A leitura como escrita: Fanfiction e práticas de leitura no Brasil

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO

ANA PAULA CRUZ FONTANA

A LEITURA COMO ESCRITA: FANFICTION E PRÁTICAS DE LEITURA NO BRASIL

NITERÓI 2020


ANA PAULA CRUZ FONTANA

A LEITURA COMO ESCRITA: FANFICTION E PRÁTICAS DE LEITURA NO BRASIL

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Ciência da Informação como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Biblioteconomia e Documentação.

Orientador: PROF. DR. JOACI PEREIRA FURTADO

Niterói 2020



ANA PAULA CRUZ FONTANA

A LEITURA COMO ESCRITA: FANFICTION E PRÁTICAS DE LEITURA NO BRASIL

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Ciência da Informação como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Biblioteconomia e Documentação.

Aprovada em

de

de 2020.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________ Prof. Dr. Joaci Pereira Furtado - UFF Orientador _____________________________________________ Prof. Dr. Carlos Henrique Juvêncio - UFF _____________________________________________ Profa. Dra. Suellen Oliveira Milani - UFF

Niterói 2020


À Eevee e à Luna Marie


AGRADECIMENTOS Todos esses anos dentro da Universidade foram muito difíceis para mim. Talvez eu tenha pensado várias vezes em desistir. E talvez eu tenha pensado isso com ainda mais frequência ao longo desse último ano. Tive a sorte de encontrar muitas pessoas que me apoiaram durante esse trajeto para que eu continuasse seguindo em frente. E é a essas pessoas que eu gostaria de agradecer. Primeiramente, gostaria de agradecer ao meu orientador, o professor Joaci Pereira Furtado, por todo auxílio e pela paciência que teve comigo. Não devo ter sido fácil, assumo. Também queria agradecer à minha amiga Cleide Villela por estar comigo desde nosso primeiro período do curso. Nossa sintonia fez com que trabalhos em grupo fossem muito menos estressantes do que costumam ser. Meus pais foram um dos principais fatores de eu ter chegado até aqui. Tudo que consegui na vida foi graças a eles, e sei que tudo que fizeram foi querendo o meu bem. Mesmo as coisas duras. Obrigada. E obrigada também, Leonardo Camargo, por, mesmo estando a centenas de quilômetros de distância, estar sempre ao meu lado. Nunca vou me esquecer disso.


Eu ganhei o Hugo Award com uma fanfiction de Sherlock Holmes com H. P. Lovecraft, entĂŁo eu sou a favor. Neil Gaiman


RESUMO O presente trabalho tem como objetivo estudar os hábitos de leitura dos leitores de fanfics, as "ficções de fãs", produções literárias baseadas em obras pré-existentes, seja da literatura, do cinema, dos quadrinhos, dos videogames ou muitas outras formas de mídia. Em um primeiro momento, esta monografia investigará a definição e a história das fanfics, a fim de entender sua origem, seu propósito, seu lugar e sua relevância dentro do público consumidor de cultura pop. Depois, a partir de pesquisa realizada via internet em comunidades brasileiras on-line de leitores de fanfic, esboçará um perfil desse público e investigará o porquê da procura por produções não oficiais e qual o ponto focal do interesse dos fãs em produções baseadas em suas obras favoritas, estabelecendo assim um entendimento do novo momento da democratização promovida pela internet, tanto no que toca ao acesso quanto no que diz respeito à produção independente, além do papel inclusivo desse tipo de material. Palavras-chave: Cultura de fã. Fanfiction. Hábito de leitura.


ABSTRACT The present essay aims to study the reading habits of the readers of "fanfic", the fan fiction, literary productions based on pre-existing works, be them from literature, cinema, comic books, videogames, and many other media forms. In the first step, this article will investigate the fanfic's definition and history, to understand its origin, purpose, place and relevance within the consumer public of pop culture. Furthermore, making use of a survey put forth via internet in Brazilian online fanfic reading communities, it will try to determine a profile of said audience, and also investigate the reason behind their seeking of non-official productions and what is the focal point of the fans' interest in productions based on their favorite works, hence establishing an understanding of this new moment of democratization promoted by the internet, regarding access as well as independent production, and also of the inclusive role of such production. Keywords: Fan culture. Fanfiction. Reading habits.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 — Página de acesso ao vídeo de divulgação da pesquisa..................... 15 Figura 2 — Disclaimer de ficwriters....................................................................... 23 Figura 3 — Gráfico sobre leitura online do Instituto Pró-Livro............................... 30 Figura 4 — Estatística do público do canal............................................................ 34


LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 — Qual seu gênero?............................................................................... 33 Gráfico 2 — Qual sua orientação sexual?.............................................................. 34 Gráfico 3 — Com qual idade você começou a ler fanfics?..................................... 36 Gráfico 4 — Qual fandom foi sua porta de entrada para o universo das fanfics?.. 37 Gráfico 5 — Quais categorias de fanfic você costuma ler?.................................... 39 Gráfico 6 — O que você procura numa fanfic?...................................................... 40 Gráfico 7 — Se você selecionou OUTRA na pergunta anterior, diga o que você procura numa fanfic........................................................................... 42 Gráfico 8 — Quantas fanfics você lê em um mês?................................................ 44 Gráfico 9 — Em quais idiomas você lê as fanfics?................................................ 44 Gráfico 10 — Quantas HQs impressas você lê por mês?...................................... 46 Gráfico 11 — Quantas HQs em scan você lê por mês?......................................... 46 Gráfico 12 — Quantos livros impressos você lê por mês?..................................... 47 Gráfico 13 — Quantos e-books você lê por mês?.................................................. 48 Gráfico 14 — Você ouve audiolivros?.................................................................... 48 Gráfico 15 — Você já se considerava leitor antes de se interessar por fanfics?... 50 Gráfico 16 — Quando criança alguém te incentivava a ler?.................................. 50 Gráfico 17 — Se SIM, quem?................................................................................ 50 Gráfico 18 — Você já foi beta reder?..................................................................... 52 Gráfico 19 — O que te fez querer participar da comunidade dessa forma?.......... 52 Gráfico 20 — Você escreve fanfics?...................................................................... 54 Gráfico 21 — O que te motivou a escrever fanfics?............................................... 55


LISTA DE SIGLAS ABO

alfa, beta, ômega

AO3

Archive of our own

AU

alternative universe - universo alternativo

HQ

história em quadrinho

LGBTQIA+

lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queers, intersexuais, assexuais e outros

OCC

out of character — fora do personagem


SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO............................................................................................... 13 2 REINVENTANDO A ORIGINALIDADE: METODOLOGIA DESTA PESQUISA E ASPECTOS TEÓRICOS DA FANFICTION............................ 15 3 LEITURA NO BRASIL: BREVE HISTÓRIA.................................................. 27 4 RESULTADOS DA PESQUISA..................................................................... 32 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 59 REFERÊNCIAS............................................................................................. 62 APÊNDICE A — Transcrição da entrevista de Igor Soares concedida a Ana Paula Cruz Fontana........................................................................... 65 APÊNDICE B — Modelo do questionário aplicado................................... 75


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1 INTRODUÇÃO Fanfiction: abreviação das palavras fanatic (fanático, em inglês) e fiction (ficção). Também conhecida como fan fiction, fanfic ou fic, é qualquer história escrita por fã baseada em obra ficcional previamente existente ou em uma pessoa ou cenário existentes no mundo real. Thomas (2006, p. 226) a define como “uma forma de escrita que toma emprestados cenários, tramas, personagens e ideias de todas as formas de cultura popular e da mídia”.

Mesmo que paródias e outras

homenagens diretas sempre tenham existido na literatura, o conceito de fanfiction como entendemos hoje se popularizou ao final da década de 1960, com a série de televisão Jornada nas estrelas (Star Trek, no original). Com seu cancelamento, seus fãs sentiram-se “órfãos” e passaram eles mesmos a escrever histórias sobre como gostariam que a narrativa tivesse seguido (BLACK, 2006, p. 178). Anos mais tarde, no começo de 2000, a série de livros Harry Potter tomaria o lugar como o grande disseminador das fanfics, agora pela internet. Costumeiramente, o que se encontra nas fanfics são desde histórias que se pretendem inseridas no cânone da obra original, como as primeiras fics de Star Trek, passando pela concretização de histórias de amor de casais de personagens da trama original (o hábito de “formar” casais fictícios de personagens é comumente chamado de shipping), a imaginação de cenários sexuais vividos por esses casais (com ênfase consideravelmente grande na formação de casais LGBTQIA+, compensando uma carência da mídia tradicional), até chegar a cenários alternativos, os chamados AU (alternative universe), nos quais os personagens originais são reimaginados em situações, contextos sócio-históricos, períodos temporais ou mesmo, como o termo implica, universos completamente diferentes dos quais eles se encontram em sua obra de origem. Nas palavras de Jamison (2017, n.p), “Independentemente de como chamamos, no entanto, hoje entendemos a fanfiction basicamente como uma escrita que continua, interrompe, reimagina ou apenas faz alusão a histórias e personagens que outras pessoas já escreveram”. As fanfics não se limitam a contar novas histórias de personagens da ficção; uma vertente bastante popular do meio são as fics inspiradas em pessoas reais: celebridades, cantores, grupos musicais, atores, esportistas etc. Cenários em que duas personalidades de mídia que nunca se conheceram são, na verdade, um casal apaixonado; ou mesmo em que o/a autor/a cria um personagem que represente a si


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mesmo/a como a contraparte romântica da celebridade-alvo (uma prática também comum em fics baseadas em obras de ficção). E o(a) leitor(a) dessa ficção? Como ele/ela é? Sob o prisma da Biblioteconomia, analisando do ponto de vista do comportamento informacional, as fanfics servem o propósito da realização de uma necessidade informacional não suprida pelo atual aparato cultural mainstream: como será demonstrado neste trabalho, com as mudanças no cenário da comunicação em escala global, que permitem maior espaço para mais vozes, os próprios leitores se viram no papel de criar espaços e conteúdo que simplesmente não existiam, para suprir anseios e interesses que não seriam, de outra forma, saciados pelas obras das quais eles gostam. As fanfics criam, assim, uma área cinza no debate sobre o conceito de autoria, de posse, e sobre a continuidade da arte e das ideias dentro dela, o que se prova uma discussão de enorme interesse para o campo da Ciência da Informação. Este trabalho visa esboçar o perfil do(a) leitor(a) de fanfictions, por meio de aplicação de questionários online em grupos dedicados ao tema e de entrevistas presenciais com os(as) leitores(as), estas últimas para que se possa compreender melhor a trajetória da leitura de cada entrevistado(a), nuances que nem sempre um questionário quantitativo consegue mostrar, testando a possibilidade de pontos em comum entre as duas formas de investigação.


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2 REINVENTANDO A ORIGINALIDADE: METODOLOGIA DESTA PESQUISA E ASPECTOS TEÓRICOS DA FANFICTION Para o desenvolvimento deste trabalho foi realizado um levantamento bibliográfico sobre fanfictions em bases de dados nacionais e internacionais como Scielo, Portal de Periódicos CAPES, JSTOR e Google Scholar. Como referencial teórico, foram usados livros dos pesquisadores bastante conhecidos no estudo das fanfictions, Henry Jenkins, Anne Jamison e Maria Lucia Vargas, referenciados na bibliografia ao fim deste trabalho. Já para o recolhimento de dados necessários para a elaboração do perfil de leitores(as) de fanfics brasileiros(as), uma pesquisa quantitativa foi elaborada na forma de questionário online via Google Docs. Nele foram propostas vinte e uma perguntas, com o objetivo de conhecer melhor o recorte demográfico e os hábitos e interesses desse público, como gênero, idade, orientação sexual, interesse prévio por literatura, mídias de preferência, papel que o(a) entrevistado(a) desempenha dentro da comunidade, entre outras. Para a divulgação da enquete, um vídeo foi postado no canal de YouTube Video Quest, focado em cultura pop, mais precisamente na crítica de animês e mangás. O vídeo foi publicado em 22 de outubro de 2019, com duração de 1 minuto e 19 segundos, e consiste em uma chamada para o preenchimento da enquete via link fornecido na descrição do vídeo. O vídeo foi compartilhado tanto para os cerca de 65 mil inscritos do canal à época quanto em grupos na rede social Facebook focados em discussões de cultura pop e nerd, principalmente animês e mangás, como os grupos Animanas, Grupo Wattpad, UFF Niterói, UFF Niterói 2, Otakei e Gulag Kawaii, Genkidama, entre outros, além do compartilhamento orgânico por perfis de redes sociais como o Twitter. FIGURA 1 — Página de acesso ao vídeo de divulgação da pesquisa

Fonte: Video Quest1

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Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=FS_PzEyi9vk&t>. Acesso em: 15 jun. 2020.


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A pesquisa permaneceu aberta ao público desde a data de publicação do vídeo supracitado até o dia 5 de novembro de 2019, ou seja, por duas semanas. Nesse período, 2.411 pessoas responderam. Além da pesquisa quantitativa aberta ao público direcionado, também foi realizada uma entrevista presencial com um leitor e autor de fanfics com o objetivo de se obter respostas individualizadas e cruzar com os dados recolhidos na enquete. Mas procedamos à definição do fenômeno. A invenção do termo fanfiction e a definição atual do mesmo são razoavelmente recentes, mas a prática per se é, dependendo de como se define, muito antiga. De acordo com Jamison (2017): Antes da era moderna dos direitos autorais e propriedade intelectual, as histórias pertenciam a todos, passadas de mão em mão e de narrador a narrador. Há uma razão pela qual Virgílio nunca foi processado pelos herdeiros de Homero pelo empréstimo de Eneias da Ilíada e sua transformação na Eneida. Personagens e mundos fictícios eram recursos compartilhados. (JAMISON, 2017, n. p.)

Em uma definição ampla, a fanfiction é qualquer produção literária, narrativa, baseada em alguma obra pré-existente e produzida por um(a) admirador(a) da citada obra. Sendo assim, mesmo importantíssimos marcos da história da literatura, como as grandes poesias épicas gregas, podem ser livremente definidas como formas ancestrais do que chamamos hoje de fanfic. Uma das maiores obras da literatura, tanto de língua inglesa como em escala mundial, Hamlet, de William Shakespeare, é na verdade baseado no conto dinamarquês de Amleth, cuja trama é basicamente a mesma da peça shakespeariana: Ele, na verdade, possuía outras fontes para sua peça. Consultou, sem dúvida, o relato de nome semelhante escrito por François de Beleforest, uma história que o próprio autor francês havia adaptado a partir de uma narrativa semelhante, escrita por Saxo Grammaticus no século XII, em sua Gesta Danorum [Gesta dinamarquesa]. (PEREIRA, 2015, p.8)

Os irmãos alemães Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) são exemplos de uma produção literária comparável à fanfic. Seu trabalho de pesquisa cultural dos contos folclóricos alemães e europeus resultou no registro de diversas histórias da tradição oral e, com isso, ambos são hoje consagrados como autores, mesmo que haja a consciência de que a ideia de autoria, no caso deles, é de certa


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forma discutível. Cem anos depois, Walt Disney (1901-1966) se apropriaria dos contos de Grimm e se consagraria como a vanguarda da arte da animação com seu revolucionário longa-metragem Branca de Neve e os sete anões (1937), em mais um exemplo de obra de arte considerada “oficial”, apesar de não ser uma produção completamente original. Qualquer discussão sobre “originalidade” de uma produção artística também demanda debater o conceito de “autoria”, ideia que muitas vezes parece de definição simples, pois desde o romantismo ela foi naturalizada como sinônimo de autenticidade, sinceridade, espontaneidade, pureza da criação, como esta brotasse diretamente do “gênio” do artista, sem qualquer diálogo com a tradição, sem esforço ou técnica. João Adolfo Hansen, em O que é um livro?, demonstra, contudo, que esse conceito tem história: Foucault lembrou que, até o século XVIII, os livros de ciência eram citados pelos nomes dos autores, por exemplo Euclides e Galeno, e os de ficção não, porque pressupunham a mimesis aristotélica e a doutrina latina da imitatio como regramento dos gêneros. Cícero não era propriamente o nome de um indivíduo e um autor romano que viveu o fim da República, entre outros, como pensamos hoje, mas a classificação da oratória, assim como Virgílio significava “epopeia”. A partir do século XVIII, a coisa se inverteu: a autoria dos livros de ciência se dissolve na generalidade de um campo em que a iniciativa da pesquisa do cientista individual é somente um elemento hiperespecializado de um conhecimento anônimo, física, matemática, e os de ficção, determinados pela livre concorrência e pela competição burguesas, passam a ser comandados pela mercadoria inventada no século XIX, a “originalidade”, sendo conhecidos pelo nome de um autor com direitos autorais, Stendhal ou Joyce ou Guimarães Rosa. (HANSEN, 2013, p. 5)

Ou seja, “autoria”, para a ficção, é um conceito recente e, historicamente, uma ideia fluida, ainda aberta à discussão. Já em seu artigo comentando o texto A ordem dos livros, de Roger Chartier, Hansen (1995) diz que o pesquisador recupera a categoria de autoria, mas não na concepção romântica do “autor”, nem como a constatação empírica que diz ser o autor aquele que desenvolveu o produto em questão, mas como um “ponto de vista” que orienta um discurso. Nas palavras de Hansen, “por vezes os textos são perspectivados numa iniciativa subjetivada, que se individualiza como autoria” (HANSEN, 1995, p. 124). Por outro lado, ao falar do leitor, a linguagem é a mesma: para Chartier, ele assume a posição de autoria, pois a função do leitor também é uma função de “ponto de vista”. Ambos os trabalhos,


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tanto do assim chamado “autor” quanto do leitor/ouvinte, são trabalhos de leitura e interpretação da história e da literatura que os precedem. Os objetos produzidos pressupõem, por isso, nos usos que fazem das prescrições retóricas do seu gênero, uma presença classificatória que os distribui segundo os regimes de legibilidade e intencionalidade de uma função autoral. (HANSEN, 1995, p. 124)

Sendo assim, a autoria não passa do uso que se faz das prescrições de um dado gênero, uma eterna reciclagem e ressignificação de referências e do cânone literário que se tem à mão. Um trabalho feito pelo escritor, sim, mas também feito pelo leitor no ato da leitura. E um ato necessário para o que entendemos como fanfiction, como será demonstrado neste trabalho. A rigor, o conceito de “originalidade” é uma ideia que não encontra base lógica, quanto mais se pensa a respeito dele, pois ideias, estruturas narrativas, clichês de gêneros literários, até mesmo personagens específicos, são passados de mão em mão, reciclados, modificados, eternamente ressignificados. No caso da relação entre o folclore alemão, os irmãos Grimm e Walt Disney são bons exemplos do quanto a fanfic não é mera cópia de algo “original”. Tanto os irmãos Grimm fizeram modificações nos contos populares, assim imprimindo sua própria marca nessas histórias, quanto Walt Disney modificou os contos de Grimm, intervindo neles. “Fanfiction” é geralmente usada como um sinônimo de “trabalho derivativo”, uma frase com implicações no direito autoral. Mas fanfiction é geralmente melhor descrita como transformativa, paródica, crítica e, sim, “original” em qualquer um dos sentidos acima. (JAMISON, 2017, n. p.)

A noção moderna de fanfic é um tanto recente. Jamison (2017, n. p.) relata que, antes da década de 1960, a fan fiction, escrita assim, com um espaço entre as duas palavras, era a designação da ficção original escrita por autores amadores publicados em fanzines (revistas feitas por fãs). Levou muitos anos para que a fanfiction, no sentido de histórias baseadas em mundos e personagens previamente existentes, começasse a aparecer nos zines de ficção científica, mas tudo mudou com Star Trek:


19 [...] enquanto os textos individuais que lembram o que deveríamos agora chamar de fanfiction existem há muito tempo, não eram um elemento nos primeiros zines de ficção científica. Com Jornada nas estrelas, eles explodiram na cena. (JAMISON, 2017, n. p.)

Jornada nas estrelas (Star Trek, 1966-1969), ou melhor, o seu fandom (termo usado para designar a comunidade de fãs de uma dada obra, de determinado artista etc.), é considerado um pioneiro no que se entende hoje como fanfiction. Com o fim da série original, em 1969, seus fãs seguiram produzindo narrativas dentro do universo do seriado televisivo; uma prática que se expandiu para histórias que não exatamente tratavam das temáticas trabalhadas originalmente na obra de Gene Roddenberry. Enquanto a original focava seus esforços em ficção científica “pesada” (ou hard sci-fi) e questões filosóficas e políticas um tanto complexas, muitas fics preferiam trabalhar relacionamentos interpessoais e, muitas vezes, românticos. O elemento mais controverso foi que Jornada nas estrelas também inspirou o primeiro fandom slash (slash, aqui e em todo este volume, é definido como romance homoerótico, normalmente entre personagens canonicamente pintados como héteros), por mais que esse elemento não tivesse sido exatamente aceito ou mesmo tolerado pela maioria dos fãs. (JAMISON, 2017, n. p.)

Essa se provou uma tendência que perdura até hoje, e que será também demonstrada pela pesquisa realizada para o presente trabalho, a ser exposta em um próximo momento. Além de expandir as possibilidades do mundo criado pelo autor original, os autores das fics, até hoje, trabalham as possibilidades, na opinião deles, não aproveitadas de relacionamentos amorosos entre os personagens, uma prática comumente chamada de shippar (do sufixo inglês -ship, da palavra relationship, relacionamento). Por consequência, um dos pilares do que se conhece hoje por fanfic são histórias nas quais personagens originalmente “codificados” como heterossexuais são usados para criar relacionamentos homoafetivos, um tipo de relacionamento pouco explorado na ficção mainstream, oficial. O que denota também o caráter interpretativo, crítico, da produção da ficção de fãs. Essa ficção pode ser interpretada, sob certos paradigmas, como uma simples libertação do(a) leitor(a)-autor(a) através da realização de fantasias por meio de obras que ele/ela admira, ou seja, mera “projeção”; mas, em muitos casos, esses textos partem de interpretações do “cânone” literário. Os fandoms debatem


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sua obra preferida e, sendo a apreciação da arte algo inerentemente subjetivo, chegam às suas próprias conclusões. Muitas vezes, essas conclusões incluem a afirmação

de

que

certos

personagens

do

mesmo

sexo,

originalmente

heterossexuais, na verdade nutrem sentimentos amorosos e sexuais um pelo outro. Assim, a produção da fanfic é a materialização dessa interpretação, e a leitura da fanfic é uma forma de ver essa interpretação ser finalmente realizada. Neil Gaiman, premiado autor de literatura fantástica, ao ser perguntado em sua página na rede social Tumblr sobre a interpretação (e subsequente produção de fanfics) de que seu personagem Crowley, do livro Belas maldições, é homossexual e tem um relacionamento com o personagem Aziraphale, respondeu: Você pode inferir, ou (mais direto ao ponto) pode imaginar, e muitas pessoas escolheram, não sem razão, shippá-lo com Aziraphale, mas ainda continua sendo Inventar Coisas. Pode estar Inventando Coisas que acontecem entre parágrafos, ou Inventando Coisas que não foram sequer mencionadas, mas continua sendo Inventar Coisas. (E estou considerando que o tipo de análise textual com olhos de águia que estudiosos da Bíblia usavam para decidir exatamente o que versos de quatro mil anos de idade significam também conta como Inventar Coisas.) Que é a parte divertida da fanfiction, e parte da tradição da fanfiction. (GAIMAN, 2017, n. p., tradução livre)

A atitude de Gaiman, como “autor”, não chega a ser consenso em seu meio. Outros autores — escritores, roteiristas de cinema etc. — se opõem fortemente à ideia de deixar que suas obras sejam trabalhadas em forma de fanfic. Dois exemplos dessa mentalidade são George Lucas, criador da aclamada série cinematográfica (e detentor dos direitos de todos os produtos derivados) Star Wars, e Anne Rice, autora de Entrevista com o vampiro e toda a série subsequente. Os dois, como explica Jamison (2017, n. p.), adotaram a prática do “cease and desist”, uma ameaça de processo contra supostas violações de direitos autorais: Quando a internet começou a aparecer, a Lucasfilm atacou fansites independentes, fazendo o melhor para dominar as consequências que seu marketing de massa tinha iniciado ao focar toda a atividade de fãs em seus próprios sites corporativos. Cartas de “cease and desist” não eram incomuns. Guerra nas estrelas, como uma entidade, não queria outras entidades de outros universos brincando com seus brinquedos. George Lucas não queria ver ninguém diluindo o poder de sua criação com criaturas ofensivas e ridículas de outros universos, ou histórias de amor pouco convincentes, ou até — Deus nos acuda — alterando elementos das histórias originais, distorcendo arcos de personagens ou cenas icônicas. [...] Anne Rice mandou uma carta horrível para FanFiction.Net e eles apagaram


21 toda a fanfic baseada em seus livros, fecharam a seção e proibiram comentários no fórum. (JAMISON, 2017, n. p.)

Ambos os autores, como fica claro, adotam uma postura de proteção de suas histórias e personagens, denotando um medo de que uma “intromissão” de autores não autorizados possa vir a macular sua obra, talvez vulgarizar sua criação — e, claro, existe também a preocupação mercadológica da manutenção da coesão da marca. É interessante notar a ironia dos dois casos. George Lucas é hoje conhecido por incessantemente — e, para muitos, desnecessariamente — modificar seus próprios filmes, principalmente os três primeiros, das décadas de 1970 e 1980, quando da época do lançamento de sua segunda trilogia, no começo dos anos 2000, a fim de tornar coerentes os filmes antigos

com os atuais, efetivamente

replicando o que é prática comum das fanfictions: interromper e modificar o cânone da obra para que ele esteja alinhado com os interesses e temas necessários. Já o caso de Anne Rice remonta ao que já foi comentado, por exemplo, sobre os irmãos Grimm: embora seus personagens (como Louie e Lestat) sejam originais, o fato de ser uma história de vampiros inevitavelmente exige que ela se insira num cânone, neste caso o de todo um gênero inaugurado por Abraham “Bram” Stoker com o romance Drácula (1897), e selecione o que será ou não usado em sua própria história. Existem até momentos da trama que brincam com a ideia, nos quais personagens questionam se, neste universo, vampiros morrem com estacas no coração ou são afetados pela visão de cruzes cristãs, efetivamente lançando luz sobre o fato de que boa parte de sua criação não é original. Essa postura não é exclusiva de autores que publicam exclusivamente do modo “tradicional”. Com a proliferação das fanfics como cultura de massa consumida por cada vez mais pessoas, autores de fanfictions estão começando a capitalizar seu sucesso internético por vias “oficiais” (o que será tratado posteriormente, neste mesmo capítulo). O caso mais famoso é o de E. L. James, autora da série Cinquenta tons de cinza, série de livros de forte teor erótico, fazendo uso ostensivo de cenas sadomasoquistas, que originalmente foi publicado como Master of the universe, uma fanfic AU dos livros da série Crepúsculo, eliminando todo o enredo sobrenatural, com vampiros e lobisomens, do original — aqui, em vez da relação entre um vampiro imortal centenário e uma adolescente comum, temos


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um milionário cujo fetiche sexual é o sadomasoquismo e a dominação à qual contratualmente se sujeita uma jornalista virgem pela qual ele se apaixona. A autora de Crepúsculo, Stephanie Meyer, em entrevista em vídeo para o canal do YouTube da revista americana Time, quando perguntada sobre Cinquenta tons de cinza, declarou apenas: Fico feliz que ela esteja se dando bem e tendo sucesso e isso é legal; a parte indecente eu preferiria que não estivesse ligada a Crepúsculo, porque não é assim que eu vejo as coisas, mas não afeta Crepúsculo… Crepúsculo é uma entidade própria, é separado, e está tudo bem” (tradução nossa). (MEYER, 2013, n. p.)

Cinquenta tons de cinza, antes uma fanfic, tornou-se a série de livros mais vendida, de 2011 a 2019 (AVILES, 2019), com 35 milhões de cópias físicas e digitais apenas nos Estados Unidos, o que gerou um fenômeno cultural próprio, um fandom próprio e, por consequência, produção própria de fãs. Mas, mesmo lucrando diretamente com um trabalho de fã, baseado em uma obra pré-existente, apenas com os nomes dos personagens e o cenário trocados, James não tolera que os fãs reutilizem ou ressignifiquem o seu material, que agora teria ganho status de “oficial”. Os advogados de James também se ocuparam de reprimir tudo que podiam, de festas de lingerie com temas de Cinquenta Tons a camisetas piratas. Sua agente, Valeris Hoskins, defendeu esta postura: “Não se pode simplesmente tomar algo que pertence a outra pessoa”, disse Hoskins ao Mirror. No entanto, se o sucesso de Cinquenta Tons e outras fanfics de Crepúsculo indica alguma coisa, é que você pode sequestrar algo que pertence a outra pessoa — e ganhar dinheiro com isso. (JAMISON, 2017, n. p.)

O temor, por parte dos ficwriters, da chegada da famigerada carta de cease and desist dos detentores dos direitos autorais das obras originais era tamanho que, no Brasil, era de praxe incluir um disclaimer no início da cada fanfic, deixando claro que o escritor da fic não era o dono dos direitos autorais e que não tinha a intenção de lucrar com a fic, e apontando para os verdadeiros donos da propriedade intelectual, na esperança de que esse aviso fosse suficiente para impedir que um processo aos moldes do exemplo acima fosse movido contra si:


23 FIGURA 2 — Disclaimer de ficwriters

Fonte: Fanfiction.Net 2

Além do medo de processos judiciais, o aviso também existia em decorrência de discussões internas que a comunidade “fanfiqueira” promove há anos: é correto ganhar dinheiro com fanfics? Não existe consenso, como comenta Jamison: No final, os sistemas culturais e financeiros de valor são muito diferentes, e provavelmente deveriam ser entendidos de forma distinta. Em vez disso, eles são confundidos de forma contínua e, talvez, inevitável. Esta confusão certamente ficou aparente no mundo emaranhado da fanfiction. Em parte por causa do medo das consequências legais, por um senso de originalidade exagerado do material fonte em oposição às fanworks que ele inspira, e pelo orgulho de fazer “fic pelo prazer de fazer fic” e o ethos da economia da troca. O princípio de que “não deveis lucrar com fanworks” na cultura de fã foi, dependendo de quem for seu interlocutor, um princípio fundador quase sagrado e inviolável, totalmente necessário. Para outros dentro da mesma comunidade, é apenas um mal necessário. (JAMISON, 2017, n. p.)

Por conta da natureza derivativa dos fanworks, para alguns, mesmo os que os produzem, esses trabalhos configuram violação de direitos autorais, logo, não devem ser usados para fins lucrativos. Mas a lei de direitos autorais é de difícil compreensão, além de constantemente abusada pelas grandes corporações — que, ao mesmo tempo, incentivam e precisam da formação de comunidades de fãs e de identidade de grupo a partir de suas propriedades intelectuais, enquanto que paradoxalmente punem qualquer produção cultural que surja a partir disso. Em certos aspectos filosóficos, ela não se aplicaria ao caso das fanfictions, pois a literatura como um todo, depende da existência e do entendimento, tanto do leitor Disponível em: <https://www.fanfiction.net/s/630203/1/Inoc%C3%AAncia-Doce-Inoc%C3%AAncia>. Acesso em: 15 jun. 2020.

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quanto do escritor, do restante da literatura que a precede. Nas palavras de Eagleton: Toda leitura supõe uma boa dose de preparação de cena. É preciso que muitas coisas já estejam ali para que um texto seja meramente inteligível. Uma delas é a existência de obras literárias. Toda obra de literatura remete, mesmo que apenas inconscientemente, a outras obras. (EAGLETON, 2019, n. p.)

Jamison (2017, n. p.) menciona ainda que muitos teóricos diriam que é isso que se faz na literatura há muito tempo, citando os conceitos de intertextualidade e palimpsesto e destacando que “texto” vem da palavra latina para teia ou tecido. Por outro lado, Vargas destaca a defesa da ideia de “cânone” pelos próprios fãs das obras originais, um protecionismo dos personagens e acontecimentos já estabelecidos e uma resistência à possibilidade de que haja, em algum lugar, qualquer modificação ao que já se conhece daquela história, próximo da argumentação da agente literária de E. L. James ao defender as proibições do uso de Cinquenta tons de cinza em qualquer forma ou aspecto por parte dos fãs. Outra das questões polêmicas dentro do universo das fanfictions envolve mais uma terminologia tomada de empréstimo das discussões literárias existentes nos meios escolares e acadêmicos. Trata-se da defesa do cânone. Alguns fãs compreendem a obra original como sendo canônica e, portanto, não sujeita a subversões de suas características, como atitudes consideradas impossíveis por parte de alguns personagens ou, ponto muito mais polêmico, a criação de casais considerados improváveis. (VARGAS, 2015, p. 40)

O sucesso comercial de E. L. James ainda é incomum. Existem exemplos parecidos com Cinquenta tons de cinza, fanfics de Crepúsculo com nomes de personagens trocados e na maior parte das vezes sem elementos sobrenaturais e vampirescos, normalmente focando em um romance com elementos eróticos, como Wallbanger, de Alice Clayton, Gabriel's Inferno, de Sylvain Reynard, e Beautiful Bastard, de Christina Lauren. Um dos casos mais peculiares é o da série After, de Anna Todd, originalmente uma fanfic da banda teen One Direction, ou seja, uma história inspirada em pessoas reais num romance fictício, e que fez tanto sucesso que recentemente foi adaptada para o cinema. Com o advento do chamado selfpublishing, principalmente com sites como a Amazon, que disponibilizam ferramentas para a publicação independente de livros em formato ebook, modificar um trabalho que era previamente uma fanfiction e vender comercialmente em vias


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oficiais ficou exponencialmente mais fácil. Os exemplos acima tiveram seus direitos adquiridos por editoras e publicados em mídia física, mas muitos outros, recentemente, percorrem o caminho digital, reaproveitando seu trabalho já concluído — e que muitas vezes já tem seu próprio fandom. Mas o simples ato de lucrar com a fanfic ainda é um assunto em debate no meio. Existe o receio da recepção por parte do público fora do fandom, como aponta Jenkins (1992, apud Vargas, 2015): Segundo Jenkins, para a realização de uma análise dos elementos que residem no interior dessas construções do discurso urdidas por fãs, o primeiro passo é compreender o que a sociedade entende por “bom” ou “mau” gosto em termos de produção e consumo de cultura. De maneira geral, por construir suas histórias tendo como base um produto considerado de mau gosto, vulgar, ou, no mínimo, menos sofisticado, o autor de fanfiction pode se sentir compelido a não divulgar seu trabalho fora do fandom onde é reconhecido, nem mesmo dentro dos meios escolares, para não correr o risco de sofrer represálias pelo seu “mau gosto”. Jenkins afirma que parece haver uma pressuposição de que as pessoas que investem uma grande quantidade de energia criativa e afetiva em produtos da cultura de massa devem estar com algum tipo de problema. (JENKINS, 1992, apud VARGAS, 2015, p. 46)

Mas também é muito forte o sentimento de que lucrar pessoalmente com uma fanfic é uma traição ao meio. Pois, acima de tudo, como já exemplificado, as fics são uma comunidade que permite que pessoas que normalmente não teriam espaço para se expressar possam dizer o que sentem através da prática da escrita e encontrar relatos e histórias que dialoguem com esses anseios através dessa mesma escrita. O próprio nome Archive of our own (AO3), o projeto que se declara, em sua homepage, um “arquivo criado por fãs, administrado por fãs, sem fins lucrativos nem fins comerciais, de trabalhos transformativos de fãs, como fanfiction, fanarts, fanvideos e podfics”, é inspirado no ensaio A room of one’s own, de Virginia Woolf, no qual ela argumenta que, se uma mulher quiser criar uma carreira na literatura, precisa de dinheiro e um quarto próprio. As fanfics são justamente esse quarto próprio, criado pelos fãs e para os fãs, com um esforço que transcende até mesmo o mero ato de escrever uma história de ficção: Além do mais, fãs já construíam “sites de rede social” para compartilhar “conteúdo gerado por usuários” — só que chamávamos de “arquivos de fanfiction”. Antes que a Web 2.0 facilitasse a criação de páginas, os fãs trabalhavam juntos para construir sites comunitários, usando a energia das pessoas para compensar as limitações tecnológicas. Então, por exemplo, a


26 maioria dos arquivos de fanfiction do começo para o meio dos anos 1990, era organizada por “elfos” de arquivos: fãs que iam pessoalmente formatar e fazer upload da sua história para a web. Você mandava sua história por e-mail para um destes elfos, que iria codificar à mão em formato .txt ou .html, fazer o upload para um website (que alguém — tipicamente outro fã, que era sysadmin profissional ou um técnico — estava pagando) e criaria um link para ele. O trabalho dos fãs substituía uma interface avançada tecnologicamente e a generosidade substituía um modelo de negócios. (JAMISON, 2017, n. p.)

Portanto, as fanfics se configuram como muito mais que mera “cópia”, quebra de direitos autorais ou trabalho derivativo inferior. Elas são apenas mais um passo nas mudanças históricas da literatura e da ficção como um todo, um instrumento de grupos marginalizados (como poderá também ser verificado através dos resultados da pesquisa, a seguir) e um espaço de produção, organização, catalogação e distribuição democrática e gratuita de uma produção artística que, muitas vezes, pode ser um retrato melhor, mesmo que indireto, das reais preocupações e idiossincrasias de toda uma geração.


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3 LEITURA NO BRASIL: BREVE HISTÓRIA O “leitor de fanfics” é, obviamente, um leitor como qualquer outro e, quando inserido no contexto brasileiro, é importante averiguar o comportamento da população do país como um todo em relação à leitura, antes de falarmos especificamente de um nicho tão restrito desse grupo. Na última pesquisa do Instituto Pró-Livro, publicada em Retratos da leitura no Brasil 4, foi averiguado que 56% da população brasileira se consideram leitores e, desses, apenas 26% afirmaram ter comprado um livro nos três meses que antecederam a pesquisa (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016, p. 39). Essa informação já nos adianta o cenário atual do panorama dos hábitos de leitura brasileiros: mesmo com uma população enorme, não há incentivo estrutural, em escala nacional, e a leitura acaba por ser, muitas vezes, um privilégio. De acordo com as pesquisas publicadas em Retratos, é patente a importância de um mediador na iniciação da leitura como prática na vida das pessoas, com especial ênfase no papel da família — fator que não existe no vácuo: em um país com um abismo social tão evidente e persistente, o nível de escolaridade dos pais está diretamente relacionado ao hábito de leitura de um indivíduo: A família tem um papel fundamental no despertar do interesse pela leitura, seja pelo exemplo, ao ler na frente dos filhos, ou ao promover a leitura para os filhos. Mas os dados aqui incluídos também confirmam que o potencial de influenciar o hábito de leitura dos filhos está correlacionado à escolaridade dos pais – filhos de pais analfabetos e sem escolaridade tendem a ser menos leitores que filhos de pais com alguma escolaridade. (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016, p. 35)

É também evidente o tamanho do trabalho que ainda precisa ser feito em relação às bibliotecas: se são poucos os leitores, por consequência, espaços de leitura serão menos usados. Poucos sabem que existem, quais existem, onde estão e para que servem esses espaços: Apesar de 55% dos entrevistados informarem que sabem da existência de uma biblioteca em sua cidade ou seu bairro (esse número era maior em 2011, 67%), 66% não frequentam bibliotecas ou frequentam raramente (14%). Somente 5% da população frequentam sempre, e 15%, às vezes. A biblioteca mais frequentada por quem frequenta sempre ou às vezes (55%


28 de 20% dos entrevistados) é a escolar, seguida da pública (51%). (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016, p. 40)

E também: Em geral, o brasileiro vê a biblioteca como um espaço de estudo e pesquisa (71% dizem que é um lugar de estudo; 26%, um lugar voltado para estudantes; 20% vão para pegar livros emprestados para trabalhos escolares). Ela está fortemente associada a um local para estudantes, apesar de 29% também acharem que ela é um local para se pegar livro emprestado. Essa representação pode explicar por que o usuário da biblioteca é principalmente o estudante (90% dos não estudantes não frequentam ou frequentam raramente). (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016, p. 40)

Ou seja, o uso da biblioteca pelo brasileiro é, no geral, estritamente funcional: usa-se quando se precisa de um livro emprestado ou para fazer alguma pesquisa na escola. Se não existe hábito de leitura como parte do dia a dia da pessoa, também não existe uso de espaços de leitura além do necessário. Um quadro como esse parece confirmar um velho chavão, muitas vezes incontestado: “o brasileiro não lê”. Essa provocação é respondida por José Castilho Marques Neto, em Retratos, com outra provocação: Eu costumo responder a essa observação com uma contestação: “Brasileiro não lê porque não tem acesso à leitura” ou “Brasileiro não lê porque ainda não conquistou o seu direito à leitura”. (INSTITUTO PRÓLIVRO, 2016, p. 61)

Mas os dados também apontam um cenário, talvez, animador: a esperança pode estar nos jovens. Nessa última pesquisa, verifica-se que o número de jovens (no relatório, pessoas entre 11 e 17 anos) que se consideram “leitores” é maior que em outras faixas etárias: Desse contingente de jovens, a pesquisa informa que 84% daqueles que têm de 11 a 13 anos se declararam leitores e 75% daqueles que têm de 14 a 17 anos também informaram ser leitores, isso, segundo o critério adotado na pesquisa como um todo, ou seja, o de que é leitor quem leu pelo menos um livro, inteiro ou em partes, nos últimos três meses. Sem dúvida, são percentuais bem acima dos 56% apontados pela pesquisa como o percentual de leitores da população brasileira como um todo. Ou seja, segundo a pesquisa, o percentual de jovens leitores é, proporcionalmente, bastante superior ao da média do leitor brasileiro em geral. (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016, p. 85)


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No relatório, também é abordada a questão da obrigatoriedade da leitura: poderia ser considerado que esse é um número esperado, pois os jovens são obrigados a ler para a escola ou para o vestibular, em aulas de literatura ou de português; logo, é um dado irrelevante, pois isso não é um hábito de leitura, é apenas uma fase passageira da vida — o que seria confirmado pela queda na taxa de pessoas que se consideram leitoras na fase adulta. Mas não, não é isso que os dados apontam. A tendência parece ser a de um hábito de leitura mais ligado ao prazer voluntário que a algo compulsório: Cinquenta e oito por cento dos jovens leitores da faixa de 11 a 13 anos dizem ler por “gosto” ou em busca de “distração” em oposição a 37% que apontam valer-se da leitura para “atualização cultural”, “conhecimento geral”, “crescimento pessoal”, “motivos religiosos” e “exigência escolar ou do trabalho”; na faixa dos leitores entre 14 e 17 anos, a leitura “desinteressada” corresponde a 48% dos jovens e os que enveredam pela leitura utilitária são 42%. Percebe-se, portanto, que no caso dos dois grupos prevalece a motivação da leitura prazerosa em prejuízo da leitura utilitária, num sentido oposto ao que se dá com a média nacional dos leitores, em que apenas 40% dos entrevistados vão à leitura por prazer e 54% procuram na leitura uma recompensa mais pragmática. Também reforça essa ideia da leitura por prazer realizada pelos jovens o fato de que, quando são questionados sobre a frequência com que leem livros de literatura por vontade própria, o percentual da faixa dos 11 aos 13 que lê todos os dias ou ao menos uma vez por semana é de 37% e o da faixa entre 14 e 17 anos é de 33%, isso em contraste com o percentual de 19% da população em geral. (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016, p. 86)

Ou seja, aparentemente, o jovem não só lê mais, mas lê com maior frequência “porque quer”. Os hábitos de leitura do jovem são interconectados e sociais, relacionados a uma mentalidade de grupo, de socialização e pertencimento; é uma rede que se autoalimenta, autoinfluencia e, portanto, tende a crescer organicamente. O relatório do Instituto Pró-Livro cita a importância de produtos derivados da cultura pop, livros adaptados para o cinema em produções hollywoodianas mainstream, além de influenciadores de redes sociais e seu ciclo de criação de conteúdo que incentiva o jovem a acompanhar os temas ali explorados. E essa rede de consumo gera a necessidade de acompanhar o restante do grupo, que já consome as mesmas obras culturais, além de um senso de comunidade: A leitura de um determinado livro passa a atender a certa necessidade de pertencimento a um grupo de identidade afim, de integração a uma mesma “tribo” que tem gosto e atitudes semelhantes, que consome um mesmo tipo de gênero ou subgênero literário, que se entrega a certa tendência musical,


30 em que a escolha da roupa e o tratamento dado ao corpo se equiparam. (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016, p. 90)

Todos esses são fatores já abordados quando relatada a dinâmica da criação das comunidades “fanfiqueiras”, no capítulo anterior, e que serão verificados com a pesquisa direcionada ao leitor de fanfics no capítulo seguinte do presente trabalho. Uma das consequências de um hábito de leitura cada vez mais coletivo, cada vez mais ligado à cultura pop e cada vez mais online, entre os jovens, é a criação e leitura de obras de literatura coletiva, as fanfics. Por isso, é interessante verificar que as fanfics apareceram pela primeira vez no relatório do Instituto Pró-Livro, ainda que timidamente, pois está sendo comparado com todo o corpo de leitores do Brasil: A menção a acesso a blogs, fóruns ou redes sociais sobre livros e literatura também revela um importante interesse que merece ser mais bem estudado e considerado tanto por mediadores de leitura como pela cadeia produtiva do livro. Apesar de o percentual de citações ainda ser pequeno (2%), a participação na construção de histórias coletivas (como Fanfic) revela uma importante novidade. Talvez essas duas revelações – uso de blogs, redes sociais e outras formas de compartilhamento de informações sobre livros e autores e a construção de histórias ou narrativas coletivas – sejam as novidades mais instigantes desta edição para uma outra investigação. (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016, p 38) FIGURA 3 — Gráfico sobre leitura online

Fonte: INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016, p. 259


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Verifica-se, portanto, que as fanfics são um sinal tanto da mudança dos hábitos de leitura de uma nova geração quanto de uma tendência que, se continuada e estimulada, é extremamente benéfica: o jovem lê mais, e uma das coisas que ele anda lendo são fanfics, obras literárias coletivas que refletem o que essa faixa da população sente e quer expressar. O hábito da leitura das fanfics não é um fenômeno à parte, mas parte integral dos novos tempos. A pesquisa do Instituto Pró-Livro foi realizada no ano de 2015 — agora, cinco anos depois, é possível que a presença da leitura de fanfics seja ainda maior, o que tem o potencial de ser positivo.


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4 RESULTADOS DA PESQUISA Neste capítulo estudaremos os resultados da pesquisa quantitativa realizada para esta monografia, a fim de averiguar se seus resultados corroboram a literatura teórica já produzida e aqui citada e, assim, oferecer um esboço do perfil do(a) leitor(a) brasileiro(a) de fanfics, a ser aprofundado em futuros trabalhos. Na enquete que empreendemos, as perguntas foram as seguintes: ● Qual seu gênero? ● Qual a sua orientação sexual? ● Com qual idade você começou a ler fanfics? ● Qual fandom foi sua porta de entrada para o universo das fanfics? ● Hoje, quais categorias de fanfic você costuma ler? ● O que você procura numa fanfic? ● Se você selecionou OUTRA na pergunta anterior, diga aqui o que você procura numa fanfic. ● Quantas fanfics você costuma ler em um mês? ● Em quais idiomas você costuma ler as fanfics? ● Quantas HQs (comics, mangás etc.) IMPRESSOS você costuma ler por mês? ● Quantas HQs (comics, mangás etc.) em SCAN você lê por mês? ● Quantos livros IMPRESSOS você costuma ler por mês? ● Quantos e-books você lê por mês? ● Você ouve audiolivros (ou audiobooks)? ● Você já se considerava um(a) leitor(a) antes de se interessar por fanfics? ● Quando criança, alguém lia para você e/ou te incentivava a ler? ● Se SIM, quem? ● Você já foi beta reader de alguém ou de algum site? ● Se sim, o que te fez querer participar da comunidade dessa forma? ● Além de leitor, você também escreve fanfics? ● Se SIM, o que te motivou a escrever fanfics? Estas foram as respostas:


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GRÁFICO 1 — Qual seu gênero?

Fonte: a autora

Mais de 60% dos participantes afirmaram ser do gênero feminino. É de comum conhecimento que o fandom das fanfics é um ambiente majoritariamente feminino, como afirmam os especialistas: A fanfic é desproporcionalmente escrita por mulheres, gays e outros que estão sub-representados ou excluídos das economias do capital financeiro e cultural. A fanfic pode servir para fortalecer estes grupos excluídos e marginalizados: eles encontram uma voz, usam a voz que possuem, alcançam os outros. (JAMISON, 2017, n. p.)

E também: Ao pesquisar a organização dos websites nacionais, é importante constatar a massiva presença feminina na prática da fanfiction no Brasil. São adolescentes, jovens e adultas, que desempenham os papéis de webmistresses, beta readers (revisoras de texto), autoras e leitoras de fanfiction. Nesse ponto há uma semelhança com a prática internacional, em que a presença feminina também é majoritária. (VARGAS, 2015, p. 32)

O número de 60% do público se identificando como feminino em nossa pesquisa é interessante, considerando-se a maior fonte de tráfego para o preenchimento da enquete online o canal Video Quest, especializado em crítica de animação e quadrinhos japoneses. De acordo com os dados fornecidos pelo canal, seu público é cerca de 90% masculino; mesmo assim, dentro desse mesmo público


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dominado por homens, as leitoras são a maioria, uma realidade compartilhada por toda a comunidade das fanfics. FIGURA 4 — Estatística do público do canal

Fonte: Video Quest3

Além da larga presença feminina nas respostas da pesquisa, a passagem citada acima de Jamison também se reflete na resposta da segunda pergunta, abaixo, sobre a orientação sexual dos leitores de fanfic: GRÁFICO 2 — Qual sua orientação sexual?

Fonte: a autora

A soma de todo o espectro LGBTQIA+ (homossexuais, bissexuais etc.) superou, mesmo que por pouco, o número de pessoas que se identificam como 3

Imagem do painel de controle disponibilizada para a autora pelo produtor do canal.


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heterossexuais nas respostas da pesquisa. Como já citado neste trabalho, a mídia mainstream é largamente dominada por homens brancos heterossexuais, e o reflexo disso é um conjunto de obras que têm, em sua maioria, esse gênero e orientação sexual como público alvo. O movimento para se criar uma mídia mainstream mais inclusiva, com mais histórias e personagens de todo o restante do espectro (o que inclui mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas não brancas etc.) é recente e, claro, enfrenta um enorme backlash por parte de um público acostumado com sua posição de privilégio. Nesse sentido, a fanfiction é um refúgio: é lá que mulheres e pessoas LGBTQIA+ podem encontrar um espaço para escrever as histórias que elas não encontram na mídia de massa ao “subverter” as mesmas para histórias de amor que não se limitem a um espectro heterossexual. O reflexo disso é um público leitor notoriamente pendendo para o LGBTQIA+, ou ao menos com um equilíbrio muito maior do que o público consumidor da mídia de massa dos grandes veículos, pois os conteúdos que esse público busca não são encontrados na mídia tradicional, como indicado por Igor Soares, cujo relato concedido para este trabalho pode ser lido na íntegra nos apêndices ao fim deste documento:

Foi até nesse site que eu comecei a descobrir a minha sexualidade lendo fanfics slash, yaoi. O que para mim foi ótimo porque desde pequeno sempre tive uma noção um pouco nebulosa da minha sexualidade. Mas eu sabia que não era heterossexual desde sempre e as fanfics foram, assim, o meu primeiro meio de contato com uma literatura que não existia em lugar nenhum na época, foi uma coisa muito transformadora para mim. (SOARES, 2019, n. p.)

A desconexão da mídia mainstream de toda uma parcela do público não se limita a gênero e orientação sexual, mas também à faixa etária. Obviamente, para se trabalhar numa grande produtora de cinema ou publicar um livro por uma editora comercial é preciso ter certa experiência ou notoriedade no ramo. Grandes autores de obras voltadas para o público infanto-juvenil, como J. K. Rowling (Harry Potter) e Suzanne Collins (Jogos vorazes) já haviam passado dos trinta anos de idade quando lançaram seus livros de grande sucesso para essas faixas etárias e, embora tenham claramente se comunicado com o público alvo em questão, ainda são pontos de vista de pessoas que há muito superaram a idade de seus leitores. Jamison diz que o mundo das fanfictions é diferente:


36 Adolescentes resolvendo questões sexuais e gramaticais online, simultaneamente: histórias desajeitadas sobre a “primeira vez”, escritas desajeitadamente por e sobre alunos do ensino fundamental que escrevem pela primeira vez. (JAMISON, 2017, n. p.)

Não apenas as histórias são escritas por adolescentes esboçando seus primeiros parágrafos como os temas são os que estão na cabeça de seus escritores: histórias de amor e de experimentação sexual, autodescoberta e conflitos interpessoais que vão além do que o departamento editorial de grandes editoras julga “comercial”. Logo, isso atrai leitores nessas idades, sedentos por histórias que tratem daquilo que lhes interessa ou os comove, por meio de personagens e mundos fictícios aos quais eles já estão apegados, como demonstra o resultado da terceira pergunta: GRÁFICO 3 — Com qual idade você começou a ler fanfics?

Fonte: a autora

Note-se

que

nada

mais

nada

menos

do

que

82,99%

dos(as)

entrevistados(as) declararam ter de 13 a 17 anos de idade quando começaram a ler fanfics, o que comprova seu caráter essencialmente adolescente. Essas constatações vão ao encontro das palavras de Soares em seu depoimento a este trabalho: Eu tinha 10 para 11 anos. Fazia mais ou menos um ano que eu tinha descoberto a internet. Na época foi o auge do Harry Potter. E eu lembro de ter procurado um site de Harry Potter, e encontrei numa busca, acho que do Cadê, um site chamado Harryoteca em que você tinha milhares de fanfics.


37 Você podia mandar por e-mail para o site, e o site publicava a fanfic lá. Tinha vários autores que na época que eu descobri o site já eram bem estabelecidos. Eu acho que era Claudia, não lembro agora o sobrenome dela. Claudia Sardinha eu acho. Lucas Sasdelli... E como eu gostava muito de Harry Potter e eu gostava muito de ler na internet, eu comecei a ler essas fanfics eventualmente. (SOARES, 2019)

Como visto acima, mais de 80% das pessoas que responderam à pesquisa assinalaram que começaram a ler fanfics antes dos 18 anos de idade. Essa predominância de uma faixa etária mais jovem também pode ser observada nos materiais-base das fanfictions lidas pelas pessoas que responderam à pesquisa, como visto nas respostas à próxima pergunta. GRÁFICO 4 — Qual fandom foi sua porta de entrada para o mundo das fanfics?

Fonte: a autora

Por conta de a idade na qual os leitores de fanfics entram neste mundo ser relativamente baixa, as obras de ficção que inserem as pessoas nesse mundo tendem a ser produtos de mídia voltados para os públicos infantil e infanto-juvenil. Dado o recorte de público consultado (boa parte do tráfego da pesquisa pela internet veio do canal de YouTube Video Quest, já citado, voltado para o público animê e mangá), o primeiro lugar, com larga vantagem em relação ao segundo, foi a animação japonesa Naruto. O seriado foi transmitido em rede nacional aberta, pelo canal SBT, de 2007 a 2010, e foi um grande formador de público para a mídia


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animê/mangá no Brasil, responsável por uma nova onda de fãs que não se via na mesma escala desde a transmissão de Os Cavaleiros do Zodíaco pela Rede Manchete em 1994 (que também foi citado, mas em escala bem menor, nas respostas a esta pergunta). O nível de popularidade de Naruto se reflete de diversas maneiras no mercado brasileiro, tanto nas altas vendas de sua versão original em quadrinhos quanto no fato de ela ser uma das poucas animações japonesas recentes cuja venda de produtos oficiais em território brasileiro é sequer viável; uma das consequências de seu enorme sucesso entre os jovens é a série ter iniciado muitas pessoas no mundo das fanfics. Além disso, a série conta com um elenco muito grande e permite diversas configurações de casais românticos com seus personagens, abrindo uma gama enorme de possibilidades. O que foi dito no parágrafo anterior se aplica também à série infantil japonesa Pokémon, um fenômeno cultural mundial que se estendeu para o Brasil quando transmitido pela Rede Record no ano 2000. As séries de livros infanto-juvenis Harry Potter e Percy Jackson e os grupos musicais com forte apelo para meninas adolescentes One Direction e BTS serão melhor explorados na próxima pergunta. Mas não são apenas os grandes fenômenos culturais mainstream que amealham novos leitores de fanfiction. Os motivos mais inusitados podem acabar apresentando o conceito para novas pessoas e, sem perceber, elas já estão fazendo parte da comunidade. Entre os muitos resultados que não configuravam número significativo para figurar na tabela anterior, pelo menos duas pessoas citaram Faustão e Selena como “fandom” que apresentou as fanfics para elas. É difícil mapear a origem desse tipo de fenômeno, mas, segunda matéria da Folha de São Paulo (2016), Fausto Silva, apresentador de televisão brasileiro, em 2016, mandou uma saudação para “Selena Gomez” ao vivo em seu programa Domingão do Faustão. Não se sabe se foi mesmo para a cantora norte-americana, mas o acontecimento deu origem, mesmo que como piada, ao fandom, que gira em torno das fanfics sobre o romance formado pelo casal imaginário das celebridades reais Fausto Silva e Selena Gomez, que fez carreira primeiro como atriz do Disney Channel e posteriormente como cantora pop adolescente. Os dois, até onde se tem notícia, nunca se encontraram pessoalmente. A piada parece contar justamente com o absurdo de um romance entre o apresentador brasileiro então com 66 anos e a cantora estadunidense de 27. Trechos de fics sobre o casal eram compartilhados organicamente em redes sociais, como o Twitter, o que fez com que o casal se


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tornasse uma piada coletiva, um “meme”, na internet brasileira a partir de 2016. Em se considerando que as pessoas tenham marcado essa resposta na pesquisa de maneira séria, trechos de prints das fanfics podem, sim, ter apresentado mesmo que a mera ideia de fanfics para pessoas que nunca haviam visto nada como isso antes e despertado o interesse em toda uma nova área da literatura contemporânea. GRÁFICO 5 — Quais categorias de fanfic você costuma ler?

Fonte: a autora

Nesta pergunta, a maioria esmagadora das respostas cita animês e mangás (como o já citado Naruto), uma mídia em ascensão nos públicos mais jovens, notório pela estética muitas vezes andrógina que dá vazão justamente aos temas de teor sexual LGBTQIA+ que dominam os sites de autopublicação e leitura de fanfics. Em seguida estão livros, um resultado alcançado graças à enorme popularidade das séries Harry Potter e Percy Jackson (principalmente o primeiro), livros de formação para toda uma geração de novos leitores — e, por consequência, novos escritores e leitores de fanfics. A categoria “pessoas reais” está em terceiro lugar nesta pesquisa graças à onda do momento no mundo musical, o kpop: navegar por sites como o Fanfiction.net é encontrar com enorme frequência fics sobre grupos — os chamados boy groups — como BTS e EXO, que fazem hoje um estrondoso sucesso entre meninas adolescentes. Essas três categorias específicas, animês e mangás, Harry Potter e kpop, são, inclusive, categorias de enorme interseção de público, cujo perfil


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é o retratado nas perguntas anteriores: mulheres, pessoas LGBTQIA+ e adolescentes. E todos eles convergindo para as fanfics para saciar os interesses tanto sobre quanto através dos assuntos delimitados acima. GRÁFICO 6 — O que você procura numa fanfic?

Fonte: a autora

Por outro lado, quando se verifica o que, exatamente, um leitor de fanfics procura em uma fanfic, é interessante perceber que, dada a opção de se escolher mais de uma resposta, a opção mais assinalada é procurar histórias nas quais os personagens de um dado mundo ficcional estejam inseridos em outro mundo ou contexto, o AU, o que pode denotar, como já citado no caso de Naruto, uma relação quase parassocial mais forte com os personagens que com o universo da obra de ficção, evidenciado também pelo número muito próximo de pessoas que responderam ler fanfics para ver a realização de seu ship preferido. Se histórias são sobre pessoas e relações interpessoais, faz sentido que haja um interesse maior em ver mais formas e contextos para esses mesmos relacionamentos entre personagens — muitas vezes, ver a concretização de relacionamentos que não se vê na mídia tradicional, e inseri-los em contextos com maior identificação com o leitor, como transportar os ninjas de Naruto para as favelas do Rio de Janeiro,


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imaginando-os como adolescentes cariocas em um relacionamento LGBTQIA+, por exemplo. Os dois próximos itens denotam uma frustração com a obra original e a percepção, do ponto de vista dos leitores, de potenciais desperdiçados por ela. Tentar completar lacunas deixadas pelo início dela ou imaginar possíveis continuações que nunca vão existir é um exercício criativo comum que pode ser sanado através da leitura de trabalhos derivativos criados por fãs como ele mesmo. Ou imaginar como é a vida cotidiana de personagens que estão inseridos em histórias de aventura, ação ou fantasia: esses gêneros precisam, por motivos de concisão e economia narrativa, se concentrar em mover a trama e não podem “perder tempo” mostrando o dia a dia dos personagens fora dos momentos que “importam” para que a narrativa transcorra e se conclua. Momentos como esse, numa narrativa padrão, podem ser vistos como desperdício de tempo por parte do público, mas como outra necessidade dessas histórias é a de gerar identificação pessoal com o leitor/espectador, é comum que um fã mais dedicado se pegue imaginando como aquelas pessoas do mundo de fantasia agem fora das grandes batalhas épicas ou explorações de masmorras — essa curiosidade pode ser saciada por meio da leitura de fanfics focadas no chamado slice of life, um tema comum no meio. Em seguida vem a vontade de se inserir na história e se relacionar romanticamente com os personagens da obra. Como já explicado, este item será mais explorado quando estudarmos as motivações para se escrever as fics Por enquanto basta dizer que, para quem não escreve fics, a experiência é parecida com a de qualquer espectador comum de mídia oficial: vivenciar, mesmo que imaginariamente, as próprias vontades através da leitura de trabalhos alheios. A prática do self insert é comum no mundo da fanfiction, logo o hábito da leitura da mesma se faz muito presente, mas não a ponto de figurar no topo das respostas, dado que este subgênero costuma receber críticas até mesmo no meio da comunidade, pois os personagens self insert acabam por ser, às vezes, idealizações unidimensionais de quem escreveu, o que não é uma experiência de leitura das mais ricas.


42 GRÁFICO 7 — Se você selecionou OUTRA na pergunta anterior, diga o que você procura numa fanfic

Fonte: a autora

Para aqueles que selecionaram “outros” na pergunta acima, pouco mais de 200 pessoas, abriu-se o espaço para que elas mesmas inserissem seus interesses pessoais que não estivessem contemplados nas opções anteriores. Aqui, a maioria esmagadora das respostas, compiladas em grupos comuns representados na figura acima, citava alguma variação dos diversos subgêneros de histórias de amor e de sexo geralmente de teor LGBTQIA+, como yaoi (romance entre personagens masculinos),

yuri

(romance

entre

personagens

femininas),

hentai

(sexo

heterossexual), mpreg (“male pregnancy”, gravidez masculina), ABO (“alfa-betaômega”, dinâmicas sexuais sadomasoquistas que presumem relações de poder entre pessoas “alfa”, “beta” e “ômega”), furry (animais antropomorfizados), entre outros. Em seguida, vêm pessoas que assinalaram querer histórias que sirvam de estudo mais aprofundado de um dado personagem, presume-se que percebidos como não tão desenvolvidos originalmente quanto o fanfiqueiro gostaria; seguido da vontade da exploração de aspectos secundários da história oficial, como, por exemplo, nuances da construção de mundo ficcional deixadas em segundo plano


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originalmente; em seguida, mais um exemplo de frustração com a obra oficial que causa um desejo de ver esses “erros” percebidos pelo leitor corrigidos por outro escritor, como uma tomada do poder das mãos do autor por parte dos fãs; depois disso, há o interesse de ver a habilidade do ficwriter de criar novos personagens inseridos em um universo fictício já existente, uma forma de admiração pela obra original que abre espaço para a criatividade dos fãs; e, por último, respostas que afirmam, genericamente, querer ler apenas boas histórias. As fanfics, em última instância, têm função parecida com a que teve a série Harry Potter para toda uma geração de adolescentes, além da identificação pessoal por conta de gênero, identificação de gênero ou orientação sexual: o incentivo ao próprio ato da leitura. As perguntas abaixo visam demonstrar o papel das fics como parte da rotina de leitura de toda uma parcela de pessoas, o que muitas vezes acaba não sendo considerado quando se fala dos hábitos de leitura de uma população. Ao responder sobre o volume de leitura de fanfics mensal (abaixo), é importante salientar que quase 40% das respostas assinala que lê mais de seis fics por mês, um número considerável, principalmente se juntado ao fato de que as fanfics são apenas parte das leituras de qualquer uma dessas pessoas, dado que o próprio material-fonte já foi, muitas vezes, uma leitura. O número mais impressionante, entretanto, são os 65,82% que declararam ler de uma a cinco histórias por mês – o que coloca essa fração acima da média nacional medida pelo Instituto Pró-Livro, cujo relatório mais recente diz que os entrevistados leram, em 2015, 2,54 livros nos últimos três meses (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016).


44 GRÁFICO 8 — Quantas fanfics você lê por mês?

Fonte: a autora

Outra peculiaridade do hábito de leitura de fanfiction no Brasil é o fato de que, por conta de a produção de fics em língua inglesa ser consideravelmente mais vasta que a de em língua portuguesa, muitos leitores apelam para histórias em outro, demonstrado pelo resultado abaixo, em que mais de 2000 pessoas relataram ler em português e, dessas, mais de 1500 também leem em inglês; um aspecto que tem seu lado positivo no incentivo ao hábito de leitura em uma segunda língua, mas também é reflexo de certa escassez de acesso e hábito de escrita por parte do público brasileiro. GRÁFICO 9 — Em quais idiomas você lê as fanfics?

Fonte: a autora


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As respostas para as próximas perguntas demonstram o quanto o fenômeno das fanfics é resultado direto, também, da junção de dois fatores importantes: a mudança nos meios de comunicação, cada vez mais online, e a predominância de usos alternativos e “clandestinos” das mídias de massa. As fanfics nasceram de zines impressos, mas são formadas, hoje, quase 100% de publicação via internet, e, portanto, fazem parte do hábito diário de uso de internet de muitas pessoas. E elas são, também, como já discutido aqui, uma forma de arte que se encontra numa área cinza de legalidade, para alguns mera cópia e desrespeito aos detentores dos direitos autorais (quando não consideradas diretamente um crime), para outros uma homenagem, uma extensão da adoração dos leitores dessas obras já consagradas. Por isso, existe, como já relatado, um grande tabu em torno do lucro a partir desses textos, que são publicados majoritariamente em espaços gratuitos, de acesso aberto. Por conta disso, como poderá ser verificado nos gráficos abaixo, o hábito da leitura de fanfics se cruza organicamente com o restante dos hábitos de consumo de mídia de massa: mais da metade das pessoas respondeu que não lê nenhuma história em quadrinhos impressa (ou seja, publicada legalmente); dessas mesmas pessoas, apenas 25% afirmaram não ler scans, ou seja, ela não usam quadrinhos online copiados ilegalmente e distribuídos de forma “pirata” pela internet (o termo “scan” vem do fato de que grupos de pessoas compram as revistas nas quais as HQs são publicadas em países como Japão e Estados Unidos e literalmente as escaneiam e publicam as páginas em sites que compilam diversas dessas cópias ilegais); ou seja, 75% das respostas afirmam ler, com frequência, quadrinhos copiados ilegalmente e distribuídos pela internet.


46 GRÁFICO 10 — Quantas HQs impressas você lê por mês?

Fonte: a autora GRÁFICO 11 — Quantas HQs em scan você lê por mês?

Fonte: a autora

Os três resultados a seguir demonstram que o perfil do leitor de fanfics, embora difira em muitos aspectos do restante da base de leitores, não é completamente alheio às tendências dos hábitos de leitura brasileiros. Poucos, apenas 20%, responderam não ler livros impressos, uma taxa menor do que os que não leem e-books, que somam 43%. O livro impresso ainda tem uma carga muito forte de fetiche — editoras como a Darkside e a Aleph investem de forma ostensiva em qualidade gráfica e capas de design arrojado, para que os livros sejam também presentes e artigos de colecionador além da leitura per se, enquanto e-books são consideravelmente menos “glamurosos”. Soma-se a isso o fato de que, para se ler


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um e-book, é preciso, muitas vezes, um aparelho próprio, e o gasto com o dispositivo, como um Kindle ou um Kobo, já é um fator dissuasório. Como já discutido, as fanfics, por uma diversidade de fatores incluindo o medo de processos por violação de copyright e um tabu interno do meio, são distribuídas de forma gratuita, ocupando um espaço de clandestinidade que vem tomando conta da mentalidade do uso de internet atual. Fanfictions (e scans, inclusive) são literatura gratuita e, de certa forma, por conta disso, pagar para ler algo digital é visto com maus olhos por muitos. Se for para pagar, que se pague por um produto que sirva como parte de uma coleção, ou mesmo como decoração, e é aí que entram os livros impressos, mais consumidos pelo público leitor de fanfics. Já o audiolivro não é um formato popularizado no Brasil, embora esteja crescendo4; a produção de audiolivros em língua portuguesa ainda é baixa e mal divulgada, e nisso os leitores de fanfics não se diferenciam do restante do público leitor, e fazem pouco uso dessa mídia – o que, por outro lado, indica um nicho potencial de mercado a ser explorado. Vale frisar, entretanto, a diferença de consumo de livros dessa fração do público leitor em relação à média nacional: em 2015, nada menos que 74% dos 5.012 entrevistados pelo Instituto Pró-Livro disseram não ter comprado nenhum livro nos últimos três meses (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016, p. 267). GRÁFICO 12 — Quantos livros impressos você lê por mês?

Fonte: a autora

Ver, a respeito, a reportagem “Audiolivros ganham espaço no Brasil”, publicada pelo jornal Valor Econômico em 17 de janeiro de 2020. Disponível em: <https://valor.globo.com/eue/noticia/2020/01/17/audiolivros-ganham-espaco-no-brasil.ghtml>. Acesso em: 28 jul. 2020.

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48 GRÁFICO 13 — Quantos e-books você lê por mês?

Fonte: a autora GRÁFICO 14 — Você ouve audiolivros?

Fonte: a autora

Como a leitura de fanfics não está divorciada do restante dos hábitos de leitura médios do público brasileiro, os resultados das próximas perguntas também são de se esperar: para se ter o hábito de ler uma forma de mídia tão, de certa forma, “obscura”, é preciso haver o hábito prévio de ler. Oitenta por cento dos entrevistados respondeu que já se considerava um leitor antes de se interessar por fanfics. As fanfictions são uma camada de engajamento ainda mais ativa que a de um leitor comum e, para entrar nesse mundo, nessa comunidade, normalmente é preciso estar intensamente imerso e interessado em dada obra para que haja a


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necessidade de ir além do que ela tem a oferecer no momento; logo, um leitor de fanfics é já, normalmente, um leitor ávido antes de mais nada. E, quase sempre, leitores ávidos se formam desde pequenos. Como apontado anteriormente, o leitor brasileiro depende consideravelmente da presença de um mediador de leitura, normalmente da própria família. Aqui, mais de 60% dos entrevistados afirmaram que alguém já lia para eles. A importância de um mediador é fundamental para se criar novos leitores e, como pode ser visto na resposta à pergunta seguinte (que não era obrigatória, por isso foi respondida apenas pelos cerca de 60% das pessoas que responderam “sim”, ou seja, 1527 respondentes), a grande maioria das respostas cita algum parente (frequentemente pai ou mãe) e, em seguida, um professor (note-se aí a importância da escola, ou mais exatamente, da relação intersubjetiva que se estabelece entre educador e educando na vida escolar). Neste aspecto específico da ascendência do professor (ou do bibliotecário) na formação do leitor vale lembrar Michèle Petit, para quem, quando se trata de vícios e mazelas, a escola é lembrada institucionalmente. Porém, quando se trata de boas lembranças, elas ganham personalidade e concretude na figura do mediador: O gosto pela leitura não pode surgir da simples proximidade material com os livros. Um conhecimento, um patrimônio cultural, uma biblioteca, podem se tornar letra morta se ninguém lhes der vida. Se a pessoa se sente pouco à vontade em aventurar-se na cultura letrada devido à sua origem social, ao seu distanciamento dos lugares do saber, a dimensão do encontro com um mediador, das trocas, das palavras “verdadeiras”, é essencial. (PETIT, 2013, p. 154)

Sendo assim, o hábito de leitura das fics é mais uma consequência de hábitos saudáveis de disseminação e apreensão de cultura e, inclusive, um passo a mais no engajamento e no interesse continuado pela literatura no geral.


50 GRÁFICO 15 — Você já se considerava leitor antes de se interessar por fanfics?

Fonte: a autora GRÁFICO 16 — Quando criança alguém te incentivou a ler?

Fonte: a autora GRÁFICO 17 — Se SIM, quem?

Fonte: a autora


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Já estabelecido que o hábito das fanfictions nasce de uma dedicação maior à leitura per se, as próximas perguntas visam estudar o nível de envolvimento geral do leitor desses textos com o próprio meio. Entrar para a comunidade como leitor comum é extremamente simples: é apenas questão de conhecer a existência desse gênero e entrar em algum site. Mas nem todas as atividades referentes ao mundo fics é tão popular. Apenas 15% das respostas assinaladas dizem que a pessoa já foi beta reader de alguém. Segundo Jenkins (2009): O nome leitura beta foi inspirado no termo teste beta, utilizado em computação: os fãs buscam aconselhamento sobre os rascunhos de suas histórias quase terminadas, para que possam consertar os “bugs” e conduzi-las ao nível seguinte. (JENKINS, 2009, p. 259)

Muitas vezes o leitor quer apenas ler mais histórias dos seus personagens, mas não apenas desconhece pessoas que escrevem como não sabe exatamente como se tornar um beta reader — ou, até mesmo, não se sente com confiança de se tornar alguém que possa colaborar dando feedbacks construtivos para os escritores. Ser um beta reader é um nível mais ativo de envolvimento com o meio, e é claro que, quanto mais as atividades vão se tornando específicas e especializadas, mais elas afunilam o número de pessoas envolvidas. Além disso, o trabalho de beta reader não recebe a mesma recompensa na forma de atenção e elogios que o trabalho de quem escreve as fanfics, logo, necessariamente, menos pessoas se prestam a fazer um trabalho que muitas vezes permanecerá anônimo. Vejamos os leitores beta. Leitores beta atuam como pré-leitores, caixas de ressonância e editores dos escritores de fic. Todo o trabalho deles é voluntário e é um trabalho real. Eles dedicam tempo e atenção à tarefa e, como muitos deles não escrevem, não recebem o mesmo serviço em troca. Grupos de crítica ou parceiros de escrita preenchem um papel similar na comunidade literária mais ampla, mas ao contrário do parceiro de crítica em um grupo literário, onde a comunidade entende a publicação por lucro como um resultado provável e desejável para o qual o grupo todo está trabalhando, betas de fanfic se oferecem porque acreditam que nenhum ganho comercial virá de seu trabalho. (JAMISON, 2017, n. p.)

E também: Um leitor beta que deseja permanecer anônimo comparou a sensação de ver o trabalho que ele leu como beta vendido fora da comunidade com um


52 trabalho doado a uma ONG que depois virou e disse: “Decidimos vender suas coisas e ficar com o dinheiro porque a gente queria curtir a vida.” (JAMISON, 2017, n. p.)

GRÁFICO 18 — Você já foi beta reader?

Fonte: a autora GRÁFICO 19 — O que te fez querer participar da comunidade dessa forma?

Fonte: a autora

As respostas para esta pergunta eram livres e foram agrupadas em temas comuns. Entre os motivos que podem levar alguém a se tornar beta reader, a maior parte das respostas (357) citou a amizade com o escritor. Em seguida, 74 pessoas


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disseram, de variadas formas, que o fazem para prestar certa consultoria literária aos escritores de fanfics, por perceber que o meio produz muito material de baixa qualidade, e que os novos escritores precisam de melhor instrução para melhorar e, assim, elevar o nível geral da comunidade. Cinquenta e duas pessoas disseram que não escrevem fanfics, mas usam o beta reading como forma de se sentir como parte da comunidade e ajudar de alguma forma que não seja apenas lendo anonimamente. Trinta e três pessoas responderam que o beta reading serve como prática não de escrita, mas de editoração; revisar o trabalho alheio serve como prática para trabalhos futuros de revisão crítica, que podem, inclusive, ser empregados em ambiente profissional posteriormente. O que está demarcado como spoilers, a resposta de 21 pessoas, é o ato de “betar” com o objetivo de receber, em primeira mão, antes dos outros leitores, os capítulos de sua fic preferida e, em troca, ajudar seu autor de fics preferido de alguma forma. O mesmo número de pessoas, 18, relatou dois tipos de resposta: que faz beta reading como troca de favores, para que receba de volta a “betagem” de suas próprias fanfics; e o beta reading como maneira de ajudar a divulgar uma fanfic de que ela goste para mais pessoas. Outras nove pessoas, agrupadas aqui como “outros”, deram respostas variadas, como o fato de ter templo livre ou de estar curioso pelo processo de escrita de uma fic. Por outro lado, escrever fanfics demanda apenas a vontade de contar mais histórias com seus personagens preferidos, uma vontade alinhada com o principal motivador da leitura, ler mais histórias com seus personagens preferidos. Porém, claro, como exemplificado acima, quanto mais especializada a atividade, mais afunilado o número de pessoas que a praticam. Cerca de metade dos leitores de fics que responderam à pesquisa afirmaram também escrever as próprias histórias.


54 GRÁFICO 20 — Você escreve fanfics?

Fonte: a autora

Porque, no fundo, a experiência fanfic nasce da frustração com a obra original, como disse Jenkins (2009, p. 273) ,“nasce de um equilíbrio entre fascinação e frustração”. E essa frustração pode ser sanada tanto lendo mais histórias quanto tomando o poder – ou o direito – para si e as escrevendo. [...] em uma cultura de massa onde 3/4 dos empregos de mídia são ocupados por homens, a fanfiction introduziu um espaço no qual as mulheres poderiam controlar e minar a cultura dominante. Barker viu as mulheres do fandom de Crepúsculo deslocando os papéis de editores, distribuidores e autores, planejando seus próprios sistemas, negando assim a teoria de Adorno de que a cultura de massas não deixa espaço para imaginação ou reflexão por parte da audiência. (JAMISON, 2017, n. p.)

Esse espaço de imaginação e reflexão se dá pelos mais variados motivos. Abaixo estão listados alguns que podem ter levado leitores a se tornarem também escritores de fanfics:


55 GRÁFICO 21 — O que te motivou a escrever fanfics?

Fonte: a autora

A resposta mais assinalada é reflexo claro da frustração supracitada: produzir mais material sobre o ship preferido é justamente a ideia de suprir um anseio que a mídia mainstream não pode ou não está interessada em preencher. Diversas séries e filmes de gêneros como a fantasia e a aventura, ou seja, histórias cujo foco não está no romance, fazem uso de subtramas de romance que nunca são concretizadas, criando expectativas que muitas vezes só são alcançadas se os próprios fãs realizarem o trabalho — isso, claro, sem citar casais LGBTQIA+ que nunca são concretizados na mídia de massa, apenas pelo trabalho criativo independente e sem amarras comerciais dos fãs. Em seguida, há aqueles que usam as fanfics como prática para tornarem-se, futuramente, escritores/as “oficiais”, de obras “originais”. É um caminho que vem se tornando cada vez mais comum, como os exemplos citados anteriormente das várias fics de Crepúsculo sendo repaginadas como histórias originais e vendidas em livrarias. A vantagem de praticar com fanfics está no fato de que já existe um público cativo para o mundo e o elenco de personagens que serão retratados na história — público do qual, inclusive, o próprio autor já faz parte: Hoje, centenas de milhares de novos escritores — jovens, crianças — crescem escrevendo não no isolamento, mas com uma comunidade pronta


56 de leitores e comentaristas que já adoram os personagens e o mundo sobre os quais escrevem. (JAMISON, 2017, n. p.)

Mas, claro, não necessariamente o novo autor vai reaproveitar sua história baseada em uma franquia de sucesso, mudar os nomes dos personagens e pôr à venda. O fanfic como prática apenas da própria escrita, dos recursos narrativos, tropos e mesmo da reação do público é um passo comum na vida de muitos novos escritores contemporâneos. Em seguida, vêm as fanfics A.U., um exercício de criatividade que, talvez, apenas o mundo da fanfiction proporcione. Passa muito pelo exemplo anterior, é uma maneira de exercitar a habilidade literária se servindo de personagens originais como modelos já fechados, colocando-os em situações, ambientes e até mesmo gêneros literários completamente diferentes, e imaginar como eles agiriam e, claro, como aquela história de amor aconteceria num contexto completamente diferente. Pensar nos bruxos adolescentes de Harry Potter como soldados na Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Recontextualizar personagens abre diversas possibilidades tanto para o leitor quanto para o escritor, além de expandir infinitamente o potencial de um fandom, que não precisa se prender apenas à história já dada. Mas há os que preferem ficar no mundo fictício já existente, como os que responderam com a opção seguinte, sobre criar histórias que expandam o cânone original, mais um reflexo da frustração citada por Jenkins (2009, p. 273). Não são poucos os exemplos de histórias que cativam seus fãs, mas acabam por não atender às expectativas do potencial percebido pelo leitor, que usa de sua criatividade para ele mesmo continuar de onde a obra original parou. Muito foi falado neste trabalho sobre fics de romance (no sentido de relação amorosa) e muitas vezes sexo, mas nem todas são assim: as trabalhadas aqui, muitas vezes, são histórias que tentam operar dentro dos limites e regras da obra original, apenas continuando a história como se o autor nunca tivesse parado, em mais um exemplo de como as barreiras turvas entre as fanfictions e os trabalhos “originais”: na franquia literária Duna, o autor original, Frank Herbert, escreveu seis romances, entre 1965 e 1995. Após sua morte, em 1986, seu filho, Brian Herbert, junto com Kevin J. Anderson, continuaram a série e escreveram muito mais volumes dentro deste universo que o autor original: dezessete. A única diferença palpável entre os


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dois atos é o fato de que Brian Herbert tinha a licença legal para escrevê-lo, mas toda a série posterior ao falecimento de Frank Herbert pode muito bem ser classificada como uma fanfic. Logo atrás, vem a ideia de fazer parte de uma comunidade, um anseio mais forte do que parece. Fandoms unem pessoas; muitas vezes, isso se dá em encontros pessoais, outras em fóruns online de discussão sobre a obra preferida, e em outras, reunindo-se para criar em homenagem à tal obra: música, ilustrações, cosplay, fanfics. Soares, entrevistado para estre trabalho, relata que chegou a trocar cartas com escritores de fanfics quando começou a se envolver na comunidade: Eu entrei no fórum da Harryoteca e eu comecei a me envolver diretamente com as pessoas que escreviam. Eu dava minha opinião. Eu fiz amigos na época. Eu mandava cartas escritas a punho para escritores de fanfic e a gente se telefonava. Era bem caro o telefone na época, mas a gente trocava ideias. (SOARES, 2019)

A possibilidade de conhecer pessoas através de sua obra de arte é um forte motivador para se começar a escrever — ser conhecido por meio de suas habilidades como artista, sentir o calor humano da admiração, mesmo que à distância, e também usar sua arte como ponto de partida para discussões sobre a obra de ficção na qual todos estão interessados. O que nos leva ao próximo item, a vontade de alcançar notoriedade dentro de um fandom, o que já vimos ser possível e, algumas vezes, lucrativo: E. L. James alcançou notoriedade tamanha, quando escrevia a fanfic de Crepúsculo intitulada Master of the universe sob o pseudônimo Snowqueens Icedragon, que foi possível se aproveitar do que agora configurava um fandom próprio para dar início à sua própria franquia milionária na literatura. Muitos podem tentar alçar a níveis como esse — um feito um tanto complicado, considerando o tamanho da comunidade e muitas vezes a barreira do anonimato. Em seguida, existe o desejo de se inserir na história que o ficwriter tanto gosta como um personagem, na maioria das vezes para viver um relacionamento amoroso com algum dos personagens da história, o chamado self insert. Se as fanfics existem como forma de adoração a uma dada obra de ficção, o fenômeno do self insert se configura como uma forma avançada dessa adoração, de tal modo que faz com que o leitor queira efetivamente viver naquele mundo. E, para tanto, a fanfic


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é a forma perfeita de se alcançar esse desejo, sendo ela uma ferramenta do fã para tomar para si o poder sobre o mundo ficcional. Logo mais, o motivo menos citado na pesquisa é também o menos ligado à relação entre fã e obra: o uso da escrita como forma de terapia. É claro que o uso especificamente da fanfic é pertinente: usar a arte como forma de extravasar frustrações, trabalhar a introversão ou mesmo relaxar pode ser feito com as mais variadas expressões artísticas, como a pintura, o canto e o teatro. A fanfic é importante para isso porque ela já é um ambiente de conforto e familiaridade. Algumas etapas da ansiedade da criação são saltadas porque o mundo, os personagens e boa parte da narrativa já foram criados, é apenas uma questão de deixar suas inspirações pessoais preencherem os espaços que a obra original deixou. Por fim, em “outros”, respostas das mais variadas, sem um padrão que lhes dê coesão. Citando alguns exemplos mencionados nas respostas: “indignação com o final da história”, “passar o tempo”, “colocar para fora minhas ideias”, “hobby”, entre outras.


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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo dos hábitos de leitura das fanfics no Brasil é um ponto de partida potencial para entender caminhos futuros da leitura — e até mesmo da produção artística — nos novos tempos. Verificou-se, no presente trabalho, que a ascensão do hábito das fics, notado inclusive no último estudo dos hábitos de leitura brasileiros do Instituto Pró-Livro, pela primeira vez desde que se começou o levantamento, é reflexo direto da mudança nos hábitos das pessoas nessa nova fase da era da informação: cada vez mais online, cada vez mais orgânico, cada vez mais social. As respostas para a pesquisa mostraram que as fanfictions atraem o leitor desde cedo por elas serem uma forma singular de experimentar narrativas que reflitam seus anseios, que retratem relacionamentos e pessoas cuja representatividade ainda deixa a desejar nas mídias de massa ditas “oficiais”. Além disso, a pesquisa mostra também que as fics são uma forma de reclamar para si algo que “o sistema” não oferece. Por conta da predominância da presença feminina entre leitores e criadores, citada tanto por os autores especializados no tema quanto nas respostas para a pesquisa que formou este trabalho, as fics constituem um ambiente completamente diverso do que se encontra na mídia tradicional, tanto do espaço para criadores que não o encontram em nenhum outro lugar quanto para os temas abordados. Os temas mais buscados pelos leitores costumam ser relacionados a uma frustração com o material original que, mesmo sendo importantíssimo para cada um desses leitores, ainda reproduz muitas das características da mídia pensada para consumo em larga escala, deixando para trás temas como o romance LGBTQIA+ de lado, e essa é a lacuna preenchida por essa forma de mídia em ascensão. E o interesse nesses textos também é gerado pelo fato de eles já estarem inseridos em cânones conhecidos e com uma sólida base de fãs; cânones que, como mostra a pesquisa, foram e são formadores dos gostos de toda uma geração durante a infância e a adolescência: animês e mangás, literatura infanto-juvenil como as séries Harry Potter e Crepúsculo e grupos musicais voltados para o público adolescente feminino como One Direction e BTS. Inserir-se nesses cânones — e, a partir daí, ressignificá-los — é o que dá liberdade de experimentação a quem


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escreve, e cria uma zona de conforto para quem lê, além de ajudar na proliferação orgânica desses conteúdos e ampliar ainda mais a rede da leitura. A leitura de fanfics também reflete o começo de uma guinada em direção à leitura online, dissociada dos meios oficiais. A pesquisa deste trabalho mostra que, ao mesmo tempo em que 56% das respostas afirmaram ler e-books, 54% afirmaram não ler histórias em quadrinhos impressas, de forma oficial — o aspecto da “clandestinidade” das fics é fundamental na formação do meio, por sua própria natureza, mas também é reflexo das mudanças dos meios de comunicação em tempos recentes, pendendo para formatos digitais cada vez mais presentes no dia a dia do brasileiro. Mas nada disso seria possível se o hábito da leitura per se não existisse: a pesquisa mostrou que o leitor de fanfics não se considera um leitor exclusivo dessa forma de literatura, mas sim de todas, integradamente. E aqui, cabe um destaque para o papel importantíssimo do mediador de leitura no nascimento desse hábito: tanto a família como a escola e o bibliotecário têm um papel fundamental e verificável na origem do gosto pela leitura, e um trabalho mais ostensivo merece ser estudado para o futuro, visando fortalecer o papel da biblioteca na formação de novos leitores. A fanfiction é uma forma de arte que, apesar do preconceito que faz com que ela seja vista como algo inferior, é, na verdade, tão legítima quanto qualquer reimaginação de peça shakespereana — na verdade, mesmo Shakespeare fazia uso das mesmas ferramentas em suas obras agora seminais. Existe um aspecto de vergonha entre as fileiras dos leitores e, principalmente, dos criadores do meio, que é uma das razões que fazem com que exista um tabu de nunca lucrar com as próprias fics. Com isso, os principais motivos que fazem com que alguém decida começar a escrevê-las são a já mencionada frustração com a obra original e, logo, a necessidade de tomar para si a tarefa de escrever o romance de seu ship preferido e, em seguida, a fic como uma forma de “treino” para, futuramente, o ficwriter se tornar um autor “de verdade”, em mídias oficiais. Esse caminho já foi traçado por outros autores antes deles, sendo a mais proeminente E. L. James, de Cinquenta tons de cinza, antes uma fanfic de Crepúsculo — talvez seja questão de tempo para as fanfics serem um laboratório para a próxima geração de autores nacionais e, dados os interesses enumerados pelas respostas à pesquisa, talvez essa próxima geração seja consideravelmente mais inclusiva que as passadas.


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Todos esses aspectos são sinais das mudanças dos hábitos de leitura no geral, e criaram o mundo das fanfics em específico, portanto é seguro afirmar que as fics são um representante digno do que está por vir em termos de como as novas gerações abordarão a criação literária e, principalmente, o hábito da leitura.


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APÊNDICE A — Transcrição da entrevista de Igor Soares concedida a Ana Paula Cruz Fontana

A: Muita gente LGBT que vai atrás de fanfic porque não tem outro lugar, né? No mainstream não tem esse tipo de história romântica com personagens LGBT. I: Nossa, eu passava as tardes lendo sobre Harry e Draco, lendo Snape e algum outro professor, do tipo Harry e Rony. Tem várias pessoas famosíssimas que até hoje. Tinha uma tal de Claudia "Alguma Coisa" que ela fazia fanfic slash do Harry. Tinha um tal de Lucas Sasdelli que contribuiu com gigabytes de fanfic. Eu tinha um amigo com 12 anos de idade. Eu ligava para ele pra São Paulo, o Danilo, e a gente ficava conversando sobre fanfic yaoi que a gente lia. Era maravilhosa essa época. A: Conta aquela sua história de como você foi alfabetizado. I: Eu comecei a ler meio que espontaneamente, entre dois ou três anos de idade. Todo mundo achava que eu tinha decorado placas. Eu ia na rua e falava “Bob's”, “Mcdonalds”, “Farmácia”, e todo mundo, "Ah, que bonitinho! Ele decorou as palavrinhas!". Um dia eu estava com minha vó, e eu vi uma tampa de bueiro. Eu passei com ela e eu falei, "Esgoto Sanitário Águas de Niterói". Aí minha vó "Que?", "Tá aqui, vó: Esgoto Sanitário Águas de Niterói". Ela me deu um jornal, pediu pra eu ler, e eu comecei a ler o jornal inteiro. E aí foi assim que eu li. Mas anos depois com 15 anos eu fui de fato alfabetizado, só que um japonês. Que de fato uma professora me ensinou a escrever, a ler em japonês. Então meu processo de alfabetização foi todo ao contrário. Mas eu sempre gostei de ler. Desde pequeno eu lia muito. A minha mãe ela não tinha muito dinheiro quando eu era novo. Ela era datilógrafa, mas ela tinha feito faculdade de Letras e ela sempre falava pra mim: "Pode faltar roupa, pode faltar comida, pode faltar brinquedo, mas nunca vou deixar livro faltar pra você”. O que eu quisesse ler ela disponibilizava. Então, quando criança eu tinha mais livros e brinquedos. Mais livro do que amigo. A: O que você gostava de ler quando você era criança? I: Eu gostava de ler de tudo. Eu lia muita história infantil. Eu lia enciclopédias. Eu adorava enciclopédias de animais. Eu tinha uma coleção de livros da minha mãe dos anos 60 que tinham livros de poemas que eu gostava de ler. E tinha um manual de etiqueta que era coisa mais fofa do mundo. Era um hipopótamo que ia pra uma


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festa, e ia ensinando como se comportar, enfim. Até manual de coisa eu gostava de ler. Manual de instruções, jornal, eu gostava de ler Revista Nova. A: Que era o que tinha, né, na sua casa? O que tivesse você pegava pra ler. I: Sim. Então, é até engraçado. Esses dias estava pensando como meu primeiro contato com literatura erótica foi com 8, 9 anos lendo “30 Posições Quentes Para Testar o Seu Marido”, da Revista Nova. Não entendendo nada, mas achando ótimo. Não sabia nem o que era sexo, mas eu sabia todas as posições. A: E fanfic, você lembra quando você descobriu que existia? I: Eu tinha 10 pra 11 anos. Fazia mais ou menos um ano que eu tinha descoberto a internet. Na época foi o auge do Harry Potter. E eu lembro de ter procurado um site de Harry Potter, e encontrei numa busca, acho que do Cadê, um site chamado Harryoteca em que você tinha milhares de fanfics. Você podia mandar por e-mail pro site e o site publicava a fanfic lá. Tinha vários autores que na época que eu descobri o site já eram bem estabelecidos. Eu acho que era Claudia, não lembro agora o sobrenome dela. Claudia Sardinha eu acho. Lucas Sasdelli... E como eu gostava muito de Harry Potter e eu gostava muito de ler na internet, eu comecei a ler essas fanfics eventualmente. Eu entrei no fórum da Harryoteca e eu comecei a me envolver diretamente com as pessoas que escreviam. Eu dava minha opinião. Eu fiz amigos na época. Eu mandava cartas escritas a punho para escritores de fanfic e a gente se telefonava. Era bem caro o telefone na época, mas a gente trocava ideias. E tinha fanfics muito boas, desde histórias de aventuras. Tinha essa Claudia que escrevia verdadeiros livros a respeito de Harry Potter até fanfics românticas. Foi até nesse site que eu comecei a descobrir a minha sexualidade lendo fanfics slash, yaoi. O que pra mim foi ótimo porque desde pequeno sempre tive uma noção um pouco nebulosa da minha sexualidade. Mas eu sabia que não era heterossexual desde sempre e as fanfics foram, assim, o meu primeiro meio de contato com uma literatura que não existia em lugar nenhum na época, foi uma coisa muito transformadora para mim. Depois da Harryoteca eu conheci o Fanfiction.net e comecei a ler fanfics em inglês. Tinha um site de fanfiction brasileira na qual por um breve período em 2004, quando tinha 14 anos, eu escrevia fanfics também. Não foram muitas, foram oito ou nove capítulos de uma fanfic sobre InuYasha. Era um era um romance hétero, boring. eu sei... A: Qual era o casal?


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I: Na verdade era um triângulo amoroso entre o Inu-Yasha, a Kikyou e a Kagome, com personagens inventados também. Mas era em cima desse triângulo amoroso. Que foi até na época eu conheci várias amigas na internet, eu tive namoradinhas virtuais por conta dessas fanfics que tinham algumas leitoras. Um dia simplesmente eu me senti desestimulado e parei. A: Você largou tudo? Você lembra com quantos anos que isso aconteceu? I: De 14 para 15 eu comecei a ter um distanciamento maior das fanfics, mas também ao mesmo tempo foi quando eu comecei a ter uma aproximação maior da minha sexualidade real. Foi quando meu interesse começou a sair um pouco dos animês, da fantasia, e se aproximar um pouco mais do mundo real. Eu comecei a ler mais mangá e assistir menos animês, por exemplo. Eu comecei a ler menos fantasia e comecei a ler outros tipos de literatura. Mas eu sei que dos 10 aos 15 anos eu acompanhei bastante fanfic, com regularidade. Todo dia, eu acessava algum site e lia alguma história, procurava algum escritor. Principalmente Harry Potter, InuYasha, até Pokémon eu lia, principalmente yaoi. Yu-Gi-Oh! eu lia bastante! Tudo que eu assistia que me interessava minimamente eu lia alguma fanfic a respeito. A: E você acha que elas te atraiam porque elas normalizavam a relação homossexual em diferença de como a gente vê na mídia, de como é representada de uma maneira negativa ou caricata? I: Sim, certamente. Eu sentia que a representação das fanfics traziam uma dimensão muito mais factível pra mim do que... Bem, não existia representação na mídia naquela época. Então, pra mim, como fanfics sempre foram um submundo, eu já sentia que eu cometia uma transgressão ao ler fanfic, eu já sentia que eu invadi um espaço criativo que era muito particular. Era um código cultural que eu compartilhava com muitas poucas pessoas, mas que me ajudou a ter contatos sociais, ajudou a explorar minha criatividade, a minha imaginação, e principalmente minha sexualidade. Então era um espaço quase transgressor. E na época era muito transgressor você normalizar quem você é. Então ao ler, por exemplo, fanfics que mostravam personagens héteros exercendo uma homossexualidade era como a válvula de escape para mim que tinha que me codificar como heterossexual, mas no mundo da fantasia eu poderia ser homossexual também. Então foi uma ferramenta de autodescoberta. Inclusive, eu não sei nem se eu contei essa história pra você, mas como eu me assumi homossexual pra mim mesmo. Até então eu nunca tinha afirmado por mim "Eu sou homossexual" ou reconhecia isso. Para mim era um


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desejo proibido que eu matava lendo fanfic ou no mundo da imaginação. Até que uma garota com quem eu escrevia começou a ouvir música emo. Ela me apresentou muita música emo também. Sempre de bandas de homens bissexuais contando sobre romances com outros caras de outras bandas. Até que um dia ela veio "Igor, eu acho que eu sou bissexual", e de repente me caiu a ficha "Talvez eu seja bissexual". Eu não tinha a menor atração pelo sexo feminino, mas na época foi o que me fez questionar a minha própria sexualidade e a querer rotular alguma coisa. A gente compartilhava fanfics não mais sobre personagens de animê ou de literatura, mas ela escrevia milhões de fanfics sobre bandas que a gente ouvia. O universo das fanfics foi transportado para fora do mundo da fantasia, da arte, um pouco pro mundo real. Eram fanfics de bandas, fanfics de atores. Eu lembro que tem um filme que tá muito famoso hoje em dia aquele, alguma coisa Wallflower, eu esqueci o nome dele agora. How to be a wallflower? Tem o Ezra Miller. Ela chegou a me apresentar As Vantagens de ser invisível (The perks of being a wallflower), que hoje em dia até ficou super famoso, mas eu lembro que na época, 2004, não, 2005, ela me enviou um documento, um doc do Word, em que a comunidade de fanfics LGBT internacional, isso via LiveJournal. Tinha uma comunidade de fanfic muito ativa ainda no LiveJournal. Nessa época, e as pessoas conseguiam livros LGBT e convertiam pra docs e as pessoas mandavam por e-mail uma para as outras.

Ela

me

apresentou

essa

literatura

com

personagens

bissexuais,

homossexuais. Então assim a fanfic serviu muito pra me aproximar desse material. Eu conheci escritores de contos LGBT brasileiros. Eu tive contato nessa época com O segundo travesseiro. E eu acho que até hoje fanfic ajuda muito as pessoas a explorarem lados delas que elas sentem que na vida real não podem ser capazes de explorar. Como por exemplo Twilight, que começou como uma fanfic, não, minto, 50 Tons de Cinza que começou como uma fanfic de Twilight mas que eu vejo que foi uma maneira da autora de explorar, por exemplo, lados da sexualidade dela que ela não poderia normalmente explorar. Eu conheço amigas que até hoje é são tão reprimidas com a própria sexualidade, mas é através das fanfics conseguem explorar diálogos, cenas e momentos. Eu sinto que a ficção feita por fãs é uma mais uma maneira de você explorar facetas psicológicas suas que no dia a dia a sociedade não permite que você possa explorar plenamente. A: Você lia só fanfic de romance?


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I: Não, eu lia fanfic de comédia também. Eu lembro que até escrevi uma fanfic de comédia com uma amiga minha num caderno, no papel. A Mara. A gente tinha um caderno. Eu tinha ganho um caderno Fisk e a gente escreveu uma fanfic crossover, Casa das imbecilidades, que era uma espécie de Big Brother em que a gente botava personagens que a gente gostava dentro da casa. A: Tinha muita fanfic que uma pessoa ou autor juntava todos personagens que ele gostava e fazia tipo um programa de entrevista, qualquer coisa assim de comédia. I: Sim! Era uma maneira muito multidisciplinar de você pegar ficções que não tinham nada a ver e fazia acontecer. Também era uma maneira de a gente exercitar o nosso humor. A gente ia pro play do nosso prédio e cada um botava um personagem, por exemplo, ela queria botar o Touya de Sakura Card Captors, e eu botava o botava o Wufei de Gundam Wing e a gente fazia como que eles fossem um par romântico que não tinha nada a ver. A gente colocava personagens de Patlabor com Shinzo, com Pokémon, com Cavaleiros do Zodíaco, e fazia eles caírem na porrada. E pra gente era terrivelmente engraçado imaginar essas situações nada a ver acontecendo. Eu acho que na época era uma maneira da gente ter um contato com a cultura mainstream. Por exemplo, a gente não se sentia confortável vendo reality show, mas a gente se sentia muito confortável de criar um reality show ridículo de personagens, pro nosso humor, com nosso código cultural. Cada pessoa ficava com o caderno por uma semana, escrevia uma parte, passava o caderno pro outro que morria de rir, continuava escrevendo a história, devolvia... Eventualmente eu perdi esse caderno numa reforma aqui em casa, mas até hoje a gente se lembra de cenas épicas da nossa história como eventualmente as pessoas começarem a morar no banheiro da casa, que era onde acontecia pegação entre os personagens, e todo mundo que entrava no banheiro não saia mais. A cozinha era onde rolava as cenas de romance, as pessoas se metiam porrada na sala, e sempre viravam cenas que iam se multiplicando. A sala estava sempre em porrada, ninguém parava de bater na sala, na cozinha todo mundo ia flertar mas não dava certo, chorava e ficava comendo e aí chegava mais alguém e tentava flertar com alguém e não dava certo e virava um grande banquete. O banheiro é uma espécie de pocket dimension onde as pessoas iam se pegar e virava uma grande suruba intergaláctica. A gente explorava o limite. O quanto a gente consegue ser ridículo. O quanto esses personagens podem ser ridículos. A gente chegava a extremos bizarros, mas eram fins de semana maravilhosos. Eu ficava três horas lendo e


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relendo, rindo e chorando de rir, e fazendo desenhos no canto da página que ela completava depois e a gente completava com texto. Enfim, foi uma época muito boa. Assim eu pude exercitar muito a escrita, o humor. A: E você é uma pessoa que até hoje gosta muito de escrever. Você escreve muito bem. Você acha que essa isso te ajudou? A ou te dar, aumentar esse gosto, ou mesmo te ajudar a desenvolver essa habilidade na escrita? I: Certamente. Porque quando você é criança onde é que você escreve? Você escreve na escola, escreve em redação. Você não tem uma educação voltada à escrita criativa. Quer dizer, hoje em dia sim, mas na nossa época eu sinto que não era muito comum de escrever na escola, do tipo. A escola que eu estudava tinha muita gente que gostava de fanfic também. Eu lembro o Pedrita foi quem me mostrou hentai e fanfics eróticas pela primeira vez. Eu lembro de a gente chegar aqui em casa e ele me mostrado uma hentai e eu totalmente desinteressado. Eu vi uma do Gary com o Ash e eu fiquei "Meu Deus, a internet é maravilhosa.”. E aí que eu comecei até a procurar sobre hentai. E eventualmente eu descobri o mundo das fanfics pra animê também, mas o Harryoteca veio antes. A: Então, como você escolhia os ships que queria ler? Como era a afinidade, o critério? I: Olha, normalmente eu lia o que me era apresentado. Eu não tinha uma escolha na minha cabeça. Uma vez que comecei a ver os pares, porém, eu comecei a sentir uma afinidade maior por determinados casais. Por exemplo, com Harry Potter, existiam muitas fanfics Harry e Draco, Harry e Rony e Rony e Draco. Então, eu sempre tentava gravitar para essas três porque tinha um maior alcance de material. Agora Inu-Yasha, por exemplo, tinha uma popularidade muito grande Inu-Yasha e Kagome, então já procurava as fanfics heterossexuais porque era um ship que era muito forte. A: Você ia atrás de algum personagem que era de algum ship porque você tinha atração por aquele personagem específico? Como se você se projetasse naquele outro personagem que estava tendo a relação com ele? I: Muitas vezes eu me projetava sim. Por exemplo, por mais que eu me envergonhe falar muito isso, na época eu adorava, idolatrava o Rony e eu me sentia muito o Rony dos meus amigos de Harry Potter. Então eu sempre procurava Rony, Rony e Harry porque o Harry me lembrava muito o meu melhor amigo na época por quem eu era apaixonado. Então, eu simulava muito essa dinâmica. Por outro lado, às


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vezes eu gostava de ler coisas com as quais não conseguia me identificar em absoluto. Por exemplo, as vezes eu lia fanfics yuri, principalmente Sailor Moon, não porque eu me identificasse, mas porque eu gostava da sensação de me aproximar de um universo do qual não tinha a menor relação ou pertencimento afetivo. E também porque muitas fanfics de yuri eram mais bem escritas do que muita fanfic yaoi na época. Nossa, eu lembro de ler uma no Fanfiction.net de Haruka e Michiru, que já era um casal canon lésbico de Sailor Moon, mas tinha uma fanfic tão bonita do tipo que acompanhava acho que cinco anos da vida delas, num universo alternativo onde elas não eram defensoras do universo, mas sim amigas que se conheciam numa faculdade de artes. Pra mim já era fascinante imaginar um universo de universidade porque na época eu estava na escola, então eu acho que a pessoa que também escreveu também devia estar na escola, porque olhando para trás a dinâmica de faculdade parecia muito um ensino médio da vida na fanfic. Mas era muito interessante ver elas descobrindo romance entre as aulas, e trabalhando em projetos juntas, de repente brigando, e uma delas decide largar a faculdade e começa a trabalhar numa loja de conveniência, e começa a sair com outra garota, e tinham personagens originais. Era muito bacana. A: Você gosta de personagem original? I: Eu gosto de personagem bem escrito original. Eu acho que quando o personagem faz sentido, eu gosto. Quando o personagem não tem porque existir, e a gente sabe que às vezes uma obra não permite você inserir coisas. Por exemplo, pegando uma coisa mais contemporânea, Steven Universe. Steven Universe é uma obra muito diversa com muitas pontas abertas, com muita possibilidade de você colocar personagens novos e parecer natural naquela obra porque ela permite um certo grau de flexibilidade. Eu acho mais complicado você fazer isso, por exemplo, com Cavaleiros do Zodíaco, em que você tem uma estrutura muito sólida, ou Yu Yu Hakusho, que você não tem uma liberdade tão grande de personagens originais. Sailor Moon eu acho que permite um pouco porque você tem um cast muito variado, mas ainda assim soa estranho você colocar em determinados pares. Harry Potter faz mais sentido porque é uma obra mais abrangente. Acho que depende muito do tamanho do universo está sendo representado. Se o universo é um universo pequeno, um personagem original não faz sentido. Se você tem um universo mais plural, como Boku no Hero Academia, meu deus, Steven Universe que eu acabei de falar agora, Harry Potter, ou Senhor dos Anéis até. Enfim, quando você tem


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universos gigantescos com múltiplos personagens faz sentido. Quando você tem uma história muito fechada e com poucos personagens, realmente, soa alienígena. Parece que você está traindo a essência daquele universo. Eu acho que alguns universos são plurais por definição, e é bom você explorar a pluralidade desses universos. Enquanto outros são mais restritos e você trabalhar com essas restrições é mais interessante. Assim, tanto do ponto de vista do escritor quanto do ponto de vista do leitor. A: Muito do que eu vejo quando é personagem original geralmente é a autora se inserindo na história. Eu falo autora porque majoritariamente são mulheres que escrevem fanfics. É a autora se inserindo na história porque ela quer ser amiga daqueles personagens, ou porque ela quer ter um relacionamento amoroso com aqueles personagens. Essas que são claramente a autora na história, você gosta também? I: Assim, é óbvio que a gente acha um pouco ridículo, mas se você parar pra pensar em toda a exploração, repressão feminina que até hoje é forte e é real, imagina 10, 15 anos atrás. Eu sempre gostei muito do universo das fanfics porque é um universo majoritariamente feminino. Eu fui criado num lar só com mulheres, eu praticamente só tinha amigas. Eu fui aprender a ter amigos homens com, sei lá, 26 anos de idade. Até então eu sempre tive um círculo social majoritariamente feminino. Então eu sempre pude ver de perto muitas amigas minhas não podendo falar abertamente sobre sexualidade, não podendo demonstrar abertamente lados delas mais assertivos, mais sagazes. Eu tenho amigas geniais que sempre se castraram por conta de uma cultura que não incentivava elas a se abrirem, ou a serem elas mesmas. Então em fanfic, vendo as vezes, por exemplo, a autora fazendo amizade ou fazendo coisas incríveis, ou tendo coragem de falar ou fazer determinados atos, eu achava legal porque eu sentia que era mais parecido com o que as minhas amigas queriam de fato ser, do que o que elas de fato eram na vida real, entende? Então eu acho interessante. Óbvio que algumas são muito bobas. Dá vontade de zoar a autora, sim, desculpa, não vamos ser hipócritas. Mas eu fico feliz que ela tenha tipo esse espaço. Tenho uma aluna de japonês que comentou uma vez que uma amiga escrevia fanfics sobre o grupo de amigas delas namorando cada uma um integrante do BTS. É uma coisa boba do tipo, mas até nossos pais devem ter feito isso em algum grau, por exemplo, com Menudo, ou o New Kids on the Block,


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Beatles. Você se projetar em universos de fantasia é uma coisa tão comum da humanidade, então porque com a fanfic seria diferente? A: Para terminar, em muitas fanfics, os personagens têm o nome do personagem, então você tem aquela representação visual, imagética do que é o personagem que você gosta. Você já vem com tudo o que você conhece dele embutido. Só que do jeito que está sendo escrito na história, de como ele está agindo, do que está falando, não tem nada a ver com o personagem original. Até que ponto ainda é o personagem, sabe? Sei que existe a categoria OOC (out of character). Mas ainda é o personagem se ele não se comporta nem um pouco como o personagem originalmente? I: Isso é muito interessante. Conhece Avatar? Então, tem um ship muito popular no fandom que é com o Sokka, que é um personagem de alívio cômico. Em Avatar, você tem o Aang que é o principal dotado de poderes. Ele é o Avatar, a reencarnação desse espírito que sempre volta a cada tantos anos pra trazer paz pro mundo. Você tenha a Katara, que é uma dobradora de água de uma tribo nórdica baseada nos inuits. E você tem o Sokka, que é irmão dela. Nem todo mundo de Avatar tem poderes, e o Sokka não tem poder algum. Ele sabe usar bem bumerangues, ele é um bom caçador, ele sabe montar planos, mas normalmente ele serve em muitos episódios como alívio cômico. A Azula é uma personagem que surgiu mais pra frente em Avatar, e ela é uma das maiores vilãs da história. Na história de Avatar, os grandes vilões são o Reino do Fogo. Existiu uma guerra. O Reino do Fogo dominou o mundo. O Avatar quase morreu há 100 anos atrás por causa de uma invasão do Reino do Fogo. O ciclo do Avatar tinha acabado. Ele não reencarnou, ele ficou congelado numa geleira. Cem anos depois, ele volta no futuro e o mundo está no caos. Enfim, essa Azula é a princesa do Reino do Fogo. Ela vai ser a futura imperatriz do fogo e ela é psicopata. Ela é representada com uma psicopata, como extremamente violenta. A psique dela é totalmente deturpada, é uma das personagens mais cruéis, violentas e sombrias que já existiram na história de qualquer ficção. Ela é uma personagem muito complexa e muito pesada. Porém, na internet existe um fandom muito forte da Azula com o Sokka, que é o alívio cômico. Não existe nenhum indício na série de que os dois sequer poderiam ter uma aproximação amigável. Eu não lembro de haver diálogo entre os dois. Normalmente eu a vejo tentando matar ele como um todo. Então não existe respaldo para existir esse ship, porém esse é o ship mais popular de Avatar. Existe uma espécie de


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universo alternativo compartilhado em que a Azula não é uma psicopata, o Sokka, um pouco mais velho, e nesse universo alternativo compartilhado tudo que é comum é que o Sokka é um cara muito inteligente e sempre acaba com a Azula. É uma descaracterização extrema de dois personagens mas existe, por conta do fandom, uma caracterização coletiva em que se criou um consenso. Então, eu acho que a Azula e o Sokka não são os personagens originais, mas são ao mesmo tempo. Acho que a partir do momento em que você, por exemplo, tem um fandom forte que chega num consenso, acaba que a aquela criação do leitor se torna tão grande, se torna um universo compartilhado tão intenso que acaba se tornando original também.


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APÊNDICE B — Modelo do questionário aplicado


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