Revista Desordem #02

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ano 01|ed.02

poesia para um brasil de loucos


O mUnDO meLHOROU NADA


#ficaemcasa


EDITOR: Leonardo Triandopolis Vieira CAPA: Montagem em cima da foto de United Na ons Covid-19, via Unsplash COLABORARAM COM ESTA EDIÇÃO: Carlos Freitas (SP) Henrique Komatsu (MS) Luigi Lunewalker (MS) Raimundo Silva (MS) Paulo Gilberto (MS) Vini Willyan (MS)

ESTA É UMA EDIÇÃO DE distribuição virtual e gratuita EDIÇÃO #02 PRESTIGIE a literatura independente

Em suas mãos, espero que bem higienizadas, a segunda edição da revista digital independente DESORDEM! Infelizmente, nada melhorou em nosso país. Já passamos da marca de UM MILHÃO de infectados pelo Corona vírus e mais de CINQUENTA MIL mortes. Não são números, são pessoas! Não bastasse um presidente genocida, parece que temos um povo suicida, visto que em plena escalada da pandemia as pessoas só querem saber de ir ao Shopping, pendurar a máscara na orelha e visitar o Beto Carreiro World! É um Brasil de loucos. E para enfrentar toda essa situação (uma situação evitável!) trazemos até você uma edição com resenhas, contos, ar gos e muita, mas muita poesia para enfrentar com muita cultura toda essa insanidade. Então respire fundo, se você es ver dentro de casa, e uma leitura consciente!

editor


sumario 06 11

Resenha: Leonardo contra Paris Poesia: No Levante

12

Ar go: Quem escreve, porque reage...

14

Poesia: Paisagem com muro

16

Conto: Os Ruídos de István

24

Poesia: Peste branca de voragem azul

25

Poesia: Vírus da insciência

26

Poesia: No caminho

30

Poesia: Lance de Dados

32

Poesia: ...

34

Colaboradores


resenha

egotrip o

livro “Leonardo Contra Paris” é uma jorna-

Se a tua não virou… talvez seja porque ela ainda não

da pelo ego do personagem principal.

acabou... vai desandar. Paciência… e força!

Não é uma inves gação da consciência,

nem um ensaio sobre os conteúdos inconscientes

O negócio das “egotrips” é que elas são di ceis de

de Leonardo Pontevedra. Não é um livro de autoco-

explicar. Explicar então como, de repente, elas viram

nhecimento, nem de iluminação espiritual de Leo-

uma “bad”, como e quando e para aonde elas desan-

nardo. É uma “egotrip”… se é que existe tal gênero

dam… piorou.

literário... Há controvérsias. Supondo que sim, exista, o livro na verdade é uma “bad egotrip”, uma “ego-

Via de regra a gente vai contando as mesmas coisas,

trip” que dá ruim.

do mesmo jeito, sobre a vida… como se a pessoa que está ouvindo a história pudesse perceber quando

Essa expressão “egotrip” pode ser entendida como

entramos na “egotrip” e quando essa “egotrip” deu

uma autocelebração do próprio ego… absolutamen-

ruim… nunca percebem.

te redundante e autorreferente: a gíria em inglês vai nesse sen do. Mas não é o caso… não há esse cará-

E a explicação é sempre essa cha ce… de lei. É...

ter masturbatório no texto de Márcio-André… “Leo-

como se fosse… uma outra “egotrip”.

nardo Contra Paris” é uma jornada (trip) que ruma pelo ego. O ego é a paisagem, é o contexto, é o

A minha “egotrip” e as que acompanhei nessa vida

tempo e o espaço da narra va… como a estrada nos

caíram sempre nessa sinuca. Resumindo: a coisa é

romances “roadtrip”. É nesse sen do que digo que o

chata, repe

va e sem muito sen do.

livro é uma "egotrip". Eis o problema de se meter a falar de uma “egotrip”. Acho bom esclarecer isso logo no início para ninguém ficar pensando: “Peraí… esse não é o significa-

Mas, voltando ao livro.

do dessa expressão… em inglês tem uma gíria que significa…etc”.

É uma “egotrip”. Desde os primeiros capítulos sabemos que é uma. O que pega em “Leonardo Contra

Não sei se o/a leitor(a) já teve uma “egotrip”… per-

Paris” é quando, logo no início, você (leitor) se dá

dendo-se nos rumos do eu… mas se já teve, é de fé

conta que o autor inventou um jeito interessante de

que em algum momento ela se transformou numa

desenrolar esse gênero literário. O cara deu um jeito

“bad egotrip”. Toda “egotrip” que já acompanhei

de navegar por essa classe de narra va sem cair nos

uma hora degringolou e a coisa ficou feia. Feia! Feia

problemas recorrentes desse po de história.

de perder amigos de longa data, de desfazer família, de cair em vício, de perder a noção das coisas… etc.

Por exemplo, o autor abre mão das regras manua-


lescas de determinar com precisão quem é Leonar-

dra, curiosamente, não se perde nas armadilhas do

do Pontevedra… Márcio-André assume que se é

próprio ego.

uma “egotrip”… não precisa construir minuciosamente o ego fic cio do personagem… o que já exclui

Vou tentar aqui compor uma metáfora de como o

o aborrecimento fundamental que cons tui as

romance de Márcio-André destrincha e revela o

“egotrips”. Mas o leitor não fica desamparado.

gênero literário.

Sabemos que Leonardo é um escritor, casado, tem algumas relações… mas não sabemos o que exata-

Lendo o romance, dei-me conta de que toda “ego-

mente ele escreve, nem detalhes de qualquer dos

trip” se estrutura como uma Galáxia.

seus relacionamentos. Não sabemos o que move sua escrita, não sabemos minúcias de sua história

Essa imagem pode ajudar quem teve uma “egotrip”

pessoal.

ou está pensando em escrever uma a pensar sobre sua própria jornada. Ao menos a mim, esclareceu

O foco do livro não é determinar em qual ego se está

muito a questão.

viajando… mas como se está viajando pelo ego disponível.

Agora, toda galáxia tem uma maior concentração de matéria (planetas, estrelas, nebulosas, etc) em seu

Márcio-André reinventa o gênero literário em “Leo-

centro e esses elementos se mantém ali em razão da

nardo Contra Paris”? Acho que não. Mas com certe-

força centrípeta de um buraco negro hipoté co que

za ele esclarece a forma de se contar essas jornadas,

repousa no centro de cada galáxia.

evitando o tédio que lhes é inerente. O jeito como a “egotrip” do personagem é construída nesse romance é tão claro e evita tão bem os percalços do “gênero”, que dá pra dizer que “Leonardo Contra Paris” é quase um manual narra vo das “egotrips”… Para que não se caia numa “egotrip”(a gíria)! Pelo amor de Deus, não me entendam mal… Não estou falando aqui de curvas narra vas, arcos, clímax, pontos de viradas… como se a história, a “trip”, fosse um gráfico de contaminação por Coronavírus. Não. Não é nisso que consiste o mérito do livro. “Leonardo Contra Paris” é interessante porque torna evidente o que tem que ser colocado em questão numa “egotrip”. A história da jornada pelo ego de Leonardo Ponteve-


Quanto mais próximos os astros estão do centro, mais são atraídos por ele. O vazio central faz acele-

Agora, se nos afastamos do centro da galáxia e ruma-

rar para junto de si a matéria que o rodeia.

mos em direção à sua periferia, a força centrípeta diminui e a matéria passa a sofrer a influência de

Vejam bem… o buraco negro é hipoté co, mas o

uma força em direção oposta, centrífuga, que a expe-

comportamento da matéria, sua concentração nas

le para fora do centro, para os confins da galáxia.

cercanias do centro, a aceleração centrípeta, tudo indica que ele existe e que tudo gira ao seu redor.

Na periferia da galáxia, a matéria é mais rarefeita e tende a se afastar dissipando-se no espaço.

Essa dinâmica cósmica também opera na viagem em direção ao buraco negro do ego.

Na “egotrip” rumo à periferia, Márcio-André descreve como a força de coesão do ego do persona-

A concentração de matéria é maior quanto mais

gem Leonardo Pontevedra vai se perdendo. Não é

próximo se está do ego… No caso do ar sta Leonar-

fácil sair da influência da força centrípeta do ego; o

do Pontevedra, quanto mais nos aproximamos do

buraco negro hipoté co possui uma força gravitaci-

ego do personagem, na “egotrip” do romance,

onal de proporções cósmicas… mas quando, na

maior a quan dade de matéria (palestras em uni-

narra va, consegue-se estabelecer uma certa

versidades, relacionamentos com editores e jorna-

distância desse vazio, desse centro egoico que geo-

listas, admiração de alunas, influência nos meios

graficamente se situa no Leblon e na Sorbonne, é

culturais, prêmios, publicações, colunas em jornais,

possível ver a quan dade de matéria se dispersar na

muitas cur das nas redes sociais, milhares de com-

vida do personagem à medida que se estabelece em

par lhamentos…).

São João de Meri (diminuem as cur das, somem os compar lhamentos, as relações ganham outras

Márcio-André nunca nos diz no que consiste o ego

feições, não há prêmios literários, não há o culto do

de Leonardo Pontevedra, mas pelo comportamento

ego).

da matéria que o circunda é possível deduzir o imenso vazio que tudo atrai para suas cercanias.

O personagem que antes vivia em torno da imagem criada por si, planejada, me culosamente gerida,

A “egotrip” pela qual o autor Márcio-André nos leva

passa a viver em função de outras histórias, algumas

mostra o poder da força centrípeta gerada pelo cen-

sem sen do, outras alheias à sua vontade.

tro do ego do personagem, um centro que também é geográfico (Rio de Janeiro, Leblon, Sorbonne,

Mas, por distante que esteja do vazio do ego, Leo-

Paris, França) e sócio-econômico (Rio de Janeiro,

nardo não escapa de si. Lembrem-se que o livro é

Leblon, Sorbonne, Paris, França).

uma “egotrip” e não um livro sobre a autoiluminação, não é um livro de auto-ajuda, Leonardo

A força de atração do ego, como um buraco negro,

não se liberta, nem se redime, ele vagueia pelos

mantém numa ver ginosa aceleração centrípeta ao

extremos do próprio ego, mas não o supera.

redor do vazio vidas, relações, planos, expecta vas, frustrações, hábitos, crenças, prá cas, é cas, etc.

De fato, cien stas calcularam a massa total de maté-


Na “egotrip” não é diferente. Algo nos mantém presos a nós mesmos, ainda que estejamos afastados do centro do ego, ainda que estejamos sujeitos à alucinante aceleração centrípeta da periferia que deveria lançar-nos para fora de quem somos, ainda que neguemos nosso próprio eu... Há algo que não nos deixa escapar. Mesmo que esse “algo” seja absurdo, contraditório, invisível, ele está lá. Leonardo, no romance, encontra o seu absurdo; o absurdo que o mantém ancorado em si mesmo. Toda “egotrip” é uma “bad egotrip”… seja rumo ao buraco negro ao redor do qual gira toda a matéria, seja rumo à periferia de si, onde o que se quer é perder-se de si. Toda “egotrip” é uma ria da Galáxia e concluíram que os astros nos limites da periferia cósmica estariam sob uma aceleração

“bad egotrip” porque está ancorada no vazio… seja no vazio do ego, seja no vazio do absurdo.

centrífuga tão grande que deveriam ser lançados para fora, escapando por completo da força centrí-

Márcio-André nos apresenta essa angus ante

fuga do buraco negro central.

experiência em “Leonardo Contra Paris” de maneira ins gante, como uma jornada capaz de distorcer o

Por alguma razão, no entanto, a ciência verificou

tempo e o espaço. Uma distorção bem trabalhada e

que os astros periféricos man nham-se presos nos

que torna possível vislumbrarmos o cosmos egoico

limites galá cos.

de Leonardo Pontevedra. Uma distorção sem a qual a “egotrip” seria infindável, lenta, tediosa e não nos

O que os man nha ali?

permi ria ver a verdadeira forma da jornada.

Foi quando se aventou a hipótese da matéria negra.

Mas e o final da “egotrip”?

Uma matéria que não seria matéria, não teria peso ou massa detectável, mas que exis ria e possuiria

Não há final. O vazio da experiência – no seu centro

força gravitacional suficiente para atrair os corpos

e no seu entorno – sem meio, nem fim, nem início é

celestes que estão nos confins da galáxia.

a estrutura da “egotrip”. Como esses quebra cabeças impossíveis, em que se tem que rar um anel de

Há algo invisível, contraditório, imensurável, que

aço preso no interior de duas alças de metal… o anel

mantém a coesão da galáxia.

nunca vai sair dali… Não há uma posição inicial ou


final do anel. O que podemos fazer quando muito- é deixar o jogo de lado. Mas uma vez no jogo, a experiência é de angus a, de um tempo que se esvai numa tarefa sem fim. Às vezes temos a sensação de que o anel está menos preso às alças, outras vezes sen mos que ele está mais enroscado nelas… mas ele jamais está solto. Essa é a experiência que o livro “Leonardo Contra Paris” nos proporciona. Por certo, não é um romance de entretenimento. Aos que não podem sair de casa, aos que podem, mas conscientemente permanecem em isolamento e aos que precisam sair, mas buscam tomar todas as precauções, convido-os a essa viagem para dentro de si proposta pelo livro de Márcio-André. Aos demais, que estão por aí, seguindo os comandos do Presidente da República, abandonem essa“egotrip” e leiam o livro.

henrique komatsu

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poesia

No levante.

n o raimundo silva

Eu estava sóbrio e estava só sob o pó da estrada. como o vencedor de uma batalha, desfiz o nó, e ali estava eu comigo sem ganhar nada. As minhas armas depositei, já não sei se quero a guerra. Já não sei se quero ser rei de alguma devastada terra. Sol a pino.

l e v a n t e

Eu morri de sede e fome no deserto, não havia pão e vinho que saciasse meu desgosto. Eu era apenas um camelo pouco esperto. Eu sou apenas um caminhante a contra gosto. Minhas pernas incham e vão dormentes. Já vou perdendo cabelos e dentes. No poente. Olho taciturno, como águia, as novidades. Carne fresca que morre a cada hora. O cimento sujo das cavernas das cidades. A vida vai numa liteira como velha senhora. Tenho lágrimas para as estrelas quase mortas. Tenho sorriso para um horizonte de linha torta. Na noite. Tudo parte do caos instaurado. Meu silêncio me cas ga como um feitor. Há uma opressiva felicidade por todo lado e uma felicidade maior a se criar da dor. O céu salpicado me redime das coisas do dia. Eis que um novo viver vem e reinicia. No levante.

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prosa

uando os budistas dizem que é melhor não

rei traduzir esse estado. E, sem embargo, assim

fazer nada do que fazer a coisa errada, eles

como Bakunin, admi r que não há uma autoridade

não estão dizendo para nunca fazer nada

infalível. Reagir a uma ideia de infalibilidade é fatal

ou viver em permanente resignação, eles querem

para a liberdade, pois transforma a todos nós em

dizer que antes de qualquer ação é preciso pensar

escravos e instrumentos da vontade de interesses

(do la m pensare, pesar ou pendurar para avaliar o

alheios.

q

peso de um objeto – mensurar, balancear). A ação que acontece sem pensamento é reação (do la m

Sem liberdade, apenas reagimos.

reagere, agir em resposta a um es mulo). Assim, podemos concluir que eles querem dizer que é

Fazemos a coisa errada.

melhor não fazer nada do que reagir. Seja na internet ou no mundo material reagir é a A ação nunca é uma resposta. Agir (do la m agere,

regra, porque para tal não é preciso de esforço. Pelo

atuar, fazer, colocar em movimento) é uma coisa

menos, não de esforço consciente. Quando você

que se dá quando há atenção. Enquanto você es -

a ra uma bola na parede, a parede devolve a bola

ver atento ao que acontece dentro e fora, micro e

não como um ato consciente, mas como uma rea-

macro, você age. Enquanto você ignora o que acon-

ção. Quem a ra a bola é a ação, pois decidiu a rar

tece dentro e fora, micro e macro, você reage.

(bem como poderia ter escolhido não o fazer) a bola. A parede não.

A palavra que costuro a outra palavra e a outra palavra para construir uma narra va não pode ser,

Enquanto eu escrevo, na qualidade de meta ar sta,

jamais, uma reação. Da monossílaba à polissílaba, a

ou quase coisa, devo cuidar para não estar preso à

ação deve ser integral. Justamente porque com o

reação, mas, sim, agir para a liberdade do indivíduo.

meu texto eu procuro a transformação, micro e

Ter a consciência de que escrevo em uma língua

macro, de uma sociedade colonizada, induzida,

viva, em constante transformação. A língua e a soci-

presa à reação.

edade transformam-se juntas.

Com a palavra que se amalgama no texto e resulta

A narra va que age, liberta.

em uma narra va, não tenciono provocar reações, mas, sim, rachar essa camada de status quo que impede as pessoas de agirem. Agirem a par r de si, em liberdade. Se a liberdade é um estado da mente, então, é através de disposi vos mentais que pode-

leonardo triandopolis



poesia


Porque não se sente seguro

porquê há muros demais, lotações demais

você precisa de muro

só porque há

cercas, monitoramento,

você se casa

cimento.

se casa mas não basta o casamento

sua casa torna-se

precisa de mais trabalho

imponente

soma o teu ao trabalho do outro

cela cinza

ao suor, que já vale mais que o sangue.

deprimente, fúnebre.

adoece adoecem,

cimento requer dinheiro dinheiro nunca há suficiente então você trabalha, mas se cansa cedo, há longa ida

está doente criando doentes e procura curar-se escondido nos templos, nos quartos brancos, consultórios,

longa volta

demais doentes.

de ônibus,

e conta cabeças

manhã cedo

como quem conta moedas

ir e vir requer dinheiro precisa também de automóvel não o possui passa a sen r mais falta, se exige mais trabalho trabalha cansado... descansa na casa de muro alto e acorda e repete e não sente e bebe e canta e no meio descobre que ama mas não sabe como se ama então se casa

e morre de corpo porque já estava morto e soluça em silêncio a inexistência, medo o horror no fim é só o soluço aceita pra car o trabalho porque outros nem a isso têm e finalmente morre a morte da morte mas não a sente já estava finado.

vini willyan


conto

Os Ruídos de István A alma se desespera, mas o corpo é humilde; ainda que demore, mesmo que não coma, dorme. Adélia Prado

cerrado é um canto an go. Parece haver mais passado guardado aqui que no resto do mundo. É como curva de rio leitoso, onde o tempo vai se agarrando pelas margens, marolando em vez de correr ligeiro. É um passado que, de tanto andar arrastado, resvala no presente que chega. É uma an guidade impregnada na alma de tudo o que habita essas paragens, é um eco que ressoa do oco das coisas.

o

Perambular pelo cerrado não é como vagar pelas ruas da Europa; o tempo guardado nas esquinas de lá tem uma forma determinada: a História. Esse tempo europeu, histórico, tem cara, tem forma, tem jeito, tem começo e tem fim. O tempo do cerrado não; é como a radiação cósmica de fundo, da origem do universo, um ruído que está em toda parte e em todos os lugares, oscilando da mesma maneira, marcando não um tempo qualquer, específico, mas contando o tempo de todos os tempos, desde o seu início. A ancestralidade do Cerrado vem de dentro para fora, não está na casca, mas na seiva... As árvores aqui já brotam arqueadas pelo passado acumulado, brotam artrí cas e curvadas. O tempo não corre por fora das coisas que nascem no Cerrado, corre por dentro. Ou talvez, simplesmente, o tempo tenha se enroscado, ao longo das eras, nos galhos retorcidos da vegetação, que se espalham como mãos de fei ceiras, cheias de dedos tortos e magros, colhendo o passado, formando esses novelos de pretéritos que tecem o rendado da vida no planalto. Para aonde quer que se vá, há o tempo, envelhecido, envelhecendo. O chão debaixo de nossos pés... de tão an go... até a poeira é gasta. Os grãos são pequenos, minúsculos, largados. De tanto que se bateram pelo solo já perderam a forma, o cheiro, a textura, já perderam sua história e até o seu peso. Por qualquer vento eles se lançam no ar. Talvez um dia tenham sido montanhas vermelhas, penhascos, desfiladeiros cravados no chão, que ardiam ao pôr do sol. Hoje, são só o pó. E o cerrado é também um velho silencioso. Não sei o que aguarda ou o que contempla, mas o faz quieto. Como o retrato de meu avô, pendurado na parede, como meu pai, como eu. É como se tudo já vesse sido dito por aqui. E foi dito tantas vezes e de tantas maneiras que também as palavras se gastaram e perderam o som, a melodia, o sotaque. De velhas, viraram um grunhido, um nó na garganta, um ruído abafado, um silêncio. As palavras, poucas, ditas no Cerrado são an gas. Não circulam por aqui os verbetes novos do idioma. É sempre um falar que já foi falado. E de ser assim, é um falar calado. Quando cheguei a esse canto do mundo, para trabalhar numa secretaria judicial, ve essa impressão de que tudo já havia sido dito. As paredes ecoavam palavras e frases repe das, viciadas. Eu é que não as nha ouvido, então eu faria perguntas an gas, desenterraria dúvidas já respondidas e alguém repe ria as respostas desgastadas... Tudo com a menor quan dade de verbetes possível, na fórmula mais enxuta, elaborada ao longo de eras, como a poeira do Cerrado. E depois que essa resposta ancestral fosse mais uma vez ouvida naquele cartório judicial, voltaria o silêncio das coisas já ditas. 16


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Não estava ali para aprender nada de novo sobre a Jus ça. A Jus ça que nha para ser aprendida era uma jus ça velha, repe da. Os advogados vinham ao balcão perguntar coisas que já haviam perguntado e os servidores levantavam-se para responder respostas que já haviam respondido. Eu estava ali para aprender esse mantra, esse jogo de repe ção.

um colega e não como representante da ins tuição. Até aquele instante eu havia falado com o diretor de secretaria, com o Juiz e com o chefe da seção, que me apresentaram o trabalho, a estrutura sica, descreveram a hierarquia, ou seja, eram partes da máquina burocrá ca arranjando-me dentro das engrenagens. Aquele sujeito não. Aproximara-se como uma pessoa e não como um cargo.

- Como faço para resolver esse problema aqui? - Faz uma pe ção, doutor, protocola lá que o juiz vai apreciar.

Chamava-se Aloísio e trabalhava há dezenove anos na mesma função. A fotografia no crachá pendurado ao redor do pescoço – rada no dia em que ingressara no serviço público – era uma espécie de marcador do tempo. Podia-se ver a distância que separava o rosto de agora e o rosto de então. Aloísio já não era a mesma pessoa. Um daqueles dois rostos se desfigurou com os anos. Teria sido o do crachá ou teria sido aquela cabeça que agora servia de cabide para o retrato an go?

De fardos amarrados com fi lho, sacaram pilhas de processos para que eu os numerasse, naquele primeiro dia de trabalho. Era um ba smo, era uma maneira de afundar-me nas páginas repe das da burocracia, em seu mar de símbolos jurídicos. Afundei-me. Os números, infinitos, se repe am. A caneta corria solta, sem pensar, só seguindo a ordem crescente dos dígitos; pe ções, despachos, laudos, decisões, agravos, sentenças, até que as folhas do volume se acabassem. E tudo recomeçava. Não havia dúvidas. Não havia perguntas. Então as coisas se davam caladas.

Dei uma olhada no meu próprio crachá e pressen que o tempo do cerrado e da burocracia logo fariam de mim um Aloísio, pressen o presente tornando-se passado. Em pé, ao lado de minha mesa, esse servidor comentou em voz baixa, como se fosse me segredar algo importante:

No meio de um desses números, a caneta saiu do traço. Um susto. Um estrondo no cartório interrompeu o silêncio. Foi como se vessem me arrancado, de súbito, de dentro das páginas. Emergido do transe burocrá co, respirei. Eis o ba smo. Alguém deixara cair uma pasta de o cios. O papel pesa. O registro do passado, as palavras velhas, carregam lá sua gravidade. O sacramento burocrá co coloca sobre os ombros do burocrata o peso da Máquina, tal qual o ba smo põe no lombo do cristão o peso dos Céus.

- "Esse barulho, uns tempos atrás, teria dado problema". - “Como assim?"- perguntei. - “Nunca ouviu a história do Juiz István?”. Como não poderia deixar de ser, uma lenda, uma história an ga, um passado. Provavelmente contada e recontada infinitas vezes naquela secretaria, como uma oração, e que eu, recém chegado, desconhecia. “Não, nunca ouvi”.

Olhei o número mal feito, um traço comprido indicava o abalo sísmico causado pelos papéis desabados. Após a pausa, já recompostos, voltaram todos a seus afazeres. Quem estava ao telefone, voltou a falar, quem folheava algum processo, voltou a pesquisar, quem andava para alguma prateleira, retomou o caminho, quem digitava algum o cio, con nuou a frase. Nisso, antes que eu mesmo me pusesse a numerar as páginas novamente, um dos funcionários do cartório chegou próximo a minha mesa.

- “Foi um dos primeiros Juízes que passou por aqui, era um húngaro”. - “Hum.” – resmunguei e voltei a numerar as páginas, sabendo que a história con nuaria, por força do hábito, sendo contada de uma maneira específica, litúrgica, invariável, forjada ao longo de décadas, independentemente da quan dade de atenção que

Era a primeira pessoa que me dirigia a palavra como

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eu desse a ela. - “Quando ele chegou, parecia uma pessoa normal. Igual você, assim. Só que era alto, branco, gordo, bochechas rosadas, entrava na secretaria já suado – o clima daqui cas gava aquele corpo adaptado para o inverno – dava bom dia, conversava um pouco, ia para o gabinete e ficava lá, enfurnado no ar condicionado. Quando saía, já no final da tarde, falava alguma coisa, despedia-se de todos e ia embora. Normal. - “Não deu três meses; começou a ficar esquisito. A bem dizer, ninguém sabe o que foi. Dizem que foi o silêncio do Cerrado, as frases secas, com palavras murmuradas. O tempo es cado também. A lonjura de casa. Torceram a alma do magistrado, igual torcem o pé de murici. De dentro para fora. “Os primeiros sintomas, do que eu me lembro, foram discretos. Na verdade, só agora, olhando pra trás, é que dá pra dizer que eram sinais do que viria. Diminuíram os cumprimentos, as trocas de palavras. O húngaro passou a cruzar reto a secretaria, suado, varando direto para sua sala. Resmungava alguma coisa se lhe dirigissem a palavra. Atendia os advogados, quando esses apareciam, mas sempre com respostas lacônicas. Tirava dúvida dos servidores. Nas audiências, invariavelmente, falava. Precisava perguntar o que as testemunhas nham visto, ou ouvido, não nha saída, mas perguntava sempre as mesmas coisas, na mesma fórmula, sem palavras novas e com frases curtas. Era o Cerrado lhe adestrando a fala. Fora isso, entrava mudo, saía calado. Era o Cerrado lhe adestrando o silêncio. Os servidores sen ram a mudança. Sempre sentem, não tem jeito. Quem muito rodeia cobra sabe quando ela arma o bote”. Nesse ponto da conversa, Aloísio chegou mais perto de minha mesa e falou como se me repassasse um ensinamento milenar: - “Porque se o humor do magistrado é igual tempestade, a nossa percepção é igual fio es cado de crina de cavalo. Qualquer variação na umidade do ar e a tensão muda. Você é novo aqui, ainda não percebeu, mas vai ver que é assim. A gente sente tudo no ar, igual bicho.

“Depois disso, o silêncio foi só aumentando. O húngaro decidiu que as dúvidas e os pedidos seriam passados direto para o seu assessor, por escrito, e que, no final do dia, iria ter com ele. O Juiz, diariamente, repassaria suas decisões a esse garoto de recados, que disseminaria as informações. “O assessor acumulava pilhas de bilhetes durante o dia e numerava-os no verso, em ordem cronológica. Ao entardecer, com folhas em branco, também numeradas, ia ao gabinete do doutor István, onde lia os bilhetes e anotava as respostas de acordo com a numeração. “Os demais servidores, é lógico, apertaram o assessor para saber o que estava acontecendo. Não estava acontecendo nada. O doutor István estava apenas adotando um novo método de trabalho, uma nova dinâmica, dizia. Não estava acontecendo nada. Se muito, as decisões estavam ficando concentradas no final da tarde. “As coisas vão acontecendo debaixo dos nossos olhos que a gente nem nota. “Ao final de três dias nesse escambo de papéis, o diretor pediu que os bilhetes fossem mais concisos porque o Juiz se mostrava irritadiço com mensagens muito longas. A leitura de bilhetes muito extensos estressavam os ouvidos do húngaro. Assim, estabeleceu-se um limite de palavras por bilhete e, para que todos padronizassem as dúvidas, publicou-se uma portaria estabelecendo os critérios a serem adotados na redação de cada nota encaminhada ao Juiz. “Os bilhetes foram regulamentados: tamanho da fonte, espaçamento, número de caracteres, quan dade de dúvidas por papel… Depois da portaria foi engraçado: chegava no fim da tarde a gente via os colegas lendo os bilhetes e contando nos dedos as palavras. Pipocavam dúvidas de redação. Ar go conta como uma palavra? E numeral? Chegou a sair uma outra portaria esclarecendo o jeito certo de se contar as palavras. “Hoje, assim, vendo a coisa de longe, a gente perce-


be que já era alguma coisa” – explicou Aloísio – “só que na hora, não parecia nada, parecia só um rearranjo da papelada”. “Mas ainda assim, em alguns casos, quando aquela quan dade de palavras não era suficiente para descrever o problema e formular a pergunta, a gente ia falar com o Juiz lá no gabinete. Era uma cerimônia só; troço tão esquisito, que se evitava esse po de contato o quanto desse. Mas nha vezes que não nha outro jeito. O húngaro ouvia nossas dúvidas e considerações como se es vesse com dor de cabeça. A mão na fronte, os olhos baixos, respostas secas e curtas. Passou o tempo, veio outro comunicado. Os pedidos e as perguntas, agora, mesmo as mais complexas, nham que vir por escrito, nada de conversa com o Dr. István no gabinete. Alterou-se a redação da portaria, ampliando o limite de palavras por bilhete 'nos casos estritamente necessários'. Pouquíssimas eram as pessoas admi das no recinto do magistrado. Advogados, o diretor de secretaria, o assessor. As determinações eram seguidas à risca, no entanto, ninguém sabia o porquê daquilo tudo. “A tempestade soprava e o vento, trazendo a no cia da chuva, par a-se no fio da crina do cavalo. Estava todo mundo à espera do caldo entornar. “Não demorou muito, enquanto ainda nos acostumávamos a redigir os bilhetes naquelas palavras contadas, o húngaro mandou chamar o diretor do cartório. Queria saber que tanto andava ruidosa a secretaria judicial. Parecia ao magistrado que havia aumentado o número de pessoas no cartório, o que não foi confirmado pelo diretor. Então, o húngaro baixou uma portaria definindo que as mulheres não deveriam trabalhar de salto alto e os homens somente poderiam usar sapatos com solado de borracha, a fim de diminuir o ruído da secretaria. “A portaria foi publicada no diário oficial numa segunda-feira. Na quarta-feira, o juiz István mandou emendá-la. Foi adicionado um novo ar go à norma, que dizia o seguinte: “As regras acima não se aplicam aos servidores que optarem por trabalhar descalços ou de meias”. Na sexta-feira daquela semana as pessoas já estavam pisando diferente. Tanto homens como mulheres andavam com passos mais largos para diminuir o número de vezes que encostavam os

pés no chão e, inconscientemente, as pessoas passaram a ficar mais vigilantes quanto ao andar do outro. “Naquela sexta-feira, Adélia, uma estagiária, por esquecimento, veio com sapatos de salto alto. Não chegou à sua mesa e o telefone do diretor tocou. Era o húngaro. Queria saber quem estava descumprindo a portaria. O diretor voltou aflito, explicou a situação, e a menina trabalhou descalça naquele dia. “No sábado, alguns servidores se encontraram, por acaso, na loja de calçados, pesquisando preços, modelos e solados. “Na outra segunda-feira o diretor de secretaria foi chamado, mais uma vez, ao gabinete do juiz. Contase que o húngaro pediu para ver o solado do sapato do diretor pois não era possível que uma sola de borracha fizesse tanto barulho. Reclamou do barulho da impressora. Na época, havia duas impressoras matriciais na secretaria. Era impossível silenciá-las. Dessa reunião, o diretor de secretaria saiu de meias e com mais uma portaria determinando que fosse colocada sobre a impressora uma caixa de isopor para que se abafasse o ruído das impressões. “A caixa de isopor mais espessa que encontraram à época foi uma dessas de transportar pescados. Cabia cer nho a impressora, mas nha cheiro de pacu. Lavaram-na como puderam e passaram a imprimir as sentenças, os o cios e cartas no silêncio daqueles isopores. Pelo cheiro, era como se vessem pescado as peças burocrá cas. “Agora, tendo em vista a dificuldade de se impor o novo po de calçado aos advogados e advogadas e também às testemunhas que compareciam às audiências com os sapatos que queriam, foram requisitados tapetes tanto para a sala de audiências quanto para o gabinete do Juiz István. “A Administração, evidentemente, não mandou os tapetes de imediato. Algum burocrata da capital quis saber porque uma secretaria no cerrado precisava de tapetes. O húngaro, então, solicitou uma perícia técnica das caracterís cas acús cas da sala de audiência e de seu gabinete. Os resultados foram encaminhados à Administração, que, mais uma vez, não enviou os tapetes, alegando que os resultados


técnicos não evidenciavam a necessidade da aquisição. “István determinou, por meio de outra portaria, que uma nova perícia, mais apurada, fosse feita nos recintos. Um grupo de técnicos da capital foi deslocado até os confins do cerrado para fazer a medição exata dos decibéis saídos dos saltos dos sapatos a que se achavam subme dos os ouvidos que passavam pela sala de audiências ou pelo gabinete. Analisaram-se os sons de inúmeros pos de saltos e solados. Era curioso ver aquele monte de gente estranha, calçando e descalçando sapatos e andando de lá para cá. Os experimentos, é óbvio, veram que ser feitos nos horários em que o húngaro não estava. “Os resultados, com inúmeros gráficos, tabelas e siglas e termos técnicos foram encaminhados à Administração com novo pedido de tapetes. Depois de uma semana de espera, mais uma vez, a resposta foi nega va. Os burocratas da capital não se convenciam da necessidade de se comprar tapetes para amenizar os ruídos da burocracia. “O juiz, sabendo da nova nega va, por meio de um bilhete ,ordenou ao diretor que lhe trouxesse uma interpretação médica dos resultados dos testes acúscos. O diretor, para atender a demanda, abriu uma licitação para a contratação de alguém que interpretasse os tais resultados. Foram destacados três servidores especialmente para a supervisão do processo licitatório. Ao final, contratou-se um médico otorrinolaringologista e especialista em medicina do trabalho que, por uma pequena fortuna, confeccionou um elaborado laudo explicitando os impactos dos ruídos na saúde dos trabalhadores. “O húngaro, mais uma vez, solicitou os tapetes à Administração, enviando junto o laudo médico que demonstrava a urgência da aquisição dos itens.

ção, por precaução, encaminhou vinte por cento a mais que o total requisitado pelo húngaro. Sobrou tapete. “Assim, nos lugares de maior trânsito, o juiz determinou que fossem colocados um tapete em cima do outro, para que se abafasse mais o ruído dos passos. Os excedentes deveriam ser colocados no cartório. O diretor de secretaria e o assessor passaram o dia analisando o fluxo de gente, pelo cartório, pela sala de audiências, pelos corredores que ligavam as salas para definir onde os tapetes deveriam ser colocados. “Durante uma semana o telefone do diretor tocou incessantemente. Era o húngaro definindo, de seu gabinete, o reposicionamento dos tapetes para reduzir, de modo mais eficiente, os decibéis que rondavam o cartório. Perdi a conta de quantas vezes paramos todo o trabalho para trocar os tapetes de lugar. Mas no fim, para te dizer a verdade, tudo ficou mais silencioso. “Aí, começaram outros problemas. Com os sons dos sapatos e das impressoras abafados, outros ruídos passaram a tomar conta do ambiente. As vozes dos servidores e dos advogados, a campainha do telefone, o barulho do folhear dos processos pareciam ter aumentado de volume. “O ouvido dos servidores, ao longo dos meses, foi ficando apurado. Eu mesmo, Aloísio, que nunca escutei muito bem, passei a perceber cada barulhinho da secretaria. Um cochicho não passava despercebido. Então, quando começamos a achar a campainha do telefone alta e perceber até o barulho das folhas, nós sabíamos que mais uma portaria estava para sair e que o telefone do diretor iria tocar.

“Reza a lenda que os burocratas da capital, ante a insistência, concluíram que seria mais barato comprar os tais tapetes para o húngaro que pagar as incontáveis perícias para decidir se eram ou não necessários.

“Você veja só, a Jus ça não é só uma ideia. Não pode ser. Porque uma ideia não faz barulho, não tem som. Foi preciso vir um húngaro trabalhar aqui, na quietude do cerrado, para eu perceber, depois de dezenove anos, que a Jus ça é barulhenta, cheia de ruídos e que é di cil silenciá-la. Como Kepler conseguiu ouvir a música dos planetas, vendo-os dançar, eu pude ouvir as notas da Jus ça, no silêncio do doutor István.

“Antes do final do semestre aportou na frente do prédio um caminhão cheio de tapetes. A Administra-

“Mas, como eu dizia, o doutor István estava decidido, e baixou outra portaria. Mandou trocar todos os


aparelhos telefônicos por aqueles de surdo que acendem uma luz ao invés de tocar a campainha. No começo foi o caos, os servidores estavam condicionados a não olhar para o aparelho, mas a ouvi-lo. Choveram reclamações que ninguém atendia o telefone. Inclusive, muitas dessas reclamações não devem ter sido registradas, justamente porque ninguém atendeu o telefone. Diversas reuniões foram feitas para tentar solucionar o problema.

“O silêncio era tanto, que até o murmurar se ouvia com ni dez. Você já esteve no mangue? O silêncio do mangue é assim, silêncio de santuário, silêncio tanto que dá para ouvir as conchas dos mariscos se abrindo.

“Havia apenas um estagiário, chamado João, que sempre atendia o novo telefone, mesmo que es vesse longe do aparelho, entre as prateleiras de processos, sem mesmo poder ver a maldita luz piscando. Ele parecia pressen r que alguém chamava e parava o que estava fazendo para ir atender o telefone. Quando estava muito ocupado, avisava a todos, “o telefone está tocando!”. E era batata! Quando olhávamos para o aparelho a luz estava a piscar. Era um dom, um milagre. Foi apelidado de João Ba sta, por sua capacidade de profe zar as chamadas telefônicas.

“O diretor saiu de lá com mais uma portaria, determinando que se falasse no expediente apenas o absolutamente necessário e em voz baixa. Não se elencou na norma o que seria considerado absolutamente necessário. Exteriorizar uma dúvida era absolutamente necessário? Talvez sim, talvez não. Dependeria da dúvida. Um recado deixado por telefone? Um lembrete sobre o registro de ponto? Ninguém sabia estabelecer o que era ou não era 'absolutamente necessário'. O conceito virou uma ameaça pois a definição, no fim das contas, só viria no momento da pena ou da absolvição. Na dúvida, calava-se.

“Até que numa das reuniões, pediram a João que explicasse como aquilo era possível. Ao que o estagiário explicou que toda vez que a luz se acendia, indicando a chamada, era possível ouvir um pequeno “tec!” lá dentro do aparelho.

“Logo, as portarias começaram a produzir seus efeitos jurídicos. Um estagiário esqueceu de colocar o isopor sobre a impressora e foi adver do, por escrito. Uma servidora riu da piada de um advogado no intervalo da audiência e foi transferida para outro setor. Eu mesmo, Aloísio, um dia, fui carregar um processo an go, e deixei cair um de seus volumes num pedaço de chão sem tapete. Peguei três dias de suspensão. Cada uma dessas penalidades era antecedida pelo piscar da luz do telefone. O juiz ouvia tudo.

“Ninguém acreditou no estagiário. O pobre pregava no deserto. Mas era a única alterna va que se nha para resolver o problema dos telefonemas não atendidos. Fez-se silêncio sepulcral na secretaria para que a teoria fosse testada. Ligaram para o aparelho e apuramos os ouvidos aguardando o som profe zado por João. “Fazei Penitência porque está próximo o Reino dos céus”. De fato, a cada vez que a luz se acendia, um levíssimo “tec!” era ouvido dentro do telefone. João estava certo. Não demorou muito, todos os servidores encontravam-se adestrados para ouvir o sinal da chamada, além, é claro, de já andarem com passos largos e calculados para evitar qualquer ruído. Éramos como os cães de Pavlov. “Na mesma tarde em que os servidores descobriram o segredo de João, a luz do telefone se acendeu, o diretor foi novamente chamado ao gabinete do doutor István. O húngaro estava incomodado com as conversas em secretaria. Mas já não havia conversas,

as pessoas sequer se dirigiam umas às outras. O que havia eram sussurros. Só que ainda assim incomodavam o Juiz.

“O silêncio dos outros é um ca veiro. “Ficávamos atentos sempre a qualquer ruído, aos murmúrios da Jus ça, como um refém que não ra os olhos de seu carcereiro. Aguardávamos a próxima portaria. Se alguém ouvia um ruído duvidoso, logo levantava o indicador (era o sinal convencional entre os servidores para expressar a pergunta: 'Vocês ouviram isso?'), todos olhavam para o dedo e depois para o telefone, à espera da luz se acender. Os dias se arrastavam nessa tensão, medida no pelo da crina do cavalo. “Um ano depois da chegada do húngaro, uma nova


portaria foi publicada. O diretor nos chamou com um gesto para vermos a publicação. Em silêncio, a passos largos e cuidadosos, nos amontoamos ao redor do diário oficial. Eu ainda me lembro do cheiro do jornal. Dizia que o Juiz István havia sido removido para outro Estado. "Nos olhamos todos, era o absolutamente necessário, e voltamos aos nossos afazeres, prestando atenção no estalo do telefone, cuidando ao folhear as páginas dos processos, vigiando o tom de voz, andando rando os pesos dos pés. Ao final da semana, o Juiz se foi, sem se despedir, em silêncio. Nada havia mudado de verdade. As portarias con nuavam valendo, com toda a força norma va. Con nuávamos sob a ameaça de uma insanidade que não era apenas do húngaro, mas que se tornara nossa. "No fim do expediente eu deixei cair, sem querer, um grampeador no chão. Petrifiquei. Todos os servidores es caram o pescoço para ver o que havia acontecido. Vi os rostos preocupados, tensos, a respiração presa na garganta. Olharam-me e logo viraramse para o telefone, aguardando a luz piscar, o “tec” abafado vindo de dentro do aparelho, a chamada do húngaro para saber que barulho havia sido aquele. "Só que não havia mais húngaro. O doutor István já não estava mais entre nós. E nós sabíamos que a luz não se acenderia e, mesmo assim, parecia que ela poderia piscar. Aguardou-se em silêncio, por uma eternidade, e a luz do telefone permaneceu apagada. Até que uma servidora caiu em prantos, con dos, silenciosos, abafados, cobria a face e soluçava com todo o corpo. Chorou além do expediente, além do absolutamente necessário. “O silêncio perdurou por anos, até que, um dia, não mais o ouvimos. Os ruídos da Jus ça demoram a voltar, voltam aos poucos, sem que a gente se dê conta. "Essa pasta que caiu agora aí, teria dado problema naquela época. E os tapetes, se você for visitar os arquivos da Jus ça, vai encontrá-los lá, aos montes, enrolados como pergaminhos, cheios de pó. As úl mas provas da passagem do húngaro por aqui.” Assim, Aloísio terminou sua história e voltou à sua mesa. Eu segui numerando a pilha de processos que nham me passado, ouvindo cada ruído que a máquina burocrá ca fazia, um ruído que, até então, me parecia ser silêncio.

henrique komatsu


poesia

Mil e quinhentos, aurora sangrenta das invasões e expropriações de solo de tronco abrasado Mil e quinhentos, o mundo igualmente velho nos trouxe e impingiu seus vermes carniceiros, a morte E suas enfermidades e vícios nunca antes sofridos na terra que segreda ouro e as raízes do pau-brasil Deslocaram povos de terras mais remotas para junto com os tupi, jê, aruak e karib terem arrancada sua condição de humanos e aqui servirem e perecerem Devastaram sem remorso e canalizaram sangue em séculos de história Não foi morte concisa e puramente, torturas mais atrozes que as que sofreu o homem que traziam pregado no seu símbolo lúgubre e funesto Da longa e con nental escravização, expropriação da gleba e chacina que cometeram, e que avermelharam a terra e os leitos de água, também levaram a mais reluzente e mais minúscula aljôfar que arrancaram do solo revirado E sobre ele espalharam milhões de ossos em que os restos de carne incrustrada apodreciam Enquanto eles gozavam e se esbanjavam Em nome deles, de sua nação facínora De Cristo ex ntor e de seu umbigo eurocêntrico de íris azul

paulo gilberto


Parece arma biológica Pois veja, a natureza arranjou Uma forma de ficarmos mais passivos Mais temerosos e reclusos Mas esse conjunto de inanição polí ca e social Parece vi mar apenas uma parcela mais cauta Parece mancomunação com o poder Que tem cada vez mais provas Do êxito de seu projeto De fazer da sociedade uma récua Cuja miopia impede de ver o que é conspícuo Se fosse um excremento de vidente Ou a falsa no cia de um absurdo, Tal como a de um planeta plano, O alarde seria estrondoso "Nos enganaram todo esse tempo! Maldita ciência!" E se um dito representante da récua Menospreza uma arma onipresente da natureza E diz "não é nada, é melhor trabalhar" É claro que não é ele nunca a trabalhar E os homo não tão sapiens, Mais ludibriáveis que bonobos, Mesmo exaustos guerreiam entre si E vociferam "quem não quer morrer é vagabundo! O palácio está ficando sem paletós!"

paulo gilberto


poesia


Caminho pelas calçadas

Como a vida

Acidentadas como os sonhos e planos

Co diana

Nos planos, as pessoas

Mais dois passos

Pessoas são sósias

Ficou para trás

Conheço todas

O momento passou

Todas as fisionomias

No meu perambular

Os sorrisos

O que resta é revolta

Falsos

Conivente

Fabricados

Por deixar ele ser dejeto

Todas as conversas

Excremento do meu modo de vida

Todos os olhares desconfiados

Vida que eu não reconheço

Tudo o que dizem

Não reconheço essa moda maneira

Tudo já foi dito

Não mais

Um andarilho

O modo como fui treinado

Em minha direção

Treinado ser obediente

Oposta

Treinado ser modelo

Vida oposta

Treinado ser treinado

Complementar

Arrebenta-me o cenho reconhecer

Quer olhar nos meus olhos

Dois passos depois

Não consegue erguer a cabeça

Não mais o verei

Seu pescoço rijo

Não mais o saberei

É todo curva

Não mais o notarei

Um galho retorcido

Ele há de morrer

Ele vê minha sacola

Logo depois de obter

Quase transparente

A derradeira migalha do dia

Transparente como ele

Mãos sujas estendidas

Sacola indigente

Frente ao restaurante

Dentro dela, duas garrafas

Não recebe comida

Garrafas de álcool

Recebe um copo

96GL

Com refresco vencido

Ele saliva de vontade

Plás co

De beber

Descartável

De verter

Como ele

De morrer

Sem nome

Quero que me olhe nos olhos

Sem banho

Com olhos de homem

Só fome

Que um dia fora Meu caminhar é acelerado

Detesta-me meus passos


Que me empurra mais distante

A minha

Daquilo, daquele, deste

Por alguns passos a mais

Refugo do meu modo de vida

Talvez

Consequência tolerada

A dele

Colateral efeito

Uma respiração por vez

Resultado repugnante

Coletando migalhas

De minha geladeira cheia

Ancestral caçador coletor

De meu perfil na rede

Olhos no chão

De minha bateria conectada

Focinho no chão Mente no espaço

Mais tarde ouvir dos plantonistas

Espaço vazio

Que ele é assim

Corpo desabitado

Assim porque quer

Alma ceifada

Vagabundo que é

Rendida

Que não gosta de trabalhar

Dilacerada

Oportunidade perdida

Subjugada e esquecida

Tem pensamentos nega vos

Mais uma vida

Cagadores de regras

Menos vida

Com suas entranhas recheadas

Menos

De suas sonegações

Até se render

De travessias fora da faixa

À poeira que cobre seu corpo

De atestados falsos

Poeira de estrelas

Não veem seus filhos dejetos

Como eu

Perambulando pelas ruas

Como ele

Intelectulóides mestrados

Em breve ele e eu

Só descem do carro em estacionamento vip

Nos tornaremos o mesmo

Não sem antes contar suas moedas

Nós, eles

Não deixam migalhas

Eu, tu, ele

Querem tudo

Na mesma poeira que um dia fomos

Sorver tudo

Para onde retornamos

Sem deixar para ninguém Cercas elétricas Concer nas como confetes A cercar dejetos inúteis A proteger seu luxo lixo Ele desaparece E nossas vidas con nuam

carlos freitas


h p://leoescreve.com.br/desordem


poesia

Lances de Dados


Revolta, mar! Revolta, terra! Lances de dados. Lanças de guerra. O mundo hoje, ontem, dominado Pelo eterno humano armado. Revolta, céu! Revolve o inferno O homem fardado, o homem de terno, Trazendo enxofre, napalm, sarin; Fazendo do começo o início do fim. Nossos dados, em computadores, Vasculhados sem muitos pudores, Códigos binários decifram mosaicos; An gos problemas, resultados arcaicos. Shalom Salaam Aleikum Jesus! São homens farrapos pregados nus. Crianças do futuro que nunca terão. Mulheres primaveras mortas no verão. Jesus Salaam Aleikum Shalom! A voz do pássaro perdeu o som, O voo rasante do caça é o pavor E ninguém hoje em dia é dono do terror. Terror de Estado, terror de indivíduo; Minas terrestres deixam resíduo De memórias de braços e pernas ao léu, Que cobre o rosto das mulheres desertas. A morte, o caos, a bomba incerta. Tudo na tela, nas folhas de novos velhos jornais, E o poder quer, o fabricante quer mais, Lances de dados. Lanças de guerra. Revolta, mar! Revolta, terra!

raimundo silva


poesia

E incendeiam a história, queimam o passado. Esperam que seja uma visão de um mero acaso Enquanto isso, apenas descaso. Vivemos em momentos di ceis, onde o mais di cil está em saber. Saber no que mais vai nos escandalizar. Eu não rimo, não meço, mas aqui eu me despeço. Pois de hoje o que anseio, meu rapaz... é um momento de paz.

luigi lunewalker

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colaboradores


Colaboraram com esta edição:

Carlos Freitas h ps://aforismosco dianos.wordpress.com/ Carlos nasceu em 1973, no interior de São Paulo. É autor do livro de poemas “#Aforismos #Co dianos e Outros Poemas”, publicado na Amazon® e do livro de contos “Domingo Passado”, editado e publicado pela Editora EU. Pós-graduado em administração de empresas e docente no ensino superior, Carlos Freitas é um pensador ocasional nas horas vagas e artesão das palavras em tempo integral.

Henrique Komatsu henriquekom@yahoo.com FaceBook: Henrique Komatsu Nasci em Pereira Barreto/SP. Formei-me em Filoso a pela UFPR e em Direito pela UFMS. Publiquei pela editora Confraria do Vento o livro infan l “A Menina que viu Deus” e o livro de contos “Ototo”. Em 2019 ve o ensaio “Dead Time” (Tempo Morto) publicado na revista “Manoa” da Universidade do Havaí/EUA em volume dedicado à literatura brasileira contemporânea e realizei uma residência literária em Rianxo/Espanha a convite da Editora Axóuxere e da Deputação da Corunha, ocasião em que apresentei uma “aula aberta” sobre literatura brasileira à comunidade acadêmica da Universidade de San ago de Compostela (USC).

Luigi Lunewalker Instagram: @ljlunewalker Escritor de terror e suspense, fascinado por creepypastas, literatura e grande fã de Gaiman e King.

Raimundo Silva wyxisze52@gmail.com @nuvem_poesia Meu nome é Raimundo Paulino da Silva (52 anos) , porém assino minhas obras como Raimundo Silva. Acho que esse "Silva" traz um sen do mais amplo e familiar porque tem esse tom comum em dezenas de sobrenomes brasileiros. Nascido em Minas Gerais, vim para Campo Grande (MS) aos sete anos acompanhando a família que veio trabalhar aqui. Passei a infância com os meus avós e acredito que a convivência com o meu avô (um bom contador de histórias) tenha me influenciado no fazer literário. Dedicome a poesia desde os dezesseis anos e aos contos e romances desde os trinta.

Paulo Gilberto paulo_gilberto4@hotmail.com Sou mais um amante possessivo da música, do cinema e da literatura, paixões quase patológicas que engendram a sucessão dos meus dias nessa vida terráquea mul polar.

Vini Willyan Instagram: @viniwillyan Poeta e a vista cultural. Autor do livro Retalhos (poesia) e organizador da antologia Cromossomos Literatura LGBTQIA+ no MS. Par cipou de antologias e revistas diversas, e publica regularmente no Instagram @viniwillyan.


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