1895 - Antes dele, o mundo era diferente
1895 - Antes dele, o mundo era diferente Baseado no Livro “Curso de Psicanálise” De Alberto Tallaferro
Compilado por Felix J Lescinskiene 2014 1
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Apenas uma razão de ordem histórica e de respeito pela cronologia dos êxitos e fracassos da vida de Sigmund Freud enquanto pesquisador explica o fato de neste texto se tomar a histeria como ponto de partida para o estudo do patológico e do normal para a psicanálise. Enfermidade como tantas outras, desvanecida pelo tempo e refugiada sob diversas formas de expressão, a histeria foi talvez o primeiro mal para o qual os médicos de uma época passada não puderam encontrar uma explicação totalmente somática. Em nome do rigor científico a que estava preso, Freud não pôde aceitar nada do que se dizia para explicar a histeria, sobretudo quando uma grande parcela dos argumentos e razões pecava pelo desconhecimento de indiscutíveis fatores fisiológicos. O fato é que a histeria foi o mal que permitiu a Freud ir ligando os primeiros elos na enorme cadeia que o levaria a assentar as bases da psicanálise. A “grande histeria” do século passado, que se manteve com suas notáveis características até o início deste século, comportava uma mobilização geral e aguda de sintomas e motivações, sendo lógico então que a psicanálise começasse a desenvolver-se por esse caminho.
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A história documental da histeria começa nos primeiros escritos médicos e filosóficos. Na antiga Grécia, a filosofia incluía a medicina em seus domínios. A maior parte dos doentes daquilo que na época se conhecia como “mal de Hércules” e as célebres pitonisas de Delfos, que em meio a horríveis convulsões e gritos estridentes profetizavam o futuro de quem as consultavam no Templo de Apoio, não eram, na realidade, mais do que pessoas histéricas. Hipócrates foi o primeiro a tentar explicar tais manifestações de um modo natural, vinculando-as a um deslocamento do útero, histeron em grego, donde o nome histeria. Para ele, em suma, tratava-se de uma anomalia de tipo ginecológico, concepção essa que, com algumas variantes, dominou a clínica e a terapêutica da histeria até o século XIX. Os médicos do Egito e de outros povos primitivos do Oriente Próximo também acreditavam que a matriz era um órgão bicorne que podia deslocar-se no interior do corpo até obstruir todas as entradas de ar. Platão, contemporâneo de Hipócrates, nascido em 427 a.C., sustentava essa mesma teoria, e no Timeu atribuiu a Sócrates a seguinte definição: 3
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“A matriz (NT. A Matriz aqui tem significado de útero) é um animal que deseja ardentemente engendrar crianças. Quando fica estéril por muito tempo, depois da puberdade, aflige-se e indigna-se por ter de suportar semelhante situação e passa a percorrer o corpo, obturando todas as saídas de ar. Paralisa a respiração e impele o corpo para extremos perigosos, ocasionando ao mesmo tempo diversas enfermidades, até que o desejo e o amor, reunindo o homem e a mulher, façam nascer um fruto e o recolham como de uma árvore.” Essa teoria antecipa, em certa medida, o aforismo psicossomático segundo o qual “uma vida sexual insatisfeita pode provocar uma neurose”. Mas essa mesma suposição leva ao erro tão difundido de se acreditar que o casamento é uma cura para as mulheres histéricas e que se uma histérica for casada livra-se do mal tendo um filho. A experiência demonstrou que ocorre justamente o contrário, o que se compreende quando se estudam os conteúdos profundos da doença. Quatro séculos e meio depois de Hipócrates, sem retirar à matriz toda sua importância na etiologia da his4
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teria, Galeno, no ano 170 de nossa era, qualificou de absurda a opinião de Hipócrates e Platão. Seus conhecimentos mais profundos de anatomia demonstraram-lhe que o útero não podia deslocar-se constantemente desde a vagina até o apêndice xifóide. Em contrapartida ele suspeitava que a histeria fosse provocada pela retenção do sangue menstrual ou do sêmen feminino, pois na época se acreditava que a mulher ejaculava sêmen como o homem. No século IX, um médico árabe, Serapião, disse que os distúrbios histéricos não eram devidos à retenção do sangue menstrual mas à continência sexual, pois só encontrara essa afecção em mulheres solteiras ou viúvas. Posteriormente, outros médicos árabes, entre eles Rhazes e Avicena, por volta de 1030 negaram que o útero fosse um animal errante e explicaram a etiologia da histeria por vapores tóxicos, de origem uterina, ou digestivas, procedentes do fígado ou do baço, e que atacavam o cérebro. Durante toda a Idade Média, de 476 a 1453, ocorre com a histeria o mesmo que aconteceria com tantos outros aspectos da atividade humana: atribuiu-se a ela 5
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um valor demoníaco idêntico ao que lhe conferiu o Corão, que apresenta os distúrbios psíquicos ou nervosos como obra da influência do demônio. Entretanto, na Idade Média o conceito da histeria inspira-se na medicina antiga. Ora é atribuída a um deslocamento da matriz, ora à ação de vapores tóxicos de origem genital, mas sempre domina como fator causal, a intervenção do demônio. Só com a Renascença a histeria deixa de ser um tema teológico para voltar, com toda a justiça, ao campo da medicina. A partir de 1500, os médicos, liberados do conceito de demônio, voltam a considerar a histeria do ponto de vista somático e vêem nela “uma sufocação por deslocamento da matriz”. Fiéis às descrições de Hipócrates e Platão, ocupavam-se em relacionar ou interpretar os casos que iam observando. A terapêutica a que se recorria durante o Renascimento para a cura do mal era extremamente pitoresca. Baseados no conceito de que o útero se deslocava, imaginaram que para atrair a matriz para o lugar dela o melhor era fazer a doente aspirar maus odores (chifre queimado, substâncias pútridas, amoníaco, urina e fezes humanas) e colocar-lhe na zona vaginal odores agradáveis (âmbar, tomilho, láudano ou noz-moscada, 6
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fervidos em vinho). Acreditavam que, por esse meio, obrigariam a matriz a abandonar as partes superiores malcheirosas e a descer, a fim de aspirar aos requintados aromas que se encontravam mais abaixo. Não eram esses, porém, os únicos remédios a que se recorria no século XVI como terapêutica e prevenção contra a histeria. Inúmeros outros costumes foram utilizados no decorrer da historia da histeria com a utilização de pedras atadas ao corpo, chás, poções e pomadas especiais, entre outros métodos. O Maestre de Platea, da escola de Salerno, preconizava no século XII a indicação aos histéricos que se masturbassem. Remanescentes dessa terapêutica renascentista mantêm-se ainda na nossa época. Não faz muito tempo, era comum encontrar na bolsa de qualquer solteirona ou viúva jovem um vidrinho de sais. Também era prática corrente nos turnos dos hospitais pressionarem até a dor os seios das histéricas ou indicar-lhes que se masturbasse, tal como sugeria o Maestre de Platea.
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Em finais do século XVI e início do XVII, além das causas físicas, tais como as hemorragias e as infecções, começaram a serem considerados os fatores emocionais, mas apenas como causa desencadeante, num terreno que continuava vinculando o mal ao deslocamento ou a vapores tóxicos de origem uterina. Alguns médicos já não vacilavam em afirmar que os sintomas considerados vulgarmente como efeitos da possessão demoníaca eram, na realidade e por seu agrupamento, perturbações geradas por uma única doença. Suas explicações eram de caráter fisiológico: a bola — chamada de globus hystericus — que as pacientes sentiam subir do estômago até a garganta era devida, segundo eles, a uma irritação dos plexos mesentéricos, cujas contrações retiravam a parte inferior dos hipocôndrios, que pareciam elevar-se e causar aquela sensação estranha. As dores insuportáveis e a contorção abdominal eram devidas à contração e convulsões violentas dos intestinos. O riso espasmódico e a dificuldade respiratória eram produtos de contrações do mesmo tipo no diafragma. Nas descrições da histeria, nessa época, aparecia com destaque o espasmo, distúrbio de ordem mecânica. 8
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Mas, à medida que as observações iam ficando mais precisas, a histeria foi perdendo aos poucos seu tom de mistério. Alguns médicos descartaram a teoria “oficial” dos humores; mas, na realidade, eram poucos e seu prestígio não compensava a quantidade. Em 1616, Charles Lepois, médico francês, rompeu com todas as idéias tradicionais e desculpou-se por estar em aberta contradição com tantos homens de saber; explicou que sua experiência prática e documentada obrigava-o a sustentar que o útero não entrava nessa questão, que sua importância estava inteiramente descartada, e eram os nervos que dominavam o panorama histérico. Disse Lepois: “A retenção do sangue menstrual deve ser considerada uma lenda, pois a histeria existe em meninas que ainda não menstruaram, em virgens que não menstruam mais e em mulheres cujos períodos menstruais são abundantes, a ponto de eliminarem até oito litros de sangue, e isso para não falar nos homens.” Depois atribuiu a enfermidade a um distúrbio das serosidades, que distenderiam a origem dos nervos, so9
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bretudo os medulares e os do sexto e sétimo pares. Do ponto de vista clínico, reconheceu a histeria masculina e a infantil, fazendo uma descrição correta das perturbações sensoriais premonitórias do ataque, como obnubilação da vista e do ouvido, perda de voz e opressão nas têmporas; observou a paralisia dos membros superiores e inferiores e também notou que os tremores eram fenômeno precursor da paralisia histérica. Mas, fundamentalmente, desde o século XVII até a Revolução Francesa e início da era contemporânea, manteve-se em plena vigência a teoria de que a histeria era provocada por vapores fétidos desprendidos pela matriz em virtude da decomposição do sangue menstrual e do suposto sêmen feminino. Em 1768 chegou a Paris o médico alemão Franz Anton Mesmer (1734-1815), que tinha “descoberto” alguns anos antes, em Viena, o magnetismo animal. Mesmer tem uma importância indireta na história da histeria, pois, embora não se dedicasse deliberadamente ao estudo desse mal, quase todos os seus pacientes sofriam dele.
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Com seus experimentos, ele deu o primeiro passo para a descoberta da hipnose, o que o levaria subseqüentemente à psicanálise. Sem o saber, Mesmer trabalhava ativamente com a sugestão, através da transferência que só com o advento da psicanálise foi compreendida e racionalmente utilizada. Enquanto ele discutia com os membros da Academia Francesa, um discípulo seu, o conde Maxime de Puységur, esclarecia em 1784, de forma definitiva, a existência do mecanismo hipnótico. A conseqüência positiva das observações de Puységur é ele ter introduzido uma primeira diferenciação no conceito de psiquismo e ter permitido a compreensão de que os fenômenos psíquicos, mesmo os mais simples e espontâneos, obedecem a causas predeterminadas. Pode-se dizer que o começo do século XIX foi funesto para a evolução do conceito científico da histeria. Em 1816, Loyer-Villermay publica o seu “Tratado das enfermidades nervosas e vaporosas, e particularmente da histeria e da hipocondria”. Esse trabalho teve uma influência nefasta entre os médicos, pois ele cai no mesmo erro de Galeno e Hi11
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pócrates ao sustentar a existência do esperma na mulher e ao admitir como causa etiológica da histeria o deslocamento do útero e as sufocações. Loyer-Villermay volta a apresentar a histeria como uma afecção vergonhosa e as mulheres vítimas desse mal como objeto de piedade ou desagrado, ao mesmo tempo negando e combatendo de forma encarniçada a existência da histeria masculina. Briquet afirmou, com inteira justiça, que o tratado de Villermay mais parecia obra de 1500 do que de 1816. Em 1830, na Inglaterra, o Dr. Brodie publicou um livro sobre Afecções nervosas locais, citando nas páginas dedicadas à histeria conhecimentos que seus contemporâneos em grande parte ignoravam. Não só admitiu com Sydenham a histeria masculina como, ao referirse à sua etiologia a propósito da coxalgia histérica, disse: “Não são os músculos que não obedecem à vontade, mas é a própria vontade que não entra em ação.”
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Aqui começa a gestação da Psicanálise Freudiana Assim chegamos ao ano de 1862, em que Charcot passou a se encarregar da seção de histeria na Salpêtrière. Graças aos seus trabalhos, o histerismo começou a ser considerado verdadeiramente como uma afecção nervosa. Completando as preciosas descrições de Briquet, Charcot analisou o grande ataque de histeria convulsiva, distinguindo nele quatro fases: A primeira, epileptóide; A segunda, das convulsões e dos grandes movimentos; A terceira, de atitudes passionais; E a quarta, do período delirante. Com essa investigação de alcance tão amplo, Charcot deu uma contribuição realmente inestimável para o conhecimento do ser como um todo. Anos mais tarde, baseando-se no resultado dessas investigações, Janet (1859-1942), Breuer (1842-1925) e Freud (1856-1939) desenvolveram suas teorias da neurose, que num certo aspecto coincidiam com o conceito medieval dessas afecções, substituindo apenas o “demônio” por uma fórmula psicológica, que segundo Melanie Klein é “o objeto mau, perseguidor”. 13
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Nos tempos de Charcot a histeria manifestava-se com suas quatro fases perfeitamente definidas. A sua apresentação era evidente, mas, com o passar do tempo, suas formas modificaram-se. Atualmente é raro encontrar um caso de grande histeria, o que levou muitos médicos a pensarem que o mal tinha desaparecido. No entanto, o que acontece é que o aspecto formal da histeria se modificou. O vocabulário da alma sofreu mudanças com o correr do tempo, como as que se produziram em todos os idiomas. Houve transformações, tornou-se mais refinado ou mais rústico, segundo o nível cultural atingido nesse momento pela própria civilização. Para Grasset (1849-1918), a histeria não é uma doença mental, mas psíquica. Chega a essa conclusão baseando-se na dissociação da atividade psíquica em duas formas de psiquismo: Superior ou consciente e Inferior, poligonal ou automático. Ele distingue os fenômenos psíquicos dos fenômenos mentais. É psíquico todo ato cortical que implique
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pensamento, intelectualidade. Todo o córtex é psíquico. Em 1893, Breuer e Freud publicaram um estudo preliminar sobre “O mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos”. Em 1895 era publicado o livro Estudos sobre a histeria e, com ele, lançavam-se as bases da concepção psicanalítica.
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1895 Por último, surge de forma destacada o conflito sexual associado ao conceito psíquico da histeria, e é então que Breuer não o sustenta e Freud fica sozinho. Centenas de anos foram necessários para unir dois conceitos que, num dado momento, chegaram a ser paralelos e que, se unidos, teriam permitido compreender e tratar muito antes essa neurose.
E assim, começa o desenvolvimento do movimento psicanalítico Estão aqui os restos mortais de um homem de quem se pode afirmar que, antes dele, o mundo era diferente. Palavras de Stefan Zweig no ato de sepultamento de Sigmund Freud, em Londres.
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