boas qualidades para a cerâmica. Por isso foi uma terra de telheiros e de oleiros. A arte que mais tradição e projecção ganhou ali foi a Olaria, tendo dado mais rendimento económico àquela freguesia. Com efeito, e segundo vários estudiosos da matéria, já no século XVIII havia Olaria no Felgar que fora substituir a do Larinho, extinta certamente nessa altura. E foi já em 1986 que António Rebouta, último Oleiro ali residente, ajudou a recolher uma colecção de peças de cerâmica do Felgar que se encontra no Museu de Olaria de Barcelos. Dos 20 louceiros que no século XVIII são referidos como existentes no Felgar, em 1940 só havia 8. Em 1958, Adriano Vasco Rodrigues contou 5 em actividade e, em 1986, só um, que se extingue no ano seguinte. O barro, extraído nos barrais na margem esquerda do sabor, era mais gordo, enquanto que o extraído no Cabeço da Mua era mais magro. O seu transporte era feito em sacos, nos burros. Apesar de ter sido a olaria que se destacou mais no Felgar, também ali houve fabrico de telha no século XX, simultaneamente com o fabrico da telha na Lousa. (Fontes: José M. Amado, Trás-os-Montes no século XVIII segundo um manuscrito de 1796, 2.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995; Manuel Marinho Macedo e Maria da Graça Freitas, Olaria do Felgar, Torre de Moncorvo, Catálogo, Câmara Municipal de Barcelos, Museu de Olaria, n.º 1, Barcelos, 1988, pp. 10-15; Viale Moutinho, “Oleiro do Felgar”, in Diário de Notícias, Lisboa, 5 de Junho de 1980, p. 7; Adriano Vasco Rodrigues, Olarias do Felgar, Mensários da Casa do Povo, n.º 12, Lisboa, 1958 e “A Olaria no Nordeste Transmontano”, in Artes e Tradições de Bragança, Colecção Artes e Artistas n.º 7, Terra Livre, 1984, pp. 252-261). 11

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A Família Olas Na Lousa, no 1.º, 2.º e 3.º quartel do século XX, a cerâmica da telha ficou marcada por um impulso intenso e rentável que dava trabalho a muitas pessoas, e também ajudava outras que participavam, directa ou indirectamente, no seu fabrico. Conforme se pôde recolher, o desenvolvimento da cerâmica da telha portuguesa na freguesia de Lousa teve o seu início precisamente nos primeiros anos do século XX. E deve-se aos oleiros vindos da margem esquerda do rio Douro. Mais propriamente do concelho de Vila Nova de Fozcôa, da aldeia de Touça. Nesta povoação houve sempre muitos artesãos que fabricavam a telha. Eram várias as famílias que se dedicavam a esta tarefa. Dado que a oferta era muita e a procura escassa, houve necessidade de algumas dessas famílias irem procurar desenvolver a sua actividade noutras paragens. Constando-se na Touça que, na Lousa, especificamente na Saíça, havia barro de óptima qualidade dada a sua cor encarnada e cinzenta, obtinha-se uma óptima liga e textura para que a telha saísse bonita para sobressair nos telhados das casas12. E cá está o espírito de aventura, a esperança numa vida melhor e de oportunidades mais agradáveis para a família, e o raciocínio lógico das diferentes argumentos que levam á tomada de decisões, a fazer com que a Família Olas decidisse procurar a povoação da Serra da Lousa, no outro lado do rio Douro. Como era uma família numerosa, a mão-de-obra tão necessária, aliada ao factor das matérias-primas excelentes e à não existência de telheiros naquela zona, levou-a à fixação no lugar da Saíça e à constituição de uma unidade industrial de fabrico da telha. Isto apesar de ter sido difícil, de início, em encontrar proprietários de terrenos interessados em deixar implantar essa actividade. É que havia necessidade de possuir igualmente uma casa de habitação e água corrente em abundância. Quem o afirma é António Eduardo Olas, transmitido pelo pai, natural da Touça e que tomou a opção de vir para a Lousa trabalhar na sua arte. 12

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Para ultrapassar essa situação, foi necessário formar uma sociedade. Mas onde estavam os capitais? Nem trabalhadores nem proprietário queriam disponibilizar o dinheiro, pois não havia. Uma ideia luminosa da família Olas deu resultado: uma sociedade sim, mas sem capitais. A palavra tinha tanto valor como o dinheiro e a escrita contratual13. Mas como era constituída a Família Olas? Como qualquer família: antepassados, nomeadamente os avós, pais, filhos. Os antepassados, como vimos, tinham as suas raízes na Touça. O Patriarca Olas que veio para a Lousa foi Manuel José Olas, pai de 24 filhos, divididos igualmente pelas duas mulheres que teve. Com uma prole tão grande, bem podia trabalhar para os criar. E assim fez. Dois deles, António Augusto Olas e Jacinto de Jesus Olas foram os que mais continuaram a arte de telheiro na Lousa. António A. Olas nasceu na Touça (Vila Nova de Fozcôa) a 11 de Outubro de 1907 e veio para a Lousa com cerca de 8 anos de idade, ajudando o pai no fabrico da telha, aprendendo de tenra idade. Ali casa com Cândida Afecto Cardoso que nascera na Lousa em 22 de Maio de 1912. Deste casamento nasceram, ali, 6 filhos, ainda vivos: Augusto Alfredo Olas, com 74 anos, casou no Mogo, emigrando para o Brasil; António Eduardo Olas, 71 anos, casou no Porto e esteve em Moçambique, agora reside em Lisboa; Rómulo Fernando Olas, 67 anos, casou na Lousa e esteve na África do Sul; Reinaldo José Olas tem 64 anos, casou na Lousa e esteve em Moçambique; José Augusto Olas tem 61 anos, casou em Bragança, esteve em Moçambique e é empresário de sucesso em Lisboa; Maria Palmira Olas, tem 58 anos, casou em Lisboa onde reside, e esteve em Moçambique. Esta família viveu na Rua das Lages, depois na Rua do Cabeço e finalmente no Cabo da Aldeia. No período de verão vivia na Saíça, nomeadamente entre Junho e Setembro, que era quando produziam mais telha. Os filhos de António Olas frequentaram as escolas primárias do Santo e da Varela, sendo seus professores a D. Alice Barbosa e o marido

Ver pormenores sobre esta sociedade no ponto seguinte deste trabalho.

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Professor Camelo (que era de Parada - Alfândega da Fé), bem como a D. Maria Adelina Machado14. Na escola jogaram à bilharda, ao pateiro, à choina, cachafim cachafé, entre outros jogos. Já na Juventude iam, como os outros, ao Pidente e ao Corisco a ter com as raparigas novas para namoriscar, pois elas diziam aos pais que iam á água fresca e boa que ali havia. Faziam bailes que por vezes eram muito concorridos, e nem toda a gente entrava, e, por isso, havia zaragatas. Alguns eram só para convidados. Os Telheiros da Saíça: faltam os filhos Rómulon e Palmira. A criança já é neta do casal Olas Ao Ferro, só jogavam homens de grande porte físico e atlético. A alimentação era igual à de qualquer família da terra e não chegaram a passar fome, mesmo no tempo da Guerra. Cultivavam a maioria dos produtos que consumiam. No fim de cada verão conseguiam amealhar entre 9 a 12 contos, o que naquele tempo era muito dinheiro! A primeira vez que vi uma nota de 1000$00 foi quando o Pizarro da Quinta do Lobazim nos comprou 4000 telhas. Teria na altura 15 anos (por volta de 1953), conta-nos A. Eduardo Olas. Os filhos de António A. Olas foram todos baptizados por Joaquim Augusto Arrepia (um dos fundadores da Banda de Música da Lousa em 1920) e esposa, Maria do Carmo Veiga, à excepção do Rómulo cuja madrinha foi Angelina Ribeiro da Veiga.

14 Esta professora era filha deVictor Machado, morava em frente à Igreja e ao Coreto, ao lado da fonte numa casa grande, foi contestada por uns porque dava muitas reguadas, mas era querida por outros: Grande senhora e Grande Professora. Eu, na minha 4.ª classe, fui o melhor aluno. Fiquei aprovado com distinção e ela teve muito orgulho nisso (refere António Eduardo Olas que fora seu aluno).

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Além do trabalho da telha, a família Olas arrendava terrenos, tomava outros de meias (ou seja, metade da produção para quem trabalhava a terra, outra metade para o proprietário da terra) e, às vezes, de terças, principalmente as oliveiras (isto é, um terço da produção para quem trabalhava o terreno, dois terços para o proprietário). Davam jeiras diárias na Lousa, trabalhando para os melhores proprietários, e na Quinta do Lobazim. Por volta de 1960 a jeira dos homens (dia de trabalho) era a 20$00 mais um litro de vinho. No Lobazim chegaram a executar tarefas de feitores, o pai e os dois filhos, Eduardo e Augusto. Eram considerados dos melhores trabalhadores que havia na terra, pois muitas vezes ouvimos da boca de António Morgado e seu sogro, Artur Major, as melhores referências aos Olas, ainda mal conhe­cíamos a família, por sermos muito jovens. Já nos anos 90, António Morgado contava histórias de valentia de trabalhos do campo passadas com os Olas, pois nunca deixavam que nenhum fizesse mais trabalho que eles, ou que chegassem primeiro ao fim do corte (parte) quando cavavam. Durante os anos 60 a família Olas deixa a Lousa e procura uma vida melhor nas terras de África. Tinha rebentado a Guerra colonial em Angola (1961), e depois na Guiné-Bissau (1963), e logo a seguir em Moçambique (1964). Em Dezembro de 1961 a União Indiana invadira e ocupara os territórios de Goa, Damão e Diu que Portugal administrava no Oriente desde o século XVI. Salazar manda imediatamente tropas para Angola e também, depois, para as outras colónias, Guiné e Moçambique. Para Angola, rapidamente e em força… Sejam quais forem as dificuldades que se nos deparem e os sacrifícios que se nos oponham, não vejo outra atitude que não seja a decisão de continuar15. É neste ambiente de luta armada em que os movimentos das ex colónias começaram a travar contra a presença de Portugal na África, e cujas razões eram desconhecidas pela esmagadora maioria dos portugueses, que começava o ciclo terrível e emocionalmente trágico da partida de tropas do Continente para África. Os povos africanos queriam “Discurso de Salazar na rádio e televisão em 1961”, in História de Portugal,

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a independência, Salazar não lha dava. A luta desigual, mas perigosa, de guerrilha, não de trincheiras, mas de emboscadas, consegue manter um impasse, e Portugal vê a vitória adiada sem fim. Os jovens em idade militar eram mobilizados. Os da Lousa não escaparam também. António Eduardo Olas, Abílio Tavares (da Igreja) e Apolinário Almeida partem no início dos anos 60 para Moçambique. Estiveram na barragem do Maviezi a 60 quilómetros de Vila Pery e a 260 da Beira. Por ali andaram e tiveram as suas histórias de guerra. Entretanto aquele território havia fascinado o jovem Olas, que, acabado o serviço militar, o considerava o melhor do mundo. Por isso optou por ficar por lá como o fizeram tantos outros militares portugueses. E de imediato manda ir os pais e todos os irmãos à excepção do Augusto que já estava no Brasil. Em Moçambique reformaram suas vidas. Tendo outras profissões bem diferentes das de telheiro ou jornaleiro e agricultor de enxada na mão que tinham em Portugal. E, na Lousa, terminava assim a existência do fabrico da telha com esta família Olas. Como a vida lhes sorria melhor! Um nível superior, condições nunca sonhadas sequer, que até carro e casa própria conseguiram! Nunca mais houve fabrico da telha naquela aldeia. Tudo parecia bem, estabilizado, o futuro garantido para eles e para os filhos e netos, a Lousa lá distante, com saudades sim, mas agora apenas para visitar um dia, numas férias bem passadas de um mês, recordando tempos idos, falando com os amigos, visitando os locais de trabalho e de descanso e diversão…. aquele Largo da Igreja e a Fonte de arco românico que já desaparecera entretanto, o Largo do Rossio e o Olmo (que agora também já não existe), a Santa Bárbara, a fonte do Corisco para encontro com as namoradas, ou o Moinho de Vento da Portela, o Santo…. recordando os bailes de S. João junto às cascatas, a Festa da Senhora dos Remédios... A Lousa era só saudade e recordação, mas a vida agora era Moçambique e o futuro. Mas, quando nada o fazia esperar, desconhecendo a realidade portuguesa a nível político e sua relação com África, acontece, em Lisboa, o 25 de Abril de 1974! A Revolução dos Cravos, como foi chamada. 350

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Eis que em menos de um ano tudo se modifica de novo: a descoloni­ zação apressada, atabalhoada, sofredora, dramática, incerta e castiga­dora para mais de 500 mil portugueses que se encontravam nas ex colónias não perdoa e nem olha a quem faz mal. Só da Lousa eram mais de 300 pessoas! A família Olas vê-se obrigada a deixar todos os haveres, todos os bens que conseguira, a vida boa que levavam e, regressaram a Portugal, a Lisboa, cada um procurando a melhor forma de ultrapassar o problema e recomeçar a vida de novo. O Destino prega destas partidas, e muitas vezes a quem não merece, a quem mais trabalha e mais cumpre. Mas cada um consegue reorganizar a situação à sua maneira, estando hoje bem (de novo) com as suas formas de viver. E até com muito sucesso em muitos casos. O outro telheiro e família vão ter igualmente o seu percurso exercendo a sua profissão, lutando com outras dificuldades, não tendo também quem lhe seguisse a arte. Com efeito, Jacinto de Jesus Olas casara com D. Juvenina, natural de Custóias (Vila Nova de Fozcôa), indo exercer a profissão de telheiro no Forno da Lameira do Lagarto, também na Lousa. Com vários filhos (10), lutou heroicamente para os criar, trabalhan­ do de sol a sol, quer na sua arte, quer nos trabalhos agrícolas. No verão, dedicava-se ao fabrico da telha, na Lousa, mas, no Inverno, ia com a família para a Quinta do Saião, na margem esquerda do Douro, defronte da aldeia de pescadores do Saião que pertencia à freguesia de Lousa, na margem direita. Era por ali que atravessavam o rio, pois havia a Barca usada por quem queria atingir o Pocinho e Foz Côa sem ter que dar uma volta bem maior por Os Telheiros da Lameira do Lagarto: Jacinto Olas e filhos Moncorvo. Número quatro

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Durante esses meses de Inverno habitavam uma Pala (gruta) natural, que uma enorme rocha escondia no seu interior, colocando umas pedras à frente, fazendo de muro de protecção e de porta principal e única! Não havia luz eléctrica, não havia água canalizada, nem casas de banho nem qualquer estrutura sanitária, pois até as casas dos mais abastados as não tinham, que a modernidade ainda não tinha chegado àquelas e tantas outras terras portuguesas. Ali se acomodavam como podiam, descansando de noite naquelas péssimas condições, trabalhando de dia nos trabalhos duros de enxada que a Quinta do Saião lhes proporcionava. Mas nem essas precárias condições de habitar durante o Inverno o desanimavam de procurar dar o seu melhor no trabalho, pois a responsabilidade de pai de família extensa sempre estava presente no seu pensamento e dava-lhe forças para aguentar. A fogueira que alimentavam com lenha do mato apanhada e cortada a pulso, numa lareira improvisada no canto superior da pala, aquecia-os o suficiente para repousar alguns momentos e sentirem o espírito de família com mais intensidade. Logo que chegava a Primavera começava a nascer a esperança de passarem melhores dias, lá na Lousa, onde a habitação já tinha tecto coberto com telhas, ali no Santo António, no início da Rua da Eugénia, frente ao Faustino (americano). Efectivamente, os meses quentes eram passados na Lameira do Lagarto a laborar para produzir telha, mas também arrendavam umas hortinhas que cultivavam para terem os produtos básicos alimentares em abundância, nomeadamente hortaliças, batata e também o pão que tiravam de terras mais extensas que cultivavam pagando os seus alqueires de cereal (mais centeio do que trigo) como aluguer. A família de Jacinto Olas não chegou a ir para Moçambique, também não se ficou pela Lousa, pois, actualmente, nenhum dos filhos ali vive. Dispersaram-se por várias partes do país, tendo alguns deles falecido, tal como os pais. Milda de Jesus Olas era a mais velha, teria 69 anos se fosse viva. Manuel Olas, outro dos seus irmãos tem 66 e Antero, com 63. Os anos foram passando. A idade não perdoa. António Olas, telheiro de profissão, natural da Touça, fervoroso habitante da Lousa, conhecedor de Moçambique, acaba por falecer em Oeiras onde está sepultado, 352

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a 19 de Junho de 1993. Com ele, a esposa quis ficar, porque nesse tempo longínquo, a mulher casava para toda a vida, e acompanhava o marido na vida e na morte com uma resignação e aceitação fantástica que agora já não se verifica. A ele se juntou a 27 de Fevereiro de 1996. Agora, já os netos dão continuidade à família, mas nenhum deles mais seguirá a profissão de telheiro, tanto do lado do António, como do Jacinto. Porque esta profissão desapareceu também. As fábricas modernas fazem telha moderna, evoluindo igualmente como o fez a família Olas, como evolui a sociedade e os tempos. A criação duma sociedade sem capitais Para que se começasse a trabalhar, e em face da falta de dinheiro e de bancos para dar crédito, e porque se descobriu que havia pessoas interessadas em fazer sociedade sem capitais, optou-se por esta solução. Cada interveniente oferecia o que podia e com o que podia contar que era como quem diz a força de trabalho de cada um. Era o melhor capital que se podia dar. Em vez de sócio, começou a chamar-se mieiro à pessoa que se tinha disposto a ajudar nos trabalhos. Não houve escritura de constituição de sociedade. Formalizou-se apenas um contrato de cavalheiros entre as partes interessadas, cabendo a cada uma as suas tarefas, dispondo das matérias-primas, da força e meios de produção, conforme o que cada um podia dispor. As partes envolvidas na sociedade eram: o mestre telheiro, o pro­ prie­tário do terreno onde havia o barro, o mieiro que se dispunha a ajudar nos trabalhos com o que possuía (força de trabalho dele, dos seus animais, etc.) e o dono do forno. Cada uma das partes tinha a sua comparticipação no processo de produção e, em troca, recebia uma certa quantidade do produto final: a telha. Digamos que era uma forma arcaica, bastante medieval de consti­ tuir uma sociedade, de criar uma unidade de produção e da distribuição de resultados: todos patrões, todos trabalhadores, todos sócios, todos participantes nos lucros. Não deixa de ser interessante este exemplo Número quatro

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concreto, que podemos muito bem enquadrar no espírito do comuni­ tarismo artesanal. Nesta sociedade tudo estava pensado ao pormenor: os materiais necessários, a mão-de-obra, os meios de produção, a força de trabalho/ /energia, os lucros, e até a habitação e horta para produzir os alimentos essenciais. Uma sociedade perfeita baseada na palavra, na honra do acordo verbal, na garantia da sobrevivência e na obtenção de lucros, correspondendo aos interesses e anseios de todos. Para isso fez-se uma proporção para cada um dos sócios, diga-se mieiros. Vejamos o que competia a cada um deles: O telheiro ajudava a construir o forno, o barreiro e a estada. Comprometia-se também a retelhar a casa de habitação fornecendo toda a telha necessária sempre que fosse preciso. Ao telheiro era imcumbida também a tarefa de fazer a prospecção dos barros a utilizar acordando com os donos dos terrenos em lhe entregar, por cada fornada de telha, um cento de telhas ao dono do barro vermelho, e apenas meio cento ao dono do barro chamado lôdo, que era uma mistura de barro para que o encarnado não rachasse. A técnica era esta: o barro encarnado era muito forte e com o sol rachava. Misturando-lhe uma percentagem, cerca de 10 a 20 % do tal lôdo, este ficava mais fraco e com melhor liga, ou pode-se dizer mais macio, e assim se obtinha óptimos resultados. O telheiro devia manufacturar cerca de 6.500 telhas, que era a quantidade que cada fornada dava. Ajudava a tirar o barro e carregá-lo em carros de bois para o barreiro. Por seu turno, o mieiro tinha de fornecer ao telheiro: 2 litros de azeite, 1 arroba de batatas e 16 pães; tinha de fornecer lenha necessária para a cozedura da telha que era normalmente cerca de 200 molhos de lenha (feixes) e silvas; ajudar a arrancar o barro, fornecer junta de bois para o transporte do barro até ao barreiro, cerca de 10 carros de barro encarnado e 4 de lôdo mais um de areia; amassar o barro com os ditos bois; ajudar a desenfornar a telha, e receber a sua legítima parte, que normalmente eram 3000 telhas. Ao dono do forno, pelo aluguer do forno e um pedaço de terra para o telheiro fazer a horta, eram entregues 300 telhas. Quer dizer, o telheiro ficava com cerca de 50 % da produção, que depois tinha de vender para realizar o dinheiro que lhe fazia falta para as despesas da família.Venda feita 354

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no local e a dinheiro contado. Desta forma se constituiu uma sociedade sem capitais que deu os seus frutos e permitiu o aproveitamento da força natural do homem e dos produtos da natureza. Para além de ter contribuído para cobrir milhares de habitações e palheiros, utilizados pelo homem para viver, para guardar os animais ou para guardar os produtos e alfaias agrícolas. Conclusão Ao concluir este trabalho sobre os telheiros da Saíça e da Lameira do Lagarto, na Lousa, temos de reconhecer que conseguimos partilhar com todos os leitores uma forma diferente de fazer História: dar a voz ao povo. Porque a História não se faz só com os políticos e governantes, com os sábios e letrados, com os mais inteligentes e bafejados pela sorte, não se faz só com os que mais se destacam no país ou até no concelho. Faz-se também com homens anónimos, que dão o seu melhor participando na construção da sociedade. Os telheiros foram, na Lousa ou onde existiram, homens de trabalho, gente do povo, homens que também tiveram inteligência e capacidade, homens que também aprenderam a arte de fazer a telha transformando-a em parte integrante das suas vidas. Por isso, e apesar de querermos ainda saber mais sobre os telheiros e seu passado, sobre outras histórias da nossa terra, acreditamos que este trabalho, ao ser partilhado com o público, pode vir a ajudar a que, aqueles que têm histórias de vida interessantes para contar, as contem, a nós, a outros, a quem lhes possa dar voz. A arte de fazer a telha, a forma de fazer sociedade criando uma empresa sem capitais, a situação dos fornos da telha, a história desse tempo que aqui deixamos, bem como a constatação de que a Lousa é Terra de Emigrantes e de migrantes internos, são aspectos interessantes e merecedores da vossa atenção. O fabrico da telha na Lousa comportava três fornos, sendo 2 na Saíça e 1 na Lameira do Lagarto. Foi a família Olas que trouxe essa arte Número quatro

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da aldeia da Touça, Vila Nova de Foz Côa, margem esquerda do Douro, nos inícios do século XX. É nos anos sessenta deste século (1966/67), com a Guerra Colonial e a emigração para África que os Olas deixam o fabrico da telha na Lousa, extinguindo-se essa indústria definitivamente naquela povoação e no concelho de Torre de Moncorvo. Como muitas outras famílias, os descendentes dos telheiros não ficaram naquela terra onde nasceram e ajudaram os pais nos trabalhos do fabrico da telha e nas tarefas do campo. Emigraram para África. A independência das colónias portuguesas não foi o suficiente para que se fixassem na sua terra natal. Hoje, desenvolvem as suas vidas noutras partes do país, desempenhando outros ofícios que tiveram de aprender. Contudo, uns mais, outros menos, visitam a Lousa e Moncorvo sempre que podem, trazendo este recanto do nordeste sempre com eles, onde quer que se encontrem. Fontes e bibliografia Para trabalhos deste género, as fontes utilizadas são, essencialmente, as orais. Obtivemos a informação junto de várias pessoas destacando, entre elas, Mário António Félix, natural da Lousa e a residir em Moncorvo, com 82 anos (em 2003); António Eduardo Olas, natural da Lousa e com 67 anos em 2005; António Augusto Tavares (Morgado), natural de Lousa e com 79 anos (em 2002). Para além disso, foi impor­ tante o nosso conhecimento pessoal e a constatação dos vestígios ainda conseguidos e visíveis. ALVES, Jorge Fernandes, Os Brasileiros, Emigração e Retorno no Porto Oitocentista, Porto, Gráficos Reunidos, 1994. ALVES, Padre Francisco Manuel, Memórias Arqueológico Históricas do distrito de Bragança, Tomo X, Bragança, 1987. A Olaria no Nordeste Transmontano, in Artes e Tradições de Bragança, Colecção Artes e Artistas n.º 7, Terra Livre, 1984. CHELA, João da, África Lusíada, (Crónica Colunado da Cela), Lisboa, Editorial Orion, Tipografia Garcia e Carvalho Lda., 1956. 356

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Arqueologia Industrial em Torre de Moncorvo CHELA, João da, Caminho Eterno, Sá da Bandeira, Edição do autor, Tipografia Porto Médico Lda., 1967. COSTA, Fátima e MARQUES, António, História e Geografia de Portugal, Sá da Bandeira, Porto Editora, 2005. MACEDO, Manuel Marinho, e FREITAS, Maria da Graça, Olaria do Felgar, Torre de Moncorvo, Catálogo, Barcelos, Câmara Municipal de Barcelos, Museu de Olaria, n.º 1, 1988. MENDES, J. M. Amado, Trás-os-Montes nos fins do século XVIII segundo um manuscrito de 1796, 2.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Junta Nacional de Investigação Científica, Junho de 1995. MOUTINHO, Viale, Oleiro do Felgar, Lisboa, Diário de Notícias, 5 de Junho de 1980. RODRIGUES, Adriano Vasco, Olarias do Felgar, Lisboa, Mensários da Casa do Povo, n.º 12, 1958. TAVARES,Virgílio, Lousa História e Tradições,Torre de Moncorvo, edição do autor com o Patrocínio da Câmara Municipal de Moncorvo, 1995.

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Recensões críticas



Recensão Crítica Revista Superior D’Ouro, Contributos para a Preservação do Património Cultural do Douro Superior, n.º 1, Torre de Moncorvo, 2009

A direcção da Revista Campos Monteiro – história, património, cultura

A indiscutível virtude da Revista Superior D’Ouro reside no facto de ter nascido a partir do valioso acervo que encerra o Núcleo Museológico da Fotografia do Douro Superior, inaugurado em Julho do presente ano, em Torre de Moncorvo, pelo Senhor Professor Adriano Vasco Rodrigues. Esta publicação transporta-nos, assim, para qualidades múltiplas: o valor dos artigos de que se compõe e que têm, como mais valia, a fotografia como suporte significativo para a sua compreensão; a possibilidade de novos estudos centrados nos registos fotográficos ou por estes complementados; o apelo ao conhecimento do valioso espólio que serve o concelho de Moncorvo e outros. Se é verdade que a nossa história local nunca foi negligenciada ela é, agora, indiscutivelmente facilitada pelas leituras ou releituras interpretativas do material facultado por este espaço de cultura. E aqui se assinala a generosidade do seu proprietário – Arnaldo Silva – que o coloca ao serviço dos investigadores e de mais interessados abrindo um campo de infindáveis perspectivas para o conhecimento da região. A Revista, esteticamente bem concebida, representa, enfim, Número quatro

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A direcção da Revista Campos Monteiro

a união feliz de documentos vários cuja riqueza está bem expressa no conjunto dos trabalhos que oferece. Publica, ainda, para além das fotografias que ilustram os artigos, outros preciosos e raros exemplares, apontando já alguns para os temas do próximo número. Sobressai, neste conjunto, a da Casa do Cacau de Torre de Moncorvo e que se exibe na capa, numa simbiose perfeita da sua cor do tempo com os dourados, brancos e pretos que a rodeiam. A legenda que lhe corresponde diz-nos tratar-se de “um registo de elevado valor patrimonial e cultural” e que duas das colunas que lhe pertenciam se encontram, agora, no interior do Museu. A Revista abre com o artigo de António Júlio Andrade, Nos primórdios da fotografia em Torre de Moncorvo. O autor reporta-nos às primeiras notícias sobre a arte da fotografia em Moncorvo veiculadas pelo jornal Moncorvense. Entre elas, cita a da edição de 7 de Agosto de 1892, que refere a existência, na vila, do estúdio de B. Machado, fotógrafo do Porto que aqui se instalou. Moncorvo era, também, demandado por fotógrafos ambulantes a expensas de famílias abastadas que os contratavam para captarem algum acontecimento especial. E é o retrato de um deles, de alcunha Santa Velha, que se mostra. Tomamos conhecimento, ainda, que das fotografias mais antigas conhecidas e reproduzidas em papel, a do Convento de S. Francisco, apresenta a data de 1865. Adriano Vasco Rodrigues escreve sobre o Pobre Comboio do Douro. Lembra, em tom nostálgico, a pujança do Rio de outrora que “corria desenfreado inundando margens” e toma, como promessa vã, a sua navegabilidade futura. Lamenta, no mesmo ritmo literário de grande realismo, a perda do comboio e de toda a azáfama de gentes que envolvia, o desaparecimento da magia dos lagares do vinho da Régua e da sua paisagem, as guerras das barragens… E tudo lhe é dado perceber numa tradicional viagem de trem – mas sem poesia e sem história –, desoladora percepção do fim de uma época sem retorno que expressa no conjunto de lucubrações que partilha connosco. O seu trabalho integra 362

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Recensão crítica a Revista Superior D’Ouro

uma notável imagem do comboio a entrar na estação do caminho-de- -ferro em Moncorvo. À volta de três fotografias é o trabalho assinado por Carlos Seixas. Anota que as fotografias que estão na sua base lhe foram cedidas por José Manuel Ruano. Datam de 1 de Janeiro de 1894 e o Padre Adriano Augusto Guerra é o seu autor. O Colégio de Santo António, A Corredoura e O Theatro são as partes constituintes deste estudo que motivam o desfiar de preciosas e específicas informações: a criação e aspectos da vida do Colégio; uma das tricas políticas de outros tempos que teve lugar na Capela de S. Sebastião entre os Padres Adriano Guerra e Francisco A. Tavares; a representação levada a cabo por um grupo de amadores de teatro de Moncorvo, que existia em 1894, no edifício da Igreja do Convento Franciscano e que funcionava, então como teatro. Podemos apreciar, ao mesmo tempo, os conjuntos arquitectónicos da época, como o edifício do Colégio de Santo António, a Igreja e o Convento de S. Francisco, bem como a Corredoura, que o autor destaca como um espaço que destoava do resto da Vila por ser essencialmente rural e com um casario térreo e pobre. Carlos d’Abreu, em O início da construção da Linha do Sabor e a chegada do comboio a Torre de Moncorvo, desenha-nos o complexo processo do estabelecimento das linhas ferroviárias no Norte do Douro. Remontando aos estudos elaborados em 1878, fala-nos nas diversas opções de traçados, ponderadas umas e outras à luz das dificuldades de execução e exigências de construção de infra-estruturas que tornassem os projectos viáveis debatendo-se, ainda, as vantagens de uns e de outros. O autor aponta a insuficiência destas vias na região e o abandono a que neste campo estava votada, exigindo das edilidades locais constantes chamadas de atenção junto do poder político de Lisboa. A sua existência conduz ao desenvolvimento, perspectiva que Carlos d’Abreu claramente fixa entre os detalhados trâmites descritos no que à construção do caminho-de- -ferro do Pocinho a Miranda respeita. Oficialmente, o comboio começou Número quatro

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A direcção da Revista Campos Monteiro

a silvar em Torre de Moncorvo, em 1911. O trabalho é acompanhado de um conjunto de fotografias de grande beleza. Por este Douro abaixo, a primeira viagem ao Porto de Trindade Coelho e Campos Monteiro, de António Pimenta de Castro, fecha o conjunto de artigos que compõem este primeiro número da Revista. O autor reúne os dois escritores numa mesma experiência: a viagem de barco desde a foz do Sabor até ao Porto, dando voz a cada um deles quanto às impressões da mesma. Trindade Coelho saiu de Mogadouro, sua terra natal, em 1873, para prosseguir estudos no Porto. Confessou, mais tarde, que nunca iria esquecer-se dessa viagem referindo “uns poucos de dias” na sua duração. Campos Monteiro partiu do seu “pacato burgo de Moncorvo” com oito anos. Deixa-nos, com a profusão de pormenores a que recorreu, acompanhá-lo desde o ponto de partida, Rego da Barca, numa viagem não isenta de sustos e de rezas, até ao seu destino. Pimenta de Castro ressalta este receio de naufrágio nesse “rio de mau navegar”. O autor juntou duas importantes fotografias que retratam os escritores. Numa síntese do nosso comentário, permitimo-nos concluir que a imagem e os seus referenciais geram um discurso que desencadeia outros discursos, pela pluralidade de sentidos que comporta e pelos tempos diversos que trespassa. Assim, a fotografia revela o dinamismo de uma sociedade, quer pelas informações que difunde através da sua estética de comunicação, quer, ainda, pelas reflexões que desperta.

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Recensão Crítica Júlia Guarda Ribeiro, Primeira Comunhão, Ilustração de Guilherme Correia, Leiria, Folheto Edições & Design, 2008 Adélio Amaro*

A comunhão de ideias poderá ser o silêncio para a confissão da liberdade.1 Isto é, se somos livres em pensar teremos de ser livres em actuar, não esquecendo que só poderemos ser verdadeiramente livres se acreditarmos na liberdade do próximo. A tentativa de actuar segundo os nossos conceitos é algo que nos poderá limitar a liberdade de pensamento e mesmo liberdade de actuação. E, é neste factor de movimento, entre actuar ou não actuar, que temos de gerir, dado destaque à nossa liberdade de imaginar, idealizar mas também de sentir e de realizar. Ora, como definiu Gandhi, “De nada adianta a liberdade, se não temos a liberdade de errar”. Mas, por outro lado, existe a necessidade de conviver e respeitar a liberdade dos outros. Porque as opiniões, os conceitos e as necessidades são diferentes de pessoa para pessoa. Professor de História; editor.

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Se vivemos numa sociedade, teoricamente gerada por regras, que limita, muitas vezes, a nossa forma de actuar, é cada vez mais difícil de concretizarmos a nossa liberdade de pensar. E, neste sentido, existe sempre a necessidade de saber quais os pensamentos dos outros para que nós possamos agir antes, para que a nossa liberdade não seja tocada. E, como pensar ainda é um bem totalmente livre, temos a necessidade de silenciar aquilo que queremos guardar dos outros, um pouco como uma frase de Camilo Castelo Branco: “O silêncio é uma confissão”. Agora, pensemos como era gerir a forma de pensar e o conceito de actuação baseado nas nossas ideias, cerca de 70 anos atrás. - Onde a liberdade era condicionada pela ideias radicais de alguns e de algumas instituições; - Onde a mulher era considerada como um objecto; - Onde a verdade, na maioria das vezes, era sinónimo de prisão; - Onde a guerra era a liberdade do poder; - Onde o medo era palco do raiar do sol e a confissão era murmurada ao luar; - Onde a comunhão de ideias era considerada conspiração; - Onde o conceito de família era intocável, mesmo que este fosse baseado em violência; - Onde a igreja coordenava o povo e o poder político geria-o… O conto que a Dra. Júlia Guarda Ribeiro nos dá a conhecer é uma realidade que não pode ser escondida e que durante muitos anos teve a sua liberdade condicionada a uma confissão. Passo a explicar: este conto tem uma personagem principal, descrita pela narradora. Esta, por sua vez, é a filha de personagem principal. Uma mãe, solteira (sublinho o facto desta história se passar pouco depois da 2.ª Guerra Mundial), portanto, uma mãe solteira, com uma filha com nove anos. Uma mãe, como a autora refere, “jovem, cheia de força e de coragem”, que trabalhava no campo e ao fim do dia cobria amêndoa com açúcar em ponto de pérola para nas tardes de domingo vender na praça. 366

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Recensão crítica a Primeira Comunhão

Uma jovem mãe solteira, analfabeta, que vivia em Trás-os-Montes. Que tinha a dureza da vida cravada nos punhos e gravada na mente. Uma jovem a quem o padre negara o direito à comunhão, por ser mãe solteira. Assim, para esta jovem mãe, a sua filha era o seu reino, não o reino dos Céus, mas o reino da afirmação, onde ela se revia. Um reino de vida, de harmonia, de simplicidade e de pureza. Contudo, a dor profunda de não poder comungar, deu-lhe o direito de não gostar da atitude dos padres, ao ponto de referir: “São homens. Podres como os outros. Se os não caparam lá no seminário são iguais aos outros”. Mas, mesmo assim, a sua liberdade de pensar não lhe roubou o direito de confessar os seus pecados a Deus. Todos os domingos esta jovem mãe ia à missa. Vestia o fato de domingo, preparava a sua filha como a verdadeira rainha do seu reino e levava-a pela mão. Vaidosa, respondia às vizinhas quando estas lhe diziam: “Que linda vai a tua menina”: - “É para que o pai a veja e se reveja” (…) “Quem faz filhos em mulher alheia, perde-lhes o direito e o feitio”. Com o aproximar da data da Comunhão Solene, em Junho, esta mãe procurou o melhor tecido para o vestido da sua filha. A jovem mãe revia na sua filha a única forma de comungar. Isto é, já que o padre lhe negara tal direito, a vingança que ela pretendia perante o padre, era a oportunidade de ver a sua filha comungar. A determinada altura, a narradora puxa a si o direito de persona­ gem. Sendo a narradora a filha, esta descreve o penoso passo que teria de realizar antes do dia da comunhão: a confissão. Só que para ela, filha, existia um pecado que temia contar ao padre e muito mais à sua mãe. No dia da confissão, contou todos os seus simples e comuns pecados de uma criança de 9 ou 10 anos. Número quatro

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Adélio Amaro

E, de voz trémula e mãos escorregadias de suor, desabafou e contou o seu grande pecado ao padre… Pecado esse, tão grave, ou não, que o padre a penitenciou com 50 pai-nossos, 50 avé-marias, assim como contar tal pecado à sua mãe. Mas, na cabeça daquela criança de nove anos, era preferível rezar 1000 pai-nossos e 1000 avé-marias a ter de contar tal pecado à mãe. Não por medo de esta lhe bater, mas sim com receio e pena de esta ficar desgostosa, tendo em conta todo o seu empenho na comunhão da filha. Que pecado será este? Ficará para o leitor descobrir… A verdade é que esta criança, rodeada de carinhos, mas também de uma educação rigorosa, com uma vida simples e humilde, foi confrontada com a obrigação de revelar os seus pensamentos. Pensamentos estes fruto das suas acções. Este conto de Júlia Guarda Ribeiro faz-nos reflectir sobre o conceito de liberdade com que comecei esta intervenção. Numa igreja, como instituição, que viveu cerca de 12 séculos sem a confissão e se o próprio Santo Agostinho nunca se confessou, porque razão temos nós de contar os nosso pecados ou segredos a um homem que usa o nome de Deus e se diz Seu porta-voz? Esta era uma questão que daria para um longo debate… A autora, através deste curioso e muito interessante conto, revela-nos a forma como Portugal viveu uma determinada época que ainda nos dias de hoje tem os seus frutos espalhados por vários pomares da vida. A revolta a que assistimos perante o padre, por parte da jovem mãe, demonstra o lado menos bom de uma sociedade ágil em criticar e parca em conciliar. Começando pelo representante de Deus, o padre, que a determinada altura da confissão deseja, em voz alta, que a mãe da menina lhe bata para ela não voltar a pecar… Por que razão a igreja ignorava, e se calhar ainda ignora, as palavras de Jesus Cristo, quando Este reflectiu: “Quem estiver limpo de pecado, atire a primeira pedra.”? 368

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Recensão crítica a Primeira Comunhão

Numa sociedade de telhados de vidro e de paredes de barro, vivemos ainda numa guerra de pedras. Devido a um conceito, imposto por uma religião, que nem sempre existiu, esquecemos os verdadeiros valores da Igreja, começando por alguns representantes de Deus, e limitamo-nos a atirar pedras para os telhados dos vizinhos. Esta menina, viveu dias de amargura por um pecado, se calhar inofensivo, porque não teve a ajuda de um padre. Que no momento de explicar e de a fazer entender, apenas se limitou a ralhar, mandar rezar e principalmente humilhar a criança perante a sua mãe. Afinal, será que Fernando Pessoa teria razão, quando escreveu “Deus é um conceito económico. À sua sombra fazem a sua burocracia metafísica os padres das religiões todas”? Caros possíveis leitores, ao lerem este conto, irão ver que por causa de uma bolinha saltitona, lacramos os sonhos de uma criança e orientamos as suas ideias por caminhos inseguros de esperança, de amor e mesmo de humildade. Santo Agostinho referia que “é melhor coxear pelo caminho do que avançar a grandes passos fora dele. Pois quem coxeia no caminho, ainda que avance pouco, atem-se à meta, enquanto quem vai fora dele, quanto mais corre, mais se afasta”. A jovem mãe deste conto, era solteira, mas trabalhadora, humilde, honesta, amiga de ajudar e confiava a vida da sua filha nas mãos de Deus. Será isto pecado?

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Recensão Crítica Júlia Guarda Ribeiro, Primeira Comunhão, Ilustração de Guilherme Correia, Leiria, Folheto Edições & Design, 2008 Graça Abranches*

Num célebre ensaio publicado em 19361,Walter Benjamin dizia-nos que a arte de contar histórias estava a chegar ao seu fim. Cada vez menos se encontravam pessoas capazes de contar uma história como deve ser; cada vez mais era visível um embaraço geral quando alguém exprimia o desejo de ouvir uma história. Para o filósofo, isto significava a perda de um bem precioso, que parecera inalienável, e que é a capacidade de trocar experiências. Porque o contador ou a contadora tira o que conta da experiência – da sua própria experiência ou da experiência que lhe foi contada por outros, já que contar histórias, como também nos diz Benjamin, é sempre uma arte de contar outra vez, uma arte de repetir histórias; histórias que, ao serem contadas, se tornam, como sabemos, em experiência de quem ouve o conto.

Professora universitária aposentada. Walter Benjamin, “The Storyteller: Reflections on the Works of Nikolai Leskov”, in Illuminations, edited and with an introduction by Hannah Arendt, translated by Harry Zohn, New York, Schocken Books, 1969, pp. 83-109. * 1

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Se bem que no mundo de hoje seja ainda mais óbvia do que há setenta anos a perda de valor (de mercado) da experiência – reconversão, flexibilidade e mudança são alguns dos modernos eufemismos que designam os “valores” em alta –, e que mais não tenha feito do que acentuar-se a dependência da “informação” como forma privilegiada de comunicação (de preferência “na hora”, e “em directo”), a verdade é que as histórias e a arte de as contar ainda não chegaram, felizmente, ao fim. Nem, com elas, o acto de comunidade que é contar, ouvir ou ler uma história. Ou seja, como dizia Benjamin, trocar experiências. Obrigada por isso à Júlia, herdeira de uma longa e tão nobre linhagem de contadeiras desta terra, por nos permitir reencontramo-nos aqui hoje, para celebrar a chegada de um novo conto. Um conto que é um novo episódio da crónica das terras de Moncorvo através das maravilhosas histórias das suas gentes – este projecto perseguido com atento e paciente cuidado por Júlia de Barros Biló e que se começou a concretizar há nove anos, com a publicação de Contos ao Luar de Agosto e de Somos poeira, somos astros. Nesses livros, como se recordarão, se reuniam histórias contadas no terreiro da Corredoura, contos, lenga-lengas, poemas e cantos a várias vozes, a que logo se juntariam, um ano depois, um segundo volume de Contos do Terreiro e a colectânea de crónicas e histórias De Olvido e de Silêncio. Em 2003, com a “quasi-biografia” de Constantino, Rei dos Floristas fechava-se aquilo que poderemos considerar um primeiro ciclo de histórias que, num riquíssimo painel polifónico do viver colectivo, resgatavam a memória das gentes (ditas) “sem história” de Torre de Moncorvo. (E deixem-me perguntar: é para quando, a tão esperada e necessária reedição destas histórias?) Passaram-se, entretanto, mais três anos. E parece que em 2006 se abriu um novo ciclo com …e chegaram três Reis Magos em Agosto. A belíssima história do Natal da Júlia. Lembram-se? Agosto de 1938, o nascimento da menina, a chegada dos republicanos espanhóis foragidos, quais reis magos de liberdade; a coragem, a força, a ternura, a generosidade 372

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solidária e a compaixão de Maria Biló; a lição que com ela aprende o Sr. Barros; a menina bem-fadada que nasce à margem da lei dos homens mas sob a boa estrela da resistência, da solidariedade, da luta, da liberdade. E adormecida durante a “acção” do conto, temos Antónia, a mãe-menina. Um conto com tempo e lugar, em que, como sempre em qualquer boa história, se entretecem os fios das histórias pessoais e da história colectiva. Mas parece que agora é mais a história de Júlia, a sua biografia, que estará no centro deste novo ciclo que se anuncia. Não começa ele com o seu nascimento? E não continua agora com a Primeira Comunhão? Ou será que esse centro, de que, há tantas histórias, a nossa ouvidora-contadeira se vem, de mansinho, aproximando2, é antes a mãe-menina-adormecida da história do seu Natal – a sua mãe-heroína, Antónia Biló? Como o título indica, o momento deste novo conto é a Primeira Comunhão, aquele momento de vida tão importante em que história pessoal e história colectiva se entrecruzam e que ficava marcado como nosso primeiro “acto público”. Por isso a gente do meu tempo se lembra – como para o primeiro exame – da roupa que levou vestida na comunhão solene; do misto de vergonha e orgulho de ir pela rua para a igreja com aquelas fraldas brancas em espécie de noiva pequenina com todo o mundo a olhar para nós; do esforço em compor um ar compenetrado e recolhido de santinhas; e lembra-se também dos vestidos das outras (por muito pouco cristãos que fossem os sentimentos que nos inspira­ vam); e dos meninos, coitados, tão desajeitados, alguns ainda de calções, outros a estrear calça comprida, com aqueles enormes laços de cetim no braço e a velinha na mão.Toda a gente tem ainda memórias dos horrores das confissões (não necessariamente a primeira), dos medos do inferno e das angústias dos pecados “inconfessáveis”; a todas aconteceu um dia Veja-se “As Figueiras da Torre da Igreja”, “Domingos da minha infância”, “Padre Nosso, Pequenino”, “Madalena Menina/Madalena Arrependida”, “Santa Helena, rainha de Sena”, em Somos poeira, somos astros, 2000; “Nota Introdutória”, “Os três grãos de cevada”, “Uma colher de Cornelho”, em De Olvido e Silêncio, 2001; “A flor da esteva”, em Os contos da minha avó, 2003 e, claro, … e chegaram três Reis Magos em Agosto, 2005. 2

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ficar com a hóstia colada na boca e não saber como ir despegá-la sem pecar; ou roçá-la pelos dentes (que horror, terei mordido Nosso Senhor, nada me salva das penas do inferno); ou ter quebrado o jejum dando por esquecimento uma trinca num pão e ter comungado depois. Não é por acaso que várias histórias de primeiras confissões / primeiras comunhões, umas mais “literárias”, outras mais comezinhas, me vêm à memória3 – é que este primeiro “acto público” vinha banhado de “eternidade” (fosse ela a da salvação ou a da perdição) e em terras católicas não podia haver infância que se prezasse sem a memória de ter – ou de não ter – passado por essa prova, esse ritual de passagem que nos tornava membros por inteiro da comunidade. A história que a Júlia nos conta (e que eu, claro está, não vou contar – vamos ouvi-la depois, na voz de uma menina que fez com a Júlia a primeira comunhão, a Lucinda) partilha com as memórias de toda a gente a recordação do vestido branco (de xantungue de seda, que havia de servir depois, encurtado, para o exame da 4ª e da admissão aos liceus), e a ansiedade e angústia de uma história de confissão, penitência e pecados. Mas a prova da Júlia é uma prova muito mais séria do que aquelas nossas historinhas infantis de pecadilhos e dos terrores – bem reais – que nos provocavam. Porque é uma prova que, como todas as provas verdadeiras, implica uma escolha moral, e uma escolha que obriga a pesar as consequências em terceiros das opções que se nos apresentam. O contexto “da vida real” é aqui muito importante. O tempo e o lugar. E Júlia mostra-o com toda a exactidão, esse pós-guerra de escassez e aperto, esse tempo fechado de vidas estreitas, hipocrisias e crueldade do Portugal rural da ditadura. E porque se lembra de como se “entretecia o fio das histórias que ouvia contar na sua infância”, em que era o diálogo que fazia “as personagens viver, os factos acontecer e a imaginação Sem ir procurar na estante, lembrei-me logo de duas memórias irlandesas, a de Frank O’Connor, First Confession, 1950 e de Frank McCourt, Angela’s Ashes – A Memoir of a Childhood, 1996, e da açoriana, Isaura Rodrigues, “O diabinho venceu”, em Nos degraus da memória, Horta, 2000. 3

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Recensão crítica a Primeira Comunhão

galopar”4, Júlia põe no centro deste palco Antónia Biló e dá-lhe a palavra. Antónia Biló. Trabalhadora rural, cobrideira de amêndoa, mãe solteira. Como marca simbólica da sua marginalidade social, sua letra escarlate, foi-lhe negado pelo senhor padre o direito à comunhão. Mas ela fala. Ah, e como Antónia fala. Como é esperta, como é corajosa. E que dignidade. Que ousadia. Que determinação. Que sentido de humor e da palavra certeira. Nada a verga. A sua única vulnerabilidade é… a sua menina. Para ela vive, por ela vive. E, muito humanamente, esperará que ela viva também por si. A comunhão da Júlia vai ser assim a sua primeira comunhão, mas também a comunhão que o padre negou a Antónia, sua mãe. Que peso tremendo para uma menina de nove anos. Viver por si e viver por sua mãe. Quando surge o conflito interior – feita a confissão ao padre, cumprida a penitência de Ave-Marias e Pai-Nossos, que fazer? Contar tudo à mãe, como ele hipocritamente ordenou, para obter o seu perdão (o perdão da “excomungada”) e com ele o direito de no dia seguinte se dirigir, como uma boa cristã, à mesa do Senhor? A Júlia, confessa-nos, odiará a sua Primeira Comunhão: odiará o vestido, o padre, a confissão, a penitência, a existência de pecados; odiar-se-á, nesse dia, a si mesma. Por certo porque nesse dia não pôde viver como criança a sua comunhão solene. Perante um conflito ético, fizera a escolha difícil da assunção de responsabilidade pelo outro e vivera sozinha a sua escolha. E no grande dia, viveu pela mãe a sua comunhão. Tornara-se uma menina-crescida. Num certo sentido, foi esse o seu ritual de passagem. A sua primeira comunhão foi a sua saída da infância. Comecei por evocar um ensaio de Walter Benjamin, a que retorno agora, para fechar. Diz-nos ele que todo o conto contém, à vista ou bem escondida, alguma coisa de útil – e que esta ‘utilidade’ pode ser uma moral, ou um conselho prático, um provérbio ou uma máxima. Que a verdadeira contadora ou contador tem sempre um conselho para os seus Júlia de Barros Biló, “Nota Introdutória”, Constantino, Rei dos Floristas. Uma Quási-Biografia, Leiria, Magno Edições, 2003, 14. 4

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leitores – e que só porque a comunicabilidade da experiência se tem reduzido tanto é que este “aconselhamento” nos soa tão fora de moda. Diz ainda Benjamin, e muito justamente, que, no fim de contas, este conselho que nos é oferecido é menos uma resposta a uma pergunta do que uma proposta que diz respeito à continuação de uma história que se está a desenrolar. Uma história que não está acabada. A tal troca de experiências? Acho isto tudo muito verdade, quando leio a Júlia. Conselho entretecido no pano da vida real é sabedoria. E cada um de nós colhe o seu, em Primeira Comunhão. Além do prazer, ficamos mais sábias, e agradecidas. É por isso talvez que Benjamin disse também, e eu adapto e digo com ele, que contador ou contadeira é a figura em que o homem bom ou a mulher justa se encontram a si próprios. Como “máxima” para hoje oferecer à Júlia, acho que esta nos pode bem servir. Aqui lha deixo, com muita amizade.

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Recensão Crítica Adília Fernandes, O Lugar Feminino no Liceu Sá de Miranda (Braga, 1930-1947), Palimage, Coimbra, 2009 Justino Magalhães*

1. Em O Lugar Feminino no Liceu Sá de Miranda (Braga, 1930-1947), a autora, Adília Fernandes, caracteriza e referencia o desenvolvimento histórico da educação do feminino, concluindo que, em Portugal, a partir de 1906, foram criadas condições curriculares e institucionais para uma educação liceal diferenciada para os géneros feminino e masculino.1 Em seu entender, tal educação escolar consubstanciou-se numa formação específica que tornasse a mulher elemento regenerador da família, da raça e da Nação. A consagração destes princípios afeiçoou a mulher a um determinado estatuto e foi posta em prática de acordo com as diferentes reformas educativas. Com o Estado Novo, apesar do reconhecimento ao voto (consagrado pela lei eleitoral de 1934) e da abertura profissional, recaiu sobre as mulheres a manutenção da moral familiar. Foi essa a orientação consagrada na adequação do curso geral do liceu. Professor catedrático da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Lisbo. *

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2. Sob a designação dualidade feminino/masculino: concepção histórica, Adília Fernandes traça uma genealogia da diferença entre o masculino e feminino, começando na Grécia Clássica e vindo até ao século XX. Para documentar uma binomia de tão longa duração, recorre a tratados e estudos científicos, religiosos e filosóficos, e mostra como as sucessivas gerações foram sendo influenciadas pela visão tradicional assente em ideias defendidas por muitos autores considerados autoridades irrefu­ táveis. Frequentemente, as opiniões desses autores foram reverenciadas como verdades absolutas, de que resultaram leis ou códigos de conduta. Assim, no início da Idade Moderna, dando cumprimento a esses princípios, pais e tutores ou as próprias instituições ofereciam uma formação centrada na aprendizagem do catecismo e nos valores da obediência e da modéstia, que eram então os requisitos desejáveis e aprovados para as mulheres da aristocracia. A mulher não partilhava dos avanços educacionais. As oportunidades eram mais restritas que as dos homens da mesma classe social. Fundada em 1684 por Madame de Maintenon, camareira de Luís XIV da França, com apoio do rei, a Escola de Saint Cyr, destinada a jovens aristocratas pobres, tornou-se uma instituição admirada e imitada em toda a Europa. O Salão constituía, na segunda metade do século XVIII, o mais importante centro para o fomento e a disseminação das ideias Iluministas.Tal ensejo permitiu à mulher aristocrata promover-se social e culturalmente, reunindo sob a sua protecção homens e mulheres Ilustrados. Voltaire, declarado persona non grata por Luís XV devido às opiniões críticas sobre a monarquia, recebeu convites das salonières parisienses para aí apresentar os seus pontos de vista. Protectora de um dos mais influentes salões parisienses, Germaine De Stael moveu a oposição intelectual e política contra Napoleão. No contexto do liberalismo, ocorreram as primeiras manifestações feministas, dando corpo a uma filosofia assente em dois princípios fundamentais: o conceito de liberdade individual e a ênfase na razão humana e no conhecimento como bases de uma mudança social. Nesse sentido, foram pioneiros, na Europa Ocidental, os trabalhos de Mary Wollstonecraft que, influenciada pelas ideias de Locke, analisou as 378

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relações entre os géneros humanos como relações sociais hierarquizadas, mas passíveis de mudança. Reagindo a Émile de Rousseau que, em seu entender, continha um conceito de educação que empobrecia a mulher, defendeu na obra, Reivindicação dos Direitos da Mulher, que é a razão que caracteriza a espécie humana e que todos os seres racionais recebem de Deus liberdade, igualdade e propriedade (da sua própria pessoa). Gradualmente, a mulher tinha sido incorporada no sistema educativo, superando o analfabetismo e acedendo aos níveis médios e superiores da instrução. Tal aconteceu na sequência da Ilustração, pelo aparecimento de uma classe média e pela transformação paulatina da economia. As teorias evolucionistas não foram, todavia, suficientes para demover alguns velhos preconceitos e, no final do século XIX, vigorava ainda a ideia de que mais cérebro era necessariamente melhor cérebro. Tal constatação leva a autora a afirmar que “a mudança no plano dos valores não se processa à margem de alterações políticas e económicas (…) na sociedade patrimonial, as fronteiras traçam-se, fundamental­ mente, em termos de riqueza ou de património acumulado pela família”. Com efeito, frequentemente marcadas pelo conservadorismo, para as classes sociais economicamente favorecidas, a educação não constituía condição para a manutenção do seu estatuto social. São as circunstâncias geradas pelo progresso da comunicação escrita e pela alteração dos modos de produção “que criam às mulheres, particularmente às da ascendente classe média, que não se definem nem pelos seus haveres nem pela sua linhagem e compreendem que já nada podem esperar do mecanismo tradicional de heranças, a necessidade de romper as barreiras de acesso ao ensino e de disputar uma oportu­ nidade de carácter laboral. Nesta acepção, a escolha da educação parece resultar, mais do que de uma opção de valores, de uma alternativa económica”. 3. Até 1906, data da criação em Lisboa do Liceu Maria Pia, não existiu em Portugal instrução liceal feminina. As raparigas frequen­ tavam colégios privados e faziam as matrículas de exame nos liceus masculinos. Para não desvirtuar os princípios pelos quais se regia a Número quatro

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educação da mulher, o liceu passava a integrar disciplinas próprias, femininas, que vinham juntar-se às comuns ao currículo determinado para os rapazes. Mantendo constante a ênfase na tarefa maternal, ficava consagrada uma formação que tornasse a mulher elemento regenerador da família, da raça e da Nação. O teor mais progressista era assumido por correntes feministas, enquadradas pelo ideário liberal, apostadas na evolução do estatuto social e cultural da mulher e conscientes do papel que ela pode desempenhar na sociedade. Segundo a autora, o Estado Novo não foi hostil às mulheres, mas encorajou a que permanecessem “no seu lugar”. A lei eleitoral de 1934 permitiu que passassem a poder votar. No entanto, houve um reforço na condição familiar e na sua responsabilidade em benefício da ordem pública e da disciplina pátria, através de um conjunto de estruturas de âmbito nacional: a Obra das Mães pela Educação Nacional, a Assistência Social da Legião Portuguesa, o Instituto Maternal, a Subsecretaria da Assistência Social. Para uma acção focalizada na acção familiar foram criadas a Organização Nacional da Defesa da Família e as Jornadas das Mães de Família. No sentido profissional e no estatuto social, o liceu representava “um espaço de mudança da condição social, por outorgar a aptidão para um desempenho exterior ao mundo doméstico e promover o acesso a um mercado de trabalho mais qualificado” Algumas profissões começavam a apresentar um elevado índice de feminilização. O liceu credenciava para o professorado oficial e particular, designadamente para o Magistério Primário e para a actividade industrial, favorecida pela aquisição de instrumentos no campo dos lavores. Pela reforma de 1936, foi criado um curso especial de educação familiar, correspondendo ao 7º ano. Era composto por disciplinas comuns ao 3º ciclo e disciplinas específicas: Métodos e educação familiar; Economia e arte doméstica; Higiene e puericultura; Roupa branca, vestidos, transformações; Chapéus; Bordados e tapeçarias; Flores e arte aplicada e Culinária. Dividido em dois semestres, destinava-se a alunas com mais de 16 anos que tivessem completado o 2º ciclo e não pretendessem prosseguir estudos superiores, ou para aquelas que, obtido 380

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o diploma liceal, o desejassem integrar. Cabia às reitoras, em colaboração com a O.M.E.N, a realização do curso. 4. O Liceu Nacional Central de Sá de Miranda, que funcionara desde 1902 com turmas mistas, a partir de 1939 passou a contar com uma secção feminina. Na década de trinta era notória a afluência do público feminino, quer na situação de alunos internos, quer de alunos externos. Entre os alunos internos, cabia ao público feminino a melhor taxa de aproveitamento. Esta situação invertia-se relativamente ao público externo. Apesar dos bons resultados das alunas em regime interno, continuava a sentir-se uma grande afluência aos colégios por parte de alunas do concelho de Braga. A procedência das alunas externas inscritas no Liceu ligava-se ao ensino doméstico, ao particular individual e ao particular em estabelecimento. Entre os Colégios femininos destacavamse o Colégio Dublin e o Colégio da Torre. A direcção do primeiro estava confiada aos Padres Franciscanos e a do segundo à Congregação do Espírito Santo e do Coração de Maria. Correlativamente, o Liceu debatia- -se com a deficiência das instalações para assegurar «uma separação perfeita fora das salas de aula». No relatório respeitante ao ano lectivo de 1932-1933, o Reitor Francisco Prieto era de opinião «“que seria talvez de grande alcance que num futuro bem próximo se criasse um liceu feminino nesta cidade”». No entender de Adília Fernandes, “o fim do curso liceal aponta às raparigas perspectivas de futuro com horizontes bem mais limitados que os dos seus colegas do sexo oposto. De facto, constata-se que os anos terminais de ciclo dão expressão a tal realidade, especialmente o 3º ciclo cujo diploma pressupõe a continuação de estudos a nível universitário”. Com efeito, a vantagem em termos numéricos e em termos de aproveitamento apresentada pelo público feminino ao longo do curso geral era interrompida na transição para o Curso Complementar, onde a presença do público feminino assumia carácter de excepcionalidade. Não obstante, observa-se que no último ano do Curso Complementar tendia a intensificar-se a frequência de alunas em regime de internas, posto que a frequência do Liceu se tornava mais eficaz que o ensino Número quatro

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doméstico, particular individual e particular em estabelecimento, na preparação e acesso ao ensino superior. No ensino superior os cursos mais procurados eram os de ensino e o de enfermagem, por se afigurarem mais específicos. Conclui a autora que “mesmo que o universo da cultura lhe seja acessível, o campo de actuação profissional da mulher permanece tímido no conjunto das suas aspirações, pelo que a questão da escolarização feminina deve ser entendida como intencionalmente orientada para a natureza da sua inserção no mundo do trabalho. A escola coloca-a no seu lugar não só quanto aos papéis familiares mas, também, sociais que deve assumir”. Assente numa investigação inédita e bem fundamentada, o livro que agora sai a público constitui um contributo sério numa temática ainda insuficientemente estudada em Portugal. E não se trata apenas de desconhecimento, mas também de uma revisão conceptual. A história da escolarização feminina em Portugal não se esclarece por contraste com a masculina, nem por ampliação do conhecimento geral. Com efeito, conclui a autora, subjacente à educação do feminino estiveram uma dinâmica própria e um código cultural distinto.

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NotĂ­cias



Notícias da Associação dos Alunos e Amigos do ex-Colégio Campos Monteiro • 6 de Dezembro de 2008: lançamento do número 3 da Revista Campos Monteiro – história, património, cultura, na Casa dos Transmontanos e Alto Durienses, do Porto. A apresentação esteve a cargo do Professor Doutor Fernando de Sousa. • 31 de Dezembro de 2008: convívio de Fim de Ano, no Hotel Nova Cruz em Santa Maria da Feira. • 14 de Março de 2009: Moncorvo no contexto transmontano durante o Período Medieval: alguns aspectos, palestra proferida pelo Professor Doutor José Marques, na Casa dos Transmontanos e Alto Durienses, no Porto. • 6 de Junho de 2009: encontro anual; inauguração da exposição – Moncorvo e o Colégio Campos Monteiro, 1936-1949, no Centro de Memória, e entrega de documentação do Colégio a esta instituição por parte de familiares do fundador, Dr. Ramiro Salgado, e de antigos alunos. As duas cerimónias contaram com a presença do Senhor Presidente da Câmara, Aires Ferreira. Houve, na primeira, uma pequena homenagem aos alunos que frequentaram o Colégio neste período. A exposição teve a colaboração da Escola Secundária na cedência das peças e da Biblioteca e do Arquivo, nas pessoas das Dras. Helena Pontes e Maria João Moita, na montagem. O dia decorreu, para além destas situações específicas, da forma já tradicional: reunião no adro da Igreja, Missa proferida pelo Sr. Padre Número quatro

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Notícias

Sobrinho e almoço na Escola Secundária Dr. Ramiro Salgado. O convívio contou com animação recreativa e musical, incumbência de alguns dos antigos alunos presentes e de Carlos Monteiro, elemento do grupo de teatro Alma de Ferro que levou à cena um monólogo sobre Campos Monteiro como político.

Exposição – Moncorvo e o Colégio Campos Monteiro, 1936-1949

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Notícias

• 7 de Junho de 2009: visita guiada pelo Eng. Calheiros, presidente da direcção do PARM, aos lugares de interesse paisagístico e histórico de Freixo de Espada à Cinta. – Eventos de âmbito cultural em Torre de Moncorvo: • 8 de Março de 2009: Mulheres: histórias na História, palestra profe­ rida por Adília Fernandes, no Polivalente da Biblioteca Municipal. • 14 de Março de 2009: apresentação do conto Primeira Comunhão, de Júlia Guarda Ribeiro, no Polivalente da Biblioteca Municipal. • 30 de Maio de 2009: realização das I Jornadas da História da Medicina e da Farmácia em Portugal, no Polivalente da Biblioteca Municipal. • 20 de Junho de 2009: inauguração da exposição Moncorvo de Março a Junho 1974-2000, da responsabilidade de Assis Pacheco, Leonel Brito e Rogério Rodrigues e apresentação do livro, História do poder democrático em Torre de Moncorvo no último quartel do séc. XX, de Virgílio Tavares, no Centro de Memória de Torre de Moncorvo. • 11 de Julho de 2009: inauguração da exposição Vestígios, no Auditório do Museu do Ferro & da Região de Moncorvo. • 12 de Julho de 2009: inauguração do Núcleo Museológico de Fotografia do Douro Superior pelo Professor Adriano Vasco Rodrigues e lançamento da Revista Superior D´ Ouro, ambos propriedade de Arnaldo Silva. • 8 de Agosto de 2009: Património Arqueológico e Arquitectó­nico da Região de Moncorvo, palestra proferida por Nelson Rebanda e Rui Leonardo, no Auditório do Museu do Ferro & da Região de Moncorvo. • 29 de Agosto de 2009: inauguração da exposição Armando Martins Janeira ou a Busca do Homem Universal, no Centro de Memória. Número quatro

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Documentos do acervo do ColĂŠgio Campos Monteiro de Torre de Moncorvo



Colégio Campos Monteiro de Torre de Moncorvo Documento 1 – Alvará do Colégio Campos Monteiro, 1936

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Documentos do acervo Documento 2 – Alvará provisório do Colégio de Santa Maria de Miranda do Douro, 1948

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Colégio Campos Monteiro de Torre de Moncorvo Documento 3 – Bases em que se fundamentará a Sociedade do Colégio Trindade Coelho de Macedo de Cavaleiros, 1949

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Documentos do acervo Documento 4 – Pauta da classificação dos pontos do mês de Janeiro, 1967 – 2.º ano

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Colégio Campos Monteiro de Torre de Moncorvo Documento 5 – Pauta da classificação dos pontos do mês de Janeiro, 1967 – 5.º ano

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Documentos do acervo Documento 6 – Pauta da classificação do 2.º Período, 1969 – 4.º ano

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Colégio Campos Monteiro de Torre de Moncorvo Documento 7 – Pauta da classificação do 2.º Período, 1969 – 5.º ano

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Documentos do acervo Documento 8 – Exercício de Matemática, 1.º Período, 1966-1967 – 2.º ano

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Colégio Campos Monteiro de Torre de Moncorvo Documento 9 – Exercício de Língua e História Pátria, 1.º Período, 1966-1967 – 2.º ano

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Documentos do acervo Documento 10 – Lista dos livros existentes na Biblioteca do ColÊgio de Santa Maria de Miranda do Douro

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Colégio Campos Monteiro de Torre de Moncorvo Documento 10 – Lista dos livros existentes na Biblioteca do Colégio de Santa Maria de Miranda do Douro (cont.)

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Documentos do acervo Documento 10 – Lista dos livros existentes na Biblioteca do ColÊgio de Santa Maria de Miranda do Douro (cont.)

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Colégio Campos Monteiro de Torre de Moncorvo Documento 10 – Lista dos livros existentes na Biblioteca do Colégio de Santa Maria de Miranda do Douro (cont.)

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Documentos do acervo Documento 10 – Lista dos livros existentes na Biblioteca do ColÊgio de Santa Maria de Miranda do Douro (cont.)

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Colégio Campos Monteiro de Torre de Moncorvo Documento 10 – Lista dos livros existentes na Biblioteca do Colégio de Santa Maria de Miranda do Douro (cont.)

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Índice de Matérias

Editorial....................................................................................... 5 Entre a tolerância e a repressão. A problemática da prostituição feminina................. 9 Adília Fernandes A Ordem dos Templários e a Independência de Portugal..................................... 25 Adriano Vasco Rodrigues Diálogo com Jorge Amado .................................................................... 35 Anunciação Matos A Confraria e Irmandade de Santa Cruz do Peredo dos Castelhanos. Os estatutos e o património artístico (1618-1873)......................................... 49 Carlos d’Abreu Uma figura Trindadeana e o motim de Lamego.............................................. 81 Carlos Seixas O rural e o urbano no Douro vinhateiro............................................... 99 Gaspar Martins Pereira A crise demográfica dos séculos XIV e XV, no Leste transmontano. Alguns aspectos......... 111 José Marques Quem foiViolante Gomes, a Pelicana......................................................... 135 Júlia Guarda Ribeiro Mundialização – Breve Reflexão............................................................. 157 Maria da Assunção Carqueja Rodrigues Emigração do concelho de Torre de Moncorvo para o Brasil (1856-1901)................. 159 Maria da Conceição Salgado Da família aos riscos perante a saúde........................................................ 181 Maria Engrácia Leandro Uma duquesa, um reino, um destino. Da luta pelo trono.................................... 213 Maria Helena Alvim Percursos Devassados por Torre do Moncorvo................................................. 231 Maria Ivone da Paz Soares O contributo das Memórias Paroquiais para o conhecimento da religiosidade popular portuguesa........................................................................... 253 Maria Marta Lobo de Araújo Portugal ‘Volframizado’: mudança social e arco de emigração (1930-1960)................ 265 Maria Otília Pereira Lage Nas Estações da vida – encontros entre Campos Monteiro e Flora Castelo Branco......... 275 Odete Paiva


A Poesia e o Mistério em Armando Martins Janeira......................................... 281 Paula Mateus Incursões pelo quotidiano de uma comunidade religiosa feminina através das visitações: o convento do Espírito Santo de Murça na primeira metade do século XVII............... 291 Ricardo Silva Tráfico de seres humanos...................................................................... 313 Sónia Diz Rodrigues Arqueologia Industrial em Torre de Moncorvo: os Telheiros da Saíça e da Lameira do Lagarto na Lousa............................................................. 327 Virgílio Tavares Recensões Críticas Revista Superior D’Ouro, Contributos para a Preservação do Património Cultural do Douro Superior, n.º 1, Torre de Moncorvo, 2009................................... 361 A direcção da Revista Campos Monteiro – história, património, cultura Júlia Guarda Ribeiro, Primeira Comunhão, Ilustração de Guilherme Correia, Leiria, Folheto Edições & Design, 2008................................................ 365 Adélio Amaro Júlia Guarda Ribeiro, Primeira Comunhão, Ilustração de Guilherme Correia, Leiria, Folheto Edições & Design, 2008................................................ 371 Graça Abranches Adília Fernandes, O Lugar Feminino no Liceu Sá de Miranda (Braga, 1930-1947), Palimage, Coimbra, 2009................................................................. 377 Justino Magalhães Notícias da Associação..................................................................... 385


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