(des)conhecidos cotidianos, processo polifônico - Trabalho Final de Graduação FAU-MACKENZIE

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São Paulo 2017

Letícia Becker Savastano

Letícia Psicogeografia Becker Savastano Puga Frankenstein O ovo O meu e a galinha quintal Katia Bela Zumthor Canton Vista Transposição 9 deMarta Julho Lina Michel Bo Foucault Rogers CidadesConstant rebeldes Foucault Deleuze Michel Félix De Archigram Certeau Deleuze Vidler Psicogeografia Guattari Mil Platôs Krista Implantação Jacques Clarice Dicionário Rancière Berenstein Paola 9 dePaola Julho Elogios à inutilidade Koolhaas São Paulo Amor Avanhandava Félix Lipovetsky Mil Platôs Cultura-mundo Guattari Junkspace Campo ampliado da Fotoinserção arquitetura Zumbi Perdoando a Deus Júlio Estranhamento Bela familiar Vista Cidade polifônica Judith Complexidade e contradição Trapeiro Hodos-metá Archigram Angelo Georges Peter NãoPraça Perec lugar Homo ludens Monumento Berenstein contínuo Kastrup Canton Escóssia Derrida Intervanção Michel Foucault Bela Vista

(des)conhecidos cotidianos

Manu Ricardo Angelo Luis Silva O meu quintal Lefèbvre Perec Michel De Cearteau Foucault Perec Campo ampliado Deleuze Edifício escada Tuca Júlio Michel Bela Vista De Certeau Diagrama Judith Deleuze Complexidade e contradição Guattari Escóssia Mil Platôs SõoMichel São Paulo Cpmsolação Foucault Jacques Rancière Letícia Paola Becker Julio Savastano Bela Vista Cortázar Foucault Godinho Manoel Lima Barros Desnível Marta Guy SãoMichel Paulo Intervenção Foucault Debord Cidades rebeldes Clarice Deleuze Ovo Félix Galinha Archigram Mirante Paola 9 deVidler Julho Consolação Psicogeografia Roosevelt Michel Krista Marc Clarice Augé Dicionário Lispector Júlio de MesquitaPaola Filho Rem 9Koolhaas de Julho Elogios à inutilidade Gilles São Paulo Félix Lipovetsky Mil Augusta Platôs Jean Guattari Puga

Uma memória de muitas vozes contada por uma estudante de arquitetura e urbanismo. ¶ Estudante, sempre. ¶ Aqui ela experimenta um método e já adianta: seu objetivo é pensar (o que nem é coisa assim, tão à toa), especular. ¶ Para tanto, ela conta com a leitura de outras vozes possíveis. ¶ Gostamos é do voo.

(DES)CONHECIDOS COTIDIANOS

PROCESSO POLIFÔNICO

Manu Ricardo Passos Kastrup Luis Silva Lefèbvre Escóssia Michel éDe maior Cearteau que o mundo Gilles Perec Deleuze Tuca Edifício escada Michel Guattari Tempo De Certeau e memória Rizoma Deleuze Diagrama Guattari Júlio de Mesquita Filho Mil Cidades Platôsinvisíveis São Sõo Paulo Cpmsolação Bela Jacques Vista São Wisnik Rancière Paulo Jacques Ab’Saber Paola Angelo Bela Julio Vista Georges Cortázar Claude FoucaultLévi-Strauss Manoel Manoel Desnível Barros São Guy Barros Paulo São Intervenção Paulo Clarice Perdoando Lispector a Deus Augusta Clarice Katia Ovo Consolação Mirante Galinha Paola 9 de Julho Consolação Roosevelt 9 de Julho Michel Hodos-metá Ana Marc Augé Gabriela Lispector Júlio de Mesquita Filho Marta Rem Koolhaas Letícia Cidade Gilles errante Savastano Félix Augusta Raquel Lipovetsky Serroy Rosa

processo polifônico

Passos Letícia Kastrup Puga Escóssia Frankenstein Michel O ovo e a galinha Foucault Zumthor Gilles Lina Transposição Deleuze 9 de Julho Bo Rogers Guattari Constant Tempo e memória Foucault Rizoma Michel JúlioCerteau de Mesquita Filho De Archigram Cidades Deleuze Invisíveis São Guattari Paulo Mil BelaPlatôs Vista Wisnik Psicogeografia Implantação Jacques Ab’Saber Rancière Angelo Berenstein Georges Paola Koolhaas Claude Lévi-Strauss Gilles Avanhandava Manoel Félix Lipovetsky Barros Cultura-mundo Katia Junkspace Zumbi Augusta Fotoinserção Clarice Perdoando a Deus Consolação Estranhamento familiar Cidade Paola polifônica Trapeiro 9 de Julho Archigram Roosevelt Ana Peter Gabriela Não lugar Praça Lispector Homo ludens Monumento Lima contínuo Canton Letícia Derrida Becker Savastano Michel Masterplan Amor Vista

Faculdade de Arquiteura e Urbanismo

Universidade Presbiteriana Mackenzie


(des)conhecidos cotidianos processo polifônico

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Letícia Becker Savastano

(des)conhecidos cotidianos processo polifônico Memorial da experimentação metodológica em baixio do viaduto Júlio de Mesquita Filho na Avenida 9 de Julho, São Paulo Profª Drª Ana Gabriela Godinho Lima Orientadora 2017 São Paulo


Dedico este exercício ao ovo

“Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido […] O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe. […] Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. ¶ Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. — Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. — Será que sei do ovo?” Clarice Lispector, O ovo e a galinha


Agradecimentos

Resumo

Este processo é polifônico, um trabalho em com todas nossas diferenças, meu alicerce; as equipe. Foram muitas e incontáveis as vozes novas e novos amigas e amigos com os quais que compuseram essa memória aqui orquestra- realizo infinitas trocas e aprendo sempre; à da. Começo agradecendo à cidade de São Paulo. equipe da editora Monolito, ambiente onde Agradeço, também, as pessoas que me ensi- me apaixonei cada dia mais pela arquitetura. naram, com suas paixões, a me apaixonar. AgraUm agradecimento especial ao Reinaldo deço por todos os diálogos que tivemos e novos Higa, sem o qual o trabalho nunca teria sido. olhares que surgiram; agradeço as professoras Não só pela diagramação, realização do projeto e professores, em especial à Ana Gabriela Go- gráfico e leitura dos textos, mas por todo seu dinho Lima, que com sua orientação precisa envolvimento e por nossas conversas e devatornou possível a expressão deste pensamento. neios diários. Agradeço especialmente, também, Ao professor Valter Caldana por sua confiança à Keiko Nakashima. Grande Amiga, portanto, e estímulo em ideias incertas, cuja presença foi interlocutora de maior ressonância possível. fundamental para a materialização deste exer- Agradeço profundamente por toda sua ajuda, cício. Agradeço também ao professor Igor Gua- disponibilidade, apoio, paciência e estímulo às telli, que foi meu orientador de IC, onde iniciei (e identificação com) minhas estranhezas. esse pensamento; e aos professores presentes A maior gratidão à minha família, minha em minha banca, Maria Isabel Villac, Ricardo mãe e meu pai, Cássia Becker e Holmer SavasLuis Silva e Volia Kato, por toda sua generosi- tano. Eles que me ensinaram o que é gratuidade com o saber. dade e me mostram, diariamente, a existência Agradeço também ter encontrado com do amor incondicional. Sem ela e sem ele eu Raica Moterle durante meu intercâmbio no nunca seria. Porto, futura psicóloga que me contou sobre Agradeço a todos que, por graça e carinho, cartografias psicogeográficas; às minhas qua- compuseram essa memória comigo. Que contro amigas pirassununguenses que compõe, tinuemos sempre assim, juntos.

Este trabalho é uma experimentação e regis- This work is about an experimentation and tro de um possível método de intervenção ar- registration of a possible method aiming an quitetônica em espaço público. A situação do architecture intervention in a public space. This espaço a se intervir é um território de trans- space is located in a transposition of geographposição de cotas de nível na região central da ic gap with parts under a viaduct, in the central cidade de São Paulo com trechos em baixio de zone of São Paulo city, Brazil. It’s a piece of city viaduto, porção urbana que sobrou do plane- left over from the high-road urbanism plan. jamento rodoviarista paulistano. The assumed method is the “researchO método adotado é o da pesquisa-inter- intervention” one and the goal of the exercise venção e o objetivo do exercício é uma constante is a continuous speculation of the metropoliespeculação sobre a complexidade metropolita- tan complexity. This thinking exercise adopts na. Para esse exercício do pensar, é adotada uma a multifaceted and interdisciplinary reading visão interdisciplinar e de múltiplas escalas. that considers multiple scales. Em três atos, apresenta-se a memória In three acts, the work presents a memconstruída de forma não linear. O primeiro ory built in a nonlinear way. The first is the é o reconhecimento do lugar com visão ma- recognition of the place with a macro (urban cro (estudos urbanos) e micro (registros etno- studies) and a micro (ethnographic studies) gráficos). O segundo ato apresenta o alicerce vision. The second one shows the foundation do exercício. Reúne referências conceituais of the exercise speech. It brings together con(com pensamentos na área de arquitetura, fi- ceptual references (with diverse thoughts from losofia, antropologia e literatura) e imagética architects, philosophers, anthropologist and para ilustrar desejos e ambiências. Por fim, o literates) and visual references to illustrate terceiro ato apresenta como se materializou desires of certain ambiences. At last, the third todo discurso em arquitetura e a busca do act presents how all the discussion shows up artifício. in architecture and the pursuit of the artifice. A partir de uma visão multifacetada, assuWith multifaceted points of view, we me-se o inesgotável deste trecho urbano, que adopt the inexhaustible feature of this urban é para essa pesquisa uma alegoria da cidade stretch that represents, to this work, an allegory de São Paulo: fonte interminável de questiona- of São Paulo city: an endless source of questionmentos, incômodos, estranhamentos e afetos. ing, doubts, uncanny and affection. As contradições não são anuladas e a inThe contradictions are not nullified and the tervenção propõe uma nova situação aos mo- intervention proposes a new situation in a symdos de uma simbiose com a cidade, palco de biosis condition with the city. A new stage of ações e aberta a ressignificações dos cidadãos. actions and open to resignifications of citizens.

Palavras-chave: arquitetura, pesquisa-intervenção, São Paulo, metodologia de projeto, cartografias

Abstract

Keywords: architecture, research-intervention, São Paulo, project method, cartographies


´ Sumario

Segundo Ato

34 36

50

Banal, trapeiro e psicogeografia

Futurismo e megaestruturas da década de 1960

40

54

Cotidiano, táticas, máquinas, sedução, corpos e espetáculo

Entre, outros e não lugares

48 Epifanias Claricianas, anomia e estranhezas estranhas

58 Junkspace, o genérico e a cultura-mundo 62 Pensando através de imagens

Introdução

12

Introdução Teórica

14 16

A pesquisa intervenção: metá-hodos ou hodos-metá? Do reconhecimento ao estranhamento

Terceiro Ato

66 68

Conclusão

92

Referências de imagens

72

Primeiro Ato

20 22

Macro: Escala 1:2000 36 Micro: Escala 1:100

74 Plantas 84 Fotoinserções

Referências bibliográficas 98

Descritivo da intervenção

Diagramas

94

Crônicas

100


“A rua que eu acreditava fosse capaz de imprimir à minha vida giros surpreendentes, a rua, com as suas inquietações e o seus olhares, era o meu verdadeiro elemento: nela eu recebia como em nenhum outro lugar, o vento da eventualidade.”

André Breton, Les pas perdus


Introdução “É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi Da dura poesia concreta de tuas esquinas […] Da força da grana que ergue e destrói coisas belas Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva” Caetano Veloso, Sampa

O objetivo deste trabalho é a experimentação A pesquisa explicita, então, um processo de um possível método de intervenção arqui- projetual (teórico-prático) documentado e protetônica em espaço público e registro do pro- move um retorno à leitura apaixonada — e apaicesso de materialização da pesquisa. xonante — da cidade feita pelos situacionistas, A situação do espaço a se intervir é um ter- esbarrando em otimismos disfarçados de utoritório de transposição de cotas de nível na re- pias cínicas futuristas, sem negar a realidade gião central da cidade de São Paulo com trechos econômica e midiática da contemporaneidade. em baixio de viaduto, porção urbana que soApesar da organização que agrupa três brou do planejamento rodoviarista paulistano. grandes atos, estes não são, necessariamente, Seguindo a metodologia de pesquisa-in- sucessivos. O trabalho assume a inesgotabilidatervenção, o trabalho se divide em três atos. O de deste trecho urbano e se dissolve em procesprimeiro é o reconhecimento físico da área. O so rizomático, quase esquizofrênico. Talvez uma segundo constrói um arcabouço de referências expressão do que é a cidade? Poderia ser este conceituais e imagéticas para sustentar o ato pequeno trecho uma alegoria da cidade de São de intervenção a partir de uma visão multifa- Paulo, em sua heterogeneidade, polifonia, cacetada da arquitetura e de seu relacionamento madas e inexauríveis banalidades e cotidianos? com a cidade. O terceiro ato ilustra o projeto Para o exercício, retoma-se a dimensão resultante do processo. corporal na cidade, além de considerar contraOs recortes conceituais, interdisciplinares, dições e complexidades do papel da arquitetura ampliam o campo de interlocução: além de ar- perante a vida urbana na contemporaneidade, quitetos e arquitetas, críticos e historiadores da como por exemplo: a passagem/movimento e arquitetura, são consultados pensadores como o desejo de estar/enraizamento, as especificiMichel de Certeau, filósofos como Michel Fou- dades e o genérico, o efêmero e o consolidado, cault, Deleuze, Guattari e Jacques Rancière; et- as megaestruturas e as micro intervenções, o nólogos ou antropólogos como Marc Augé; e espetáculo e o cotidiano, entre outros. Mas, até mesmo romancistas e literatos de Georges será possível, hoje, esse entendimento binário? Perec a Manoel de Barros e Clarice Lispector. E, desviando de entendimentos fatídicos, No campo da arquitetura, a principal cor- a pesquisa se interessa pelo processo e não rente a ser estudada concentra-se nas décadas pela finalidade. Processo que construirá uma de 1950/60, como os situacionistas, ou mesmo memória a qual convido o leitor a participar. seus conflitantes futuristas como Archigram. Assumamos a instabilidade e aleatoriedade da Trazendo a discussão para a contemporaneida- cidade como um jogo. Aleatoris vivenciada por de, se apoia principalmente na figura de Rem diversos aleatores. Koolhaas. Alea jacta est! 13


Introdução Teórica Este capítulo, a partir de uma introdução teórica, explicita quais foram os conceitos formadores da metodologia pela qual a apresentação deste trabalho se organizou. No caso, a pesquisa-intervenção e as cartografias psicogeograficas. ´

A pesquisa-intervenção: metá-hodos ou hodos-metá? Do reconhecimento ao estranhamento p. 16


A pesquisa-intervenção: metá-hodos ou hodos-metá? Do reconhecimento ao estranhamento Este capítulo visa explicitar a metodologia pela qual todo o trabalho se apoia, um processo de reflexão sobre a temporalidade urbana que se desenrola através de aproximações afetivas registradas por cartografias psicogeográficas1. O exercício do método é estruturado a partir do estudo Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (Passos; Kastrup; Escóssia, 2009) e se inspira em ideias situacionistas, por seu envolvimento apaixonado com a cidade e metodologia etnográfica de colagem e consideração da diversidade. Permite-se falar de situações afetivas, memórias construídas2 e reconhecidas. A orientação realmente experimental da atividade situacionista consiste em estabelecer, a partir de desejos reconhecidos com maior ou menor clareza, um campo de atividade temporária favorável a esses desejos. […] Cada um deve procurar o que ama, o que o atrai […] —, o que importa não é a estrutura individual de nosso espírito, nem a explicação de sua formação, mas sua aplicação possível nas situações construídas. Por esse método é possível fazer o levantamento dos elementos constitutivos das situações a construir: projetos para o movimento desses elementos. (Abreu, 2003: pp. 62–63) De maneira geral, o método compreende três grandes atos, que se apresentam como di1

A psicogeografia é apresentada no livro Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade (2003) como um estudo do meio geográfico que influencia no comportamento afetivo dos indivíduos. 2 Em Abreu (2003: p. 65), memória construída é o “momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos”.

ferentes escalas, sendo nomeados de acordo com sua grandeza. O primeiro ato, Aproximação, consiste na interpretação e na análise do lugar. Pode ser Macro, também chamado de escala 1:2000, referente aos grandes planos urbanos; ou Micro, comparável a escala 1:1, que acontece como um registro a partir de aproximações fenomenológicas resultando na construção de narrativas através de desenhos, fotos e textos. Para isso, o caderno de campo é o instrumento fundamental e é como os hypomnematas apresentados por Michel Foucault (apud Barros; Kastrup, 2009: p. 69), que “constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas […]”, isto é, apropriar-se das informações coletadas in loco como construção de um modus operandi. O segundo ato recebe o nome de Escala 1:7.000.000.000 (número que faz alusão à população mundial) e é dividido entre conceitual e imagético. O primeiro desenvolve uma conversa com interlocutores eleitos a partir de um recorte conceitual, com base no repertório construído durante a graduação para uma reflexão sobre a cidade contemporânea. O segundo constrói um painel de referências visuais a serem contemplados na concepção dos espaços arquitetônicos. Finalmente, o terceiro ato é o de Escala 1:100 eleita como mais apropriada para representar construtivamente o objeto arquitetônico proposto neste contexto. A proposta de intervenção é apresentada como um resultado de desejo construído durante os primeiros atos e que equilibra informações apreendidas e questionamentos levantados. * 1

16

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Introdução

A pesquisa-intervenção: metá-hodos ou hodos-metá? 1. Cadernos de campo da autora, os hypomnematas 2. O guia psicogeográfico de Paris, feito por Debord e Asger Jorn em 1957 3. O guia psicogeográfico de Nova Babilônia, feito por Constant em 1959

2

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Como materializar as intenções? Como poetizar o método? Como compor a partir da pesquisa? São apenas algumas das questões que instigaram o método de pesquisa-intervenção, que “pressupõe uma orientação do trabalho do pesquisador que não se faz de modo prescritivo, por regras já prontas, nem com objetivos previamente estabelecidos” (Passos; Barros, 2009: p. 17). Apesar da organização em três atos, o método não se desenrola — necessariamente — nesta ordem ou a partir de uma hierarquia cronológica. Dito isto, talvez seja mais adequado o termo hodos-metá. Como definem os autores em Pistas do método da cartografia (idem), o método tem seu sentido tradicional “re” e subvertido. Isto é, se no sentido tradicional define-se antes a meta e depois estudam-se os hodos — caminhos — para alcançá-la, o hodos-metá é o contrário: o próprio caminho é que traça as metas durante o percurso, que é passível de mudanças, interferências e ressignificações. É um processo aberto. Quando se fala da possibilidade de interferências deste hodos-metá, é oportuno lembrar o conceito de rizoma de Deleuze e Guattari3, onde os autores dizem que tudo pode e deve ser ramificado e conectado, opondo-se à estrutura piramidal e hierárquica das raízes arbóreas.

Este processo rizomático de encontros inesgotáveis com outras referências representa aproximações apaixonadas da cidade, quando simpatia e empatia são fundamentais. Confia-se na cidade. Simpatiza-se com a cidade. E é desta simpatia que se constrói o laço afetivo e se cria a empatia pelo outro. Alteridade, isto é, o reconhecimento da existência do outro na cidade e a busca pela hospitalidade incondicional — quase uma utopia de Jacques Derrida4 —, que quer dizer deixar o outro ser outro. […] É essa simpatia que permite ao etnógrafo entrar em relação com os heterogêneos que o cercam, agir com eles, escrever com eles. São essas também a proposta e a aposta da cartografia. (Pozzana; Kastrup, 2009: p. 57) Contudo, ao mesmo tempo em que se fala de uma confiança na cidade, é fundamental a desconfiança. Todo este processo requer uma atenção quase obsessiva quando a desconfiança é uma força motriz. O estranhamento e desconfiança vêm do estado de alerta — do estar sempre à espreita, como explicitado por Deleuze em seu Abece4

3 Fala-se do conceito de rizoma a partir do volume um de Mil Platôs (dos cinco), escrito por Gilles Deleuze e Félix Guattari, publicado em 1995. 18

A leitura de hospitalidade de Jacques Derrida foi feita de seu livro com Anne Dufoumantelle e apoio da Revista Cult nº 195 (pp. 30–33). A hospitalidade pressupõe a alteridade, reconhecimento do outro que, ao aceitar diferenças, rompe com estruturas de definições apriorísticas “deixando o outro ser o outro”.

dário5, para permanecer aberto à percepção do outro e das infinitas existências do lugar. Estranhamento causado pela surpresa e descobertas do desconhecido de modo a não se acomodar na ideia de já conhecer o lugar. É como um estranhamento familiar. * Em trecho retirado do trabalho de iniciação científica A arquitetura e a ação criativa/emancipatória do sujeito na contemporaneidade (Savastano, 2015), retoma-se o conceito de estranhamente familiar, lembrado por Anthony Vidler com Uncanny. […] O estranhamente familiar na arquitetura revela sua estrutura profunda de um modo mais que analógico, demonstrando um deslizamento inquietante entre o que parece familiar e o que definitivamente é ao mesmo tempo familiar […], é inevitável que o estranhamente familiar exponha os angustiantes problemas de identidade do eu, do outro, do corpo e de sua ausência […]. (Vidler, 1990: p. 619) 5 O Abecedário de Gilles Deleuze é uma realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. Tradução e Legendas: Raccord (com modificações). O filme foi gravado em 1988–89 e publicado em 1994–95 e foi consultado a partir da dissertação de mestrado Uma Odisséia Paulistana: uma documentação retroativa sobre o São Vito (Silva, 2008).

Segundo Vidler, o estranhamente familiar nos causa um sentimento de inquietação e medo, devido ao fato de não se prever o porvir de um espaço (estranhamente) familiar, de modo a provocar pensamentos confusos de já conhecer, sem mais conhecer, muitas vezes associado a uma perda de limites entre o real e o imaginário. O autor aborda o Uncanny como característica da projeção corporal (corporificação na arquitetura), expressão do movimento, e ainda associa a fragmentação da arquitetura a uma fragmentação do corpo humano, à mutilação, logo, ao terror/sinistro. Percebe-se, portanto, o espaço como causador de medo e alienação. Seria sempre o espaço a causa de tantos receios? O Uncanny cai constantemente em discursos ambíguos. Contudo, é citado aqui para ressaltar a característica e a capacidade do local de intervenção de ser modificado e estar sempre se (re)programando, causando em seus usuários a sensação de conhecê-lo por um lado, mas por outro, desconhecê-lo. Ou seja, provoca a sensação de desconhecer o que já se supõe conhecer graças à constante “movimentação” e à modificação sofrida por tais espaços, abrigando diferentes atividades de maneira positiva. Portanto, o estranhamento familiar, em sua constante movimentação e re-interpretação, é a parte fundamental no processo de desenvolvimento deste hodos-metá. 19


Primeiro Ato Aproximação Macro: Escala 1:2000 p. 22

Neste ato é feita a apresentação e a aproximação do local de intervenção em duas escalas: Macro e Micro. A primeira investiga o desenho urbanístico idealizado para ´ a grande area e a formação dos ´ eixos viarios; a segunda volta seu olhar para o negativo deste desenho, a sobra.

Micro: Escala 1:1 p. 26


Macro Escala 1:2000

O viaduto Júlio de Mesquita Filho localiza-se Para Maia, o crescimento é um aspecto essencial na região central de São Paulo, no bairro da da realidade paulistana, a ser organizado e articuBela Vista. É parte da ligação Leste-Oeste, dese- lado, e não um problema a ser contido; a própria nhado na década de 1950, e integra um segun- estrutura radial salienta a possibilidade de expando circuito perimetral do arcabouço viário das são permanente. (Campos; Somekh, 2008: p. 64) propostas do Plano de Avenidas. Define, junto ao canal do rio Tamanduateí, Elevado PresidenSegundo Malta Campos em O urbanismo de te João Goulart (Minhocão), viaduto Jaceguai colinas (2012), o planejamento urbano paulistae diversas ruas que convergem da estação da no (ou, para alguns, a ausência dele) acabou por Luz, o centro histórico. apagar os traços naturais da geomorfologia de Segundo Candido Malta Campos e Nadia São Paulo, que, como colocado por Aziz Ab’Saber Somekh em A cidade que não pode parar: planos (apud Bucci, 2010: p. 129), é uma cidade “que salurbanísticos de São Paulo no século XX (2008), po- ta de colina em colina”. Se a cidade paulistana demos entender a versão preliminar do Plano nasceu sobre uma colina, segundo a interpretade Avenidas desde as ideias de João Florence ção de Malta Campos pouco restou dessa fisiode Ulhôa Cintra com a proposta de organizar nomia após as intervenções desde 1850, agora o viário paulistano a partir de um esquema “cercada por viadutos e vias rápidas, sufocada radio-perimetral, em 1924–26. Tal conceito deu pelos arranha-céus […] sob uma topografia arorigem ao Plano desenvolvido pelo ex-prefei- tificial de concreto” (Campos, 2012: p. 137). to Prestes Maia, “um anel viário em torno do Atualmente, a região tem como aspecto centro histórico, expandindo a área central e uma sobreposição de vias elevadas de fluxo organizando a circulação” (Campos; Somekh, intenso. Acompanhando o pensamento de An2008: p. 61). gelo Bucci1 (2010), é bastante impressionante Interpreta-se que a principal “força mo- pensarmos que, nesta região, em cerca de 1050 triz” de Prestes Maia era o crescimento, espe- metros de percurso são transpostos três vales cialmente da área central, e, entre 1938–45, as diferentes. Neste trajeto só temos os “pés no grandes construções viárias foram a “pedra angular” de seu mandato, movido por um ímpeto 1 Ver sua tese de doutorado São Paulo, razões de arquitetura: expansionista. Da utopia, o testemunho são as da dissolução dos edifícios e de como atravessar paredes grandes parafernálias distópicas. publicada como livro em 2010. 23


Primeiro ato: Aproximação

Macro Escala 1:2000

A B

C

A. Praça Roosevelt B. Rua Augusta C. Viaduto Júlio de Mesquita Filho D. Rua Avanhandava E. Av. 9 de Julho

D

E

6 4

chão” durante 300 metros, os outros 750 caminhamos a vinte metros de altura!

5

4. Situação da área de intervenção 5. Versão final do perímetro de irradiação 6. Cena do filme metrópoles 7. Croquis de estudo sobre ocupação de quadra figura/ fundo

cidades brasileiras tendem a se organizar em função dos edifícios, e os espaços da cidade acabam por serem sobras; já no urbanismo espanhol, os edifícios é que se organizam ao redor de grandes praças. É uma questão de hierarquia e figura-fundo2. Se no urbanismo português os edifícios estão na situação de figura, para os espanhóis são o fundo da paisagem urbana. Wisnik discorre sobre esta ocupação para provocar a reflexão sobre o que fazer com essas sobras — espaços ignorados durante décadas, quando a atenção só era voltada para o desenvolvimento de estruturas carroçáveis. Hoje, contudo, o autor acredita que cada vez mais estas situações vêm se tornando foco de um conflito em nome do interesse público, levantando a necessidade de encontrar novos usos para estes lugares que sobram entre o resultado consolidado de ações utópicas do passado. Perguntamo-nos, então — com o perdão do trocadilho —, por onde andam os pedestres nesta história?

Quando, vindo pela avenida São Luís em direção ao Centro Velho, atravessa-se a rua da Consolação e desde ali há uma sucessão de viadutos: o 9 de Julho (trezentos metros) e o variante Major Quedinho (trezentos metros), ambos sobre o antigo leito do córrego Saracura ou a atual 9 de Julho; o viaduto Jacareí (duzentos metros), sobre o antigo leito do córrego do Bixiga; e, depois da rua Maria Paula (trezentos metros), o viaduto Dona Paulina (250 metros) e o variante Brigadeiro Luís Antônio (duzentos metros), sobre o antigo leito do Itororó. (Bucci, 2010: p. 121) Outra referência de configuração, segundo Malta Campos (2012), é a herança do urbanismo português na ocupação hierárquica. Na chamada cidade alta residiam os estratos dominantes, enquanto o comércio e as classes menos abastadas concentravam-se nas cotas inferiores. Ao falar do urbanismo na situação de colônia portuguesa, Guilherme Wisnik, em artigo para a Architectural Digest (Special Issue, 2016: p. 21), compara o urbanismo português ao espanhol. Seguindo o urbanismo português, as 24

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2 A ideia de figura-fundo é apresentada por Thomas L. Schumacher em seu texto Contextualismo: ideais urbanos e deformações, consultado no livro Uma nova agenda para arquitetura: antologia teórica (Nesbitt, 2008: p. 322). 25


Micro Escala 1:1

Enquanto a cidade foi se construindo a partir de suas grandes avenidas, e tendo elas e os objetos arquitetônicos como protagonistas, alguns espaços foram sobrando. E não poderiam ser estas sobras oportunidades de espaço público na cidade de São Paulo? Em Tentativa de esgotamento de um local parisiense (2016), Georges Perec se instala em lugares no entorno da praça Saint-Sulpice para registrar tudo o que acontecia ao alcance de seu olhar. Um voyeur urbano (Silva, 2016: p. 9) que “minusculariza a realidade”. Slogans que passam “Eu vejo Paris de ônibus” —Vejo o chão: pedra britada e areia […] —Um trecho considerável do céu (talvez 1/6 de meu campo visual) —Um bando de pombas que se lança de súbito sobre a praça central, entre a igreja e o chafariz […] Uma espécie de bassê […] O 96 vai a estação Montparnasse […] —Capa de chuva verde

—Um dois-cavalos azul […] A maior parte das pessoas tem pelo menos uma das mãos ocupada: carregam uma bolsa, uma pequena maleta, uma cesta, uma bengala, uma coleira no extremo da qual há um cão, a mão de uma criança […] —O 86 vai a Saint Germains de Prés […] —Pausa. Não há ninguém no ponto de ônibus. —Passa um 63. Passa um 96. […]1 Este trecho exemplifica uma das narrativas e demonstra que Perec não seleciona — conscientemente — o que vai registrar e o faz sem hierarquia, apresentando os fatos misturados a algumas de suas reflexões sobre essas banalidades. * Inspirado em Perec, e com o intuito de ter uma visão aprofundada sobre o local de intervenção, o hodos-metá adotado foi a produção de crôni1

Trecho retirado de Tentativa de esgotamento de um local parisiense (2016). 27


Primeiro ato: Aproximação

Micro Escala 1:1

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cas (pp. 100–109) que narram — ou imaginam —, por meio de diversas situações como o espaço, a partir da apropriação por seus atores sociais, foi se configurando e reconfigurando. O inútil coletado pode se fazer útil (ou não) na proposta de intervenção arquitetônica. […] Ao lançar um olhar curioso sobre a Cidade, distende o tempo e as coisas banais do dia-a-dia e traz à tona uma possibilidade de fazer a Cidade enquanto não se faz nada. (Silva, 2016: p. 7) No entanto, neste trabalho a abordagem se fez um pouco diferente à utilizada por Perec. Acontecimentos foram registrados e alguns fatos — registros de ações que não são grandes feitos (deixados de lado e sem muita significação) — foram selecionados (conscientemente) e costurados para contar uma história que explicite a atmosfera do local.

12 9

A literatura é feita de memórias e cada criador a trata de forma diferente, seja como um tempo perdido, mas que nunca acaba, seja na forma

8. Praça Roosevelt 9. Mercado pré-existente

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10. Floricultura pré-existente 11. Corredor entre Av. 9 de Julho e Avanhandava 12. Av. 9 de Julho

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Primeiro ato: Aproximação

Micro Escala 1:1

13. Fragmentos del plano em marmol dela Roma antigua, 1756 14. Fotomontagem com fragmentos do trecho de intervenção

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de um lugar, de um espaço delimitado por lembrança. Afinal, seria a memória uma questão de tempo ou de lugar? (Canton, 2009: p. 30) No livro Tempo e memória (2009), Katia Canton apresenta diversos autores que trabalharam, de alguma forma, a construção de memórias através das artes e dos personagens. Ela nos fala, por exemplo, do “narrador”, de Benjamin, como a figura de um trapeiro. “Movido pela pobreza, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder, nada ser esquecido […].” (Canton, 2009: pp. 27–28) Com suas diferenças, Claude Lévi-Strauss também temia pelo esquecimento. O francês realizou, entre tantas outras obras antropológicas relevantes, uma narrativa etnográfica romanceada sobre as sociedades indígenas brasileiras, intitulada Tristes trópicos (1955). Com o traço obsessivo de um etnógrafo, Lévi-Strauss é angustiado e entristecido ao se defrontar com uma infinidade de ações, atos e momentos que sabe não ser capaz de 30

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Micro Escala 1:1

15. Cadernos de campo da autora, os hypomnematas

registrar em sua totalidade. E, sem registros, desaparecerão. Compartilho com o antropólogo a mesma aflição, quando se diz prisioneiro de um viajante que não possui ainda o grau de humanidade com a sensibilidade necessária. Dentro de algumas centenas de anos, outro viajante, tão desesperado quanto eu, neste mesmo lugar, chorará o desaparecimento daquilo que eu teria podido ver e que não apreendi. Vítima como sou de uma dupla enfermidade, tudo o que vejo me fere, e censuro-me sem cessar não observar o suficiente. (Lévi-Strauss, 1955: p. 36) Por fim, gostaria de relembrar outro literato, poeta e “mestre das inutilezas […] [que] transforma minúsculas experiências cotidianas” (Canton, 2009: p. 29). Manoel de Barros recolhe palavras (quase como uma pesca) e objetos, tirando-as de sua aplicação convencional e sentido esperado. Ressignificadas, elas ganham nova vida em poesia. Nasci para administrar o à toa O em vão O inútil. Pertenço de fazer imagens. Opero por semelhanças.

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Retiro semelhanças de pessoas com árvores De pessoas com rãs De pessoas com pedras Etc. etc. Retiro semelhanças de árvores comigo. Não tenho habilidade pra clarezas. Preciso de obter sabedoria vegetal. (Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.) E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.2 As crônicas apresentadas (pp. 100–109) são peças de um processo de reconhecimento e entendimento mais aprofundado do espaço através da proximidade com seu principal agente, o usuário. Elas são instrumento fundamental deste hodos-metá projetual e da construção de uma memória. Buscou-se o registro de histórias banais que, sem o devido olhar, seriam esquecidas. São, muitas vezes, histórias de personagens marginalizados (ou ignorados), mas que muito dizem sobre o local. Estes fragmentos de pequenas narrativas do dia a dia foram tirados de seu contexto esperado a fim de ganhar nova vida como execução arquitetônica. 2 Trecho retirado do Livro Sobre o Nada (1996). 33


Escala

Segundo Ato

1:7.000 000.000 Banal, trapeiro e psicogeografia p. 36 Cotidiano, táticas, máquinas, sedução, corpos e espetáculo p. 40 Epifanias Claricianas, anomia e estranhezas estranhas p. 46 Futurismo e megaestruturas da década de 1960 p. 50 Entre, outros e não lugares p. 54 Junkspace, o genérico e a cultura-mundo p. 58 Pensando através de imagens p. 62

Este ato forma o arcabouço de informações que constrói a visão multifacetada (e por vezes contraditória em si mesma) para tratar de assuntos relacionados à contemporaneidade, de modo a ampliar o campo da arquitetura. Uma parte dessas informações são conceituais (com vozes da arquitetura, filosofia, antropologia e literatura) enquanto a outra é imagética. Juntas são instrumentos fundamentais para a proposta de intervenção.


Banal, trapeiro e psicogeografia

Com apoio da tese de doutorado de Ricardo Apreende-se ainda, no diálogo simulado Luis Silva, Elogios à inutilidade: a incorporação do em sua tese entre autores fundamentais da Trapeiro como possibilidade de apropriação e leitura filosofia, da sociologia e da literatura (no caso da Cidade e sua alteridade urbana (2017)1, este frag- de Georges Perec), uma interessante reflexão mento discorre sobre o conceito de cotidiano sobre o tema.2 Se para Lefebvre (1968: p. 26– e, a partir da figura do trapeiro, complementa 42) “o quotidiano é um campo e um processo, as ideias apresentadas no primeiro ato-micro. uma etapa e um trampolim, um movimento O cotidiano, composto por banalidades, composto de momentos, […] a soma das insigtem diversas possibilidades de interpretação. nificâncias”, Certeau (1974–78: p. 40) questiona Se são trivialidades, o que são trivialidades? O se não seria “uma maneira de pensar investida que é banal? Depende do observador? Depen- numa maneira de agir, uma arte de combinar de do ator (social)? Se de um ponto de vista indissociável de uma arte de utilizar”. compõe vida, de outros inexiste. Quantos dias Blanchot (1959) conclui que de tão inaca— quotus dies — são necessários para construir bado o cotidiano “[…] ele tem essa caracteríso cotidiano? tica essencial: não permite que seja dominaApesar das infinitas possibilidades de es- do. Ele escapa. Ele pertence a insignificância, peculações, para prosseguir, assume-se o co- e o insignificante não tem verdade […] é o tidiano conforme Luis Silva em sua pesquisa: lugar de todas as significações possíveis” enquanto Perec (1973: p. 24) clama pelo questioMais do que o espaço público, a vida cotidiana namento, é o campo espaço/temporal de realizações da vida humana, e como tal é entendido e assumi- questionar o que pareceria termos deixado de do nessa tese. É no cotidiano que encontramos nos surpreender para sempre. Vivemos, obviaos elementos desejados para a leitura proposta mente, respiramos, obviamente, caminhamos, de Cidade […]. É na vida cotidiana que encontra- abrimos portas, descemos escadarias, nos senmos possibilidades reais de alteridade, onde a tamos à mesa para comer, nos deitamos em sociabilização e encontro com o Outro acontece, uma cama para dormir. Como? Onde? Quando? ou deveria acontecer, agenciados pelo conflito Por quê? e estranhamento e não pelo apaziguamento e cordialidade. * 1

As citações do autor são apresentadas — em desconformidade com as citações no restante do trabalho — sem a referência de página, pois assim é apresentado no trabalho do autor por opções metodológicas.

2 Todas as citações são retiradas da tese de Ricardo Luis Silva.

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Segundo ato: Escala 1:7.000.000.000

Banal, trapeiro e psicogeografia

Saindo do campo da teoria, aproximar-se do cotidiano pode provocar o desejo de registro e originar a figura do trapeiro (mencionado no primeiro ato-micro), o grande tema da tese de Silva: Personagem tipicamente urbano, o trapeiro não possui muitas qualidades, suas características são básicas e pode ser representado desvinculado de algum gênero, idade ou raça. Trapeiro, trapeira, o pequeno trapeiro, o velho trapeiro, o trapeiro francês, o trapeiro chinês etc. (idem) E, finalmente, ao aproximarmo-nos e reconhecermos o cotidiano do outro, no desejo de registro e apreensão máxima possível, lançamos mão dos mapas psicogeográficos. Assim, “[…] reconhecemos mapas psicogeográficos nas narrativas cronofotográficas do cotidiano” (ibidem) e estes podem assumir várias formas, maneiras, espécies de representação:

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16. “Sobre as coisas comuns”, colagem produzida por Aline Barros, especialmente para o fragmento Cotidiano da tese de Ricardo Luis Silva 17. Croquis de estudo da área 18. Fotografia de Tuca Vieira, parte do Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores 19. Fotografia de Tuca Vieira, também parte integrante do Atlas fotográfico

podem ser mapas psicogeográficos de percursos, mapas psicogeográficos de arquipélagos de ambiências urbanas; mapas psicogeográficos etnográficos; mapas psicogeográficos temporais, intangíveis, invisíveis, sensíveis, mapas psicogeográficos catalográficos / […] de reinterpretação dos territórios geográficos, […] emocionais e relacionais de alteridade (indivíduo × espaço / indivíduo × indivíduo); […] projetivos, especulativos, imaginativos, representações de desejo, de futuro… (idem) * Recentemente o fotógrafo Tuca Vieira, em sua tentativa eterna e indefinível de registrar a realidade de São Paulo, lança-se em um projeto inesgotável intitulado Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores (2016). O título já provoca uma indagação: Como diferenciar São 38

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Paulo de seus arredores? É possível essa distinguibilidade? Como representar São Paulo? O que é São Paulo? São algumas perguntas que inquietaram o fotógrafo, e que nos inquieta no tocante dessa pesquisa. Então, a partir de um mapa predefinido que divide a cidade em quadrantes (um guia de ruas) — encontrado por acaso no banco de um táxi —, o fotógrafo se lança em uma “transversal do tempo” e se arrisca “pivete da cidade”.3 Sua ação também pode ser comparável à de um trapeiro explorando as fronteiras de uma cidade delirante4 como São Paulo, recolhendo suas características durante dois anos em registros. Nesta cartografia psicogeográfica em narrativa cronofotográfica, Tuca Vieira dá a mesma importância para situações e elementos urbanos triviais do cotidiano àqueles reconhecidos coletivamente monumentais. As cenas registradas são escolhidas com cautela a partir do método definido pelo próprio autor, e são feitas com somente uma — às vezes duas — fotografias por quadrante. Fazendo uso de câmera analógica de grande formato (4×5) montada sobre tripé, o próprio gesto é “antiquado”, descrito por Guilherme Wisnik (2016) como um “[…] ritual cênico, claramente anacrônico”. 3 Referências à musica interpretada por Elis Regina, com composição de Aldir Blanc e João Bosco. 4 Delirar no sentido de ir além do limite. Do latim, de remete a fora, ir além e lira o limite.

A ação de Vieira é simbolicamente eterna, para não dizer fracassada conforme as palavras do próprio fotógrafo, segundo Gabriel Kogan (2017). Seria falha se concretizada, o que se aproximaria ao mapa do império do conto Do rigor na ciência de Jorge Luis Borges, como comparou Kogan: […] essa incapacidade da representação se revela pelos cartógrafos que fizeram um ‘mapa do Império que tinha o tamanho do Império’, mas ‘as gerações seguintes decidiram que esse dilatado mapa era inútil’. O fotógrafo brasileiro parece ter adotado uma estratégia diferente dessa dos cartógrafos borgianos. A representação não se dá a partir da expansão exagerada na criação de novas imagens, e sim na seleção precisa de pontos de vista. O fracasso anunciado ganha então expressão e potência na experiência e no próprio processo de formulação de um método criativo, com tons científicos, para a empreitada incomensurável. (Kogan, 2017: p. 35) O resultado foi um conjunto de 203 fotografias que, em sua maioria sem pessoas, enfatizam seus rastros. Uma narrativa contada a partir de coisas, objetos, cores e latência de vida, onde o nada acontece. No silêncio, um intervalo. Eis o corte transversal do tempo. Perguntamos, então, mais uma vez: por onde andam as pessoas nessa cidade? 39


Cotidiano, táticas, máquinas, sedução, corpos e espetáculo

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A partir de Michel de Certeau, interpretamos que, muitas vezes, práticas cotidianas são práticas táticas. […] falar, ler, circular, fazer compras, preparar as refeições; outra grande parte “das maneiras de fazer”: vitórias do fraco sobre o mais forte (poderosos, doença, violência das coisas ou de uma ordem; pequenos sucessos, artes de dar golpes tanto poéticos quanto bélicos; se multiplicam com o esfarelamento das estabilidades locais. (Certeau, 1974: p. 47) Certeau defende práticas que produzem sem capitalizar e denuncia a leitura esvaziada “da televisão ao jornal, da publicidade a todas 40

as epifanias mercadológicas, a nossa sociedade canceriza a vista; o binômio produção-consumo poderia ser substituído por seu equivalente geral: escritura-leitura” e denuncia um consumidor constituído em voyeur dentro da “sociedade do espetáculo” (idem). Quando falamos de golpes e táticas cotidianas, lembramos dos conceitos máquinas de guerra e aparelho de captura de Gilles Deleuze e Félix Guattari, apresentados no volume 5 de Mil Platôs (1997). A máquina de guerra, invenção do nômade, é uma maneira de ocupar o território pelo descolamento através de trajetos que distribuem homens e coisas num espaço aberto e indefinido, espalhando-se como um rizoma. Esta é

exterior ao aparelho de captura, que age pela arquitetura/arte/escultura urbana atuar como sedução e aprisionamento. elemento ativo na vontade de retomar a diSe a cidade parece ter se convertido em mensão corporal na cidade contrariando as um arquipélago de enclaves, como um con- lógicas predominantes de um esvaziamento junto de ilhas isoladas, por outro lado — como das vivências reais? uma maré informe — esse rizoma se esparraE tudo isso sem transformar o direito a ma de maneira avassaladora ocupando espaços cidade em mercadoria seguindo as lógicas da intersticiais. Eis a máquina de guerra. “pacificação do cappuccino”2? Sem esvaziamenTais reflexões provocam a algumas in- to da relação corpo/cidade e redução da cidade quietações: como considerar a publicidade, a ao espetáculo e dos cidadãos em espectadores? mídia, o capital e o mercado sem privar os E o que é espetáculo, afinal? cidadãos do direito à cidade1? Como pode a *

1

Este assunto é abordado por David Harvey (2014) em seu livro Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. O termo “direito a cidade” o autor busca no livro de Henri Lefebvre.

2 Essa colocação é de Sharon Zukin citada por Harvey (2014). 41


Segundo ato: Escala 1:7.000.000.000

Cotidiano, táticas, máquinas, sedução, corpos e espetáculo 20. Cena do filme sobre A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord (1973) 21. Croquis de propostas para o baixio do viaduto Júlio de Mesquita Filho 22. Espectro que espera e corpo que vai, vazio, zumbi

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E como pode o espectador se emancipar desse espetáculo que paralisa como um aparelho de captura?

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Es.pe.tá.cu.lo tudo o que chama a atenção, Tudo o que era vivido diretamente tornou-se atrai e prende o olhar. [Dicionário etimo- uma representação. […] O espetáculo em gelógico Nova Fronteira — Cunha, Antônio ral, como inversão concreta da vida, é o moGeraldo da, 1979] vimento autônomo do não-vivo […] não é um Es.pe.tá.cu.lo representação teatral. Tudo o conjunto de imagens, mas uma relação social que atrai a atenção e desperta a curiosida- entre pessoas, mediada por imagens. (Debord, de visual. Lat. Spectaculum. Derivs.: espeta- 1967: p. 13–14) cular, adj. Admirável, digno de ser visto […]. [Grande dicionário etimológico — Silveira Bueno, Francisco, 1987] * Es.pe.tá.cu.lo tudo o que atrai a vista ou prende a atenção. Representação teatral, Espetáculo cinematográfica, circense etc. Vista gran- O não mais corpo, e sim espectro. diosa ou notável. Qualquer apresentação Espectro com insônia. pública que impressiona ou é destinada a Insônia que prende, captura e paralisa. impressionar a vista por sua grandeza, co- Espectro que espera e corpo que vai, res ou outras qualidades. POR EXT, COLOQ vazio, zumbi. Alguém ou algo que se caracteriza por ser Sonâmbulo. muito bom, bonito, eficiente etc. Objeto de Espectador que espera. Passivo. Passional. curiosidade ou desdém, especialmente por Espectador cuja esperança é alimentada causa de comportamento tolo ou inapro- por representações. priado. [Dicionário da língua portuguesa Espetáculo, spectaculum, spectare, specere. Michaelis, Melhoramentos, 2002] Quando se vê, mas não se olha. 42

Ora, dizem os acusadores, ser espectador é um mal por duas razões. Em primeiro lugar, olhar é o contrário de conhecer. O espectador permanece face a uma aparência, ignorando o processo de produção dessa aparência ou a realidade que a aparência encobre. Em segundo lugar, olhar é o contrário de agir. A espectadora fica imóvel no seu lugar, passiva. Ser espectador é estar separado ao mesmo tempo da capacidade de conhecer e do poder de agir. (Rancière, 2008: pp. 8–9)

A segunda de que necessitamos sim de um teatro, mas de um teatro sem espectadores no sentido de que, aqueles que o assistem não são passionais e mobilizados ou simples vouyers como denunciou Michel de Certeau, e sim sujeitos que apreendam e participam. Para tanto, Jacques Rancière apresenta outras duas possibilidades. Uma delas pode ser feita através de uma perda total da distância entre o espectador e o espetáculo.

[…] Deverá ser subtraído à posição de observador que examina calmamente o espetáculo que lhe é proposto. Deverá ser desapossado desse domínio ilusório e arrastado para dentro do círculo Este trecho, retirado do ensaio O espectador mágico da acção teatral onde trocará o privilégio emancipado, responde a ideias de Guy Debord, do observador racional pelo de um ser na pospor exemplo, que acusa o mal em ser um espec- se das suas energias vitais integrais. (Rancière, tador, uma vez que “quanto mais contempla, 2008: p. 11) menos é” (Debord apud Rancière, 2008: p. 14). Enquanto o outro modo pode ser feito a Dada esta situação, Rancière especula algumas maneiras, no que se refere ao teatro (ou qual- partir do ganho de distância do espectador quer performance e constituições estéticas e em relação ao espetáculo quando arranca-se sensíveis da coletividade, sendo, por que não “o espectador ao embrutecimento do papalvo também, a arquitetura?) de uma emancipação fascinado pela aparência e conquistado pela do espectador, sem anular a existência do es- empatia” (idem) e, ao causar um estranhamenpetáculo. O filósofo apresenta duas leituras to, exigira a ação do espectador. E isso poderia diferentes a tal problemática: “A primeira é de ser feito, por exemplo, a partir de um simples que o teatro é uma coisa absolutamente má, ato cotidiano, e é por isso que estes podem ser um palco de ilusão e de passividade que é ne- táticos, como colocou Michel de Certeau. É cessário suprimir em benefício daquilo que ele como se uma situação familiar e cotidiana fosse deslocada de seu lugar esperado causando interdita […]” (Rancière, 2008: p. 9). 43


Segundo ato: Escala 1:7.000.000.000

um estranhamento, um deslocamento e distanciamento que provocam reflexões, ações. Também em denúncia a este aparente esvaziamento e “empobrecimento da experiência urbana” (Berenstein Jacques, 2008) e no desejo de perceber o corpo na cidade, propõe-se como exercício projetual e com bases nas teorias de Paola Berenstein Jacques e Michel Foucault, uma reflexão. Foucault fala do corpo como lugar inescapável, mas que, ao mesmo tempo, torna nosso movimento possível, junto a toda nossa percepção do mundo externo.

Cotidiano, táticas, máquinas, sedução, corpos e espetáculo

cipal elemento de experiência corporal é uma escadadaria4 primeiramente Julio Cortázar nos ensinará a subir uma escada:

Ninguém terá deixado de observar que frequentemente o chão se dobra de tal maneira que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamente variáveis. Abaixando-se e pondo a mão esquerda numa das partes verticais, e a direita na horizontal correspondente, fica-se na posse momentâ[…] E se, por sorte, eu vivesse com ele [o corpo] nea de um degrau ou escalão. em uma espécie de familiaridade gasta, como se Cada um desses degraus, formados, como com uma sombra, ou com as coisas de todos os se vê, por dois elementos, situa-se um pouco dias que no fim das contas não enxergo mais e mais acima e mais adiante do anterior, princípio que a vida embaçou; como as chaminés, os te- que dá sentido à escada, já que qualquer outra tos que, todas as tardes, se ondulam diante de combinação produziria formas talvez mais boniminha janela? (Foucault, 2013: p. 62) tas ou pitorescas, mas incapazes de transportar as pessoas do térreo ao primeiro andar. Este trecho é interessante pois compara a As escadas se sobem de frente, pois de cosfamiliaridade gasta com nosso próprio corpo, tas ou de lado tornam-se particularmente incôquando não mais o notamos, como banalida- modas. A atitude natural consiste em manter-se des cotidianas que de tão constantes resultam em pé, os braços dependurados sem esforço, a anônimas em sua homogeneidade aparente. E cabeça erguida, embora não tanto que os olhos se nos olhássemos no espelho? E se olhássemos deixem de ver os degraus imediatamente supeas banalidades no espelho em busca de outras riores ao que se está pisando, a respiração lenta perspectivas, criando novas “primeiras vezes” e regular. Para subir uma escada começa-se por como quando crianças? Poderiam ser como as levantar aquela parte do corpo situada embaixo sensações do estranhamente familiar3? à direita, quase sempre envolvida em couro ou E Paola Berenstein Jacques, por exem- camurça e que salvo algumas exceções cabe exaplo, em seu estudo Corpocidade (2008), sugere tamente no degrau. (Cortázar, 2005) registrar experiências na cidade. Como uma corpografia urbana, cria-se uma cartografia Agora que aprendemos, podemos propor realizada pelo próprio corpo como uma micro- outras formas de nos relacionar com a escada -resistência a espetacularização. e pensar em diversas maneiras que ela pode Como nesta pesquisa-intervenção o prin- acontecer na cidade. 3 Ver conceito no capítulo de introdução teórica A pesquisa intervenção: metá-hodos ou hodos-metá? (p. 16).

23. Fotos de Pedro Seiblitz retiradas do vídeo Quando o passo vira dança, Rio de Janeiro, 2002 (do texto Corpografias urbanas, de Paola Berenstein Jacques)

23 4 44

Ver detalhes do projeto no Terceiro Ato (p. 66–91). 45


Epifanias Claricianas, anomia e estranhezas estranhas

A escrita de Clarice Lispector retrata momen- um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os tos de práticas comuns (geralmente a partir de pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu figuras femininas), desestabilizadas por epifa- medo desmesurado de ratos. (p. 404) nias que provocam uma crise existencial. Neste fragmento todas as citações são da autora e Uma praga urbana2. retiradas do livro Todos os contos, organizado Depois do susto, a percepção: por Benjamin Moser. Perdoando a Deus tem início com sua pro- Toda trêmula, consegui continuar a viver. […] tagonista caminhando distraída — ou melhor, Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que “de uma atenção sem esforço” — e sentindo-se eu sentia minutos antes e o rato. Mas era inútil. livre, de tão satisfeita com o que via. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava[…] Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui -me que um rato tivesse sido o meu contraponto. percebendo que estava percebendo as coisas. (p. 404) Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era E a revolta: tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. (p. 401) Então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? E é quando ela tem uma feliz epifania, um […] Não era preciso ter jogado na minha cara tão sentimento antes desconhecido por ela: por nua um rato. Não naquele instante […] Então era puro carinho ela se sente a mãe de Deus, que assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, era a terra, o mundo, tudo o que existe. sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosse[…] E assim como meu carinho por um filho não ria de Deus me feria e insultava-me […] (p. 404) o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre. (p. 402) Por fim, a reflexão. A crise existencial da compreensão de não compreender e, aceitando Até que, como um Deus Ex Machina1 “vila- a inerência dos conflitos à vida, o perdão. nesco”, a plenitude da personagem é assolada por um rato: […] quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta 1 No caso deste conto aparece como uma quebra abrupta da para o rato também. Porque eu me imaginava atmosfera vivida naquele instante, mas não para solucionar uma questão de enredo. Inesperado; de dramaticidade comparável a uma tragédia grega.

2 Ver crônica Compromisso das 13:45 (pp. 103–104).

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Segundo ato: Escala 1:7.000.000.000

Epifanias Claricianas, anomia e estranhezas estranhas

24. Retrato de Clarice Lispector por Claudia Andujar (1961) 25. Croquis de registros da passagem pelo trecho de intervenção 26. Passeata contra a ditadura militar. Da direita para a esquerda, Carlos Scliar, Clarice, Oscar Niemeyer, Glauce Rocha, Ziraldo e Milton Nascimento

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mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo Mas, é em seu percurso conhecido que matemático errado: Não sabia que, somando as o reconhecimento passa ao estranhamento e incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Ana começa a olhar o que vê, e isso fragiliza […] É porque eu não quis o amor solene, sem sua existência. Neste conto o momento de compreender que a solenidade ritualiza a incom- epifania acontece, primeiro, pela presença de preensão e a transforma em oferenda. (p. 405) um cego: Amor narra um estado de anomia3 em que a personagem Ana se encontra no meio de um dia. Um dia que se parecia muito com todos os outros. Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação. Os filhos de Ana eram bons. […] Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. […] E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque […] crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome […] Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida. (p. 144) 3 Ausência de lei ou de regra, desvio das leis naturais; anarquia, desorganização.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. […] Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre eles e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego. […] Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles. Um homem cego mascava chicles. […] Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com olhos abertos. (p. 147) Eis a crise, o estado anômico e a liberdade, neste conto, como algo negativo: O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinha um ar mais hostil, perecível… O mundo se tornara de novo um mal estar […] Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que 48

as pessoas na rua eram periclitantes […] — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente […]. (p. 148) E depois pela presença de um Jardim Botânico, contaminado pela presença do cego, reforça-se a desestabilidade. As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. […] A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. […] A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado. O jardim era tão bonito que ela teve medo do inferno […]. (p. 151) E é depois, no fim do dia e com a cidade já adormecida que Ana se pergunta “Quantos anos levaria até envelhecer de novo?” (p. 155) Quotus dies seriam necessários para reconstruir seu cotidiano desestabilizado? E finalmente, no conto O ovo e a galinha, uma dona de casa em meio aos seus afazeres domésticos e acostumados é surpreendida com a existência do ovo. Eis a epifania! Como

pode existir algo como um ovo? O elemento anônimo então é deslocado de seu lugar comum e um ovo já não mais é um ovo. Talvez nunca o tenha sido. Perplexa, atônita e com a boca bestificada pela novidade (imagina-se) a personagem mergulha em uma reflexão existencial. É como se se deslocasse, assim como o ovo, de seus dias. São citadas estas narrativas para ilustrar a identificação destes atos cotidianos (por vezes táticos) com o desenvolvimento deste trabalho de pesquisa-intervenção. A escolha do trecho de ação aconteceu, justamente, a partir de um momento de epifania quando passava por este sítio que é parte de meu percurso usual traçado pelos meus ofícios diários, o estágio profissional e a faculdade. Foi a partir deste momento que tudo o que via ali passou a me intrigar todos os outros dias, obsessivamente. E meu próprio desejo de intervenção, por vezes, me feria. Por outras não e, por carinho, o objetivo foi sempre o de trabalhar com pré-existências e promover uma melhor estrutura para apropriação incerta de todos aqueles estranhos personagens. E não somos, afinal, seres estranhamente estranhos que coabitam com elementos estranhos um mundo ainda mais estranho solto de forma estranha nesse universo desconhecidamente estranho? 49


Futurismo e megaestruturas da década de 1960

Este fragmento retoma algumas outras correntes dos anos 1960, para além dos situacionistas — muitas vezes contraditórias e criticadas por estes — que delira através de ensaios projetuais utópicos cuja ironia disfarça o otimismo, mas não a crítica. Propostas reais para um mundo irreal, ou propostas irreais que não acreditam num mundo real? Talvez especulações que não se prenderam à definição binária entre real e irreal? Ciente que “a ironia de que se valem os arquitetos radicais daquela década era uma arma débil demais aos olhos dos militantes de grupos mais antagônicos à ordem capitalista” (Cohen, 2013: p. 395)1, acredita-se que é oportuno o retorno a estes ensaios futuristas que, como os situacionistas, exercitavam propostas partindo da objeção do objeto arquitetônico e insatisfações com o urbanismo em voga. Na década de 60 surge o grupo inglês Archigram (1961–74) que atua no campo da teoria […] [e] revela-se demasiadamente plástico, dispensa limites executórios e materiais, é exclusivamente desejo e pretensão. 1

Aos grupos mais antagônicos que Cohen se refere são os situacionistas.

Sua causa está, não na linha de chegada, mas cá, antes do traço de partida, um esboço por onde se pode caminhar. (Borges; Cyrino, 2016) Também com um grande interesse na obsolescência das edificações, uma das diferenças deste grupo em relação aos situacionistas — e talvez uma das grandes relevâncias para retomá-los nessa pesquisa —, é a consideração da mídia e do capital que se apropria da linguagem pop de fácil apreensão para a cultura de massa. Estes traços são muito claros no projeto da cidade inflável Instant City (1968–70), ou por exemplo, na proposta para Monte Carlo2 que parece atingir também a contra-cultura hippie da década de 60, que contestava e se mobilizava para utilizar novos meios de comunicação em massa. E, mesmo que demasiadamente radical ao afirmar que “O lar, a cidade toda e o pacote de ervilhas congelados são a mesma coisa” (Archigram, nº 3, 1963 apud Cohen, 2013: p. 385) admitindo o genérico de todos os bens de consumo, projetos do Archigram como o Plug-In City são 2 Este projeto foi resposta a um concurso — cuja proposta vencedora seria construída! — convidado pelo ministério de Monaco. The name Monte Carlo conjures up Glamour, Money, Indolence and the Exotic — inreality as real-life (Cook, 1999: p. 102).

27 51


Segundo ato: Escala 1:7.000.000.000

Futurismo e megaestruturas da década de 1960 27. Trecho entre o Monumento Contínuo, do Superstudio 28. Croquis de especulações de megaestruturas no trecho de intervenção 29. Plug-In City 30. The True Story Told by Peter Cook 31. Monte Carlo 32. Instant City 33. Monumento Contínuo, do Superstudio 34. Brincadeira com corte de estudo do projeto com a psicodelia dos anos 60. E se a escadaria se movimentasse pela cidade como um yellow submarine?

31

32 28

29

uma forte referência, ainda que se reconheça a pertinência da crítica a um projeto totalitário de cidade, em que na ilusão de um desenho controlado, em vez de fundar-se, as megaestruturas se perdem. Retornar a tais proposições, no entanto, permite voltar ao debate da época, para vislumbrar alguns germes daquilo que o debate atual vai trabalhar, isoladamente, nas arquiteturas. (Bogéa 2009; p. 141)

onde os vestígios da vida cotidiana resistem quase unicamente […] onde o espaço habitável fica reduzido a uma pequena porção de terreno útil: uma cadeira, um aquecedor, um balde e uma vassoura para limpar, dispersos entre os escombros do que parece um terreno baldio. (Carrasco; Pirull, 2016: p. 79) 33

Inspirados pelo grupo inglês, surgem também os florentinos Archizoom (1966–74) e Superstudio (1966–76) que “são ainda mais delirantes” (Cohen, 2013: p. 289). Este último imagina o Monumento Contínuo (1969), fazendo uma “chacota com a arquitetura de prismas de vidro” (idem), um grande edifício que se estende por todo o planeta. O Cotidiano, nas imagens do Monumento Contínuo,

30

A área de intervenção3, foco dessa pesquisa, é quase como se fosse um desses restos entre um grande monumento contínuo (no caso os viadutos), onde entoca-se o cotidiano. 3 Ver implantação do projeto (pp. 70–71).

fica relegado àquelas poucas regiões onde a malha não chega a ser completada. É precisamente naquele deserto da abstração e da retificação 34 52

53


Entre, outros e não lugares

35

O capítulo trata do conceito de heterotopia a potencialidades: em que, e como, ele pode se partir de Michel Foucault, situado com a con- transformar? sideração do não lugar de Marc Augé. Para Foucault (2013: p. 21) heterotopias são Este conceito é aqui consagrado após a per- “[…] espaços diferentes, esses outros lugares, cepção da polifonia e multiplicidades da área essas contestações míticas e reais do espaço de intervenção em sua situação de entre-lugar1. em que vivemos”. Para o filósofo, pode ser enSem buscar definições ou categorizações quan- tendida como outro lugar aquele que justapõem, to a sua condição de lugar, tal reflexão ecoa da em um mesmo instante, diferentes temporali— mas também instiga a — especulação de suas dades e territorialidades. Espaços que seriam incompatíveis (ou assim é pressuposto) são nele sobrepostos e que acabam por funcionar 1 Utiliza-se esse termo com base nos estudos do professor com uma lógica distinta de seu entorno preIgor Guatelli que, de uma tese de doutrado, fez o livro A arquitetura dos entre-lugares. dominante. 54

O filósofo francês simula uma ciência heterotopológica e nos apresenta alguns princípios da heterotopia. Um deles é que não há sociedade ou grupo humano que não constitua sua heterotopia, e elas nunca são constantes. Foucault também as divide em categorias. As heterotopias de desvio, por exemplo, cujo maior exemplo pode ser a prisão e sua lógica do panóptico2, além de lugares “reservados aos 2 Conceito de organização de prisões, do fim do século XVIII, adotado pelo filósofo Jeremy Bentham (1748–1832) no qual se agrupava celas em torno de uma torre de observação central.

indivíduos cujo comportamento é desviante relativamente à média ou à norma exigida” (Foucault, 2013: p. 22), como as casas de repouso. (Esta última, dada sua condição de lugar dos ociosos — considerado um desvio nesta sociedade tão atarefada e economicamente útil —, adverte com a necessidade de considerar o momento do ócio na proposta de intervenção.3) Todavia, a “categoria” que aqui nos interessa são as heterotopias do tempo. Não necessariamente do acúmulo dos tempos infinitos, mas 3 Ver projeto da praça (pp. 82–83). 55


Segundo ato: Escala 1:7.000.000.000

Entre, outros e não lugares

35. Retrato de Michel Foucault 36. Croquis de reconhecimento da área e propostas de intervenção 37. Estudos para intervenção

36

sim referente àqueles lugares que coexistem com diversas temporalidades que não são eternas, e sim crônicas. O filósofo as exemplifica com festas, feiras,

excesso de significações em sua possibilidade infinita de se ressignificar? E o que difere o lugar do não lugar e como enxergar as potencialidades do território em questão?4

[…] estes maravilhosos sítios vazios à margem das cidades, por vezes mesmo no centro delas, e que se povoam uma ou duas vezes por ano com barracas, exposições, objetos heteróclitos, lutadores, mulheres-serpentes e profetisas de boa fortuna. (Foucault, 2013: p. 25)

Não se vive em um espaço neutro e branco; não se vive, não se morre, não se ama no retângulo de uma folha de papel. Vive-se, morre-se, ama-se em um espaço quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras e sombras, diferenças de níveis, degraus de escada, vãos, relevos, regiões duras e outras quebradiças, penetráveis, porosas. Há regiões de passagem, ruas, trens, metrôs, há regiões abertas de parada transitória, cafés, cinemas, praias, hotéis, e há regiões de fechadas de repouso e da moradia. (Foucault, 2013: p. 19)

Mais uma vez a leitura inspira soluções projetuais. Como promover espaços abertos a apropriações culturais das mais variadas procedências? Como ir além do programa de necessidades e deixar espaços indefinidos sem transformar este aparente excesso em ausência ou neutralidade (no pior sentido do termo)? Como se apropriar da neutralidade no sentido desta ser, na verdade, uma possibilidade do

Esta ideia de lugar a partir de Foucault compactua com uma das primeiras falas de 4 56

Ver projeto do mirante (pp. 90–91).

Marc Augé em seu livro para apresentar o não lugar. Para o autor (2003: p. 67) “um espaço que não pode definir-se nem como identitário nem como relacional nem como histórico definirá um não lugar” e nos alerta de como o “lugar” ou “não lugar” nunca aparecem de forma pura, ambos são “palimpsestos nos quais se reinscreve sem cessar o jogo misto da identidade e da relação” (idem). Isto é, se pensarmos no projeto de intervenção que tratamos, falaríamos de uma situação de lugar improvável, do estar na passagem onde se constróem novos laços afetivos, onde nascem flores por de baixo do viaduto, onde se toma café, assiste a peças de teatro e até abriga um novo edifício ao lado da via expressa. Edifício que cede sua cobertura como praça penetrável e difunde o interno/externo, o em cima/ em baixo, o underground/visível, real/irreal de modo a criar um novo espaço como múltiplos unos que fazem aflorar outras possibilidades de existência.5 De criar novas e outras identidades de reconhecimento. Mas e se essa nova intervenção de alguma maneira se apropriar do espetáculo com propostas de “esculturas urbanas” e elementos cuja existência é seduzir os passantes6, assim como oferecer suportes efetivos ao cotidiano? Onde tudo se mistura e se conjuga? Solução que representaria uma característica de lugares improváveis e temporalidades distintas que se sobrepõe.7

37

5 Ver corte urbano (pp. 74–75). 6 Mas que a percorram de forma ativa. Talvez mais um elemento de emancipação em meio a cidade. 7 Ver imagens do projeto (pp. 84–91). 57


Junkspace, o genérico e a cultura-mundo

Este fragmento, a partir de conceitos de Rem Koolhaas junto a pensamentos de Deleuze, Guattari, Lipovetsky e Jean Serroy, traz ferramentas para incomodar o pensamento sobre esse trecho de intervenção, sobre a Cidade. Em conformidade com a reflexão apresentada na tese Ricardo Luis Silva (2017) ao dizer que o junkspace é nossa condição irreversível, assume-se aqui este pensamento perigoso para a construção de nossa memória tornando-a turva e duvidosa. O conceito junkspace de Rem Koolhaas descreve espaços que surgem a partir de amontoados de matérias sobre matérias. Coisas que incessantemente ressignificadas se transformam em novas totalidades. “O junkspace é aditivo, leve, estratificado, esquartejado como uma carcaça dilacerada por predadores” (Koolhaas, 2003: p. 107). Mas, totalidades? As totalidades por sua vez são também ressignificadas. Não acreditamos numa totalidade. […] Não acreditamos numa totalidade original nem sequer numa totalidade de destinação. Já

não acreditamos na grisalha de uma insípida dialética evolutiva, que pretende pacificar os pedaços arredondando suas arestas. Só encontramos uma totalidade ao lado das partes, mas que não as totaliza […] não as unifica, se junta a elas como numa nova parte composta à parte. (Deleuze; Guattari, 1997: p. 61) Isto para descrever o momento da produção desejante, a multiplicidade que compõe a era de objetos parciais, de restos, resíduos que resultam nesse junkspace cuja continuidade, já nos disse Koolhaas, é a essência. Os desejos são insaciáveis. O junkspace está sempre em devir. […] Ele explora qualquer invenção que permita a expansão, incorpora qualquer recurso que promova a desorientação. (Koolhaas, 2003: p. 110) A cidade faz-se em uno mutilado, o grotesco e estranhamente familiar. Eis a esquizofrenia, eis o delírio. *

38 59


Segundo ato: Escala 1:7.000.000.000

Junkspace, o genérico e a cultura-mundo

38. Rem Koolhaas, por Platon/ Trunk Archive

Se Nova York foi para Koolhaas a pedra de Ro- uma ingrata meia-vida — quanto mais se abusa seta para pensar metrópoles delirantes, não dela, menos significativa se torna — até chegar poderíamos identificar estes traços na cidade o momento em que suas decrescentes dádivas de São Paulo? Sendo a cidade em sua paisagem se tornam insultuosas. (Koolhaas, 2014: p. 32) real produzida pelo anônimo interpretada por um arquiteto “em busca de princípios para É paradoxal quando o excesso de imporsua arquitetura — em busca de um manifesto tância atribuído a situações específicas se retroativo —, […] operação de estetização do transforma na maior causa de sua insignificotidiano” (Gorelik; Adrián, 2008: p. 9). cância, de seu esvaziamento. E daí a aflição E se pensarmos São Paulo também como da(o) arquiteta(o). Como se posicionar entre o uma cidade genérica? Genérica talvez pelo “Fuck context”1 e o historicismo exagerado e pafato de, como Koolhaas define Londres, sua ralisador? Existe um olhar sensível adequado única identidade ser a falta de uma identidade na era da cultura hipermoderna? Da culturaclara. “Mais aberta, menos estática” (Koolhaas, -mundo? 2014: p. 33). Nesse sentido Koolhaas pensa a identida- Pois a era hipermoderna transformou profunde como um limitante. damente o relevo, o sentido, a superfície social e econômica da cultura. […] Ela se tornou mun[…] A identidade concebida como forma de parti- do, uma cultura-mundo, a do tecnocapitalismo lhar o passado é uma proposta perdedora: não só existe — num modelo estável de expansão con1 Expressão de Koolhaas apresentada em seu texto Bigness tínua da população — proporcionalmente cada and the problem of large, publicado em S, M, L, XL (1995: vez menos o que partilhar, mas a história tem pp. 494–516). 60

planetário, das indústrias culturais, do consu- 3. encontre um canto e encaixe os objetos semismo total, das mídias e das redes digitais. lecionados condenando-os com esperança; (Lipovetsky; Serroy, 2011: p. 7) 4. faça uma composição intuitiva e confirme se dois corpos não ocupam o mesmo espaA cultura-mundo que rompe com a heteço; a única necessidade é o acúmulo; rogeneidade de especificidades locais, mas am- 5. sem nenhuma objeção, o único objetivo é plia seu sentido, sua possibilidade e até mesmo que os objetos resistam a gravidade; hospitalidade. Contudo, teria de ser a cultura 6. quando tudo parecer estável, se afaste; apenas consumo e produção de seres consumi- 7. se algo despencar, deixe; dores na realidade genérica da cultura-mundo? 8. vá embora e esqueça os objetos apegados Se assim é o mundo, “que se torna cultuao abandono. ra, cultura que se torna mundo” (Lipovetsky; Serroy, 2011: p. 9)… Contraditório em si mesmo, o manual é falho. Fazer uma seleção é paradoxal e perde-se * a continuidade fluida. Quem tem valor, agora, é quem não tem valor. Valor, no caso, que se Por fim, podemos especular um pequeno ma- valha para um olhar. nual de instruções para esculpir o banal e criar Todavia, agora estes objetos deslocados de uma pequena amostra de um junskspace: sua vida acostumada formam essa nova totalidade possível de ser ressignificada pelo tempo, 1. vasculhe em seu cotidiano alguns (in)uten- pelo olhar do outro. Um viajante, talvez. sílios; Teríamos encontrado a utilidade no inútil? 2. se enjoe deles; Teríamos estetizado o cotidiano? 61


Pensando através de imagens

39

Nesta parte serão exploradas as questões que giram em torno do(s) “objeto(s)” arquitetônicos e como eles foram se materializando e tomando forma junto a construção do discurso. Este processo foi inspirado por um workshop ministrado por Cecilia Puga em ocasião do Porto Academy 20161 e propõe a compreensão da problemática do materialidade como uma questão de projeto, a tectônica. 1

62

O Porto Academy, fundado por Amélia Brandão e Rodrigo da Costa Lima, é um evento acadêmico que acontece anualmente (desde 2013) nas férias de verão portuguesas, na Universidade do Porto. O evento, que também oferece palestras, reúne arquitetos de diversas partes do mundo para orientar os grupos de trabalho, cada qual com tema livre escolhido pelo arquiteto(a) orientador.

A construção de um painel de referências imagéticas inspira maneiras de pensar ambientes arquitetônicos que podem ser apropriadas de maneira efetiva no desenvolvimento do projeto se somado às outras considerações. As imagens representam um desejo de construir ambiente e promover certa experiência, isto é, uma atmosfera com determinadas sensações visuais, acústicas e culturais. No workshop — mais uma vez sem defender o projeto como uma linearidade — a forma arquitetônica será o resultado do entendimento (mais visual do que textual) e articulação de três sistemas: sistema de relações; atmosfera e materiais.

39. Cena do filme Frankenstein 40. Painel de referência

O sistema de relações trata da organização sos); compound (quando o esqueleto e o preene relação entre as partes, espaços e volumes. chimento são diferentes, mas colaborativos Podem ser fluidos; fields (partes multidirecio- formando um todo indivisível); continuous (nornais e não hierárquicas), articulados (quando malmente formado por apenas um material, pedaços como todos em si mesmo são conec- quando a união das partes são imperceptíveis); tados); ou grid. ou o plano (construções formadas por planos O sistema atmosférico é definido por con- bi-dimensionais). dições qualitativas, sensoriais e emocionais. Por fim, Cecilia Puga sugere que estes sisPodem ser pautados pela cor (poli ou mono- temas de relações, quando articulados, origicromática); saturação (referente a intensidade nam um corpo: a figura de Frankenstein. Um de informações por elementos que compõem corpo, mas um corpo mesmo! Como disse Peter a arquitetura); e brilho (luz). Zumthor (2006: p. 22) Quanto ao sistema de materiais, considera a estética da estrutura que dá corpo ao sistema As a bodily mass, a membrane, a fabric, a kind atmosférico. Ele pode ser isotrópico (estruturas of covering, cloth, velvet, silk. […] The body! Not porosas com distribuição homogênea de pe- the idea of the body — the body itself! 63


40


Terceiro Ato Este ato apresenta o novo corpo arquitetônico resultante dessa pesquisa-intervenção, uma leitura do trecho urbano assumido no exercício como uma alegoria da cidade de São Paulo em sua complexidade e heterogeneidade.

Escala

1:100

Descritivo da intervenção p. 68 Diagramas p. 72 Plantas p. 74 Fotoinserções p. 84


Descritivo da intervenção

41

A intervenção acontece em trecho urbano frag- portanto, de uma revitalização, mas que ainda mentado, uma passagem que traspõe uma cota tem uma situação quase que anônima para a de 10 metros de desnível. O trecho passa lindei- cidade em sua maioria. Além disso, nota-se nos ro ao viaduto Júlio de Mesquita Filho, cinco seus frequentadores um desejo de estar, sem metros abaixo da Rua Augusta, e é perpendicu- ter, contudo, condições adequadas. lar a esta última e também a rua Avanhandava O objetivo da intervenção é construir, e a Avenida 9 de Julho. com a arquitetura, não só um percurso como Opto pela intervenção neste trecho por também momentos de estar nessa passagem. três principais aspectos: Um deles é a comple- É como uma linha que liga dois pontos. No exxidade geográfica graças a quantidade de níveis tremo norte está a Praça Roosevelt, em frendiferentes, característica tão recorrente em São te à Rua Augusta, e no outro, ao atravessar a Paulo. Outro motivo é a heterogeneidade deste Avenida 9 de Julho, um centro de convivência trecho, que não com mais de 100 metros de ex- para moradores de rua. Como tornar esse lugar tensão e 10 metros de desnível apresenta uma visível? Legível? Habitável? diversidade de ambiências e atmosferas inesPara tanto, lanço mão de três principais gotável e inapreensível com uma definição ou elementos: A escada (podendo ser mecânica), imagem. Um terceiro motivo é sua característica o elevador, e rampas/passarelas. Contudo, é a de sobra do planejamento rodoviarista da cidade escada o elemento de maior foco do projeto, de São Paulo. Sobra que foge as lógicas predomi- graças a sua presença como evento na situanantes, uma vez que só se percebe este lugar a pé. ção urbana, podendo ser tanto arquibancaMas, por que intervir neste lugar? Lugar das quanto palco de intervenções artísticas que abriga uma vida intensa, não se tratando, (conforme demonstrado em estudos de Paola 68

42 69


Terceiro ato: Escala 1:100

Descritivo da intervenção 41. Croquis de estudo topográfico 42. Croquis de estudos e propostas de soluções para o mirante 43. Diagrama estrutural: o sistema formado pelo plano metálico e o do muro pré-existente

A

E

B

C

D

F

A. B. C. D. E.

Praça Roosevelt Rua Augusta Rua Avanhandava Av. 9 de Julho Viaduto Júlio de Mesquita Filho F. Centro de convivência de moradores de rua (pré-existente)

Implantação 43 0

Berenstein no fragmento 2 — p. 44) além de retomar a dimensão corpórea na cidade. A partir destes elementos divido a intervenção em quatro partes: 1. 2. 3. 4.

praça; transposição sobre a Avenida 9 de Julho; mirante; edifício escada.

A primeira delas é a construção no baixio do viaduto com área de mil metros quadrados divididas entre o mercado e um teatro informal cuja plateia se acomoda em andaimes que conformam um corredor, onde a peça acontece. Deixando recuo de 20 metros da Rua Avanhandava, esta construção faz o fundo de uma praça permeada por mesas coletivas e nichos de estar. Aproveitando os pilares que sustentam o viaduto com espaçamento de dois metros entre eles, criam-se pequenos quiosques: dois para venda de comidas e um para banheiros públicos.

A segunda intervenção é um elemento de transposição da Avenida 9 de Julho. Uma passarela que liga o centro de convivência com o resto do percurso. A estrutura é simples: escada metálica e a passarela que, pintada em vermelho, chama atenção dos passantes. A terceira intervenção é o mirante. Trata-se de uma estrutura sem uso, como uma escultura, que pontua a existência deste lugar e enquadra a vista para o viaduto. Estética e simbolicamente é como se essa estrutura, um gesto, derretesse e contaminasse os níveis inferiores formando a escada, uma passagem. Eis o edifício escada, a quarta intervenção. O edifício escada é o elemento de maior visibilidade e simbolismo do projeto. Com 10 metros de largura e 55 metros de comprimento implantado local onde já acontece uma escadaria, o edifício surge a partir de um muro de arrimo pré-existente onde é engastada uma estrutura metálica fazendo as vezes de uma parede vazada composta por apoios verticais 70

10

20

com intercolúnio de cinco metros. A leveza visual do novo elemento contrasta com a densidade do existente e acontece como arquitetura formada por “planos”. Juntas, as duas paredes originam um sistema de pórtico e formam um exo-esqueleto responsável por pendurar o novo solo entre elas, que reconstrói a escada existente. Agora, a escada é também a cobertura do edifício semi-enterrado. Como uma simbiose, este é intrínseco ao chão da cidade e se desmembra em outros dois níveis intermediários — também pendurados na mesma estrutura —, estando o superior à mesmo nível do viaduto onde existe um dos acessos. Os outros acessos acontecem ou neste mesmo nível entre o segundo e terceiro lance da escada, ou pela lateral leste a nível da rua Avanhandava. Para portadores de necessidades especiais existe o elevador, encaixado no muro com frente para a Rua Augusta, passando por todos os níveis sequentes.

Quanto aos programas, os pavimentos intermediários podem abrigar galerias ou comércios de suportes ao cotidiano, como venda de bilhete para transporte público, farmácias, galerias, bancas de jornais/revistas ou até exposições temporárias. Se voltada para o exterior a escadaria é o chão da cidade, seu papel também é relevante na composição da atmosfera interna do edifício. Além dos degraus terem seu espelho translúcido criando um jogo de luz e sombra, também permite a passagem de luz e ventilação através de espaços entre os desencontros das lajes, já que a escada não ocupa toda a extensão do piso. Como soluções de masterplan, propõe-se um rasgo central de meio metro de largura em trecho de viaduto para entrada de iluminação natural. Também se propõe suprimir duas das vias do mesmo viaduto, uma em cada sentido, transformando-as em calçadas mais generosas (uma quinta intervenção). 71


Terceiro ato: Escala 1:100

Descritivo da intervenção

Área antes da intervenção

A

Área depois da intervenção

B

C

D

E

I

I. J. K. L. M. N.

A. B. C. D. E. F.

Viaduto Júlio de Mesquita Filho Av. 9 de Julho Rua Avanhandava Rua Augusta Praça Roosevelt Centro de convivência de moradores de rua (pré-existente) G. Mercado pré-existente H. Escadaria pré-existente

Área demolida

J

K

Transposição sobre Av. 9 de Julho Floricultura (pré-existente) Praça Edíficio escada Mercado e teatro Mirante

Área construída

F

G

72

H

73

L

M

N


Terceiro ato: Escala 1:100

C

Descritivo da intervenção

C

Implantação 0

10

20

B

A

A

Subsolo B

Corte AA 74

75


Terceiro ato: Escala 1:100

Descritivo da intervenção

1

4

3

3

2

Nível +5.8 0

10

20

40

1. Mirante 2. Acesso ao interior do edifício escada 3. Cobertura/praça/escadaria 4. Extensão da calçada

76

77


Terceiro ato: Escala 1:100

Descritivo da intervenção

4 1

1 3

2

Nível 0.0 0

10

20

40

1. Acesso ao interior do edifício escada 2. Primeiro mezanino 3. Cobertura/praça/escadaria 4. Extensão da calçada

78

79


Terceiro ato: Escala 1:100

Descritivo da intervenção

2

1

3

Nível -3,4 0

10

20

40

1. Segundo Mezanino 2. Vazio 3. Cobertura/praça/escadaria

80

81


Terceiro ato: Escala 1:100

Descritivo da intervenção

7 10

11

8

12

9 4

6

4

9

5

3

1

2

Nível -7.3 0

10

20

40

1. Acesso 2. Nível inferior do edifício escada 3. Acesso Mercado 4. Mercado 5. Administração mercado 6. Açougue 7. Teatro informal (andaimes) 8. Praça 9. Quiosques de alimentação 10. Floricultura (pré-existente) 11. Elementos de transposição 12. Centro de convivência de moradores de rua (pré-existente)

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Elemento de transposição na Avenida 9 de Julho Terceiro ato: Escala 1:100

84

Descritivo da intervenção

85


Face leste do edifício escada

Terceiro ato: Escala 1:100

Corte BB 86

Descritivo da intervenção

0

10

20

Corte CC 87

0

10

20


Fotoinserção e diagrama do conjunto mirante e edifício escada

88

89


Mirante com vista da praça Roosevelt para oato: viaduto Terceiro Escala 1:100 Júlio de Mesquita Filho

90

Descritivo da intervenção

91


Conclusão O trabalho, que trata da intervenção em pas- cesso, percebe-se que se trata de um trabalho sagem de transposição de cotas urbanas como inesgotável. Ao ser hipoteticamente entregue melhoria do espaço público, mostra um proces- à cidade, o papel da(o) arquiteta(o) se retira de so de formação de projeto. Para isso apresen- cena e são os cidadãos — sujeitos usuários — tou três importantes momentos que, embora que vão traçar os próximos passos e criar noorganizados em atos (que por sua vez foram vas existências para esse lugar. se ramificando), aconteceram — e continuam E o trecho continua caótico, inesgotável a acontecer — simultaneamente: o reconhe- e com possibilidade de se dissolver em procimento do lugar, a importância do estudo cesso rizomático, quase esquizofrênico. Mas, conceitual e imagético, e a materialização da agora, entre tantos desencontros que há nessa pesquisa. vida, com mais oportunidades para o encontro. É como se alimentar de todos esses fatos e Arquitetura que deseja uma participação ativa fatores, sobretudo das manifestações culturais do cidadão em relação ao seu espaço. O público. do local, e, ampliando o campo da arquitetura, Talvez essa sim seja a expressão do que devolver como uma gentileza urbana para a pode ser a cidade? Em sua heterogeneidade, pocidade. Ciente dos conflitos e contradições, que lifonia, camadas e inexauríveis banalidades e são inerentes à vida urbana, isento-me de con- cotidianos? cluir soluções ou formas certas do como fazer. Acredita-se, que não apenas este trecho Constrói-se então uma memória que foi aqui urbano como também o processo de percorrêcompartilhada. Memória de todos os persona- -lo de forma ativa (tanto como cidadã de pasgens do lugar; memória das angústias pessoais sagem quanto em papel de uma intervenção frente ao local; memória de uma estudante mais efetiva a partir da arquitetura) são alegoque não encontra a maneira mais adequada rias do que é a cidade de São Paulo e de como de exercer a forma e materializar o discurso esta pode ser pensada. Fonte interminável de político, a arquitetura; memória de alguém que questionamentos. não encontra a verdade inteira em nenhuma São Paulo não é só uma cidade linda. Ela palavra. Fragmentos de memórias. tem qualquer coisa de contraditório em sua Assumem-se as contradições e, errante, a beleza, em seu erro, nosso erro. Tão (des)cointenção é que este trabalho seja uma intro- nhecida, esquiva, estranha e familiar para nós, dução pessoal na exploração do tema. Menos aleatores errantes. preocupada com o resultado e mais com o proAlea jacta est. 92

“Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto É que Narciso acha feio o que não é espelho E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho Nada do que não era antes quando não somos Mutantes E foste um difícil começo Afasta o que não conheço E quem vem de outro sonho feliz de cidade Aprende depressa a chamar-te de realidade Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso” Caetano Veloso, Sampa


Referências bibliográficas

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Referências de imagens Introdução (pp. 12–13)

pp. 12–13 Reinaldo Higa

Introdução teórica (pp. 14–19)

pp. 17–18 fig. 1: Desenhos Letícia Becker Savastano figs. 2–3: Booklet Cecilia Puga Porto Academy 2016

Primeiro Ato (pp. 20–33) Macro: Escala 1:2000 pp. 20–21 <https://earthobservatory.nasa.gov/IOTD/view. php?id=83987&src=ve> Pp. 22–23 Google Earth Pro image pp. 24–25 fig. 4: Google Earth Pro image fig. 5: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/07.082/259> fig. 6: <http://www.archdaily.com.br/br/01-51763/ cinema-e-arquitetura-metropolis> fig. 7: Desenho Letícia Becker Savastano Micro: Escala 1:100 p. 26 Letícia Becker Savastano Pp. 28–29 figs. 8–12: Letícia Becker Savastano Pp. 30–31 fig. 13: GD-H, Atlas ¿Cómo llevar el mundo a cuestas?, Georges Didi-Huberman, TF. Editores apud Booklet Cecilia Puga Porto Academy 2016 fig. 14: Fotografias e montagem Letícia Becker Savastano P. 32 fig. 15: Desenhos Letícia Becker Savastano Pp. 34–35 <https://earthobservatory.nasa.gov/IOTD/view. php?id=90008&src=ve>

Segundo Ato (pp. 34–65) Banal, trapeiro e psicogeografia P. 36 fig. 16: SILVA, Ricardo Luis. Elogios à inutilidade: a incorporação do Trapeiro como possibilidade de apropriação e leitura da Cidade e sua alteridade urbana. Tese de doutorado do programa de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2017. pp. 38–39 fig. 17: Desenhos Letícia Becker Savastano figs. 18–19: <http://www.tucavieira.com.br/atlas-fotografico> Cotidiano, táticas, máquinas, sedução, corpos e espetáculo Pp. 40–41 fig. 20: <http://m.folha.uol.com.br/colunas/ manueldacosta/2013/01/1220476-rituais-do-sofrimento-analisa-a-mecanica-perversa-dos-reality-shows. shtml?mobile> Pp. 42–43 fig. 21: Desenhos Letícia Becker Savastano fig. 22: <http://www.undernierlivre.net/wp-content/ uploads/2014/06/Vieux-zombies.jpg> pp. 44–45 fig. 23: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/08.093/165> Epifanias Claricianas, anomia e estranhezas estranhas P. 46 fig. 24: <http://piaui.folha.uol.com.br/materia/fim-de-linha/> Pp. 48–49 fig. 25: Desenho Letícia Becker Savastano fig. 26: <https://claricelispectorims.com.br/ vida/#lightbox[16]/41/> Futurismo e megaestruturas da década de 1960 P. 50 fig. 27: <http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br> Pp. 52–53 figs. 28 e 34: Desenhos Letícia Becker Savastano figs. 29–32: <www.archigram.com> fig. 33: <http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br> 98

Entre, outros e não lugares Pp. 54–55 fig. 35: <http://www.universoracionalista.org/wp-content/uploads/2015/04/Michel-Foucault.jpg> Pp. 56–57 figs. 36–37: Desenho Letícia Becker Savastano Junkspace, o genérico e a cultura-mundo P. 58 fig. 38: <http://www.arch2o.com/7> Pensando através de imagens Pp. 62–63 fig. 39: Booklet Cecilia Puga Porto Academy 2016 P. 67 De cima pra baixo, esquerda para a direita: Bridge Pavilion Zaragoza (2008), Zaha Hadid in Booklet Cecilia Puga Porto Academy 2016; The Stairs to Kriterion, MVRDV (2016) in <https://www.mvrdv.nl/>; Kabukicho Tower (1987), Richard Rogers in <https://www.rsh-p.com/>; Companhia Processamento de Dados SP (1978), Pedro Paulo de Melo Saraiva in <goo.gl/rLdMWl>; Escola Panamericana de Arte – Angélica, Siegbert Zanettini in <http://www.zanettini.com.br>; Crown Hall (1940), Mies Van der Rohe in <goo.gl/Ojydxgcontent_copy>; Edificio Escolar (2003), Christian Kerez in Revista el Croquis nº 145; Sol Lewitt: Incomplete open cubes (1965) in Booklet Cecilia Puga Porto Academy 2016; Blast Furnace, Haut fourneau Völklingen; Saar (1986) in Booklet Cecilia Puga Porto Academy 2016; MAXXI (1999), Zaha Hadid by Morgana Hipólito Rodrigues; Centro Cultural São Paulo (1978), Eurico Prado Lopes e Telles by Letícia Becker Savastano; Subtle Substances: the Architecture of Lina Bo Bardi in Booklet Cecilia Puga Porto Academy 2016; Nova Babilônia, maquete (1959) in Booklet Cecilia Puga Porto Academy 2016; Expo 2000, MVRDV in <https://www.mvrdv.nl/en/projects/expo>;

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Terceiro Ato (pp. 66–91) Descritivo da intervenção pp. 68-69 fig. 41: Desenho Letícia Becker Savastano pp. 71 fig. 42: Desenho Letícia Becker Savastano

Conclusão (pp. 92–93)

pp. 92–93 Reinaldo Higa

Crônicas (100–109)

pp. 100–101 Letícia Becker Savastano Demais imagens pp. 1–3 Reinaldo Higa

p. 4 Egg, Edward Holbrook Collection, Gift of Mrs. Edward Holbrook and John S. Holbrook, 1921 in <http://www. metmuseum.org/art/collection/search/194837> p. 110 Reinaldo Higa p. 111 <http://www.yeahyeahyeahs.com/music/its-blitz/> p. 112 Reinaldo Higa

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Distrações na cidade

“É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída.” Clarice Lispector

Tais crônicas partem de uma estudante de arquitetura e urbanismo sem pretensões literárias. É um exercício de cartografia para aproximação da área (pesquisa-intervenção) a partir do registro das experiências sensoriais em campo como forma de construção de memória e imersão na atmosfera do local. - 101 -


Capítulo 1 referência: Criolo Não existe amor em SP

Existe amor em SP? Onde?

Outra escada. Suba mais um pouco e, ufa! Estará na rua Augusta em frente à praça Roosevelt. E então você... queria ir onde mesmo?

Um labirinto místico, onde os grafites gritam. Não dá pra descrever...

Pouco importa. Aproveita e debruça na grade a sua direita e espia pelo mirante que existe ali, agora cinco metros acima do viaduto, cheio de arte urbana que grita junto à vista incrível da cidade.

Vindo da região do Jardim Paulista pela Avenida 9 de Julho, passe por debaixo do Masp e continue descendo até estar sob o viaduto Júlio de Mesquita Filho. Olhe para a esquerda e repare que há ali um portão verde. Pode entrar. Não tem mal, não! Capítulo 2 Suba alguns degraus em direção perpendicular e se afastando da Avenida. Logo irá perceber uma floricultura a sua direita, embaixo do viaduto. Quem diria, né? São Paulo é um buquê.

O compromisso das 13:45 Eu gosto é do voo!

Continue subindo até a Avanhandava. Atravesse no sentido da faixa de pedestre e ela te conduzirá a outro portão de mesma cor, um pouco maior. Note que sua cabeça não está mais por debaixo do viaduto, mas você ainda o vê de um nível com cerca de cinco metros inferior. Neste trecho existe uma venda com pastel e, ao lado, outra venda de coco onde quem nos atende é uma simpática senhora. Ela está lá há vinte e cinco anos, desde a época em que montava sua barraca toda quinta-feira, e confessa que vive hoje a pior época financeira desde então.

Reparei neste pedacinho de terreno engradeado — que eu chamo de mirante mas é só mais um pedacinho abandonado de terra —, quando notei uma senhora alimentando os pombos. É a terceira vez que a vejo lá, sempre no mesmo horário.

Ainda na mesma construção (agora apenas três metros abaixo do viaduto) existe um mercado. Da janela, vê-se todo dia uma mulher de touca e luvas brancas cortando o frango com um grande facão.

Você é jornalista? Acho que encarei demais.

Suba mais alguns degraus até alcançar o nível do viaduto, que estará a sua direita. Neste trecho verá um canteiro (cheio, cheio de pombos!) que garante sua distância do perigo da via expressa.

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Venham, queridos! Meu alimento é o seu alimento! E então os pássaros que rodopiavam no céu se aglomeram todos ali.

Ela conta que todo dia leva na sua sacola para dar do seu pão aos pombos. Ela acha graça em provocar. Pensando bem ou mal, ninguém passa indiferente àquele enxame de pombos — eventualmente com um membro faltando —, brilhando sob o sol. É uma subversão. Você não tem medo de pegar uma doença? Perguntou uma menina que passou por lá e logo virou as costas ao ser questionada se ela - 103 -


usava preservativo. A contaminação pode vir de qualquer lugar, a senhora explica.

Não, estudante de Arquitetura! Profissão bonita, mas não dá dinheiro não, viu. Minha filha também é arquiteta.

Esta área já é contaminada e somos nós quem contaminamos. E depois chamamos os animaizinhos que consomem nosso lixo de praga urbana. “Que” nem esse pixo aqui, ta vendo? Isso aqui é o resíduo de um pessoal que ninguém quer ouvir, ninguém quer ver. Incomoda. Praga urbana, como os pombos.

[Risos] O dinheiro já nem conto, mas é mesmo bonita. É sim. É bom, você fica muito criativa! Espero que sim.

Um dia uns meninos descalços e de camisa toda rasgada a questionaram sobre o porquê ela queria ficar perto de animais tão nojentos. E de vocês? Alguém que chega ai todo bem vestido quer ficar perto de vocês? Acho que fui dura demais, diz ela com os olhos estatelados para o vazio. Mas enfim, o que eu gosto é do voo. Ela chora. E sabe, eles me esperam todos os dias essa hora! Eu chego perto e eles já começam a dar esse show no céu. O que começou como uma provocação virou compromisso, virou rotina. Ela quer ver o voo. Alguns a chamam de louca. Acho que é isso mesmo, o devaneio. Ela delira ali, vendo o voo dos pombos achando graça naquelas diversas camadas sobrepostas enquanto esperam a hora do compromisso, às 13:45.

Capítulo 3

Beleza (im)pura

referência: Caetano Veloso Beleza pura

Dinheiro não! Mas a cultura...

(Fazendo o levantamento do terreno...) Você é desenhista?

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Prazer então e parabéns pela profissão. Tchau! Obrigada, Tchau!

Capítulo 4 referência: Caetano Veloso Índio

Virá que eu vi Enquanto isso, no coração do hemisfério Sul onde os pássaros não fazem metáfora com a água límpida...

Ei, cuidado aí! Diz um homem com olhos avermelhados e barba por fazer enquanto encarava algo que devia estar uns dois metros acima da minha cabeça. Já havia me esquecido que eu esperava a oportunidade de atravessar a rua enquanto observava uma menina sentada na escadaria da Roosevelt pensativa,olhando para o mirante sobre o viaduto. A presença das pombas enfileiradas na fiação que ligava os postes de forma desgraciosa também havia me passado despercebida.Alguns diriam que elas estariam esperando a próxima vítima. Eu sei que elas deveriam estar espe- 105 -


Sei, aquele que descerá de uma estrela colorida e brilhante. Todo tranquilo e infalível...

rando o almoço. Já era 13:30! Eu não tenho nada contra pombas, tá?! Afinal, as pombas devem existir por algum motivo, eu só ainda não sei qual... então respeito! É que já as vi acertando umas três, quatro cabeças por aqui. Você estava distraída achei melhor avisar. Diz o homem enquanto se aproxima meio desajeitado — amassando ainda mais a camisa xadrez — pela aflição e ideia de estar desviando de algo. Era como se estivéssemos sentindo a latência da próxima chuva de meteoros.

Apaixonadamente ele virá, que eu vi. Já pensou que demais se eu fizesse uma performance nesse mirante? Ele imagina... Como o índio, isso poderia surpreender a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto. Quando terá sido óbvio, já nos cantou Caetano.

Então você passa sempre por aqui? Perguntei após agradecer sua preocupação de que eu fosse contaminada pela praga urbana.

Nós dois paramos e desvairamos nossos olhares na utopia particular que tínhamos em comum. Esse lugar.

Fomos interrompidos algumas vezes enquanto ele me contou que trabalha há dois anos em uma escola de teatro nos arredores. Primeiro, uma mulher de vermelho: E ai Manú, tudo bem?

Virá, que eu vi.

Ela também era atriz e, depois que passou, o deixou com a mão no peito enquanto levou seu olhar pensativo por alguns segundos. Gosto de como sobrou um verde nesse trecho. Ele diz, agora olhando para o mirante onde outro dia a ameaça almoçava. Onde é o ponto de ônibus por aqui? Interpelou uma senhora vestindo roupas pretas. Eu aponto pra baixo, ele pra cima. Ela fica um pouco indecisa e ele garante que é só esperar que uma hora o ônibus chega. Ou é só gritar FORA TEMER! que ele para na hora. Brincou. Nosso Brasil ta ferrado, né? O que a gente está precisando é do Índio do Caetano [Veloso] pousando aqui, diz olhando para a praça Roosevelt. Sabe, sabe o índio?

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Capítulo 5

Ela sabe, logo, desconfia Feliz aniversário, vivemos na cidade.

Cuidado com esse celular, tá um tanto assim pra fora do bolso. Ela me diz depois que notei seus gestos e tirei um dos fones do ouvido. Com cabelos negros encaracolados dois palmos abaixo do ombro, vestia uma blusa toda branca de mangas compridas e calças jeans. Ela conta que mora por ali, pois então sabe: não dá pra confiar. Moro aqui o tempo de toda minha vida: cinquenta e quatro anos. Sua filha também mora lá o tempo de toda sua vida, que completa hoje, dia 29 de setembro de 2016, dezoito - 107 -


anos. A filha fuma, é frequentadora assídua da Roosevelt e já teve seu celular roubado por lá. Então ela sabe.

máquinas muito mais forte do que essas que se movem em rotas estabelecidas e úteis sob o concreto da praça.

Não tem jeito né? Moramos aqui...

Continuo em pé pois tenho certo receio de me juntar a plateia na escadaria. A plateia é ativa. Ao mesmo tempo que contempla também participa e é jurado dentro de uma organização própria. E quem sou eu pra participar?

Ela me conta enquanto come um pão integral que acabou de comprar no mercado. Estava com fome. Está servida? Agradeço a oferta, o alerta e a preocupação. É, vi você subindo tão distraída e achei que não custava avisar. Feliz aniversário à filha e parabéns pelos cinquenta e quatro anos. Mas, não deixemos de viver na cidade. Confiemos e vivamos na cidade.

Vejo a polifonia de vozes e opiniões qualificadas por eles mesmo como em um leilão sem o valor do dinheiro, só do apoio e estimulo. SABOTAGEM, SEM MASSAGEM NA MENSAGEM, ISTO É SLAM RESISTÊNCIA! NOTA...? É DEZ?! NOVE?! NOVE E SETENTA E CINCO?! NOVE E SETENTA E CINCO!!! Aqui o pulso ainda pulsa, não importa se é viado ou sapatão.

Capítulo 6

Slam Resistência! Todo primeiro dia útil do mês as máquinas de guerra se reúnem armadas de poesia.

Na escadaria da Roosevelt o chão treme graças as máquinas passando por baixo de nós. Ou estaria o chão tremendo por toda força do desabafo e apoio dos aplausos sobre ele? FORA TEMER! É a primeira frase que ressoa. Toda primeira segunda-feira à noite, estas pessoas se reúnem e declamam a poesia do coletivo. Denúncias, opiniões, suporte, postulações e manifestos. Vozes que choram sem lágrimas.

Sento. Não é preciso convite. Pertence aquele que o pulso ainda pulsa. O pulsar que nos leva ao devir, devir mulher, devir homossexual, devir o que quiser. Depredação é o que o patriarcado faz! Outra frase ressoa. Atenção e carinho. É só o que eles pedem. É só o que nós pedimos. Desejamos. Atenção e carinho. É o que a cidade merece. Eu sou a favor do aborto! A voz grita para vencer o barulho dos carros. Grita tanto que tosse e pede água. Não tem água e a culpa é do Alckmin! [Risos]

Me dá estrutura, senhor! Me faz poeta! Força. Aqui os guerreiros unem forças e tornam-se - 108 -

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“A galinha é um grande sono. — A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. […] Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? […] ¶ A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. ¶ […] O ovo é um esquivo.”

Clarice Lispector, O ovo e a galinha


Fontes: Elena (Process Type Foundry) Fakt (Our Type) Jubilat (Darden Studio) Neue Haas Grotesk (Linotype/Christian Schwartz) Pitch (Klim Type Foundry) Impresso pela Ipsis Gráfica e Editora em processo digital nos papéis  Cartão Ningbo c2s 300 g/m2 Offset 120 g/m2 Pólen Bold 90 g/m2 São Paulo, 2017 98

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