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3. A PRESERVAÇÃO DE BENS HISTÓRICOS
Até a segunda metade do século XVIII, as intervenções em obras preexistentes se deram apenas a partir do critério funcional: as construções eram adaptadas de acordo com as novas necessidades dos usuários. Contudo, naquele século, importantes fatos evidenciaram a ruptura que existe entre o passado e o presente. O Iluminismo, a Revolução Industrial e a Revolução Francesa trouxeram à tona novos modos de viver, de produzir, de governar e mais conhecimento científico. A partir daí as heranças de gerações anteriores passaram a ser reconhecidas como objetos de interesse cultural tendo em vista os “aspectos estéticos, históricos, memoriais e simbólicos dos bens, também com fins educativos” (KÜHL, 2018, p.60).
A preservação, portanto, deveria estar atrelada a três motivos: científico, cultural e ético. Os dois primeiros derivados dos conhecimentos das ciências naturais e humanas aplicados na obra em seu momento de produção e que permaneceram nelas ao longo do tempo. A motivação ética se dá pelo entendimento de que não é um direito apagar os vestígios deixados por uma sociedade anterior, tampouco impedir as futuras de conhecê-los e poder absorver os conhecimentos que estas obras carregam. Dessa forma, a premissa da restauração de um bem histórico deve estar fundamentada sobre caráter ético enquanto que a questão utilitária e prática deve ser tratada de forma secundária não determinante no processo de preservação, mas como um possível meio para tal. (KÜHL, 2018).
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O século XIX foi um período de muita experimentação a respeito da preservação e diversos conceitos foram formulados. Neste momento houve dois teóricos de correntes opostas que se destacaram. John Ruskin (18191900) apresentou uma postura conservadora que defendia a manutenção dos indícios da passagem do tempo nas obras. Em seu livro “A Lâmpada da Memória”, Ruskin expõe que a arquitetura tem uma função necessária para a rememoração, mais do que demais “registros duvidosos”, referindo-se aos documentos em papel. Ao discorrer sobre a arquitetura doméstica, que origina todas as outras, Ruskin defende que é um dever moral e não um “capricho sofisticado” que uma casa seja construída cuidadosamente com vistas a sua durabilidade e perfeição, na qual gerações viverão com reverência àqueles que a construíram. Em edifícios públicos esta intenção histórica deveria ser ainda mais considerada. Para Ruskin: sendo esta sinônimo de destruição pois é uma “falsa descrição da coisa destruída”, uma mentira (RUSKIN, 2008).
“A maior glória de um edifício não está em suas pedras, ou em seu ouro.
Sua glória está em sua Idade, e naquela profunda sensação de ressonância, de vigilância severa, de misteriosa compaixão, até mesmo de aprovação ou condenação, que sentimos em paredes que há tempos são banhadas pelas ondas passageiras da humanidade. Está no seu testemunho duradouro diante dos homens, do seu sereno contraste com o caráter transitório de todas as coisas, na força que – através da passagem das estações e dos tempos, e do declínio e nascimento das dinastias, e da mudança da face da terra, e dos contornos do mar - mantém sua forma esculpida por um tempo insuperável, conecta períodos esquecidos e sucessivos uns aos outros, e constitui em parte a identidade, por concentrar a afinidade das nações” (RUSKIN, 2008, p.68).
Ruskin defende que a preservação dos edifícios deve ser tal que não precise ser feita qualquer restauração,
Do outro lado, Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879) defendia a restauração como um processo de retomada do estilo original da obra. Atualmente, este estilo de restauração proposto e empregado por Violletle-Duc é chamado de restauração estilística, segundo o qual um monumento não deveria ser entendido em sua individualidade, mas como um dos representantes de um estilo arquitetônico ao qual deveria ser adaptado em busca de chegar num estado de pureza de tal estilo (OLIVEIRA, 2009; CUNHA, 2010). Isto é demonstrado pelo postulado de Viollet-le-Duc: “Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado que pode não ter existido nunca em um dado momento”(4).
O método de trabalho de Viollet-le-Duc buscava fazer um extenso e detalhado levantamento da obra a ser restaurada para poder entender o que teria sido feito originalmente com os conhecimentos técnicos e materiais do momento da intervenção. Embora houvesse um trabalho minucioso de inventariado, muitas críticas vão dizer que em diversos momentos Viollet-le-Duc invadiu o “campo da hipótese e imaginação” (OLIVEIRA, 2009) exatamente neste momento de suposição de uma realidade que talvez não existiu e nem mesmo era a intenção do autor da obra original. Por fim, embora os conceitos deste autor não sejam mais adequados em projetos contemporâneos de restauração, existe um ponto do que defendia Viollet-leDuc que se reflete até hoje que é a reutilização dos edifícios para uma função útil à sociedade (OLIVEIRA, 2009).
Ao longo do século XIX, esta última tendência baseada na recomposição estilística foi mais aplicada, porém no fim do mesmo século a outra tendência “conservativa e historicamente fundamentada” passou a ganhar mais notoriedade. Segundo os conceitos aceitos atualmente, esta recuperação que busca recompor um estado de originalidade fere gravemente o aspecto documental de uma obra, seja ela qual for, porque apaga os vestígios que indicam sua existência ao longo de certo tempo (KÜHL, 2018).
Ainda no século XIX, Camillo Boito (1835-1914) gerou uma formulação que ficou chamada de “restauro filológico” que ele desenvolveu a partir da mediação entre as proposições tão contrastantes apresentadas anteriormente por Ruskin e Viollet-le-Duc. Este tipo de restauro “dava ênfase ao valor documental da obra, destacando o papel primordial das edificações enquanto testemunho e documento histórico” (OLIVEIRA, 2009). Os princípios sólidos para a restauração definidos por Boito são apresentados por Kühl (2018):
“Ênfase no valor documental das obras, que deveriam ser preferencialmente consolidadas a reparadas e reparadas a restauradas; evitar acréscimos e renovações, que se necessários, deveriam ter caráter diverso do original, mas de modo a não destoar do conjunto; completamentos de partes deterioradas ou faltantes deveriam, mesmo seguindo a forma primitiva, ser de material diverso ou ter incisa a data de sua restauração [...] obras de consolidação deveriam limitarse ao estritamente necessário, evitandose a perda dos elementos característicos e pitorescos; respeitar as várias fases do monumento, sendo a remoção de elementos admitida apenas se tivessem qualidade artística manifestamente inferior à do edifício; registrar as obras, documentando os trabalhos antes, durante e depois da intervenção; colocar uma lápide com inscrições para apontar a data e as obras de restauro realizadas” (KÜHL, 2018, p.61).
Pode-se observar nestes princípios a moderação de seu pensamento que respeita a degradação pela qual os edifícios passaram, o que vem da conservação romântica de Ruskin, mas se permite intervir no bem, como Viollet-le-Duc faria, seguindo seu senso crítico e conhecimento dos estilos arquitetônicos (OLIVEIRA, 2009). Segundo Andrea Pane, “mínima intervenção” e “distinguibilidade” dos elementos fruto de intervenção são ainda hoje princípios difundidos na disciplina da restauração na Itália.
Através da Carta do Restauro de Atenas de 1931, elaborada pelo Escritório Internacional de Museus da Sociedade das Nações é que o aspecto documental ganhou amplitude internacional, sobrepondo-se à “estilística”; contudo, segundo Kühl, já desde 1883 na Itália é definido que o objetivo do restauro não era alcançar uma retomada de um outro estado da obra antes que ela tivesse sofrido com a passagem do tempo.
Por mais que o “restauro filológico” houvesse estruturado pela primeira vez a questão do caráter documental das obras e, portanto, as tratasse de maneira menos invasiva, há críticas a respeito de que ele não considerava a imagem figurativa que a arquitetura como obra de arte possui. Se por um lado na linha teórica predominava a visão documental em relação aos bens históricos, na prática os trabalhos de restauro ainda se baseavam no empirismo que buscava apagar as marcas da passagem do tempo nos edifícios. A partir de meados do século XX, estas visões passaram a ser substituídas pelo entendimento do restauro como “ato histórico-crítico” que fundamentaria a Carta de Veneza de 1964 (KÜHL,
2018). Um restauro histórico-crítico:
“considera concomitantemente os aspectos materiais, formais e documentais da obra, que deve respeitar as várias fases por que ela passou e que preserva a pátina, ou seja, conserva as marcas de sua própria translação no tempo. Ademais, assume-se que qualquer ação no bem intervém inexoravelmente em sua realidade figurativa (pois mesmo uma limpeza que remova a sujeira, mas preserve a pátina, muda a leitura da obra) e a restauração assume para si a tarefa de prefigurar, controlar e justificar alterações”. (KÜHL, 2018, p. 65).
Dessa forma, este restauro se opôs ao “restauro filológico” ao negar que “os monumentos históricos possam ser enquadrados em categorias previamente determinadas, ou esquemas e regras preconcebidas” (CUNHA, 2012, p. 103). De acordo com esta teoria, cada obra é única e deve ser tratada considerando este aspecto individual para que ações adequadas a cada uma delas possam ser tomadas (CUNHA, 2012; KÜHL, 2018). Renato Bonelli foi um dos escritores em defesa deste restauro, em suas palavras:
“Uma obra arquitetônica não é somente um documento, mas é, sobretudo, um ato que, em sua forma, exprime totalmente um mundo espiritual e que, essencialmente por isso, assume importância e significado. Ela representa para a nossa cultura o grau mais alto, justamente por seu valor artístico e, exatamente desta fundamental consideração, surge o novo princípio informativo da restauração: assegurar ao valor artístico a prevalência absoluta, em relação aos outros aspectos e características da obra, os quais devem ser considerados somente na dependência e em função daquele único valor” (BONELLI, 1983, p. 347 apud CUNHA, 2012, p. 103).
A referida Carta de Veneza de 1964 foi elaborada em maio daquele ano no II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos realizada pelo Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS). A função desta Carta é definir princípios internacionais a respeito da conservação e restauração de monumentos que carregam as marcas da humanidade admitindo que cada contexto pode alterar a aplicabilidade dos mesmos (CARTA DE VENEZA, 1964). Suas definições se mantém atuais, e representa certo consenso internacional das discussões e estudos das últimas décadas que a precederam (KÜHL, 2018).
No conteúdo da Carta tem-se que “a conservação e a restauração dos monumentos visam a salvaguardar tanto a obra de arte quanto o testemunho histórico” (CARTA DE VENEZA, 1964, ARTIGO 3º). O ato de conservar requere manutenção constante e é “favorecida por sua destinação a uma função útil à sociedade” (CARTA DE VENEZA, 1964, ARTIGO 5º). Como a ação de restaurar traz consigo alguma intervenção, deve ser excepcional, visando a conservação e ênfase no caráter histórico do monumento e seus valores estéticos. Para tal, todas as intervenções devem ser claramente identificáveis como ações contemporâneas.
Quanto aos termos destinados à descrição dos processos de intervenção, a Carta de Veneza define conservação como um processo de “manutenção permanente” (art. 4º); sendo que manutenção são “ações cotidianas e periódicas que visam a sanar e reparar problemas que aparecem na edificação assim que surgem”. Já a restauração é tratada com tom de excepcionalidade considerando que envolve intervenções maiores. Kuhl (2018) aponta que mesmo os processos de restauração envolvem simultaneamente manutenção e conservação e tem princípios fundamentais que devem ser concomitantes:
• Distinguibilidade: pois a restauração (que é vinculada às ciências históricas) não propõe o tempo como reversível e não pode introduzir o observador ao engano de confundir a intervenção ou eventuais acréscimos com o que existia anteriormente, além de dever documentar a si própria.
• Reversibilidade, que mais recentemente tem sido enunciada, de modo mais preciso, como “re-trabalhabilidade”: pois a restauração não deve impedir, tem, antes, de facilitar qualquer intervenção futura; portanto, não pode alterar a obra em sua substância, devendo-se inserir com propriedade e de modo respeitoso em relação ao preexistente e de forma a não impedir ou inviabilizar intervenções futuras que se façam necessárias.
• Mínima intervenção: pois a restauração não pode desnaturar o documento histórico nem a obra como imagem figurada, devendo respeitar suas várias estratificações.
• Compatibilidade de técnicas e materiais: deve-se levar em conta a consistência física do objeto, com a aplicação, para seu tratamento, de técnicas compatíveis que não sejam nocivas ao bem e cuja eficácia seja comprovada através de muitos anos de experimentação.
Cesare Brandi foi um dos redatores mais importantes da Carta de Veneza, é o principal expoente do chamado “restauro crítico” e se dedicou a consolidar o restauro como um “campo disciplinar”, com olhar científico em contraponto ao empirismo que prevaleceu nos séculos passados (KÜHL, 2018). Segundo Cunha (2012), o “restauro crítico” considera que “cada obra é única em sua conformação e devir no tempo e exige, por isso, soluções únicas. Tais soluções devem advir de uma atenta análise do monumento, uma indagação baseada na crítica e na história, com vistas a determinar sua qualidade estética” (CUNHA, 2012, p.103).
As proposições de Brandi seguem sendo referência no estudo sobre o patrimônio. De acordo com seu livro Teoria da Restauração, de 1963, a definição geral de restauração (que é sinônimo de restauro) surge de forma intrínseca ao próprio significado da palavra e é: “qualquer intervenção voltada a dar novamente eficiência a um produto da atividade humana”. (BRANDI, 2008, p.25). Isto ainda é um “esquema preconceitual”, não o conceito, para o qual é necessário entender os tipos de produtos da ação humana: “manufatos industriais” e “obra de arte” (BRANDI, 2008).
No restauro do primeiro, busca-se estabelecer o estado de funcionalidade existente anteriormente. Quanto às obras de arte, que além das belas artes também contemplam as artes aplicadas que possuem caráter funcional, como é o caso da arquitetura, o caráter funcional ocupa um segundo plano no ato do restauro, que deve se ocupar com o estabelecimento da obra de arte como tal (BRANDI, 2008).
O que é uma obra de arte? Um objeto, independentemente de sua materialidade ou conceituação filosófica, que é reconhecido como tal por um indivíduo através de uma experiência estética. Enquanto não há esse reconhecimento, diz-se que a obra de arte existe potencialmente (BRANDI, 2008).
“Uma obra de arte, não importa quão antiga e clássica, é realmente, e não apenas de modo potencial, uma obra de arte quando vive em experiências individualizadas. Como um pedaço de pergaminho, de mármore, de tela, ela permanece (sujeita, porém, às devastações do tempo) idêntica a si mesmo através dos anos. Mas como obra de arte, é recriada todas as vezes que é experimentada esteticamente” (DEWEY, 1934, p.130 apud BRANDI, 2008, p.28).
A partir do entendimento da noção de obra de arte, Brandi conclui que “qualquer comportamento em relação a obra de arte, nisso compreendendo a intervenção de restauro, depende de que ocorra o reconhecimento ou não da obra de arte como obra de arte” (BRANDI, 2008, p.28). A obra de arte condiciona a restauração. Além deste aspecto referente ao que Brandi chamou “artisticidade”, a obra de arte também é um produto histórico situado no tempo e no espaço. No caso de uma arte aplicada, ainda se soma o aspecto funcional, porém este não é fundamental, como os anteriores são (BRANDI, 2008).
O restauro crítico, além de um processo crítico é também um processo criativo que possibilita a composição da unidade figurativa da obra, a recomposição das partes faltantes, naturalmente sem total liberdade por parte do restaurador, que deve ter respeito absoluto pelo monumento. “A extensão dos danos sofrida pela obra arquitetônica deve dar a justa medida ao restaurador, o qual avaliará a possibilidade e a pertinência da empreitada” (CUNHA, 2012, p. 104).
Tendo feito o desenvolvimento da definição de restauro atrelado ao conceito de obra de arte, Brandi propõe que: “a restauração constitui o momento metodológico de reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dupla polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro” através de um material que lhe serve de suporte, portanto é necessário que se preserve ou restaure estas matérias que constituem a obra com vistas a perpetuação da imagem como demonstra o primeiro princípio formulado por Brandi: “Restaura-se somente a matéria da obra de arte” (BRANDI, 2008, p.31). Em qualquer intervenção, a instância estética deve ser tomada de forma prioritária porque é exatamente e apenas ela que diferencia a obra de arte dos demais produtos humanos. Se a artisticidade de uma obra for perdida, a instância histórica ou a funcional não serão capazes de sustentar a percepção de determinado objeto como obra de arte. Portanto, se for necessária alguma intervenção no material de uma obra, dependendo do seu estado de conservação, esta deve ser feita seguindo os critérios estéticos (BRANDI, 2008; KÜHL, 2018). Ainda sobre a instância histórica, existe uma “dúplice historicidade”; uma diz respeito ao momento em que a obra é produzida e a outra sobre o momento presente em que ela está. A obra pode carregar em si as marcas ganhas no intervalo entre estes dois momentos. (BRANDI, 2008) este “restabelecimento”, pode ser necessário “remoção de adições e reintegração de lacunas”, mas nada pode ser aleatório ou funcionar como recomposições idênticas às originais ou busca por unidade de estilo pensada por Viollet-le-Duc no século XIX, que é algo teoricamente já superado no campo da restauração. Segundo a Carta de Veneza, “a unidade de estilo não é a finalidade” (CARTA DE VENEZA, 1964, ARTIGO 11º).
(BRANDI, 2008, p.30). Kühl (2018) ressalta que se trata de uma ação “eminentemente cultural” baseada na dialética entre a estética e a história de uma obra, compondo um campo de trabalho multidisciplinar. Segundo a autora, o reconhecimento da obra de arte é o “ponto basilar” da teoria de Brandi.
A imagem é transmitida e formulada por um indivíduo
O segundo princípio de restauro formulado por Brandi é: “A restauração deve visar o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte pelo tempo” (BRANDI, 2008, p.33). Para alcançar
Atualmente, de acordo com Kühl (2018), o restauro não é destinado apenas às obras de arte como foi apresentado através do percurso conceitual de Brandi; mas também ao que ela chamou de “obras modestas que como tempo assumiram conotação cultural”. O fato de existirem no tempo traz a dimensão histórica e esta deve ser acompanhada da estética; portanto o método é o mesmo do apresentado para as obras de arte não havendo mais a já mencionada distinção entre belas artes e artes aplicadas; ambas são bens culturais. “Assim, lançam-se luzes sobre vários aspectos dos bens culturais, com a consciência de que todas as coisas que se referem ao homem e à sua história podem ser consideradas objetos de análise científica e dignos de criteriosa preservação” (KÜHL, 2018, p.80).
François Choay mostrou que existem ameaças à preservação do patrimônio, que podem ser derivadas da dificuldade de manutenção, da adaptabilidade destes edifícios às necessidades contemporâneas e dependendo de sua localização na cidade podem impedir possíveis obras de ordenamento territorial. Como exemplo, quando em nome da renovação estética o arquiteto de Luís XV, Pierre Patte, previu a demolição de edifícios góticos. Mesmo com certas oposições, o consenso quanto à conservação e preservação é muito maior com bases oficiais em “valores científicos, estéticos, memoriais, sociais e urbanos. ” (CHOAY, 1999, p.16).
É neste sentido que os monumentos assumem importância como elementos na paisagem carregados de história, simbolismo e até mesmo com um sentido estruturante. Choay (1999) lança a pergunta: O que é monumento? O próprio autor responde que a palavra vem do latim monumentum e esta deriva de monere que significa advertir, recordar. Dessa forma, Choay diz que o termo “interpela a memória” (CHOAY, p.17) e a princípio seria qualquer construção dedicada a marcar um tempo, para fazer com que no futuro se recorde daquela sociedade que construiu tal monumento. “A especificidade do monumento prende-se então, precisamente com seu modo de ação sobre a memória” (CHOAY, p.17).
Segundo Choay, o monumento seria um “dispositivo de segurança” ao indivíduo, tanto o localizando em relação às suas origens quanto procurando “apaziguar a angústia da morte e da aniquilação” (CHOAY, p.18).
Esta interpretação da ideia de “monumento” perdeu sua importância nas sociedades ocidentais com o passar do tempo. Novamente num exemplo francês: em vias de marcar uma nova identidade à França após a Revolução Francesa, os revolucionários projetaram muitos monumentos cujo intuito a partir de então passou a ser a representação da grandeza de algo, do poder, da prevalência de estilos.
3.1 ASPECTOS LEGAIS DO PATRIMÔNIO
A preservação do patrimônio cultural é feita por alguns órgãos que atuam em diferentes esferas do poder. A nível nacional, o Brasil tem o IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - que é uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Turismo; cabe a ele “proteger e promover os bens culturais do país, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e futuras”(5).
Na esfera estadual, o estado de São Paulo tem o CONDEPHAAT - Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo - cuja função é “proteger, valorizar e divulgar o patrimônio cultural no Estado de São Paulo. Nessa categoria se encaixam bens móveis, imóveis, edificações, monumentos, bairros, núcleos históricos, áreas naturais, bens imateriais, dentre outros”(6). Nota-se bastante consonância entre as definições das funções desses órgãos.
Retirado do site do IPHAN. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/872>. Acessado em: 09/08/2020.
Por fim, na esfera municipal, a cidade de Santa Bárbara d’Oeste possui seu conselho responsável pelo patrimônio, o CODEPASBO – Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santa Bárbara d’Oeste – que foi criado em 1998 pela lei municipal 2397 e reestruturado em 2019 pela lei 4080. Segundo esta última, os objetivos do CODEPASBO são “definir a política municipal de defesa do patrimônio cultural e proceder estudos para a elaboração e o aperfeiçoamento de recursos institucionais e legais, genéricos ou específicos, para a defesa do patrimônio cultural, histórico, folclórico, artístico, turístico, ambiental, ecológico, arqueológico, arquitetônico e imaterial do Município” (Lei 4080 de 18 de março de 2019).
O principal mecanismo legal que visa o reconhecimento e a proteção do patrimônio é o tombamento (7). Os órgãos apresentados acima são responsáveis pelo tombamento dos bens que forem considerados patrimônio, cada um em sua instância, e cada município e estado com sua instituição correspondente. Segundo o CONDEPHAAT, tombamento é “um ato administrativo realizado pelo poder público, com o objetivo de preservar para a população bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e até afetivo. A intenção é impedir que esses bens venham a ser destruídos ou descaracterizados” (8).
O tombamento pode ser requerido por qualquer cidadão, organização civil, pública ou privada e após o requerimento, inicia-se um processo de avaliação da importância do bem candidatado. Um bem pode ser tombado por apenas uma ou até pelas três esferas do poder, de acordo para qual delas foi feito o requerimento e se o bem apresentará grau de relevância para tal instância; por exemplo, para que haja um tombamento pelo IPHAN, que está no nível federal, o bem precisa ser relevante em âmbito nacional e então ele é inscrito em um dos quatro Livros do Tombo que são: Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo Histórico; Livro do Tombo das Belas Artes e Livro do Tombo das Artes Aplicadas.
Após essa inscrição, os bens ficam sob tutela do órgão responsável que tem responsabilidade de fiscalizá-los a fim de “impedir sua destruição ou mutilação, mantendo-o preservado para as gerações futuras”(9). Qualquer modificação pelas quais eles possam passar devem ser aprovadas pelos conselhos (IPHAN, CONDEPHAAT).
(6). Retirado do site do CONDEPHAAT. Disponível em: <condephaat.sp.gov.br/o-condephaat-e-a-upph/>. Acessado em: 10/08/2020.
(7). Os outros mecanismos de proteção do patrimônio são: Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC). (Site do IPHAN, disponível em <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/872>. Acessado em: 14/09/2020).
(8). Retirado do site do CONDEPHAAT. Disponível em: <condephaat.sp.gov.br/o-condephaat-e-a-upph/>. Acessado em: 10/08/2020.
(9). Site do IPHAN. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/126/> . Acessado em: 11/08/2020.
3.2 PATRIMÔNIO INDUSTRIAL
No século XIX aconteceram as primeiras preocupações a respeito do patrimônio industrial, mas foi apenas no meio do século XX que elas se tornaram mais “sistêmicas”, sobretudo depois da destruição de edifícios importantes em Londres (Bolsa de Carvão e a Estação Euston, nos anos 1960) e Paris (Mercado Central de Paris, nos anos 1970). As considerações sobre a necessidade de preservar estes edifícios levam ao termo “arqueologia industrial” cuja definição foi evoluindo no decorrer do tempo (KUHL, 2010).
Kuhl (2010) apresenta as primeiras definições que surgiram sobre este tema. A primeira delas ocorreu na Grã-Bretanha em 1962 e foi feita “por um membro da Inspetoria de Monumentos Antigos, que caracterizou como monumentos industriais as estruturas, em especial do período da Revolução Industrial, que ilustram processos industriais, incluindo os meios de comunicação” (KUHL, 2010, p.25). A segunda definição apresentada pela autora é a de Kenneth Hudson, feita em 1963, a qual diz que a “arqueologia industrial é a descoberta, registro e estudo dos resíduos físicos de indústrias e meios de comunicação do passado” (HUDSON, 1976: 21 apud KUHL, 2010, p.25). Por fim, a definição de Angus Buchanan, que mantém aspectos atuais é:
“[...] arqueologia industrial é um campo de estudo relacionado com a pesquisa, levantamento, registro e, em alguns casos, com a preservação de monumentos industriais. Almeja, além do mais, alcançar a significância desses monumentos no contexto da história social e da técnica. Para os fins dessa definição, um ‘monumento industrial’ é qualquer relíquia de uma fase obsoleta de uma indústria ou sistema de transporte, abarcando desde uma pedreira de sílex neolítica até uma aeronave ou computador que se tornaram obsoletos há pouco. Na prática, porém, é útil restringir a atenção a monumentos dos últimos duzentos anos, aproximadamente [...]” (BUCHANAN, 1972: 20-1 apud KUHL, 2010, p.25).
A Carta de Nizhny Tagil (10), elaborada em 2003 pelo TICCIH, sigla em inglês para Comitê Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial (original: The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage) traz definições “amadurecidas” sobre os termos relacionados ao assunto. Segundo este documento:
“O património industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infraestruturas, assim como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação” (Carta de Nizhny Tagil, 2003).
Outra definição trazida por esta Carta é sobre a arqueologia industrial, a qual:
“[..] é um método interdisciplinar que estuda todos os vestígios, materiais e imateriais, os documentos, os artefatos, a estratigrafia e as estruturas, as implantações humanas e as paisagens naturais e urbanas, criadas para ou por processos industriais.
A arqueologia industrial utiliza os métodos de investigação mais adequados para aumentar a compreensão do passado e do presente industrial” (Carta de Nizhny Tagil, 2003).
A Carta de Nizhny Tagil também aponta que:
“O período histórico de maior relevo para este estudo estende-se desde os inícios da Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, até aos nossos dias, sem negligenciar as suas raízes pré e proto-industriais. Para além disso, apoia-se no estudo das técnicas de produção, englobadas pela história da tecnologia” (Carta de Nizhny Tagil, 2003).
Ao analisar essas definições, Kühl (2010) aponta uma constante importante nelas: a de que o objeto de estudos no campo do patrimônio industrial também inclui todo o sistema no qual esta indústria está inserida, a saber, sistema de transporte, de distribuição de energia e demais aspectos específicos de cada contexto que possam existir no entorno do processo de produção por considerar que o processo de industrialização do qual o bem estudado faz parte não pode ser compreendido de maneira isolada. Seguindo, um edifício construído de maneira pré-fabricada, portanto produto da indústria, também pode ser considerado patrimônio industrial (KUHL, 2010).
(10). Disponível em <https://ticcihbrasil.com.br/cartas/carta-de-nizhny-tagil-sobre-o-patrimonio-industrial/>; acesso em 02/08/2020).
Há pouco debate sobre as formas de intervir nos bens materiais de maneira que isso seja um ato de cultura através de processos de manutenção, conservação e restauração independentes de interesses imediatistas. Os preceitos teóricos para isso estão relacionados com o que motiva a preservação: razões de cunho cultural (estética, história, memória e símbolos dos bens), cunho científico (conhecimentos humanos e naturais transmitidos pelo bem) e de cunho ético (não é um direito apagar testemunhos importantes de gerações passadas e seus conhecimentos adjacentes).
Na presença dessas razões, as questões de ordem prática deixam de ser as únicas a serem consideradas e passam a ser complementares às razões de preservação oriundas dos preceitos teóricos. Külh aponta, no caso da preservação arquitetônica, para a qual a questão prática “uso” é bastante determinante que os resultados projetuais podem ser muito diferentes se esta questão - o uso - for entendido como meio ou como fim do processo de preservação. (KUHL, 2010)
Portanto “qualquer intervenção deve ser justificada do ponto de vista das razões por que se preserva” (KUHL, 2010, p.30) para que os bens não sejam descaracterizados ou simbolicamente destruídos e possam “de fato, continuar a exercer seu papel primordial: ser documentos fidedignos e, como tal, servir como efetivos suportes do conhecimento e da memória coletiva” (KUHL, 2010, p.30).
O projeto proposto neste Trabalho Final de Graduação busca propor novos usos para os galpões industriais que compõem o conjunto tombado da Antiga Usina Santa Bárbara e, assim, preservar o bem material, a história e a memória afetiva do lugar. O próximo capítulo apresenta a história de formação da Usina, seu papel econômico e características arquitetônicas. Desse modo, é possível compreender a importância da Usina para os habitantes da cidade de Santa Bárbara d’Oeste.
USINA SANTA BÁRBARA: HISTÓRIA, CONTEXTO
USINA SANTA BÁRBARA: HISTÓRIA, CONTEXTO ECONÔMICO, CONDIÇÕES ATUAIS
A cana de açúcar foi introduzida nas terras brasileiras ainda no período da colonização portuguesa. As condições climáticas e de solo eram tão favoráveis a esta cultura que ela rapidamente tornou-se a principal frente de exploração da mais nova colônia de Portugal. O açúcar era um produto muito valorizado na Europa e passou a dar renome ao Brasil, mais do que a madeira do pau-brasil havia dado (QUECINI, 1999).
As plantações nas terras paulistas se estabeleceram em três áreas principais, sendo uma delas o chamado “quadrilátero do açúcar” conformado pelas cidades de Jundiaí, Mogi-Guaçu, Sorocaba e Piracicaba; território onde está inserida a cidade de Santa Bárbara d’Oeste. Este quadrilátero tem suas terras ocupadas pela cana de açúcar desde o século XVIII e nem mesmo o importante ciclo do café foi capaz de afastar a produção de açúcar desta região; “assim Santa Bárbara d´Oeste [...] possuía em 1890, 33 engenhos em plena atividade. Estes engenhos eram responsáveis por uma produção anual de 1.200.000 litros de aguardente, toda ela exportada” (QUECINI, 1999, p.11).
Com a finalidade de diminuir os custos de produção devido à instabilidade do mercado externo, os produtores buscaram o estabelecimento da unidade industrial e o aumento da produção nas plantações. Segundo Santos “O surgimento das usinas já é a busca de grande produtividade e maiores lucros” (apud QUECINI, 1999, p.12). A primeira usina açucareira instalada na cidade de Santa Bárbara d’Oeste foi inaugurada em 1914 e se chama Usina Santa Bárbara. No ano de 1932 ela foi a segunda maior produtora do estado de São Paulo. A partir de 1928 surgiram outras 5 usinas nesta cidade: Furlan, de Cillo, São Luis, Azanha e Rochele (QUECINI, 1999).
A Usina Santa Bárbara foi implantada na Fazenda São Pedro, uma extensa propriedade que ficava a 2,5 Km da Villa Santa Bárbara, onde em 1812 já se registrava a presença de um rústico moedor de cana. Em 1877 foi feito o primeiro plantio de cana de açúcar nesta fazenda, que neste mesmo ano foi adquirida por João Frederico Rehder, (que morava na Alemanha) do antigo dono, Prudente de Moraes. Em 1883, Rehder instalou o primeiro engenho a funcionar na fazenda que ainda era simples. Em 1899, depois do desenvolvimento das plantações, novos mecanismos foram instalados, incluindo uma grande destilaria, como mostra a Figura 01. Em 1902, a fazenda foi escolhida para receber as instalações da grande usina que seria a Usina Santa Bárbara (QUECINI, 1999). produção desta região que ia até Campinas. Essa linha férrea cortava as terras da Fazenda São Pedro e passava por dentro da área ocupada pela usina. asp?sRegGeralId=53240&sTipoItem=FT&sNomeImagem=Rg53240. jpg>. Acesso em: 20/10/2020.
O maquinário da nova usina foi trazido da França por navio, de onde também vinham os engenheiros e o grupo de investidores envolvidos com a fundação da usina. A estrutura de um dos galpões, que neste trabalho será denominado como “Barracão 3 – Galpão Francês”, também foi trazida da França. Provavelmente estas estruturas foram desembarcadas no porto de Santos, trazidas de trem até a Estação Villa Americana e levadas por carro de boi até a área da usina conforme mostra a Figura 02 (QUECINI, 1999). As Figuras 03 e 04 mostram a construção do Galpão Francês e a Figura 05 a chaminé. Por fim, pode-se observar na Figura 06 o surgimento deste conjunto industrial na paisagem.
No contexto da expansão ferroviária que ocorreu entre os séculos XIX e XX foi criada a Companhia de Estrada de Ferro e Agrícola Santa Bárbara, que estava atrelada à Companhia Paulista para favorecer o escoamento de asp?sRegGeralId=47716&sTipoItem=FT&sNomeImagem=Rg47716. asp?sRegGeralId=54875&sTipoItem=FT&sNomeImagem=Rg54875. jpg>. Acesso em: 20/10/2020. asp?sRegGeralId=54903&sTipoItem=FT&sNomeImagem=Rg54903. jpg>. Acesso em: 20/10/2020.
Fonte: Acervo do Centro de Documentação da Fundação Romi. Disponível em: <http://cdoc.fundacaoromi.org.br/exibe_imagem_inteira.
Fonte: Acervo do Centro de Documentação da Fundação Romi. Disponível em: <http://cdoc.fundacaoromi.org.br/exibe_imagem_inteira.
Em 1922, a Usina foi comprada por Luiz Alves de Almeida que ficou conhecido por Coronel Luiz Alves, sua importância no comando da Usina é relatada por Quecini (1999): cidadela ao seu redor, representados pela presença da igreja e de uma escola, o Grupo Escolar Cel. Luiz Alves. O saudosismo dos tempos passados e da memória do lugar estão no texto de Quecini (1999): asp?sRegGeralId=56787&sTipoItem=FT&sNomeImagem=Rg56787. jpg>. Acesso em: 20/10/2020. asp?sRegGeralId=54951&sTipoItem=FT&sNomeImagem=Rg54951. jpg>. Acesso em: 20/10/2020.
“este personagem, descrito como: um dos maiores amigos e benfeitores da cidade de Santa Bárbara d'Oeste, homem caridoso e empresário hábil, mesmo tendo permanecido somente 14 anos na direção da Usina Santa Bárbara, teve uma presença marcante. Seja por sua habilidade de grande empreendedor ou por suas valorosas contribuições beneficentes [...], fosse na usina ou na cidade sua presença ainda é sentida até os dias de hoje; são praças, ruas e escolas que o homenageiam e a sua família” (QUECINI, 1999, p. 35).
Fonte: Acervo do Centro de Documentação da Fundação Romi. Disponível em: <http://cdoc.fundacaoromi.org.br/exibe_imagem_inteira.
Fonte: Acervo do Centro de Documentação da Fundação Romi. Disponível em: <http://cdoc.fundacaoromi.org.br/exibe_imagem_inteira.
Durante a administração da família Alves foi construída a área da sede da usina, com o casarão e o sobrado. Também compunham essa parte civil um armazém, cinema, mercearia e açougue. Além da produção de açúcar o local abrigava a casa de campo da família de Roberto Alves, filho do Coronel Luiz Alves que assumiu a direção da usina depois da morte do pai em 1936. Foi neste período que os relatos de memórias mais sensíveis foram registrados: para além de um local de trabalho, a usina era um equipamento que catalisava uma vila ou
“Era este o tempo das festas juninas, com quadrilhas e fogueira, com quermesse e a tradição da fixação do mastro de São Pedro. Era o tempo das missas na capelinha, a Capela de São Luiz. Era o tempo das festas no galpão de açúcar e no clube, animadas por artistas famosos e até com eleição de rainha. Era o tempo dos desfiles de carnaval e das procissões, que partiam da usina até a cidade, com carroções todos enfeitados. Era o tempo do teatro e da bandinha da usina. Era o tempo do “Poeirinha”, o cinema que não deixava assentar a poeira dos “bang-bangs”. Era o tempo de tomar garapa na boca da moenda. Era o tempo dos campeonatos de futebol, com a arquibancada lotada enquanto o CAUSB, enfrentava times como Corinthias e São Paulo. Era o tempo da “maquininha” acordar todo mundo as 5 da manhã. Era o tempo de ir de jardineira para a cidade, e conversar com os “gabrié”, na frente da pensão. Era o tempo da Usina aquele paternalismo do período Alves foi substituído pelo capitalismo (QUECINI, 1999) e os antigos locais de convivência e lazer foram sendo substituídos por espaços de trabalho ou sendo demolidos, como foi o caso das dezenas de colônias de moradores, das quais atualmente restaram apenas 7 casas que ficam bem em frente ao conjunto industrial. maquinário (QUECINI, 1999).
Santa Bárbara como uma grande família. Era um tempo que as pessoas não querem esquecer” (QUECINI, 1999, p. 36).
A Figura 07 mostra um destes eventos sociais: a coroação da rainha do clube de futebol da usina, o Clube Atlético Usina Santa Bárbara (CAUSB).
Além do açúcar, a usina produzia álcool. Até meados do século XIX, as destilarias eram tratadas de maneira secundária, trabalhando apenas com o que o processo de produção do açúcar não dava conta de processar, mas com o aumento no número de usinas nas décadas de 1930 e 1940 e o consequente aumento de oferta de açúcar que desvalorizava o produto, iniciou-se o processo de promoção do álcool como combustível. 35 anos depois surgiu o Próalcool (Programa Brasileiro de Álcool Combustível) em decorrência da Crise Internacional do Petróleo. Após o período deste programa, a Usina Santa Bárbara voltou a investir mais na produção do açúcar (QUECINI, 1999).
Mesmo nesse cenário economicamente favorável, a Usina Santa Bárbara fechou em 1995. Isso ocorreu por dois motivos: ambiental - em decorrência da fuligem, chamada de “carvãozinho”, que saía pelas chaminés e os filtros não conseguiam reter gerando diversas multas aplicadas pela CETESB (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) e fundiários – relacionados à valorização de suas terras que estão muito próximas ao tecido urbano consolidado da cidade e pela construção da Rodovia dos Bandeirantes adjacente à área (QUECINI, 1999).
Fonte: Acervo do Centro de Documentação da Fundação Romi. Disponível em: <http://cdoc.fundacaoromi.org.br/exibe_imagem_inteira. asp?sRegGeralId=54875&sTipoItem=FT&sNomeImagem=Rg54875. jpg>. Acesso em: 20/10/2020.
Por volta dos anos 1940 e 1950 a usina passou por uma crise financeira que terminou com a venda dela para o Grupo Ometto, em 1968. Neste novo momento
Na década de 90, o estado de São Paulo era campeão mundial de produtividade sendo a região de Piracicaba e a de Ribeirão Preto as grandes protagonistas cada uma com suas vantagens, a primeira pela proximidade com os principais meios de escoamento da produção e a segunda por ter uma topografia mais plana permitindo maior uso de
A CIDADE DE SANTA BÁRBARA D’OESTE/SP 4.1
Santa Bárbara d’Oeste foi fundada por Margarida da Graça Martins que, com a morte do marido, com quem morava em Santos, se mudou em 1818 para a sesmaria adquirida entre Piracicaba e Campinas. Ao se estabelecer, criou um pequeno engenho de açúcar e doou terras para a Cúria Paulistana com o objetivo de construir uma capela em homenagem a Santa Bárbara, que foi determinada pela própria fundadora como padroeira da povoação que originalmente foi chamada de Santa Bárbara dos Toledos. Este povoado se formou com a chegada de outras famílias à região próxima ao Ribeirão dos Toledos e Ribeirão Quilombo, tendo a capela como referência.
O desenvolvimento econômico da cidade se deu pelo cultivo da cana de açúcar iniciado por Margarida que já tinha experiência nesse negócio. Esta foi a principal fonte de renda da cidade por muito tempo e com a chegada de imigrantes, tanto norte-americanos quanto europeus, novas técnicas agrícolas foram desenvolvidas e a cidade passou a crescer em habitantes, o que deu oportunidade de crescimento de outros setores econômicos com a abertura de oficinas, fabricação de implementos agrícolas e desenvolvimento de outras atividades artesanais.
Atualmente a cidade integra a Região Metropolitana de Campinas (RMC), instituída pela Lei Complementar Estadual nº 870, de 19 de junho de 2000. É caracterizada por Rolnik et al (2015) como de urbanização dispersa e que tem as rodovias como principais eixos de desenvolvimento de novos assentamentos e da própria produção da cidade. Sua população estimada pelo IBGE em 2018 foi de 192.536 pessoas. A Figura 08 mostra o perímetro que delimita a cidade, as rodovias de acesso a ela e a localização da área da Antiga Usina Santa Bárbara.
A Antiga Usina Santa Bárbara está localizada na porção oeste da cidade. De acordo com o Plano Diretor de Desenvolvimento do Município de Santa Bárbara d’Oeste (Lei Complementar nº265 de 14 de dezembro de 2017), esta gleba é considerada como Macrozona de Expansão Urbana 2 (MEU-2) que “compreende as áreas de expansão da malha urbana consolidada” (art.60°), pois tem pelo menos 40% de confronto com esta malha.
São “internas ao perímetro urbano, sendo destinada ao parcelamento do solo e urbanização de glebas para fins residencial, comercial, de serviços e industrial” (art.60°).
Parte dela é uma Área de Interesse Ambiental (AIA) na qual existem restrições quanto a taxa de permeabilidade do solo, que deve ser de pelo menos 30%, e obrigação quanto à manutenção e enriquecimento da vegetação existente. A Figura 09 mostra a localização do perímetro da área tombada da Antiga Usina Santa Bárbara em relação à malha urbana da cidade, bem como os principais equipamentos de serviços urbanos, culturais e de lazer.
Analisando a implantação do conjunto na escala da cidade, a área fica a 2,5Km lineares do centro e é separada da maior parte da malha urbana por duas rodovias. Ela faz fronteira ao leste com um bairro residencial, ao sul com um condomínio fechado, ao norte e oeste com uma MEU-2 - área que atualmente não está efetivamente inserida na malha urbana da cidade. A Figura 10 mostra a localização da área da usina em relação à malha urbana mais próxima, destacando a presença dos equipamentos de lazer e cultura presentes nesta região e a proximidade das rodovias: Bandeirantes e SP-135. A partir da análise em escala territorial, nota-se que a localização da usina é estratégica, isto é, de fácil acesso para as pessoas que vêm de cidades vizinhas através das rodovias mencionadas.
Quanto ao transporte público, apenas uma linha de ônibus passa pela região: a linha 102-103, que faz o trajeto entre o terminal do centro e os bairros rurais ao oeste. Ela percorre a Rodovia SP-135, adjacente à área tombada, tendo neste trecho um único ponto de parada em frente à Câmara Municipal. Assim, pode-se concluir que a usina não é atendida pelo transporte público, o que se justifica pela ausência de atividades cotidianas realizadas nela. Nas ocasiões de realização de eventos no seu pátio, algumas linhas de ônibus especiais que vão até a entrada do conjunto da Antiga Usina são oferecidas para facilitar o acesso de todos os cidadãos.
A extensão da área tombada é de 218.960,75 m². Em volta dela há uma área de proteção ambiental que ocupa uma faixa de 25m de largura em torno de todo o seu perímetro. A área de preservação possui 59.607,84 m². O tombamento foi feito pelo decreto N°3828 de 11 de abril de 2008 a partir de requerimento protocolado pelo Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Cultural de Santa Bárbara d’Oeste (CODEPASBO). O tombamento contempla a extensão de terra descrita no decreto referentes às matrículas nº5.134, nº52.182, nº53.278 e nº 58.066 e todas as construções que estão dentro do limite dessa terra, por se tratarem de bens de “interesse cultural, histórico, arquitetônico, ambiental e afetivo deste Município” (art. 1°). Essa extensão de terra contendo as edificações tombadas podem ser visualizadas na Figura 11.
Mas, antes de apresentar a referida figura é importante salientar que o agrupamento chamado de “Conjunto Industrial” é o recorte estabelecido pelo autor do TFG para elaborar a proposta projetual, pois dentre toda a gleba tombada, é a área de posse do poder público municipal, sendo o restante de posse particular. De um modo geral, o “Conjunto Industrial”abriga os edifícios mais degradados, cuja intervenção está diretamente relacionada com a continuidade de sua existência. Ademais, o interesse de estudo deste trabalho é a “paisagem pós industrial” que segundo Morinaga (2013) é caracterizada por edifícios de caráter industrial que passaram a conformar vazios na cidade após terem sido abandonados pela indústria.
Destaca-se ainda que na Figura 11, a gleba de terra e as edificações dentro do limite destacado em amarelo pertencem ao agente privado. O restante da gleba tombada, portanto, pertence a Prefeitura do Município. Algumas vistas das edificações compõem essa figura para facilitar o entendimento das características de cada uma e de sua condição atual.
Na sequência, a Figura 12 mostra a entrada do conjunto pela Rodovia SP-135 e a Figura 13 mostra a entrada pelo bairro Residencial Dona Margarida.
Atualmente, o conjunto industrial é composto por 12 barracões com estruturas independentes, alguns estão localizados de forma dispersa pelo terreno e outros acoplados uns aos outros formando um único bloco com conexões internas. O estado de conservação deles varia, ocorrendo casos de ruína parcial.
Durante visita ao local, pôde-se constatar que os barracões 1, 2 e 9 são usados pela prefeitura como almoxarifado, permanecendo os demais em estado de abandono. As imagens dos edifícios que compõem o Conjunto Industrial - registros feitos pelo autor em 14 de novembro de 2020 -, mostram as características e condições atuais de cada edificação (Figura 14).
A pesquisa e levantamento realizado por Menillo (2010) apresenta as funções de cada barracão no período de funcionamento da usina com base no depoimento de Antônio Carlos Ignácio Rodrigues, que nasceu em uma das colônias de trabalhadores, a Colônia da Cachoeira, e trabalhou na usina de 1972 a 1979. Segundo esse depoimento, o barracão 1 (Figura 15) servia como depósito de açúcar. Este barracão encontra-se em bom estado de conservação e é o primeiro edifício a partir da entrada principal do conjunto.
O barracão 2 (Figura 16) também foi depósito de açúcar e local para peneiramento da mesma e ensacamento em pacotes de 5Kg (MENILLO, 2010). Encontra-se em bom estado de conservação.
O barracão 3 (Figura 17) é chamado de Galpão Francês pois sua estrutura metálica foi trazida da França. É o edifício com maior valor arquitetônico e estético e compõe a elevação principal do conjunto que fica em frente a via de acesso. Era dividido em 3 níveis, onde o açúcar era fabricado e secado (MENILLO, 2010). Suas fachadas encontram-se bastante degradadas, com esquadrias faltando, buracos no fechamento de alvenaria que foram feitos na retirada dos equipamentos e muitos vazios no telhado e fachadas revestidas por telhas metálicas, que estão soltas.
O barracão 4 (Figura 18), assim como o 2, era onde ocorria o peneiramento do açúcar e ensacamento em pacotes de 5Kg.
O barracão 5 (Figura 19) foi usado como central elétrica por um tempo (MENILLO, 2010). Ambos estão em bom estado de conservação.
O barracão 6 (Figura 20) foi usado como tanque de decantação. Está interligado com o barracão 3 – galpão francês e apresenta o mesmo estado de degradação.
O barracão 7 (Figura 21) funcionou como laboratório, central de geradores de energia e escritórios. Sua estrutura externa demonstra estar em bom estado, mas não foi possível ver o seu espaço interior. Sua fachada ao sul é paralela às fachadas dos barracões 2, 4 e 5. Estes dois blocos paralelos de edifícios afastados 13 metros um do outro cria uma relação de rua interna. A área ao norte do barracão 07 é um espaço plano tomado por vegetação.
O barracão 8 (Figura 22) fica implantado de forma isolada em relação aos demais e era a borracharia da usina; local de troca de óleo e manutenção de veículos e maquinário. O barracão 9 (Figura 23) abrigava almoxarifado e banheiros. Atualmente é utilizado pela prefeitura como almoxarifado e depósito.
O barracão 10 (Figura 24) era uma oficina de tornos e carpintaria. Parte dele está sem cobertura e com o interior tomado de vegetação, embora as fachadas estejam em bom estado. O barracão 11 (Figura 25) era a destilaria de álcool. Pôde-se perceber falta de cobertura e muita vegetação no interior. Por fim, no barracão 12 (Figura 26) que é o mais distante e isolado espacialmente dos demais ficava o depósito de açúcar que ia para o porto. É composto por dois prédios geminados; o prédio do lado sul permanece com telhado e possui um portão que o separa dos demais, o edifício ao norte está destelhado, em estado parcial de ruína e tomado por vegetação.
4.3 ATUAL USO DO ESPAÇO
Apesar da importância que a usina teve para a cidade, atualmente se encontra em estado precário, como verificado nas imagens apresentadas nas figuras anteriores. Mesmo assim, até o ano de 2014, alguns eventos aconteciam dentro dos barracões do conjunto industrial, mas a partir daquele ano eles foram interditados por falta de AVCB (Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros); esta interdição permanece atualmente. Com o impedimento do uso do espaço interno, um projeto foi implantado no espaço externo em torno dos antigos barracões: cerca de 7000 m² de piso intertravado foi instalado, juntamente com alguns bancos e árvores na busca de estruturar o espaço para continuar a receber eventos de grande porte. Esta intervenção, inaugurada em 2016 e chamada de “Novo Pátio da Usina Santa Bárbara”, acabou se tornando desde então a sede dos grandes eventos realizados pela cidade (Figura 27).
Disponível em: < https://tododia. com.br/santa-barbara-busca-verbas-para-ampliar-o-projetode-revitalizacao-da-usina/ >. Acesso em: 12 out, 2020.
Dentre as festas tradicionais realizadas neste local, a Festa das Nações, que celebra a origem dos povos que imigraram para a cidade é a maior. Nela são arrecadados fundos para entidades beneficentes que atuam na cidade. A 28º edição da Festa das Nações ocorreu em 2012, portanto ainda no interior dos barracões, conforme a Figura 28. Depois perdeu um pouco de força e passou por um período de recesso retornando em 2018 na celebração do bicentenário da cidade, dessa vez no novo pátio, contando com 30 mil visitantes na somatória de 3 dias de evento.
Outro evento bastante conhecido é o Via Crucis, que é a encenação sobre a vida de Jesus que ocorre em decorrência do feriado da páscoa. Se destaca com a montagem de um grande cenário e arquibancadas que em 2019 recebeu 23 mil pessoas em 6 apresentações. Em 2020, por causa da pandemia de Covid-19, foi realizada uma sessão de cinema no estilo drive-in. A Figura 29 mostra fotos de alguns eventos já realizados na usina; todos já tiveram várias edições e se tornaram conhecidos e tradicionais na cidade e região.
Fonte: Adaptada pelo autor. Imagens retiradas do blog: <http://cronicas-cronicas.blogspot.com/2013/04/razao-no23-feira-das-nacoes.html>. Acesso em: 14/10/2020.
Fonte: Imagens da internet, disponíveis em: 01: <https://radiosantabarbarafm.minhawebradio.net/noticia/373517/ mais-de-4-toneladas-de-alimentos-sao-arrecadadas-no-6encontro-de-veiculos-antigos>. Acesso em: 13/10/2020.
02: <https://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2018/10/20/ encontro-de-orquestras-de-violas-ocorre-neste-fim-de-semanaem-santa-barbara-doeste.ghtml>. Acesso em: 13/10/2020.
03: <https://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2019/04/20/ santa-barbara-doeste-recebe-espetaculo-via-crucisate-domingo.ghtml>. Acesso em: 13/10/2020.
04: <http://cronicas-cronicas.blogspot.com/2013/06/razao-no-25festa-da-negadinha-da-usina.html>. Acesso em: 13/10/2020.
05: <https://liberal.com.br/cultura/cardapio-do-s-barbara-rockfest-2019-e-divulgado-1057888/>. Acesso em: 13/10/2020.
06: <https://www.regiaohoje.com.br/ver_galeria/23/4-ordmencontro-de-carros-antigos-de-santa-barbara-d-oesteapoio-gdo-rc-racing.html>. Acesso em: 13/10/2020.
07: <https://liberal.com.br/cultura/santa-barbara-divulga-programacaocompleta-do-rock-fest-1046287/>. Acesso em: 13/10/2020.
O termo “negadinha” era comumente utilizado no período de funcionamento da usina para se referir a um grupo de pessoas. Pode ser entendido como sinônimo de “turma”.
A tradicional festa ainda recebe esse nome e o autor o usou a fim de referenciar o evento corretamente. Todavia, é um termo que pode ter origem racista e ser interpretado dessa forma, logo seria correto seu desuso.