Os Herdeiros dos Titãs

Page 1



Eric Musashi

1ª Edição São Paulo 2010


Título original Os herdeiros dos Titãs — de lutas e ideais Copyright Giostri Editora Ltda., São Paulo, 2010 Reservam-se os direitos desta edição à: GIOSTRI EDITORA LTDA Rua Sud Menucci, 71 — casa 01 Vila Mariana — SP CEP: 04017-080 / Tel: 11-25372764 www.giostrieditora.com.br contato@giostrieditora.com.br São Paulo — SP — República Federativa do Brasil. Printed in Brazil / Impresso no Brasil ISBN: 978-85-60157-47-1 CDD: B869-3 Coordenação editorial: Alex Giostri Revisão final: Azuma Nelson Capa: Luis Felipe Camargo Diagramação: Letícia Nascimento CIP — Brasil. Catálogo na fonte. RJ Sindicato Nacional dos Editores de Livros, SP Musashi, Eric Os herdeiros dos Titãs — de lutas e ideais — Eric Musashi 1ª. Ed. São Paulo: GIOSTRI, 2010 1 — Literatura brasileira — novela 2 — Literatura brasileira — ficção 1º título: Os herdeiros dos Titãs 2º título: de lutas e ideais 1ª Edição Giostri Editora LTDA. Este livro segue as regras de acordo com a Nova Ortografia da Língua Portuguesa




A todos aqueles que buscam incansavelmente por verdades irrefutåveis — mesmo sabendo que travam uma guerra perdida.



“Bem-vindas são as águas que afogam minhas palavras” — Ramu, o maior profeta de Grabatal



Sumário DE LUTAS E IDEAIS...............................................

13

SEPARADOS PELO DESTINO I .................................. II ....................................................................

15 20

JATITÃ I ............................................................ II .................................................................... III...................................................................

24 30 35

MUITO MAIS EM JOGO I ........................................ II .................................................................... III...................................................................

38 42 49

UMA FESTA EM CATEBETE I ................................... II .................................................................... III...................................................................

52 56 60

LIRA DOS TITÃS I ................................................ II .................................................................... III...................................................................

63 65 72

O PLANO DE ASTAROTE I ...................................... II ....................................................................

77 84

MUDANÇA DE ANO I ............................................ II .................................................................... III................................................................... IV................................................................... V ....................................................................

89 94 99 105 111

PORTO DA VITÓRIA I ........................................... II .................................................................... III................................................................... IV................................................................... V ....................................................................

119 123 127 132 136

FLORESTA SEM VIDA I .......................................... II .................................................................... III................................................................... IV...................................................................

142 146 150 157


ORTES E SEUS ENIGMAS I ...................................... II .................................................................... III................................................................... IV................................................................... V ....................................................................

163 166 170 174 181

FESTA INTERROMPIDA I ......................................... II .................................................................... III................................................................... IV................................................................... V .................................................................... VI................................................................... VII .................................................................

185 189 194 198 202 209 220

PASSADO GLORIOSO I........................................... II .................................................................... III................................................................... IV...................................................................

226 232 236 241

JORNADA POR GRABATAL I .................................... II .................................................................... III................................................................... IV................................................................... V ....................................................................

250 253 257 261 266

A CIDADE DOS PORTÕES DE OURO I ...................... II .................................................................... III................................................................... IV................................................................... V .................................................................... VI...................................................................

268 272 277 281 290 293

O CONSELHO DOS BÉLIS I .................................... II .................................................................... III................................................................... IV................................................................... V ....................................................................

295 301 308 314 325

ÓDIO E SAUDADE I .............................................. II .................................................................... III................................................................... IV...................................................................

332 335 343 347

MAPA...............................................................

351


De lutas e ideais “E Ramu não se conformava com a situação da sua gente, tão decrépita. Pois ia dormir e tinha pesadelos: indigentes de túnicas sujas e rasgadas e feridas cheias de pus, a pedirem o mínimo e necessário para seguirem vivendo, já que haviam perdido o direito de usar as terras por causa de dívidas com taverneiros e nobres, só conseguiam receber xingamentos dos transeuntes. E as crianças, nas casas das aldeias, viam seus pais, com seu amor fraterno, tendo de sobreviver com um terço do que plantaram e colheram, já que Catebete ou qualquer outra metrópole próxima exigia uma parte, e o resto ficava para os governantes locais; tudo isso para dar boa vida aos que não sabiam viver. A par de tudo isso, era inaceitável para ele concordar e só se preocupar consigo mesmo, ainda que tivesse recursos sem nem precisar mover um dedo. E por isso ele foi Ramu, o Enviado de Isteá.”

Etael, Ramu



Separados pelo Destino I Deitado em sua cama, Téoder observava a aurora boreal do seu quarto numa das torres do castelo que pareciam alcançar o céu. Nuances, cores dançando, oscilando entre o rosado e o lilás, brilhando e acalmando a mente daqueles que apreciavam. De fato, o impacto não era o mesmo nele, já acostumado com tais fenômenos, tão comuns nos céus atalais nos últimos tempos. Não obstante, a beleza, a duração e a força da aurora desta noite, 39º dia de ectomês — o sexto mês do calendário, de um total de sete — do ano 3.992 pós Anjifum, trazia a Téoder fortes lembranças... Sob o forte sol do meio-dia, a sexta hora conforme a contagem atalai, o jovem Téoder, com vinte anos na ocasião, treinava duro. Ele era um imane, posto político-militar só abaixo do béli numa cidade. Ambos, imanes e bélis, produziam efeitos que o povo classificava como “mágicos”, e magia era a palavra mais usual para sua técnica. Uma vez que o béli — uma espécie de prefeito, juiz e chefe militar — tinha seu cargo de forma vitalícia, a sua morte promoveria um de seus imanes à posição. Isso propiciava constantes traições e tramas em busca da posição mais alta, e por isso era necessária uma relação de admiração e confiança entre o béli e seus discípulos. Téoder, que vivia em Catebete, a capital do Reino de Atala, tinha uma predisposição enorme para apreender os ensinamentos marciais. Naquele glorioso dia, ele recebia de seu mestre sua leve armadura e sua espada longa, ambas feitas de aço e com pedras do precioso cristal sevaste. Um cristal tão formoso quanto poderoso, se usado pelas mãos certas. Relíquia de tempos remotos, suas propriedades etéreas são destrutivas, ou ainda de enrijecimento. Sua coloração azulada transparente resplandece, mesmo se sua energia contida não houver sido despertada. A espada com sevaste era o maior orgulho de um béli ou de um imane, e Téoder jamais se esqueceria de como se sentiu, de como quis chorar de emoção. E também que, logo depois, saiu para comemorar. Numa taverna discreta e de pouco movimento, como Téoder preferia, ele saboreava seu vinho e os petiscos à uma mesa de canto. Criado na antiga cidade de Jatitã, onde muitos dos velhos valores ainda eram

OS HERDEIROS DOS TITÃS

15


preservados, o imane não concordava com muito do que via nas outras cidades de Grabatal — obscenidades, assassínios, e pessoas como bichos, sem qualquer cuidado com seu corpo ou integridade. Apesar de ser de natureza solitária, Téoder estava inclinado a conversar com os outros, conhecer gente. Ele relembrava a cerimônia, orgulhoso, quando avistou uma jovem entrando no recinto, que tinha uma pesada porta de ferro, geralmente escancarada.A formosura da moça era tal que o sujo chão de pedra parecia um tapete azul, conforme ela caminhava sobre ele. Até mesmo os trajes simples que ela vestia — uma túnica rosa com uma faixa branca e um colar com um pentagrama na ponta — pareciam ser roupas de uma princesa, tudo isso pelo brilho que ela emitia. — Mas meu pai não tem como lhe pagar a dívida, meu senhor — dizia ela ao balconista, conforme pôde ouvir Téoder, ao que se aproximava. — Ele não é um agricultor? Que pague com trigo, então! — Estamos falidos, e, com muito esforço, meu pai nos sustenta trabalhando como jardineiro para um homem de posses. — Então o mande aproveitar os seus últimos dias — respondeu o balconista, sem se alterar. — Já que ele vive tão mal, será um favor que lhe farei tirar sua vida. O que não posso é deixá-lo impune, e aí outros quererão ficar me devendo, e como farei? Téoder viu a face dela se transformando. Silenciosa, derramou algumas lágrimas, e se encolheu. Seus cabelos alvos, chamuscantes, caíam sobre sua face, sobre seus olhos dourados — ela era de uma linhagem rara, quase desaparecida da face do mundo. O imane sentiu uma instantânea vontade de abraçá-la. Desde que saíra de Jatitã, não mais vira beleza como aquela. — Posso ajudá-la? — perguntou ele. — Não se perturbe com isso, senhor imane — disse o taverneiro. — Está sendo bem servido? — Eu não falei com você. Moça, há algo em que eu lhe possa ser útil? — Creio que não... — Ela respirou fundo. — Mas, se puder, contar-lhe-ei o que me aflige. — Venha comigo. Acho que este lugar não é adequado. — Téoder olhou com raiva para o taverneiro, por tê-la feito chorar. 16

ERIC MUSASHI


Do lado de fora, uma aurora boreal chamuscava para o norte — e por essa razão a lembrança dessa noite. Téoder levantou a moça para que ficasse sentada no seu cavalo, e foi buscar água para ela se acalmar. Ele não lhe tirava os olhos enquanto ela bebia. E, ao trocar olhares com ele, a jovem apenas abaixava os olhos. Os olhos azuis escuros do imane lhe inspiravam respeito. Ao que ele retornou, após ir levar o copo, viu que, a não ser pela aurora boreal, nada mais impedia a visualização das estrelas. Ela olhou para algumas, como se a lembrassem de algo. Téoder montou em sua frente, e fez o cavalo se movimentar. Ela inconscientemente debruçou sobre as costas dele, aliviando um pouco sua dor. — Você ainda não me disse seu nome — apontou ele, fazendo com que ela se assustasse, afastando-se um pouco dele e envergonhando-se pelo que tinha feito. — Me-meu nome é... Meu nome é Faná — disse ela, ofegante. — Muito prazer, Faná; eu sou Téoder. Era uma palavra de impacto o seu nome, e ela se sentiu diminuída. — Não precisa ter medo de mim — disse ele, amável. — Eu sou um imane, mas um ser humano como você. E agora me conte; o que a aflige? — Meu pai... Ele tem problemas com a bebida, e já deve uma grande quantia ao dono daquele bar. Ele não tem como pagar, e agora pode morrer. — Qual é a quantia? — perguntou Téoder, olhando nos seus olhos. — Digo, em trigo, já que é a forma mais comum de se pagar. — Doze sacos. Era um valor considerável para uma pessoa pobre. — Hum... Eu recebo um pouco mais que isso em um mês. Façamos o seguinte: eu pago a dívida do seu pai, mas em troca quero comer um mês na sua casa. — Com isso promovia um período de cortejo, e, além da admiração da moça por tê-la ajudado, poderia nascer algum sentimento mais profundo. — Você recebe isso por mês...? — ela se assustou. — Como disse, um pouco mais. Sou um imane. — Mas... O que faz com o excedente? Para Faná era muito estranho que alguém conseguisse gastar em cinquenta e dois dias tudo aquilo que seu pai demorou tanto tempo para

OS HERDEIROS DOS TITÃS

17


ficar devendo em bebida. Era desleal o que o governo fazia com os pequenos produtores, tirando grande parte e dividindo entre os militares, de acordo com seus postos. — Bom, sempre fazemos grandes festas, e precisamos pagar pela bebida — respondeu ele. — Também compramos equinos, carros, roupas e cuidamos de nossas armas e armaduras. E então, aceita a proposta? — Por que quer fazer suas refeições na minha casa? Téoder sorriu, e ela achou belas suas feições. Havia um quê de inocência e jovialidade nelas, por mais que ele tivesse um rosto másculo. — Pois aqui, em Catebete, sei que jamais encontrarei alguém como você. Sua aparência e seus modos me fazem pensar em Jatitã, e me sinto em casa ao seu lado. — Eu também era de Jatitã — disse ela, após um breve silêncio de lisonja. — Ou melhor, você era de Jatitã? Pelo que diz, concluí... — Sim, Faná. Nasci lá, e odeio toda esta perversidade daqui. Eles se encararam, e naquele momento o imane soube que seria correspondido. — Tome — esticou-lhe o braço, e lhe entregou um pergaminho com o carimbo do palácio de Catebete. Era uma ordem de pagamento de quinze sacos grandes de trigo, ou o equivalente em outros produtos. Faná abriu a boca num “o”, estupefata. — Tenho que ir agora — anunciou subitamente, e escorregou pelo lombo do cavalo. — Mas como saberei onde mora? Ela não lhe respondeu, afastando-se e entrando numa casa perto de onde eles estavam. Um domicílio simples, sem jardins ou fontes na frente, com uma leve porta de madeira. Ainda acenou para Téoder antes de desaparecer. Ele se virou, para ir embora.Antes, porém, ainda observou novamente a aurora boreal. Prometeu guardar na memória aquela noite, até o fim de seus dias. Mesmo que não mais visse Faná.Ainda que o Destino os separasse ou os colocasse de lados opostos, irreconciliáveis. Assim como Téoder vislumbrava o céu, também era observado pela Rainha Quetabel, enquanto esta se despia. Com as roupas que ela usava, 18

ERIC MUSASHI


preocupando-se sempre em mostrar a perfeição da sua beleza conservada durante setecentos anos, despir para ela não era tão difícil assim.Tirou seus braceletes e suas peças de seda que cobriam as pernas com muito cuidado, e depois tirou as joias douradas que tapavam os bicos dos seios e o púbis. Olhou uma vez mais para Téoder, e depois fitou a corrente que pensara em tirar. Manteve-a no pescoço, por fim. Aproximou-se dele com cuidado, abraçando-o por trás. — Está pensando nela? — indagou, com um sorriso de tigre nos lábios. — Eu sei que está. Téoder sacou a sua espada de béli da bainha com muita rapidez, usando a técnica de saque e ataque que aprimorara por dezoito anos. Ela, diferente da espada longa dos imanes, era mais leve e menos espessa; tinha belos desenhos e acabava sendo mais rápida do que às dos primeiros — e o fato de ser menor não fazia diferença quanto à efetividade: as duas eram feitas de aço (ferro — aço de má qualidade — nalguns casos), e as dos imanes, cobertas por pedras finas de cristal; já as dos bélis, com grandes pedras de sevaste. Mesmo tendo mais porcentagem de metal, eram conhecidas como “espadas de sevaste”, para diferenciá-las das comuns. A lâmina cruzou o ar e o seu golpe foi contido ao roçar o pescoço da Rainha. — Eu já lhe disse para nunca mais falar dela. Quetabel gargalhou: — Você sabe que me excita com esse jeito de durão, meu béli. — Ela sorriu novamente, agora com uma pitada de sedução no olhar. Téoder a olhou, de cima a baixo. Ela era uma esbelta de pernas grossas, extremamente desejável. Cintura fina, seios rígidos como se jamais tivessem sido tocados e um rosto de sereia. Seus cabelos castanhos ondulados e o andar sedutor ajudavam a torná-la mais cobiçada do que qualquer outra na ilha-continente. Mas não era isso que ele queria. Jogou-a na cama, com muita força. O colchão de crina de cavalo amorteceu sua queda. — Eu sei que é Faná que você quer. Mas... agora ela vive em mim! Venha, sou eu quem você quer! — exclamou. Ela então segurou a corrente com o pentagrama na ponta, mostrando-o para Téoder.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

19


Ele foi até ela, tirando a sua armadura de aço com pedras de sevaste e a sua túnica azul. E começou a beijá-la com certa violência, avermelhando sua pele por onde quer que sua boca passasse. Todavia, isso a agradava, envolvendo-a mais e mais. A culpa de Téoder pelo que havia feito com Faná, a sua devoção em não tentar esquecê-la. Era o que fazia Quetabel amá-lo. Ela, que só tinha se apaixonado uma única vez, e que tinha arrancado esse amor do seu coração após dormir com quase todos os homens do Reino, enfim amava novamente. Um sentimento que ela achou que não mais fosse sentir era o amor. Mas não esperava encontrar alguém tão romântico quanto ambicioso, assim como ela. Alguém que fez algo tão cruel para não perder a vida e a condição de béli. E alguém que ainda se arrependia disso.

II Horas depois, longe dali, na cidade de Jatitã, amanhecia o quadragésimo dia do sexto mês. Enquanto toda a cidade começava a acordar, e seus homens iam para as terras próximas para trabalhar, cruzando pontes sobre os anéis de água que protegiam a velha capital, alguns rapazes ainda dormiam embriagados na praia. Um deles acordou, espreguiçando-se e correndo para o mar, a fim de que os efeitos da bebida passassem. Nadava nu, típico atalai. A água estava fria, mas ele não se importava. Mergulhou, e depois ficou olhando para a cidade, distante, erguendo-se sobre um monte, o último recanto de paz daqueles que ainda mantinham os costumes tradicionais. Ela lhe trazia lembranças de sua mãe, e isso quase o sufocava. O nadador matinal era Arion, o líder dos rebeldes ao governo do novo béli Sevijá, que preferia dilapidar o tesouro do governo em banquetes exagerados seguidos de orgias entre os nobres a cuidar dos problemas da cidade. Ele justificava que assim Jatitã se modernizaria, e, com o novo estilo de vida, as mentes dos cidadãos compreenderiam o novo mundo, acabando com a estagnação de décadas e retomando o crescimento. Enquanto Arion se banhava, uma menina esguia chegou com uma sacola, desmontou de seu cavalo e foi até os que dormiam. Ela parou ao que avistou o líder nadando. Seu coração estava disparado, e seus olhos muito atentos, fixados no corpo esbelto e nu do jovem que insistia 20

ERIC MUSASHI


em não perceber sua presença. A garota, apesar de ainda não ter se desenvolvido completamente, atraía os olhares dos homens por rosto bem-feito, longos e lisos cabelos negro-azulados e grandes olhos da cor de safiras. Ela trajava um vestido azul e pulseiras e sandálias de couro. De forma alguma é vergonha para um atalai ver outro nu, até mesmo em Jatitã. Entretanto, ver Arion como veio ao mundo era uma novidade para Ariádan. Ela memorizou cada curva, cada detalhe, para que se lembrasse em seus sonhos. Arion saiu da água, e enfim a viu. Ela, envergonhada por seus sentimentos, virou o rosto. Ele não entendeu, afinal, eram amigos, quase irmãos.“Deve estar ficando tímida”, pensou ele. Vestiu suas roupas simples rapidamente, e agitou os cabelos brancos como a neve, e então se aproximou dela, com um fraternal sorriso. — Olá, Ariádan — disse. — Dormiu bem? — quis saber ela. — Sim. Meu colchão é muito grande, macio e maleável. E o Mar canta para que eu durma. — Ela riu pela brincadeira. — Mas o que traz aí? — perguntou ele, apontando para a sacola. — Ah, isto aqui é para vocês. Uma refeição matinal. — Ela começou a mexer no saco, e ele tirou pães, um pote de madeira com mel e dois cantis cheios com vinho. Ele se aproximou dela e a abraçou, muito agradecido. Ela o apertou com força, mas também de um modo carinhoso. Arion a beijou no rosto, e se afastou. — Você vem nos ajudando muito nesses últimos dias — disse ele. — É. Mas eu jamais o abandonaria, principalmente depois que foram expulsos da cidade. — Eu gosto muito de você. — Arion sorriu, e em nada lembrava o garoto de três anos atrás, perdido e inseguro. Já era um homem. — Você não sabe o quanto me sinto bem em ouvir isso. Os dois se sentaram voltados para a cidade, a movimentação para fora, enquanto Arion comia. Homens iam para os campos e as mulheres educavam os filhos. Uma lei que já tinha mais de 1.300 anos, expedida pela Rainha Umbaz, obrigava os pais a sustentarem seus filhos até que estes completassem dezesseis anos. Com isso, Umbaz ajudou as mulheres de sua época, que, tendo filhos de vários homens e não podendo trabalhar,

OS HERDEIROS DOS TITÃS

21


não passariam fome.A lei já era tão antiga que os atalais a consideravam natural — ainda que tenha gerado protestos por meio século. Enquanto seus amigos rebeldes se levantavam e matavam sua fome, Arion olhava atentamente para uma casa que só podia ser divisada por ele pelo fato de saber onde ela estava. Ela era simples, pequena, mas parecia trazer boas lembranças para ele. De fato, traziam... De posse da espada de béli de seu pai, que estava de visita em Jatitã, Arion, com quinze anos, treinava. Desde pequeno ele fazia isso, aprendendo técnicas de luta, como usar o sevaste para ataque e defesa e estratégia militar. Já era perito, pois nos longos períodos que Téoder passava fora de casa, Arion seguia à risca uma rotina de exercícios e estudos deixada por ele. Uma pedra veio em sua direção com extrema velocidade, mas foi explodida por um golpe leve e sutil da lâmina de aço. — Muito bem, meu filho. Hábil, como está, não demorará até que eu o apresente como imane. E um dia você substituirá seu pai, na cidade de Catebete — disse Téoder, orgulhoso. Arion ficou pensativo; seria o seu destino se tornar um guerreiro, tendo tanto onde muitos não tinham quase nada? E tendo que tirar vidas, possuindo uma poderosa arma nas mãos. Não estava certo sobre aquilo. — Mas pai, não seria melhor eu ficar aqui, onde cresci? — indagou. — Se o deixei em Jatitã, meu filho, foi para ter paz, desenvolver-se sem incômodos necessários, e porque sua mãe me pediu esse tempo em sua terra natal. Contudo, eu o preparo para ser o primeiro em Atala, exceto pela Rainha e seus anjos, o Béli-Mor! Como pode querer outra coisa? Arion ficou sem resposta. Algumas horas depois, ele e sua mãe Faná observavam o vulto de Téoder montado no seu cavalo se afastar no horizonte com seus poucos companheiros. Voltava uma vez mais para Catebete e deixava sua família em Jatitã. — Eu quero que me prometa uma coisa, filho — pediu Faná, com seu semblante tão triste que até mesmo tirava a beleza inata daqueles olhos coruscantes. — Que não se tornará o Béli-Mor, e nem irá até Catebete. — Por quê? — É um lugar decadente, corrupto, sujo. Filho, prometa-me que, aconteça o que acontecer, você nunca irá para lá. Por favor, prometa-me! 22

ERIC MUSASHI


Ele ficou olhando para ela, que tinha os olhos cheios de lágrimas. Arion preferia mesmo nunca sair de Jatitã. Por mais que muitos morressem de fome nesses tempos sombrios e que seu pai o quisesse fazer um poderoso béli, ele concedeu o desejo de sua mãe, fazendo a promessa. Mal sabia que seria a última. E, como muitas mães, arrependeu-se Faná: “Fui tola”, pensou. “Estou atrapalhando-o com o que acabei de lhe exigir.” Ela o apertou num abraço, e um gélido vento adentrou pela porta, nenhum dos dois se desfazendo do abraço para fechá-la. Pareciam saber que desfrutavam de um dos últimos momentos juntos, e nem perceberam que eram vigiados. Os homens da Rainha se foram, levando uma preciosa informação para ela. Uma informação que custaria uma vida. — O que faremos agora, meu amigo? — perguntou Rassuí para Arion, interrompendo sua divagação. Era um legítimo rapaz de Jatitã, com cabelos e olhos anis e um corpo avantajado. Rassuí teve seu pai morto por Sevijá, o atual béli, que era seu imane na ocasião. — Vamos voltar para a cidade — respondeu Arion. — Isso mesmo — reforçou, ante os olhares atônitos. — Jatiã também é nossa. — Mas e se Sevijá... — ia dizendo Ariádan, preocupada. — Rassuí, você não apanhou a espada de seu pai? — Arion apontou para a arma, entre os pertences do amigo. — Então estamos protegidos. — Arion, eu não sei usar magia — disse Rassuí, que nem teve tempo de começar o treinamento, e falava como os leigos. — Eu sei — replicou Arion, apanhando-a da areia e caminhando rumo à cidade.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

23


Jatitã I Rezava a lenda que Jatitã, a cidade sobre o monte de onde emergiu a cultura atalai, antiga capital de um império que, há mais de mil anos, se tornou o Reino de Atala, foi fundada pelo seu primeiro rei, Anjifum, no ano zero do calendário. De características únicas, o palácio no ponto mais alto, avistando a planície ao redor e o mar azul, e três anéis de água circundando a cidade, um em volta do outro, um canal indo até o mais interior e dando acesso ao oceano, Jatitã era o local mais procurado, mais clássico, e não havia quem não desejasse morar lá. Suas gigantescas construções, as piscinas de águas cristalinas, as tavernas com o autêntico vinho de Ancatébia — coisas que faziam a cidade manter o seu prestígio, mesmo depois de perder o posto de capital para o até então desconhecido vilarejo de Catebete, terra natal da Rainha Quetabel. Mas, nos últimos tempos, com o povoamento do oeste que por três milênios foi de povos hostis de cabelos verde-aloirados, o crescimento desmedido de Catebete e sua urbanização impressionante, e o aumento populacional do leste com suas terras férteis, Jatitã foi sendo esquecida. Os costumes atalais mudaram, e muito da cultura original da antiga capital se perdeu. Sua religião, que cultuava os titãs — antigos espíritos da natureza — e incentivava a harmonização com os cinco elementos (Terra, Água, Fogo, Ar e Éter, que é o intocável, mas permeia os outros quatro), foi sendo gradativamente substituída por outra, onde a única Deusa era Quetabel, e os anjos eram os seus Sacerdotes. Os templos dos cinco elementos em Jatitã não foram visitados mais, e o ocaso promoveu a destruição de várias relíquias guardadas neles. Além disso, Catebete passou a influenciar o Reino todo, com seus excessos e suas novas leis. O apreço pelos banquetes e pela bebedeira se sobrepuseram ao requinte de um deguste dos antigos, e a libertinagem parecia mais atraente que a virtuosidade e o casamento. Não era mais normal formar famílias, e nem proibido a um militar qualquer matar, desde que se justificasse a morte. Ainda que a nudez em locais adequados — piscinas, rios, termas — fosse normal, e não tivesse a conotação de uma sociedade em que ela é tabu, de Catebete vieram os beijos em público, e a fornicação nas esquinas escuras. 24

ERIC MUSASHI


Mas Jatitã continuava relutante com seus modos. Isso foi mantido até o começo do ano 3.992, quando o imane Sevijá tramou com seu irmão, Namirai, em fim de treinamento — e os outros dois discípulos do béli resolveram não se meter, mas mantiveram o segredo —, e assassinou o seu béli Verjar numa emboscada. Ele assumiu o posto de béli da cidade, como seria natural que acontecesse em qualquer outro povoado atalai. O povo não aceitou tal brutalidade, e houve protestos repelidos com massacres por parte dos soldados. Sevijá adaptou as leis rapidamente, discursando sobre Catebete e sua riqueza, e favorecendo a desigualdade. Alegando que aderindo ao novo estilo de vida eles estariam fazendo a vontade da Deusa, o béli calou seus opositores. Apelando para a superstição, afirmou inclusive que haviam sido esquecidos por causa de um castigo da Deusa, por não haverem feito a sua vontade, cultuando os mitos da realização dos sentidos em orgias e bebedeiras. Tudo corria conforme ele esperava, até que dois jovens chamados Arion e Rassuí começaram a inflamar o povo contra o governo. Rassuí, aliás, filho de Verjar, tinha a fúria contra a morte do pai à traição como discurso. Já Arion, possuía ideais mais profundos: questionava o fato da Rainha Quetabel ser mesmo uma Deusa. Eles não tiveram muitos seguidores, mas começaram algo que podia aumentar com o tempo. Preocupado, Sevijá preparou um ardil para executá-los sob acusação de traição, porém eles conseguiram fugir com a ajuda de Ariádan, uma grande amiga que trabalhava no castelo, e por isso ficou sabendo do plano. Enquanto os via escapar pelas terras entre os anéis d’água, além dos muros e de sua milícia, o béli gritou aos quatro ventos que estavam expulsos da cidade. Não obstante, os portões de Jatitã permaneciam abertos durante o dia, e, especialmente naquele mês, as docas viviam abarrotadas de navegadores, a maior parte de Porto da Vitória, que traziam maravilhas do alémmar. E já era dada a primeira sexta hora — ou sexta hora do dia — de 40 de ectomês quando Arion, Rassuí, Ariádan e mais outros seis rebeldes caminhavam livremente pelas ruas pavimentadas. Eles se ocultaram conforme podiam, pois não queriam confusão — ao menos não por enquanto. Mas não podiam escapar de todos,

OS HERDEIROS DOS TITÃS

25


ainda mais numa urbe com vinte mil habitantes: olhares reprovadores os perseguiam, mesmo que uma pequena parcela os admirasse por sua coragem. Arion nem se preocupava em olhar para os lados; Ariádan, com um lenço na cabeça para não ser reconhecida, escondia o rosto — afinal, era funcionária do béli. Já Rassuí e os outros ficavam olhando para os lados, fazendo com que algumas pessoas se envergonhassem, deixando de observá-los. O dia estava muito quente, e o chão de pedra feria os pés de Arion, o único que estava descalço. Mas ele não demonstrava dor, pois não queria a piedade daquele povo covarde. Ele apenas olhava adiante, enquanto era abraçado por Ariádan, que tremia de medo. Enfim chegaram. — Bom, não é totalmente seguro, mas creio que não há um lugar assim nesta cidade para vocês, não concordam? — perguntou a bela jovem, tirando o lenço que cobria seus cabelos de brilho azulado. — Humf — sorriu Arion, enquanto observava ao redor. A casa era pequena, e suas paredes apresentavam rachaduras. Estava na parte pobre de Jatitã, um dos bairros baixos, quase despencando no anel d’água menor. Um local em que um béli como Sevijá jamais pisaria. Sem janelas ou um pátio central, ela era quente, o vento entrando só pela porta da frente. Ariádan acendeu uma vela, revelando dois cômodos. Um era o quarto, e o outro tinha uma banheira de azulejos.Talvez a única peça cara da casa. — Lembra-se de quando brincávamos aqui fora, Ári’? — perguntou carinhosamente Ariádan. — Sim, lembro-me — respondeu ele com certa nostalgia. Em pouco tempo, os rapazes foram se ajeitando, cada um jogando seu pano numa parte do quarto. — Eu vou tirar um cochilo — avisou Rassuí. — Está quente, e não descansei direito naquela praia. Certamente, estava acostumado com colchões macios e muito conforto — não que fosse encontrar isso ali, ou algo mais que um pano forrado no chão. — Acho que vou tomar um banho antes de voltar para o castelo — disse Ariádan, que acabara de encher a banheira, e começou a se despir. 26

ERIC MUSASHI


— Será que cabe mais um? — indagou Arion, despindo-se também. Eles cresceram como irmãos, que mal havia nisso? Desde crianças sempre tomaram banho juntos, seja no mar, numa das piscinas de Jatitã, ou mesmo em casa, brincando. Mas agora era diferente.Ariádan pensou em relutar, porém uma parte sua não queria negar nada que Arion pedisse, e nem a chance de sua proximidade. Ela entrou na banheira, um pouco constrangida.Arion entrou logo em seguida. Enquanto ela olhava para ele o tempo todo, ele tomava banho tranquilamente, como se estivesse sozinho. Afinal, era costume. Arion se esfregou com uma certa rapidez, e virou-se: — Você pode esfregar minhas costas? — pediu, dando a bucha para ela. — C-claro! Ela se levantou e o esfregou com rapidez. — Por Vaiú; está ficando boa nisso, hein! Quer que eu esfregue as suas? — É uma boa ideia — disse ela, virando-se e pegando os cabelos, colocando-os para frente, revelando a pele lisa para ele. Seria mais uma cena rotineira, mas havia algo diferente: vendo aquelas instigantes curvas, Arion percebeu que ela já estava se tornando uma mulher. Ele nunca mais a vira nua. Já fazia três anos, e ela, agora com quinze, mostrava-se sensual de uma maneira que ele não podia esperar. De fato, nesses últimos três anos Arion chorou a morte da mãe, afastando-se de tudo e de todos. Quando foi procurado por Rassuí, que tinha perdido o pai, voltou a viver, desta vez tendo o ideal de derrubar o governo. Não só com raiva do béli de Jatitã e do seu pai Téoder, mas também da Rainha que estava por trás de tudo, a verdadeira responsável. Ele derrubou a bucha sem perceber. Acariciou — com uma leveza que suas mãos nem sonhavam serem capazes de possuir — as macias costas da garota. Ela fechou os olhos, e expirou, sorrindo de leve. Arion a virou, vendo o seu puro e púbere corpo. Estava possuído pelo desejo. — Ariádan... como você... cresceu! — falou ele, sem nem perceber. — Ári’... Ele a puxou para perto de si e a beijou. Arion não se dava conta do que estava acontecendo com ele, mas desde que os hormônios tinham

OS HERDEIROS DOS TITÃS

27


começado a aflorar no seu corpo juvenil, ele só tinha se preocupado com vingança, com sentimentos ruins. Enfim percebeu que além de ser um idealista, era um homem. As línguas se cruzaram, e eles pareciam estar hipnotizados, deixando-se levar. As mãos de Ariádan acariciavam o corpo de Arion, aumentando a velocidade aos poucos. Estavam se sentindo muito bem. De súbito, Arion recuperou a razão, como que por acaso. O que estavam fazendo? Ela era uma garotinha que ele vira crescer e que gostava de proteger. Seria ele a agir com ela à maneira de Catebete, aproveitandose de sua inocência para saciar seus desejos? — Não devemos fazer isto! — exclamou, afastando-a. — Por quê? — Ariádan perguntou, surpreendida e frustrada. — Olhe, somos irmãos, lembra-se? Eu não me entregarei a esses novos costumes, não a terei se não é minha esposa, minha amada. — Arion, que costumes? Eu quero você, só você! — Eu sei, e também a quis assim. Mas é só desfrute. Desculpe-me por ter me aproveitado de você dessa forma. Logo eu, que quero trazer de volta à Jatitã a importância de um ideal, que este Reino sem valores perdeu. Arion saiu da banheira e se cobriu com um pano. — Você não entendeu, Ári’... Eu o amo — sussurrou Ariádan, enquanto ele se afastava. Ariádan crescera com Arion e Rassuí nos arredores do castelo pelo parentesco de Faná com Glória, mãe da menina — eram primas. O pai de Ariádan havia iludido sua mãe: ele era de Porto da Vitória, um comandante de navio, e, ao aportar em Jatitã, conheceu a formosa Glória, e com ela teve um curto romance, prometendo-lhe casamento, porém desaparecendo em seguida para voltar só treze anos mais tarde. Sem esperanças quanto ao próprio destino, Glória decidiu ir com ele, mesmo tendo que cumprir uma dolorosa condição: Ariádan não poderia ir junto. Para onde eles iam? Somente o capitão da nau sabia. Talvez para ilhas próximas, ou mesmo outra nação. O fato é que ele estava endividado, e ao reencontrar seu antigo amor, decidiu levá-la para construir uma nova vida em outro lugar. Ariádan, com treze anos na ocasião, acabou sendo colocada como serva do castelo por Verjar, em atendimento a um pedido de seu filho 28

ERIC MUSASHI


Rassuí. Mesmo após sua morte, ela ainda foi mantida, visto que Sevijá não se mostrou interessado pela administração do castelo — suas reformas eram em outra esfera. O fato é que a casa estava abandonada já há cerca de dois anos, e por isso precisava de alguns cuidados. A poeira imperava, e com exceção da banheira, tudo estava sujo. Antes que seus amigos pudessem atingir o sono profundo, Arion acordou todos, e os resmungos se multiplicaram, transformando-se num coro de insatisfação. — Vejo nas suas faces que não gostaram de serem despertos. Mas, se não ligam para toda esta sujeira, eu ligo! — Ah, deixe-me dormir, Arion — reclamou Rassuí, o que tinha mais intimidade com ele. — Nada disso, primeiro temos que trabalhar! No começo todos estavam bravos, amuados. Cada um dos oito cuidava de algo. Limpar o chão, as paredes, lavar os lençóis, os pratos de madeira e outros serviços. A casa era pequena, e não ia ser tão trabalhoso assim. — Viram, não foi difícil — brincou Arion. — Ah, cale-se! — gritou Rassuí, jogando um pano sujo em seu rosto. — Ei! Terá retaliação! Arion pegou o recipiente que tinha em mãos, ainda com um pouco d’água, e molhou Rassuí. Também respingou em Naupo e Luredás, outros dois jovens que estavam com eles, inclusive, molhando a inseparável lira de Luredás, que embalava as suas noites embriagadas. A confusão foi se generalizando, e logo todos estavam na brincadeira. Uma cena comum entre amigos jovens; todos eles tinham entre dezessete e vinte anos de idade. Ariádan, que esquecera suas pulseiras em casa, visto a constrangedora situação que enfrentara, ao voltar, pegou-os em flagrante. — Pensei que iam limpar a casa, Arion. — É, estamos tentando! Ela se divertiu observando a brincadeira deles. A água acabou espirrando nela também, que decidiu participar e deixar de ser adulta um pouco. Mais tarde, enquanto se secavam,Arion se aproximou dela, sentandose ao seu lado, e pensou um pouco, antes de começar a falar.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

29


— Desculpe-me pela hora do banho. Fui muito rude com você. — Tudo bem Arion. Eu entendo que tenha se assustado. — Que bom! Não queria tê-la magoado. — ele se sentiu aliviado. — Sabe, Arion... Ah, é melhor eu voltar para o castelo — disse ela, levantando-se.

II Os oito rapazes conseguiram passar cerca de uma semana na antiga casa de Ariádan sem se exporem. Ela levou vinho para eles, e a lira de Luredás os distraía quando não estavam se embebedando ou comendo. Todavia, o tédio foi ficando tão grande que já não podiam se conter. Ariádan, também, não saía muito do castelo, para não levantar suspeitas, e, além disso, o vinho acabara, e ela não poderia comprar mais, pois senão ficariam sem comer. Já era noite do 49º dia — três para o fim do mês — quando Rassuí chamou-os para sair. Ele queria passar em sua casa e rever sua mãe, e então poderia pegar uma peça de prata e comprar vinho na taverna. Os atalais ainda viviam num sistema onde as terras eram do governo, e, na verdade, costumavam apenas comerciar na base de trocas. Por outro lado, quando alguns começaram a viajar de uma cidade para a outra, perceberam que o ouro e a prata tinham grande valor em qualquer lugar. Ao chegarem onde ficariam, trocavam o precioso metal com o béli local, ou mesmo imanes, por comida, bebida e até mesmo moradia. Com o tempo, isso foi se oficializando. Como para os bélis costuma custar caro promover buscas por metais preciosos, eles preferem trocar seus excedentes pelos ornamentos; assim, deixando mais belos seus castelos e até mesmo ordenando a forja de novos acessórios para usarem. Copos e pratos de ouro são comuns nos castelos de imanes e bélis. Nunca houve um valor fixo para o ouro e para a prata; aliás, quanto menor o povoado for, mais o ouro vale, pois provavelmente menos há lá. Quando uma cidade tem muito ouro, consequentemente menos valor será dado por seus habitantes para os metais. Um padrão adotado é que quase sempre o ouro vale vinte vezes mais que a prata, com pequenas variações. Ultimamente, existia uma ideia na região de Jatitã e arredores de se unificar os valores, mas ainda estava começando a se concretizar. Aldeões dificilmente possuíam prata — quem dirá ouro! —, e se possuíssem, seria pouco. Arion tinha muito, que seu pai havia deixado 30

ERIC MUSASHI


com ele há três anos, mas terminou de gastar há cerca de dois meses, quando passou a viver da caridade dos amigos. Já Rassuí, que recentemente perdera o pai, podia recorrer à sua mãe, pois ela ainda guardava boas economias, e lucrava com suas tavernas. Além disso, ela também recebia a ajuda de seu irmão, tio de Rassuí, com quem morava agora. A ideia de Rassuí era boa, mas alguns, com medo, relutaram. Entretanto, Arion, Luredás e o próprio Rassuí trataram de convencê-los que seria o melhor a fazer. Todos se banharam e ajeitaram os cabelos, e Arion apanhou a espada etérea. Alguns duvidavam que ele soubesse usá-la, mas não ousavam dizer isso a ele. — Para onde pensam que vão? — perguntou Ariádan, ao chegar bem na hora em que saíam. — Vamos nos divertir um pouco — disse Arion, o mais próximo a ela. — Estão loucos? — Ela arregalou os olhos. — Não se preocupe. Aliás, venha com a gente; está linda com essa roupa — elogiou Rassuí, sorrindo para ela. Realmente, o vestido roxo caía muito bem nela. — Isso não vai terminar bem — relutou ela. — Eu conheço uma taverna tranquila. Nada de mau acontecerá — encorajou Luredás, seus cabelos alvos instigando confiança. Tão logo chegaram, constataram que ele dizia a verdade. Um lugar calmo, limpo, sem brigas ou a agitação das tavernas com dançarinas. Simplório, na certa nenhum béli ou imane se sentiria atraído por ele. Não obstante, algo preocupava Ariádan. Numa mesa um pouco distante deles, telapuros comiam e bebiam alegremente. O posto militar mais baixo, de guardas armados que garantiam a ordem nas cidades e eram o grosso dos exércitos em conflitos que raramente aconteciam, ser um telapuro ainda era melhor do que ser um civil. Eles portavam espadas de ferro em técnica rústica de forja — ou ainda bronze —, couraças com peças metálicas que protegiam o peitoral, e envolviam as pernas num saiote com tiras de metal. Sob os comandos de um mádi, superior que cuidava de um distrito, região ou lugar especial de uma cidade, telapuros eram rudes e orgulhosos. Com o tempo, esperavam ascenderem, deixarem as ruas, e passarem a carregar a espada de ouro e sevaste na armadura, tornando-se honrados mádis.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

31


O que mais a assustava, no entanto, era que um deles não parava de olhar para ela, envolto num capuz. Ele não vestia armadura alguma, mas carregava uma espada que, pelos desenhos da bainha, era especial. Não era Sevijá, sem dúvida. Ou era um ladrão, ou então o pior: um imane. — Ariádan, fique aqui. Rassuí e eu vamos pegar mais vinho — disse Arion, passando a mão em seu ombro. — Tudo bem, mas voltem logo. Luredás estava um pouco longe dali, tocando as suas melodias. Seus outros amigos dançavam com algumas garotas que os desconheciam — e nem desconfiavam que eram exilados. E Ariádan seguiu sozinha, e, para a sua infelicidade, o homem que a observava já há algum tempo se aproximou. Ela sentia más intenções nele — seus olhos chamuscando feito safiras transmitiam isso. Seus cabelos anis estavam presos para trás, formando um rabo-de-cavalo — revelados ao tirar o capuz. Vestia uma túnica verde, com pulseiras de ouro nos braços, e usava botas de couro. Ariádan sabia bem quem era. — Olá, moça bonita — disse Namirai, um dos três imanes de Sevijá. — Oi — respondeu ela, tentando não olhar para os amigos, mas já sabendo que se Namirai ainda não tivesse os percebido, os seus companheiros o teriam feito. Ele colocou sua cadeira ao lado dela, e, sem ser convidado, serviu vinho num copo e começou a beber. — Qual é o seu nome? — indagou. — Ariádan. — Lembro-me de você do castelo. — ele se aproximou e a envolveu com seu braço. — Eu costumava observá-la enquanto limpava o chão do meu quarto, Ariádan. Sim, lembro-me de você, e foi graças à minha voz que você passou apenas a servir refeições. Um trabalho melhor, não? — Atemorizada, ela só fez menear a cabeça. — Eu estive pensando: não quer sair daqui e ir comigo para um lugar onde fiquemos a sós? — Olhe, desculpe-me. Estou acompanhada. — Ora, vamos; eu sei que quer — ele passou uma mão sobre sua barriga, contendo-a com força com o outro braço. — Largue-me! — Agora me rejeita, mas logo não vai parar de sonhar comigo. Deixe-me lhe mostrar! 32

ERIC MUSASHI


Ele começou a beijá-la à força, impossibilitando-a de gritar. Vez ou outra Ariádan passava por situações desse tipo, ainda mais servindo o béli e seus três imanes quando ainda estavam nus sob seus lençóis. Ela conseguiu escapar sozinha até esta noite, mas agora quis chorar, sabendo que não tinha chance. — Ei, não está ouvindo? Deixe-a em paz. Namirai soltou-a, virando-se para ver quem o incomodava. Numa mesa próxima, os telapuros puseram-se de pé, e o seu senhor fez um sinal, ordenando que se sentassem. Ele pôde ver dois jovens; um mais atrás, com cabelos e olhos típicos de Jatitã. Reconheceu-o: era o filho do antigo béli Verjar, ainda que tentasse esconder suas feições com algumas mechas dos cabelos desajeitados. Contudo, não era esse que falara com ele. Era o outro, o rapaz de cabelos brancos, espécie em extinção. — É melhor se afastar, moleque. Não sabe com quem está lidando — ele disse, rindo com desenvoltura. — Não. É você que não sabe! — Arion rangeu os dentes. — Ora, ora, agora o reconheço... É o instigador da desordem, que, se bem me lembro, foi expulso daqui. Sabe, deveria ter ficado bem longe da cidade. Agora eu lhe darei uma lição, em nome do béli! Ele se levantou, partindo para cima de Arion de surpresa, com um forte soco. Munido de rápidos reflexos, o garoto apenas se esquivou, curvando-se levemente para a direita. Aproveitando-se do movimento, apanhou o punho direito de Namirai, que cruzara o ar no esmurrão. Arion agarrou-o e arremessou-o contra uma mesa que estava vazia, próxima a eles, e o corpo descoordenado do imane derrubou tudo em seu caminho, restando sobre ele cadeiras tombadas. Se Namirai fosse experiente, não deixaria se levar pela raiva com a afronta. Outrossim, era um novato imane, e, na fragilidade do clã que o treinou, não aprendeu a escapar da raiva — ou, como alguns poucos, a usá-la corretamente. Levantou-se, e mesmo sem se virar para o lado, podia sentir os olhares de todos focados nele. Era humilhado, sendo ferido por um qualquer. Sacou sua espada e partiu na direção de Arion, intentando provar a todos que ninguém deveria tocá-lo novamente sem o seu consentimento. — Agora pagará por sua insolência! — gritou, a quatro passos de seu alvo.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

33


— Não quero brigar! — pediu Arion. — É tarde demaaaaaaais! Ao proferir a última palavra, sua espada longa desferiu um golpe para baixo, enquanto ele caía de um pequeno salto. Parecia querer cortar Arion ao meio, de cima a baixo. Porém, com a mesma força que o golpe foi, ele voltou. Namirai quase caiu no chão, desequilibrandose. Olhou para Arion, tentando entender o motivo do fracasso de sua investida. E então viu uma maravilhosa espada de aço com detalhes em sevaste, totalmente na horizontal. Ela havia protegido Arion do golpe, e, sem dúvida nenhuma, era uma arma de bélis. — Como... como possui essa espada? — assustou-se. Mas, cônscio de sua condição, logo voltou a ser confiante. — Não importa: pode ter tido sorte, mas não sabe usar o sevaste. Vou acabar com você, e será um bem para Jatitã! — Você ainda não compreendeu. Um novo golpe foi executado. Ele, desta vez, ainda com um pouco de lucidez, tentou usar um ataque penetrante, para atingir Arion com a ponta da espada, como se fosse uma lança. Imaginou que assim a luta estaria terminada, já que é mais difícil de se defender de tais técnicas. Perfuraria suas entranhas, levando-o à morte certa e com muita dor. Para a sua surpresa, Arion fez o mesmo. O garoto era mais rápido, e isso lhe garantiu o sucesso na investida. Com a ponta de sua espada, desviou o golpe de Namirai. Daí bastou uma girada de quadris para que a lâmina inimiga passasse do seu lado, sem conferir ameaça alguma a ele. Continuando o seu golpe, Arion atingiu-o num dos rins, estraçalhando-o. E foi um golpe com o fluxo do éter, poder inerente a todos e mais facilmente despertado pelos cristais, rasgando o ar e o corpo do imane. A espada brilhou como chama, mas em azul, além de destroçar o sabre de Namirai, iniciando uma hemorragia aguda, por atingir os órgãos próximos. — Desculpe-me — disse um assustado Arion, perplexo, as pernas trêmulas. — Se eu não o fizesse... Era você ou eu! — V-você... v-vai... pa... pagar... caro por... isso! — decretou o imane, quase sem forças. A desordem agitou o pequeno bar e todas as pessoas ficaram de pé, fazendo um círculo ao redor da briga. Os telapuros rapidamente 34

ERIC MUSASHI


entraram na roda, apanhando Namirai, que já havia perdido a consciência, em choque, com sangue a brotar do ferimento e da boca. Um deles ainda olhou para Arion antes de irem embora: — Acabou de se meter numa grande confusão, rapaz. Se é que já não estava numa antes. Eles partiram, levando Namirai. Antes de todos se acalmarem, Arion se aproximou de seus amigos, chamando-os para irem embora o mais depressa que pudessem. Limpou a espada com um pano que era usado para passar sobre as mesas, sem nem pedir para o dono da taverna. Então se foram, rapidamente e ocultos nas sombras, temendo em todo o caminho uma retaliação por parte dos homens da lei.

III Rassuí observava Ariádan e Arion conversarem. O jeito agradecido dela e sua preocupação excessiva com os ferimentos — que nem existiam — do seu amigo estavam deixando-o com ciúmes. Eles falaram e ouviram por algum tempo, até que Arion entrou. Sem falar com ele, Rassuí saiu apressado, para impedir que Ariádan se fosse. — O que houve, Rassuí? — quis saber ela, sorrindo simpática. — Eu quero conversar com você. — Pode falar. — Bom... Eu queria agradecer pelo que vem fazendo por nós. Ele tentava concentrar suas forças e produzir a coragem necessária para se declarar a cada segundo — ou, nas suas medidas de tempo, a cada respiração. “Não há motivo para ela não me querer”, pensava. “Sou mais bonito, mais forte e com melhor posição social que Arion!” — Ah, então é isso. Não precisa agradecer — ela sorriu novamente, e ele ficou perdido na formosura de suas feições delicadas. — Na verdade... Ariádan, os imanes são o sonho de qualquer jovem atalai. Mesmo aqui em Jatitã. E, do modo que o rejeitou, você deve ter um bom motivo. — Sim. Tenho mesmo. — E poderia me dizer qual é? — indagou, quase sussurrando, bem próximo do seu rosto agora.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

35


— Eu creio que... Rassuí, por que me pergunta tudo isso? — Ela se envergonhou, ficando corada. Ela, Rassuí e Arion sempre ficaram juntos, desde pequenos, mas nem para ele ela contaria o seu amor secreto. — Pelo que vejo, está apaixonada por alguém — sugeriu o rapaz. — Senão não esconderia desta forma. Ariádan, não tenha vergonha de dizer, eu também a amo! — declarou, envolvendo-a. — Eu sabia que o Destino não seria injusto comigo. Já deixei de cortejar tantas por você; sabia que seria recompensado. — Desculpe-me, Rassuí... Realmente, acertou, estou apaixonada. — Então Ariádan se afastou do abraço, com certa educação: — Mas não é por você. No susto, o jovem não conseguia esconder sua frustração. — É o Arion, não é?! — indagou-afirmou, por fim. — Do que está falando? — Não minta para mim! — Ele se alterava, apesar de ainda se preocupar em manter o tom de voz baixo, pois seus amigos estavam lá dentro. — Eu ouvi as palavras que trocaram logo que chegamos aqui, durante o banho... Mas achei que só ele que quisesse isso, e como ele mesmo disse, você fora levada por sua inocência. — Se para ele foi só desejo, para mim foi amor. Beijos sinceros eu dei nele. E a sua atitude, de evitar me ferir, fez-me admirá-lo mais ainda. Mas não sei por que estou dizendo isso para você... — ela abaixou a cabeça, colocando a mão no rosto. — Tudo bem. Ele é um herói mesmo, não é? Eu, incapaz, não controlo a espada que foi de meu pai. Eu, que tenho todos os motivos do mundo para liderar uma rebelião contra Sevijá, não consigo liderar nem um grupo de sonhadores. Que seja; pode ficar com o seu herói! — Acho melhor eu voltar para o castelo — despediu-se Ariádan, cansada e não querendo discutir. Rassuí acompanhou com o olhar o vulto de Ariádan que se afastava na escuridão.Voltou-se, entrando na casa, abrindo a fraca porta de madeira. Viu seus amigos rindo, nem sabendo do risco que corriam, enquanto Luredás os divertia com histórias engraçadas. E as risadas eram nocivas para Rassuí, pois o faziam se sentir o único ali que não se contentava com os altos e baixos da vida. 36

ERIC MUSASHI


Arion pôs-se de pé, e foi falar com ele. Não devia ter feito isso; era a última pessoa que poderia ter incomodado Rassuí neste momento. — O que houve com você, meu amigo? Está perturbado. — O que houve é que me cansei disto tudo! — gritou ele, chamando a atenção de todos, inclusive fazendo Luredás parar de falar. — Que está dizendo, Rassuí? — Rebeldia, vingança, Ariádan... nada mais me importa! Vou voltar para a casa de minha mãe agora, e tomar posse do que meu pai me deixou. Uma vida melhor, com certeza. Adeus para vocês! — Ei, espere! — Arion insistiu, indo atrás dele. Rassuí não lhe deu ouvidos. Apanhou uma capa que tinha deixado lá dentro e saiu com passos firmes. Lá fora, Arion correu para alcançá-lo: — Acho que isto é seu — disse, estendendo um embrulho. — A espada de meu pai. — Não entendo o que está havendo com você, mas... — Pode ficar com ela. — O quê?! — Até mesmo Arion se assustou com esta resposta. — Voltarei para pegá-la quando me sentir digno de usá-la. Arion ficou ali, parado, vendo o amigo se afastar. A cada passo, o som produzido pelas suas botas de couro ia ficando mais difícil de ser ouvido pelo filho de Téoder. O que estava acontecendo com o seu amigo? De uma hora para outra, desistira da rebelião. E por que falara de Ariádan? Estaria cansado da vida pobre na casa dela? Arion não achava respostas. Ficou ali mais algum tempo, com a espada na mão.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

37


Muito mais em jogo I Como na maior parte das noites desde que Verjar se fora e Sevijá assumira o poder, os aposentos do béli — que não mais era casado com a mãe de seu filho Bétus — estavam abarrotados de gente. O som do hipnotizante dedilhar de liras como fundo musical para banquetes atravessava as paredes e chegava aos corredores iluminados por lanternas, por vezes coberto por risadas, gritos e gemidos. — O nosso béli continua insasciável — murmurou um telapuro, e Ariádan o ouviu ao que ia levar uvas lá para cima, que alguma descuidada se esquecera de fazer enquanto ela estava fora. — Sim, se não errei na conta, há cinco sereias de pernas lá dentro com ele — disse o outro, falando no linguajar de Jatitã das moças desfrutáveis, párias no passado. Se as sereias, em sua mitologia, atraíam os homens para se afogarem nos rios, essas se entregavam a eles em busca de joias e presentes, destituindo-os pouco a pouco de suas posses. — Ah, a menina — aliviou-se o primeiro. — Se o béli me chamasse mais uma vez perguntando de você, eu juro que lhe tiraria o couro, sua fugitiva noturna! — Eu precisei sair — desculpou-se ela, empurrando a porta e entrando depressa. Na cama enorme com dossel, mas sem mosquiteiro, Sevijá estava deitado de bruços, de olhos fechados, relaxando. Uma das sereias de pernas, sem roupa, os cabelos anis caindo pelas suas costas, postava-se como que montada sobre o béli, massageando-o. — Até que enfim encontrei borboletas capazes de me divertir nesta cidade! — exclamou Sevijá, suspirando. — Aguardem-me, vocês outras; reservem sua energia para mim! Essas outras, às quais ele se dirigia, encontravam-se espalhadas pelo quarto. Uma dupla delas estava no chão, ambas trajando apenas finas correntes de ouro em suas cinturas, e se enamoravam, alisando-se e se beijando. Ariádan odiou a cena, e desejou voltar a limpar o chão. As outras duas, na janela, admiravam-se com as luzes da cidade e o mar, e pareciam mais comportadas — mas também não tinham roupas. 38

ERIC MUSASHI


— Que demora para trazer esses cachos de uvas, hein! — reclamou Sevijá assim que avistou Ariádan, e ela se desculpou. — Tudo bem — disse ele —; venha até aqui, pequena, e me dê um bom motivo para eu não mandar chicoteá-la. Ela ficou feito uma estátua, sem saber o que fazer. — Ela ainda é uma criança, béli — comentou a que o massageava, com um sorriso de tigre. — Que seja; já passou da hora de ser adulta. Como Ariádan não tenha obedecido, ele gritou com ela: — Que está esperando? É seu béli que fala! Venha de uma vez. Em sua mente, fazia preces a Anjifum, o maior de todos os titãs, que ele a livrasse daquela situação como fizera desde a morte de Verjar, e seu desejo foi concedido, pois houve batidas na porta. — Que é, agora? — impacientou-se Sevijá. — Senhor, desculpe-me pela interrupção, mas o imane Namirai está aí, e quer vê-lo urgentemente — anunciou um dos telapuros lá fora, notavelmente constrangido e temeroso. — Mande-o esperar; não vê que estou ocupado? — Senhor, creio que ele não possa esperar — insistiu o servo, na certa suando frio. Ariádan sabia do que se tratava, e uma vez mais agradeceu a Anjifum, pois a festa de Sevijá chegaria ao fim — ao menos nesta noite. — Até parece que ele é o béli! Mande esse imprestável vir aqui, e, assim que ele entrar, deixará qualquer coisa para depois. Às cinco acharam graça. — Pelo que me informaram, ele não pode andar, e... parece que ele está morrendo. — O quê?! Deve ser sério, mas se for exagero desse moleque mimado, ele vai se arrepender. O béli jogou uma túnica leve sobre o seu corpo, calçou sandálias, e saiu, quase derrubando Ariádan, que demorou a abrir passagem. Após o corredor e duas curvas, finalmente Sevijá adentrou o aposento em que o corpo ferido de Namirai era cuidado por alguns médicos. A visão foi aterradora: o sangue se espalhava pelo chão, em gotas por onde ele passara, e numa pequena poça dos dois lados de

OS HERDEIROS DOS TITÃS

39


seu tronco. Os lábios do imane estavam roxos, e sua face, mais branca que o normal, parecendo ter morrido por antecipação. Quem teria machucado tanto assim o seu irmão? Sevijá correu em sua direção, abaixando-se perto dele. Namirai sorriu ao ver o rosto conhecido, seu parceiro de tramoias, mas foi um sorriso pequeno, tão fraco que mal pôde ser visto. — Namirai, meu irmão, o que houve? — Eu... sinto que mi... minha hora se aproxima... — Não diga isso, irmão! Agora me conte; quem fez isso com você? — O líder... líder dos rebeldes... Ele tem... uma espada de... bé... béli... O se... vaste... ardeu... azul... — Não é possível! Do que está falando? Ele está delirando? — indagou aos médicos, que não conseguiam fazer nada. Antes da resposta, porém, Namirai juntou as forças que lhe restavam e agarrou a mão de Sevijá, falando com os dentes manchados de sangue: — Me-meu... irmão... vingue-me... por... favor...! Sua respiração então se acelerou, tornando-se ofegante, até que seus braços ficaram moles, e poucos instantes depois seus olhos se fecharam. — Namirai? Namirai?! Meu irmão! — chamou o béli, inconsolável. Sevijá abraçou o corpo morto com os lábios trêmulos, a ira transparecendo em seus olhos azuis e na força com que apertava Namirai. Estava acabado, sem volta, sem que nada pudesse ser feito. Ou melhor, poderia realizar seu último desejo. Deveria! Mataria Arion. Não só ele, mas todos os rebeldes! — Eu não sei o que fez, jovem. Corre o boato de que você é filho de Téoder, mas nada me impedirá de fazê-lo pagar por isso. A sua rebelião sem futuro não é nada, se comparada com o que está em jogo aqui em Jatitã. E, nos dias que antecederam a expulsão e o retorno dos rebeldes, e a fantástica morte de Namirai, houve quem se organizasse para apoiar a iniciativa de retorno ao antigo. Filhos de pais prejudicados pela má administração de Sevijá, vítimas de desabamentos perto dos anéis e de telapuros que já se moldavam ao “modo de Catebete”, ou simpatizantes de Verjar; todos eles conversavam em tavernas e nas tardes, nas praças durante jogos ao ar livre. E, se o medo dos militares os contivera, 40

ERIC MUSASHI


eles eram como pólvora acumulada, inerte, sendo a demonstração da habilidade de Arion o estopim para que se organizassem e se unissem, desejosos de tirar o atual béli de sua posição. Não importava quem fosse assumir depois — uns aceitavam que os dois ruivos vindos de fora, que não participaram da conspiração, dividissem o poder, outros pretendiam apoiar Bétus, que seria aclamado imane e depois béli em um dia, pois era sangue novo, e não uma velha serpente, e havia os últimos que pensavam em Arion no posto máximo de Jatitã —, o fato é que estavam unidos, e isso porque nem sabiam que ele era filho de Téoder, o Béli-Mor. Esse fato era guardado em segredo por determinação de Téoder, ainda nos dias atuais, poucas pessoas realmente sabendo, e um ou outro vendo-o como um boato, na certa descartando-o. Pois eis que na manhã do quinquagésimo dia do mês, Luredás acordou mais cedo que os outros, a fim de respirar ar puro do lado de fora. Tinha amanhecido um dia nublado, e provavelmente choveria. De repente, ele voltou correndo, acordando a todos; falava sem parar, e parecia estar admirado com algo. — O que houve? — indagou Arion, ainda esfregando os olhos. — Tem muita gente aí fora! Venha, você tem que ver! — Ei, espere, nem lavei o rosto ainda! Luredás, esp... Arion nem conseguiu terminar de falar. A rua era tomada de gente; cerca de trezentas pessoas estavam ali, aguardando para o verem. O filho do Béli-Mor não entendia o que estava acontecendo: eram todos jovens, provavelmente entre quinze e vinte anos, embora pudesse ver alguns mais velhos no meio. Todos estavam ali, com punhais, olhando para Arion, gritando o seu nome. Um então, pedindo espaço para passar, saiu dali do meio, e se aproximou do seu líder. Vestia uma túnica branca e tinha encaracolados cabelos ruivos, além de olhos castanhos — deveria ter ascendência das regiões centrais da ilha-continente. — Olá, senhor Arion. Eu sou Jadau, e estes aqui são partidários de sua causa. Nós estamos aqui para ajudá-lo na batalha que seguirá. — Batalha? Que batalha? O que está havendo aqui, afinal? — Arion, muito confuso, olhava para todos. Pareciam ver uma esperança nele, admirando-o de todo o coração.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

41


— Soubemos do que aconteceu ontem. Finalmente chegou aquele que esperávamos. O senhor pode vencer Sevijá e devolver o domínio da cidade para os justos. Não pode? — perguntou Jadau para os outros. — Sim! — ecoou na voz de cerca de trezentas pessoas, ao que os vizinhos já saíam de suas casas para verem o que estava se dando. — Espere um pouco... Eu não sou guerreiro! Lutei ontem para me defender. Eu sei que lidero uma rebelião a este governo, mas não é assim que funciona. É melhor que voltem para suas casas, pois não irei conquistar o poder com a morte de várias pessoas! Arion saiu correndo, entrando na casa. Sentou-se, e ficou pensando no rumo que a sua vida estava tomando. Lembrou-se da primeira noite que discursou contra Sevijá, e de como tinha apanhado da milícia. Rememorou também quando foi procurado por Luredás e Rassuí, e depois por mais jovens. E dos outros discursos, e depois sua expulsão da cidade. Já não tinha mais como voltar atrás. Não dava mais para conseguir as coisas sem lutar, principalmente depois do ocorrido de ontem. Hoje, provavelmente Namirai já estaria morto. E mesmo se não estivesse, logo haveria retaliação. — Senhor? — perguntou Jadau, ao entrar na casa acompanhado de Luredás. — Eu sei que nem me conhece, mas todos nós dependemos do senhor. Se formos ao castelo de surpresa, conseguiremos fazer frente aos telapuros, que lá não chegam aos cinquenta. Não há como vencer Sevijá e recuperar o poder, que foi usurpado por ele matando o seu mestre, sem sua ajuda. O que houve com o senhor, está desistindo? O olhar de Jadau inspirava pena. Devia ser mais um que passava fome, pagando em impostos as excentricidades de Sevijá. — Tudo bem. Já percebi que não há mais como voltar. Meu destino está selado. Vamos à luta! — disse Arion, pondo-se de pé.

II Como a cidade de Jatitã se erguia no Monte dos Titãs, ela se parecia com um espiral enrodilhando a montanha até o cume. Suas ruas principais eram círculos sobrepostos ao longo da elevação, cada vez as casas se tornando mais nobres, subindo os níveis para que chegasse à mais desejada das piscinas, culminando no castelo. Pequenas ruas laterais ligavam um nível com outro inferior, ruelas escuras e quase sem 42

ERIC MUSASHI


movimento durante as noites, onde agiam os poucos bandidos. Quanto mais alto alguém morava, mais terras e poder esta pessoa tinha. Eles foram subindo. Mas ao invés de estreitarem caminho ziguezagueando pelas ruas laterais, davam voltas e mais voltas pelas principais, cansando suas pernas e nem dando importância para a estranha falta de telapuros patrulhando. Queriam que os vinte mil habitantes da cidade os vissem, já que a outra metade que morava no campo não poderia participar mesmo. A sua ideia era boa, intentando atrair atenção e aumentar o número de simpatizantes do movimento. No entanto, poucos os seguiram. A piscina que se revelava na frente do castelo tinha azulejos azuis e brancos. Grande, com esculturas no meio convidando ao deleite, algumas quedas d’água e águas cristalinas. Pessoas se banhavam nuas naquele momento, e eram justamente as cinco jovens que tinham se divertido na cama do béli na noite anterior, além de criadas, sem nada para fazerem. Os quase quatrocentos insurgentes passaram ao lado da piscina, observando os olhos arregalados das moças, que, assustadas, nem se mexiam. Enfim pararam na frente do castelo, que era eminente e grandioso. Seus grossos pilares só seriam totalmente abraçados por três homens juntos, de mãos dadas. Uma escada de oito degraus se erguia na entrada, e os quatro telapuros que guardavam a porta estranhamente não se assustaram com toda aquela movimentação. — Onde está Sevijá? — perguntou Arion, após subir as escadas e se aproximar de uma das sentinelas. — Ele está muito ocupado no momento. — Perguntei apenas por educação. Pelas nossas faces, na certa percebe que entraremos de um jeito ou de outro — sorriu Arion, mesmo estando excitado pela batalha que estaria por vir. — Não precisa abandonar os modos, inocente Arion! — soou uma voz, enquanto a grande porta dupla de prata e ouro era aberta. Arion observava atentamente. Quem era, e como sabia o seu nome? Enfim ela se abriu, revelando um homem com cabelos anis, na altura do ombro, e olhos da mesma cor. Vestia uma armadura de aço com muito mais sevaste que o comum — tolos; nem podiam imaginar a armadura do Béli-Mor ou do béli de Melcártis —, e ela cobria o seu peito e suas coxas,

OS HERDEIROS DOS TITÃS

43


num saiote.Também usava braceletes do cristal etéreo — um dos nomes do sevaste, já que poucos aprendiam a despertar os poderes diversos dos outros cristais — e uma espada leve, ainda na bainha. Só poderia ser Sevijá! Ele sorriu, aproximando-se de Arion. Um béli não teria medo de um simples rebelde que, num golpe de sorte, tinha matado um de seus aprendizes — mesmo que fosse um parente seu. — Você poupou o meu trabalho de ir atrás de você. Aliás, de todos vocês. Que bom que todos os revoltosos se juntaram para facilitar o expurgo de Jatitã, rumo ao retorno à condição de capital. — Acha que pode com todos nós? — perguntou Arion, sorrindo. — Tolo, de maneira alguma este é um ataque surpresa. Então as portas se abriram completamente, revelando os quase 250 telapuros que compunham um décimo da milícia da cidade, além de estarem acompanhados ainda de dez mádis. Curiosamente, os outros dois imanes não estavam no lugar, mas Arion, muito tenso e assustado, nem foi capaz de perceber esses detalhes. Os homens todos passaram do lado do filho de Faná, indo na direção de seus amigos. — Cuidado! — ele gritou, olhando para trás. — Não se preocupe com eles. Afinal, que chance teriam? Vamos, empunhe sua espada de béli, que eu sei que você carrega! Num rápido movimento, Sevijá sacou a sua arma, dando um golpe lateral, que roçaria o peito de Arion. Mas a espada chamuscou, radiando poder etéreo e queimando o ar ao seu redor. Não fosse a técnica do saque e ataque que Téoder ensinara para o filho, este já estaria debilitado e sem totais condições de combate. Não esperava uma luta justa contra o béli, e ele deveria ser temido; Sevijá vingaria o irmão com as próprias mãos! Arion avançou, após desviar o ataque de seu oponente e afastar-se pouco, agora com um ataque perfurante. Todavia, Sevijá golpeou com a sua espada para baixo, jogando o ataque de Arion contra o chão, no meio de suas pernas. Levantar a espada e investir seria muito lento, e nesse meio tempo Arion podia muito bem decepar um de seus pés. Mas Sevijá fez o impensável: girou levemente a espada em sua mão e atacou com a parte inferior do cabo, atingindo o nariz de Arion. O sangue jorrou. Recuperando-se depressa pela excitação, Arion avançou com um golpe na altura da face do oponente, sem ousadia, e o movimento foi facilmente defendido por sua espada. Aproveitando a sua distração, o 44

ERIC MUSASHI


rebelde usou a perna direita para chutar a esquerda de Sevijá, visando derrubá-lo com a rasteira. Preparado, o béli levantou seu pé, e o golpe de Arion acertou o vazio, deixando-o agora de lado, numa vulnerável posição. O béli cortou sua pele do flanco direito, revelando uma costela — o éter empregado no ataque provocou tal ferimento. Ele atacou uma vez mais Arion, mirando em seu pescoço.Ao se esquivar, inclinando-se para trás, o garoto se desequilibrou, e rolou pelos oito degraus, enfim atingindo o chão. A sua espada rolou para longe, perto de um arbusto cultivado no gramado, onde olhos atentos os observavam. — Pensou que um simples golpe desses me pegaria desprevenido? Não sou só um imane, e não pense que foi por sorte que venci Verjar! — bradou Sevijá enquanto Arion se contorcia de dor. Deitado, ele pôde ver a batalha dos seus amigos acontecendo; era um massacre que estava se dando. Mesmo em maior número, não dispunham das armas dos telapuros, que tinham tido poucas baixas até então. Muitos dos homens, ao verem seus amigos feridos no chão, alguns sem braços, outros com as tripas expostas, fugiram, desesperados. De fato, não podiam morrer ali.Tinham sonhos, famílias, amores. Uma vida a ser vivida. Ao perceber isso, Arion se sentiu muito sozinho, pois só ele próprio morreria por sua causa — assim pensava. Morreria para salvar sua cidade, e deixá-la para os vivos. Todos os homens que ainda estavam de pé debandaram. Os telapuros e os mádis olharam para Sevijá, que acenou para que os perseguissem. Um voltou, ao ver que havia um homem se levantando, com leves ferimentos. Era Luredás. Eles começaram a se engalfinhar, visto que ambos já tinham perdido suas armas. Sevijá, que calmamente desceu as escadas, enfim tinha se aproximado de Arion. O jovem, vendo que tudo tinha dado errado, que não teriam mais chances, pensou em se entregar. Não fugiria, de modo algum. Seria melhor morrer em combate do que tentar investir contra alguém melhor que ele. Perdera as esperanças. — Que Anjifum faça sua justiça — decretou Sevijá, e seu braço direito avançou. A espada tinha como alvo o coração de Arion, que se encolheu. Antes que a ponta da poderosa arma pudesse atingir o peito do rebelde, uma outra lâmina cortou o ar, e algo além. O forte golpe, mesmo sem magia alguma, atingiu o braço de Sevijá na altura de seu cotovelo, e

OS HERDEIROS DOS TITÃS

45


foi desferido por alguém que se aproximara ao que o béli se distraía com seu inimigo. Arion abriu os olhos, e viu o seu amigo Rassuí com a espada que um dia foi de seu pai Verjar. — Posso não conhecer magia, mas isto aqui não deixa de ser uma lâmina — murmurou Rassuí. Ao ouvi-lo proferir essa frase, Arion olhou ao redor, e viu metade do braço direito de Sevijá no chão, ainda segurando a sua espada. Olhou mais um pouco para o lado e viu o dono do braço gemendo, com uma pequena poça de sangue próxima a ele. Uma poça que só tendia a aumentar, bem como o seu ódio. — Agora, Sevijá, aqui me apresento. Sou Rassuí, filho de Verjar, e vingarei meu pai! — gritou ele, partindo na direção do inimigo, que tinha se afastado alguns passos após receber o golpe, instintivamente. Rassuí atacou, mas Sevijá, que nada dizia, defendeu-se com o seu bracelete de aço e sevaste. Ele podia muito bem ter se desviado, afinal, poderia até ter perdido o outro braço por um cálculo errado! Contudo, não tinha escolhido fazer isso por acaso, ou para demonstrar o tamanho de sua técnica. Seu bracelete brilhou azul, e a espada se quebrou no meio, com milhares de pequenos pedaços de metal voando para todos os lados, e os cristais virando poeira pelo choque energético. Incrédulo, Rassuí não sabia o que fazer. Nunca imaginara que isso fosse possível! Uma perna dobrada cruzou o ar numa velocidade relativamente grande, e o joelho atingiu o estômago do jovem, fazendo-o se curvar forçadamente e cair no chão, apoiando-se com as mãos. Sevijá ainda o chutou, novamente no estômago.A violência do chute jogou Rassuí um passo para o lado, caído de costas. Pegando a metade da espada que ainda dispunha de cabo, Sevijá começou a forçá-la contra o peito direito do jovem. Não havia mais sevaste ou éter, e isso contribuiu para que a penetração fosse lenta e dolorosa. Rassuí tentou gritar, mas não podia, e Sevijá se divertia. A morte do irmão de coração de Arion já era inevitável, pois um pulmão fora perfurado, todavia, algo acertou Sevijá pelas costas, fazendo um largo e profundo corte — inclusive, danificando levemente sua armadura. Tinha se esquecido de Arion! 46

ERIC MUSASHI


Sem perder tempo, o filho de Téoder, com a espada do béli, avançou sobre ele, e Sevijá tentou se defender com o bracelete, mas o refulgir da arma do atacante quase cegava a ambos, e literalmente destruiu-o, arremessando os pedaços longe. A magia de Sevijá também era forte, e o ataque só foi capaz de quebrar o seu pulso. Arion fez uma nova investida, desta vez contra o peito de Sevijá. Desesperado, e sem poder usar os braços, o béli pisou numa minúscula alavanca em sua bota, revelando uma adaga com sevaste na lâmina fria e prateada. A espada de Arion estraçalhou a armadura de béli, atravessando o busto de seu adversário, assim como também rachou em vários pontos pelo choque com a resistência invocada por Sevijá. Num último suspiro, caindo, Sevijá o chutou na coxa esquerda. Um largo ferimento se abriu, e Arion tombou no chão, delirando de dor. — Oh não! — exclamou Luredás, que enfim vencera o seu oponente e agora via os dois amigos no chão. Ele chegou até Rassuí, mas só para constatar que ele não tinha mais vida. Olhou para Arion, que estava inconsciente. Ficou ali, sentado, e tirou a lira de dentro da roupa, começando a tocar uma triste melodia. A chuva que se aproximava do mar começou a cair, ainda uma leve garoa. Acreditando que Arion logo encontraria a morte, tocava o que acreditava ser a sua última música. Sabia que seria perseguido, afinal, era um dos rebeldes. Enquanto dedilhava, as moças que estavam na piscina, muito assustadas pelo massacre que tinham visto, enfim saíam correndo, agarrando suas roupas, para dentro do castelo. Isso não o perturbou. Uma figura vinha pela rua principal, cavalgando. O cavalo era notável; negro, e parecia ser muito rápido. Luredás o viu como a representação da morte, que provavelmente estaria chegando. Um equino daquele só poderia pertencer ao castelo. Quando se aproximou mais, ele pôde perceber que era Ariádan. Sem se alterar ou parar de tocar, olhou-a, e tinha feições assustadas. — O que houve aqui? — ela perguntou. — Bom, não importa, suba aqui logo Luredás! E traga Arion! — Impaciente e preocupada, gesticulava enquanto falava. — Por que a pressa? — De fato, Luredás estava pronto para morrer, e o nervosismo já se dissipara.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

47


Desde jovem, sempre foi visto como esquisito pelos outros. Muito dedicado ao estudo da lira, passava horas e horas tocando-a. Seus olhos prateados se enchiam de lágrimas ao verem a alegria das pessoas que ouviam sua música; entretanto, por baixo dos cabelos brancos que escondiam sua face, Luredás tinha muitos mistérios. De onde vinha a serenidade que ele sempre demonstrou? E por que um jovem músico como ele, que sempre esteve fora de assuntos políticos, entrou para a rebelião? — Luredás, os dois imanes logo estarão aqui! Dê-me o Arion e suba aqui; vamos fugir! — Ariádan tremia de medo visivelmente. Luredás guardou a lira na roupa novamente, pegou Arion no colo e colocou-o atrás da garota tão empenhada em salvar o seu amado. Subiu atrás dele, e ela logo saiu a toda velocidade. O cavalo era exigido demais, e tropeçou mais de uma vez. Eles desceram com grande rapidez, e pegaram vários atalhos pelas ruas laterais. Luredás só fazia observar a cidade. Ele sentia que era a última vez. Quando já haviam saído do monte, e cruzado as pontes sobre os anéis d’água, pegaram uma estrada que passava pelas plantações de trigo.Algumas árvores frutíferas ficavam no caminho, como pés de maçã e laranjeiras, bem como carneiros desgarrados. Nas últimas centenas de anos uma seca abalou o continente atalai. As plantações não eram mais como antes, e eles, desesperadamente, extinguiram quase todas as espécies de animais que conheciam, para o próprio consumo. Vendo que se não se cuidassem logo passariam fome, Quetabel ordenou que comessem menos carne, e dividiu as terras entre todo o povo. Uma parcela — grande, por sinal — da produção seria do governo, seja de vegetais como de animais. Restaram os cavalos de montaria, os carneiros para o consumo, os coelhos e cães de estimação, algumas espécies de pássaros e os insetos, que os atalais nunca ousaram comer. Insetos, aliás, que aumentaram muito ultimamente e andavam incomodando o Reino todo. De mamíferos, quase nada sobrou, exceto por animais das selvas, como panteras e outros menores, e outros, como lobos e ursos. Com isso, os pescadores começaram a ter mais lucro, ainda que o consumo de carne branca nunca tenha agradado os atalais — comer um pássaro até era considerado loucura. Quando o povo, vendo que mesmo racionando logo passaria fome — pois a seca insistia em continuar —, foi reclamar até a Rainha, ela promo48

ERIC MUSASHI


veu a conquista das Planícies Proibidas.Terras desconhecidas, além da Cordilheira Roana, da Parede dos Titãs, dos Bosques Inundados e do Deserto Dezrã.Além das montanhas que cercavam essas terras até mesmo do outro lado do continente, impedindo inclusive uma entrada pelo mar. Lá, onde havia campos férteis — segundo Quetabel — e animais de toda espécie, teriam produção de sobra. De fato, muitos supunham que tais terras não existiam, e, ainda que existissem, seriam um planalto, e não uma planície. Mesmo após muitos esforços, os desafios não foram vencidos, ainda que com o passar dos séculos. As terras férteis foram vistas, mas não conquistadas. Dragões voadores e animais ferozes, como tigres, leões, rastejantes peçonhentos, crocodilos e outros que só povoam os livros de história dos atalais, atacaram os invasores, minando pouco a pouco sua concentração de guerreiros nas campanhas. As investidas se provaram inúteis, e agora o povo aguardava pelos novos planos da Rainha. — Eu soube que Sevijá ia atacá-los e tentei dispersar sua atenção, afirmando que vocês iriam fugir para as praias. Mas creio que ele suspeitava de mim, pois mandou apenas os imanes para lá. — Conforme Ariádan falava, Luredás viu uma colina, que logo atravessariam. Estariam fora dos limites de Jatitã. — Não vai me contar o que aconteceu no castelo? — Se quiser se entristecer, ouça — respondeu o músico.

III Já era noite, e eles estavam nos limites de Jatitã. Não chovia mais. Luredás olhava adiante, e via o seu destino: nada de campos com plantações e anéis de irrigação, carneiros e árvores cheias de frutas, nem pássaros voando. Tudo que ele via eram extensas terras áridas. Tristes e frias, com a chegada da noite. Nada que se comparasse ao Deserto Dezrã, pelo que diziam os relatos, mas era um lugar sem umidade há meses. Jatitã recebia a úmida corrente de ventos que o mar trazia, mas, pelo que Luredás podia ver agora, ela não passava por essa colina. Ao longe, foi capaz de ver o Rio das Sereias, que estava quase seco neste pedaço. O seu leito nem permitia mais que alguém mergulhasse nele. Luredás virou-se para trás, e viu Ariádan cuidando do ferimento na perna de Arion, com uma dedicação que era algo de se admirar. Ele, dormindo ainda, gemia. — Ariádan, vou atrás de frutas. Não sei para onde pretende nos levar, mas se formos adiante, não teremos o que comer por um bom tempo.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

49


— Tudo bem, Luredás. Eu também não sei o que faremos. Esperava que decidíssemos juntos, depois que Arion acordar. — Creio que não seja o melhor a fazermos. Afinal, os imanes podem nos encontrar aqui a qualquer momento. Aliás, trouxe algum cantil? — Sim, eu trouxe. Mas onde pretende pegar água? — Você não deve ter percebido, mas estamos muito próximos do Rio das Sereias — replicou ele, já montando no cavalo. — Ah, claro. Luredás, tenha cuidado. Ele sorriu, querendo responder que sim, e se foi; Ariádan, sozinha com Arion, abraçou-o. Ela se realizava por ele ter sobrevivido, com tudo o que Luredás lhe narrara.Apaixonada, beijava o seu rosto, e o abraçava com paixão, ignorando o odor de suor e o sabor de poeira de sua pele. — Ariádan...? Onde estamos? — indagou, despertando. — Estamos quase fora de Jatitã, querido. Sou tão feliz por ter se salvado! — Ela sorriu, revelando duas covinhas na face. — Mas... E os outros? — Ele se ergueu, livrando-se do seu abraço. — Não pense nisso agora — aconselhou. — Tente descansar. — Não me diga que... — Por favor, Arion, descanse. — Oh não, aqueles inocentes! — Ele colocou as mãos sobre o rosto, e chorou de soluçar, e ela se comoveu com o seu sofrimento. — E o que mais aconteceu? — quis saber Arion, um pouco depois. — Sevijá está morto — ela disse. — E estamos fugindo de Jatitã. — O quê?! Nada disso! Também somos filhos daquela cidade! — Não vê o que aconteceu? Quer mais mortes? Arion então se lembrou do que tinha refletido pela manhã, e de como os homens abandonaram a luta. — Tem razão. Desculpe-me. — Ele abaixou e a envolveu. — Creio que é uma batalha só minha. — Arion, por favor, não volte para lá! — Ela agarrou-o com uma força que nem sabia que tinha. — Ainda há dois imanes, e as espadas foram quebradas. Além do mais, já me descobriram também. Não há mais como vivermos lá. Por favor, vamos fugir! 50

ERIC MUSASHI


Arion percebeu a inocência de Ariádan: achava que tudo era tão simples; mudavam de cidade e viveriam felizes. Mas como se manteriam longe de casa? Comeriam o quê? Onde dormiriam? Ele sentiu pena dela, e quis protegê-la, impedindo que qualquer mal se abatesse sobre ela. Mas nada falou. E ficaram assim por mais algum tempo, até que ela dormisse em seus braços, pois ali se sentia segura. Mesmo que o mundo todo estivesse contra eles, ela se sentiria a salvo e até morreria feliz se Arion dissesse que estaria do seu lado. Aquilo era amor. Os dois ainda estavam assim quando Luredás voltou, cerca de uma hora depois. — Precisamos partir — falou o músico, uma ordem. — Os imanes estão fazendo uma busca; querem pôr nossas cabeças no castelo como troféu. Há muitos telapuros com eles; precisamos partir! — E para onde vamos, Luredás? — perguntou Arion. — Subindo o rio, a três dias, há um povoado chamado Lira dos Titãs. — Gostei do nome — voltou a se animar Arion. — Venha Ariádan. — Só uma pergunta, Luredás — disse Ariádan, após bocejar —: por que há pouco aceitava a morte, apático, e agora quer viver a todo custo? Ela tinha razão em perguntar, e ele suspirou, dizendo: — Pois eu vi que ainda há esperança, e que meu tempo não acabou.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

51


Uma festa em Catebete I Outrora um esquecido vilarejo como milhares pela ilha-continente, Catebete viveu um crescimento acelerado e se tornou a capital de Atala, sede do poder, tendo intensas e monumentais obras desde quando Quetabel passou a governar. Com uma superfície quase totalmente plana, a Grandiosa Senhora tinha praças e fontes grandiosas, e mansões com jardins paradisíacos, um poço de modernidade, herança dos construtores do Norte. Totalmente cercada por muros com a altura de cinco homens, a cidade possuía quatro portões de ouro, largos e resistentes, um em cada direção: no Nascente, no Poente, no Boreal e no Austro.1 Imensa para os padrões de uma civilização rural como a atalai, suas ruas se estendiam e se perdiam nas ondulações do relevo, e num extremo era impossível ver o outro. Era até difícil se ver o castelo — um aglomerado de altas e médias torres —, e este ficava no centro de tudo, parecendo uma imagem distante, uma sombra na paisagem. Espalhadas pelos locais públicos, estátuas de Quetabel e de seus sacerdotes, além de bélis famosos, serviam de adorno, não existindo nenhuma dos grandes do passado. As casas, buscando por novos horizontes, uma arquitetura de Acaldã, não seguiam os projetos usuais, com pátios centrais, e os mais abastados as faziam com mais de um andar, suas sacadas se abrindo para a vista da urbanizada Catebete. Fruto de seu crescimento desprogramado e da esperança de nova vida na capital — além da crise de produção —, os pobres desabrigados se espalhavam pelas ruas. Vivendo da pena dos outros, eles prosseguiam, ao custo de sua sanidade. Por quase não terem o que comer, era comum que devorassem os corpos dos jovens mortos nos sacrifícios à Deusa. Aliás, presume-se que isso tenha começado por acaso, e após os sacerdotes 1 O uso de nomes estranhos a nós para os pontos cardeais, geralmente a segunda ou terceira opção, se deu porque, ao mesmo tempo em que remete o leitor a uma realidade diferente da sua, também aproxima do modo como os atalais compreendiam as palavras empregadas por eles. Pois, apesar de reduzidos e distorcidos pelos séculos, os nomes ainda os remetiam à expressão original, como lyuram— — — de hulyuy Ram (“nascente do Sol”)— — — para leste/nascente, e šaram ou šareram (“morte do Sol”), para oeste/poente. O termo para norte/boreal provinha de “vento dos lugares (continente)”, e para o sul/austro de “vento do mar” ou “vento da capital” (no caso, Jatitã). 52

ERIC MUSASHI


perceberem que o povo gostara, tornou-se uma tradição, destacando a Joia Central dos outros grandes centros. Evento um pouco assustador para estrangeiros, mas com o tempo se acostumavam. A noite movimentada propiciou a abertura de centenas de tavernas, e quase todo dia havia uma festa em algum canto da gigantesca área entre as muralhas, com os seus cem mil habitantes — mas ultimamente o paradeiro assustava os comerciantes. Catebete era uma das poucas cidades — ao lado de Jatitã — onde o ouro e prata circulavam livremente e eram conhecidos por quase todos — ao menos de verem. Sendo um dos centros do fluxo de pessoas, e aberta a novidades, era comum que alguns saíssem pelas ruas de Catebete com poucas roupas; geralmente mulheres tendo um dos seios, barrigas e joelhos à mostra. Trazida do além-mar pelos navegadores, a calça era usada, colada ao corpo em cores claras, mais pelas mulheres de alta posição social. Porém, mesmo com todas as liberdades, o nudismo só era visto em festas regadas a vinho. Na maioria dos casos, não havia união entre casais duradoura, e se tornou um traço característico do cidadão da capital o desprendimento, cada um tendo tantos filhos quanto pudessem sustentar. Do topo da queda d’água do Rio das Sereias onde desaguava o dos Bosques, podia-se ver a capital como um ponto amarelado e cintilante ao anoitecer. Rio, aliás, que era uma das maiores atrações, por estar em suas proximidades. Muitos se divertiam e alguns tentavam compreender o porquê do Rio dos Bosques não morrer no das Sereias, já que seus destinos se cruzavam. O que acontecia era que ele de fato desaguava ali, e, por falta de uma ligação fluvial do Nascente e o Centro com o Poente, no auge de Catebete foi escavado um canal que prosseguia um caminho imaginado para o Rio dos Bosques até o Poente-Boreal. Pela manhã, a exemplo de outras grandes cidades, milhares de homens saíam a cavalo e à pé, e os quatro portões se abriam; eles iam trabalhar nas suas terras, que ficavam ao redor do seu refúgio. Já outros pescavam nos rios, não que isso os livrasse de pagar impostos. As tavernas não se abriam todos os dias, pela falta de movimento dos últimos tempos. O sol começava a iluminar as ruas e praças, e transeuntes e carruagens enchiam todo o espaço público da cidade. Mais um dia nascia em Catebete. E, no castelo, Téoder ainda se mexia na cama, indisposto, mas não tinha motivos para se preocupar, afinal, tudo corria nos conformes.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

53


Com a paciência esgotada, achou melhor se levantar. “Treinar um pouco nos jardins dos fundos do castelo é tudo o que preciso fazer para me sentir melhor”. Olhou para o céu, e viu que estava nublado, e com uma forte neblina. Não usava roupa alguma, e sentia a pele grudenta pelo suor seco após a turbulenta noite anterior, como qualquer outra tida ao lado de Quetabel. O banho já estava pronto, e após se purificar, vestiu-se com sua túnica e pegou sua espada de sevaste. Sem aviso, Quetabel entrou no quarto, agitada como de costume. Ela vestia uma leve e transparente camisola, de coloração rosa, e trazia em suas mãos uma bandeja com pães, mel, vinho e maçãs: — Até que enfim acordou, meu béli. Ele se sentou, colocando a bandeja no seu colo. — Não estou muito bem — disse. — Talvez uma leve febre. Nada demais. — Nada demais? Cuidado, isso pode matar. — Seu susto, apesar de teatral, tinha um fundo de verdade, memórias de centenas de pessoas que conhecera e morreram daquele mal. — Não. Não hoje — sorriu ele, soerguendo-se. — Vai para onde? — Exercitar-me um pouco. — espreguiçou-se e desembainhou o sabre. — Se alguém quiser falar comigo, estarei nos jardins. — Diga isso para suas súditas! — berrou ela, jogando uma maçã contra a porta quando ele a fechou. Téoder nem tinha se lembrado, mas hoje, 52º dia de ectomês, era o aniversário de Quetabel. Com os seus 721 anos, talvez nem ela devesse se lembrar mais, mas a oportunidade de uma festa não podia ser desperdiçada! A Rainha-Deusa nem quis comer mais, magoada. Ficou ali na cama, pensando.A armadura do béli, que repousava num canto, estava empoeirada, sem o brilho de outrora. Ele não ia precisar dela, por isso ficava esquecida. “Ele deve ser assim com todo mundo,” pensou; “quando não precisa, larga jogado num canto sujo. Certamente nunca deixou passar em branco o aniversário de Faná...” Os golpes da espada já marcada pelo tempo cortavam o ar numa velocidade que poucos olhos poderiam acompanhar, fazendo um estrondo. Téoder, cerrando os olhos e concentrando-se por instantes, conseguia usar 54

ERIC MUSASHI


todo o seu potencial por um curto período. A luz da lâmina e a celeridade dos golpes faziam com que pássaros voassem assustados, sem direção. Assim que se cansou, Téoder se sentou na grama, sereno pela quietude da manhã, Catebete e seus problemas lá fora, longe do castelo como se fossem uma cidade distante. Essa sensação de se “estar em outro lugar” o levou de forma inevitável às preocupações que fazia força para esquecer, sobre pessoas que não via há anos. Lembrou-se de seu filho Arion. Como estaria agora? Teria uma vida boa, com as terras que herdara? Será que já estaria casado com a jovem Ariádan? Provavelmente sim. Téoder riu ao se lembrar da admiração que a menina tinha pelo seu filho. Isso acabou levando-o por uma viagem através de sua mente, onde era somente um passageiro, tendo como único controle o freio. Surgiulhe na cabeça Faná, e o modo como foram felizes pelos dezessete anos em que estiveram juntos — mas poderiam ter sido quarenta, se não fosse ele morto em combate, ou mais ainda; dois velhos no Monte dos Titãs. E viu de novo o dia em que a levou até Catebete, onde levantou a espada e a matou pelas costas. — Por que essas lembranças voltam a me atormentar? — perguntou ele, talvez esperando uma resposta divina. Alguns súditos olharam solícitos para o Béli-Mor, tentando entender por que falava sozinho. Então, uma das copeiras veio até ele; era uma rapariga simples e educada, com um sorriso simpático que, combinado com seus cabelos e olhos castanhos, tinha o poder de lhe abrir qualquer porta. Ela ficou bem perto de Téoder, e indagou se precisava de algo. — Se necessitar de você, eu chamo. — Ora, então me perdoe pela interrupção — foi educada. — Voltarei aos meus afazeres, meu senhor. Apesar de suas boas maneiras, Téoder podia perceber uma tristeza dentro dela que não era capaz de ocultar. — Espere um pouco. — Senhor...? — O que há? Parece ressabiada.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

55


Ela baixou a cabeça: — É que... Eu não entendo, senhor. Desculpe-me a indiscrição, mas hoje é aniversário da Rainha, e, quando fui lhe pedir detalhes sobre os preparativos da festa, ela me mandou chicotear! Deveria estar feliz, não acha? — Aniversário? Oh, como pude me esquecer! — levou a mão à cabeça. — Ah, isso explica um bocado — murmurou ela, furiosa com ele por ser o responsável pelo mau humor de Quetabel. Mas, claro, não falaria. Apesar do que acontecera entre eles, e da relação doentia que tinham, Téoder colocara em sua cabeça que, se ia viver com Quetabel, e seguir levantando a espada em seu nome, teria uma cordialidade com ela. E se esquecera de seu aniversário! Sem saber o que fazer para se redimir, achou que o melhor era se retratar, admitir o desleixo. Subiu correndo as escadas e, ao que entrou no quarto, lá estava a jovem-velha, olhando pela janela. — Quetabel. — Você está aí, meu béli. — Era notável a frustração em seu tom de voz. — Tudo bem! Acontece, não é? — disse, sarcástica. — Eu peço que me desculpe. — Não se preocupe à toa, Béli-Mor. Deixe-me ir, pois tenho muito o que fazer hoje. Descanse, é bom para a memória. Ela se foi, batendo a porta atrás de si.

II O salão de festas do castelo era enorme, e decorado com motivos relacionados a comemorações e orgias. Com cerca de mil passos entre uma parede e sua paralela, e uns 1.400 passos nas diagonais, o chão era todo coberto por um tapete azul, com detalhes em vermelho e branco; as cores de Catebete, e também do Reino de Atala, representando o céu, o fogo e o Tudo. Nos cantos, almofadas permitiam que as pessoas se sentassem, quando estivessem cansadas de dançar, bêbadas, ou mesmo trocando beijos e afagos. Alguns ainda, completamente isentos de pudor, se enamorariam ali mesmo — apesar de a festa não ter alcançado esse estágio ainda. Com tanto incentivo à cópula — como à bebida e ao banquete —, o uso de métodos contraceptivos, e as constantes baixas na invasão 56

ERIC MUSASHI


das Planícies Proibidas, uma vez que não havia guerras externas, eram o que protegiam os atalais de problemas de superpopulação. Ainda assim fora criada uma lei de natalidade em vários locais do Reino, sobretudo as cidades mais afetadas pela crise provocada pela infertilidade da terra. Os números variavam de acordo com o local, mas, em todas as situações, qualquer filho excedente seria treinado desde pequeno como soldado e, provavelmente, mandado para outras cidades em trocas comerciais ou então em missões de procura de minas. Quetabel se superava a cada ano, tendo como meta pessoal ampliar seu festejo mais e mais. Neste 3.992 pós Anjifum, cerca de 10.000 convidados perambulavam pelo castelo. No salão de festas, e nos jardins; ou ainda nas piscinas frontais, ávidos por comerem e beberem antes que não sobrasse mais nada. Havia ali pessoas de todos os tipos. Ou melhor, de quase todos os tipos: aqueles que possuíam poucas terras ou dívidas com o castelo jamais estariam na festa. E, como de costume, eram privilegiados os militares. O vinho acabava perto do amanhecer, como em todos os anos, e havia comidas para diversos gostos. Flautistas tocavam, ressoando em uníssono no começo, para, depois, já no meio da festa, os improvisos tomarem conta. Não importava: totalmente embriagados e preocupados com outras coisas, os convidados nem notariam. Téoder apreciava seu vinho quente enquanto observava Quetabel, que também não parava de olhar para ele. Com os seios à mostra e apenas alguns acessórios de ouro como um tapa-sexo, provavelmente ela queria chamar a sua atenção numa espécie de vingança por ter se esquecido do seu dia. Já estava ali, sentada, aos beijos com uma jovem, enquanto um homem acariciava as duas: era Astarote. — Cuidado, Béli-Mor; incauto desse jeito, não será o preferido dela amanhã — dissera ele há pouco, o rosto oculto em seu capuz. Astarote era o líder dos sacerdotes de Quetabel. Com sua origem envolta em mistérios, ele e seus companheiros apareceram na cidade junto com ela há quase setecentos anos, quando ela tomou o poder. Lendas dizem que desceram dos céus, para colocar ordem no Reino de Atala. Eles vieram primeiro, anunciando sua chegada, e logo depois Quetabel surgiu, sentando-se no trono — não sem antes vencer uma guerra civil contra uma Jatitã enfraquecida.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

57


Téoder suspeitava que a verdade fosse bem pior. Não sobre Quetabel, da qual não duvidava — mas sentia algo estranho toda vez que Astarote ou outro sacerdote se aproximava dele. Um pressentimento de um mundo sombrio. Todos os sacerdotes tinham características físicas similares: cabelos e olhos castanhos, naturais na região de Catebete, e corpos esbeltos e tenros. Já Astarote, era diferente pela cor da pele, mais escura que a tradicional dos atalais. Isso sugeria que provavelmente viera de um lugar onde o sol era mais frequente, desconsiderando a hipótese de ser mesmo um anjo — mensageiro divino — da Deusa Quetabel. Os sacerdotes não tinham funções políticas, mas viviam no castelo. Participavam dos rituais de sacrifício de jovens, cada vez ocorrendo mais. O que faziam com os corpos antes de jogá-los para a multidão que os devoravam, não se sabia. Mas algo faziam. Os mortos sempre voltavam com ferimentos no ventre, e com aparência de pessoas que já haviam morrido há dias, e não apenas há algumas horas. Tanto Astarote como Quetabel encararam Téoder, com sorrisos irônicos nas faces. O sacerdote começou a acariciar um dos braços da Rainha, e depois passou a beijá-los. A jovem que estava com ela fez o mesmo, com o outro braço. O Béli-Mor, enojado de tudo isso, ausentou-se, e foi beber nos jardins. Deitou-se na grama, e, por não ter comido nada, acabou ficando com sono. Já era dada a quinta hora da noite, que logo estaria na sua metade. Téoder adormeceu olhando as estrelas, e elas se revelaram depois de um dia inteiro nublado e escuro. Em Jatitã, numa noite próxima do quadragésimo dia de protomês do ano de 3.988, Téoder, deitado no jardim de sua casa, observava as estrelas com Faná, sua amada, e Arion, seu filho, com quatorze anos na ocasião. Moravam num lugar privilegiado; o Monte dos Titãs é ótimo para se ver as estrelas, e nos arredores do castelo, que fica no topo, é perfeito para quem gosta de observá-las. — Olhe, filho; aquela chamam de Cães de Caça. Ainda não consegui ver os cães que dizem estarem representados por ela até hoje, mas tudo bem, pois nunca vi um cão de caça mesmo! Téoder sorriu. Sua mulher e seu filho também riram. Parecia ser um dia feliz. 58

ERIC MUSASHI


— Pai, e qual é aquela? — perguntou Arion, apontando para uma simples constelação, a oeste do Caçador e seus Cães de Caça. — Aquela, meu filho, dizem que é a Justiça. Eles falam que é uma balança, e ela representa a justiça que deve haver no mundo dos homens. Gostou dela? — indagou, olhando para o filho. — Sim. Ela é simples, mas é bela em sua simplicidade. Sabe, pai, às vezes penso: seria tudo tão bom se a justiça estivesse aqui, e não lá no céu. Se morasse no coração de cada cidadão atalai; se fosse uma realidade, e não algo inalcançável. Téoder se perdeu contemplando o homem que crescia sob as asas de sua amada. Por alguns momentos, refletiu sobre as tocantes palavras que ele proferiu; talvez estivesse certo. Após ponderar um pouco mais, então compreendeu que não importava se o filho estava certo ou errado. Julgá-lo não era a questão, afinal, tudo aquilo que ele tinha dito era um sonho. E o seu sonho era justo, estava acima do certo e do errado, que são apenas definidos pelos limites e pelas bases das culturas dos homens. Logo Arion se levantou, e foi para o seu quarto, dormir. Abraçou seu pai e sua mãe, despedindo-se. Faná deu um sorriso malicioso para Téoder, que a pegou em seus braços e a beijou. Eles então se amaram sob o manto estrelado, como faziam tão poucas vezes; seus corações batiam acelerados nesses momentos, pois, por serem tão raros, eram deveras especiais. Ainda mais agora, que Téoder estava longe cada vez por mais tempo, e não conseguia explicar direito o porquê — Quetabel começara a lançar seus tentáculos. E nada disso importava; só aquele momento. Ele olhou uma vez mais para a lisa e pura face de Faná, que o encarava com um meigo e sincero olhar. Beijou-a na testa, e acariciou seus cabelos de prata. Ela fechou os olhos e suspirou, relaxando. — Meu amor, eu vivo cada dia por este momento, e, ainda que apanhada pelas garras da morte, minha vida não foi em vão, por isso que passamos juntos. Então essa imagem se desfez, e vagarosamente Téoder foi voltando para a realidade, acordando. Olhou para o céu, e se orientando pelas estrelas, notou que já devia ser a oitava ou nona hora. A festa ainda acontecia, embora ele não estivesse preocupado com isso. Ouviu de novo as palavras de Faná naquela noite. Será mesmo que ela tinha dito a verdade?

OS HERDEIROS DOS TITÃS

59


Ainda que fosse simples como ele pintava, como desejava acreditar, ela não se referia a morrer por suas mãos. Sabendo aonde iria chegar, Téoder bloqueou o pensamento, e não queria retornar a isso. Voltar a remoer esses sentimentos que já jurara por inúmeras vezes tentar deixar para trás. Isso, no fim, acabou o perturbando. Tentou dormir por n vezes, mas a imagem do delicado e feliz rosto de Faná aparecia diante dele, seguido por uma imagem de sua triste e assustada expressão que Téoder viu pela última vez. Não havia jeito; a culpa era a o martírio de Téoder. E talvez fosse para o resto de seus dias.

III O primeiro dia do ebdomês — como chamavam o sétimo — se revelou quente, abafado, contrastando com o frio e a neblina do anterior. Enquanto alguns despertavam nos pátios do castelo e se dirigiam para suas casas, Quetabel tratava de acordar alguns hóspedes no seu quarto e mandá-los embora — a moça e Astarote. Eles abriram a porta, para que saíssem, e a garota se assustou ao ver a figura de Téoder, que esperava. Ele se sentou na cama, imóvel até que os dois saíssem. Quetabel ainda estava nua, sob os lençóis, e não se preocupou em se vestir. Ordenou que a porta fosse trancada pela menina, e, ao que estava a sós com Téoder, aproximou-se dele, ficando de joelhos sobre a imensa cama. — O que houve, meu béli? Por que deixou a festa? — Tive meus motivos. — Téoder tinha um ar de cansado. A noite anterior não fora boa mesmo. — Estava com ciúmes de mim? — animou-se ela. — ... — Téoder não movimentou um dedo sequer. — Estava? — Definitivamente não. Isso é algo que jamais sentirei de você — enfim foi rude. O espadachim estava com os olhos fechados, e não pôde ver o braço de Quetabel cruzando o espaço próximo a ele. Talvez tivesse conseguido ouvir, mas nada fez para impedi-la; notando ou não,Téoder, já arrependido por tê-la ofendido, achava que merecia aquele tapa. 60

ERIC MUSASHI


— Nunca repita isso, entendeu? — gritou, alterada. — Eu só disse a verdade. Sabe que é a verdade. — Eu sei... Só sentiria ciúmes dela! — Ela o apertou, desvencilhandose do lençol, preparando-se para falar mais. — Mas ela sou eu! Quanto tempo vai demorar para compreender isso? — Não comece com isso de novo, Quetabel. Téoder começou a se arrepender de ter voltado para o quarto. — Querido, estou aqui. Aliás, quando trará nosso filho para me ver? — Não faça mais isso! — Téoder a jogou violentamente contra a cama. Por mais que tentasse, não conseguia feri-la de verdade — mesmo que ela ofendesse a memória de Faná e afirmasse ser a portadora de sua personalidade. A ideia de que a Rainha-Deusa o amava de todo coração o deixava totalmente sem forças. Ficaram em silêncio por algum tempo. Quetabel então se abaixou, desistindo de ser forte, e se entregando às lágrimas.Vendo-a daquela posição, não parecia a fêmea-fatal que tentava ser, a Rainha sem coração; a mulher que não amava homem algum, só os atraindo para a sua teia e os devorando depois da cópula, como uma viúva negra. Parecia uma mulher normal, com medos e dúvidas, encolhida diante do mundo em posição fetal. E, de fato, era isso que ela era. Téoder, com pena, abraçou-a e a levantou. Ela pranteava em seus braços. — Vamos parar de nos ferir — pediu ele, alisando suas costas. — Só me diga, meu béli... — Ela fez uma pausa para recuperar o ar. — O que devo fazer para que me ame? — Sinceramente, nem eu sei... Mas que tal começar a tentar sendo você mesma? E Quetabel só fez olhar para ele, desviando o olhar quando suas lágrimas voltaram, e ela voltou a falar: — O último homem que amei queria exatamente o contrário de mim. — Então sugiro que volte para ele. — Téoder a soltou. Vendo o erro que havia cometido, Quetabel tentou abraçá-lo, segurá-lo. Mas já era inútil. Ao ouvir o que ela tinha dito no final, toda

OS HERDEIROS DOS TITÃS

61


a pena de Téoder passou. Deu-se conta de que mesmo sendo amado, ainda poderia se tornar um fantoche nas mãos de Quetabel, como acontecia com todos. Ela só queria as coisas do seu modo, e talvez isso nunca mudasse. Téoder apanhou a armadura e cruzou a porta, enquanto a vestia. — Por favor, agora sou eu que lhe peço, desculpe-me! Fique aqui comigo. Vamos ficar aqui, só nós dois. Por favor... — Ela impedia a passagem, nem se dando conta da própria nudez. — Receio que você já tenha se divertido demais. Téoder a afastou e saiu. Ainda olhou para trás, com o coração apertado. Quetabel sentou-se na cama, e se lamuriou por boa parte da manhã. Nem ela mesma compreendia o real motivo daquela vontade de chorar. Arrependimento? Amor não-correspondido? Solidão? Talvez tudo isso e mais um pouco.

62

ERIC MUSASHI


Lira dos Titãs I Uma forte onda de calor tomava conta do ar. Em contradição com a noite anterior, o primeiro dia de ebdomês amanheceu quente. Foi sendo assim nos outros dois dias de viagem. Mas não importava, pois logo estariam na cidade mais próxima, de acordo com Luredás. A viagem era dura, mas em momento algum tinham se distanciado do rio. Os ensinamentos de Téoder agora se mostravam muito úteis; “Jamais fique por mais de uma hora sem molhar o rosto e sem ingerir água num deserto”, ele dizia. “O ar é seco, e sua saúde ficará fraca. Além disso, terá problemas respiratórios e seus lábios se encherão de feridas”. Para a sorte dos três, o Rio das Sereias jamais os desviaria do caminho, uma vez que o vilarejo ficava na sua margem. Se fosse por Luredás e Ariádan, teriam ido montados no cavalo a viagem toda, e assim chegariam mais rápido. Mas outros ensinamentos lembraram Arion que o peso excessivo faria com que o animal ficasse fraco, talvez até mesmo morrendo; colocou Ariádan sobre a montaria, e ele e Luredás foram andando. Um gesto simples como esse, de proteção, significou para a jovem muito mais do que Arion pudesse imaginar. Ela ficou feliz a viagem toda. Não obstante, algo a incomodava: precisava de um banho. Já não tomava um há mais de dois dias, e a areia do deserto a deixava mais suja do que se estivesse em Jatitã. Ela não podia compreender como Arion e Luredás nem ligavam, como nem tocavam no assunto. Eram homens, talvez fossem menos asseados, ela pensava. Mas também, por terem sido expulsos da cidade, foi necessário mesmo que se acostumassem a viver deixando para traz as comodidades de uma vida calma e feliz. — Eu não sei por que ainda não tocaram neste assunto, mas o fato é que os imanes já nem podem mais nos alcançar, e eu não aguento esta sujeira. Toda esta poeira está me deixando agoniada! Ariádan, submissa e fechada, estava um pouco mudada. A estressante fuga e o deserto, com dias muito quentes e noites gélidas, acabavam mudando mesmo o humor de qualquer um. Porém Arion, cansado e também estressado, protestou:

OS HERDEIROS DOS TITÃS

63


— Ariádan, já chegaremos logo à cidade. Se pararmos agora, vamos perder mais tempo. — Meu amigo, vou interceder a favor da jovem — intrometeu-se o lirista. — Também acho que precisamos relaxar um pouco, e um banho no rio ao lado será muito bom. — Foi o único que falou com gentileza, e isso fez Arion recuperar a calma. — É, talvez vocês tenham razão. Vamos parar um pouco. Enquanto se banham, vou comer algo. — Por que não pode se lavar? Não se sente incomodado? E depois comeremos no caminho — sugeriu Ariádan. — Vão vocês primeiro, pois tenho fome. Depois eu vou. — Venha conosco, Ári, e comeremos todos juntos. — Não vejo motivo para a pressa — discordou o filho de Téoder. — Já paramos mesmo. Além do mais, eu gosto de comer com calma. Ariádan não pediu mais. Foi na direção do rio, já com uma certa profundidade nesta altura do seu leito. Ela tirou suas roupas e entrou nele, sendo coberta até a cintura; seus cabelos caíam sobre as costas nuas vistas pelos furtivos olhos de Arion. Na laranja que ele chupava, sentia o sabor dos beijos de Ariádan. Mas não compreendia o motivo disso; sempre fora uma irmã. Por que a desejava tanto agora? Será que isso se devia ao fato de ter se tornado um homem? Ou por ela ser uma das poucas pessoas que ele tinha, que o amavam? Luredás também entrou na água, e ficou bastante tempo relaxando ali. Como era bom aproveitar cada sensação, cada momento, cada coisa nova. Nunca se banhara no Rio das Sereias, e suas frias águas — pelo menos pela manhã — eram realmente ótimas para se começar um dia! Enfim saiu, e neste momento Arion entrava. Ariádan, já vestida, comia algumas maçãs. O lirista apanhou maçãs também, e enquanto comia, olhou de relance para Ariádan. O que seus olhos buscavam, ao olharem para aquele pequeno espelho que ela carregava? Insistia em fingir que arrumava os cabelos e que buscava imperfeições na própria imagem; mas o ângulo que o espelho de prata fazia parecia refletir Arion para ela. Luredás nem precisava ir lá conferir para que tivesse certeza; o modo como ela cuidava dele, o modo como ela suspirava ao vê-lo. Não havia dúvidas. — Luredás, o que faremos quando chegarmos à cidade? — Arion perguntou, enquanto terminava de vestir sua simples túnica branca. 64

ERIC MUSASHI


— Não sei. Só sei que ainda temos algumas frutas. Se não se preocuparem em dormir numa praça... — Ele sorriu. — Não; eu não. Mas me preocupo com Ariádan. — Arion falou baixo, visto que a amiga, afastada, guardava suas coisas na sacola de couro. — Ela vivia num castelo; eu temo pelo seu sofrimento. Talvez não consiga se adaptar. — Sua preocupação por ela é de se notar. — É. Ela é como se fosse uma irmã para mim. Crescemos juntos. — Tem certeza de que é só isso? — Luredás olhou nos olhos de Arion, e este não via sentido no rumo que a conversa tomava: — Do que está falando? Está sugerindo que... — Da sua parte eu não sei, mas da parte dela. — Não, você deve estar interpretando mal. — Arion se virou, olhando para ela. Ariádan, ao ver que ele a olhava, sorriu para ele, abaixando a cabeça em seguida, e retornou aos seus afazeres. — É, talvez eu esteja errado. Luredás se afastou, vendo que Arion não se dava conta do amor da jovem. Ele, em várias coisas, era ingênuo. O melhor era manter-se longe disso tudo, senão, ao invés de ajudar, acabaria atrapalhando. — Estou pronta — avisou Ariádan, aproximando-se, empolgada como não se via há tempos. — Vamos? — Sim, vamos — respondeu Arion, pegando-a no colo e colocando-a sobre o cavalo. — O... O... Como se chama este cavalo? — Valente. Verjar, pai do nosso falecido amigo, dizia que ele tinha recebido esse nome por ser impetuoso. Este cavalo era dele. — Interessante — sussurrou Luredás. — Bom, então Valente vai levá-la! — sorriu Arion, e o coração de Ariádan agradeceu.

II Já era fim de tarde, e eles não tinham chegado ainda. Talvez isso se devesse ao fato de terem parado por cerca de uma hora para descansarem, banharem-se e comerem. Muito suados e sujos, nem parecia mais que tinham tomado aquele banho matinal. O sol vermelho se punha do lado esquerdo, e um vento frio vinha da frente.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

65


— Será que ainda estamos longe, Luredás? — perguntou Arion. — É exatamente nisso que eu estava pensando agora mesmo — replicou-lhe o lirista. — Pode ser que nós tenhamos andado muito devagar, e se isso aconteceu mesmo, não sei o que faremos, pois há poucos mantimentos. Voltar é uma hipótese que deve ser desconsiderada. — Vamos ver.Talvez estejamos próximos. — É. O que me deixa feliz em estar com você é que sempre tem esperança, meu amigo Arion. — Luredás passou a mão na testa, limpando-a do suor que se misturava com areia. Arion nem teve tempo de responder. Por causa de seus rápidos reflexos pôde aparar o corpo de Ariádan enquanto esta estranhamente caía do lombo de Valente, parecendo cavaleiro atingido por uma flecha mortal no meio de uma guerra. Ele então se abaixou, ainda com ela em seus braços. Luredás, espantado, aproximou-se. Os lábios dela estavam sem cor, e seu rosto muito quente. — Rápido, leve-a até o rio! — bradou Luredás, ao que foi prontamente atendido por Arion. Arion, nervoso, enchia sua palma esquerda com água e derrubava no rosto da jovem, em seguida acariciando-o. “Ariádan, acorde, por favor!”, ele repetia inúmeras vezes. No entanto, ela parecia não ouvir, e não atendia o seu desejo. Depois de muito tentar, enfim conseguiu despertá-la; ela abriu os olhos lentamente.Tentou falar algo, mas não conseguiu, e seus lábios tremiam. — Arion... — Foi o que ela conseguiu dizer. — Não se preocupe. Estou aqui com você — disse ele, abraçandoa fortemente. Luredás, agora mais calmo, ficou só observando a cena. Tentou também imaginar o que teria acontecido com Ariádan. De fato, ela já não falava nada há muito tempo, e não bebia água ou se refrescava há cerca de duas horas. Com certeza desmaiara por causa da falta de hidratação, assim como Arion falara que acontecia. Alguns instantes depois, um pouco melhor — mas ainda nos braços de Arion —, ela tentava explicar o que se dera: — Não compreendo; eu fui ficando fraca, tudo se tornou muito abafado, e... não vi mais nada. — Precisa se hidratar.Tome, beba mais água. — Luredás deu um cantil para ela, que rapidamente o secou. 66

ERIC MUSASHI


O sol já havia se posto. Os ventos frios começaram a se apresentar novamente, o que deixou Luredás e Arion preocupados; teriam que passar mais uma noite gelada no deserto? Se continuassem assim, acabariam ficando doentes. Por mais que estivessem vestidos, ainda sentiam a friagem. Precisavam chegar logo a esta cidade, e então tentariam arrumar um abrigo de um jeito ou de outro. — Luredás, suba no cavalo e vá com rapidez. Pode galopar por uma hora; se nada encontrar, volte. Aí então decidiremos o que fazer. Mas, se a cidade estiver próxima, venha nos buscar — pediu Arion. — Tudo bem. Farei isso então. E, como bem sabe, deve manter os dois olhos nela, certo? — É claro. Luredás montou no cavalo e ambos saíram em grande velocidade. Os ventos frios se intensificaram, afinal, ele e Valente corriam na direção contrária deles. O céu foi escurecendo, e Luredás até chegou a acreditar que não encontraria nenhum povoado. Ao que Valente já desacelerava, exausto, o clima foi mudando, lentamente. Logo, o músico foi capaz de ver uma árvore, e em seguida, algumas plantações de trigo, do lado que ele estava, e outras de milho, aquele grão do além-mar, do outro lado do rio. Não era mais areia onde o cavalo pisava, e sim uma fértil e firme terra. Ao galopar mais um sexto de hora, enfim viu casas, e certa movimentação. Era o vilarejo! Mais tarde, longe dali, Arion ainda cuidava de Ariádan. Seu jeito preocupado e protetor fazia com que ela não precisasse de mais nada. Para ele, era estranho o coração feminino, capaz de se esquecer de todas as dificuldades e sofrimentos quando recebe um pouco de amor. A esta altura, ela já era capaz até de se levantar, mas queria aproveitar aquele momento. Ainda deitada no colo de Arion, fez-se de fraca, imprimindo nele uma irresistível vontade de cuidar dela. Foi sempre assim; Arion era o seu anjo da guarda, o seu protetor. O homem que se estivesse com ela, poderia fazê-la até mesmo pular num abismo — e ela sabia que ele pularia em seu lugar. — Acho que já está melhor — murmurou Arion. — É... Não, quero dizer... Sim! — Ariádan ruborizou, surpresa. — Eu prefiro que se decida, afinal, devo saber se ainda necessita de cuidados — brincou ele.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

67


— Se enquanto crer que estou doente, cuidar de mim, então jamais lhe contarei quando sarar. Por mais tímida que fosse, às vezes Ariádan era invadida por uma coragem e proferia frases como essa, acompanhadas por um decidido olhar visando os olhos de Arion, deixando-o sem-graça. — Não precisa ficar doente para que eu cuide de você, irmãzinha. Ela se sentiu feliz, mas por outro lado também se entristeceu. Ele não hesitava em jurar que sempre estaria ao seu lado, que poderia até mesmo morrer por ela; contudo, não era bem isso que ela queria. Ela queria que seu amor fosse correspondido; queria um amante, e não um irmão. Arion foi até o rio, onde lavou o rosto e bebeu água. Aproveitou também para encher os cantis. Voltou e se surpreendeu ao encontrar Ariádan de pé. Ele ia falar algo para ela, mas ambos se viraram para o boreal, após um barulho. Viram alguém montado num cavalo preto se aproximando, e se animaram, pois sabiam quem era. — E então, Luredás? — indagou Arion, ansioso. — Venham. Encontrei Lira dos Titãs. Após mais de uma hora de caminhada — ou melhor, quase duas —, finalmente podiam ver no distante horizonte algumas pequenas casas, e também tochas, lanternas na noite. Ariádan se acalmou, e sorriu para os amigos. O frio já tinha aumentado em demasia, uma vez que a noite adentrava cada vez mais no deserto. Deram mais algumas centenas de passos, e chegaram. A cidade era pequena, devia ter menos de mil habitantes. O povo, assustado, foi se juntando, e todos olhavam para os estrangeiros que calmamente vinham em sua direção.Ariádan se ressabiou, mas Luredás e Arion mantiveram a calma. No portal da entrada estava escrito “Lira dos Titãs”; esse era o nome da cidade.As casas eram simples, e muito parecidas, mas havia um castelo que podia ser visto dali mesmo. Ele provavelmente ficava no centro do vilarejo, e possuía a formosura natural de qualquer prédio descomunal, mas nada de extraordinário. O povo vestia túnicas simples, e deveriam ser todos agricultores. — O que desejam, forasteiros? — quis saber um homem que se aproximou, destacando-se da aglomeração que devia ser uma festa. Seus olhos e cabelos eram castanhos e, por suas vestes, deveria ser um mádi. 68

ERIC MUSASHI


— Olá, meu senhor. Nós três viemos de Jatitã, e procuramos estabelecer nova vida aqui. Podemos fazer qualquer trabalho para começar — explicou Arion. — Hum... E o que me garante que não são bandidos? — indagou, desconfiado. — Devem estar fugindo de algo, e com certeza escondendo coisas. — Pode nos revistar; não nos zangaremos — sugeriu, tentando conquistar a confiança do suposto mádi. — Que seja! Ele os revistou com muita cautela, bem como suas sacolas, buscando armas ou objetos roubados. Num lugar em que todos se conhecem, estranhos podem representar uma ameaça. Era a rotina, e a procediam com a razão: o que um estrangeiro poderia querer num lugar sem comércio, lar de pequenos agricultores, deixando os grandes centros? Ele podia muito bem ser um assassino, um ladrão ou um fugitivo da lei — como era o caso de Arion, Luredás e Ariádan. — Pelo que vejo, não representam ameaça, ao menos a uma primeira vista. Mas, meu jovem, toca lira? — quis saber, virando-se para Luredás. — Sim, eu arrisco algumas dedilhadas. — Interessante. Pode me mostrar? — Tudo bem, senhor. Mas antes, é possível que o senhor me diga quem é e por que me pede isso? — Eu sou o mádi de Lira dos Titãs. Mas só lhe falarei o propósito disso depois de ouvi-lo tocar. Só lhe digo uma coisa: se sua música me agradar, provavelmente aceitaremos vocês aqui na cidade. — Certo. Só mais uma pergunta: só há um mádi aqui? — Sim. A vila é pequena, e posso cuidar de tudo com meus vinte telapuros. Agora, se estiver pronto. Luredás não respondeu; pelo contrário, empunhou a lira e começou a dedilhá-la. No começo, todos acreditavam que era mais um novato músico, pela simplicidade de sua melodia. Entretanto, conforme seus dedos foram se aquecendo, ele começou a tocar de uma forma nova, hipnotizando-os além da abstração comum a que o som de uma lira proporciona. A sua melodia era tão bela quanto inevitável, atraindo todos para perto de si.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

69


O povo fez um grande círculo em volta dos três estranhos e do mádi. Conforme a composição se desenvolvia, todos iam ficando mais e mais excitados, suas almas ansiando pela próxima nota, e eles recebendo o que queriam. A intensidade das emoções aumentava, e todos, apreensivos, aguardavam pelo grande momento, o clímax. E ele chegou, revelando uma modalidade desconhecida, uma música capaz de estremecer a natureza. Luredás terminou cerca de um quarto de hora depois. E não houve quem, mesmo sem querer, não estivesse com um nó na garganta. Ele, ofegante, guardou a lira dentro da roupa, e olhou para o mádi, esperando sua resposta. Arion, neste momento, já estava boquiaberto, e Ariádan, agarrada no seu braço direito, queria chorar, ainda abalada pelos eventos dramáticos de seus últimos dias em Jatitã. — E então, meu senhor, podemos ficar? — Se tudo for como imagino, talvez para sempre — disse ele, embargado de emoção. — Como você se chama? — Luredás. Este é Arion e esta é Ariádan. E o senhor, como se chama? — Meu nome é Bíades. Por favor, venham comigo. Ele, ainda emocionalmente abalado, encaminhou-se na direção do castelo, levando os três recém-chegados consigo. O povo, atordoado, demorou para abrir a roda. Livre o caminho, os quatro seguiram. Luredás não achava nada estranho; só se preocupava em olhar ao redor e conhecer o novo ambiente. Já Arion e Ariádan, trocavam olhares assustados a todo momento, sem compreender como Luredás tinha aquela habilidade e sensibilidade. — Amigo, por que não tocava assim antes? — quis saber Arion, cochichando-lhe. — Vocês queriam risadas, queriam uma alegria de festa, e era o que eu lhes dava. Meu amigo, não devemos iludir pessoas com melodias divinas, pois depois cairão em si, e perceberão que ainda estarão neste mundo podre e decadente. Ainda mais quando se é um insurgente, isolado com suas preocupações. — É aqui, senhores — disse Bíades, apontando para a porta do castelo, agora aberta. — Vocês dois, fiquem aqui! — Ele segurou Ariádan e Arion, quando tentavam entrar. 70

ERIC MUSASHI


Luredás andou sobre um tapete vermelho, e uma ampla sala se revelou.A acústica deve ser ótima aqui, pensou. Continuou caminhando, e cruzou uma porta de madeira, que se abriu sonoramente. Além dela, um delirante jardim se desanuviou sobre suas vistas; vivas rosas, margaridas e outras flores embelezavam-no, e um homem se punha sentado na grama com uma mulher. Ele vestia uma túnica preta com detalhes em roxo, e na cintura carregava uma espada, que, pela bainha, deveria ser de sevaste. Tinha olhos e cabelos anis, e uma face simpática. Já a moça, linda, usava um vestido verde-amarelado, da cor de seus olhos e cabelos, muito lisos — mais um vinda do Oeste. Os dois se voltaram para ele: — Quem é você, rapaz? — indagou a moça com gentileza. — Sou Luredás. O mádi Bíades mandou-me vir até aqui para que eu toque para o senhor e a senhora. — Luredás curvou-se. — Ah, Bíades e suas ideias não usuais. Mas seja bem-vindo, Luredás — cumprimentou o varão. — Esta é Neara, minha senhora, e eu sou Achades, o béli de Lira dos Titãs. Diga-nos: de onde você vem? — Sua voz era ao mesmo tempo imponente e suave, tirando a apreensão do lirista. — De Jatitã. Como pode ver, pelo meu estado, acabo de chegar. — Dizem que na antiga capital há grandes instrumentistas — animou-se Neara, ficando mais reta e atenta. — Espero que seja digno de tocar para um béli — foi humilde Luredás. — E também para a bela senhora. Ele, que ainda estava com a lira na mão, buscou algo menos impactante, e com um certo toque de romantismo, convidando ao amor. Havia passagens da mesma melodia que tocou na entrada da cidade, porém eram poucas; logo se revelou um ritmo mais lento, mais preocupado com o casamento das notas, e seu poder de conduzir o ser humano a estados inimagináveis. Amalgamando lições de suas viagens, e de seus sonhos, Luredás trazia um jeito completamente desconhecido de tocar. A estranheza quase o fazia ser rejeitado no começo, entretanto, logo era impossível de se parar de ouvir. Aos poucos, foi conquistando o béli e sua companheira, e também os servos do castelo, que se juntaram atrás de Luredás. Até mesmo crianças que brincavam no jardim pararam, tocadas pela força da composição.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

71


No fim, Achades movia a cabeça para os lados no ritmo, parecendo voar de tão leve que estava. — Espero ter agradado a todos — disse Luredás, curvando-se uma vez mais. — Desejo profundamente que fique alguns dias conosco, Luredás — admitiu Achades. — Recentemente, perdemos o nosso músico, e as últimas festas foram estranhas, sem suas melodias. Ele era habilidoso, e seria difícil alguém substituí-lo; mas você nos traz um novo mundo, e, se for bom assim em outros ritmos, como nos alegres e que acompanham os movimentos sinuosos das dançarinas, ficará na história de Lira dos Titãs. — O imponente béli já havia desarmado as defesas e perdido a compostura ante à magia da composição. — Sim, era esse mesmo o meu desejo; ficar, e indefinidamente. Entretanto, só o farei se meus dois companheiros, que estão comigo, também o possam. — Isso pode ser providenciado — disse o béli sem hesitar. Onde a cultura vigente ainda era a da Jatitã antiga, os músicos e poetas eram muito valorizados, conseguindo viver só de seu ofício. — Preparem três quartos para eles — ordenou, confiando em Bíades e sabendo que ele não enviaria alguém até ele sem os devidos cuidados. — Vá chamar seus amigos. Vocês ficarão o tempo que quiserem. — Nem sei como agradecer. — Mas eu sei como; prepare seu repertório, Luredás: haverá uma festa amanhã. Quero que toque. — Seu desejo será atendido, meu senhor.

III A festa do segundo dia de ebdomês comemorava o aniversário da fundação de Lira dos Titãs, o que aconteceu há cerca de quinhentos anos. A condição de vilarejo era mantida, sem se entregar ao inevitável crescimento, pela política feudal de Quetabel, que promovia dezenas de milhares de povoados com mil ou menos habitantes, sob o governo de um béli e cultivando as terras ou criando rebanhos. E, as constantes convocações para expedições aos ermos diminuíam a crescente população Atalai, que era de dezenas de milhões, ainda que sua maior cidade tivesse cem mil. 72

ERIC MUSASHI


A simplicidade do povo inculto de Lira dos Titãs fazia com que a comemoração transcorresse tranquila, e Luredás era elogiado conforme tocava os espíritos dos que ali estavam. Num canto escondido e esquecido do castelo, Ariádan se debruçava sobre o peito de Arion, que sorria, com uma felicidade infantil. Feliz por estar num lugar aconchegante de novo; pura realização sem detalhes ou complicações. — Vamos lá, Luredás! — gritavam nas pausas os aldeões. — Como ele é lindo! — murmuravam as mulheres entre si, querendo casá-lo com suas filhas donzelas. — Toque mais uma! — pediam os embriagados. Arion já bebera bastante vinho com Ariádan, e ao ver que ela dormia, pegou-a no colo para levá-la para o seu quarto. Apenas acenou com a cabeça para Luredás, que correspondeu, e subiu as escadas carregando-a. Abriu a porta com os ombros, e os sons do festejo ficaram para trás. Os quartos do castelo eram arejados, de teto alto, e suas camas , apesar dos colchões de baixa qualidade, eram aconchegantes. A janela tinha uma ótima vista da curva que o rio fazia e de toda a cidade, e no chão repousava um caixote com roupas para várias ocasiões, presentes de Achades. Arion deitou-a na cama, e afrouxou o seu vestido, para deixá-la mais confortável. Era comum que os atalais dormissem nus, relaxados; porém, Arion preferiu deixá-la de roupa, temendo seus impulsos ao ver sua nudez. Ele ficou por algum tempo observando o esbelto corpo da donzela, com parte dos seios aparecendo. Por fim se afastou, sobressaltado. — Arion... Espere! — chamou Ariádan, segurando-o pela túnica. — Ah, você acordou? — ofegante, tentava esconder seu nervosismo. — Por que não fica aqui, comigo? — Ariádan, bêbada, não tinha mais medo de convidá-lo para amá-la, de se declarar. — Hein? — Está tarde; acho melhor ir para o meu quarto. — Arion, posso ver em seus olhos que quer ficar. Não negue a si mesmo — ela então o puxou para perto de si, e não resistiu, beijando-a. Ariádan puxava a túnica dele para cima, querendo deixá-lo nu, e imagens passaram pela cabeça dele, inclusive o banho daquele dia.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

73


Num fluxo natural, Arion se lembrou de como a rejeitou, e de que não intentava desposá-la. Preocupado com seu destino, empurrou-a, e se levantou, apalpando o chão e pegando sua roupa, que fora atirada por ela. — Está ficando mesmo difícil ficar perto de você! — gritou ele. Ela, lágrimas aflorando dos cantos de seus olhos, mirou Arion, sem reação. — A culpa não é sua, Ariádan, é minha. É isso que quero dizer. Acho que é próprio da natureza humana esse desejo, essa necessidade, mas não devo comprometê-la sem saber o que quero para o futuro. Ele terminou de falar exatamente quando já tinha vestido toda a sua roupa, e se encaminhou para a porta. Arion olhou uma vez mais para aquela frágil garota antes de sair, aquela que ele insistia em negar, em deixar para trás. Percebeu que se continuasse olhando, não teria mais coragem de ir embora. Sentada, Ariádan pareceu nem se dar conta de que ele se fora, tão absorta pela embriaguez, e permaneceu assim, até que adormeceu. E os três passaram muito tempo ali. A cada seis ou sete dias havia uma comemoração, e Luredás assumia o seu posto, trazendo momentos inesquecíveis a todos. O tempo parecia passar depressa demais, num fluxo impossível de ser acompanhado, talvez pela ausência de preocupações, e a sensação de continuidade, de se estar em casa, que tinham ali. Uma terra pequena, com os velhos costumes, um lugar do qual precisavam. Por que não tinham descoberto tudo isso antes? Nem teriam sofrido tanto em Jatitã. O povo não era dotado de muita intimidade com Ariádan e Arion, mas não havia quem não tivesse Luredás em alta estima. Ariádan, quase que por acaso, havia feito uma amizade com Neara, e elas andavam pelos jardins, e também se banhavam em lagos artificais do castelo. Consequentemente, Neara descobriu sobre o amor de Ariádan por Arion, e ela a aconselhava sobre como agir. Já mais experiente, contava histórias sobre como conquistara Achades, e a respeito de como eram felizes nos dias atuais. Já Arion, solitário, dialogava apenas com Luredás. Passava os dias meditando, ou mesmo se perdendo em lembranças. Agora, todavia, as tinha como relíquias, um livro de histórias, e não como um antes desejado por 74

ERIC MUSASHI


ser melhor que o agora. Seu melhor amigo era o Valente, com quem cavalgava pelas redondezas para se exercitar. Achades e Bíades, do mesmo modo que a maioria dos habitantes, tinham uma profunda admiração por Luredás. Mas ambos também nutriam uma amizade por ele, e concediam seus desejos sem hesitar — não que fossem muitos. O 38º dia amanheceu um tanto frio. O ano já estava perto do fim, mas nada disso importava para aqueles que viviam em Lira dos Titãs, exceto pelo fato disso comandar suas colheitas e mostrar para eles quando deveriam plantar também. De resto, não se ligavam a datas — a não ser pelo aniversário da cidade — e a épocas. Arion e Ariádan andavam juntos, montados no Valente. Depois daquele dia 2, tinham até ficado alguns dias sem se falar, mas os sentimentos que os prendiam eram muito fortes, e logo estavam próximos de novo. Apesar do frio, cavalgavam; vestiam roupas de couro, não sabiam de qual animal. Passearam pelos arredores, e então decidiram voltar. O estábulo do castelo ficava além do jardim, e por isso passaram por ali. Provavelmente Ariádan já ficaria lá, e se Neara estivesse sentada ou caminhando, as duas ririam juntas e fariam confidências. Enquanto isso, Arion levaria o Valente para sua baia, e depois retornaria para o seu quarto, o seu mundo de divagações. Essa era a sua rotina. Desta vez, porém, antes que os dois surgissem no jardim, duas figuras estavam ali, sentadas, observando as poucas flores que insistiam em sobreviver neste dia tão gelado. Uma usava um justo vestido preto, e parecia ignorar o tremendo frio que fazia. Já a outra estava com uma túnica azul escura, e com sua inseparável lira em mãos. Acanhado, Luredás agradecia os elogios de Neara: — Muito obrigado. Sua beleza também é de se admirar. — Humf... — ela sorriu. — Sendo belo e habilidoso assim, deve haver dezenas de garotas suspirando por você. — Se há, eu não sei. Só sei que não suspiro por nenhuma no momento. — Ah, Luredás, como às vezes o destino nos pega de surpresa, e não entendemos qual o propósito do que acontece conosco. — De que fala, minha senhora?

OS HERDEIROS DOS TITÃS

75


— Eu jamais quis que isso acontecesse, mas parecia tão desejável, uma novidade para uma vida monótona numa vila em que nada muda — suspirou ela, sem saber as palavras certas. — Aconteceu aos poucos, tão devagar que no começo achei que era algo bobo, que devesse ser ignorado, como grãos de areia levados pelo vento para lá e para cá. Não obstante... — Do que está falando, Neara? — indagou ele, não querendo acreditar. Ela achava que seria um erro esconder o que sentia, mas um erro maior falar. Achades era muito bom com ela, e não suportaria o peso de traí-lo. Todavia, o que sentia por Luredás era imponente, como que sonhos juvenis lhe houvessem retornado de uma vez. E ela não conseguia mais conter em seu peito. Segurou a sua mão, e, ao que tentou falar, divisou Ariádan se aproximando. — Acho melhor nossa conversa ficar para outro dia. — ela beijou sua mão e foi ao encontro da amiga. Luredás ficou ali, atônito. De fato, nos últimos dias, em que passavam longos momentos conversando, vinha sentindo uma forte atração por ela, algo que ela tentava arrancar do peito com todas as forças. Mas a cada golpe que ele desferia, isso aumentava, como sangue derramado. O lirista não sabia de que jeito isso ia acabar, mas uma coisa era certa: de forma alguma seria justo.

76

ERIC MUSASHI


O plano de Astarote I Fazia algum tempo que Quetabel e Téoder ouviam o barulho vindo lá de fora. Na noite anterior, beberam bastante antes de se deitar. Estavam ainda nus, abraçados, ao que acordaram. Provavelmente já era a sexta hora do dia, apesar da escuridão lá de dentro, com as janelas e a porta da sacada fechadas. Téoder se levantou e se vestiu, e saiu do quarto para descobrir o que acontecia da sacada principal daquela torre, onde Quetabel e Astarote faziam seus discursos. Enquanto ele ia até lá, ela molhou os cabelos e prendeu-os dos dois lados, e jogou sobre o corpo uma transparente camisola rosada. A Rainha-Deusa lavou o rosto e também foi até lá. — O que houve, meu béli...? — Ela nem bem terminou de falar e ficou ali, perplexa, ao ver centenas de pessoas na rua, impedindo o trânsito. — Mas o que... o que significa isso? — Eu não sei. Provavelmente eles querem algo, Quetabel. Gritavam sem parar.“Justiça!”,“Minha família passa fome!”,“Minhas plantações morreram!”; essas, entre outras, eram coisas que vinham reivindicar. Com os problemas da cidade e do campo, não demoraria até que isso acontecesse, e a exaltação superasse o temor dos militares. O último protesto organizado contra o governo de Quetabel fora há mais de vinte anos, abafado pelo béli da época, seus imanes e os outros militares. Depois disso, não mais se voltaram contra ela por medo. — Silêncio! — berrou Quetabel, e sua voz se espalhou aguda pelos arredores. — Assim está melhor — disse, mais controlada. Havendo tanta gente, menos da metade seria que escutaria diretamente suas palavras. — Agora, podem me dizer com que direito se atrevem a se juntar e vir fazer bagunça no meu castelo? A balbúrdia se instaurou novamente, e nada mais podia ser compreendido. Quetabel calculou que cerca de 5.000 pessoas estavam ali, e não destruíam os jardins com suas pisadas por serem contidas por telapuros. A multidão tomava até mesmo um pouco das oito ruas que saíam das quatro torres e atravessavam a capital, morrendo nos quatro portões e em quatro praças.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

77


Furiosa e assustada, temendo perder o controle da situação, Quetabel voltou a vociferar:. — Será que não compreendem?! — ela, além de gritar, gesticulou, para lhes expor que estava nervosa. — Se todos falarem juntos, como eu entenderei? Ei, você, diga-me o que estão tentando fazer! — ordenou, apontando para um homem que estava junto dos telapuros palacianos. — Majestade — disse o rapaz, e sua voz era suave —, passamos necessidades. Os impostos estão muito elevados. — É isso aí! — gritaram em coro, concordando com ele. — Mas não consigo compreender como funciona a mente humana! — ela insistia em afirmar sua divindade. — A quantia é a mesma há vários anos, e conseguiram sobreviver até aqui! “Ela brinca com algo sério”, notou Téoder, mirando-a com sarcasmo no rosto. “Abusa da tolice deles, quando na verdade devem ter sido bem instruídos, e mandados por alguém que está contra ela.” — E a crise que atravessamos? — replicou o rapaz, perdendo o seu acanhamento. — A seca prossegue, e quem é que pode honrar os compromissos? Se Catebete sofre um golpe, Atala inteira rui, pois quem produz com sobras no Poente ou no Nascente é afetado pelas determinações recentes de abastecer em maior quantia este centro. E nós, sem saber o que esperar do futuro, como podemos dar nossas palavras sobre nossos débitos? Que garantias existem? Posso enumerar os que conheço que perderam a vida em emboscadas por causa de suas dívidas, e eles não tinham culpa, já que o amanhã é incerto. — O problema dos bélis, imanes, mádis e telapuros é resolvido, por mais que grande parte do país tenha um solo que não dá mais nada — apontou um velho, acrescentando —, uma vez que os excedentes lhes chegam. Mas e nós, que não recebemos impostos, empobrecemos, e ainda precisamos contribuir com o castelo? Téoder, não querendo ouvir as explicações sem embasamento de Quetabel, deixou a sacada, entrando na grande sala que ficava atrás dela. Lá se sentou, e algumas súditas lhe serviram leite e alguns pães, além de mel e cerejas. Quetabel, sem ter o que dizer, perdia o controle da situação. Para completar, Astarote não estava aqui para ajudá-la; partira já há mais de trinta dias, pouco depois de seu aniversário, sem uma boa explicação. 78

ERIC MUSASHI


Ela, que estava aqui, precisava arrumar um jeito de acalmar o povo. — Tudo isso é culpa de vocês, mortais, que não se empenham em conquistar as Planícies Proibidas! Eu vim para este mundo, para reinar aqui, a fim de ajudá-los a conquistar tais terras, que reservei para vocês. Mas se não lutarem, como poderão ir para lá? A Deusa é sábia em exigir empenho dos homens, senão que valor terá a vida, uma vez que ela lhes dê o que pedirem de pronto? Criem assim seus filhos, e sabem que eles não será de valor. — Por falar em filhos, e os nossos morreram tentando? — reclamou uma mulher de meia idade. — A Rainha os manda para a morte certa! — exclamou um velho. Quetabel amaldiçoou sua escolha de lhes dar ouvidos, e os argumentos que usara. Melhor seria ter acabado com essa aglomeração por meio da força. Todavia, até quando podia levar a situação? Que a economia de Catebete estava implodindo, era impossível não notar. Quantos eram os que não pagavam suas dívidas? E as tavernas faliam por isso? No castelo, os efeitos não eram sentidos, e assim acontecia nas vilas do centro da ilha-continente, e das proximidades de Jatitã. O povo, porém, vivia cada vez pior. Eram uma vaga lembrança os “excessos por excedentes”, e a vida desregrada dos cidadãos da capital agora era por sua falta de perspectiva quanto ao futuro, e não pelas sobras. Comunidades rurais de mentes simplórias do Nascente e do Poente viviam melhor que os habitantes de Catebete, e os portos movimentados de Jatitã e Porto da Vitória multiplicavam os lucros de seus moradores. Quem comia carne com frequência e não era militar na capital? Era natural a revolta. Ela não sabia mais o que dizer. De nada adiantaria pedir silêncio e depois gaguejar, pois aí é que o povo a respeitaria menos ainda. A confusão começou a aumentar, e Quetabel assustou-se, sentiu-se um nada sem a ajuda de Astarote. — Silêncio! Não são capazes de respeitar sua Deusa? — soou repetidamente uma voz, e ela impunha respeito no meio da turba. Quem quer que fosse, estaria vindo na direção do castelo, com a intenção de entrar na torre. O povo foi abrindo caminho, e a figura de um sacerdote se revelou, com sua túnica escura e o rosto envolto num capuz.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

79


Ele retirou-o, revelando que era Astarote — só podia ser; que outro clérigo se misturava com o povo? Os Quatro só ficavam dentro do castelo, saindo poucas vezes, enquanto que ele era o porta-voz da Rainha. Seu braço direito. — Seus idiotas, não percebem que ela já havia pensado nisso? A Rainha-Deusa me mandou numa missão, e munido das informações que consegui, serei capaz de ajudá-la a formar o plano de ataque perfeito. Assim, finalmente conquistaremos as Planícies Proibidas! “Do que ele estava falando?”, perguntou-se Quetabel. Mas não importava. Ao menos o povo se acalmou. — Acalmem-se, pois sua mãe olha por vocês — adicionou ele, e desapareceu de suas vistas para dentro de uma das torres. O que será que ele tinha descoberto? Os protestantes se sentaram nas ruas, ainda impedindo o livre circular. Acalmaram-se, e na certa não iam sair dali até que a Rainha dissesse qual era a sua posição. Curiosos também foram se juntando a eles, e conforme o sol ia baixando, mais e mais pessoas enchiam as vias. Enquanto isso, dentro do castelo, uma conversa tinha início. Quetabel solicitou a saída de Téoder, pois era um assunto somente entre ela e seus sacerdotes. Ele se foi; um tanto amuado, mas se foi. Os outros quatro clérigos vieram, todos curiosos pelo que Astarote tinha para dizer — de seus cantos escuros, haviam assistido à confusão. — Diga-me, Astarote: o que tem em mente? — quis saber Quetabel, imperativa. — Aliás, o que fez nesses dias em que esteve fora? — Primeiramente, eu não lhe devo satisfações — retrucou o SumoSacerdote. — Sabe que se não fosse por mim, não seria Rainha nenhuma, e hoje em dia já teria sido devorada por vermes. — Ela engoliu seco quando ele falou assim. — Agora, vou ao ponto. Eu saí justamente para tentar descobrir um caminho melhor para invadirmos aquelas terras. — E conseguiu? — perguntou Ofis, um dos sacerdotes. — Creio que sim. Eu fui até o Deserto Dezrã. — Aquelas terras ingratas? O que procurava por lá? — assustou-se Quetabel.Talvez fosse último lugar em que um atalai desejaria estar. O deserto que se estendia pelo extremo Boreal-Nascente do continente era um dos poucos pontos que jamais foram habitados por seres 80

ERIC MUSASHI


grandes — fossem homens, tigres ou mesmo dragões. Apenas pequenos escorpiões, lagartos e serpentes venenosas aguentavam as escaldantes temperaturas dos dias que contrastavam com os ventos gélidos das noites. O deserto se formou por causa de várias montanhas que se erguiam no litoral, impedindo que a corrente úmida de ventos passasse, deixando a área muito seca. Ele era extenso, de modo que alguém a cavalo demoraria mais de dez dias para atravessá-lo, isso sem contar o fato de que o clima quente diminuiria o fôlego de qualquer um que tentasse cruzar os espaços áridos. O mais curioso era que onde os domínios do deserto terminavam, imediatamente começavam os Bosques Inundados. Totalmente alagados — por serem banhados pela água que descongelava dos picos da Cordilheira Roana e continuava além dos bosques em vários rios —, com rasas profundidades, eram repletos de crocodilos e grandes cobras. Somente o lendário Turaquê — talvez o maior herói da história atalai — conseguiu transpô-lo, ainda que perdendo muitos dos seus soldados. Nem com barcos — pela grande quantidade de galhos e pela proximidade das árvores — e nem a pé — a profundidade é de cerca da altura de um homem em quase todo o bosque — pode ser conquistado; apenas com canoas. — Eu analisei mapas de Melcártis trazidos no ano passado e notei uma certa distância não cartografada entre os Bosques Inundados e as Montanhas Iridescentes. Poderia ser um erro, contudo ele se repetia em vários deles, e supus que fosse um vale. Por isso reuni um grupo de mercenários das regiões de Ancatébia e parti para lá, até o seu fim. É sabido que cordilheiras cercam o planalto que chamamos erroneamente de Planícies Proibidas, não obstante, há uma diferença entre passar dias cruzando montanhas e mais montanhas, arriscando-se contra a altitude, o frio e os dragões, e passar por rios em terra plana, só em uma manhã ou tarde precisando vencer uma ou outra elevação. Ele despejou água de um jarro num copo de bronze, e bebeu com avidez, e os outros imaginaram as implicações do que dizia. Seu maior desafio era vencer a Cordilheira Roana, e, se fosse como dizia o sacerdote, seu caminho era muito mais fácil. — Há um vale, no fim dos bosques, nas suas fronteiras com o Dezrã. Sim, há mais deserto pela frente, e ninguém conseguiu atra-

OS HERDEIROS DOS TITÃS

81


vessá-lo. Mas, indo através dele até esse vale, conseguirão ir aonde ninguém havia ido até então; conquistarão as Planícies Proibidas! — sorriu, orgulhoso de sua descoberta. — Imagino que seja mais complicado chegar até esse vale — ironizou Etael, outro sacerdote. — Cruzar o Desrã... — É melhor voltar aos seus devaneios filosóficos, já que não sabe do que fala — rebateu Astarote. — Quando falo de atravessar o deserto, é margeando os Bosques Inundados, o que, por si só, é bem menos exaustivo. — É interessante sua ideia — disse Quetabel —, mas ao se encontrarem nas Planícies Proibidas, deparar-se-ão com animais ferozes, como das poucas vezes em que as vislumbraram. Como poderão vencer? — Não se alarme, minha cara Quetabel. Nós faremos a maior tropa que já existiu. Contudo, antes disso, teremos que nos reunir com todos os bélis do Reino. Um conselho. E então decidiremos quantos irão. — Um conselho? Posso providenciar. Mas onde arrumaremos esses homens? — Ela não compreendia. — Decidiremos no conselho. Porém, não se alarme. E prepare-se, pois agora fará um discurso para o seu povo, minha Deusa. — os outros riram pela brincadeira que Astarote fez. — Vamos, ou quer que eles fiquem esperando até anoitecer? Quetabel se encaminhou para a sacada, ainda curiosa e com medo de Astarote. Ele colocou seu capuz e se foi, sendo seguido pelos outros. — Olhem lá, é a Rainha! — soou uma voz, e todos os outros se ergueram. Quetabel já se despira da camisola translúcida, e agora se vestia com um tapa-sexo de couro, um cinto de ouro em seu tronco — o símbolo da realeza —, e pulseiras, brincos e outros ornados. Seus cabelos castanhos ondulados estavam soltos, e entre os seios nus pendia o colar com um pentagrama na ponta — que já fora de Faná. — Agora vejo como são impacientes — começou. — Mas, diferente de corruptíveis humanos como vocês, tenho todo o tempo do mundo, e por isso sei esperar. De qualquer forma, minha magnificência é infinita, e perdoarei cada um que está aqui pela falta de respeito que tiveram comigo. 82

ERIC MUSASHI


Um murmúrio se espalhou pela multidão, que queria coisas concretas, e se impacientava pelo desvio do assunto. — Não se zanguem; se brigo com vocês, é para educá-los, pois sou sua Deusa e quero o seu bem. Mais uma pausa. — Como lhes foi permitido saber, enviei Astarote, o mais poderoso de meus anjos, para descobrir um modo de entrar nas Planícies Proibidas. É interesse de vocês, uma vez que eu não preciso chegar até lá, já que sou eterna e imortal, e não é uma terra infértil que me deixará sem perspectivas. Vejam como me preocupo! — Ela então encenou, colocando a mão sobre o rosto. — Não sabem o quanto me ferem me tratando desse jeito. Mas eu perdoo, como já disse. — Abaixou-se por algum tempo. Após setecentos anos ditando as regras e discursando em Catebete, Quetabel havia mesmo aprendido a encenar, a comover a plateia. E agora que tinha um argumento, ia jogar com os sentimentos deles enquanto pudesse. — Eu sei que o tempo está próximo, quando deixaremos para trás estas terras ingratas, e iremos para aqueles lindos e verdejantes campos. Para as terras onde há rios por todos os cantos e suas águas sempre são cristalinas, onde chove frequentemente, e a natureza insiste em não nos aceitar. Todavia, não é mais valorizada a rapariga que não cede aos primeiros flertes de um rapaz? Podem compreender isto, meus filhos? Muitos já morreram, e não nego, e talvez mais percam suas vidas, mas tudo isso tem um propósito, e chegaremos àquelas terras. — E o que mudou agora? — gritou um rapaz. — O que garante que conseguiremos desta vez? — acompanhou-o outro. — Se o que fizemos foram testes, experiências, agora temos um caminho, uma direção — explicou Quetabel. — Um rota por um vale de doçuras, e somente duas montanhas como abas de uma porta que se abrirá. Afirmo para vocês que antes que um ano se passe estaremos lá. Ela não teve seu nome gritado em coro, e não viu sorrisos nos rostos de seus súditos, mas estava realizada. Aos poucos, espalhar-se-ia a ideia, e suportariam sua miséria crescente por mais um tempo. A própria Quetabel acreditava em Astarote, e já se via dominando o que lhe faltava da ilha-continente. Afinal, quando ele errara?

OS HERDEIROS DOS TITÃS

83


Não havia nada como ser amada e temida por uma nação. E ela se despediu deles, que se dispersavam, sinal de sua aceitação. Sabia que o próximo dia seria ótimo: arrependidos por terem ferido os sentimentos de sua Deusa, iam enchê-la de presentes, e talvez até organizar uma festa para ela. Como era boa esta vida que ela tinha, pensava Quetabel. Só lhe faltava uma coisa...

II Era manhã do dia seguinte quando Téoder dava as últimas instruções para os mensageiros que seriam enviados para todos os pontos do Reino, convocando os bélis para o conselho. Grabatal possuía milhares de cidades reconhecidas — a maior parte no Nascente, numa organização só compreendida lá para aqueles lados —, porém umas estavam nos caminhos das outras, e, após a preparação, cerca de duzentos mensageiros se mostraram necessários. Após sua partida, Téoder ainda retinha um deles: era Adum, o imane mais querido do Béli-Mor. Um amigo em quem ele podia confiar, que não o invejava. Adum era seu aliado desde antes do béli anterior morrer. Ele, com sua cobiçada armadura de aço e sevaste e sua espada longa, montava o seu cavalo branco. Adum era robusto e viril, e seus cabelos eram castanho-escuros, bem como seus olhos. Uma cicatriz cruzava o lado direito de sua face, resultado de um erro de seu mestre num treinamento há vários anos. — Você deve imaginar por que o designei para convocar o béli de Jatitã, Adum — disse Téoder, olhando para o imane. — Claro que sei, Béli-Mor. Além de entregar a carta, quer que eu veja como está o seu filho, não é? — É; isso mesmo. Além disso, quero que entregue esta carta para ele. — ele então deu um pergaminho selado para Adum, que o apanhou. — Pode considerá-la entregue — despediu-se o imane. Do pátio do castelo, com certa movimentação pelas ruas, Téoder observava sua imagem se perdendo entre os transeuntes. — O que quer conseguir ao mandar uma carta para o seu filho rebelde? — indagou Astarote. Téoder se virou, não o tendo percebido antes. 84

ERIC MUSASHI


— Você fala alto demais, Béli-Mor. — Eu acho que é você que costuma andar nas sombras. — O que quer insinuar com isso? — Não sei o que pretende conseguir com esse plano, Astarote, mas esteja certo de uma coisa: você pode ter iludido Quetabel com suas artimanhas, porém a mim você não engana. Sei muito bem que não é um mensageiro divino, como todos pensam que você é. Creio que esteja muito mais próximo de um deus das trevas. — Téoder o fitou com hostilidade. — Tome cuidado com suas palavras. Pode ser temido pelo povo, mas perto de mim, você não é nada. Não esqueça que sou tão velho quanto Quetabel. Seus truques inúteis não são capazes de colocar medo nem no mais fraco dos meus irmãos. — Humf... Você fala isso, mas não é o que pensa. Posso ver nos seus olhos; sabe que posso acabar com você num instante, não é, sacerdote? — Téoder retirou a espada da bainha com extrema rapidez, direcionando-a para a garganta de Astarote. Este, vendo o golpe se aproximar, avançou na direção de Téoder, ficando encostado nele, tornando impossível a execução da espadada. O braço esquerdo do Béli-Mor parou seu movimento no meio do caminho. — Não pense que sou qualquer um, Téoder. Enquanto você aprendia seus primeiros golpes, eu já era capaz de fazer todo este castelo vir abaixo; este gigante e imponente castelo que você e Quetabel consideram indestrutível. Sua pobre existência não é capaz de sequer me causar um arranhão — e ele riu, mostrando os dentes. — Se eu fosse você, não estaria tão certo disso. Astarote então viu que o braço direito de Téoder estava com um punhal com o sevaste de uma pedra solitária coruscando, arma provavelmente antes oculta em sua roupa. O ataque azulado roçava o tronco do líder dos sacerdotes, na altura do seu coração. Como poderia Téoder ter sacado a adaga e desferido o golpe com tanta rapidez e sutileza? Ainda por cima, a mão direita não era a sua mais hábil, sendo superada de longe pela esquerda. O fato dele ser canhoto inclusive dificultava para seus oponentes, uma vez que ele era o único béli sestro, e seus golpes eram, portanto, imprevisíveis.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

85


— O seu erro foi ter tido medo de me ferir. Eu sei que teve medo. Sabe que não me mataria tão facilmente. — Astarote manteve-se arrogante. — Você é muito poderoso com as palavras, e não me atrevo a enfrentá-lo em diálogos. Diferente de Quetabel, que apenas é capaz de manipular aqueles que ela não teme, ou aqueles que ela não ama, você não tem escrúpulos. Acima de tudo, é impossível que eu o vença nesse jogo. Como bem sabe, sou um guerreiro. — Ah, tolo Téoder... — ignorou sua derrota Astarote. — Você usa as palavras com peçonha o tempo todo, por isso não discuto com você. Elas são suas principais defesas, pois não tem armas como as minhas. Quer me deixar confuso, quer que eu fique dias e dias pensando se teria ou não o vencido. Para o seu azar, não dispenderei meu tempo com isso. Eu não o feri porque não quis, e não por ter pensado duas vezes; no meu treinamento, aprendi a atacar sem hesitar. Eu não sei se o derrotaria. Mas creio que a mim você não venceu hoje. Téoder terminou de falar e se retirou. — Você é sábio, jovem, mas numa coisa errou: minhas armas superam as suas de longe. Entretanto, Téoder não podia ouvi-lo mais. E Astarote não falaria isso para que ele escutasse; diferente de outras pessoas, que sussurravam o que não tinham coragem de dizer, mas que queriam que fosse ouvido, ele murmurava o que realmente não queria que notassem. Mais tarde, Téoder continuava deitado na cama, trajando somente uma leve túnica branca. Quetabel, que se preparava para um banquete, deixou de lado seu estilo extravagante e jogou sobre o corpo um vestido azul, para o espanto do Béli-Mor. Ela se aproximou dele, e passou a mão no seu rosto. — Não vai à festa? — perguntou, carinhosa. — Para quê? Para beber até cair, ver a futilidade deste povo, e depois vir para casa e chorar pelo que fiz com a minha vida? — Humf — Ela suspirou fundo. — Não hoje. Quero lhe dar uma noite de carícias e sorrisos plenos, de movimentos suaves e danças românticas, meu amor. — Por que diz isso? E por que se veste como num vilarejo? 86

ERIC MUSASHI


— Vamos lá. Hoje quero fazê-lo feliz. Ocorreu a Téoder que Quetabel tentasse mudar para conquistá-lo, e ao menos o esforço o alegrava, e não merecia seu descaso. — Como pareço velho, acabado — ele levou as mãos à cabeça. — Há tanta vida nos esperando; você me surge uma boa moça, e não abro meus olhos para enxergá-la. — Bobagem. Venha, vamos comigo — insistiu ela. Como o banquete não era promovido pela Rainha, e nem por Astarote, não seria no castelo. Ele se dava num sobrado de um comerciante de azeitonas, propriedade sua em Catebete não muito usada nos últimos tempos, visto que o lucro o direcionava ao Poente. No seu quintal, uma mesa enorme era posta, e, sendo ele do Nascente, conduzia o festim com austeridade, liristas dedilhando lentos seus instrumentos, e a piscina de azulejos reluzentes intocada. — Dança comigo? — pediu Quetabel a Téoder. — Claro, minha dama — admirou-se o Béli-Mor. Ela dançou de um modo que Téoder jamais imaginou que ela soubesse. Uma dança tão suave quanto apaixonada, não ao estilo de Catebete. E ele a acompanhou, abraçando-a pela cintura e sendo segurado por ela nos seus ombros. Dançar assim, apaixonado, era algo prometido a si mesmo só ser feito com Faná, e era só mais uma promessa que seria quebrada. Ao fim da noite, entraram num carro do castelo e ficaram abraçados no caminho para casa. Subiram as escadas às risadas, e nos últimos lances ela pediu para ser carregada por ele, que a atendeu. — Eu o amo — disse ela, na cama. — Eu acredito em você — respondeu ele, sem saber ainda se estava disposto a tomar um rumo, e que rumo seria — arrepender-se, e abandonar Quetabel e Catebete, ou aceitar seu erro, e iniciar nova vida. — Este é um dos dias mais felizes da minha vida — sussurrou-lhe a Rainha, ao que era despida por ele. Na madrugada, Quetabel sonhando,Téoder não conseguia pregar os olhos. Refletindo sobre sua vida, tentou tirar o manto de assassino e inescrupuloso que insistia em carregar por livre e espontânea

OS HERDEIROS DOS TITÃS

87


vontade. O fato de querer se martirizar, já garantia que não era tudo isso. Mas não para ele. Pôs-se de pé, e se debruçou na janela. O vento balançava os seus cabelos anis, e este vento fresco parecia trazer para ele uma nova realidade. Por acaso, virou-se para o lado, e viu o vestido azul no chão. Pegouo, e começou a alisá-lo.Ainda sorria quando viu um curioso detalhe nele: em tinta preta, lavada até borrar, estava marcado o nome de Faná. — O vestido de Faná... A última roupa que ela vestiu...! E ele apertava aquele pano enquanto seus olhos lacrimejavam. Ao mesmo tempo em que se lembrava do que fizera, emergia o ódio por Quetabel. A nova vida, a mudança, o amor. Tudo uma mentira! Téoder limpou suas lágrimas, sentindo que elas não mereciam existir, e guardou o vestido no meio de suas roupas — mais tarde o esconderia. Olhou para Quetabel, que dormia realizada. “Você ainda quer ser ela”, pensou Téoder.“Quer roubá-la, mas Faná está além de onde você pode corromper. Não em você, que roubou sua vida, e sim em mim, onde jamais fará morada, Rainha-Deusa!”

88

ERIC MUSASHI


Mudança de ano I Os dias pareciam passar rápido demais em Lira dos Titãs. Principalmente para Arion, Ariádan e Luredás, tão felizes com a vida simples que podiam ter novamente. Por mais que não houvesse muito o que fazer, eles não se entediavam. Luredás compondo novas e lindas melodias,Arion, solitário, e Ariádan, que aprendia a culinária local e se divertia com a amizade de Neara. O 52º dia de ebdomês chegou, prenunciando a vinda de um novo ano. Os atalais tinham um ano de 365 dias, que advinha de sua observação dos astros ao longo dos milênios. Seus estudos eram feitos principalmente em Acaldã, a cidade próxima da Parede dos Titãs, montanha mais elevada de Grabatal, com a altura de cerca de 3.000 homens. Sendo o centro dos estudos atalai, era uma cidade deslumbrante, segundo as palavras de quem vinha de lá. Muitos que jamais foram para Acaldã sabiam sobre o lago de águas cristalinas, de águas desviadas do Rio das Sereias. O nome do rio, inclusive, tinha estreita relação com aquela cidade, que já fora o centro político de outro povo: ele foi chamado assim por causa do encontro dos soldados jatitanos, há um milênio, com lindas mulheres nadando nuas e com uma desenvoltura sem par; eles acabaram associando-as com as sereias de sua mitologia. Lá, encontravam abrigo pensadores de todos os assuntos, até opositores do governo. Em suas bibliotecas se presumia haver exemplares de todas as áreas do conhecimento atalai. Por mais que os que partiam de Porto da Vitória — fundada por Anzafassuí, o primeiro rei a encontrar terras além-mar —, marinheiros e ricos passageiros, levassem adiante a história de Atala, era sobretudo a visão jatitana de sua conquista, já amputada por Quetabel e Astarote para afirmar que ela era divina e predestinada ao trono sobre toda a ilha-continente. A maior parte, ainda preservada, restringia-se aos muros de Acaldã, e a arquivos decrépitos de Jatitã. O fato é que os atalais tinham aquele ano, o que ajudava em suas colheitas — tão escassas nos dias atuais — e também em suas viagens, e, de um modo geral, nas vidas de todos. Ninguém sabia que o curso das estações não levava exatos 365 dias — exceto em Acaldã —, mas isso não importava; uma vez sendo notada uma diferença, Quetabel procedia com os ajustes.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

89


O amor pelo vinho e pelos festejos, bem como pelas batalhas, estava no sangue dos atalais. E, por isso, a vinda de um novo ano não poderia jamais passar em branco. Ainda que só os mais privilegiados pudessem peregrinar até Catebete, ou se recolher às suas mansões paradisíacas, todos encontravam comemorações regadas a vinho em suas cidades. Arion podia se lembrar de como na infância, em Jatitã, todas as crianças iam nadar no mar, e comiam até passarem mal, enquanto seus pais bebiam e contavam estrelas ao som de flautas e liras. Será que agora seria diferente? Provavelmente. Sevijá estava morto, mas dois de seus imanes ainda tinham o poder, e um deles deveria ser o béli agora. A simplicidade do povo de Lira dos Titãs o lembrava da sua cidade natal, tão próxima fisicamente e tão distante em essência. Aliás, praticamente impossível de ser vista de novo, pois Jatitã jamais seria a mesma cidade. Bem no meio de Lira dos Titãs havia uma praça, e nenhuma das ruas era pavimentada. A praça era toda gramada, e no centro tinha flores de muitas cores e formas, parecendo um tapete, assim como aqueles que os navios de Porto da Vitória traziam e eram vendidos bem caro por todo o Reino. As árvores foram plantadas ao redor da praça, constituindo um muro natural. No entanto, não se dispunham tão próximas, de modo que se podia até mesmo fazer uma reunião com os amigos entre duas delas. Seus ramos iam longe, e as sombras que faziam eram grandes. Nesta época do ano, suas folhas assumiam uma cor viva, bem como a grama abaixo delas. A relva era bem cuidada. Os poucos habitantes da cidade assumiam a função de zelar por tudo aquilo, e o faziam de bom grado, tendo a noção de que Lira dos Titãs lhes pertencia. Era uma noção de bem público comum na região. Naquele dia 52, em especial, o céu amanheceu límpido, com poucas nuvens no decorrer do dia. A forte luz do sol deixava tudo mais bonito ainda. — Nem sei o que dizer, Ariádan — falou Arion, passeando com ela pela praça —; creio que a melhor coisa que me aconteceu foi ter vindo para cá. Não reclamo mais do ocorrido em Jatitã, a não ser pela morte de tantos inocentes. Você acha que eles pouparam alguém? — Acho melhor não se lembrar disso. Aliás, a perna não doeu mais? — mudou ela de assunto. 90

ERIC MUSASHI


— Não. Toda vez que eu corria ou fazia algum esforço a cicatriz abria, mas agora se fechou de vez. Ou melhor, assim espero. Ele olhou para uma árvore próxima, pensativo. — Por que fala isso? Tomara que tenha fechado de vez! Ela não compreendia, e ele achou melhor explicar por analogia: — Veja a cicatriz nesta árvore. Por mais que ela tenha se recuperado, sempre haverá uma marca de fraqueza neste ponto. Nosso corpo não é assim, regenerando-se de uma forma melhor. Contudo, ferimentos muito profundos nem sempre são curados em sua totalidade, e a energia etérea do sevaste, se usada com perícia, costuma deixar marcas que jamais se apagam. — Arion... — Ela passou a mão na sua face. — Não se preocupe comigo. Quando vejo que estou aqui, e que você e Luredás ainda estão ao meu lado, sinto que valeu a pena. Há a falta de Rassuí, mas isso eu posso superar. Superei a perda da minha mãe. E também a do meu pai... — ele lacrimejava. — Você não fala muito dele, mas seu pai ainda está vivo, até onde você sabe. O que ele fez de tão ruim? — Esta é uma ferida tão profunda quanto a provocada na minha perna esquerda. Por favor, não a toque novamente. Eu imploro. — ele derramou as lágrimas que insistia em conter. — Arion! — Ariádan o abraçou, e ele correspondeu, apertando-a com força. — Por que tanta dor? Por que temos que sofrer tanto? Ela também chorou. Não eram só as dores do seu amado que a comoviam, mas também as suas. Não ter conhecido seu pai não era tão triste, e sim o fato de ele nunca ter tido vontade de conhecê-la e também a mãe ter aceitado fugir com ele com a condição de Ariádan não ir junto; tudo isso apertava o peito da esguia jatitana de rara beleza.2 2 Em Jatitã e no Sul de Grabatal os homens e mulheres eram altos e robustos, com traços vigorosos e marcantes. Os homens eram vistos entre os mais belos da ilha-continente, mas as mulheres não. As poucas esguias e afeminadas, como Ariádan, chamavam atenção por onde passavam — — — ainda mais com os cabelos negros de brilho azulado, o que significava nobreza até depois da ascensão de Catebete. Dizia-se que apenas as raras dos cabelos alvos e olhos metálicos — — — conhecidas por tuatas (de tuatha, estrangeiro) — — — podiam competir com as jatitanas mais atraentes. Era uma ironia tardia para o povo que foi tratado por milênios como inferior.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

91


— Eu não conheço suas dores, mas imagino como deve se sentir. — Oh, como sou egoísta — disse ele, afastando-se do abraço. — Minha amiga, eu sei que sofre também. Mas agora penso: é melhor que deixemos o passado para trás, em seu lugar. Você, o Luredás e eu temos uns aos outros, e somos felizes, não somos? Ariádan sorriu.Talvez Arion estivesse errado, mas aquilo a confortava. Ainda que a amizade, o amor e o afeto que nutriam uns pelos outros fosse suficiente para viverem felizes, as feridas provocadas pelas perdas e mágoas os impediam de se realizarem por completo. Ela estava tão próxima de Arion naquele momento que já vinha pensando em se declarar há algum tempo. Acabar com os joguinhos de incerteza. Ela já havia dito que o amava, que o queria, mas fora em momentos que não seriam muito levados a sério, quando estava descontrolada ou embriagada. Decerto Arion não sabia que o vinho costumava trazer à tona profundas verdades. — Arion, eu preciso lhe dizer uma coisa... — Pode dizer. Ele olhou nos seus olhos, e ela desviou o olhar. — Eu não tenho coragem... Sei que deve me achar uma garotinha tola, mas... — Você é uma das pessoas mais corajosas que já conheci. Por vezes se arriscou para me salvar, e também para salvar meus amigos. Não sabe o quanto sou grato. — Não sou tão corajosa assim. Fico o tempo todo ensaiando sobre como lhe dizer o que sinto, mas tenho medo. Medo de ser rejeitada. Medo de ouvir as únicas palavras que não queria ouvir de você. Medo de que se zangue por eu dizer que quero muito mais do que a sua gratidão. — ela estava ofegante, e, depois de dizer tudo isso, atirou-se no peito de Arion. Não queria olhar para os seus intimidadores olhos enquanto falasse. — Eu o amo, Arion! Sei que dirá que estou confusa, mas o amo já há muito tempo, e poderia perder a vida para salvá-lo, que morreria sem arrependimentos! Só não estaria feliz se soubesse que você morreu antes de mim. Se isso não é amor, diga-me então o que é? Não sei o que sente por mim, e nem lhe peço que sinta o mesmo, só não menospreze aquilo que tenho de mais profundo. 92

ERIC MUSASHI


Ao terminar, ela puxou o ar com força. Havia despejado todas as frases em sequência, sem parar para respirar. Se parasse, sabia que perderia a coragem, e acabaria não dizendo tudo o que queria. — Ariádan... Foi tudo o que Arion pôde dizer após essa declaração apaixonada. Pensou um pouco, mas o máximo que conseguiu foi ficar hesitante. Ordenou as ideias, por mais difícil que estivesse sendo. — Eu sei que isto não é o que queria ouvir, mas não a amo dessa forma. É verdade que não paro de pensar nas vezes em que nos beijamos loucamente, e na vontade que tenho de repetir isso tudo e ir mais além. Quando você me olha com esse olhar carente, tenho vontade de abraçá-la, como se fosse minha irmãzinha. Claro que, você sendo uma linda mulher, e não havendo impedimentos para nós, é capaz de despertar em mim a vontade de ser seu homem, ainda que por alguns momentos. Não sei se vai além disso, e não acho justo com você. Ele levantou o seu rosto, e ela insistiu: — Você pode não saber, mas eu sei: é amor! Pare de negar seus sentimentos, Arion. Pare de negar a si mesmo. Se eu o amo, e você me ama, por que não podemos ficar juntos? Ariádan cobrava uma resposta definitiva. — Nós somos jovens sonhadores, e temos uma necessidade de fantasiar — replicou ele. — De querer viver as vidas cantadas em versos, o que inclui o amor. Ao menos eu tenho. E meu pai, ele dizia que quando eu amasse uma mulher, eu saberia, mas estou confuso. Nem sei por que estou falando dele! — Ele parou virando-se de costas para ela. Após algum tempo, voltou-se novamente para Ariádan. — O que quero lhe dizer, é que não sei se a amo, e não pretendo cometer um erro, fazendo-a sofrer. Não você. Pode compreender isso? — Posso. — ela limpou as lágrimas que caíam forçosamente, contra sua vontade. E, de fato, são raras as lágrimas que caem com consentimento. — Então pense bem — disse. — Não falarei de novo sobre isso, nem mesmo quando tiver deixado os medos de lado por causa de uma embriaguez. Vou deixar que decida. Só espero que me dê uma resposta logo, antes que seja tarde para nós. Ela se virou e o deixou sozinho, como ele era.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

93


II Arion passou o resto do dia pensando naquilo que Ariádan havia dito para ele, e também tentando compreender o que sentia por ela. O afeto de amigo realmente atrapalhava, pois quando percebia que tinha vontade de protegê-la, não conseguia distinguir se a queria ao seu lado, como o seu complemento, ou apenas se preocupava com ela. Para piorar, era a mulher mais bonita que ele já tinha conhecido, e despertava uma ânsia em seu jovem corpo, um desejo que muitas vezes não era capaz de controlar. A festa começou já naquele dia, e atravessaria o seguinte até a passagem do ano. Ela era aconchegante como em qualquer lugarejo, mas Arion não se misturava naquele meio. Ele olhou para os lados; viu Achades dançando com Neara, divertindo o povo, e também Luredás tocando no meio das flores. Então percebeu denunciadores olhares trocados entre Neara e Luredás. Não era coincidência: Arion observou-os por cerca de meia hora, e realmente não conseguiam parar. Luredás, por vezes, desviava o olhar, constrangido. Mas não demorava muito para voltar a olhar para ela. “O que for, não é problema meu — pelo menos não por enquanto”, pensou Arion. Ele saiu do seu canto, e se aproximou da mesa com os jarros de vinho. Foi quando ele servia que viu, de relance, uma outra cena que chamou sua atenção: Bíades, dançando com Ariádan. Já deviam estar ali há algum tempo também, pois já pareciam íntimos, ao riso. Ele falava ao ouvido dela, e ela gargalhava. Por vezes, olhava para Arion, que se perdeu observando a cena. Ele começou a sentir raiva dos dois, como que o estivessem enganado; engoliu seco, e a respiração se tornou mais intensa. Pegou a bebida e saiu. O que era aquilo que sentia? Seria o que chamavam de ciúmes? Não, não podia ser. Afinal, não amava Ariádan daquela forma. Ou será que a amava? Não havia outra explicação para se sentir enciumado; ela era livre para fazer o que quisesse com sua vida, a seu ver. Entretanto, talvez fosse um sentimento de posse, por ela ter sempre se dedicado a ele. Arion terminou com o vinho em poucos goles, e, após ver um vulto, olhou para o lado. — Quem será? — falou sozinho, referindo-se à imagem que via se aproximar. 94

ERIC MUSASHI


Aos poucos, toda a festa foi parando. Achades, ao ser notificado do estrangeiro que chegara, deixou Neara, e foi ver o que acontecia. Ela então se aproximou de Luredás e sentou ao seu lado, iniciando uma conversa, uma vez que a música também parara. O estrangeiro montava um cavalo branco, e trajava uma armadura com mais sevaste que Achades, carregando uma espada longa de imane. — O que deseja, forasteiro? — indagou Achades, receoso, pois pululavam imanes renegados que vivam como mercenários. — Sou Adum, imane do Béli-Mor Téoder, de Catebete — disse o homem, de voz grave e imponência sem par ali. Arion arregalou os olhos. Por que esse homem estava perto dele, e o que podia querer? Seria mais uma tentativa de seu pai? — Eu venho pedir para pernoitar aqui, uma vez que viajo para Jatitã, e sei que tenho mais um dia de viagem, mesmo cavalgando o mais rápido que puder. — Um imane da capital — replicou Achades, ainda cauteloso. E deveria sê-lo mesmo, já que não tinha imane. Em Lira dos Titãs, de ares interioranos, o posto era ocupado pelos filhos do béli, de sangue ou adotivos — e Achades não tinha nenhum. — Sem querer ser invasivo, o que fará em Jatitã? — Faço às vezes de mensageiro — sorriu Adum. — Para as rotas principais e as maiores cidades,Téoder insistiu que fôssemos nós a levar os convites. Aliás, aqui está o seu — disse ele, estendendo um pergaminho enrolado para Achades. — É para um conselho entre os bélis, que se realizará em Catebete. Bíades, que se juntou a eles, apresentou-se para Adum ao que Achades lia a carta. Arion trocava olhares preocupados com Ariádan e Luredás, afinal, Sevijá estava morto, e o que podia ser feito com eles quando fosse descoberto que fora pelas mãos de Arion? Além disso, seus amigos também participaram da traição. — Hum... Um imane como idabará? — riu Achades. No passado de guerras de conquista, idabarás eram importantes como bravos mensageiros, que acabavam auxiliando os bélis na administração dos novos territórios — função que ainda desempenhavam no Reino de Atala.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

95


— Receio que eu não possa ir. Minha cidade não ficará sem béli, ainda que por um tempo. Contudo, pode dormir no meu castelo. — Muito obrigado pelo convite; aceitarei com prazer. Mas quanto ao conselho, é uma pena. Esta não é a única cidade que não possui imanes, e só haverá representação das maiores, pelo que vejo. Acima de tudo, de acordo com a decisão do conselho, provavelmente terá que mandar telapuros. — Farei o que a Rainha ordenar. Mas quanto aos imanes, como pode ver, não somos belicosos. Não caçamos bandoleiros ou coisa do tipo. Nossa cidade se chama Lira dos Titãs, e, de fato, isto é o que mais apreciamos, o som de uma boa lira. E, já que está aqui, convido-o a festejar conosco o ano que virá. — Tudo bem, e agradeço novamente. — Alguém leve sua bagagem e o seu cavalo. E arrumem um quarto para ele — ordenou o béli. Adum logo se enturmou, e Arion não parava de olhar para ele, surpreso. Esse homem vinha de Catebete; podia dizer como seu pai estava. Por maiores que fossem as mágoas, Arion ainda o amava de todo o coração, e queria saber sobre ele; era seu pai, seu herói. O maior béli dos últimos séculos. Como que fosse pegar vinho, ele chegou perto de Arion. — Por que me olha assim, filho de Téoder? — indagou. Assustado, Arion, deu um passo instintivo para trás. — C-como me conhece? — Sei mais coisas do que imagina, jovem. Aliás, isto é do seu pai — ele tirou outro pergaminho da roupa, e entregou para o esbelto rapaz de olhos azuis. — Você se parece com ele, apesar de ser um tuata. — Eu não quero nada que venha dele! — esbravejou Arion, enrolando o pergaminho logo após abri-lo e jogá-lo no chão. — Não é bem o que seus olhos dizem. Sabe, eles traem você. Como se parece com Téoder — Adum riu, e voltou a beber. — Se eu fosse você, pegaria a carta e leria com muito cuidado, afinal, são as primeiras notícias que tem dele em três anos. E são todas as palavras que ele quis dizer para você durante todo esse tempo — Arion ficou olhando para ele. — Vou deixar você se decidir sozinho. — E ele se afastou, voltando para o meio da festa. 96

ERIC MUSASHI


Mais do que orgulhoso, Arion era curioso. Devia haver um motivo muito forte para Téoder enviar essa carta, ainda mais por intermédio de um imane. Ele fez isso porque sabia que Arion não o ouviria; foi assim nos últimos três anos, e não ia mudar de uma hora para outra. Arion ficou por muito tempo olhando para o pergaminho sujo, e enfim o pegou. — Vamos ver o que está escrito aqui — resmungou. Meu filho Sei que ainda deve ter muita mágoa pelo que fiz no passado. Não tentarei nesta carta explicar os motivos que me levaram a tomar aquela atitude. Na verdade, escrevi porque soube recentemente que anda se envolvendo em problemas com o béli de Jatitã, e que foi exilado da cidade. Filho amado, se quiser, pode vir morar em Catebete comigo, ou então em qualquer lugar do Reino. Arrumarei uma boa casa para você, e até algumas das poucas terras férteis que restam. No entanto, se amar Jatitã como suponho que ame, então me diga; eu usarei de minha influência e colocarei alguém de confiança no poder naquela cidade. Sabe muito bem que nenhum béli deste Reino é desafio para mim. De seu pai, Téoder A carta terminava ali. Tinha ainda um carimbo do anel de Téoder, e também um desenho da constelação da Balança, que Arion gostava tanto de observar. Só podia ser do seu pai mesmo. Mas Arion não demonstrou interesse pela proposta; estava feliz em Lira dos Titãs, e não queria mais voltar para Jatitã. — Vejo que tomou a decisão mais correta, garoto — disse Adum, que voltara. — Diga para o meu pai que li a carta — pediu Arion, fazendo-se de indiferente. Ele esperou que Adum perguntasse algo, mas o outro ficou quieto. Após algum tempo, Arion resolveu falar com ele novamente: — Eu ouvi que irá a Jatitã, Adum. — Sim, irei. E há algum problema? — mostrou-se interessado.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

97


— Não negarei; há. — Arion não percebeu, mas os olhos de Adum brilharam. — Eu não estou aqui por acaso; confrontei-me com Sevijá, uma vez que tinha resolvido voltar para lá. Matei-o, mas a luta foi dura. As espadas se quebraram e agora estou aqui, desarmado, sabendo que há ainda dois imanes lá, loucos para me pegar. Você descobriria isso de uma forma ou de outra. — Claro, já que me dirijo para lá, e você não é um rebelde qualquer. É conhecido em vários lugares, e eu mesmo já o vi no passado. Todavia, disse que há dois imanes, mas até onde eu sei, Sevijá possuía três. Não está enganado? — Não. Uma noite antes, matei Namirai, seu irmão mais novo, porque ele me atacou numa taverna. Por isso Sevijá quis me matar. — Tornou-se um poderoso guerreiro, meu jovem — admirou-o Adum. — Seu pai gostaria de vê-lo assim. Mas, como já deduzo, você irá pedir que eu não conte para eles que você está aqui, certo? — Sim. É isso que lhe peço. Minha vida está ótima em Lira dos Titãs. Pela lealdade que tem ao meu pai, por favor, mantenha isso em segredo. — Arion pegou uma mão dele com as suas. — Pode confiar em mim. E farei mais: quando for retornar, pegarei outro caminho. — Muito obrigado — disse Arion, aliviado. — Eu é que lhe agradeço por ter me contado tudo. Servir o seu pai é o que me faz feliz. Eles se afastaram, e Adum tirou uma moça para dançar. Arion ficou ali, sentado na grama. Que sorte foi encontrá-lo, pensou. Agora talvez estivesse livre para sempre dos problemas do passado. Então viu Ariádan, que se aproximava dele; terminou de beber seu vinho e colocou o copo no chão. Ela, estendendo a mão, falou: — Quer me conceder uma dança, meu amigo? — Acho que o mádi dança melhor do que eu! Arion se levantou e abandonou a festa, não sem antes apanhar seu copo e enchê-lo uma vez mais. Desapareceu na direção do castelo; talvez fosse dormir, prosseguir vivendo a sua solidão. Mas o jeito com que ele reagiu, por incrível que pareça, deixou Ariádan feliz, e ela tinha mesmo motivos para isso: — Então quer dizer que sente ciúmes de mim, Arion... Bom, creio que finalmente posso festejar o ano que se iniciará! 98

ERIC MUSASHI


III Ao amanhecer do Dia dos Titãs, muitos foram dormir, para se recomporem para continuar. Arion já estava acordado quando viu pela janela do seu quarto Bíades, que cortejou Ariádan a noite inteira, conduzindo-a até o castelo. Voltou para a cama; deitou com o rosto afundado no colchão. Ficou ali até que a luz já não permitisse mais que o seu sono. Vestiu-se, e foi comer algo. Montou em Valente e foi até as redondezas, onde maçãs adiantadas não haviam sido colhidas. Pegou três, e voltou para o castelo. Comeu com calma, apreciando o sabor daqueles frutos, vendo-se feliz como ficava quando sua mãe comprava maçãs para ele, no tempo em que viviam em Jatitã. Era comum ser remetido a ela, mas hoje isso lhe trouxe outra lembrança: Adum. Foi correndo até seu quarto, esperando falar com ele uma vez mais. Mas o recinto estava vazio, e suas coisas também não estavam lá. Desceu as escadas correndo e foi até o estábulo. Seu cavalo era só resquícios; um pouco de feno comido e pegadas no chão. — Ah, é uma pena. Mas não há com o que me preocupar —sorriu ele. Deitou sobre as flores e ficou ali por bastante tempo, sentindo o seu perfume. Já era dada a nona hora do dia quando tornaram a se reunir e retomar o ritmo de festa, e Arion não aguentou ficar esse tempo todo sem fazer nada. Aproveitou que ainda tinha sobrado um pouco de vinho à disposição — surpreendentemente — e bebeu, solitário. Ficou a tarde toda e um pouco da noite dormindo no jardim, sem que fosse incomodado. Algumas vezes Ariádan o observava, mas ao ver que Luredás ou Neara se aproximavam, não ousava perturbar o seu amado. Arion só foi acordar na quinta hora da noite, com a fome a lhe doer no estômago. Ele viu que havia carne de carneiro, coisa rara em cidades pequenas como esta, com uma criação escassa, e comeu até ficar com sono de novo. E seria um sono tranquilo, se não tivesse sonhado com Ariádan. Acordou no meio da noite, e não conseguiu dormir mais. Os atalais consideravam o dia da passagem de ano como não pertencente a nenhum mês. E depois dele o primeiro dia de protomês — o primeiro mês — amanheceu calmo, pois todos tinham comido e

OS HERDEIROS DOS TITÃS

99


bebido mais, e estavam de ressaca. O céu estava parcialmente nublado, e o ar estava abafado, o que prolongou o sono de todos, pela sensação de calor. Já era dada a quarta hora do dia quando alguns gritos puderam ser ouvidos. — Esta cidade está abandonada?! Sei que não está! — berrou um dos intrusos. Uma voz um pouco mais grave também se revelou: — Vamos lá, apareça logo o mádi, pois queremos informações! Arion ainda tentava ajeitar sua túnica quando Ariádan entrou no seu quarto, sem ao menos bater a porta. Tinha uma expressão assustada e os olhos cheios de lágrimas: — Rápido, Arion, esconda-se! — pediu ela. — Acalme-se; o que houve? Aliás, não pode bater na porta não? — Ele falava devagar, ainda com sono. — Estou falando sério! — ela puxou o seu braço. — Mas o que houve? — Eles estão aí! Escleros e Tromos, os imanes de Sevijá! — Ariádan tremia, atônita. — Não acredito! Como me descobriram? A menos que... Não; Adum deve ter chegado lá ontem pela tarde, e não daria tempo de virem aqui para aparecerem logo cedo. A menos que cavalgassem a noite toda. Mesmo assim; não seriam tão imprudentes. — Imprudentes? — Ariádan se exaltou. — Eles estão com espadas mágicas, e são dois! Além do mais, aqueles dois irmãos possuem as mesmas técnicas que o béli Antel possuía, não se sabe como. Por isso se intitularam assim, usando nomes parecidos com os dos dois filhos dele, os criadores das duas ordens que mantinham o seu conhecimento e que foram extintas. — Sempre que ficava nervosa, Ariádan falava sem parar. O fato é que os nomes Escleros e Tromos eram alusões a Cretos e Antros, com significados próximos. — Não precisa me contar tudo isso. Eu já sabia da parte importante da história. Mas e daí? Eu fui treinado por Téoder, o maior béli da atualidade! Eles vão ver! — Não, Arion... Por favor...! — Ela se abaixou, e ficou miando no chão do quarto. 100

ERIC MUSASHI


Enquanto isso, na rua, Bíades surgia. Viu dois homens montados em cavalos brancos, usando armaduras com pedrinhas de sevaste e portando espadas leves cravejadas com o mesmo cristal. Dois bélis? Juntos? Seria possível algo assim? Ele não compreendia, mas o fato é que ambos eram muito parecidos, com cabelos — levemente ondulados e compridos, passando um pouco dos ombros — e olhos vermelhos. Um deles possuía um olhar profundo, intimidador, e justo este desceu do cavalo: — Vamos, diga-me logo onde está Arion. — Olhe, meu senhor, não há ninguém com esse nome aqui — foi a réplica de Bíades. — Não faça com que Escleros pergunte novamente, seu idiota — Tromos também desmontou. — Mas estou dizendo... Antes que Bíades pudesse completar sua frase a espada de Tromos cruzou o ar com extrema velocidade, e ela adquiriu um brilho vermelho. A cabeça do mádi foi arrancada do corpo, e ele não teve nem tempo de tentar se defender. Sua mão direita segurava sua espada dourada, mas não pôde sacá-la. Caiu no chão; obviamente, sem vida. — Aaahh! — gritou agudamente Ariádan, ao ver a horrenda cena pela janela, pois agora ela e Arion assistiam a tudo. — Está vendo; eu tenho que ir. Não quero que ninguém mais morra! — bradou Arion, empurrando-a com força, e ela bateu a cabeça na parede, dando um grito de dor. Ele quis voltar, mas não o fez. Após ouvir o som de um golpe, Achades saltou de sua cama, colocou a armadura e também pegou sua espada. Neara tentou falar algo, mas ele nem lhe deu tempo para isso, batendo a porta do quarto com força atrás de si. Já na rua, os telapuros cercavam Escleros e Tromos, nervosos. Eles temiam a morte, mas Bíades era seu superior imediato, seu líder, e iriam até o abismo por ele. Um deles deu um grito e partiu na direção dos dois supostos bélis, sendo seguido pelos companheiros. — Parem! — ordenou Achades, sendo prontamente obedecido. — Eu imagino que tenham tido um motivo muito forte para matar o meu mádi, senhores... — Escleros. E este aqui é meu irmão Tromos. Éramos imanes de Sevijá, em Jatitã, e viemos atrás de Arion, que se rebelou contra o governo e

OS HERDEIROS DOS TITÃS

101


matou o nosso béli, além de assassinar Namirai, um de nossos companheiros — Tromos apenas mantinha a posição de combate enquanto Escleros falava. — E não adianta negar, sei que ele está aqui. — Estou mesmo! Todos se viraram para o norte, de onde vinha Arion. A roda se abriu, e ele se aproximou de Escleros, que era o que falara mais. Enquanto isso, Tromos tranquilamente guardou sua arma; percebeu que Arion estava desarmado e sem proteção alguma. Seria fácil para seu irmão matá-lo. — Ora, como é prepotente — disse Escleros, enojado. — Pensei que fosse fugir. — Não. Não fujo. Fiz, e agora pago as consequências. — Então está disposto a aceitar a morte. Mas não o aconselho a fazê-lo, afinal, penso que ninguém deseja desaparecer como jamais houvesse existido. — Ele olhou nos olhos de Arion, tentando intimidá-lo. — Está bem longe da honra de morar com os titãs no além-vida. — Não. Não morrerei. — Ah, você já falou demais! Escleros ia golpeá-lo com toda a sua força, técnica e velocidade. Sua espada chamuscou rubra, e Arion tentou se esquivar do golpe, mas percebeu que foi um grande erro não ter fugido. Escleros era ainda mais rápido que Sevijá, não sendo um imane em essência, assim como Namirai, mas só por posição. Ele aceitava o título porque não tinha interesse em derrubar Sevijá, dada a estima existente por ele. E o golpe já estava muito próximo de Arion quando alguém saltou sobre o irmão de Tromos, agarrando suas pernas e desequilibrando-o. Ele, surpreso, olhou para baixo e viu uma jovem de cabelos anis, que logo reconheceu. — Como ousa me interromper, sua... sua... Ariádan?! — Por favor, não o mate! Por favor! — ela pranteava, agarrada às suas pernas com todas as forças. — Ariádan, não se intrometa. Fuja daqui, o mais rápido que puder — Alertou Arion. — Não, não... Agora já é tarde demais! — Escleros soltou-se dela, que se manteve abaixada, pedindo clemência. Aquela posição era perfeita para que sua cabeça fosse arrancada, muito mais fácil do que como foi com Bíades. — Vai morrer primeiro, por ter me interrompido 102

ERIC MUSASHI


e por ter traído o castelo que a ajudou tanto, sua ingrata. — O golpe foi com toda força em sua direção. Arion tentou apará-lo, com as duas mãos em forma de concha, mas não foi rápido o bastante; quando chegasse, só apararia o vento, e veria a sua melhor amiga morta. Não obstante, ela não precisou da ajuda de Arion: uma outra espada etérea ficou no seu caminho, e também queimava com uma chama avermelhada. As duas lâminas tremiam no ar, mostrando que seus usuários faziam um grande esforço. — Tromos, o que está tentando fazer? — quis saber Escleros. — Deixe-a fora disso, meu irmão! — Quem diria; logo Tromos, que dizia odiar a todos, apaixonara-se por Ariádan. Durante o tempo em que conviveram no castelo, ela foi muito gentil com ele, assim como com quem a rodeasse. Além de tudo, sua beleza era ímpar; ele se apaixonou e agora não podia aceitar que ela morresse. — O que está me pedindo? Logo você, impiedoso irmão? Eles são traidores, temos que executá-los agora! A discórdia não pode ocorrer entre parceiros. Mais do que num grupo, ela é fatal a uma dupla. É o elo que se rompe e então não há mais motivo para existir a corrente. Arion, aproveitando que estavam distraídos, desferiu um forte chute no pescoço de Escleros, que caiu no chão, tossindo sangue. Ele então apanhou o seu sabre. A escolha fora óbvia: se atacasse Tromos, no meio-tempo em que fosse pegar a espada Escleros poderia matar Ariádan. Além disso, ele era de Jatitã e acreditava que Escleros era mais experiente e espadachim mais técnico. Agora, havia apenas Tromos. — Irmão! — exclamou ele. Depois se virou de novo para Arion: — Acha que vai me vencer só por que está com a espada do meu irmão, seu tolo? — Não. Mas ele não está sozinho — Achades finalmente sacou sua espada e instigou o sevaste, que chamuscou. — Eu ordeno que saiam da minha cidade agora. — Não ficará impune, béli Achades — disse Escleros, pondo-se de pé. — E desde quando não sou eu quem manda em meu próprio povo e território? Sei que ele é um criminoso em Jatitã, mas aqui ele é um grande amigo, e muito querido de nosso músico.Além disso, estou sendo bom em não matá-los, afinal, assassinaram meu mádi!

OS HERDEIROS DOS TITÃS

103


— Nós iremos porque temos pressa em chegar a Catebete. Mas sugiro que não esteja mais aqui quando voltarmos. Vamos, Tromos! — ele se aproximou de Arion. — E você, devolva minha espada. — Acha que sou o quê? Um asno? Eu devolvo e você me mata. — Não estava pedindo! — Ele tentou apanhá-la com a mão esquerda, enquanto que com a direita desferiu um soco na direção do estômago de Arion. Este, porém, apenas se afastou, evitando o murro e a tentativa de tomar a arma ao mesmo tempo. Além disso, golpeou para baixo, e a lâmina ardeu como o Sol; Escleros puxou a mão com celeridade, mas a força do deslocamento da espada cortou a palma de sua mão. — E o que tenho a ver com suas ordens vãs? Agora se retire, como já ordenou o béli Achades. Antes que eu fique nervoso. Arion sorriu, e Escleros rangeu os dentes, furioso. Ariádan abraçou seu amado, e chorava, soluçando. Ele ficou observando os dois sumirem galopando na elevação no horizonte. Luredás chegou correndo, acompanhado de Neara; por sorte, tudo já tinha acabado. Entretanto, Bíades estava morto, ali no chão. Arion, ao ver que destruíra a paz da vila, que mais um homem tinha morrido por sua causa e que agora Achades também corria perigo, saiu correndo. — O que houve com ele? — indagou Neara, com a voz trêmula. — Ele se sente culpado por tudo que aconteceu. E é mesmo. Todos nós somos. Ele,Ariádan e eu — disse Luredás, abaixando a cabeça. — Ári! — chamou Ariádan, correndo atrás dele. Ela entrou em seu quarto, mas ele não parecia estar ali. A espada fora jogada num canto; onde ele estava? Ela foi andando pelo aposento e enfim o encontrou deitado no chão, ao lado da cama. Contraía-se todo, e, quando o buscou, ela pôde ver que chorava em silêncio. — Arion... — Saia daqui! Deixe-me em paz! — Mas Arion, só quero ajudar... — Então saia! Estará ajudando muito! Ela ameaçou chorar novamente e pedir amor, mas ele nem ligou. Então ela se foi, largando a porta aberta. 104

ERIC MUSASHI


IV Arion ficou deitado na sua cama durante a tarde inteira. Como era o costume, o corpo de Bíades foi levado até os limites de Lira dos Titãs e queimado, na presença de Achades, o béli. Luredás pensou em chamar Arion para a cerimônia, mas Ariádan e Neara o alertaram, dizendo que era melhor que ele ficasse sozinho. Fortes ventos se deram, e um temporal se armou. Eles juntaram o que puderam das cinzas do mádi, e voltaram para suas casas. O céu ficou escuro, e relâmpagos e trovões assustavam a todos. Mas a chuva demorou a cair, e isso só aconteceu depois da segunda hora da noite. Caiu forte, enlameando as ruas e ferindo as delicadas flores dos jardins do castelo. Achades, muito abalado, pegou o seu cavalo e saiu, para arejar as ideias. Já era avançada a quarta hora quando Arion ouviu batidas na porta. Estava ali, do mesmo jeito que ficara desde que a solidão o abraçou; deitado na cama, olhando para o teto. Engoliu o choro e limpou as lágrimas do rosto antes de responder ao chamado. — Quem é? — perguntou. — Sou eu, Ariádan. Vim trazer sua refeição. Ela empurrou a porta. — Não estou com fome — ele nem se deu ao trabalho de olhar para ela. — Saia logo daqui. Ela realmente pensou em ir e deixá-lo; desejou que ele notasse como ela se preocupava com ele, e o quanto ele necessitava daquela refeição. Mas não faria isso. Respirou fundo, e continuou avançando em sua direção. Sentou ao seu lado no macio leito, e estendeu os braços, como que querendo entregar o recipiente de madeira para ele. — Não vai me ferir com suas palavras — disse ela. — Não mais. — Eu quero ficar sozinho — ele continuou sendo seco. Não estava mais resistindo a toda aquela gentileza e àquele meigo sorriso, mas se fez de difícil. — Tudo bem. Vamos fazer o seguinte: você come, e depois eu saio — e ela se manteve calma, e sorrindo. — Está certo.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

105


Arion pegou a cumbica, e encontrou nela vários pedaços de carne de carneiro. Ele adorava carne, e Ariádan sabia disso.Tentou fingir que não estava gostando no começo, mas estava tão boa a refeição que ele não conseguiu se conter mais; já havia comido a metade quando olhou para ela e não pôde mais manter o semblante raivoso. Ela, acanhada, corou e abaixou a cabeça. Depois se voltou para ele uma vez mais. — Por que insiste em se preocupar comigo? — perguntou ele. Ela se assustou com a pergunta, e fez uma cara de quem não entendera. — É isso mesmo. Fui bruto com você o dia todo, e ainda assim vem até mim e traz uma comida tão boa quanto aquela das melhores noites de festa, e com um sorriso que qualquer homem sonha em receber de uma mulher. Por que faz isso? — Você sabe a resposta dessa pergunta. Mas digo outra vez: é porque o amo — o sorriso dela se desfez, e agora só havia seriedade. Uma expressão longe de ser raivosa, triste, ou irada. Era apenas dedicada, como o seu sentimento. Arion ainda comeu mais alguns pedaços. Sentiu-se tocado pelo sentimento da garota. Será que ele não estava sendo teimoso, negando-a? Talvez também estivesse se apaixonando por ela. Não sabia o que sentia, mas as duas Ariádans se condensavam em seu coração; a eterna amiga, como uma irmã, e a namorada, que despertava o seu desejo. Ele parou por uns instantes e tomou uma decisão. Colocou o recipiente no chão, ficando de frente para ela, e segurando seus dois braços: — Ariádan, eu sou como o vento, e não sei para onde soprarei amanhã. Sei que é um grande risco ficar com você, pois posso feri-la, desiludi-la. Temo descobrir que era apenas um impulso de jovem, quando para você é outra coisa. E se for só isso, será tarde demais no momento que eu perceber; meus sentimentos me confundem: amo-a de todo o coração, mas não como amante, e sim como amigo. Consegue compreender por que tanto me aflijo? Seus olhos azuis brilharam ao entrar em contato com os dela, da mesma cor. — Arion — disse Ariádan, acariciando seus cabelos brancos —, desde o início eu estava disposta a correr esse risco. Mesmo que depois você se sacie e queira me deixar, não me arrependerei. Ainda 106

ERIC MUSASHI


que depois desta noite jamais nos toquemos novamente, serei feliz. Nunca me esquecerei dela. Arion nada mais disse. Ela era uma jovem de quinze anos, mas parecia estar tão certa do que dizia; tão convicta em se arriscar, em poder sofrer por um amor não correspondido. Que assim seja, ele pensou, ao avançar lentamente e beijá-la. Suas mãos percorreram a pele macia, e alcançaram a parte mais baixa de sua camisola, levantando-a e jogando-a longe. Ela então fez o mesmo com a túnica verde que ele vestia, e agora estavam ambos ali, nus. Arion parou por mais alguns instantes, ponderando: se continuasse, não haveria mais como voltar; seria tomado por muitos impulsos, e era fraco contra todos eles. Enquanto isso, em seu quarto, Neara, pensativa, olhava pela janela. A chuva ainda caía com força, e ela já tinha quase certeza de que seu amado não estaria ali para dormir com ela. Tirava a sua roupa quando ouviu batidas na porta. — Quem é? — perguntou, virando-se com rapidez e surpresa. — É Luredás, minha senhora — soou a voz do outro lado. — Eu preciso falar com o béli. — Entre, Luredás — chamou ela. Ele abriu a porta e entrou. Estava com uma leve túnica azul clara, e seus cabelos brancos caíam desajeitados e molhados por sobre os ombros; provavelmente tomara chuva. Sua expressão era séria, e ele se assustou quando viu que o béli não estava ali. — Perdoe-me — constrangeu-se, e se virou para sair. — Não precisa se desculpar. O que queria com ele? — indagou, ao que se aproximava devagar. — É que vi alguém saindo para cavalgar nesta chuva, e quando olhei para o estábulo, da minha janela, percebi que faltava um cavalo. Fui até lá e vi que era o cavalo do béli. Presumo que tenha sido furtado. — É muito observador, Luredás. Mas eu já sabia disso; não precisa se preocupar: foi exatamente Achades que saiu com ele. Ele costuma fazer isso quando está perturbado, e, pelo tanto que o conheço, sei que só voltará na outra metade da noite. — Ah, sim. — Luredás viu a inutilidade da tentação daquela noite. A verdade era que só desejava ver o rosto de Neara antes de dormir, e

OS HERDEIROS DOS TITÃS

107


se iludia ao crer estar fazendo o seu dever. — Vejo que foi só um malentendido. Desculpo-me novamente, e agora peço licença para voltar até o meu quarto — e ele puxou a porta, mas sentiu o braço dela roçando suas costas. — Eu é que peço desculpas pela ousadia, mas acho que seria melhor que ficasse. Poderia me fazer companhia — ele se virou, e a viu sorrindo. Seus olhos verdes pareciam querer amedrontá-lo — o que era muito difícil de acontecer com Luredás, mas neste momento sentia que cedia —, e seus cabelos loiro-esverdeados, presos em tranças, foram soltos por suas mãos ágeis. — Não compreendo, minha senhora. — Estava pronta para dormir sozinha, mas vejo que o destino foi gentil comigo. Luredás, já faz muito tempo que tenho coisas para lhe dizer — ela segurou a sua mão direita com a esquerda: — Eu não sei o que vem acontecendo comigo. Quando vim para cá e conheci Achades, apaixonei-me por meu marido; ou, pelo menos, assim eu pensava. Era só uma menina de dezesseis anos, acabara de me tornar uma adulta. O tempo passou e eu realmente fui feliz, não posso negar. Porém, não perdi o gosto por perigos, novidades, aventuras... — Ela sorriu, e seu sorriso se revelava bonito e puro, e ao mesmo tempo ameaçador. — Por que está me dizendo essas coisas? — A voz de Luredás saiu tremida; ele se sentia contra a parede, e já não lhe era novidade que sentia uma forte atração pela mulher do béli. — É simples: desde que o conheci, senti uma vontade de estar em seus braços. Eu não sei se é certo ou errado o que estou fazendo, se é justo ou injusto. Só sei que o quero, e, por mais que tente, não consigo lutar contra isso. Ela se aproximou mais, e seus corpos agora estavam encostados; Luredás fechou os olhos, e quase se deixou levar pela vontade absurda que tinha de tomá-la ali, naquele momento. Todavia, de súbito, teve trazida de volta a razão, e se afastou um passo. — Se era isso que tinha para dizer, acho melhor que eu vá embora. — Por que me rejeita? Por acaso não me acha atraente? — O tom de sua voz mudou. Agora, assim como sugeria que ela houvesse se desapontado, também parecia suplicante. 108

ERIC MUSASHI


— Não posso mentir para você: é linda quanto uma manhã de primavera, quando um vento fresco bate nos nossos rostos e, ao olharmos para os lados, vemos as mais belas flores desabrochando. Uma manhã de primavera na praça central. Os pássaros cantam, e... O que estou dizendo?! — Respirou fundo: — Sim, atrai-me. Mas não posso ficar aqui com você; nem por um momento mais. — Não consigo compreender. Fez voto de castidade? Ama outra? — ela segurou seu braço, impedindo-o de ir adiante, a não ser pela força, algo que Luredás jamais faria, pelo menos não com Neara. — Por que não me deixa? — ele parecia implorar. Sabia que algo muito mais forte se revelaria caso ficasse ali. — Responda-me, e então poderá sair. — Tudo bem. — Luredás passou as mãos no rosto. — Não há como fugir das verdades, não é? — ele segurou as duas mãos dela com as suas: — Também venho desejando-a há um certo tempo, não posso negar. Toda vez que a vejo andando por aí tenho que lutar contra mim mesmo para não ir até você e dizer essas palavras, mas não acho que estou sendo justo; eu devo tanto a Achades, e ele é um grande amigo meu. Não tenho coragem de fazer isso com ele. Agora, por favor, deixe-me ir. Neara ficou ali, olhando para ele por um tempo, enquanto ele, de olhos fechados, mantinha a cabeça abaixada. Ela era mais alta que as mulheres de sua estirpe, e tinha a mesma altura de Luredás. Ela então se aproximou ao limite, de modo que podiam sentir o cheiro um do outro. — A decisão de sair é só sua. Não o segurarei mais, e, se quiser ir embora, a porta está atrás de você. Mas não se esqueça — ela completou depois de uma curta pausa —; estará deixando para trás aquele amor que pode valer uma vida. Que talvez não encontre de novo. Uma dádiva dos titãs. Luredás deu dois passos na direção da porta, mas depois se virou para trás. A expressão triste de Neara se converteu num sorriso gentil e delicado, porém ainda dominador. Ele foi até ela, e, depois de acariciar o seu rosto, agarrou-a. — O que houve, Arion? — indagou Ariádan, ao ver que ele permanecia estático e indeciso. — Tem mesmo certeza de que não se arrependerá?

OS HERDEIROS DOS TITÃS

109


— Claro que não! — ela saltou sobre ele e apoiou seu rosto no peito do tuata, enquanto o abraçava. Arion levantou sua face, e ficaram buscando detalhes um no outro por vários instantes. Então se aproximou e a beijou. O vento que entrava pela janela trazia gotículas d’água, os trovões tocavam seus ouvidos e os relâmpagos iluminavam-nos; contudo, eles não podiam sentir ou perceber nada disso. Seus corações batiam depressa, descompassados, mas em uníssono. A cada toque, beijo, e palavra sussurrada, Arion sentia o amor de Ariádan. Um sentimento que beirava a devoção, e aquilo o deixava mais e mais arrependido e envergonhado. No entanto, como ele percebeu antes, avançara por uma estrada pela qual não podia mais recuar. Era uma queda do precipício. Depois que a paz lhes veio, ela se deitou sobre ele, e o envolveu com o braço esquerdo. Fechou os olhos, e ainda suspirava de felicidade. Arion, entretanto, estava pensativo. Olhava para os relâmpagos, coruscando como lâminas etéreas, e ele revia todos os momentos bons que tinha passado nos últimos meses na companhia de Ariádan, Luredás, Rassuí e seus outros colegas. Também se lembrava da boa vida que poderia ter em Lira dos Titãs. Mas então vinha a imagem de Bíades caído no chão. Sua cabeça arrancada do corpo, e o sangue insistindo em não parar de se derramar. Beijou a cabeça da garota, e ela sorriu depois do toque de seus lábios. Ela não adormecera, sem querer que o momento passasse. Sua vontade de perguntar para ele se fora ou não fora um erro só crescia, porém lhe faltava coragem. Acreditava que seria a coisa mais simples, e que depois de ter se tornado mulher nos braços de seu amado encontraria sua felicidade. Para o seu desprazer, não era bem assim. Arion olhou e pôde ver o corpo nu da garota; a beleza feminina parecia algo acima deste mundo. Sua perna esquerda estava sobre as dele, e seus seios encostados em sua barriga. Mas agora, ao fim da tempestade, não restavam mais dúvidas: não poderia se realizar plenamente com ela. E, ainda que Arion a desejasse, tinha aberto os olhos, e voltado a vê-la como a irmã de sempre, aquela que ele só queria proteger. — Acho que precisa cortar esses cabelos; e você? — indagou ela, desistindo de evitar seus olhos. Não era isso que ela queria dizer, mas talvez pudesse começar de uma forma mais fácil. Grande erro. 110

ERIC MUSASHI


— Ahn? — ele se assustou. De fato, desde que viera para Lira dos Titãs, Arion não tinha mais aparado suas madeixas, que agora caíam até no meio das costas, levemente onduladas. Ele não se dedicava mais a cuidar da aparência, e se não fosse pela insistência de Luredás e Achades, nem teria nem feito a barba. — Ah, é verdade. Mas talvez fiquem melhor deste jeito. — Talvez... — ela fez uma longa pausa, e roçou o peito de Arion com lado direito do rosto. — Arion, eu... acho melhor dormir. — tinha voltado a ser a mesma jovem tímida de sempre. Arion achou melhor assim, pois não precisaria dizer a dura verdade para ela. E ele sabia que se ela não perguntasse isso agora, não precisaria perguntar novamente.

V A chuva finalmente começava a dar uma trégua, mas isso não importava para Achades; já estava todo molhado mesmo, e agora era protegido pelo telhado do estábulo. Deixou seu cavalo ali, e o secou com um pano velho. Depois, chacoalhou a cabeça, tentando livrar os cabelos de pelo menos um pouco da água fria. Apesar da tristeza pela morte de Bíades, o que mais afligia o béli era a certeza de que Escleros e Tromos voltariam. O episódio da manhã tinha sido uma afronta para eles, e eram tão poderosos quanto orgulhosos e soberbos. Mas, por hora, não precisava mais pensar nisso. Entrou pelo castelo, e as servas, que dormiram ao esperá-lo, acordaram ligeiro e começaram a secá-lo, enquanto ele subia as escadas. Elas deram a ele uma leve túnica azulada, e o béli a vestiu, após se secar. Não quis comer nada, e só bebeu água. Subiu as escadas vagarosamente, de olhos fechados. Caminhou pelo longo corredor e entrou no seu quarto, sem bater — afinal, era o seu quarto. — Ainda acordada? — Ele se assustou ao ver Neara de pé à janela, como estava quando ele saíra. A esposa nem olhou para ele: — Sim. Não consigo dormir. — O que houve hoje foi muito assustador, não foi? — perguntou ele, aproximando-se e segurando-a pela cintura.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

111


— Por favor, meu marido, hoje não — ela enfim se voltou para ele, e sua expressão parecia abalada. — Apesar de estar sem sono, estou muito cansada e fraca. Ele hesitou um pouco, e então se afastou: — Tudo bem, meu amor; eu compreendo — e deitou-se na cama e expirou, com um ar exausto. — Que tempos horríveis são estes que se aproximam! Talvez eu não tenha filhos para seguirem adiante minha dinastia. — Não diga uma coisa dessas! — Ela foi até perto dele e se deitou também, envolvendo-o com muita força. — Vamos encontrar um meio de resolver isso. Nem que seja indo embora, querido. Ficaram ali, abraçados por muito tempo. Quase uma hora se passou, mas ainda estavam daquele jeito, e não conseguiram dormir. Neara pensou em Luredás, e se lembrou do erro que cometeria; por que se arriscar num sonho se a realidade já era boa? E caiu em si, vendo que o músico tinha razão: assim como ela dizia que um jovem pode errar em suas convicções, ele podia estar errando. E, como ele falava, nem só os jovens erravam. Neara se deu conta de que a melhor coisa que lhe aconteceu foi ter topado com Luredás, pois só então realmente notou quanto Achades lhe era precioso. — Ei, quem está aí? — quis saber Arion, ao ouvir passos e ver um vulto no escuro corredor. — Sou eu; Luredás. Arion? — Sim, eu mesmo — treplicou o filho de Téoder. — Que sorte tê-lo achado tão facilmente; estava mesmo indo à sua procura. Mas o que faz aqui tão tarde? Arion se achegou, mas ainda não podia ver o rosto do amigo. — Estava pensando em algumas coisas. Só isso. — Hum... — Arion não aceitou a resposta, mas não se atreveu a perguntar novamente; e, além do mais, era só isso que Luredás queria falar. Viu que a voz do amigo trazia uma tristeza não antes vista ali. Seus olhos pareciam segurar muitas lágrimas, mas Arion não podia ver. — Mas por que me procurava? — Eu sei que poderá não entender, mas devemos ir embora daqui — Arion respirou, e então voltou a falar: — E não digo embora do 112

ERIC MUSASHI


castelo, e sim da cidade. Acima de tudo, no calar da noite, sem despedidas. Nesta noite chuvosa e fria. Sei que... — Concordo plenamente com você — Luredás o interrompeu. — Não sei que motivos o fazem tomar essa decisão, mas concordo, pois também tenho os meus. Arion se assustou: esperava um amigo relutante, e talvez até a possibilidade de ir sozinho, mas ao invés disso achou um Luredás que estranhamente também queria ir embora. O que acontecia, afinal? — E quanto a Ariádan? — quis saber o músico. — Ela já está pronta? — Não, ela nem sabe — e agora foi Luredás que ficou confuso, mas Arion prosseguiu: — E nem deve saber. Esta é a razão de irmos agora, antes do raiar do dia, e sem fazer alarde. — Por que quer deixá-la para trás? Que lugar é esse para onde vamos, que ela não pode ir? — protestou Luredás. — Não é o lugar. É só ela que não pode ir. Ela não deve se arriscar por mim, alguém que não merece o amor que ela ofereceu. — Arion abaixou a cabeça. — E se não quiser ir também, Luredás, eu entenderei. — Não. Irei com você aonde quer que vá. Mas por que ao menos não se despede dela? — Você a conhece; ela não aceitaria. — Arion passou a mão nos cabelos, jogando para os lados mechas que insistiam em cair sobre seus olhos. — Não é isso; você não tem coragem de dizer a verdade para ela. — Luredás esperava uma resposta, mas o silêncio de Arion o entregou. — Meu amigo, qualquer que seja ela, a verdade deve ser dita. Eu não sei o que aconteceu entre vocês, mas seja o que for, não importa. Pense bem: ela ficará crendo que a ama e esperando receber esse amor que não existe. — ele pôs as mãos sobre os ombros de Arion. — Pense bem! — Faz sentido o que diz, mas ainda assim não tenho coragem de fazê-lo. Apronte-se, pois logo partiremos. — Tudo bem. Mas tenho que contar ao menos para Achades. — Faça-o, se quiser. E finalmente Luredás fez a pergunta mais óbvia: — Aliás, para onde vamos?

OS HERDEIROS DOS TITÃS

113


— Para Catebete. Não quero que mais pessoas percam a vida por minha causa. Vamos até lá e pedirei para o meu pai me ajudar, colocando alguém honrado no comando de Jatitã, e dispersando Escleros e Tromos. Minha dor é maior que o meu orgulho, e aceitarei o auxílio que ele me ofereceu por uma carta que enviou. Não faço isso por mim, mas por Ariádan, por você e por Achades. — Entendo. Mas acha que seu pai pode nos ajudar? Luredás achou que fosse apenas uma atitude desesperada por parte de Arion. — Se ele não puder, ninguém poderá. — Arion não entendia o motivo da pergunta, mas se lembrou de que Luredás o conhecia há pouco tempo, e que ele nada sabia sobre o seu passado e suas raízes. “Rassuí nem deve ter falado de minha ascendência.” — Luredás, meu pai é Téoder, o Béli-Mor. — o lirista arregalou os olhos, e deu um passo para trás, muito surpreso. — Mas não quero falar mais nada. Encontramo-nos no estábulo, daqui a uma hora. — Tudo bem! — disse Luredás, que ainda ficou ali, parado por alguns instantes, vendo Arion se afastar. — Por essa eu não esperava. Filho do Béli-Mor... Já era a quinta hora da noite, e Luredás ainda não tinha aparecido. Arion viu que o céu já estava limpo, e pôde ver também a constelação da Justiça, que ele gostava de observar desde quando era mais jovem. Ventos frios ainda se revelavam, cortando através de sua túnica e parecendo atingir seus ossos; mas provavelmente o dia seguinte seria quente. Impaciente, andava de um lado para o outro, segurando as rédeas de Valente na mão esquerda e uma sacola da direita. Sacola esta onde carregava, além de um par de roupas, um cantil cheio d’água, algumas maçãs e laranjas e uma faca para cortar alimentos. Mais nada. Achava que podia simplesmente querer cruzar o país que conseguiria. A mais de dez dias dali estava Catebete, isso se dispusesse de um bom corcel. Disso, pelo menos, Arion não podia reclamar. Lembrou-se de quando entrou em seu quarto, uma hora antes, e da última vez que tocou em Ariádan. Seu corpo branco e nu estava deitado na cama, e o vento que entrava pela janela fizera a jovem se encolher. Arion apanhou um grosso tecido de algodão e a cobriu. Beijou sua doce pele pela última vez. Tais lembranças o faziam sorrir, ao que Luredás se aproximava com Achades. 114

ERIC MUSASHI


— Você demorou! — reclamou Arion. — Perdão, mas estávamos fazendo alguns preparativos; afinal, não é tão simples assim se começar uma viagem de meia lua, não concorda, Achades? — Luredás sorriu, e o outro apenas assentiu com a cabeça. Estava triste pela partida dos amigos. — Quinze dias a cavalo?! — exclamou Arion. — Não achei que estivesse tão longe... Mais de dez vezes a distância que percorremos de Jatitã até aqui. — E pode ter certeza de que terá também mais dez vezes terras áridas — disse a voz triste de Achades. — Por isso dou mantimentos para vocês. Se não posso impedir que vão embora, pelo menos não permitirei que passem necessidades, meus amigos. — Faremos isso para impedir que sofra futuramente, béli Achades — disse Arion. — Além disso, não estamos indo embora para sempre. Se tudo correr bem, estaremos de volta em pouco mais de um mês. Não é, Arion? — acrescentou Luredás, ao que o amigo respondeu com um sorriso. — Mas o que trazem aí? — perguntou o filho de Téoder. — Além de frutas, também carnes — respondeu Achades. — Eu as trouxe salgadas como estavam, e isso vai evitar que apodreçam. Viagem sempre próximos do Rio das Sereias — aconselhou. — A velha estrada anda abandonada, mas nele poderão encher seus cantis e tomar banho. E aconselho: deixem a carne para quando as frutas se acabarem, pois estas vão se estragar primeiro. — Não sei o que faria sem a sua amizade,Achades — sorriu Luredás, e, após dizer isso, veio a imagem de Neara em sua cabeça. Seu coração parecia estar sendo apertado pelo forte punho de um carrasco, e se entristeceu ao se lembrar de que não se despediriam. — Só uma pergunta: onde vamos carregar tudo isso? — quis saber Arion. — Antes de responder, digo-lhe: isso não é tudo. Nossas reservas diminuíram drasticamente na passagem de ano, e vocês não terão mantimentos até o fim. Se esperassem, eu poderia provê-los melhor pela manhã, mas tudo bem. Por isso, recomendo que, quando tudo acabar, afastem-se do rio e vão até Ancatébia. Lá acharão repouso e mais comida.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

115


Ele então entrou numa parte escura do estábulo, e voltou com uma bela carruagem, puxada por dois cavalos. — E isto lhe responde, Arion: aqui levarão suas coisas. Eram dois equinos robustos, com as cores marrom e branco, e a carruagem também era espaçosa e confortável. Ele foi colocando os mantimentos ali, e pegou também as mochilas de Arion e Luredás, jogando-as lá. Ainda assim, o espaço restante era capaz de acomodar os dois jovens com certo conforto. — Eu nem sei nem como agradecer — balbuciou Luredás. — Muito obrigado — murmurou Arion. — Imagino que Luredás já tenha lhe contado o motivo de nossa partida. — Sim, contou. E agora sei por que luta tão bem, rapaz. Fico feliz de ter conhecido o filho do Grande Téoder, o maior Béli-Mor que este Reino já teve, na minha humilde opinião. Era de se esperar que Arion agradecesse o elogio, mas ele não o fez. E, como Luredás não conhecesse o motivo disso, o mesmo se dava com Achades, que estranhou a atitude. — Então já deve saber também que pretendo chegar lá antes de Escleros e Tromos — respondeu Arion. — Pois podemos ter grandes problemas se os encontrarmos lá. — Sim, já imaginava isso. Portanto, digo: Escleros jamais apareceria em Catebete sem uma espada. Seria muita vergonha para ele, e vai acabar se desviando de seu destino. Presumiria que ele viajaria até Melcártis, no extremo Nascente, mas com isso ele demoraria demais, e só estaria na capital daqui a, no mínimo, trinta ou quarenta dias. Então, creio que ele atravessará o Rio das Sereias e irá até as Minas de Unguinté, que ficam sob as Montanhas Toradon. De lá é extraído o sevaste desde tempos remotos, e é o lugar mais próximo onde ele poderá arrumar esse cristal. Sem contar o aço que é vendido em tantas cidades na região. — Entendo. Mas um pedaço de metal nem se compara a uma espada fina como esta — disse Arion, sacando a espada que estava presa no seu cinto. — As técnicas de forja de Melcártis não são um segredo guardado mais que um pergaminho engolido? — Não o subestime. Ele aprendeu uma das duas técnicas perdidas de Antel, e com certeza sabe muito bem como forjar uma espada etérea. Saiba que Antel também ficou famoso por quase acabar com o 116

ERIC MUSASHI


monopólio de Melcártis. Por isso ele possuía uma espada leve, mesmo sendo um imane. Aliás, creio que a espada que tem em mãos agora é muito poderosa. Eu vi como o simples vento que ela fez feriu a mão de Escleros. Mas mesmo uma espada tão especial deve ficar em sua bainha. Tome. — ele tirou a própria bainha e deu para Arion. — Mas ela é de sua lâmina... — Não se preocupe, eu tenho outras. E isto — disse ele, tirando uma espada de mádi de dentro da túnica — é para você, Luredás. Será útil. — A espada de Bíades... Mas não sei por que precisarei usá-la, meu amigo — apanhou-a, e ficou observando-a. Era de ouro com pequenas linhas de prata, uma verdadeira obra de arte. — Aceite-a. Há bandidos e desertores nas terras que separam Lira dos Titãs de Catebete, e talvez tenham que passar por maus bocados. Além disso, soube de ataques de animais da Floresta Sem Vida, e que eles estão atravessando o Rio das Sereias e vindo para o nosso lado. — Obrigado por compartilhar sua sabedoria conosco — disse Arion. — Ainda não terminei. Agora digo para vocês: viajem mais e durmam menos. Mas não exagerem, pois os animais também precisam descansar. Fiquem perto do rio até o nono ou décimo dia, quando deverão ir a Ancatébia. Depois sigam até Catebete, e sem novas pausas em outras cidades. — E como conseguiremos mais comida? — indagou Luredás. — Talvez não encontremos mais amigos como vocês. Mas Achades não respondeu, ao menos não com palavras: tirou uma sacola de pano do bolso e entregou para ele, que olhou dentro dela, vendo pulseiras e correntes de ouro, prata e bronze. Tremeu de susto: — Agora tenho certeza de que não encontraremos mais amigos assim, tão atenciosos. — Sim, com certeza — falou Arion, colocando a mão direita sobre o ombro esquerdo de Achades. — Obrigado pela grande ajuda que nos dá neste momento tão difícil. E só lhe peço mais uma coisa. — Pode pedir — disse o béli. — Pelos titãs, não conte para Ariádan que fomos para Catebete. E cuide dela. — ele falava com Achades não como se estivesse se dirigindo a um béli, mas como se apenas visse um velho amigo. — Por Anjifum, peço-lhe.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

117


— Pode considerar seu desejo concedido. Eu queria muito saber por que a deixam para trás, mas vejo nos seus olhos que não querem dizer o motivo. — Ela já sofreu demais — respondeu Luredás. E não estava mentindo; de qualquer forma que Achades entendesse isso, estaria certo. — Agora devemos ir. Achades os conduziu em silêncio até a rua principal. Enquanto passava pelo castelo, Luredás não resistiu e olhou para a janela de Neara. Ela já estava dormindo; vencera a insônia. Arion foi montado em Valente, pois não queria deixar o cavalo, por quem já tinha afeto. Cruzaram a enlameada rua principal vagarosamente e viram o portal oposto ao qual haviam entrado certa vez. — Muito obrigado por tudo, Achades — disse Luredás. — Eu é que agradeço pela presença de vocês em meus domínios por tanto tempo. — Prefiro acreditar que este tempo voltará — completou Luredás, e enfim se virou. Ele e Arion logo se misturaram com a escuridão, e Achades voltou para o castelo, cruzando a deserta e fria rua. Desejava que seus amigos fossem bem-sucedidos, para que pudessem voltar logo. E já podia sentir saudades da fascinante lira de Luredás. Por mais que quisesse acreditar no contrário, seu coração lhe dizia que não os veria novamente.

118

ERIC MUSASHI


Porto da Vitória I Foi uma viagem extenuante. Era o quadragésimo dia de ebdomês quando Téoder saiu de Catebete. Furioso com Quetabel, decidiu partir ele mesmo, no lugar de Jarbal, um outro imane seu, para Porto da Vitória, a fim de entregar para o famoso béli Sólen o chamado para o conselho. Jarbal foi encontrado não muito longe da capital e mandado de volta — ele seria o béli de Catebete até que Téoder voltasse. E este seguiu à margem do prolongamento artificial do Rio dos Bosques, indo para sudoeste por cinco dias, e seguiu pelo Rio Anzafassuí por mais cinco. Uma viagem que em ritmo normal seria feita em doze ou treze dias; mas Téoder dispunha de um rápido e resistente cavalo, chamado por ele de Filho dos Ventos, que parecia voar de tão rápido. Além disso, Téoder era um exímio cavaleiro, como não se via similar nos dias atuais. Depois de chegar à região do Delta do Poente, teve de cavalgar com mais cuidado e analisar bem o seu caminho. Alguns dos rios que nasciam ali eram profundos, e outros tinham um caminho tortuoso. A distância seria percorrida normalmente em oito dias, mas atrasou-se, levando dez no percurso. O normal é que se levasse de 20 a 22 dias na peregrinação toda, de acordo com o caminho escolhido. Teve alguns dias de chuva nesse período, mas dispunha de roupas grossas na sacola que levava consigo, e também soube achar lenha e fazer fogueiras. O mais estranho é que havia levado poucas provisões, e não se preocupava.Téoder queria fazer de sua viagem uma aventura, como há muito ele não empreendia; parava em lugarejos e pernoitava e comia, por vezes caçava, ou abatia pássaros. Filho dos Ventos se contentava em comer os frutos que eram achados no caminho por Téoder. Mas ele também levava feno em dois grandes sacos amarrados no cavalo. Já era o sexto dia de protomês quando Téoder avistou a Mata do Extremo Poente, e ela se dispunha ao poente, extendendo-se de uma borda à outra para o norte e para o sul. Ele estava mais próximo de Porto da Vitória do que esperava, e só lhe bastava ir para o sul. Cobriu o trajeto em dois dias, já não exigindo tanto de Filho dos Ventos. E, no oitavo dia de protomês, eles chegaram.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

119


Téoder, como a maioria dos homens de seu tempo, ouvira falar bastante da cidade, mas nunca a vira antes. Suas construções de alvenaria lembravam um pouco as de Catebete; os templos eram dotados de pilares cilíndricos nos quatro cantos, e telhados com duas águas, como a maioria dos grandes monumentos atalais, e com inscrições em hieróglifos na frente. Contudo, os lugares de culto, praças e delegacias dos mádis não causavam estranheza como a falta de muros, ou os bairros espaçados, como vilarejos que compunham uma ampla cidade. Suas casas, típicas do Poente, eram feitas de madeira ou bambu, separadas umas das outras por cercas baixas e elevadas do chão, talvez para prevenir inundações. Poucas delas eram cobertas por telhas, e nenhuma dispunha de terraço; vegetais trançados compunham a descontraída cobertura. A inexistência de muros talvez indicasse uma visão mais moderna, sem perigos reais de invasão, já que a ilha-continente tinha um governo unificado. Todo o continente já estava conquistado — ou melhor, quase todo, já que a Cordilheira Roana, repleta de dragões, e o que havia além dela, eram escassamente conhecidos, e o Forte Esperança, além das montanhas, fora abandonado há muito tempo. As Planícies Proibidas, no extremo norte e além do Pântano Tanistus, dos Bosques Inundados e do Vale dos Lobos, jamais foram mapeadas com precisão. Os navegadores de Porto da Vitória até tentaram conquistar as Terras Prometidas através dos Mares Boreais, mas então se depararam com aquilo que chamaram de Montanhas do Terror, e nenhum dos que se aventuraram nelas sobreviveu. As poucas ruas pavimentadas, já nas entranhas da cidade e com o mar à vista, tinham pedras triangulares, algo não muito comum no Reino — o normal eram octógonos em conjunto com pequenos quadrados, ou hexágonos —, uma homenagem ao tridente de Anzafassuí. Os trabalhadores braçais usavam saias, ao invés de túnicas, e quem se vestia formalmente tinha coletes de cores diversas no peito. Já as mulheres usavam longos vestidos justos na cintura e com decotes largos nos seios. As ruas estavam abarrotadas de gente, e Téoder mal conseguia passar. Resolveu parar, e apoiou-se contra o pilar de um templo, ao lado de Filho dos Ventos. — Um béli estrangeiro em Porto da Vitória. Acaso és um jatitano? — perguntou uma mulher que se aproximou dele. Ela tinha olhos castanho-amendoados, e seus cabelos negros brilhavam como uma lâmina de 120

ERIC MUSASHI


aço polida. Sua pele era morena, um pouco mais escura que o comum dos atalais, e o seu rosto era mais redondo que o normal para Téoder. Usava brincos de marfim, e trajava uma túnica branca que descia até a altura dos joelhos. Ele tinha a capa sobre o corpo e nada indicava sua posição. Por isso, estranhou o reconhecimento: — Há muitos habitantes nesta cidade, e talvez nunca tenha me visto. E quanto ao palpite, eu sou e não sou. — Ou tu és, ou não és. E não podes te fazeres de morador desta cidade; aqui há mais de 50.000 pessoas, de acordo com a última contagem, há quatro anos, e eu não conheço muita gente que aqui vive; contudo, vejo que tens um ar cansado, e tuas roupas estão sujas de poeira. Além disso, tu tens olhos e cabelos anis, e teu cavalo também pede um descanso — rebateu ela, rindo. — Por acaso fala com cavalos? — brincou ele. — Mas, realmente acertou. Eu sou Téoder de Catebete, o Béli-Mor do Reino. Vim até aqui para ver Sólen, o béli local. Sabe onde fica o seu castelo? — Um béli sem cortejo ou armadura? — riu ela. — Mas pareces falar a verdade. É uma honra conhecer-te, admirável guerreiro. — Ela o olhou de cima a baixo. — Se queres ver o béli, não seria mais fácil apresentar-te nalguma delegacia? Poderia ser a deste bairro. — Eu prefiro a discrição — disse ele, e piscou. — Se não souber me dizer, eu pergunto para outra pessoa. Ou vou para o litoral, pois dizem que de lá dá para ver. — Não é isso, Béli-Mor. Tens razão em dizer que ele está na região portuária. Antes, porém, não gostarias de tomar um banho? Quem sabe descansares e fazeres uma refeição? Minha casa não fica longe daqui. Não era estranho que ela oferecesse isso para ele, agora que sabia que era o Béli-Mor. Ele, não só pelo modo gentil que ela o tratava, tinha vontade de aceitar o convite. Ela trazia para ele uma paz estranha, e era capaz de confiar na moça, mesmo conhecendo-a há apenas alguns instantes. — Eu aceito. Mas ainda não sei o seu nome. — Sou Nábia. — ela, que saía do templo quando o encontrou, tomou a dianteira, dizendo: — Vem por aqui.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

121


Eles foram caminhando, e, conforme ela andava, a multidão ia abrindo caminho. Por um instante Téoder pensou que ela fosse alguém importante, mas depois percebeu que todos a olhavam o tempo todo. Aquilo estava longe de ser de admiração; era desaprovação, e também receio, em alguns casos. Ele apenas a seguiu, e após cerca de um sexto de hora pararam. Era uma casa comum, com quatro cômodos. Um era uma sala de estar, ao que parecia.Tinha um tapete de desenhos intrincados que, provavelmente, fora trazido do além-mar. Também havia almofadas no chão, e o recinto era bem arejado, tendo as três janelas de madeira abertas. Ele olhou para o lado e viu um cômodo com uma banheira de madeira. À sua esquerda repousava uma mesa, e algumas facas também. Por fim, ela o pegou pela mão, e mostrou o quarto onde poderia deixar as suas coisas enquanto se banhava. — Não é digno de um béli, e espero não te ofender — disse ela. — Longe disso — replicou Téoder. — É maravilhoso redescobrir a antiga hospitalidade mencionada nas histórias. Nábia sorriu, e eles pareceram se conhecer de longa data. — Vou preparar um banho para ti. Enquanto isso, serve água para o teu cavalo e o alimenta. Encontrarás tudo de que precisas nos fundos. — Como eu posso agradecê-la? — Depois falamos sobre isso. — ela parou por um momento. — Mas não precisas me olhar assim; não quero recompensas, e nem favores. Só quero conversar. É uma honra estar com o Béli-Mor. Ele assentiu ao ouvir a resposta, e então foi saciar a fome e a sede de Filho dos Ventos, como ela o orientara. Algum tempo depois, ele entrou. Ela pediu que relaxasse na banheira, e disse que ficaria na varanda, e, se precisasse de algo, que a chamasse. A água estava ótima, morna, e ele se deliciou. Ao terminar, pediu uma toalha para ela, e a garota a levou. Ainda que não houvesse tabu sobre a nudez entre os atalais, em certas situações ela era desencorajada — e uma delas era quando um nobre se achava sem roupas. Após ela sair, ele saiu da banheira e se enxugou e vestiu uma túnica verde que ela deixou. 122

ERIC MUSASHI


— Fica aqui e alimenta-te, e enquanto isso a tua roupa seca. O calor do fogo fará com que enxugue mais rápido. E então conversaremos, e depois poderás ir te encontrar com Sólen. As outras ficarão aqui, secando, e amanhã podes vir buscá-las — disse, e então foi até lá fora, onde acendeu uma fogueira. Ela usou de combustível eucaliptos, e assim o aroma que subiu aos tecidos foi praticamente um perfume. Téoder foi até a mesa, onde havia bananas, pão e mel. Isso o lembrou das noites que passava em Jatitã na casa de Faná, e de como era feliz ali. Mas estava tão cansado que não quis se martirizar vendo com as memórias, e continuou a comer. Depois da refeição, ficou com sede, e serviu água num copo, bebendo e enchendo-o duas vezes mais. Depois se sentou na sala, acomodando-se sobre travesseiros. Ao fim da longa viagem, nada melhor que descansar numa casa tão aconchegante. Ficou ali, olhando para a janela, vendo as ruas ainda abarrotadas de gente. O sol estava baixo no céu, perto de se pôr. Téoder adormeceu, num sono profundo e reparador. Estava tão cansado que talvez nem fosse capaz de se lembrar dos seus sonhos quando acordasse.

II Téoder andava entre as flores quando sentiu um leve toque em seu rosto. Sorriu; era Faná, e ele apanhou sua delicada mão. Seus olhos dourados chamejavam eminentes, e seus cabelos brancos eram agitados pelo vento. Ela se abaixou e alisou o seu rosto; seus dedos pareciam querer chamá-lo, avisá-lo de algo. De repente, viu Quetabel, que, atrás dela, a apunhalava e sorria. Ele se levantou assustado, e abraçou Faná com força. — Béli-mor...? — perguntou Nábia, assustada. — Ah! — ele se afastou dela, envergonhado. — Desculpe-me, eu estava sonhando, e não tinha consciência do que fazia. — Não te preocupes, Béli-Mor: por mais que te sintas culpado, não há mais mágoas; não te atormentes com tais lembranças — falou ela quase sem perceber, e Téoder arregalou os olhos. — Do... Do que está falando? Como sabe do meu sonho? Ele não compreendia como era possível, e tinha certeza de que não se tratava de mera coincidência. Nábia acertara em cheio, desafiando os limites do possível. E, de fato, ele queria que suas palavras fossem verdadeiras.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

123


Ela, percebendo que dissera o que não devia, afastou-se alguns passos. Pela janela, viu que a lua ainda não estava presente. Estrelas lançavam seu belo brilho aos olhos de todos, e um vento frio que vinha do mar chegava até lá, fazendo com que as cortinas azuis se agitassem com força. — Bem, se eu não sabia como começar este assunto contigo, então agora o Destino se revelou um grande amigo, dando-me oportunidade tão boa. — ela se aproximou de novo, e a luz das velas iluminava sua face morena. Téoder não entendia o que ela estava tentando dizer, e ainda estava atordoado. Pelo, sonho, mas também pelo que ela dissera quando ele acordou. — Tu já deves ter notado que não sou destas terras: o vento me trouxe para cá já há algum tempo, mas o povo de teu Reino não me olha com igualdade. — Você veio do mar? Das terras que Sólen e seus homens conquistaram, e das quais tanto se orgulham? Téoder já estava mais calmo e lúcido. — Não; não podia ter vindo de mais perto. Mas isso não importa, e sim que não foi por acaso que te encontrei hoje naquele templo, e não te trouxe para casa só por querer agradar o Béli-Mor. Eu te aguardava. Téoder se mostrou receoso de novo, mas Nábia não se importava. Ela sabia que ele não podia receber tudo o que ela dizia com total clareza, e, se ela tentasse fazer isso por ele, estaria errando. Ele devia compreender e aceitar sozinho; a ela não era possível fazê-lo em seu lugar. — Em breve — prosseguiu ela —, enfrentarás perigos maiores do que ousas imaginar. Eu vislumbrei que pretendem invadir as Terras de Lótus — ou melhor, as Planícies Proibidas, como chamam. — O quê?! — assustou-se ele, e sua imagem pareceu crescer sobre a moça. — Como sabe disso tudo? Por acaso é uma espiã? Ou está a par dos assuntos do Reino por ter relações com os nobres? Mas, de uma forma ou de outra, eu vim trazer esta notícia. Cavalguei o mais rápido que pude, e ninguém deve ter chegado antes de mim... — Por favor, não me interrompas. Tu já confirmaste, e, uma vez alguém sabendo de algo, pouco importa como descobriu. Continuando, foi-me revelado que nem eu e nem ninguém pode te interromper. Só peço que tomes muito cuidado.Tu és importante para Grabatal, e podes ser essencial no desfecho dos eventos que se iniciaram.Além disso, peço 124

ERIC MUSASHI


que abras os olhos.Teu coração não te engana: lá no fundo, tu sabes que esta história de Quetabel ser uma Deusa é invenção. Não sabes? Téoder pensou por alguns instantes antes de responder. Aquela estrangeira sabe um bocado sobre ele, sobre os assuntos do Reino e se arriscar a prever seu futuro o assustava. Ele já alimentava suas suspeitas acerca de Quetabel e seus sacerdotes, mas as guardava para si. — Sinto que não preciso responder — disse ele, sábio. — Não sei se capta as palavras no ar, ou se pode conversar com o coração das pessoas. Mas qualquer que seja a forma de descobrir tais fatos, ela é desconhecida para mim. Você usa poderes que eu nem sabia existirem. — És sábio, mais do que eu imaginava. Por favor, fica alerta — repetia a morena. — Ao olhar para ti, sinto que conseguirás alcançar aquelas terras. E, quando chegares lá, sempre pensa duas vezes antes de fazer qualquer coisa.Tu mereces que a Verdade se descortine para ti. — ela se voltou para o chão, e depois se aproximou e segurou as mãos de Téoder. — Eles não me ouvem, mas ouvirão a ti, caso tragas fatos irrefutáveis. — Se sou como as páginas de um livro aberto para você, então também deve saber que só entendo cerca de um terço das coisas que fala — sorriu ele, e ela apenas balançou a cabeça levemente, concordando. — Quem diria; uma garota me dando lições de sabedoria. A vida nunca deixa de me surpreender. E aqui, tão longe, quando só vim para... Ele se conteve; mal a conhecia, e não lhe falaria de seus problemas tão íntimos. Téoder não tinha amigos verdadeiros, ao menos não perto o suficiente para que fossem seus confidentes, e ele sentiu falta disso. Quase se despia da armadura do dia-a-dia e se abria para aquela estranha mulher de Porto da Vitória. — Por meio de ti, pusemos os olhos nela, e também nele — disse ela, enigmática. — Tomara que algum de vós seja capaz de impedir a ruína de vosso povo. Ele agora entendia o sentido de tais palavras. Os excessos de Atala pareciam chegar ao limite, deturpando os valores, exaurindo a terra e acabando com qualquer forma de economia. A História ensinava que era um atalho para a implosão. Eles ficaram em silêncio, analisando-se, e ela sentia sinceridade na força daquele poderoso homem. Admirou-o como varão, ainda que não esperasse que algum dia fosse o seu varão.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

125


— Agora sei por que ela te encontrou. Por que achou uma pérola no meio de tanta corrupção, de tanta lama. A sua visão nem era tão apurada, mas nem precisava ser. Fico triste por como tudo acabou... — e ele ia começar a falar algo, mas ela colocou o dedo indicador sobre seus lábios, pedindo silêncio. — Não perguntes mais nada. Apronta-te; tua roupa já secou. Já é tarde; faz a tua barba, pois se demorares, só vais encontrar Sólen amanhã. Ela foi até os fundos para pegar suas vestes e ele ficou pensando. Seria de Faná que ela falava? Só podia ser. Mas quem era o outro em que depositavam as esperanças? Ele nem estava mais preocupado em tentar entender as habilidades e conhecimentos que essa mulher possuía, e nem queria saber mais de onde ela viera. Esforçava-se em descobrir o sentido de cada palavra, cada sílaba ou letra que ela proferiu. Dizia-se que o atalai já fora uma língua mágica, capaz de alterar o mundo e controlar a natureza, e Téoder levava isso a sério. Após se aprontar, ela o conduziu até a porta, e do lado de fora estava o Filho dos Ventos, animado novamente, e também recuperado. — Foi bom estar aqui para te conhecer, Téoder, filho de Odel. Eu até me sinto especial — riu ela. — Eu ainda sou o Béli-Mor — replicou ele. — Confio em ti; não há homem mais capacitado para ocupar tua posição. — ele apenas assentiu. — Volta amanhã ou depois, e então tuas roupas estarão limpas. Ela mudava a todo momento o foco da conversa, oscilando entre enigmas e assuntos do cotidiano, e Téoder ficava desnorteado. — Eu voltarei. Mas ainda não me disse onde fica o castelo de Sólen. — Tu deves seguir esta rua na direção oriental, e então, depois de exatas... 25? Não, não. Depois de exatas 26 casas do lado direito, haverá uma rua que seguirá na direção do mar. Tu então segues por ela. Não errarás. O seu castelo se destaca entre tudo nas proximidades. Ela ajeitou os cabelos por trás das orelhas, pois o vento os jogava sobre o seu rosto. Téoder registrou aquela imagem. — Está certo. Muito obrigado; não me esquecerei de suas palavras, Nábia — disse ele, e se foi. 126

ERIC MUSASHI


III Exatamente como ela disse, pensava Téoder. Orientando-se pelas estrelas, notou que já devia ser a nona hora noturna; ainda era cedo para que um béli estivesse dormindo. Podia ouvir claramente a música vindo de dentro da construção, que era um gigante palácio, tão amedrontador para possíveis inimigos quanto a alguém de Catebete. Suas paredes de blocos de pedra eram imperturbáveis, e na entrada, com largas e altas colunas sustentando a varanda elevada da rua após um lance de degraus, telapuros ficavam de guarda. Téoder se aproximou. — O que deseja? — indagou um deles, aproximando-se. Possuía curtos cabelos loiro-esverdeados — como a maioria das pessoas da cidade — e o olho esquerdo azul — o direito era perfurado, cortado por uma cicatriz que vinha da testa até a metade da bochecha. — Trago uma mensagem ao béli Sólen. Quando Téoder falou isso, o outro telapuro, que se aproximava, já começou a dar risadas. — Lamento, idabará, mas ele está ocupado. Talvez possa recebê-lo pela manhã. — O guarda se mantinha educado, enquanto seu amigo já perdia a paciência. — A mensagem é de Catebete. E é urgente. — Só um momento... — ia dizendo o caolho. — Bah! Não perca seu tempo com ele — disse o outro. E, perdendo a paciência,Téoder se apresentou devidamente: — Não sou um idabará, e sim Téoder de Catebete, o Béli-Mor! Ele então desembainhou a espada leve de aço com pedras de sevaste. Ao que a ação se deu, o telapuro que estava rindo se apavorou, e recuou, de olhos arregalados.. — D-desculpe-me... senhor! — balbuciou ele. — É por aqui — adiantou-se o caolho, e o conduziu para dentro. Lanceiros se apressaram em levar seu cavalo até o estábulo. Lá dentro havia um amplo e comprido salão, nos mesmos moldes da entrada do castelo de Jatitã, mas com paredes coloridas e estátuas de estilos inusitados, trazidas do além-mar. Uma festa se

OS HERDEIROS DOS TITÃS

127


dava, e Téoder caminhou entre os convidados, mádis e marinheiros, além de belas mulheres, cada uma com um vestido mais luxuoso. Ele andava sobre um tapete azul com detalhes dourados. Após atravessar todo o salão, deparou-se com um homem imponente numa cadeira com ornamentos de ouro, e atrás dele uma estátua de pedra que, ao que tudo indicava, era de Anzafassuí, o Rei Navegador. O homem devia ser Sólen, pois usava uma armadura de fina qualidade com brilhantes pedrinhas de sevaste, e tinha uma espada leve na cintura. Seus cabelos eram cinza-azulados, como se ele fosse um ancião, mas suas feições revelavam vigor. À sua destra estava uma bela moça, com olhos azuis claros e cabelos como os dele; ela usava um justo e decotado vestido azul, e tinha uma corrente de prata com um pequeno tridente pendurado. Mas à esquerda estava uma ainda mais bonita; seus olhos eram verdes, com um tom aloirado nas madeixas, e os lábios eram bem-feitos. Ela era alta, elegante, e de semblante adorável, mas ao mesmo tempo triste. O homem, que segurava um copo de ouro, terminou de beber o que devia ser vinho. Então olhou para Téoder, de cima a baixo. — O que houve, Caolho? Quem é esse? — quis saber. O soldado ia falar algo, mas Téoder o interrompeu, aproximando-se do béli. — Acho que se apressou. A festa foi preparada, e nem ao menos fui convidado. Creio que é para comemorar a minha chegada — brincou o Béli-Mor. — Eu sou Téoder, filho de Odel, o Béli-Mor. O olhar de Sólen mudou. Esperava-se que se sentisse intimidado e que tentasse ser o máximo gentil com o Béli-Mor, que era seu superior, ainda que não fossem do mesmo clã. Acima de Téoder estava somente Quetabel — e, dependendo do ponto de vista, seus cinco sacerdotes. Suas duas mulheres pararam de rir, e ele se pôs de pé, fitando Téoder. — O que o traz aos meus domínios, Béli-Mor? A forma como ele pronunciou o título deixava claro que ironizava. Alguns dos convidados, percebendo o que ocorria, foram se aproximando, e os músicos começaram a tocar uma melodia mais lenta e suave. — Vim até aqui lhe trazer o comunicado de um conselho que se dará em Catebete. A Rainha-Deusa convoca todos os bélis, sobretudo os 128

ERIC MUSASHI


das capitais regionais. Ela pretende fazer uma expedição; você encontrará todos os detalhes na carta — completou, entregando o pergaminho. Após uma lida rápida, Sólen disse: — Fazendo o trabalho de um idabará, Béli-Mor? Eu esperava mais de você. — E ele riu. Jovens robustos, talvez seus imanes, se dispuseram ao seu redor, e o clima ficou tenso. — Eu vim pessoalmente porque estava curioso. Queria saber como anda o nosso porto mais movimentado, e também tinha muita vontade de conhecer esta cidade. Como creio que dificilmente teria outra oportunidade para isso, uma vez que sempre preciso cuidar dos problemas da capital, e às vezes até dos das outras cidades, quando os bélis locais são incapazes de resolvê-los — ele enfatizou esta parte, olhando para os lados e falando devagar —, dificilmente saio de Catebete. — Mas creio que jamais precisaremos de você aqui, Béli-Mor. — Sólen se sentiu ofendido. — No entanto, se terei que ir a esse conselho, então que seja. Mas levarei comigo meus imanes. — Está com medo das estradas, béli de Porto da Vitória? — agora a situação havia se invertido, e era Téoder que zombava. — Mas não precisa se preocupar, pois vim sozinho, e há milhares de comerciantes que as atravessam todo verão sem problemas. Todos ficaram silenciosos. Sólen já estava perdendo a paciência, mas respirou fundo, e tentou procurar uma resposta à altura: — Creio que não é a hora e nem o lugar de termos uma discussão desse tipo. Só enfatizo: seria melhor que tivesse enviado um idabará, e que se mantivesse gastando suas energias com Catebete. Já há muitos no comando aqui. Meus imanes e eu já cruzamos todos os mares que possa imaginar e mais, e enfrentamos muitos perigos. — ele, que já havia tido o seu copo cheio novamente, bebeu um gole, e então continuou: — Por hora, peço que descanse. Faremos os preparativos, e partiremos daqui a dez dias no mínimo. Vou mandar que arrumem um quarto para você. — Não. Já tenho onde ficar. Meu recado está dado, e voltarei no momento da partida. Sugiro que ela se dê pouco antes do amanhecer.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

129


— Não acho que deva decidir nada nos meus domínios. Está longe de Catebete. — ele mirou as duas esposas e sorriu. Travava um duelo de palavras, tentando se exibir para todos a cada novo golpe desferido. — Partiremos na primeira hora do 18º dia do mês. — Se prefere assim, que seja. Agora me vou, e estarei aqui de novo na hora marcada. Téoder se virou e deixou o castelo. Enquanto cruzava o salão, sequer olhou para os lados, mas podia sentir todos os olhares voltados para sua pessoa — não que isso o incomodasse. Lá fora, esperou ainda que o telapuro trouxesse Filho dos Ventos, e então montou, partindo sem direção. Quando se deu conta, estava numa das praias, ao leste da cidade, longe das docas, e suas areias soltas e brancas eram frias com a chegada da noite. Muito tempo se passou e ele ficou ali, pensando. Não conseguia se esquecer das palavras de Nábia, e repetia mentalmente todo o diálogo inúmeras vezes. A cada nova vez, percebia uma ou outra mensagem. Mas logo se cansou, e notou que muito ali estava além de sua compreensão. Filho dos Ventos se abaixou, relaxando na areia macia. A maresia agitava os cabelos negro-azulados de Téoder, e ele acariciava seu querido cavalo quando ouviu passos por trás, e, com a mão esquerda no cabo da espada, viu que ali estava uma mulher. Logo a reconheceu: — Nábia! — Não precisas empunhar tua arma contra mim! — exclamou ela, sentando-se ao seu lado. — Que fazes aqui? — Estava pensando em tudo que você me disse — confessou o Béli-Mor. — Apesar de concordar que somente eu posso achar os significados, uma vontade de pedir que me explique tudo corre por todo o meu corpo. Ela manteve o sorriso. — Mas como me achou? Ou foi só coincidência? — Ouve minhas palavras, filho de Odel: não existem coincidências. — seus olhos agora eram mais profundos do que nunca, e seus cabelos, agitados pelo vento, mesmo caindo sobre as duas luzes brilhantes e castanhas, não as ofuscavam. — Se eu te encontrei aqui, é porque isso tinha 130

ERIC MUSASHI


que acontecer. Mas, quando vieste para cá, tinhas certeza de que serias capaz de achar o caminho de volta? — Não. Mas não estava preocupado. Podia dormir aqui mesmo. Sempre gostei de praia. — Sólen não te ofereceu abrigo? Téoder olhava para o mar. Depois de algum tempo sem resposta, enfim ela concluiu: — Ofereceu, mas não aceitaste, não é? — Não gostei dele. Não seria capaz de aceitar nada de alguém assim. Pensa que é grande coisa! Ele jogou um monte de areia para o lado, e o vento ajudou que ela se espalhasse. — Não o julgues antes de conhecê-lo,Téoder. Sólen já sofreu muito, e desde pequeno sempre aprendeu que o respeito era o mais importante dos sentimentos. Foi o respeito por ele que fez com que seus homens confiassem nele até o fim, e assim encontraram por mar as terras de Ticêmis, com quem fazemos atualmente um grande câmbio, seja de ideias ou comercialmente. Ele considera seus feitos os maiores, e deseja profundamente se tornar o Béli-Mor, uma vez que duvida de ti. Prova que és maior que ele, o que de fato tu és, e então conquistarás o seu respeito. — Talvez esteja certa. Aliás, presumo que esteja mesmo. Mas ele é atrevido comigo, e desde cedo aprendi a me defender de tais pessoas. Assim como o seu código de conduta se baseia no respeito, o meu se baseia na reciprocidade. — São sábias as tuas palavras, mesmo diferindo das minhas. Contudo, fica sempre aberto para mudanças, pois se cumprires mesmo o destino que esperamos que cumpras, muitas delas acontecerão. — ela se soergueu, e estendeu a mão para ele. — Agora vamos, ou queres dormir na praia? — Se eu aceitar o convite, estarei abusando de sua hospitalidade. — Não é hospitalidade. Por tudo o que já conversamos, não podemos nos considerar amigos? Não sei se me vês assim, mas ficaria mais feliz se o fosse. Agora te levanta, pois tu foste para longe demais. Temos uma hora de caminhada.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

131


Ele então ficou de pé, e montou em Filho dos Ventos. Com a mão esquerda, apanhou Nábia pela cintura, e a colocou sobre a sela. Ela deu um curto grito, assustada, mas depois respirou aliviada. — É claro que não vamos a pé. Só preciso que indique o caminho. Eles então se foram, e galoparam pelas escuras ruas de Porto da Vitória.

IV Depois que chegaram à casa de Nábia, na noite anterior, conversaram e beberam vinho, até que adormeceram. Ela em sua cama, e Téoder sobre os travesseiros da sala. Ao despertar, Téoder se levantou num pulo, e abriu a janela. O dia amanhecera nublado, mas bastante abafado. Nos campos distantes, elevados, a neblina pairava suavemente, e os ventos amenizavam o clima, tornando-o suportável. E ele ainda passava as mãos por sobre os olhos quando viu Nábia, em uma imagem desfocada, perambulando pela casa. Pelo jeito, já devia estar de pé há algum tempo. — Acorda, Téoder de Catebete — chamava ela. — O dia já raiou há mais de duas horas. Ela se divertiu ao vê-lo ainda demonstrando um ar de cansado: — Sei que tua viagem foi dura, mas pretendo te mostrar a cidade, pois imagino que não virás aqui novamente. Voltaremos cedo, aí então será a hora de descansares. — Já se passa da segunda hora?! — ele se espantou, mas logo se recompôs. — Vou lavar o rosto. O que temos para comer? — Para lhe oferecer algo digno, dispus-me a comprar frutas na feira aqui perto. Trouxe bananas, e também pêras e maçãs que vieram de longe. Preparei uma infusão de cidreira também. Mas é melhor vires logo, senão vai esfriar. — Infusão? — sorriu ele. — Até compreendo isso vindo de você, mas não estou doente para isso. — Eu havia me esquecido... — ela coçou a cabeça. — Em minha terra, é comum bebermos chá, até por haver, às vezes, dias frios com neve. E te garanto: é bem melhor para a tua saúde que o vinho. 132

ERIC MUSASHI


Ela riu, e continuou andando para lá e para cá. Parecia estar arrumando a casa; jogando fora restos de comida, levando roupas para lavar e coisas do tipo. — Espero que eu aprecie. Ele foi até a mesa e serviu um pouco da bebida do jarro de bronze em um copo. Tinha um aroma adocicado, remetendo o guerreiro às guloseimas da infância pobre, tão raras. Bebeu devagar, pois ainda estava quente. Era algo bom, diferente de tudo que já experimentara nesses quase quarenta anos, e realmente saboroso. — E então? — perguntou ela, parada à porta com um cesto. — Não esperava tanto disto — admitiu ele. — Os sucos gelados me agradam mais, mas gostei do chá de cidreira, e cultivarei o hábito de bebê-lo. Comeu três pêras e uma maçã. Depois terminou de se arrumar, e se juntou a Nábia, que o esperava na varanda. Téoder achou melhor deixar Filho dos Ventos descansar, já que dali a alguns dias a longa viagem de volta teria início. — Não há perigo de entrarem e o levarem? — indagou, e, só de pensar em perder o cavalo sentiu um aperto no peito. — Fique tranquilo, Béli-Mor; eu sou respeitada por aqui. E temida — disse, e deu uma risadinha. — Quando digo que vim d’além das montanhas a boreal, eles me veem como uma feiticeira, adoradora de dragões. — E você é? — perguntou Téoder. Os dois então caíram na gargalhada. Eles encontraram as ruas e quase estradas que separavam os bairros com um fluxo sereno e permanente de gente. Comércios próximos das praças, fossem elas rústicas ou pavimentadas com estátuas e fontes, vendiam frutos, grãos, artesanatos e especiarias advindas das viagens ultramarinas. Dentre os objetos havia roupas extravagantes, sedas brilhantes, pérolas brancas e escuras, adagas e ornamentos de sílex ou outros minerais polidos, e utensílios domésticos. A economia feudal de Atala desconsiderava a moeda, mas ali havia peças de ouro quadradas, embora Téoder só tivesse visto uma em todo o passeio, e marfim em tamanhos e formas, que era raro na ilha-continente, dos extintos elefantes enormes do passado.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

133


Os pescados, ainda que desvalorizados na maior parte do Reino, eram parte importante da dieta em Porto da Vitória e no Poente, e o cheiro de peixe se espalhava pelo ar. E, perambulando no pouco tempo livre entre os trabalhos do lar, esposas se encontravam e conversavam, e com elas estavam seus filhos, aos montes. Os maridos, ao se juntarem a elas, revelaram a Téoder que a simplicidade da região incentivava os casamentos e as famílias, enquanto em Catebete e proximidades os costumes degenerados quase excluíam da vida em sociedade a ideia de lar, marido e mulher. Apesar de estar no território de um béli que se declarou inimigo já no primeiro encontro, Téoder podia se sentir em casa — quase como na velha Jatitã. Mas logo veio em sua mente uma lembrança da noite anterior, e ele inquiriu Nábia a respeito: — Em Catebete, são uniões e divórcios logo em seguida, ou filhos sem pai, um caos que promove gerações de desordeiros e rapazes sem ofício. Aqui, parece que vejo o além-mar cantado por viajantes, com palácios luxuosos e haréns à disposição de homens ricos. As duas que vi ao lado de Sólen, a de cabelos cinzentos e a verde-aloirada, são suas esposas? — Você exagerou um pouco, mas muitos bélis tomam mais de uma esposa no Poente — explicou Nábia, após uma risada. — Aqui, mais do que nos vilarejos. Estamos numa cidade de navegadores, e sempre há mais mulheres do que homens. Eles saem para o mar, e a maioria não volta, apesar de Sólen gostar de dizer que suas missões não falham. Além disso, alguns acabam ficando nas terras que encontram, cansados de Grabatal. Sei que é estranho a um atalai, que acredita na igualdade e na liberdade, ainda que sua sociedade seja cheia de paradoxos, como a superioridade dos militares em relação aos civis. Sólen é um homem honrado, mesmo que você não o compreenda; ele é poderoso, e poderia ter um harém, como mencionou. Mas tem apenas duas. — Mas podia ter só uma. — Téoder tentava julgá-lo, não vendo diferença entre uma vida desregrada e a poligamia. — Por acaso tiveste só uma? — ela fez uma pausa, só para ver como o Béli-Mor fora calado. — E o caso de Sólen é interessante, e comentado à boca pequena. Volta e meia, a conversa é retomada. Ele, como todo bom líder destes tempos, espalha a ideia de que é 134

ERIC MUSASHI


um homem honrado, que não é controlado por seus sentimentos e leva uma vida reta. Isso faz diferença quando homens se arriscam e morrem por você. E ele se viu pego numa armadilha do destino, talvez só para mostrar o quanto os homens são firmes como folhas ao vento. Dizem que ele forma um casal harmonioso com Crita, a de mesma etnia que ele, que conheceu desde a mocidade. Todavia, na noite em que se tornou o béli, deparou-se com Anes em uma festa, a bela de madeixas verde-aloiradas, famosa por sua formosura. Não se sabe se foi um golpe, ou se ele se deixou levar pelo vinho; de alguma maneira, eles despertaram lado a lado, nus na cama. Sólen pediu que eles não se vissem mais, e disse que poderia reparar a situação conseguindo-lhe um bom casamento com um mádi, já que se ela se mantivesse virgem, poderia arrumar um marido melhor. No entanto, ela se declarou para ele, e seu pai ameaçou denunciar o béli, que era casado e violou uma virgem. Isso é levado a sério no Poente, o que inclui esta cidade. Sólen, para tentar reparar seu erro, levou-a para sua casa também. Uns exaltam seu béli ao contar essa história, e outros enfatizam que ele tem defeitos como qualquer homem. Deve ser um choque para você, como foi para mim: o Poente se difere bastante do resto de Atala, não? Téoder concordou com um movimento de cabeça. E, daquele momento em diante, ele passou a ver Sólen com outros olhos, ainda que a rivalidade iniciada na noite anterior talvez fosse continuar. No caminho para os portos, ele pensou na questão, e sobre si próprio. Teria Sólen feito o que ele fez, matando a própria mulher por acreditar que era uma vontade da Deusa — para logo depois descobrir que ela não era Deusa nenhuma? Não havia resposta — cada um tinha seus erros, e tentava repará-los como podia. As armações de madeira iam longe no mar, por onde os navios manobravam e aportavam.Os remos eram uma constante nas embarcações de Grabatal, mas Téoder viu diferenças entre as galés de Porto da Vitória e as outras. Havia naus estreitas e compridas, de carga e expedições, e abalroadoras robustas, de batalha. Lá também havia homens penhorados, prisioneiros de batalhas vencidas em terras distantes, ou trocados por ouro ou qualquer outra coisa de Grabatal. A escravidão acentuava o contraste entre o Poente e o resto de Atala. O sol se punha avermelhado, e navios partiam. Mulheres jogavam flores no mar, pedindo que os titãs e heróis do passado os protegessem.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

135


Observando esta cena, Téoder se lembrou de Faná, que sempre pedia que Vaiú estivesse com ele quando voltava para Catebete, ficando longe dela uma vez mais. O Vento os faria próximos, levando o pensamento de cada um até o outro. Agora ela não estava mais presente, e se estivesse em algum outro lugar, somente um titã, o Éter ou o pensamento poderiam levá-la até Téoder. Ele se ajoelhou numa doca, buscando o Infinito, e desejou de todo o coração vê-la de novo. Nábia, ao se aproximar, o viu com os olhos cheios de lágrimas. — O que houve, Téoder? — ela se abaixou, ficando entre ele e o sol que se punha: — Por que estás a chorar? — Agora percebo que depositou sua confiança na pessoa errada. Não há homem pior do que eu em toda Grabatal. Sólen é muito mais merecedor. Minha honra foi manchada, e aos poucos se apagou. Não sou digno de ficar perto de você ou de outras pessoas puras. — e ele então cobriu o rosto com as mãos, mas nenhuma lágrima escorreu. “Os mortos vivem, ao menos em nossos sonhos e memórias”, pensou ela, ao mesmo tempo que Téoder fazia tal constatação. E eles se calaram, sem terem nada a dizer. Depois de caminharem por cerca de uma hora e meia, estavam de novo na casa de Nábia. As estrelas já se mostravam, e poucas nuvens estavam no céu, cinzentas. Filho dos Ventos descansava — devia ter corrido o dia todo no quintal —, e Téoder o afagou quando passaram por ele. “Que lamentos você tem, meu amigo?” O Béli-Mor olhava nos olhos do equino, que parecia compreendê-lo.“Você é puro; você é o Vento.”

V E assim os dias se passaram, com eles acordando cedo, passeando e promovendo longas conversas. Téoder conheceu o que pôde da cidade, e o lugar que ele mais gostava de visitar era o cais. O mar, com toda a sua poesia, e as ordens proferidas por capitães para os marinheiros, todos eles militares. Aquilo fazia o tempo passar, e ele se perguntava se não teria sido feliz como um navegador de Jatitã. O dia dezessete chegou, e ele ainda não se dava por satisfeito, nem pelo que sabia de Porto da Vitória, e muito menos sobre Nábia. Estava cansado no fim da tarde, e a morena foi aconselhá-lo: 136

ERIC MUSASHI


— É melhor que descanses — disse ela, já vestida com uma leve camisola azulada, pronta também para dormir. — Amanhã deverás despertar cedo. — Você tem razão — aquiesceu ele. Téoder deitou, mas demorou até que conseguisse pegar no sono. A lua já despontava na janela, iluminando a sala fazendo sombras suaves, e ele podia ouvir cada movimento que Nábia fazia na cama, quando já devia estar sonhando. Levantou-se e bebeu um copo d’água. Depois voltou para a cama, e, de tanto tentar, adormeceu. A noite o conduziu por vários sonhos e lugares, e a maioria deles não pôde ser lembrada mais tarde.Todavia, num dado momento, via-se em Catebete. Estava naquele corredor escuro de quatro anos atrás, que terminava justamente na sala dos sacerdotes, o Salão de Oferendas ou Câmara da Vida. Sua mão esquerda estava vazia; já tinha derrubado a arma de que se arrependeria para o resto da vida ter levantado e usado. A mão direita segurava Faná, o amor em total plenitude, seu recanto de paz. Estava morta, e o sangue pingava no chão, fazendo uma poça. Não era mais capaz de conter as lágrimas. Caiu sentado no chão, em prantos. Ainda acariciava o seu rosto pálido quando a tiraram dele. Três sacerdotes vieram, levando-a. Téoder saltou, disposto a lutar contra isso, mas Astarote e Ofis o seguraram, e, depois que ela foi levada para dentro da misteriosa sala, jogaram-no para trás, também entrando lá, batendo a porta em seguida. Téoder socou violentamente o piso colorido, ferindo os punhos. A lua cheia que o encarava por uma das janelas parecia querer condená-lo, e ele blasfemou contra ela. Pediu que caísse sobre sua cabeça, livrando-o daquele sofrimento. — Não te desesperes — soou uma doce e amigável voz. — Quem está aí?! — gritou Téoder, ainda desesperado e furioso. — Aqui, atrás de ti — disse a voz feminina. Téoder viu uma mulher voando, próxima do teto. Tinha penetrantes olhos metálicos, e seus cabelos a cor da Lua. Ela era feita de luz, e lhe trazia paz. Possuía duas grandes asas nas costas, que tinham penas brancas, assim como as dos lendários pégasos, desaparecidos nas lendas da formação do Império Jatitano. O desespero de Téoder havia passado, e a dor pela perda de Faná foi amenizada. Ela desceu, ficando bem próxima dele.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

137


— Vem comigo — disse, apanhando-o pelo braço e saindo voando na direção do teto. — Ei! — berrou Téoder, ante a iminente e dolorosa colisão — que não aconteceu. A pedra se desfez, e só podia-se ver um túnel, com um espiral de fumaça ao seu redor. A fumaça ia do azul ao vermelho, mas a mudança era tão sutil que ele nem percebia. Estavam muito velozes, mais do que qualquer cavalo de Grabatal, livres no ar como o pégaso de Turaquê. Abruptamente, pararam. As imagens se revelavam embaçadas. Inicialmente, estava no vazio, mas logo notou que havia muitas coisas ao seu redor. E, quando tentava apalpar os objetos, atravessava-os. A moça ficou voando, no alto, e ele ouviu uma nova voz. Viu a si próprio, com uma expressão assustada, naquele corredor. — O que está fazendo, meu amor? — dizia a voz. Parecia sussurrar, mas ele tentou se lembrar, pois era como se a conhecesse. — Por que me fere pelas costas? Eu o amo; como pode fazer isso? — e tudo ficou escuro. No entanto, logo começou a clarear novamente. A titânide alada que havia o trazido até ali se aproximou, e abraçou Faná. — Não o odeies. Ele o fez porque acreditava ser necessário, e já vai se culpar por isso pelo resto de sua vida. — Agora que me diz, posso ouvir a voz da natureza ecoando por todas as paredes — replicou Faná, com uma serenidade repentina. — Sofro, não pelo que ele fez, mas por imaginar o quanto ele deve ter se martirizado para tomar essa decisão. Que ele me leve consigo, e sinta minha presença. Longe do tempo, longe deste mundo. Onde tudo existe; não começou, e nem sempre existiu — apenas existe. Téoder tentou falar alguma coisa, mas a imagem se afastou numa grande velocidade, e, por mais que ele gritasse, nem ele podia ouvir sua voz. O túnel azul e vermelho era visto em reprise, e, quando menos esperava, a jovem alada reapareceu, e apanhou-o. Ele tentava falar com ela, perguntar o que aquilo significava, mas sua voz não saía. Um clarão se fez, e, quando viu, estava deitado no jardim de sua antiga casa em Jatitã. O céu usava as estrelas como prata no vestido negro, e os Cães de Caça e a Justiça perdiam-se no meio de tantas outras. Lembrava-se daquela noite! Deitada em seu peito, estava Faná; seus cabelos alvos não deixavam que 138

ERIC MUSASHI


ele duvidasse. Enfim ela olhou para ele, e os olhos dourados diziam tudo. Não precisavam trocar palavras. Essa era a felicidade completa, o amor que viveram, e que um simples ato insano não seria capaz de macular. Sua mão esquerda acariciou o seu rosto uma vez mais, e ela só fez sentir a cada instante o toque quente da mão de seu grande amor. Suspirou, apaixonada. Eram felizes, e sempre seria assim. Não sempre, e sim eram, e pronto. Téoder não conseguia compreender tal pensamento, mas sabia que o que vivia estava além do tempo. Além do sempre. Ele desprendeu-se da visão, e cada toque era especial. Ela beijava o seu rosto, e ele prometeu uma vez mais que jamais se esqueceria do calor da sua amada, do sabor dos seus beijos, do timbre da sua voz. Estava tão feliz que adormeceu, instintivamente. Nábia observava como Téoder sorria enquanto dormia. Ela, querendo poupar o trabalho que ele teria, arrumou suas roupas na sacola, e deixou estendidas as que usaria na jornada. Pegou outra bolsa e colocou um pote com mel, adicionou algumas maçãs, e encheu o seu cantil com água. Ela parou uma vez mais, observando-o, e aí ele acordou. — Nábia...? Que horas são? — Ainda estamos na décima segunda hora da noite — replicou ela. — Logo vai amanhecer. — Oh, não. Estou atrasado! — ele se levantou rapidamente, mas ela apenas fez um sinal para que ele tivesse calma. — Não te preocupes; já arrumei tuas coisas. E então, dormiste bem? — Eu descansei. Mas fantasmas que me atormentam vieram à tona. Quando penso que eles partirão, retornam com toda força. — ela fez uma expressão de dor, como se pudesse sentir por ele, compreendê-lo, o que fez Téoder pensar em sua origem. — Se você veio mesmo das terras que os atalais tanto sonham conquistar, por que está em Porto da Vitória, na outra beirada de Grabatal? Por que justo este lugar? O que a afastou de sua família? Nábia se levantou, suspirando longamente. — Os povos têm ritos de passagem da infância para a idade adulta — disse ela, com um ar de nostalgia. Via algo que ele não podia ver; sua terra estava diante dela, a antiga vida. — O teu tem, o meu também, e assim é com as culturas do além-mar. Mas eu penso que a idade adulta

OS HERDEIROS DOS TITÃS

139


não vem numa data pré-estabelecida, ou numa cerimônia. Ela vem com a rebeldia. É quando nos damos conta de que podemos escolher, podemos discordar, e isso costuma ser acompanhado de um aprendizado. Eu, como todo mundo, tive o meu. Téoder se calou, lembrando-se da própria experiência traumática, a orgia de sangue de quando se vira como homem pela primeira vez. — Minha família é esquisita — riu ela, tentando se descontrair. — Diferente de minha irmã, eu me rebelei contra o que meu pai e minha mãe decidiram para mim. Eu duvidei, paguei para ver. E meu pai, ele disse que eu não podia lutar contra o Destino, e que não sairia de Grabatal. Eu sonhava conhecer o mundo; primeiro Atala, com todas as suas maravilhas arquitetônicas e sua história rica, em pergaminhos em Acaldã e Jatitã, e depois o além-mar. E fugi de minha mãe, quando devíamos peregrinar pelo Reino. Como ela rumava... ou melhor, ainda deve rumar a Jatitã, uma vez que recebeu o seu sinal, eu furtei seu cavalo e vim para cá. Ela se calou, revelando ter também seus demônios. — E o que houve então? — quis saber Téoder. — A estrada me revelou sua lei — disse ela, e o Béli-Mor soube do que falava. Decerto fora assaltada, e talvez violentada pelos bandoleiros, ou mesmo telapuros do interior do Poente. — Estava perdida, e tive uma revelação no templo de Suí. E percebi que quem arrisca pode ser recompensado, mas às vezes só encontra sofrimento. Mas é engraçado como o Destino traça linhas tortuosas, não? Sonhei com um grande herói num cavalo, e me deparei com você. Sem querer, fiz o que devia, e o preparei. Em Catebete, foi impossível vê-lo. E ele, sofrendo por ela, cogitou se sua dor teria fim, e ela voltaria ao colo de seus pais, arrependida. Será que podia? A mãe rumava a Jatitã. Se ele pudesse encontrá-la, será que...? Mas não; Nábia era adulta, passara por seu rito. Ela estava apta da fazer suas escolhas. Como também o próprio Téoder. Após cavalgar por cerca de um quarto de hora, já via o castelo de Sólen. Ele montava um cavalo branco e marrom, e quatro carruagens o acompanhavam, com dois homens cada uma. Eles portavam espadas longas com bainhas de fina qualidade, o que indicava que eram imanes. Um nono homem estava sobre um cavalo branco, e também parecia ser um ajudante de béli. O céu começou a ficar claro, e alaranjado no horizonte. 140

ERIC MUSASHI


— Se demorasse mais um pouco, Béli-Mor, íamos deixá-lo para trás — disse Sólen, com um sorriso de deboche nos lábios. — Cheguei na hora marcada. Só não vim mais cedo porque você disse que partiríamos ao raiar do dia. E por que vai levar tantos imanes? Vai deixar sua cidade à míngua? — Não; eu não cometeria um erro tão primário. Diferente de você, eu tenho dez imanes. Por isso partirei com esses nove, e deixarei Eeleto em meu lugar. Ele me iguala, ou até me supera, na chefia da administração. Téoder não sentia necessidade de prolongar a discussão. Respirou fundo, e falou com Sólen: — Então, se tudo está pronto, que partamos — disse, saindo com Filho dos Ventos. Enquanto andavam pelas vias, as mulheres fizeram como era com seus maridos navegadores, jogando flores em oferenda aos titãs. Poucos sabiam de fato que estavam indo para a capital para decidirem como iam enfrentar a guerra de suas vidas, de onde talvez não pudessem voltar. Ainda assim, seu gesto era de grande valia. Téoder, de pensamento distante, foi ao lado de Sólen, enquanto Namior, o moreno do cavalo branco, ia à frente. “Você tem razão, Nábia”, pensou o Béli-Mor; “quão intrincados são os traços descritos pelo Destino!”

OS HERDEIROS DOS TITÃS

141


Floresta Sem Vida I Já fazia sete dias que Arion e Luredás tinham partido rumo a Catebete. Os três primeiros foram agradáveis: apesar do clima seco e do solo poeirento, assim como quando tinham partido de Jatitã rumo a Lira dos Titãs, estavam animados, como qualquer jovem no início de uma jornada. Comeram frutas, conforme Achades orientou que fizessem, deixando a carne para quando elas se esgotassem ou começassem a se estragar. Inclusive, passaram por outros vilarejos, mas não se arriscaram a parar, temendo toparem com Escleros e Tromos. Os ventos eram frios durante a noite, e poucas nuvens obstruíam o forte sol pelo dia. As terras ao redor das cidades eram cultivadas, e havia um trabalho de irrigação característico do Centro-Sul. A infertilidade que atingia Grabatal já há bastante tempo havia feito com que se tornasse mais difícil plantar e depois colher; no entanto, a margem do rio ainda tinha um pouco de grama no chão, em blocos esparsos, e assim Valente também se alimentava sozinho, sem que Arion precisasse se preocupar com ele. A partir do quarto dia, porém, o ar começou a se tornar rarefeito. Estava mais difícil de respirar, como que estivessem escalando os mais altos montes. Até a vegetação que servia de alimento para Valente foi se acabando aos poucos, e começaram a viajar num ritmo sutilmente mais lento. Foram negligentes daí em diante, dormindo demais e cavalgando de menos. Os animais também sofriam, de modo que apenas caminhavam — não trotando, como seria normal para que atingissem o destino nos quinze dias que presumiram. O quinto dia de viagem, e sétimo de protomês, foi cheio de paradas, e provavelmente o mais demorado de todos; isso os atrasou, e eles compensaram no sexto. Ao cair da noite, tanto Valente como os dois equinos da carruagem de Luredás estavam muito cansados, e dormiram bastante, bem como os seus donos. Arion ainda podia sentir o colchão macio do castelo de Achades, e ainda via Ariádan ao seu lado, repousando com a cabeça apoiada em seu peito quando uma forte luz parecia cegá-lo. Ela vinha do leste, e ele logo viu que era despertado de um sonho pelo sol. Por sua altura, já devia ser a terceira hora. Tinham dormido demais. 142

ERIC MUSASHI


— Acorde, Luredás! — disse, agitando o amigo. — Já amanheceu o dia 9 e, pelo que vejo, há três horas! — Tem certeza...? — Luredás falou vagarosamente, enquanto ainda parecia sonhar e esfregava os olhos. Quando os abriu, viu Arion comendo com pressa uma maçã, e também o viu tirando alguns pedaços estragados com uma pequena faca. Em breve, teriam que jogar tudo fora. — É melhor acabarmos logo com estas frutas — disse Arion, ao que terminou de comer. Ele apanhou mais uma, e também jogou duas perto de Valente. — Mas... para os cavalos?! — surpreendeu-se Luredás. — É bom fazer o mesmo. Amanhã já estarão tão passadas que nem eles poderão comer. Além disso, nem sei o que daremos para os animais até chegarmos a Ancatébia, uma vez que a partir de agora, segundo os relatos de meu pai, só há vilarejos perto da Floresta Sombria, que fica na encosta das Montanhas Brancas. Isso nos desviaria demais de nosso caminho, e perderíamos muito tempo. — Ele deu uma mordida e continuou a falar, enquanto mastigava. — Nem sei como as frutas duraram tanto tempo. — Farei como diz, meu amigo — disse Luredás, depois de ponderar um pouco sobre a questão. — Mas não há motivo para termos pressa. Preciso de um banho, pois não paramos para isso já há alguns dias. Que vontade de me atirar numa banheira de Lira dos Titãs! Ele ficou imóvel por uns instantes, e Arion parou de mastigar. Não tinham falado esse nome desde que abandonaram as verdes terras dos domínios da cidade, e ele trazia boas lembranças para os dois. Também os lembrava que talvez não voltassem mais para aquele lugar abençoado. — Tudo bem, Luredás. Também me banharei no rio, afinal, o tempo já será perdido mesmo — quebrou o silêncio Arion, e, após perceber que só restavam escassas frutas, separou três para Luredás, e distribuiu o resto entre os cavalos. Despiu-se e correu para o rio, que tinha uma água cristalina. Ela era fria, e a correnteza relativamente forte. — Até que já é fundo por aqui — apontou ele, a poucos passos da margem, vendo que só ficava com o peito para fora da água. — O que é aquilo? — indagou Luredás, ao ver uma mancha escura e embaçada no horizonte oeste, margem oposta à que viajavam. Estendia-

OS HERDEIROS DOS TITÃS

143


se até onde seus olhos eram capazes de ver, e trazia um forte sentimento de desolação, como um campo com milhares de mortos após um imenso conflito. Sem glória, sem recompensa. Arion também olhou, e ficou tentando compreender do que se tratava. Lembrou-se de que algumas vezes já vira mapas de Grabatal, aqueles pergaminhos amarelados e com vários desenhos representativos de florestas, montanhas e rios, e onde pequenos esboços significavam cidades, sendo muito usados pelos viajantes e militares em campanha. Pela soledade que trazia, e juntando aos os relatos de seu pai, talvez tivesse a resposta: — Creio que é a Floresta Sem Vida. — Floresta Sem Vida?! — assustou-se Luredás. — Isso mesmo. Dizem que no passado a fauna e a flora mudaram de maneira drástica. Não se sabe por que motivo, mas o lugar se tornou sombrio, e as árvores lentamente foram morrendo. Há pouco verde, e o ar também é difícil de se respirar. Ninguém entende o porquê disso, meu amigo, mas a floresta simplesmente morreu. Depois de dizer esta última palavra, a aragem tocou os dois, fazendo com que se arrepiassem como criança após ouvir uma história de terror do malvado irmão mais velho. O frio parecia querer atravessar suas peles e arrancar seus ossos. — Faz sentido — murmurou Luredás. — Deve ser por isso que nos é mais difícil saciarmo-nos com a respiração. Arion analisou a afirmação do amigo por algum tempo, e chegou à conclusão de que talvez ele tivesse mesmo razão. — Se estiver certo, então temos duas escolhas: ou cavalgamos depressa e fugimos destas bandas, ou então diminuímos o passo, e nos poupamos. As duas são arriscadas. Se formos com rapidez, podemos nos cansar excessivamente e até provocar a morte de algum dos animais. — Luredás arregalou os olhos. — Mas se formos devagar — prosseguiu Arion — podemos chegar a Catebete tarde demais. Além disso, o que daremos para os cavalos comerem numa viagem maior da que planejamos? Uma vez mais, ficaram em silêncio. Somente o som da água correndo podia ser sentido, e, vez ou outra, o barulho dos cavalos se mexendo. Luredás saiu da água, e colocou outra roupa, que viera na carruagem. 144

ERIC MUSASHI


— Se for minha esta decisão — disse para Arion, que ainda estava na água — prefiro arriscar. Vamos tentar sair daqui o quão breve pudermos. Se for o nosso Destino chegar a Catebete, conseguiremos. — Tem razão — disse Arion. — Eu prefiro ir em frente e acreditar que encontramos esperança uma vez mais. Só temo pelas nossas montarias... — Pois não tema mais. — Luredás deu um sorriso confiante. — Eu não lhe disse nada porque estávamos sempre em boas terras, mas agora que a comida falta aos nossos cavalos, vejo que é chegada a hora: Achades foi ainda mais gentil do que percebemos, e enquanto viajávamos, encontrei isto na carruagem. — Ele então mostrou dois sacos de feno. — Impressionante! — gritou Arion, mesmo sem querer. — Isso dá para, no mínimo, cinco dias. Mas se os cavalos forem resistentes, até para sete ou oito. E aí... — Ele ia completar a resposta, mas já sabia que Luredás não precisava ouvi-la. Ficaram ambos olhando para o norte, na direção de seu destino, com animação nos rostos. Os corcéis, sentindo a nova onda de alegria, logo se ergueram. Arrumaram suas coisas com mais calma. Sabiam que sairiam de tal desolação o mais cedo possível, mas era como os momentos de paz antes do confronto se iniciar. Assim eles se sentiam, sendo pacientes enquanto podiam. Luredás logo notou algo importante: — Arion, temos carne, mas não lenha. — Eu sei. — o tom de voz de Arion era forte e seguro. — Você sabe...? — Assim como na questão da viagem, aqui também temos duas opções, Luredás, e eu já vinha pensando nisto enquanto arrumávamos nossas coisas: podemos comer a carne crua, ou então podemos atravessar o rio e ir até a Floresta Sem Vida. Lá encontraremos lenha. — Ele parou de juntar seus pertences: — E agora, você prefere arriscar também? Panteras, era o que se repetia várias vezes na mente de Luredás. Animais perigosos, com suas garras e agilidade. Além disso, aquela floresta maligna ia deixá-las mais ariscas ainda, e os dois poderiam ser a sua refeição. Mas Arion estava com ele, e tinha uma espada etérea. E ela não era uma arma qualquer: forjada por Escleros, que possuía a arte perdida de Duas Espadas de Antel, clãs famosos por lâminas que rivalizavam com as de Melcártis, que na época eram de bronze, mas deviam

OS HERDEIROS DOS TITÃS

145


ter preservado a arte pelos séculos e passado ao aço. E Arion aprendera a lutar com Téoder, o maior mestre do continente no Punho Etéreo, o mais poderoso clã de guerreiros de todos os tempos. Realmente, não havia por que temer. — Arrisquei na outra questão, e arriscarei uma vez mais. — disse, e Arion assentiu. Mas Luredás não sabia se ele concordava por confiar em suas decisões ou por saber que iam de encontro à morte de um jeito ou de outro. — Pergunto-lhe, meu amigo: por que considera tanto a minha opinião? — Eu não sei. — disse Arion com hesitação. A pergunta tinha pegado-o desprevenido. — Há algo em você que me faz crer que é mais sábio do que aparenta. Eles então partiram, e os três cavalos se esforçaram, correndo em grande velocidade. Paravam às vezes, pois os animais estavam ofegantes e também bebiam um pouco de água. Mas fizeram o trajeto exigindo o máximo de si próprios.

II Descansaram durante a noite do nono dia, mas não comeram nada, e assim também foi com os cavalos. Os dois rapazes mentiam um para o outro e também para eles próprios que não tinham fome, e que deveriam racionar a comida. No entanto, temiam ter que entrar naquele bosque que transmitia um grande medo para eles. E, como no quinto dia, avançaram menos da metade do caminho que deviam cruzar. O décimo dia de protomês amanheceu levemente nublado, e eles estavam famintos, não podendo mais aguentar: precisavam enfrentar o medo. Ainda galoparam até que chegasse a sexta hora, e o sol estava sobre suas cabeças. Pararam perto de uma das dezenas de velhas pontes, dos milênios do Império Jatitano e séculos do Reino de Atala. — Já chega! — vociferou Arion, mas sua voz saiu baixa. — Estou morrendo de fome. — Eu também. — disse Luredás. — Vamos lá buscar logo essa lenha! Arion concordou, meneando a cabeça. Antes, porém, deixaram que os cavalos se alimentassem e se recompusessem. Por mais que através do penoso caminho a floresta se aproximasse mais e mais do Rio das Sereias, ainda estava relativamente longe para que pudessem ir a pé. 146

ERIC MUSASHI


Até queriam tentar, mas levariam cerca de meia hora para que fossem e voltassem, sem contar o tempo de apanharem lenha. Depois que os animais terminaram, Luredás tirou um de seus cavalos da carruagem, e deixou o outro preso. Amarrou-o em uma pesada pedra que estava nas proximidades, e assim os dois avançaram na direção dos pontos sombrios. Conforme iam se aproximando, ficava cada vez mais difícil de inalar o ar, e se perguntavam se era possível mesmo que conseguissem. Parecia que estavam com pesados capuzes cobrindo os seus rostos, e seus braços e pernas enfraqueciam sutilmente. Os cavalos davam cada passo mais lerdo que o anterior, instintivamente. Logo ofegavam, e até a visão era prejudicada. Algumas árvores já podiam ser vistas; estavam cinzentas, e suas cascas rachadas em diversos pontos. Ao olharem, sentiam que um simples toque faria com que elas desmoronassem. Isso os alegrou, elevando sua moral, e nada poderia detê-los! Arion tocou o cabo de sua espada, e sentiu suas forças renovadas pela pedra de sevaste. Os galhos das árvores eram milhares de dedos se entrelaçando, e por mais que no passado muitos seres devessem ter passado no meio deles, agora Luredás e Arion acreditavam que nada podia sequer tocar aquilo. Estavam nus, e também não havia folhas no chão — há muito tempo nada florescia. Um frio intenso vinha do coração da floresta, o que fez o cavalo de Luredás refugar. Valente, destemido, continuou. — Está muito... difícil... respirar...! — falou Luredás, ofegante. — Tem razão — foi tudo o que Arion lhe replicou. Aprendera com o pai que quando o ar lhe faltasse, devia falar somente o necessário. Ele não tinha tentado preparar o filho para uma situação como esta, e sim para escaladas e lutas em grandes altitudes. Mas, de qualquer forma, tal conhecimento se mostrava útil nesta ocasião. Continuaram adentrando. O frio era indescritível, e talvez nem mesmo em Portos Gelados, extremo Norte, este frio se apresentasse.Tinham quase certeza de que não era algo natural. Não era uma simples floresta que morrera, e nem mero acaso haver tamanha frigidez e o ar ser tão rarefeito. Nuvens escuras impediam que a luz do sol passasse, e, por mais que fosse a sétima hora, parecia ser fim de tarde, depois do pôr-do-sol, quando as primeiras estrelas surgiam no céu. Mas nem uma estrela os aliviaria agora. — Vamos fazer isso depressa — disse Arion.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

147


Eles entraram e cruzaram por entre algumas árvores. Logo viram uma que já devia estar morta há muito mais tempo que as outras. Era bem larga, mas seus galhos estavam baixos. Não dispunham de machados, então teriam que se contentar com os galhos mesmo, pois o tronco não seria cortado por suas espadas. — Esta deve... servir! — disse Luredás. Sua voz estava mais fraca do que nunca, e ele não sabia se ofegava ou se tentava inspirar o ar, como se tivesse mergulhado por um décimo de hora. Arion nada falou, e eles começaram a pegar os galhos com rapidez. Já estava escuro como se fosse noite, pois se punham dentro dos limites da Floresta Sem Vida. Não obstante, parecia que seria fácil. Pegaram o máximo que podiam carregar, e já se preparavam para sair quando um barulho de algo rápido cruzando o ar se deu, e, não fosse a similarmente rápida esquiva de Arion, teria sido atingido no rosto. — O que foi isso? — berrou Luredás, assustado. Arion olhou ao redor. Por mais que sua visão estivesse embaçada, podia claramente ver uma pantera fitando-o com raiva.Ao lado de Luredás, havia outra. Os cavalos se agitaram, indo para fora da floresta e dando aos dois a sensação de que ficariam a pé se seguissem vivos. O filho de Téoder sacou o seu sabre. — Panteras! — alertou ele, e com isso Luredás também empunhou a sua arma. — Não sabia que elas andavam em duplas! — Não sei nada sobre elas, mas aqui são três. Cuidado! A pantera que estava próxima de Luredás saltou sobre ele, e o músico se desviou para a esquerda, surpreendendo Arion. Mas não era hora de se fazer indagações a respeito de habilidades até então ocultas; uma de suas adversárias voou no seu peito, sendo seguida pela outra, que vinha pela direita. Ele deu um forte chute frontal com a perna direita, tentando manter afastada a pantera que o atacava pela frente. A outra veio pelo lado, e ele simplesmente deu um passo adiante, fazendo com que ela acertasse o vazio. Ela voltou furiosa, e sua garra visava o pescoço de Arion. Este se curvou para trás, mas três leves cortes foram feitos, paralelos. Antes que ela terminasse o seu movimento, a mão esquerda de Arion atingiu-a na garganta. Ele não tinha um punho fechado, e sim os dedos indicador e médio esticados, um dos golpes característicos do Punho Etéreo. 148

ERIC MUSASHI


A outra, que havia recebido o chute no focinho, recuperara-se, e agora subia na árvore para tentar um ataque por cima. Grande erro! Arion não a perdera de vista um instante sequer. Enquanto ela caía, ele apenas golpeou com a espada para cima; a lâmina entrou na boca do animal, saindo por trás de sua cabeça. Ele então se livrou dela, esperando por sua parceira. No entanto, algo perturbava a sua mente. Por mais que tivesse tentado se concentrar e usar suas energias etéreas, não conseguiu. As pedras da lâmina não mais reluziam em azul transparente, como de costume. Estavam simplesmente translúcidas, opacas. Mas ele não teve mais tempo para tentar compreender o motivo daquilo estar acontecendo: a outra pantera saltou em sua direção, e ele deu um golpe cruzado, decapitando-a. — O que está acontecendo aqui, afinal? — sussurrou. Estava perdido em pensamentos; entretanto, logo se lembrou de Luredás. Virou-se para o lado, e viu o amigo encarando ferozmente a pantera remanescente. Sua espada dourada tinha sangue na lâmina de fina beleza, e o olhar do lirista era ao mesmo tempo triste e severo. Arion viu que o animal possuía um largo ferimento próximo da pata traseira direita, e ele, sentindo-se acuado, ameaçou partir. — Acabe logo com esse bicho maldito, Luredás! — gritou Arion. Mas quando viu que seu amigo nada faria, ele mesmo partiu para atacá-lo. — Se não tem coragem de fazê-lo, eu faço! — Não! — ordenou Luredás. — Deixe-a ir. — Mas... Ela tentou nos matar. — Arion não entendia, e Luredás não disse mais nada. Apenas reforçou seu pedido com uma face severa; Arion consentiu. A pantera, notando que suas aliadas haviam perecido, partiu sorrateiramente, agora ferida. Os dois juntaram os galhos com muita rapidez, e se aproximaram dos cavalos, que ainda estavam assustados — mas não fugiram. Subiram nos animas e debandaram com pressa, e só quando o sol já podia ser visto novamente, o ar já se revelava menos hostil e as pedras de sevaste estavam azul-transparentes como antes, Arion falou com Luredás: — Por que não deixou que eu matasse a pantera? — E havia algum motivo para isso? — perguntou o lirista, trazendo seriedade em sua voz. Foi só aí que Arion percebeu que a túnica do amigo estava rasgada no braço esquerdo, e ensanguentada naquela região.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

149


— Ela tentou matá-lo. E quase conseguiu. Arion apontou para o braço ferido. — É só esse o motivo? — Luredás mantinha o olhar firme, e Arion fez uma cara de interrogação. — Ela tentou me matar, e falhou em seu objetivo. Eu queria apenas me defender, e fui bem-sucedido. Por que causar uma morte? — Ele então ficou quieto; a situação havia sido muito estressante, e não queria reprovar a atitude de Arion, afinal, ele venceu duas panteras ao mesmo tempo, e se não estivesse ali, provavelmente Luredás estaria morto agora. — Não quero condenar o que fez, meu amigo, mas eu evitarei tirar uma vida enquanto puder. Nunca matei ninguém e nenhum animal de que me lembre, a não ser insetos que insistiam em me atacar. Gosto disso. Não me sinto bem quando privo alguém ou algo de viver. E Arion percebeu que, de um certo modo, Luredás tinha toda a razão. Não disseram mais nada, e voltaram para onde o terceiro cavalo e a carruagem os esperavam.

III Enquanto eles comiam, Arion ficou pensando no que Luredás havia dito. Lembrou-se de todas as mortes que causou, direta e indiretamente, desde que se revoltou contra o governo de Sevijá em Jatitã. Também se lembrou de quando pisava em baratas por prazer e de quando matava passarinhos brincando com amigos, na infância. Tivera uma vida muito movimentada no que dizia respeito a mortes causadas. A carne estava ótima, e depois esvaziaram os cantis. Luredás lavou o seu ferimento, e Arion fez um curativo, para que parasse de sangrar; logo depois o músico caiu num profundo sono, cansado por tudo aquilo. Arion aproveitou e reabasteceu os cantis, e fez todos os preparativos para que partissem quando o amigo acordasse. Já estavam aos poucos se acostumando com aquele ar — ou aquela falta de ar —, mas ainda assim queria partir logo. Enquanto Luredás dormia, Arion ficou vigiando. Temia que mais panteras aparecessem, e que elas atravessassem o rio para matá-los. O tempo passou, e nada demais se deu. Ele então apanhou a lira, que estava na carruagem, e começou a dedilhá-la. Havia aprendido a tocar com sua mãe quando ela ainda era viva, e gostava disso. Murmurou: — Até que não estou tão mal, depois de mais de três anos... 150

ERIC MUSASHI


Prosseguiu, e a melodia foi se desenvolvendo como uma música de um casal apaixonado. De fato, Faná a compôs para Téoder, ao pensar nele numa das tardes de saudade. Apesar de simples, era bastante sincera. — Não sabia que você tocava — disse Luredás, desperto. — Desculpe-me, não queria acordá-lo. — Não pare! — disse o lirista, e Arion continuou. Há muito tempo Luredás não sentia uma melodia tão humana daquele jeito, e, por mais que suas peças estivessem acima de tudo aquilo que os atalais eram capazes de produzir, a composição de Faná era admirável. Arion terminou, e então suspirou profundamente. — Desde quando você toca? — perguntou Luredás. — Já faz muito tempo que aprendi com a minha mãe. Aliás, esta música foi composta por ela. Mas isso já está no passado. Por que não toca você? — Arion estendeu a mão, querendo devolver a lira para Luredás. — Nada disso. Quero que toque mais uma. Por que nunca me disse que sabia tocar, Arion? — É que quando o ouvi tocando em Lira dos Titãs, daquele jeito que eu nunca tinha ouvido antes, percebi que eu não era nada perto de você. Pelo menos não quando o assunto é a lira.Tive vergonha de dedilhar qualquer coisa em sua presença. Luredás ia dizer algo, mas preferiu ficar em silêncio. Continuou não aceitando a lira, e Arion tocou mais uma melodia sem muita erudição, um pouco mais rápida que a anterior, e também mais feliz. Um sorriso se fez nos lábios de Luredás, sem que ele percebesse. Adorara ser o espectador, sentir-se surpreendido e tocado por uma música uma vez mais. Mas ela logo terminou, e Arion não quis tocar mais nenhuma. Os dois ficaram olhando para a sombria floresta além-rio, até que o filho de Téoder perguntasse: — Onde aprendeu a tocar desse jeito? — De que jeito? — Luredás ainda estava perdido em pensamentos, e não compreendeu o sentido da indagação. — Ah, você sabe. Essa melodia que é imprevisível como o chocar de lâminas, e sagrada e profana ao mesmo tempo. A que fez Bíades, Neara e Achades quase chorarem, junto de todos os habitantes de Lira dos Titãs e também Ariádan e a mim.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

151


— Ora, não aprendi com ninguém. A resposta seca fez com que Arion não perguntasse mais nada. Ficou ofendido por alguns instantes, e, por mais que soubesse que aquela resposta não era verdadeira, não ousou se manifestar mais. Luredás, vendo que fora grosso, concluiu que não era qualquer um que estava ao seu lado: — Eu lhe contarei a verdade, Arion. Acho que merece conhecê-la, por tudo que passamos juntos. Além do mais, talvez a compreenda. — ele bebeu um pouco d’água do cantil e fechou-o novamente. — Tudo aconteceu há quase dez anos, quando eu tinha as minhas primeiras lições de lira com o meu pai. Eu era um garoto aos nove anos, e já passara da hora de começar a aprender. Mas isso não vem ao caso. O que acontece é que, num certo dia, pouco antes do meu aniversário, eu tive um sonho: eu caminhava por planos campos; a grama era verde, pássaros cantavam, enquanto outros voavam sem se preocupar com nada. O céu, aliás, era muito azul, um azul claro. Azul aliás... — ele parou por uns instantes, olhando para a espada de Arion — ...que lembra muito o sevaste em sua lâmina. Aquilo me trazia muita calma. Felinos andavam do meu lado, mas não faziam mal algum, apenas se esfregavam nas minhas pernas. Caí ali, e fiquei deitado por um bom tempo. Enquanto ele falava,Arion não prestava atenção em mais nada.Tentava visualizar a cena, vislumbrar uma espécie de paraíso. Para ele, como pareceria? Um lar no alto da montanha, com Téoder e Faná? Mas isso já se fora, e ele desistiu, continuando ouvindo o relato: — Então, perto de mim — disse o músico — estava uma linda mulher. Ela devia ter cerca de quinze anos, pois tinha o tamanho e as expressões que a Ariádan tem agora, apesar de sua voz soar com mais maturidade e suas palavras serem mais profundas. Sua pele era alvo, bem como seus cabelos, reluzindo a luz de prata da lua. Seus olhos eram prateados, e ela possuía lábios sem-igual, e um sorriso muito meigo e carinhoso. “Olá, Luredás”, ela me disse. Eu não compreendia como ela sabia o meu nome, e não pude responder nada, assustado.“Muitos dizem que tens uma grande tarefa a desempenhar”, ela continuou. “Não sei se estão certos, mas meu papel é te mostrar todas as maravilhas”. Então segurou o meu braço. Sua mão era quente, e muito seguro eu me senti. Luredás parou, como se quisesse ver a cena uma vez mais. — Ela se aproximou e beijou minha testa:“Devo te mostrar aquilo que tu deves ver. Vem comigo”, foram suas últimas palavras, e só então percebi que ela tinha 152

ERIC MUSASHI


duas asas nas costas, com penas brancas. Começamos a voar a grande velocidade, e eu não podia ver mais nada, senão imagens distorcidas ao meu redor. Fechei os olhos, pois estava sentindo náuseas, e quando vi, estava sentado sobre a grama. Ela não estava mais ali, e comecei a procurá-la, desesperado. Arion também bebeu um pouco da água de seu cantil, pois percebeu que se excitava com a história, e sua boca estava seca. O lirista se levantou, e revivia todos os momentos do seu sonho enquanto relatava aquele fato impressionante. — Logo notei que não a veria mais. Então algo tocou meus ouvidos. Era uma melodia mágica, como eu nunca tinha ouvido igual. Parecia que todas as coisas bonitas do mundo estavam me tocando, e os Cinco Elementos queriam falar comigo. Olhei ao redor, e vi que estava num lugar impressionante. Os raios do sol da tarde passavam por entre as árvores que me cercavam, e várias flores permeavam no chão. Rouxinóis não saíam dali de perto, e cantavam. Dei alguns passos, e então vi uma mulher de formosura acima das coisas do mundo dedilhando a sua lira. Ela sorriu para mim, e quando tentei dizer algo para ela, tudo se desfez. Abri os olhos, e estava na minha cama novamente. Luredás ficou quieto.Arion até quis se levantar para ampará-lo, mas o primeiro, com a mão direita, fez um sinal para que ele ficasse ali, sentado. — Desde então tentei chegar o mais próximo possível daquele som, mas minhas memórias não são tão boas assim, e não consegui até hoje. — E por que decidiu se tornar um rebelde, Luredás? — perguntou Arion, um bom tempo depois. — Não sei. Algo me dizia que tudo aquilo não era certo, e que você e Rassuí podiam mudar o panorama. Eu estava errado, mas sinto que talvez um dia eu ainda reencontre aquela mulher, e que veja os tigres brancos, e o céu azulado como não há em outro lugar. Talvez ela tenha asas mesmo, e me leve novamente para onde eu tenho certeza que não existe mais. Então ouvirei aquela melodia todos os dias, até que eu morra. Dizem que os tuatas viviam em florestas, logo após a época dos titãs — sorriu ele, maravilhado. — Acho que vislumbrei o início, puro e mágico. Arion sentiu-se infantil ante a maturidade de Luredás. Além de ter sobrevivido desde a saída de Jatitã até aqui graças aos amigos que ele havia feito, também percebia que o seu amigo músico tinha ideias muito mais adultas e evoluídas que as dele.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

153


— E você, Arion? — soou a voz de Luredás. — Hein? A pergunta repentina tirou Arion do mundo dos pensamentos, e o fez falar qualquer coisa, sem que percebesse. — E você? — repetiu. — Qual é o seu motivo para se rebelar contra o béli de Jatitã? Arion não sabia nem por onde começar. Aliás, não sabia nem o que realmente queria contar para Luredás, e o que não queria. Mas o primeiro falou a verdade para ele, que viu que seria injusto se omitisse fatos de sua história também. Ia contá-la. Um relato que jamais foi contado para ninguém, e do qual Rassuí e Ariádan só conheciam alguns fatos perdidos, que presenciaram. — Eu lhe direi. — Arion puxou Luredás para baixo, pois se sentia melhor para falar enquanto os dois estivessem sentados. — Não contarei tantos detalhes como você, pois a minha história não é gostosa de se ouvir. Como já sabe, meu pai é Téoder, o Béli-Mor. Ele conheceu minha mãe em Catebete, como seria de se esperar. Mas quando ela ficou grávida, os dois concordaram que aquele não era um bom lugar para uma criança crescer, então meu pai mandou que construíssem uma casa em Jatitã, onde ele morou no passado. Lá, minha mãe e eu vivemos por quinze anos, e meu pai sempre vinha nos visitar uma ou duas vezes a cada Dia dos Titãs. Eu não possuía a melhor vida que um filho podia ter, pois meu pai estava sempre ausente, mas eu era feliz. E estava em paz até que, num certo dia, quando voltei para casa depois de uma festa em que havia ido com Rassuí, não encontrei minha mãe ali. Procurei-a por todos os cantos, mas só pude achar um bilhete, que tinha a caligrafia do meu pai. Os seus olhos se encheram de lágrimas, e ele hesitou por um momento. — “Sua mãe foi a Catebete, pois era desejo de nossa Rainha e Deusa conhecê-la, filho meu. Aguarde, e logo voltaremos. Deixei algumas ordens de pagamento para que possa se alimentar nesses dias.” Isso era tudo que o pergaminho dizia. E eu fiz o que ele mandava. Esperei, mas três meses se passaram, e não tive nenhuma notícia. Já estava me preparando para partir para a capital quando recebi uma visita do meu pai. Ele estava com uma aparência muito sofrida, a barba havia crescido e também tinha olheiras. Ao me ver, lacrimejou.“Onde está Faná, minha mãe?”, eu perguntei.“Temos que conversar, meu filho”, disse ele. 154

ERIC MUSASHI


— Contou-me muitas histórias — prosseguiu Arion —, mas se negava a falar qualquer coisa sobre minha mãe. Até que ele disse “Eu a matei!”, e depois me envolveu com muita força, começando a chorar. — Arion também pranteava e ofegava neste momento, com dificuldade para falar. — “Perdoe-me, por favor”, ele dizia sem parar.“Foi uma ordem da Deusa. Eu não sei por que ela quis isso, mas o que eu podia fazer?” Naquele momento, afastei-me dele, e pedi que fosse embora. Ele ainda tentou me fazer mudar de opinião, e discutimos. Não quis mais ouvi-lo. — Arion parou mais uma vez, e limpou as lágrimas do rosto, em seguida bebendo um pouco de água. — Veio me ver outras vezes, mas o evitei. Ele deixava joias em casa, no entanto, não toquei em nenhuma delas. Comi frutas do campo, dormi nas casas dos amigos. Consegui viver sem a ajuda dele. Então, quando Sevijá matou Verjar, juntei-me ao meu amigo e tentei atiçar o povo contra ele. Não tinha mais vontade de viver, e queria lutar contra qualquer tipo de injustiça. — É muito triste a sua história, Arion... — Luredás ponderou. — Mas acho que deveria perdoar seu pai. Ele não teve escolha. Aliás, creio que fará isso, não é? É por isso que estamos indo até Catebete? Diga-me, meu amigo! — Não! — Arion gritou e se soergueu. — Não se meta nisso, está entendendo?! — Ele apontava o dedo para Luredás, e seus olhos traziam um azul que lembrava agitadas ondas do mar quando fortes ventos se aproximavam. — Isso diz respeito apenas a mim! E sobre nossa ida até Catebete, só irei porque meu pai me mandou uma carta dizendo que eu poderia pedir a ajuda dele. Dói muito fazer isso, mas não faço por mim. É por Achades, Ariádan e por você. Estou cansado de conflitos. Luredás ficou em silêncio, pois sabia que se tentasse discutir apenas deixaria Arion mais nervoso. Esperou que o amigo se sentasse novamente e resolveu mudar de assunto, para descontrair. — Diga-me, Arion: por que não consegue corresponder ao amor de Ariádan? Era uma pergunta um tanto curiosa: como Luredás tinha certeza de que Arion não podia corresponder a esse amor? Mas este resolveu tentar explicar-se, expondo suas emoções: — Às vezes nossos sentimentos nos pregam peças, Luredás. Mas, depois de refletir muito sobre a questão, acho que encontrei a resposta. Eu não sei o porquê disso acontecer, mas eu não consigo amá-la de uma forma diferente da qual se ama um amigo. Fomos criados juntos, e sempre

OS HERDEIROS DOS TITÃS

155


foi a irmã que nunca tive. De repente a vejo crescida, e desejos despertam em mim. Para piorar, ela se declara, dizendo que me ama, e que queria me entregar sua primeira noite. Envolvi-me numa história muito complicada. — Você teve uma escolha. Acha que acertou? — Não. Eu errei. — Arion abaixou a cabeça. — Errar é uma das piores coisas da vida... — Não concordo — disse Luredás, pegando seu amigo de surpresa. — Veja bem: somente depois de errarmos é que percebemos que a nossa atitude foi um erro. E, com isso, não cometemos mais a falha de outrora. É assim que penso. — Presumo que esteja certo — disse Arion. — Mas não há como voltar atrás depois do desacerto. E mesmo que não cometamos o erro nunca mais, o inicial já foi executado;Ariádan me ama, e talvez tenha esperanças para sempre quanto ao meu amor. Eu não devia ter me enganado desta forma, confundindo os sentimentos. — É muito bonita a sua busca pelo amor verdadeiro; entretanto, é também surpreendente que alguém tão novo tenha tal maturidade. O que o fez começar a pensar assim? — Luredás se mostrava curioso sobre o que se passava dentro da cabeça de Arion. — A história de Faná e Téoder. Jamais vi um casal tão harmonioso em toda Grabatal. Contudo, acabou daquela forma. Eu quero não cometer o erro que meu pai cometeu, e não permitirei que nada me prive de viver o meu amor. Ninguém se colocará entre nós, pois nosso amor será forte para aguentar tudo. Nem mesmo essa Rainha que dizem que é uma Deusa. — Agora senti pena de você. Que o Destino queira que você encontre o seu amor, e eu torço por você, mas... nenhum ser humano tem forças para impedir que algo se coloque entre ele e seu amor. Nesta vida, tudo passa, e um dia você e o seu amor também vão morrer. Nada vai privá-lo de viver o seu amor, mas você tem que vivê-lo sempre pensando naquele instante. Eu vejo que não foi por acaso que teve a sua primeira noite com Ariádan. Por mais que a rejeite futuramente, ela jamais vai se esquecer. Você ainda não viveu o seu amor, mas ela já viveu o dela. — Não sei se está certo, Luredás. Mas eu morreria no lugar de meu amor caso ela estivesse ameaçada. Se estivesse no lugar de Téoder, teria matado Quetabel, mesmo que fosse para morrer na mão de seus homens logo em seguida. 156

ERIC MUSASHI


— Em primeiro lugar, você não estará o tempo todo protegendo o seu amor. E depois, não julgue o seu pai. O tormento pelo qual ele passou, e pelo qual passa ainda hoje, é algo que eu não desejaria para ninguém. Mas não quero discutir com você. Só quero que não se esqueça do meu conselho: viva intensamente o seu amor, pois, de uma forma ou de outra, quando chegar a hora, não poderá impedir que seja privado dele. Silêncio. — Onde aprendeu a lutar, Luredás? — questionou Arion, tentando deixar o motivo da discórdia para trás também. — Com meu pai.Além de músico, ele também conhecia algumas técnicas, pois o pai dele havia sido o béli de Jatitã no passado. Mas eu sei pouca coisa. — Você luta bem. Por que não falou nada antes? Teria evitado a minha constante preocupação durante a luta com as panteras. — Quando vi você lutar naquela taverna, percebi o abismo que nos separa. Então fiquei acanhado. — Arion achou que ele estava sendo apenas modesto, mas Luredás na verdade queria dizer muito mais com aquilo. — Ia dizer isso para você quando me falou sobre ter vergonha de tocar na minha presença, mas eis aqui o momento oportuno: nesta vida, cada um tem a sua habilidade. Realmente, há aqueles que se destacam, não tendo uma vida comum. Mas ainda assim não há ninguém melhor ou pior, ninguém certo ou errado. Somos todos diferentes. Talvez eu seja muito superior a você na lira, como diz, mas você inverte a situação quando o assunto é a espada. Não se diminua, meu amigo. O sol se punha, e os dois foram encher os cantis com água. Conversaram mais, e comeram mais um pouco — afinal, tiveram um dia bem cansativo. Como Luredás dormiu durante o dia, era natural que ele ficasse acordado enquanto Arion se recompunha. Os dois ainda temiam novos ataques, porém, como já havia sido uma vez, a noite passou lenta e calma. Logo Luredás dormia também, tranquilo.

IV No onze de protomês, eles cavalgaram o dia todo, apenas com uma pausa, e, agora que conheciam melhor um ao outro, sentiam como se fossem velhos amigos, bem como eram de Rassuí, comum aos dois.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

157


Durante todo o dia, parecia que a Floresta Sem Vida estava ficando mais perto do rio, aos poucos. Se não estivessem em movimento, poderiam jurar que as árvores andavam — mas sabiam que árvores não podiam se locomover; além do mais, aquelas árvores estavam mortas. Não obstante, não podiam deixar de notar que quanto mais iam para o norte, mais a floresta ficava próxima. Depois de uma noite tranquila, seguiram viagem no dia 12 do mês, e décimo dia de jornada. Novamente, foi sem eventos notáveis, apesar de o ar se tornar mais difícil de se respirar que antes, e, sem perceber, diminuíam gradativamente a velocidade — estando já quase a um terço da de trote. Além disso, Arion tinha uma estranha sensação de que estavam sendo seguidos... O novo dia se revelou com um céu um tanto cinzento, e a luz do sol ainda podia tocá-los, mas estava enfraquecida. Arion tinha a sensação de que era mais fácil roubar a espada de Escleros do que inalar o ar com tranquilidade, e as árvores mortas jogavam seus galhos por sobre o rio, como que, a um mero movimento, pudessem agarrar Arion e Luredás, na outra margem, tão distante. Não tinham mais dúvidas: neste ponto, bastava atravessar as águas claras e dar poucos passos, e já estariam nos domínios da Floresta Sem Vida. Mas que águas claras?! O rio estava diferente, e o seu cristalino agora era pardo e sombrio, e uma neblina não permitia que o chão fosse visto com clareza; ventos gelados se mostravam a todo momento, parecendo lobos uivando. — Não acho que seja bom pararmos hoje, Luredás — disse Arion. — Quero sair logo deste lugar. — Se não dependêssemos da água do rio, tanto para bebermos como para nos banharmos, poderíamos nos afastar um pouco. Mas não temos muita opção. — Luredás olhou para a floresta, mas logo desviou o olhar. Ela lhe inspirava pavor. — Talvez não esteja longe do seu fim — disse Arion, buscando a colina que tinham adiante. — Além da elevação a floresta maldita deve acabar! — Ele falou com uma voz alta, e um forte e rumoroso vento se deu: a floresta não devia ter gostado do insulto. — Arion, o que é aquilo? — indagou Luredás, apontando para três vultos negros que eram vistos com dificuldade do outro lado do rio. 158

ERIC MUSASHI


— Panteras! — bradou Arion. Só então se lembrou do sevaste, já que estavam tão próximos do Nada novamente, e as pedras se mostravam todas transparentes, como da outra vez. Ele rangeu os dentes e apenas acenou para Luredás para que fugissem. Inicialmente, não tentaram se apressar tanto, pois o rio era uma barreira que os protegia. Até onde sabiam, panteras não ousariam pular na água, mesmo que fosse para pegar a carne jovem e suculenta. Mas, contra tudo, logo elas saltaram — sem a destreza dos mergulhadores do litoral, mas sedentas e famintas. Uma a uma, foram nadando, inicialmente meio desengonçadas, e depois já com certa desenvoltura, até o outro lado. Justamente quando elas estavam chegando um risco preto passou perto de Luredás, e outras duas vinham pelo sudeste, além de parecer haverem mais ainda; mesmo que a lâmina de Arion estivesse com poder total, eles não seriam capazes de sobrepujá-las. Luredás nem esperou Arion acenar desta vez; bateu nos cavalos e eles partiram como se estivessem fugindo do fogo. A cada instante as inimigas eram mais ameaçadoras, e Arion não sabia se uma delas podia ser mais rápida que um cavalo; todavia, provavelmente elas já estavam acostumadas com aquela falta de ar da floresta morta. Conforme subiam a colina, o sol se tornava mais forte, e Arion sentiu que talvez tivessem alguma chance de escapar. Um vulto rasgou o ar ameaçadoramente na frente de Valente, mirando o seu pescoço — mas errando —, e Luredás, trepidante, sabia que a cada segundo as rodas de sua carruagem podiam se soltar, e aí então ele estaria à mercê dos felinos furiosos. Mas era mesmo impressionante que solitárias panteras houvessem se unido para vencer os problemas que o seu novo habitat lhes impunha. Arion alcançou o ponto mais alto, e então veria o que estava do outro lado da colina. Luredás, que se aproximava, esperava que ele se virasse e gargalhasse, mostrando que ali acabava a floresta, mas o tuata de olhos azuis nem ameaçou dizer nada. O músico logo o alcançou, e pôde ver o que vinha adiante: ao invés de acabar, a floresta estava agora margeando o leito de trevas. Nuvens não mais permitiam que o sol fosse visto nem como um arco fraco de luz, e agora parecia ser início de noite. O solo era cinzento do lado da floresta, e arenoso na margem direita.Atiravam-se num abismo, e não podiam recuar. — Então que seja! — gritou Arion, e se foi com Valente.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

159


Luredás nada disse, mas o acompanhou. Ainda conseguiram fugir por cerca de um quarto de hora, pois as sombras quadrúpedes ficaram levemente alteradas e cansadas; uma fração do que acobertava os fugitivos. Os cavalos se mostraram mais resistentes do que pareciam ser, porém, a sua exaustão era inevitável. Os dois jatitanos e seus três animais foram cercados, não havendo mais como escapar. Eram fitados por muita raiva. — Se tem algum ás na manga, por favor mostre agora, Arion, filho de Téoder! — Luredás enfatizou o nome do pai de Arion, que era famoso por ter derrotado vários lobos sozinho. — Se está se referindo ao famoso episódio do Vale, saiba que não sou nem metade do guerreiro que meu pai é, e duvido que a espada dele estivesse com seus poderes inutilizados na ocasião. — Arion viu que Luredás se desapontou com a resposta. — Mas saque a sua lâmina: talvez o Destino tenha algo reservado para nós! As panteras pareciam ser mais inteligentes do que eles imaginavam, e ficaram brincando; gostavam de suas expressões crivadas de medo. Andaram em círculos em volta dos dois, e os cavalos, inquietos, tentavam escapar a cada instante, sendo impedidos pelos rugidos e golpes no ar. Enfim uma saltou sobre Valente — não eram tão espertas ao ponto de tentarem deixar os dois sem condução, mas os equinos eram maiores, possuindo, portanto, mais carne — e Arion a cortou ao meio com a lâmina. Ela caiu imóvel no chão, e as outras ficaram muito mais agitadas. Já estavam prontas para atacarem todas juntas quando... — Mas o que é isso? — perguntou Arion para Luredás. — O chão está... tremendo! — Não compreendo — replicou Luredás, enquanto ainda ofegava. E o abalo sísmico se deu com violência, com ninguém conseguindo se equilibrar. As panteras começaram a cair umas por cima das outras, e Arion apenas fitou Luredás, que entendeu a mensagem. Aproveitando o momento, saíram em disparada, e não foram seguidos. Depois de se distanciarem muito das predadoras, prestaram melhor atenção no ambiente que os cercava: o chão ainda tremia, mas agora de forma mais sutil — apesar de não ser menos ameaçadora — e o céu estava escuro e nublado. Relâmpagos forçosamente eram vistos, e trovões, ouvidos. As águas, agitadas, jogavam-se para fora de seu 160

ERIC MUSASHI


leito. Muitos galhos caíam das árvores, e o som irritante de madeira velha se quebrando era constantemente ouvido, como que houvesse guerra na natureza. — O que está acontecendo? — vociferou Arion, pois muitos barulhos se condensavam. — Eu não sei! — Luredás ainda estava descontrolado; muito mais que Arion e os cavalos, talvez. — Jamais presenciei tremores de terra. Seria algum elemento em ação? — Se for, só pode ser Agar! — gritou Arion. — Por favor, Vaiú, ajudeme! — Ele, assim como sua mãe, tinha afeição pelo Elemento Ar, e agora implorava por socorro. Mas, sendo Vaiú ou não, um forte vento se fez, tão forte que quase derrubou os cavalos. Mais um relâmpago e um trovão se deram, e a chuva forte começou a cair. Forte e gelada. — Vamos embora daqui! — foram as últimas palavras de Arion. Saíram desesperados, e, quanto mais corriam, mais o ar lhes faltava. O pior é que a floresta parecia não estar nunca perto do fim. Os raios se tornavam mais assustadores a cada nova aparição, e os cinco já estavam encharcados. O chão se enlameou, e o leito do rio aumentou sutilmente. O ofegar dos equinos era ouvido, ainda sob todo o som exorbitante da tempestade. De repente, o solo trepidou mais uma vez, e agora com grande força, derrubando Valente e Arion. Este deu um grito de dor, pois o cavalo caiu sobre a sua perna esquerda. Os animais de Luredás brecaram, confusos, e se apoiaram um no outro. — Arion, você está bem? — berrou Luredás, e sua voz saiu aguda e trêmula, tentando vencer os sons de tons graves e eminentes. Arion nada respondeu, e Valente ficou de pé. O tremor de terra diminuiu novamente, mas ainda estava acontecendo. Luredás olhou para o lado, e viu que várias árvores haviam caído no chão. Ele desceu de sua carruagem e ajudou Arion a montar novamente.A túnica de Arion tinha muito sangue na parte que cobria suas pernas; o ferimento da perna esquerda abrira de novo! — Arion, é melhor você ir sobre a carruagem! — Luredás tentou dizer, gesticulando. — Eu vou montado em Valente! — Não! — protestou Arion, soerguendo-se, e, mesmo que estivesse sentindo muita dor naquela perna, saltou no lombo de Valente. Seus braços e pernas estavam fracos e trêmulos, mas tinha que continuar.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

161


Luredás, fazendo um grande esforço, voltou para a carruagem, e os dois prosseguiram correndo no que parecia ser o fim do mundo. Meia hora já se passara desde que a ameaça sombria ficou perdida ante a companheira morta e a insegurança do chão, sempre tão acolhedor, mas agora completamente irado. A terra não tremia mais; contudo, tanto os tuatas como as montarias estavam exaustos. O ar ainda era rarefeito, e a chuva caía copiosamente sobre suas cabeças. A roupa de Arion já estava rosada na parte de baixo, mas ele parecia não ligar. — Luredás, onde será que isto acaba? Não houve resposta. — Luredás?! — Arion buscou o amigo, e viu que ele caíra sobre algum pacote, por sono — ou desmaiado mesmo. Seus dois cavalos se arrastavam, e pararam. Arion olhou para frente, e sua visão não alcançava o fim da desolação maligna. Tudo começou a girar e ficar escuro, e ele tombou sobre a crina do cavalo. Valente, agora sem um mestre, não fez mais nada. Também estava muito fraco, e se abaixou — mas não queria dormir. A precipitação lentamente foi diminuindo, até que parou. O Rio das Sereias já estava mais calmo, e os corações dos equinos próximos dos seus ritmos naturais de batimentos.Valente não estava com seus sentidos fortes como antes, mas foi capaz de ver uma figura humana se aproximando; uma mulher, não que ele se importasse em distinguir isso. — Tu és corajoso, animal — disse ela, acariciando sua face, e ele não sentiu hostilidade alguma. — Agora vem comigo; este lugar não é seguro para ninguém. Eles partiram, e não seria uma jornada tão longa assim.

162

ERIC MUSASHI


Ortes e seus enigmas I “Acorda, filho de Téoder”, soava a doce voz. Arion olhava para os lados, e via verdes campos, pássaros voando e cantando. Por mais que procurasse, não encontrava aquela que falava com ele. “Acorda, antes que seja tarde demais”, ela continuava. “Abre os olhos”. Ele viu tudo se condensar, e então despertou. Estava numa cama de colchão macio e confortável. As paredes ao redor eram de bambus, como as de uma morada erigida apressadamente, e havia uma janela à direita que dava para o norte. Ao seu lado, na cama, repousava Luredás, com uma aparência exausta, apesar do sono tranquilo. Havia também almofadas no chão, num cômodo ao lado, e uma mesa. Eram só esses dois aposentos, e uma porta de madeira que estava fechada. Ele foi até lá. Ao abri-la, viu que havia um rústico jardim ao redor, e também uma horta. Batatas e beterrabas eram plantadas ali, conforme podia deduzir pelas folhas. O céu estava limpo e bem claro, contrastando com os dias anteriores, na viagem. O Rio das Sereias corria na sua frente, profundo mas sereno, como devia ser. — Onde eu vim parar...? — Que bom que acordaste, meu jovem — soou uma voz ao seu lado. Ele olhou e viu uma mulher com olhos e cabelos negros, e que, mesmo aparentando ter mais de quarenta anos, ainda se revelava tão atraente quanto uma jovem jatitana. — Creio que tenhas muitas perguntas a fazer, rapaz. — Quem é você? Acho que esta é a mais óbvia para ser a primeira pergunta. Arion falava com desenvoltura, ainda que estivesse diante de uma desconhecida. — Tens razão. Chamo-me Ortes. Não obstante, antes de fazeres qualquer questionamento, tu já deves ter percebido que o céu está claro, o sol cintila e o ar a ser respirado é pleno. — só depois que ela disse foi que ele percebeu que a tribulação havia passado. — Oh, não tinhas te preocupado com isso ainda?

OS HERDEIROS DOS TITÃS

163


— Também não precisa ironizar. Por tudo que passei, é natural que... — só então se lembrou: como tinha ido parar neste lugar? — Aliás, onde estou? — Como podes ver, estás na margem do Rio das Sereias, ainda no teu caminho. E também, como deves supor, já atravessaste os limites da Floresta Sem Vida, e estás mais próximo do teu destino.Aqui é minha casa. — Você parece saber mais do que devia. — Arion não gostava nada desses joguinhos. — Só queria que me explicasse como pode conhecer o meu destino. — Os traços que deixastes no chão apontavam de que viajeis para o norte, e foi como deduzi. Mas te digo: deverias ser mais gentil comigo; afinal, salvei a tua vida, e a do teu amigo também. — Então vai me dizer que foi você que fez a terra tremer? Não sabia que coisas assim eram possíveis. Por acaso é amiga dos dragões? — Nem mesmo um dragão é capaz de fazer isso. Infelizmente nem eu sei por que isso aconteceu. Mas se não fosse o terremoto, agora já estarias morto, com pedaços espalhados nos estômagos daquelas panteras. Tu cairias se continuasse ali. — Então tenho que agradecer — enfim, dando-se por vencido, agradeceu Arion. — Mas onde estão nossos cavalos? — Não me trates como uma ladra. Por que és tão desconfiado? Serei eu a primeira que te ajuda em tua jornada? Duvido que vós ambos tenhais vindo pela estrada perigosa sem qualquer auxílio. As caravanas, bem maiores, por vezes falham. — Outros ajudaram meus amigos, sim. Mas nenhum desconhecido costuma me ajudar. Por isso sou desconfiado; devo me precaver. Já passei por muitos perigos, e tudo de novo que aparece em meu caminho pode ser mais um. Ela fez uma triste expressão. Em seguida tirou uma maçã de dentro da roupa e jogou para Arion. — Come. E depois, se quiseres, podes te banhar no rio. Eu lavei tuas roupas, e logo vão secar. — só então Arion se deu conta de que estava com uma leve e túnica de dormir. — Depois conversaremos melhor. Ele fez o que ela mandou. A maçã estava deliciosa, e depois que a comeu, Arion sentiu uma enorme sede. Foi até o rio e a saciou. Viu que suas roupas estavam secas, pois já devia ser a sétima ou oitava hora do 164

ERIC MUSASHI


dia, e o sol já havia feito mais da metade da sua jornada. Tirou a túnica e se banhou. O banho foi muito relaxante, e depois concluiu que não havia com o que se preocupar. Colocou a túnica que Ortes lavara e foi procurá-la dentro da casa. E lá estava ela, cuidando do ferimento no braço de Luredás. Havia também uma pequena fogueira, e um líquido era aquecido num recipiente de ferro, com um adocicado aroma saindo dali de dentro. Luredás se mexia, dormindo, enquanto ela passava um pano molhado no seu braço. — O que desejas, Arion? — indagou, sem se virar para trás. — Como me percebeu aqui? Ele estava embaraçado. Ela apenas olhou para trás e sorriu, e então voltou a cuidar de Luredás. — Eu quero me desculpar — disse Arion. — Eu estava muito alterado, ainda mais depois de tudo que passei nos últimos dias. Você estava certa; eu precisava me alimentar e tomar um bom banho. — Tudo bem. Desculpo-te. — O quê?! É tão simples assim? — As pessoas gostam de complicar as coisas, filho de Téoder. É muito simples desculpar alguém, mesmo que esta pessoa não queira ser desculpada. Enquanto tu não a perdoas, quem sofre é apenas tu. Ele ficou pensando no que ela havia dito, e só então percebeu que ela falara “filho de Téoder”. Como ela podia saber? Lembrou-se também de seu sonho, e notou que as duas vozes eram parecidas. — Foi você que tentou me acordar algum tempo atrás? Como sabe que meu pai se chama Téoder? — Acalma-te, meu jovem. Por favor, uma pergunta de cada vez. — Então me diga: como sabe que meu pai se chama Téoder? — Interessante. Desististe da primeira pergunta... Às vezes, filho de Téoder, acontecem coisas que não conseguimos explicar. Ora são boas, ora ruins. Quando são boas, não queremos procurar explicação, pois estamos felizes. E quando são ruins, praguejamos contra o Destino e tentamos descobrir o motivo para tudo o que aconteceu. Vê como é bom que eu saiba de tudo isso, e que esteja aqui para te ajudar e te aconselhar — completou ela, e se foi.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

165


Arion ficou tentando entender a mensagem, mas desistiu depois de algum tempo, e bufou. Sentou-se na cama, ao lado de Luredás, que ainda dormia. Ficou olhando pela janela, e não conseguia compreender suas palavras; jogou o travesseiro contra a parede, descontrolado.

II Já era noite alta quando Luredás acordou. A imagem embaçada que via aos poucos foi se focando, e então percebeu que estava sob um teto de sapé. Olhou para o lado, e viu Arion sentado, ainda acordado e imerso em indagações, com a pouca luz de uma vela impregnando-o de eminência. Sentiu o braço esquerdo ainda doendo, e, ao se preocupar com ele notou que havia novos curativos. — Arion, que casa é esta? — Hein? — Arion se assustou, virando-se para o amigo. — Ah, sim. Fomos salvos por uma mulher que vive na beira do rio, sabe-se lá como. Ela se chama Ortes. Uma mulher muito estranha, por sinal. — Costumamos chamar de estranho o que é diferente. Luredás riu, e ainda coçava a cabeça. — Que seja. Aliás, lá vem ela... Então, como predisse Arion, Ortes adentrou no recinto. — Ah, já acordaste! — Sorridente, ela se aproximou de Luredás, trazendo um prato com batatas cozidas, e também uma bebida num copo de barro. Ela lhe deu o copo: — Bebe tudo, está bem? — O que é isso? — É um chá quente. Deixar-te-á reconfortado e também ajudará a tua febre passar. — Estou com febre?! — perguntou Luredás, atemorizado. — Não te alarmes — ela acariciou sua face. — É por causa do ferimento, mas vai passar. Só faz o que eu digo. — Você não é atalai, não? Não por sua aparência — tentou se corrigir Arion —, mas por dar a ele uma infusão. — Nunca bebeste uma? — sorriu ela. — Não. — Então devias. É saboroso. 166

ERIC MUSASHI


Depois de falar, Ortes se levantou e colocou mais um pouco num outro copo, em seguida voltando e entregando-o para Arion: — Garanto que irás gostar muito. Ele bebeu, e não havia do que reclamar. — Devo admitir que tem razão. Também estou com fome — continuou —; será que tem algo para eu comer? — Ele pensou um pouco, e se lembrou da carne que haviam trazido. — Aliás, se não tiver, trouxemos um pouco de... — O que quer que tenhais trazido, é para vossa viagem. Não deveis vos preocupar com comida enquanto estiverdes aqui. Isso é, se não vos importardes em comer maçãs, beterrabas e batatas. — Ela riu após dizer isso, sendo acompanhada pelos dois. Um pouco mais tarde, já comiam com animação. Arion observava como Luredás se dava bem com Ortes, e ele não fazia muitas perguntas. Sempre confiava no que Luredás achava das pessoas, e logo também se enturmava com eles. Já era tarde da noite quando Ortes os chamou até lá fora. Uma brisa refrescava o ambiente, e o céu estava sem nuvens, como um manto azul escuro estendido. As estrelas chamuscavam com grande força, mesmo estando numa noite de primavera — ou verão, pois estavam na transição das estações. Nenhum tipo de som atrapalhava a paz do lugar, com exceção do rio correndo, e também de folhas, eventualmente agitadas pelo vento. Eles se aproximaram, e Ortes mantinha um olhar feliz, que ao mesmo tempo trazia seriedade. Ela convidou os dois a se sentarem sobre a grama, à sua frente. Ela parecia estar pensando em como começar a falar o que queria. — Creio que vós deveis ter muitas perguntas afligindo os vossos corações — disse. — Provavelmente eu não terei respostas para todas, mas no que puder ajudar-vos, ajudarei. Luredás não estava apreendendo nada daquilo, mas Arion, que já conversara com ela uma vez, resolveu fazer um questionamento: — Então me diga: o que quer conosco? — Arion! — repreendeu Luredás, pela pergunta tão inoportuna.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

167


— Não, Luredás. Deixa-o. É uma boa pergunta mesmo. Vejo que farejas longe, filho de Téoder... Realmente, não vos salvei à toa, e também não foi um simples acaso acrescido da minha bondade. Eu imaginei que estaríeis ali, e por isso vos ajudei. — Você fala muito, mas não me responde. — Sê mais paciente. Não sou eu quem quer algo convosco. O Destino sempre traça objetivos para cada um, não? — Ela se voltou para as estrelas. — A noite vai cair, e os sinais são claros. No entanto, os atalais insistem em não percebê-los. O sol está se pondo, e a estrela já apareceu no céu, mostrando que a noite vai atingi-los. Que não há como escapar dela, isso já é claro. Mas talvez ainda haja esperança. Talvez possam ser salvos. Arion e Luredás se olharam; eram como crianças ouvindo conversa de adulto. — Que estrela é essa de que você fala, minha senhora? — perguntou Luredás. — E se não há como escapar, como podem ser salvos? — Há muita coisa que precisais aprender, meus jovens. Mas a vossa jornada ainda está no início, portanto, não vos desespereis. Seguireis vossos caminhos, e talvez consigais chegar ao vosso destino. — Talvez?! — espantou-se Arion. — Então teremos mais situações perigosas no caminho? — Podes ter certeza que sim. — Pelo que vejo, é muito difícil chegar a Catebete! — Arion se ergueu e gargalhou, ironizando. Os outros dois não mudaram de humor, o que fez com que ele parecesse um tolo. — A vossa jornada não termina em Catebete. Vós enxergais apenas até lá, mas logo percebereis que o caminho é um pouco mais longo.Talvez fiqueis vivos para chegar até o fim, talvez não. — Quem é você, para saber sobre nós e prever nosso futuro? — indagou Arion, perdendo a paciência. — Eu não sei o futuro, só sei que algumas coisas deverão acontecer se tudo der certo. — Tudo o quê? — perguntou Arion, sempre agressivo. — Tudo aquilo que está planejado para vós. Sempre as pessoas têm coisas planejadas para elas, mas na maioria das vezes nem se dão conta 168

ERIC MUSASHI


disso. Os planos para mim incluíam estar aqui e avisar-vos, embora eu esperasse outra coisa, como encontrá-los em Jatitã. — Você gosta de falar com muita erudição e mistério. Parece que não quer que compreendamos nada! — Arion bufou, e se sentou. — A vida fala com mistério, Arion de Téoder. Tudo aqui é com enigmas. Porém, em verdade, quase tudo é simples; nós é que somos muito pequenos para compreender. Por exemplo, quando tu ouves o puro som da lira, só consegues senti-lo, e não compreendê-lo. Assim também é com minhas palavras; sente-as, e não tentes compreendê-las. — Ela então os abandonou, entrando na casa. Passados alguns instantes voltou com a lira de Luredás em suas mãos. — Luredás, toca um pouco para ouvirmos — pediu, com certa submissão. — T-tudo bem, mas... como sabia que...? — Ela parece saber de tudo, Luredás, e devíamos nos acostumar com isso — disse Arion. — Ei, eu vi isso no meio dos teus pertences, então era de se deduzir que sabias tocar! — protestou ela. Luredás executou a mesma melodia que garantira a sua estadia em Lira dos Titãs, não podendo ser comparada com o eterno som das águas correndo, ou dos pássaros cantando, e sim, somente com o da vida falando conosco. Arion, reconhecendo a linda música, relaxou. Ele a ouvia e visava o rio, as águas que sabiam de sua parte no Mundo e não lutavam contra isso. Talvez devesse ser assim; tudo contribuindo e sempre nos levando para lugares inusitados, e fazendo-nos conhecer pessoas que nem imaginávamos. — Ortes? — perguntou Arion, enquanto Luredás ainda tocava. — O que houve? — Eu vejo que sabe muitas coisas — disse ele, e ela concordou meneando a cabeça. — Então me diga: a minha busca por experiências verdadeiras é vã? — Antes de responder, dir-te-ei uma coisa muito importante: nesta vida, nada é em vão. Tudo é aprendizado. Agora te digo: não sei se encontrarás o que buscas, mas toda vez que dormires, tenta ouvir seu chamado. Teu destino quer falar contigo, ele te espera. Fico triste só de pensar na possibilidade de tu não conseguires chegar até lá. Prefiro acreditar que não falharás em cumprir tua demanda.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

169


Ela nada mais disse, e Arion não ousou continuar perguntando. Eles voltaram a ouvir a melodia, e se deixaram levar em pensamentos. Quando Luredás terminou, estavam calmos; parecia que haviam tido um dia feliz e de descanso — bem ao contrário do que realmente fora. Ortes tirou a espessa faixa vermelha que ficava em sua cintura, algo característico das túnicas femininas, e se pôs de pé. Despiu-se sem vergonha — o que mostrou uma estranha juventude no seu corpo, pela idade que deveria ter — e correu até as águas, pulando nelas. — Vende, a água está boa! A correnteza não é forte neste ponto. Arion e Luredás não esperavam pela espontaneidade da senhora, mas aquilo não era tão incomum assim. Os dois riram, e fizeram como ela. A água estava fria, mas não havia mesmo uma correnteza forte no rio largo e profundo. — Gosto muito de nadar neste rio, mas não há diversão quando se está sozinha — disse ela. — E que tipo de diversão pode haver em nadar à noite? — perguntou Arion. — Esta! — exclamou, e jogou água no seu rosto. Ele olhou bravo para ela, e fez o mesmo, mas mirando em Luredás. — Há-há-há, nem esperava; vamos confesse! — gritou, animado. — Ah, agora é sua vez! — Luredás retaliou. E os três ficaram ali, brincando como crianças por um bom tempo; a noite avançou, e não se preocupavam. Ortes possuía companhia de novo, e Luredás e Arion estavam longe das situações de perigo e das pelejas. Era tudo o que os três queriam. Depois de cerca de duas horas, eles saíram da água. Vestiram-se e se prepararam para dormir. Arion se lembrava das palavras de Ortes quando se deitou, sobre apenas querer ouvir o chamado do Destino. Ele tentou fazê-lo, e não tirava isso da mente até que adormeceu.

III Arion caminhava por um vale. Sua visão estava embaçada, e tinha que andar sobre as montanhas e por entre elas, pois um largo rio tomava quase todo o espaço plano, e ele estava caminhando na direção contrária à da forte correnteza. Às vezes o caminho ficava mais fácil, mas na maior 170

ERIC MUSASHI


parte do tempo fortes ventos o atrapalhavam, e um frio intenso podia ser sentido. Estava montado em Valente, e este também estava fraquejando. — Fique calmo, amigão; vamos conseguir — disse ao cavalo. De repente, ouviu um som estranho. “Auuuuuuuuu”, soou a aguda voz, parecendo a brincadeira dos ventos numa noite de tempestade. Olhou para o cume de um pequeno monte, e viu um ser estranho a ele. Ao que tudo indicava, era um lobo. Ele desceu do monte em grande velocidade, e logo estava do lado de Arion e Valente, que parou. Outros lobos apareceram, como que atendendo ao chamado. Já eram mais de vinte cercando o rapaz e o cavalo, e Arion não sabia o que fazer. Apanhou a sua espada, mas sabia que morreria ali. Soltou-a, e ela caiu no chão. — Por que pensas em desistir? — soou uma voz feminina. — Quem está aí?! — gritou Arion, procurando por alguém. — Acalma-te. Eles só fazem o mal para aqueles que os ameaçam de alguma forma. Eu sei que tuas intenções são boas. Só querem ter certeza disso. A certeza que eu tenho. — Quem quer que seja, apareça! — bradou, furioso. Os lobos começaram a se agitar e rosnar. — Tu pareces ter algum problema em aceitares a ajuda de pessoas que não conheces, hein! — O tom da voz era de ironia. — Não sejas assim. Estás certo, às vezes as pessoas podem querer algo de mau para nós. No entanto, nem sempre é assim; deves ser gentil com quem quer te ajudar. Arion não falou nada; concordou com ela, mas estava muito abatido, e desabou, seja fisicamente ou no espírito. — Não precisas ter vergonha, pois se percebes que estavas cometendo um erro, então agora estás pronto para melhorar — disse a oculta, e então levantou o rosto de Arion com a mão direita. Os olhares se cruzaram. Aqueles olhos azuis profundos com os castanho-amendoados. Seu coração disparou, e, depois de tudo se condensar e a visão voltar ao normal, via apenas o teto da casa de Ortes. — Foi só um sonho — sussurrou, e então deixou a cama para beber água. Enquanto sorvia o revigorante líquido, involuntariamente olhou pela janela, que ainda estava aberta. A serena lua brilhava no escuro rio, e

OS HERDEIROS DOS TITÃS

171


parecia ser uma peça rara de prata. Sua luz, somada às das estrelas, fazia com que tudo pudesse ser visto, mesmo que de forma não tão nítida como durante o dia. — Talvez já eu tenha percebido isso antes, mas como é esplêndido este lugar — murmurou Arion. Ele abriu a porta sem fazer ruído, e andou até a horta. As folhas daquelas batatas e beterrabas eram dotadas de uma coloração viva, e mais cheirosas que todas que ele já vira. A grama também era colorida e viva, mesmo sendo vista durante a noite. Alguns pássaros — que até então ele desconhecia — aproximaram-se, e ele estendeu a mão direita, onde eles pousaram e começaram a cantar. Ele se sentia feliz. — Brincando com as aves, filho de Téoder? — perguntou Ortes. Arion pulou, assustado. Isso fez também com que os pássaros fugissem. — Ah, é você. — depois de se recuperar do susto, ele voltou a olhar para o rio. — Você me assustou, e também aos pássaros. — Talvez tenha o feito; desculpa-me. O que fazes acordado a esta hora? — Ela se sentou do seu lado. — Tive um sonho, e acordei. Fui beber água. Enquanto bebia, vi como a noite estava linda e resolvi sair um pouco. Arejar as ideias. — ele a encarou, vendo a sua expressão séria. — Aliás, sinto-me no direito de indagar; o que você faz acordada a esta hora? — Boa pergunta — disse ela. Ficou em silêncio, e quando ele se virou novamente para o rio, amuado, ela riu. — Brincadeira. É que por mais que tenhas tentado sair em silêncio, o barulho da porta se abrindo me acordou. Estava no fundo do mar, mas atenta à superfície. — Você gosta de falar com mistério. — Acho que já conversamos sobre isso. — É verdade — disse, e jogou uma pequena pedra no rio. — Estive pensando sobre as coisas que me falou. E também sobre as coisas que Luredás me disse, dias atrás. É dele que o Destino quer algo, e não de mim, não é? — O que te levou a concluir isso? — Tudo. O modo como sempre ajudaram Luredás, como tudo costuma dar certo com ele, como você cuidou de seu ferimento e como ele está bem mais preparado do que eu para as coisas que você fala. 172

ERIC MUSASHI


— Só isso?! — Ortes se exaltou um pouco. — E precisa de mais? — Acho que tomarei a liberdade de te dar a primeira lição: Arion, nunca tomes conclusões precipitadas. Não devemos confiar em quase nada do que vemos, ouvimos ou sentimos. — Ela acariciou seu rosto. — Tu és muito formoso. Por dentro e por fora. — Ortes se virou para o lado de novo. — Tens defeitos, porém, todos os têm. Também tens algo grande a superar, mas, pelo pouco que te conheço, sei que conseguirás. — O que terei de superar? E por que terei que superar? — Tu demoras a aprender, hein! Uma pergunta de cada vez, não te lembras? — É verdade... Por que terei que superar alguma coisa? — Hum... Ou tu sempre recorres à última pergunta ou então queres muito saber os porquês das coisas. Seria ansiedade? Ou algo que colocaram em tua mente? — Não estou entendendo nada. — Arion coçou a cabeça. — Arion, às vezes tentamos colocar porquês em tudo. Não obstante, quem é que garante que procurar sempre uma razão para algo não é apenas uma impulsão do ser humano? Ou ainda, procurar essas respostas talvez seja somente uma limitação. Bem como o tempo. — Agora estou conseguindo acompanhá-la. — Não digas “agora”, garoto. Diz apenas: abri os meus olhos, e te acompanho. — Voltei a não entender mais nada. — Isso é normal. — ela fez uma pausa. — Mas creio que tu não sejas normal. E quem é? — Você ainda não me respondeu. — Tens razão. Mas não é meu trabalho lhe responder tudo o que me perguntar; tu deves encontrar a resposta sozinho. Não só para esta questão, mas para muitas outras. Meu dever é apenas te orientar. Ainda mais porque o que pode ser resposta para mim, para ti pode não ser. Ela se levantou. — Ei, tenho mais duas perguntas! — Isto não é um jogo. Não ouviste o que eu disse por último? — Ela lhe deu as costas e foi até a porta. — Vamos dormir. Já passou da hora.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

173


Dormir é algo que tem a ver com o tempo, não concordas? — ela começou a rir, e sua risada ainda podia ser ouvida mesmo quando já estava lá dentro. — Talvez eu fique louco — disse Arion, e também entrou.

IV O dia seguinte amanheceu com poucas nuvens no céu, e o clima estava ameno. Arion e Luredás acordaram com fome, e Ortes conseguiu maçãs para eles.Também fez um chá de sálvia, que eles apreciaram. — Pelos titãs; como é bom estar aqui! — disse Luredás, animado, em dado momento. Arion, em silêncio, só ficou observando Ortes. Ele se lembrou de Faná, e de como ela era boa com ele. O jeito da morena até lembrava o de sua mãe, apesar delas não serem parecidas fisicamente. — Só uma pergunta, Ortes: onde arruma as maçãs? — perguntou, afinal, já vira a horta de batatas e beterrabas, mas não tinha visto nenhuma macieira. — Desconfiado como sempre, Arion, filho de Téoder? — Não, longe de mim. — ele corou, e recebeu um olhar reprovador de Luredás. — Só pensei que pudesse haver povoados aqui perto. — Não, não há — replicou ela. — A Floresta é temida por todos, e a região ficou desabitada. Mas sempre acreditei que pudesse haver vida para se contrapor à morte. As macieiras ficam atrás da casa. E, pensando bem, não fordes conhecer o lugar todo ainda, não? — Eu tenho curiosidade para saber um pouco sobre como cultivar plantas, pois creio que não aprendi o suficiente em Jatitã — admitiu Arion. — Parece que estás começando a ficar em sintonia comigo — sorriu Ortes. — É justamente sobre isso que falarei convosco hoje. Depois que estivéreis prontos, deveis procurar-me. Ficarei lá atrás, à sombra das macieiras. — ela já ia se virando para sair, mas Arion a interrompeu: — Acho que não.Agradeço tudo o que fez pela gente, cara Ortes, mas temos pressa. Presumo que partamos daqui a pouco. — Amanhã vós partis. Gosto muito da vossa companhia, dos dois, meus jovens. Não há tanta pressa assim, pois fizestes o trajeto com uma velocidade admirável. 174

ERIC MUSASHI


— Eu também gostaria de ficar, mas temos que chegar a Catebete o quanto antes. — Por favor, Arion. Só mais um dia — pediu Luredás, segurando o copo de cerâmica.Arion olhou para ele, para Ortes e também para a janela, de onde agora podia ver os cavalos, que a senhora levara para comer. — Levei em consideração a sua opinião durante a viagem, e graças a ela estamos aqui, em boas mãos. Não será hoje que deixarei de ouvi-lo — falou Arion, e Luredás sorriu confidente para Ortes. Eles fizeram como ela disse, e depois do banho, com os longos cabelos brancos ainda úmidos, foram até ela. Várias árvores se dispunham sobre o gramado, disputando umas com as outras quem faria a melhor sombra. Eram uma formação natural, uma resposta ao Vazio da floresta, mas pareciam ter adquirido vida exuberante recentemente. Ortes estava sentada, recostada numa delas, com os olhos fechados e sorrindo, aparentemente cochilando. Luredás até acreditou nisso, mas Arion sabia que estava acordada. — São árvores formidáveis, não? — disse ela, ainda sem poder ver nada. — Pensei que estivesse descansando — deixou escapar Luredás. — Eu tinha pedido para virdes até aqui; não vos faria de bobos desta forma, pegando no sono. — Arion apenas riu enquanto ela falava. Luredás não entendeu o motivo da risada, que Arion também deixara escapar. — Simplesmente não entendo como o chão pôde tremer daquela forma. O solo que é praticamente tudo para estas árvores. Se o chão não tem segurança, a vida delas não se dá com todo o potencial — disse Ortes, enquanto piscava devagar, acostumando-se com a luz. — É uma questão complicada. Mas outra é o fato daquela floresta ter morrido tão estranhamente — apontou Arion. — E o pior é que o sol é obscurecido, o ar é pouco, e um frio nos consome. O frio toma o lugar do calor, as nuvens o lugar do Sol, e o cheiro da morte, o lugar do ar. — Talvez. Contudo, não é o simples ar rarefeito da altitude naquele lugar — disse Ortes, e convidou os dois a se sentarem, cada um de um lado. — Se fosse só isso, então por que a tua espada tornar-se-ia uma simples arma, profana, Arion? Estranhamente, ele não se surpreendeu com a pergunta.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

175


— Isso aconteceu? — indagou Luredás, começando a entender. — Sim. Eu não expliquei nada a você porque não tinha certeza do que realmente era. Aliás, eu não fazia a mínima ideia. Por isso tive tanto medo, e lhe disse aquilo quando me perguntou se eu faria o mesmo que meu pai na famosa história dos lobos. Diga-me, senhora Ortes, o que se dava, então? — Como tiveste um ótimo treinamento ministrado pelo teu pai, deves ter aprendido sobre os Cinco Elementos Primordiais; Agar, Suí, Ágni, Vaiú e Éter. — Sim, ouvi. — Mas explicarei bem, pois creio que Luredás conhece pouco sobre isso. — Luredás apenas concordou meneando a cabeça. — O éter promove o controle sobre os elementos, assim como nossas mentes dominam nossos corpos. E onde há éter, há vida. Por isso ele deve estar presente em todos os lugares. — ela fitou o céu: — Entretanto, o éter também pode ser usado para matar, assim como qualquer coisa que esteja à disposição de seres vivos. Apesar dos atalais desconhecerem a si mesmos para que possam usar suas próprias energias etéreas, eles têm acesso ao sevaste e aos outros cristais, talento que é a marca de sua raça, embora nem todos o usem com sabedoria. Mas é inevitável que aqueles que não merecem tenham contato com isso. — Agora compreendo — disse Luredás. — Assim como o cristal facilita o uso dos poderes, ele também os inibe — continuou ela. — Tu logo atinges o nível máximo, pois o cristal é apenas algo morto — energia sem alma. Então, não podes mais evoluir. É assim que funciona. Não obstante, os seres humanos só encontram como limite suas próprias crenças. — Muito obrigado por nos ensinar isso. Mas o que acontece naquela floresta? — perguntou Arion. — Finalmente posso dizer convictamente: tu és mesmo ansioso. — os dois gargalharam, e Luredás ficou perdido, desconhecendo a conversa da noite anterior. — Sinceramente, não posso afirmar com certeza o que aconteceu com o Antigo Lar, como diziam os que chamam de tuatas, ou o que há ali. Eu não consigo compreender o que pode ter causado o extermínio dos Filhos de Antel, aqueles poderosos guerreiros que tomaram o domínio das árvores como lar há alguns séculos. Agora 176

ERIC MUSASHI


se foram, e muitos temem vasculhar as verdades que aquele ambiente esconde, e eu sou uma dessas pessoas. — ante a falta de informação, Luredás e Arion se frustraram. — Mas não fiqueis tristes — continuou Ortes —, pois o que quer que haja lá, não é para vós. E apesar de não saber o que é, eu posso vos explicar o que aquilo causa. — Luredás e Arion se animaram novamente, e instintivamente se aproximaram mais um pouco dela. — Como eu disse, não se trata de faltar ar; o que falta é éter, equilíbrio. Por isso tendes dificuldade de respirar, e vossa força cai muito. E é por isso também que tudo acaba se maculando. Sinto pena daquelas árvores. Ela silenciou, em aparente luto. — Continue, por favor — disse Luredás, muito curioso. — Tudo bem, Mestre da Lira. Tu estavas errado em dizer que o frio tomava o lugar do calor e o escuro o lugar do Sol, Arion. Pois o frio nada mais é do que a ausência de calor, e o escuro é a ausência de luz. Realmente, aqueles habilidosos ferreiros e espadachins que moravam na floresta descobriram algo muito terrível. — Se é assim como diz, então a morte é... — ...a ausência de éter, do fluxo criativo — completou Ortes, ao que Arion estava receoso em continuar a falar. — Não posso vos dizer o que há ali, mas o que quer que seja, está simplesmente sugando ou afastando o éter, rompendo o equilíbrio. Por isso não há mais vida, luz ou calor por lá. — Então quer dizer que tudo se fez do éter? — quis saber Luredás. — Presumo que sim. Mas isso é irrelevante. Só digo a vós, meus jovens, que o que estiver escondido ali vai se revelar logo. O seu fim está próximo, assim como o desta cultura degenerada, e aquilo não vai simplesmente ser destruído sem que mostre o seu valor. — Está prevendo isso? — perguntou Arion. — Não sou capaz de prever. Estou apenas concluindo, depois de tudo o que eu vivi. — Mas você mesma me disse que não devemos tirar conclusões precipitadas. Ela suspirou, inclinando-se levemente para trás, como alguém que é pego fazendo algo que não devia. Luredás aguardava por sua reação.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

177


— É, tu te destacas dos demais — admitiu ela. — Tens sabedoria, meu rapaz. Obrigada por teres me ajudado no momento em que eu me precipitava. — ela então lhe deu um beijo no rosto, mas depois se entristeceu: — Não há como saber quem está certo, mas que o Destino queira que sejas tu. Um quebranto tomou conta dos três; ainda que não houvessem compreendido totalmente as palavras de Ortes sobre a queda de Atala e outras de suas conclusões, podiam sentir o que estava por vir. Nem Arion ou Luredás sabiam explicar aquilo, mas, ao invés de entender, estavam simplesmente... sentindo! — Vós subis em árvores? — indagou Ortes, com seu sorriso de volta. — Já faz algum tempo que não faço isso — admitiu Luredás. — Mas talvez eu ainda consiga. — E tu, Arion? — ela perguntou, enquanto já subia. — Vamos lá! Eles galgaram-se pelos galhos, e ficaram por um tempo nos aconchegantes braços do vegetal. Comeram uma maçã cada um, e não conversaram mais. Por vezes o vento tocava seus cabelos, e apenas fechavam os olhos, tentando ouvir o que ele queria dizer. — Você havia dito algo sobre... como cuidar das plantas, não havia? — perguntou Arion, cerca de duas horas depois. Luredás nem percebeu a frase solta, e Ortes, que já estava relaxada, pulou de susto, quase caindo da árvore. — Desculpe-me! — escusou-se Arion. — Tudo bem. Eu é que não devia me distrair. — Ela começou a descer. — Mas, realmente, eu falei que hoje ia vos mostrar um pouco sobre como cuidar de uma horta. Vende comigo. Depois de já estarem no chão, andaram pelo gramado fresco, e passaram ao lado da casa. O Rio das Sereias podia ser visto novamente, e suas águas estavam mais rasas neste dia. Algumas pedras se mostravam, sublevando a água, e a correnteza era levemente mais fraca. — Mais uma seca se aproxima — disse Ortes, com a voz deprimida. Arion e Luredás apenas trocaram olhares. Continuaram andando, até que viram a horta; a luz do sol realçava o verde das folhas, e parecia que estavam viajando para o passado, como aqueles livros empoeirados costumavam registrar. O tempo onde Turaquê 178

ERIC MUSASHI


e seus súditos se maravilharam com as férteis terras que conquistavam. Não precisavam nem mesmo trabalhar muito. Mas quase 4.000 anos se passaram, e a fertilidade e abundância de ontem se fora. — Vós nunca trabalhastes no campo? — perguntou Ortes. — Eu já — disse Arion. — Apesar de meu pai insistir que podia nos sustentar, minha mãe e eu preferimos ter algumas terras. Eu trabalhava nelas com empregados, e colhia trigo. Também tínhamos laranjeiras e limoeiros no quintal de casa. — Ah, tua mãe...Tenho saudades dela. Não só dela, como também de sua família. Eles pareciam que não eram mesmo destas terras corrompidas. Luredás e Arion não esperavam por isso, e Ortes colocou as mãos sobre a boca, como um menino que falou algo que não devia. — V-você conheceu a minha mãe?! — Sim. Mas já faz um bom tempo. Eu a visitei algumas vezes, mesmo depois de tu teres nascido. Contudo, logo tive que me envolver com outras coisas. — silêncio. — Como tu ias dizendo, então já trabalhaste com trigo, Arion. E tu, Luredás? Luredás ficou por algum tempo sem responder, querendo ouvir mais sobre a mãe de Arion. Este balançou a cabeça, querendo dizer que deixassem aquele assunto para outra hora. — Sim.Também já trabalhei nas terras de meu pai. — É melhor assim. Vós deveis saber de todos os procedimentos. — Sim, creio que sabemos — respondeu Luredás pelos dois, ao que Arion ainda pensava no que Ortes dissera sobre sua mãe. — No entanto, ainda há coisas que não sabeis. Tenho certeza que jamais virais batatas ou beterrabas como as minhas em lugar nenhum! — E o que faz para que fiquem assim? — Não basta zelo pela terra e esterco e água. As plantas devem ser bem cuidadas; devem ser tratadas com amor. Não digo que tu devas falar com elas ou acariciá-las, pois elas não entenderiam. Mas devem se sentir queridas, assim como a natureza ao seu redor. O mundo deve ser amado, por mais que muita parte dele esteja corrompida. Se tu praguejas contra o mundo ou contra o teu destino, então só receberás coisas ruins. Ela se derretia sobre suas plantas, orgulhosa.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

179


— Talvez esteja certa, Ortes — disse Arion. — Mas de que adianta tratá-las bem para depois devorá-las? Isso me lembra alguém... — ele brincou, mas tinha muita raiva em seus olhos. — Um certo Béli-Mor! — Assim como elas dependem de mim para que nasçam e cresçam bem, eu dependo delas para que continue vivendo. E tudo se move num grande ciclo. E sobre o que pensas a respeito dele, espero que algum dia chegues à conclusão de que perdeste muitos anos de tua vida tendo sentimentos ruins e pensamentos errados. — Eu já falei com ele sobre isso, mas não há jeito de fazê-lo mudar de ideia — disse Luredás. — Não tentes mais — sussurrou em seu ouvido. — Somente ele pode perceber o erro que comete; ninguém deve fazer isso em seu lugar. Mas, voltando a falar das plantas — falava alto de novo —, devemos observar o quanto dependemos delas e o quanto elas dependem de nós. E todos haviam de pensar assim, não só em relação às plantas, mas também sobre os animais e até mesmo sobre os próprios humanos. Todavia, já se foi o tempo em que os atalais o faziam; agora creem que cada um é capaz de viver por si só. Sinceramente, às vezes sinto vontade de desistir deles. — Por que não desiste? — perguntou Arion. — Essa não é uma decisão minha. Eles precisam de ajuda, portanto, devo ajudá-los. Por mais que não percebam isso, e mesmo que me rejeitem. Tu também devias pensar assim. Aliás, sei que pensas. Se não pensasses, não estarias aqui, na estrada ingrata. — Você tem razão. — Arion se sentou na grama, e colocou a mão direita sobre a face. — Desculpe-me, Ortes. É que o que disse sobre minha mãe me tocou muito, e me trouxe lembranças ruins. Por isso é que fui rude com você. — Tudo bem. Só te digo uma coisa: nenhuma memória é ruim; é tu que as tornas ruins. Assim como há o dia e a noite, tudo na vida tem dois lados. Creio que as pessoas simplesmente escolhem algumas lembranças como sendo boas e outras como sendo ruins. Sempre pensam em si, e fazem como os animais. — Não entendo o que diz — confessou Arion. — É; por favor, explique, pois isso é muito importante, pelo que sinto — completou Luredás. 180

ERIC MUSASHI


— Sim, fa-lo-ei. Os animais, e boa parte dos homens, são escravos de seus impulsos, e se veem numa vida de desperdício, quando podiam ser livres e despertos. — Tem razão — disse o músico. — Mas agora chega de ensinamentos e de preocupações. Quero relaxar, e aproveitar alguns dos últimos momentos com os grandes amigos que fiz. Ela se sentou ao lado de Arion. — Presumo que não tenha sido bem recebida pelos atalais, pelo modo como fala — sugeriu ele. — Sim. É como tu mostrares a um guerreiro que ele deve negar a própria vida e deixar que seu oponente o vença, pois não tem direito de matá-lo. O máximo que ele tem que fazer é evitar ser ferido. Mas se eu disser isso a um guerreiro, o que ele faria comigo? — Riria de você, ou... a mataria — concluiu Arion, observando os tristes olhos de Ortes. — Acho melhor não trocarmos mais palavras. Ela limpou as lágrimas, e Arion a abraçou com força. Logo que eles terminaram o abraço, ela se deitou. Pegou a mão esquerda de Arion, e o puxou para que se deitasse também. — Vem, Luredás — chamou, e ele obedeceu, ficando ao seu lado esquerdo, estendendo sua mão direita. Ela deu-lhe a esquerda, e permaneceram os três, caídos sobre a grama, observando o céu azul. Às vezes, quando ventava muito forte, um pouco d’água espirrava do leito do rio. E assim ficaram, até que a noite chegou.

V Por mais que tentasse, Arion não conseguia dormir. Mudara alguns de seus conceitos neste dia e no anterior, e, além de ter muitas perguntas a fazer, também não conseguia aceitar a ideia de que teria de ir embora no próximo alvorecer. Luredás já dormia, e Ortes, ao que indicava, também. Arion foi até lá fora, deleitando-se com a horta, os legumes bem grandes, e as folhas e a grama verdes e vivas. Foi até atrás da casa e se sentou encostado numa macieira, ao que encontrou uma diferente estrela no céu. Uma que ainda não vira até aquela noite, e que ele tinha certeza de que não deveria estar ali. Então alguém se aproximou:

OS HERDEIROS DOS TITÃS

181


— Ortes? — Sim, sou eu. Assim como tu, eu também não consigo pegar no sono. — ela abaixou ao seu lado. Estava com os negros cabelos presos em tranças, e com uma leve túnica verde. — Resolveste tentar encontrar a paz nos braços da árvore? — Sim. Quem sabe eu a encontre? Mas assim como você busca a segurança em Agar, eu busco a liberdade do voo em Vaiú. — Eu já havia percebido isso. Até nisso tu lembras tua mãe. Ela era muito sonhadora, e junto de Vaiú ela era capaz de voar, libertarse desta realidade. Sempre fomos muito amigas. — ela engoliu seco. — Muito amigas... — Fale mais sobre ela — pediu Arion. Ela o fitou por algum tempo, e então colocou a mão em seu ombro: — Mas tu não conheceste tua mãe? — brincou. — Não precisas responder. Eu sei que gostarias de ouvir mais do que pudeste perceber nesses quinze anos sobre ela. — Exatamente. — Faná era uma das melhores pessoas que já conheci em toda a minha vida. Eu lembro muito bem: tínhamos quinze anos, as duas, quando a vi pela primeira vez. Assim como os atalais, meu povo também é receoso com estranhos, mas ela foi bem recebida. Perdera a mãe tragicamente, numa confusão quando foram viajar para Acaldã. Ela vagou sem rumo, e acabou indo parar nas nossas terras. — Seu povo mora perto de Acaldã? — Mais ou menos. O que acontece é que fui enviada a Atala, e galopei com o Vento num pégaso até o Reino. O caminho de Acaldã até lá é longo e cheio de perigos, e por isso dispus de tal montaria. — Ortes olhava para o céu, mas para nenhum ponto específico. Como todos aqueles que contam histórias, parecia querer ver cada cena que descrevia. — Você voou num pégaso?! Fala daquelas lendárias criaturas, que não mais são encontradas por aqui? O nome invocava montarias selvagens, parentes dos equinos, que alçavam voo pelos céus, domadas por heróis nos tempos mais antigos do Império Jatitano. Naquela época, em que nem cavalos eram usados como montaria, eles impressionavam e eram uma enorme vantagem em 182

ERIC MUSASHI


combate. O uso indiscriminado, sobretudo em batalhas, os afastaram para longe, além da Cordilheira Roana. — Se voar é sentir Vaiú e atingir velocidade inimaginável, eu voei, sim — sorriu ela, enigmática. — Os pégasos ainda são reais na minha terra, embora sejam poucos. Mas, retomando, em Catebete, fui acolhida pela família de sua mãe, e nos tornamos amigas, praticamente irmãs. Ela me ajudou em várias situações de perigo, enquanto eu... perscrutava. — Ela devia ser mais corajosa do que eu imaginava. — E era. Ela teve coisas a fazer, e até correu perigo, junto comigo. Ela gostava muito de ouvir os meus conselhos, e eu adorava ler suas poesias. Sempre nadávamos juntas nos rios, e dividíamos tudo, os momentos de alegria e os de reflexão. — Você estava com ela quando ela conheceu o meu... o Téoder? — Se pergunta se eu estava junto, não. Mas eu também estava em Catebete naqueles dias. Eu ajudava Faná a cuidar de seu velho pai, que sofria a perda da esposa. — Coitado dele... Deve ter sofrido tanto. — Sim, ele sofreu — disse Ortes. — Chorava tanto pela perda que bebia muito vinho, e já estava viciado. Ele possuía uma dívida com uma taverna, e ia acabar perdendo a vida e as poucas terras que tinha direito de usar, próximas da cidade, por causa disso. Então Faná conheceu teu pai, e graças a ele a dívida foi paga. Ele era um imane na época, e eles se apaixonaram. Faná ficou com teu pai e o teu avô materno, mas eu tive que ir embora, pois a minha vida com o meu povo me aguardava, e meu noivo também. Aliás, mais uma vez estamos separados. Mas é por uma boa causa... — Ortes... — Deixe-me continuar. Eu não estou muito certa do que aconteceu depois, mas Téoder achou melhor que morassem em Jatitã, uma vez que a cidade tinha bons costumes. O pai de Faná se despediu dela, e resolveu ir para o Porto da Vitória, na esperança de viajar para terras distantes, querendo aplacar a dor da saudade de sua amada — e Téoder financiou sua viagem por mar. Nunca mais ela ouviu falar dele, e deve ter morrido velho fora do Reino. Acho que não preciso continuar... — Sim. Depois disso já sei de tudo. Mas gostei de ouvir mais sobre a minha mãe, e também de saber que ganhei a amizade de uma grande amiga dela. — Arion enlaçou Ortes.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

183


— Também estou feliz por ter conhecido o filho dela. E por outras coisas que prefiro não te falar agora. Mas é melhor dormirmos; Luredás e tu ainda tendes uma jornada a ser concluída. O dezesseis de protomês amanheceu com uma leve serração, e não havia mais como prolongar a estadia. Logo o sol foi tomando o seu lugar e expulsando a neblina, graças a Ágni e Vaiú. Arion e Luredás fizeram um desjejum, e ganharam maçãs para a viagem, como presente por parte de Ortes. Beberam sua infusão pela última vez, e se prepararam para irem embora. — É triste ter que abandoná-la, Ortes — disse Luredás. — Se você disser que nos veremos novamente, eu acredito — disse Arion, convicto. — Nós nos veremos novamente. Mas não posso te prometer que será aqui, em Grabatal — replicou Ortes. — Então parto feliz. Acho melhor irmos embora logo, pois senão acabaremos ficando mais um dia. — É verdade, filho de Faná e Téoder. Ortes abraçou os dois. Luredás subiu na carruagem, e Arion montou em Valente. Eles se foram, e Arion não olhou para trás. Luredás ainda acenava para a “jovem senhora”, e ficou repetindo o gesto até que não pudesse vê-la mais. — Boa sorte, Arion — disse ela, e entrou na casa.

184

ERIC MUSASHI


Festa interrompida I Já estava anoitecendo o 18º dia de protomês. Dois dias atrás, Luredás e Arion se afastaram de Ortes, seus enigmas e seus ensinamentos. A cada momento, a cada hora percorrida, Arion tinha nas memórias as conversas tidas com ela, e as sensações dos lugares em que ficaram naqueles curtos dias. Além de ser uma grande amiga, era alguém que havia convivido por um bom tempo com a jovem Faná, uma face da sua mãe que Arion ainda não conhecera. Seu coração pesava por ter que concluir sua jornada, mas ter conhecido Ortes não o fazia se esquecer de Ariádan e Achades. Para Luredás, ela não significou tanto assim, mas também estava triste. Então lembrou que logo estariam em Catebete, e depois do destino ter se cumprido, poderiam voltar e visitá-la. — Finalmente faz sentido falarmos em farisias — disse para Arion, referindo-se à forma de medida para distâncias longas usada pelos atalais. Eles tinham dedos e passos para o cotidiano, de cerca de 5,5 cm e de 45 cm. Para viagens, porém, o habitual era que usassem a ruaida — a distância que um caminheiro pode andar até que precise parar para descansar —, em torno de 6 quilômetros, e a farisia — um dia de viagem cavalgando em velocidade de marcha forçada —, o que equivalia a cem quilômetros, aproximadamente. A distância entre Catebete e Jatitã era de dez farisias. Já entre Jatitã e Lira dos Titãs, meia farisia. E, por fim, entre Catebete e Porto da Vitória, quatorze farisias. Os sábios de Acaldã resolveram determinar que a ruaida equivalia 14.000 passos — 6,3 km —, e havia duas modalidades de farisia para eles: a dos viajantes, de 14 ruaidas — 88,2 km —, e a dos idabarás, de 16 ruaidas — 100,8 km. — É verdade — respondeu Arion. — Enquanto estávamos em Jatitã, jamais tínhamos precisado usar esta forma de medida, tão comum entre viajantes e andarilhos. No máximo usávamos dedos ou passos. Mas vejo que tudo valeu a pena. — Você fala isso por causa de Ortes?

OS HERDEIROS DOS TITÃS

185


— Também. Mas tudo valeu a pena. O retorno à cidade, as lutas com Namirai e Sevijá, a morte de nossos companheiros... — Ele suspirou. — Como eu dizia, o sofrimento na aridez, Lira dos Titãs, a espada de Escleros, a Floresta Sem Vida e o que virá pela frente. E fiz amigos que nem esperava fazer, como você, Valente e, como disse, Ortes. — Pode valer mais a pena ainda. Só depende de você. Arion não respondeu. Ele sabia que Luredás estava falando sobre Téoder e o perdão que devia lhe ser concedido. Apesar de tudo que tinha ouvido, Arion ainda não era capaz de se reconciliar com o seu pai. Sempre que pensava sobre isso, lembrava-se de sua mãe, de como ela dançava bem e tocava lira. Do seu sorriso, o sorriso mais bonito que ele já vira. Mais até mesmo que o de Ariádan... — Como estará Ariádan? — perguntou Arion, esperando obter uma resposta do céu. — Por acaso isso soa como saudade? — questionou Luredás. — E Não me olhe assim, meu amigo; essa é uma palavra muito forte e carregada de sentimentos. É bom aproveitar que ela existe para não mentir para si próprio. — Não nego, sinto saudade dela. Mas não do modo como está pensando: sinto saudade da amiga que ela era, da minha irmã. Por mais que você torça para que eu a ame, pelo tanto que gosta dela, eu não a amo como esposa. Talvez ainda encontre o meu amor antes que nossa jornada termine — disse Arion, e bruscamente fez com que Valente parasse. — Vamos ficar por aqui. Apesar de estarmos animados, e cavalgando como nunca, amanhã já encontraremos a Cidade das Festas, como chamam. Ancatébia está próxima. — Que bom. Pode ser que estejam necessitando de um músico, e então não precisaremos trocar as joias de Achades por comida, devolvendo para ele quando retornarmos — disse Luredás, e Arion olhou para ele com um sorriso. Os dois caíram na gargalhada. — Está se acostumando a cuidar da nossa alimentação, não é? — apontou Arion, e depois se entristeceu novamente. — Acho que jamais encontraremos um lugar onde precisem de um guerreiro que não gosta de lutar. — Nunca se sabe. Ortes encontrou muito mais dotes em você do que em mim. Você era aquele para o qual ela estava ali, pelo que pude perceber. 186

ERIC MUSASHI


— Não compreendo o que alguém pode querer comigo. Eu, um homem covarde, que sempre fugi do meu próprio destino, incapaz de amar aquela que me deu todo o seu coração, desistindo de si mesma. E que arrastou um amigo para uma busca sem esperanças, só para depois ficar dependendo dele para sobreviver. — Ei, não fale assim! Será que não aprendeu? Não se diminua! Não se diminua! Não se diminua! Três vezes bastam? Ou será que terei que falar sete? Ou ainda doze, ou vinte e quatro, como dividimos as horas? — Luredás pegou no ombro de Arion e o chacoalhou. — Em primeiro lugar, você é o oposto de covarde, e jamais fugiu do seu destino. Se a busca é sem esperança, como você diz, então é o mais corajoso de todos, por mesmo assim tentar. E é cheio de valores por não se aproveitar do amor e da ingenuidade de Ariádan por saber que não a ama como um homem ama uma mulher e não é capaz de amá-la desta forma. Por favor, Arion, essa sua falta de confiança em si mesmo me deixa nervoso! — Tudo o que eu lhe disse foram palavras vazias — disse Arion, quase sussurrando. — Eu sei que tenho o meu valor, mas tenho medo de fracassar. Não quero tomar a frente em nada, pois o fracasso é sempre uma grande dor. Por isso prefiro que você tome as decisões. — Ahá, é muito bom saber disso! — Luredás riu. — Agora não mais darei palpites. Você é filho de Téoder, e tem tudo para se tornar um grande líder como ele. Sábio, justo e valoroso no campo de batalha. Se o meu papel é ajudá-lo nisso, farei de tudo para ser útil. — Desculpe-me, Luredás. O engraçado é que suas palavras sempre são memoráveis. Não como o ouro, ou a prata ou os monumentos do mundo; são mais valiosas ainda, ao menos para mim. Têm um valor que não se apaga com o tempo, um valor que não pode ser tocado ou maculado por ninguém. — Arion então desceu de Valente. — Mas agora vamos sentar e assar uma carne, pois estou morrendo de fome. Eles deixaram um pouco de feno no chão, em três pequenos montes, para os cavalos. Mas, antes disso, os animais beberam água no rio. Ainda havia alguns gravetos na carruagem de Luredás, e enquanto Arion fazia fogo, de forma rústica, Luredás colocava o charque na panela. — Arion, só temos mais um pouco para amanhã, no almoço. Tem certeza de que chegaremos amanhã a Ancatébia?

OS HERDEIROS DOS TITÃS

187


— Sim. Pelo menos é uma certeza que tenho, pois o planalto começa a se erguer do nosso lado direito, e isso indica que a cidade está próxima. — ele pegou a carne e colocou ao fogo, levantando-se: — Cuide-a para mim, Luredás. — Tudo bem, mas o que vai fazer? — Eu trouxe um pouco de cidreira lá da casa de Ortes. Vou tentar preparar uma infusão para nós. Será que sou capaz de fazê-lo? — perguntou Arion, com um sorriso malicioso no rosto. A carne foi assando, e o seu gostoso aroma logo fez com que os dois começassem a cortar pedaços com suas pequenas facas. Arion falava algumas palavras com a boca cheia enquanto colocava as ervas num recipiente de ferro, que tinha ganhado de Ortes, e que já estava cheio d’água. Pô-lo sobre o fogo, segurando no cabo que estava com um pano branco enrolado nele, para que Arion não se queimasse. Depois que comeram, beberam o líquido quente, adocicado e reconfortante. Realmente, não era como a infusão que Ortes fazia, mas Arion até que estava se saindo bem! — Não há do que reclamar — disse Luredás, enquanto enchia o seu cantil novamente. Eles não dispunham de copos. — Até eu fiquei surpreso por ter dado certo — disse Arion, e começou a rir. Também encheu o seu cantil uma vez mais, e o invólucro de ferro foi esvaziado. Depois que terminaram Arion foi até o rio e lavou os cantis e o recipiente onde fez o chá, e depois deixou tudo na carruagem de Luredás — não sem antes encher os cantis. Eles ficaram deitados no chão, esperando o sono vir. Os cavalos já estavam dormindo. O céu estava limpo, e muitas estrelas podiam ser vistas. — Gosta de observar as estrelas, Luredás? — Sim. Mas, apesar de poder sentir que elas sempre querem me dizer alguma coisa, não as conheço muito. Meus pais nunca me ensinaram nada, e faz pouco tempo que me interesso por elas. — Aquela ali é a Justiça, Luredás — apontou Arion. — É capaz de ver? Parece com uma balança, não é? — Depois que Luredás havia conseguido identificá-la, ele prosseguiu: — Aquela outra é o Lagarto-deChifres. Sempre quis saber como são esses perigosos animais que vivem no Deserto Dezrã, como muitos costumam dizer. 188

ERIC MUSASHI


— E aquela ali? — perguntou Luredás, apontando para uma estrela com um brilho avermelhado. Que estrela solitária era aquela, afinal? Então se lembrou de quando a vira, na casa de Ortes. Tinha certeza de que ela não estava ali antes; desde pequeno ele observava as estrelas, e jamais viu ou ouviu falar dessa. — Não faço ideia, Luredás. — Desculpe-me, pensei que você soubesse. — O músico suspirou desapontado. — Pois lhe digo: creio que não há um em Grabatal que saiba de onde ela vem ou que nome pode ser dado para ela. Jamais ouvi falar sobre algo assim. — Se ela está ali, deve haver um motivo. — Creio que sim. Os dois ficaram um bom tempo olhando para ela. Às vezes, parecia chamejar mais, chamando-os por algum motivo. Conforme a noite avançava, ela se mexia no céu em conjunto com as outras, e seu movimento não parecia destoar do das demais, como costumava ocorrer com os errantes — os planetas. Todavia, não fora feita uma análise cuidadosa. Seria um deles? Mas se fosse, qual era? Enfim o sono os derrubou. Ventos frios cortaram aquela região baixa que compreendia as margens do rio. Se eles sonharam, não foram capazes de se lembrar na manhã seguinte, mas acordaram dispostos e continuaram sua viagem.

II — Parece que estava errado, meu amigo — disse Luredás. — Já amanheceu o vigésimo dia de protomês, pelos meus cálculos, e ainda não avistamos Ancatébia, ou Cidade do Vinho, como costumamos chamar atualmente. Realmente, Luredás tinha razão. Arion havia garantido que chegariam à cidade na noite anterior, no máximo, mas por mais que o chão se elevasse num grande planalto, ela ainda não podia ser vista. O sol já subira pelo leste há muito tempo, provavelmente há umas três ou quatro horas, pela posição onde estava agora. O ar estava mais úmido do que nos outros descampados de Grabatal — com exceção do Delta do Poente, do Mar Amulcum e arredores e das Planícies Proibidas; no caso

OS HERDEIROS DOS TITÃS

189


da última, pelo que especulavam — e o chão era um tapete de grama, estendendo-se ao infinito. Algumas videiras podiam ser vistas por todos os lados, distantes umas das outras. Se ainda não avistaram a cidade, pelo menos estavam próximos. — Admito; eu me precipitei — disse Arion, desanimado. — Mas, se estamos com fome, pelo menos há em contraposto este ar gostoso e, além disso, creio que não há como não chegarmos antes do anoitecer. E desta vez, não afirmo com certeza, mas sinto que não estou errando. Passaram próximos de um pé de uva, planta que viam pela primeira vez, e só reconheciam pela fama da cidade e por descrições vagas. Tinham folhas ovais e pequeninas flores, que se reuniam em cachos. Construções de madeira seguravam os ramos da planta, que trepavam nelas. Conforme andavam por ali, alguns homens que trabalhavam nas terras davam uma atenção especial para eles. Arion e Luredás fizeram com que os cavalos parassem de marchar e começassem a galopar numa velocidade um pouco maior. Estavam atravessando suas terras, e temiam que não gostassem disso. O filho do Béli-Mor logo notou que, conforme corriam em direção ao nordeste, aproximavam-se cada vez mais de uma pesada nuvem cinza. Uma grande faixa acinzentada podia ser vista, saindo da nuvem e indo até o chão, indicando que estava chovendo. É claro que a nuvem se achegava a eles muito mais rapidamente do que eles se aproximavam dela. — Talvez peguemos chuva — disse Arion. — Tudo bem, pois poderemos nos cobrir com estas roupas sujas — disse Luredás, olhando para o lado na carruagem, onde as vestimentas que tinham tirado na noite anterior repousavam. — No entanto, ainda assim talvez nos molhemos. Já tive uma pequena febre dias atrás, e só não piorei por causa da ajuda de Ortes. Mas ela não está mais conosco. — Quanto a isso, não precisa se preocupar. Meu pai me... — ele parou, arrependido pelo que disse — ...eu aprendi que os limões podem nos ajudar contra isso. Peguei alguns num limoeiro próximo da casa de Ortes, antes de partirmos. Tome um! — ele jogou dentro da carruagem. — Mas isto é muito azedo! — exclamou Luredás. — Já não acho mais tanto. Então faça o seguinte: corte-o, e chupe a metade. Eu chupo a outra. Não fiquei doente da outra vez, então não é desta que ficarei. Mas chupe a fruta totalmente, esse é um conselho de amigo. 190

ERIC MUSASHI


— Está certo — disse Luredás. Eles pararam, e Luredás cortou o limão ao meio com uma pequena faca. Ele fez algumas caretas no início, e terminou com muito custo, mas tentava acabar o mais rápido possível. Arion parecia até estar gostando, e enquanto chupava a fruta não parava de olhar para a nuvem que já estava bem próxima agora. — Vocês não são daqui, não é? — soou uma voz masculina. Os dois viram um típico camponês, com apenas a parte de baixo da túnica cobrindo as suas pernas. Tinha um pano amarrado na cabeça, talvez para se proteger do sol. Não podiam ver a cor dos seus cabelos, mas os olhos eram castanhos, e as sobrancelhas também. Sua face era queimada pelo sol, assim como da maioria dos aldeões atalais — e também como a de Arion. — Desculpe-me, senhor, se estamos em suas terras. Mas é que... — tentou argumentar Arion. — É sempre bom ter visitantes! — disse ele, contente. — O grande Ancatebe fazia banquetes divinos para os mais ilustres, e até mesmo com aqueles que vinham para trabalhar ou procurar conselhos, ainda assim ele era generoso. — Não vai brigar conosco? — perguntou Luredás, ressabiado. — É claro que não. Se estão acostumados com as outras cidades, onde são sempre mal recebidos, então posso compreender o motivo da desconfiança. Alegrem-se, pois agora estão nos domínios da Cidade do Vinho, como costumam dizer. Meu nome é Nagos; em que posso ajudá-los? Arion e Luredás trocaram olhares desconfiados. — Acho que pode nos ajudar de um jeito, gentil Nagos — disse Arion. — Estamos procurando a Cidade do Vinho, a sua cidade, mas não sabemos se estamos longe ou perto, e também se teremos um lugar onde ficar por lá. — Então o Destino foi gentil com vocês — disse Nagos. — A cidade fica na direção onde estavam indo mesmo, a cinco ruaidas, eu acho. Se seus cavalos não estiverem cansados, podemos chegar em menos de duas horas. Posso levá-los até lá, pois minha mãe é dona de uma taverna, e temos alguns quartos que podemos ceder para visitantes. No entanto, precisarei ir na sua carruagem, pois a do meu pai ele usará para ir embora, mais tarde.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

191


— Na verdade, pretendemos passar apenas uma noite em Ancatébia, pois temos que chegar brevemente a Catebete — continuou Arion. — Agradeceríamos muito a sua hospedagem, e se puder nos ajudar de outra forma também, poderíamos até negociar algumas coisas. — O que pretendem negociar? — perguntou Nagos. — Temos alguns preciosos objetos de ouro e prata, e precisamos de comida para irmos até Catebete.Tem ideia de quanto tempo demoraremos daqui até a capital? — perguntou Luredás, enquanto tirava da sacola as joias cedidas por Achades. Nagos colocou a mão direita sobre a boca, como se estivesse pensando em algo. — Creio que... no máximo há... uma? Não... meia farisia entre Ancatébia e Catebete. Isso! Se forem com pressa, exigindo muito dos animais, não levarão mais do que três ou quatro horas. — E que tipo de comida você poderia trocar conosco por uma pequena joia? — perguntou Arion. — Há muito tempo, chegou um carregamento de lentilhas de Porto da Vitória. Depois disso, passamos a plantá-las aqui também. São muito saborosas, eu garanto, e posso dar uma medida para vocês por esta joia — disse ele, pegando uma de prata. — Achei-a muito fina, e a medida dará inclusive para ficarem alguns dias por lá, ou mesmo para grande parte da viagem de volta. Isso é, se houver viagem de volta. — Porto da Vitória... — sussurrou Luredás. — Conhece essa cidade? — perguntou Arion. — Já estive lá. Mas já faz tempo. No entanto, estive pensando em outra coisa agora: Achades devia saber que não precisaríamos de tantas joias para chegar até Catebete. Eu sei que ele não conhecia muito o caminho, pois errou nas previsões sobre a distância entre Ancatébia e a capital, mas ainda assim foi muito generoso. Por que será? — Também não sei o motivo disso, agora que você falou.Talvez tenha apenas sido gentil conosco. Nagos ficou observando os dois, que conversavam sobre fatos que ele desconhecia, e falavam de um nome que ele jamais ouvira. — Mas e então, meus senhores, virão comigo? — perguntou, e Arion e Luredás disseram que sim, meneando as cabeças. Ele foi correndo até sumir no horizonte, e voltou logo depois, quase tropeçando. Estava ofegante, mas 192

ERIC MUSASHI


ainda assim saltou na carruagem de Luredás.Tirou o pano da cabeça, revelando longos cabelos castanhos e encaracolados. Pequenas gotas de água começaram a cair sobre eles. — Vocês não vão se arrepender! — ele disse. — Nós temos o melhor vinho de Grabatal, e nossos colchões são macios, feitos de crina de cavalo. Também temos confortáveis almofadas que vieram de Ticêmis. Agora, pergunto-lhes: posso me cobrir com um dos seus tecidos? Luredás pegou uma roupa sua e deu para ele. — Claro que sim. — Posso lhe perguntar uma coisa? — disse, virando-se para Arion. — Claro que sim — respondeu o tuata. — Mas não posso assegurar que terá uma resposta. — Por acaso é um béli? Obviamente não houve resposta para a pergunta. A chuva caiu forte, e ventos frios agitavam os panos que os cobriam, todos brancos — mas que já estavam muito encardidos. Vez ou outra Arion falava palavras doces para Valente, e acariciava-o no pescoço. Ele amava muito aquele animal, e sofria noite e dia por ter que envolvê-lo nos próprios problemas. De repente, começaram a subir numa íngreme colina, e já estavam tão inclinados que parecia que a qualquer momento iam alcançar o céu, e se chocar com as nuvens amedrontadoras e com os relâmpagos que iam fulminá-los. Assim como fora com Turaquê, que enfrentou aquelas montanhas onde caíam tantos raios — as Toradon —, e mesmo depois de um ter caído nele, sobreviveu. Considerado um dos Filhos dos Titãs, venceu a tribo daquelas terras e expulsou os dragões, aumentando ainda mais o império, sendo aclamado Punho do Relâmpago por causa desse episódio. Anjifum foi o primeiro a ser tido Filho dos Titãs por seus grandes feitos, e era quase como uma divindade. Assim também foi com os outros grandes reis e heróis seguintes, todos aqueles dos quais os livros falavam. Quando finalmente a colina acabou, puderam ver uma enorme depressão, e lá embaixo, cercada de colinas, estava Ancatébia. Mesmo na escuridão da chuva a cidade ainda era majestosa; suas construções lembravam muito as de Jatitã, mas tinham muitos detalhes em ouro e jade, em prata e rubi. Praticamente não tinha muros, pois não era militar, e sim o recanto de paz e alegria de Ancatebe, e de muitos outros que nasceram depois dele. Luredás e Arion ficaram boquiabertos, e Nagos apenas sorriu, pois aquilo sempre acontecia com homens e mulheres que visitavam o

OS HERDEIROS DOS TITÃS

193


seu lar. As casas eram de pedra, esbanjando pilares roliços, assim como os templos em Jatitã. Havia no centro, ao lado da maior construção, um palco circular, com oito colunas ao seu redor. Provavelmente era ali que os músicos tocavam para o béli, que devia morar ao lado, no vívido castelo. — É maravilhosa a Cidade do Vinho, não é? — perguntou Nagos, gritando. Sua voz se misturava com alguns trovões, mas se diferia deles por ser mais aguda. Arion e Luredás nada disseram. Sentiam vontade de se despir e correr na chuva, ali mesmo. Com certeza, era o lugar perfeito para aqueles que buscavam se deleitar. Por mais que soubessem que a alegria terrena era passageira, não estavam pensando nisso naquele momento; soltaram instintivamente os panos que os protegiam da chuva. Arion entregou o seu para Luredás, que guardou na carruagem, que já começava a se molhar. O sol enfim se moveu um pouco mais, já no poente, revelando-se entre as nuvens carregadas, que estavam acima dele, e a colina, que estava abaixo. O ouro da cidade reluzia com grande força, e agora entendiam o motivo de Ancatebe ter passado os seus últimos dias neste lugar. Já tinham terminado de descer a colina, e andavam pelas ruas, ainda desertas, por causa da precipitação. — É aqui — disse Nagos, e então os conduziu para um estábulo. Outros equinos repousavam no lugar. Os trovões já haviam passado, e ali deixaram seus animais. Arion ainda acariciou Valente uma vez mais. Então entraram na taverna, e se sentaram em duas cadeiras. Nagos serviu vinho para eles, e relaxaram, até mesmo cochilando.

III — Venham, rapazes. Aí não é lugar de dormir — falou Nagos. Arion e Luredás foram acordando aos poucos. Algumas velas já estavam acesas, e vinha pouca luz do lado de fora. Não podia mais ser ouvido o barulho da chuva, então era de se deduzir que a tempestade já tinha passado. — Que horas são? — perguntou Arion. — Já é a primeira hora da noite. Portanto, minha mãe pediu que eu os levasse aos aposentos, pois a taverna vai começar a ser frequentada — disse Nagos. — Ou preferem ficar aqui e beber um pouco? Já levei suas coisas para o quarto, e também já preparei o saco de lentilhas. 194

ERIC MUSASHI


Arion se voltou para Luredás, esperando que ele desse a resposta. — Vamos ficar aqui — disse o lirista. — Poderia servir um pouco de vinho para nós? — Claro que sim! — disse Nagos, solícito, e correu para colocar a bebida para esquentar. Luredás então tirou a lira de dentro da túnica e começou a tocar. Muitos que entravam começaram a prestar atenção nele, surpresos, mas Arion não entendia nada. Sim, era uma peça muito bonita; não obstante, não era como aquelas que Luredás tocara em Lira dos Titãs, enigmáticas e viajantes. Quando ele terminou, muitos assobiaram. — Luredás, eu sei que você pode tocar melhor do que isso! — murmurou Arion, e alguns que estavam mais perto ficaram atentos. — Psshht! Fale mais baixo! — disse Luredás. — Há coisas que não devem ser feitas em qualquer ocasião. — Não compreendo — disse Arion. — Em Jatitã você não tocava desse jeito, mas quando chegamos a Lira dos Titãs, comoveu a todos. Eu pensei que tivesse composto essas músicas recentemente, e por isso os outros insurgentes e eu não as conhecíamos. Mas agora que está aqui, nega-se a tocá-las. O que está havendo, afinal? Neste momento, Nagos chegou com os dois copos de vinho. Luredás ficou em silêncio, e Arion fez o mesmo. Eles saborearam a bebida, que realmente era boa como Nagos falara, remetendo-os a noites de festa e vidas sem dor, tudo passando lento e sem perigo. Não tinham certeza de que era o melhor de toda Grabatal, mas nem queriam se preocupar com tal questão: era o melhor que já haviam bebido. Quando terminaram, Nagos pegou os copos. — Vamos até os nossos aposentos — disse Luredás. — Tudo bem, leva-los-ei. Eles saíram do bar pela entrada, e contornaram a construção, que era feita com pedras brancas, e tinha pilares com detalhes prateados. Lá fora, muitos perambulavam pelas ruas. Um fato interessante que Arion e Luredás puderam notar é que nenhum homem ali tinha o costume de se vestir da cintura para cima; tinham apenas algumas joias adornando seus braços e peitos — como as mulheres, mas estas cobriam os seios, revelando apenas as costas. Contornaram a taverna e viram que havia uma casa no fundo. Humilde, mas aconchegante à primeira vista. O estábulo de madeira ficava

OS HERDEIROS DOS TITÃS

195


ao lado, e antes de entrarem Arion ainda olhou para lá, e viu que Valente comia feno. Nagos acendeu uma vela, e perceberam que, além da sala com o caro tapete, algumas almofadas e uma mesa de madeira, havia outros cinco quartos. Eles entraram em um, onde dois colchões de crina de cavalo estavam no chão.Tecidos azuis os forravam, e eles se deitaram. — Se precisarem de algo, é só me chamar ali na frente — disse Nagos, e então se foi. Havia um pequeno barril com água ao lado deles, e dois copos. Pela janela entrava uma brisa gostosa, e podiam ver uma rua lateral. A janela dava para o oeste, de onde vieram. Arion serviu um pouco d’água, e bebeu. Ofereceu para Luredás, mas ele não quis. — Agora, Arion, pergunte o que quiser — disse, apenas. — Bom, a pergunta já foi feita. Não creio que haja necessidade de fazê-la novamente. Luredás ficou disperso, até que disse: — Sim, então lhe contarei o que se deu no passado. Assim, não mais precisarei me explicar novamente quando tomar decisões. — Arion assentiu. — Como eu já disse, estive uma vez em Porto da Vitória. Foi há cerca de três anos, ou um pouco mais. Na época em que sua mãe morreu. — Agora que está dizendo, lembro-me de que não estava lá em Jatitã — apontou Arion. — Sempre tive vontade de conhecer os grandes portos, bem mais movimentados que os jatitanos, de onde chegavam estrangeiros a todo momento. Como era um garoto, fui com uma comitiva que tinha partido da nossa cidade e ia buscar notícias. Aliás, foi por causa dessa viagem que eu vi Lira dos Titãs pela primeira vez. Adorei conhecer algo além da nossa cidade, e foi uma das melhores coisas da minha vida ter viajado. Mas... — Mas o quê? — perguntou Arion, após uma longa pausa de Luredás. — Porto da Vitória era uma cidade única. Deve ser ainda. Conheci muita gente, e lugares inesquecíveis. Não demorou muito até que eu tivesse uma oportunidade de tocar. Já fazia vários anos que eu havia tido aquele sonho com aquele lugar mágico, e a melodia sublime. Eu estava muito próximo de repeti-la. Quando fui até o palácio de Sólen, o béli da cidade, e suas duas mulheres, Crita, a do belo sorriso, e Anes, a de divina beleza, toquei para eles algo próximo daquilo, e eles gostaram muito, sendo que os outros que estavam ali assoviaram por muito 196

ERIC MUSASHI


tempo, quase um sexto de hora. Crita não parava de sorrir, e Anes, sempre linda, deixava escapar lágrimas pelos seus olhos fechados. Sólen me parabenizou, e eu fiquei extremamente feliz. Acabei ficando alguns dias no castelo. — Realmente, até os mais poderosos são capazes de reconhecer o quanto você toca bem — disse Arion. — Às vezes as pessoas exageram um pouco — continuou Luredás. — Sim, mentiria ao negar que fico feliz quando vejo que todos gostaram da minha música. Mas a notícia se espalhou, e muitos iam me ouvir a cada noite. Não demorou para que começassem a me ver como uma lenda, como alguém que é mais que um ser humano. Muitos começaram a me chamar de Filho dos Titãs, assim como chamavam os reis e heróis do passado. Definitivamente, não existem Filhos dos Titãs. Os titãs, se é que existiram, eram homens como nós, homens do passado, de uma terra distante que se foi. — Luredás já estava se alterando. — Mas ainda não entendo o porquê de não querer tocar suas melhores peças neste lugar. Luredás respirou fundo. Como Arion era ansioso! A história ainda não tinha acabado. — Ainda assim, fui capaz de aguentar a ilusão deles. Era mais difícil caminhar nas ruas, e até o próprio Sólen começou a ficar enciumado. Tanto pelo modo como o povo me tratava como pelas suas próprias esposas, que começaram a dirigir toda a sua atenção para mim. A gota d’água foi quando mais de 5.000 pessoas ficaram na frente do seu castelo e jogaram rosas sobre mim. Eu sabia que ele não me queria mais ali, e também não queria ser o deus particular de ninguém; peguei o meu cavalo e fugi, desesperado. Anes mandou que alguns homens me acompanhassem, pois ela sabia muito bem o que se passava no meu coração. Eles me ajudaram a chegar a casa, e depois se foram. Não sei se ainda se lembram de mim, mas aprendi algo com isso: não são todos que estão preparados para as coisas além do nosso mundo. Pode compreender isso, Arion? — Posso. Também não acredito em deuses — exceto pelo fato de que eles foram grandes pessoas. Mas ainda assim acho que devia mostrar o seu trabalho para outros, principalmente aqui, onde o povo gosta muito das artes. — Toquei daquela forma em Lira dos Titãs porque era um lugar pequeno. Um lugar afastado das grandes cidades, e até mesmo desconhecido para muitos. Ainda me surpreendo pelo fato dessa notícia não ter se

OS HERDEIROS DOS TITÃS

197


espalhado por todo o continente. Fico feliz que tudo tenha acontecido em Porto da Vitória, um lugar um tanto afastado do resto do Reino. Estão mais preocupados com suas navegações. A Rainha Quetabel ainda nem deve saber sobre as Ilhas Solenas, e também sobre Ticêmis. Admira-me Nagos conhecer tais relatos. — Fico triste por saber que outros não terão o prazer de ouvi-lo tocar como Ariádan, aqueles de Lira dos Titãs e eu ouvimos. Espero que ainda mude de ideia. Os dois não conversaram mais. Arion se levantou e ficou olhando pela janela, onde muitas pessoas ainda passavam, mesmo pela noite que já avançara um pouco mais. Ele se divertia nas estrelas, como sempre tinha gostado de fazer, e quando voltava a observar a rua, podia notar uma ou outra donzela observando-o com um sorriso, ao que passava. Luredás logo adormeceu, e Arion apanhou a sua lira no chão e foi até o lado de fora da casa, onde tocou uma vez mais as músicas que Faná havia composto. Novamente, ao visar o céu, percebeu aquela estranha estrela, ofuscada mas presente, com o seu chamuscar avermelhado. Parecia encará-lo, rindo da sua ingenuidade. O sono o tocou também, depois de uma jornada tão cansativa, e enfim entrou e também foi dormir.

IV O 21º dia de protomês amanheceu com um céu limpo, em grande contraste com a tempestade da tarde anterior. Arion acordou, e Luredás não estava mais no quarto. Ele levantou vagarosamente, despertando-se com um pouco d’água, e então viu um apetitoso pão na mesa, e também um copo com um pouco de vinho. Tocou, e percebeu que estava quente. Devia ter sido colocado ali há pouco tempo. O sol, ainda levemente alaranjado, entrava pelas janelas abertas e deixava o ambiente com um ar nostálgico; aquela coloração se parecia com a das lembranças de Arion. As memórias de Faná e Téoder, felizes, correndo pela casa e brincando com ele, ainda criança. Ele sentiu um beijo de afeto quando a bebida quente tocou os seus lábios. Ouviu um barulho, e se virou para trás, onde a porta estava aberta e podia ver a grama rala do quintal. O bar se erguia um pouco mais à frente, imponente. Logo viu Nagos, entrando. Estava com uma saia — apenas a parte de baixo da túnica — azul, e uma faixa vermelha na testa. Tinha um rosto bem-disposto. 198

ERIC MUSASHI


— É uma formidável espada de béli — comentou, e Arion nem se dignou a responder. — Por acaso é um imane? Imagino que não seja, pois se fosse, teria dito logo que me encontrou. No entanto, tem muitas joias. Acaso é um ladrão? Arion riu, e continuou comendo tranquilamente, até que terminou de mastigar e se virou para Nagos. — Já terminou de especular sobre mim? Eu não vejo motivo para lhe dar satisfações, uma vez que não dei antes e você não cobrou mais, mas se as quer, então as terá. — Arion pegou no cabo da espada, sacando-a com grande rapidez. Os olhos castanhos de Nagos faiscaram, e ele deu um curto passo para trás. — Não, não sou um béli. Se quiser me chamar de ladrão, pode chamar, pois tomei esta espada de um imane que queria me matar. Não tive escolha. — V-você de... derrotou um imane?! — Nagos gaguejava, e a lâmina trabalhada com muita habilidade, bem como a disposição dos cristais e outros detalhes, tudo eram fortes indícios para ele. A confirmação de algo que deduziu ao ver os dois tuatas perto de suas terras na tarde anterior. Arion pegou o seu copo e virou, sentindo o líquido quente descendo pela garganta. Nagos observava pensativo, absorto. — Estaria mentindo ao dizer que o derrotei — Arion respondeu. — Não tenho habilidade para derrotar em combate o lendário Escleros, ainda mais estando eu desarmado. Mas consegui roubar sua espada. — Essa espada foi de Escleros?! Você realmente é misterioso, rapaz! — Nagos exclamou. — Eu poderia vê-la? — perguntou com os olhos pidões, e Arion o fitou seriamente. — Não precisa se preocupar; eu não sei lutar. Mas Escleros, juntamente com Tromos, são os únicos remanescentes dos clãs Duas Espadas de Antel. Dizem que ele, que se chamava Egle, e seu irmão, que se chamava Áigon, mudaram de nome para nomes parecidos com os dos dois filhos de Antel, fundadores dos clãs. — Estranho — disse Arion, com um sorriso irônico. — Eu vivia em Jatitã, mas nunca soube dessa parte da história. Desta vez foi Nagos que gargalhou. — E quem foi que lhe disse que eles nasceram na antiga capital? — Agora as situações se inverteram, e Arion se mostrava surpreso. O rei perdera a coroa, não tinha mais o controle da situação. — Se lhe disseram isso, ou mentiram para você, ou aprenderam errado. Os dois nasceram aqui, mas tinham uma amizade com Sevijá, aquele que tramou para tomar o lugar de Verjar, até onde eu sei. Perguntome: será que ele conseguiu?

OS HERDEIROS DOS TITÃS

199


— E eu lhe respondo: sim. Rassuí, filho de Verjar, era meu amigo. Ele sofreu pela morte do pai, e se juntou a mim, numa rebelião. Não lhe contarei em detalhes, mas no fim, acabei travando um combate de vida ou morte contra Sevijá, e venci. Não por minha força, mas pela ajuda de Rassuí, que também morreu na luta. Então passamos a ser perseguidos por Escleros e Tromos. Ou melhor, Egle e Áigon, como acabei de saber. — Entendo. Acho que já perguntei demais sobre você. Aqui em Ancatébia, não costumamos nos preocupar muito com a vida dos outros. Está indo para Catebete, e deve ter bons motivos para isso. Mas agora me deixe ver essa espada. Como já lhe disse, não sou guerreiro. Arion entregou a arma. — Mesmo que lutasse, eu não teria medo. Primeiro, porque se mostrou como alguém confiável. E segundo, porque sou Arion, filho de Téoder. Ele me treinou. Nagos ficou sem respirar, e essas surpresas vindo por todos os lados já estavam tornando a cena um tanto fantasiosa, e até mesmo cômica. — Agora compreendo por que conseguiu tomar esta espada de Egle. — Nagos começou a examiná-la, muito admirado. O prateado com pitadas azuis o remetia a um mundo mágico, completamente divino. De repente, enquanto alisava a lâmina, parou. — Há algo escrito aqui — disse. — Saladágni; Espada de Fogo — sussurrou Arion, ao se aproximar. — Valeu a pena ter deixado você examiná-la, pois percebeu algo que eu ainda não tinha sido capaz de notar. Uma vez eu vi Escleros fazendo esta espada emitir uma luz avermelhada, algo que não fui capaz de produzir. — Pois lhe digo que nem mesmo o Grande Téoder seria capaz de fazê-lo — respondeu Nagos. — Neste ponto conheço pouco, mas até onde me disseram, as Espadas Vermelhas caracterizam as técnicas dos Clãs Perdidos, como também costumam dizer. Já viram espadas de brilho azulado de várias intensidades, desde pequenas chamuscadas a clarões ofuscantes. Mas os guerreiros mais poderosos conseguem romper os limites da realidade invocar a Chama Branca, e até onde eu sei, somente o Grande Téoder consegue fazê-lo nos dias atuais. — Ele fez uma pausa, e se sentou. — É de praxe que todos falem que o clã de sua cidade tem a melhor técnica de luta, mas eu já visitei Catebete muitas vezes, e já vi Téoder lutar. Sou realista. Sim, a técnica do Punho Etéreo pode ser vencida, se aquele que a confronta for melhor guerreiro. — Arion abaixou a cabeça e se lembrou dos golpes de Sevijá, e da sua grande perícia, que quase tirou a sua vida. — O branco é a luz total, assim como a sombra é a falta 200

ERIC MUSASHI


de luz. No entanto, aqueles que aprendem as técnicas de Duas Espadas de Antel, ou melhor, do Espada de Cretos e do Espada de Antros, acabam conhecendo a Chama Vermelha. Sim, pode parecer impossível fazer uma espada com pedras transparente-azuladas emitir uma luz vermelha, mas você já viu isso. Arion estava surpreso: — Você é muito sábio. Parecia ser apenas um fanfarrão, mas é realmente muito culto. No entanto, tenho uma questão: e a Chama Negra? Ouvi algo parecido há muito tempo... — Você não percebeu como é idiota o que acabou de dizer? — ele caiu na gargalhada. — Foi uma brincadeira. Mas até mesmo os sábios de Acaldã teriam dito o que eu disse. Bando de idiotas... — Ele falou com agressividade, e só aí Arion lembrou que a espada ainda estava na sua mão. Parecia que não era mais um rapaz de Ancatébia, alguém que só quer se divertir. — Pode devolver a minha espada? — solicitou Arion. Nagos negou por um instante, e então pareceu cair em si. Voltou a ter o semblante de um jovem fanfarrão, como Arion dissera. Ele devolveu, e foi se afastando: — Depois que terminar de comer, vá até a taverna. Luredás está lá, e então mostrarei a cidade para vocês. — Espere, Nagos! O que ia me dizer sobre a Chama Negra? — Esqueça isso, Arion, filho de Téoder. Arion demorou um pouco para voltar a comer. Intrigava-o como Nagos sabia tanto sobre isso. Mas não devia se preocupar. Levantou-se, e foi até a taverna. Lá estava Luredás, juntamente com o taverneiro; não havia mais ninguém. Nagos bebia vinho, mas parecia não se preocupar com nada, enquanto ficava com os esguios braços cruzados. Um pouco de vento entrava pela porta da frente, agitando os cabelos sem cor do músico. — Minha mãe aceitou ir trabalhar no meu lugar hoje — disse Nagos, sem nem olhar para Arion e Luredás. — Dormiu bem, Arion? — perguntou Luredás, cordialmente. — Sim — ele respondeu, e se sentou ao seu lado. — E você? — Não.Tive sonhos que não gostaria de ter tido. — Por acaso foram sobre... Neara? — indagou Arion. Luredás não respondeu, apenas o fitou com reprovação; não deviam falar sobre isso

OS HERDEIROS DOS TITÃS

201


na frente de Nagos, por mais que ele se mostrasse como um ótimo anfitrião. — Desculpe-me por tocar neste assunto. Mas e então, partiremos hoje ou amanhã? — Partam amanhã, eu lhes peço — soou a voz de Nagos, que enfim tinha terminado a bebida. — Talvez não tenham outra chance de conhecer melhor esta cidade, e vão ver que teriam se arrependido de não ter conhecido-a. — Por mim, tanto faz — disse Luredás. — Não é meu pai que está me esperando. Arion abaixou a cabeça, pensativo. Nagos assustou-se com o que Luredás disse: “Se ele se juntasse com o Grande Téoder...”, ele pensou. — Ora, vamos, Catebete não vai sair do lugar — insistiu, levantando-se e rindo. — Venham, vão adorar a cidade! — Não sei se farei outra jornada na minha vida — disse Arion. — Não vejo por que não aproveitar as oportunidades que tenho de conhecer os mais variados lugares. Vamos!

V Eles saíram, e já devia ser a terceira ou quarta hora. As ruas não estavam cheias como na noite anterior, mas ainda havia rapazes e moças desocupados andando por ali, principalmente raparigas. Poucos cavalos estavam pelas vias, e ao vê-los, Arion se lembrou de Valente. Voltou para o estábulo, para alimentá-lo e ficar um pouco com ele. Luredás e Nagos se sentaram num banco de pedra no meio de uma praça, que tinha grama e flores. Bem no meio havia uma estátua de um homem com um físico admirável e uma felicidade estampada na face. Aquele é Ancatebe, disse Nagos para Luredás. — Eu vi que Arion está indo para Catebete atrás de Téoder, que é seu pai, não é? — perguntou Nagos, e Luredás nem olhou para ele. — Mas e você, Luredás, o que deseja naquela cidade maldita? Luredás pensou um pouco antes de responder. — Estou apenas acompanhando um amigo, e não me queixo por ter saído de Lira dos Titãs, e muito menos de Jatitã. Mas por que chama assim a nossa capital? — É isso o que ela é. Mas não sou eu quem falará mal da cidade dos outros. Você está com o filho de Téoder, e ele carrega a Espada de Fogo, que já foi de Escleros. Com certeza chegarão até lá, mesmo tendo que passar perto das Construções Antigas. E então verão... 202

ERIC MUSASHI


— Construções Antigas?! — Sim. Alguns templos um tanto grandes, que Quetabel mandou construir em sua homenagem há muito tempo. Muitos creem que o caminho é seguro, por passar perto deles. Mas depois falaremos sobre isso, se tivermos tempo. Há-há, Arion resolveu vir montado no cavalo. São mesmo grandes amigos — ele apontou para Arion, que vinha com Valente. — Tem sorte, filho de Téoder, por ter encontrado um animal tão valoroso. — Sim, tem razão — respondeu Arion. — E então, vamos? E então eles foram andando. As ruas eram de pedras quadradas, algumas levemente disformes, outras um tanto quebradas. A estrutura lembrava muito a de Jatitã, uma cidade circular. Jatitã era assim por ter sido construída num monte, e com certeza era uma das mais criativas construções humanas de todos os tempos, sendo imitada por alguns descendentes de Grabatal. Já Ancatébia, ou Cidade do Vinho, era assim porque o rei que a construiu a quis desta forma. Ficava numa depressão cercada de colinas verdes, algo que já não era visto com frequência nas atuais terras desertas, inférteis e quase sem chuvas de Grabatal — a não ser pela Bacia do Nascente, o Delta do Poente e, é claro, as Planícies Proibidas. A cada três ou quatro ruas laterais uma nova praça se revelava, com piscinas e estátuas, seja de Ancatebe ou de outros homens que foram famosos na cidade. Arion já tinha descido de Valente, e apenas o segurava pelas rédeas, enquanto caminhava juntamente com Luredás e Nagos. Parecendo um “guia turístico” de tempos antigos, Nagos mostrava para eles cada lugar notável. Aos poucos, tudo foi se tornando repetitivo. Então Arion começou a ver que vez ou outra Nagos ficava por algum tempo olhando para a Saladágni, e quando os olhares dos dois se cruzavam, o ancatebiense apenas esboçava um sorriso amarelo e voltava a falar sobre os nomes dos lugares e contar histórias. — Aqui — disse Nagos, parando abruptamente —, é o Teatro. — Teatro? — perguntaram Luredás e Arion juntos. — O que é isso? — seguiu falando Luredás. — Muitos compõem peças, assim como você, jatitano. Alguns na lira e outros na flauta. Existem também os que escrevem versos métricos. No passado, quando ainda eram poucos, enalteciam os Filhos dos Titãs.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

203


Anjifum, Turaquê, Umbaz, Ancatebe, Téoder... Mas depois Quetabel proibiu que falassem nos grandes de outrora. Há! Mas o seu poder não chega aqui Versos do passado e pergaminhos antigos se transformam em histórias visuais. Pessoas que têm talento para representar tomam o lugar de personagens famosos, e revemos as histórias. É muito bom! — Achei muito interessante! — exclamou Luredás. — Quando terá a próxima apresentação? — Hoje. Hoje à noite — replicou Nagos, soturnamente. — O béli da cidade e os imanes devem gostar disso, não? — perguntou Arion. — Pois autorizaram a construção desse... Teatro, não é? Sim, pois se autorizaram a sua construção bem ao lado do castelo... — Está certo, Arion. O béli Hessêni, ou o Belo, como costumam chamá-lo, apesar de ser lamentável como guerreiro, dá muito valor para as artes. Ele também é misericordioso, ainda que ingênuo. — Nagos o ironizava. — É contra a violência, e foi capaz de tirar o posto de um dos seus imanes porque ele matava criminosos. Que idiota! — Então parou, ao ver que havia falado demais. — Mas sim, foi muito bom em deixar que o Teatro fosse construído aqui. Hoje à noite verão um verdadeiro espetáculo. Eles então ficaram por algum tempo olhando para o castelo. Diferente de todos os outros, não tinha telapuros vigiando as entradas. E as grandes portas de madeira estavam abertas. Seus pilares cilíndricos — assim como quase todos os outros — possuíam detalhes em ouro, prata e rubi. Além do nível de baixo, havia também um segundo andar, e vários quartos e salões isolados se erguiam, ficando mais altos que a cobertura. Viram, então, um homem, com olhos e cabelos castanhos, vindo lá de dentro. As mechas eram levemente onduladas, e a leve brisa as agitava. Tinha uma expressão amigável, e vestia trajes de coloração roxa. Usava um bracelete feito por folhas de videira banhadas em ouro no braço esquerdo, e sandálias de couro nos pés. Ele rapidamente notou os três que observavam seu palácio, e foi se aproximando deles. Quanto mais perto chegava, mais moço parecia ser. Visava principalmente Arion e sua espada suspeitíssima que repousava na bainha dada por Achades. — Talvez eu esteja errado — ele disse, e sua voz soou suave e jovial —, mas vocês dois não são daqui, não? 204

ERIC MUSASHI


— Não somos, meu senhor — respondeu Luredás. — Estávamos passando, e fomos muito bem recebidos por... — Nagos — disse, interrompendo Luredás. — Como vai, Nagos? — perguntou por perguntar. — Vou muito bem, respeitável béli.Arion e Luredás, este aqui é o béli Hessêni — disse, virando-se para os dois. — É um prazer conhecê-lo — disse Luredás. — Nagos estava nos contando que o senhor é um apreciador das artes, e autorizou a construção do que chamam de Teatro. Eu sou um músico, amante do som lira. Não só da lira, mas também da flauta. Fico feliz em saber que há um béli que não pensa somente em combates, e se preocupa com as outras habilidades que os homens podem desenvolver. — Hum... — respondeu Hessêni, pensativo. — Você parece ser um rapaz confiável. Por favor, gostaria de lhe fazer um convite, mas antes disso, quero conhecer melhor este outro, que carrega uma fina espada de béli, pelo que parece. — Então agora já conhece mais sobre o ofício de béli, senhor? — indagou Nagos, contendo a gargalhada. Hessêni nada respondeu. Arion fulminou Nagos com o olhar, pois já estava um tanto desconfiado sobre sua índole, depois de tudo que vinha acontecendo. Além disso, Hessêni demonstrava ser uma boa pessoa, e de qualquer forma um béli tinha que ser respeitado em seus próprios domínios. — Eu não partilho da mesma opinião de Nagos, meu senhor. E, para mim, todo béli é digno de reverência, até que tenha alguma atitude que mostre que não é honrado, como fez Sevijá em Jatitã. Eu sou Arion, filho de Téoder, e por isso tenho uma espada com sevaste. Sim, dir-me-á que somente bélis, e não imanes, podem empunhar as finas armas de béli. Mas o homem do qual tomei esta espada era um imane. — Tomou essa espada de alguém? Isso é um crime, apesar de eu não ter nada a ver com o caso e não poder julgá-lo. Mas de quem a tomou? Creio que virá atrás de você para tê-la de volta, e nada poderei fazer para ajudá-lo. — Isso não me preocupa; tenho que chegar a Catebete o mais rápido possível, antes que ele apareça para o Conselho dos Bélis. Lá falarei com o meu pai. E tenho certeza de que nem Escleros é páreo para ele.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

205


— Você fala de Egle?! — admirou-se Hessêni. — Se foi dele que tomou essa espada, então não mais considero um crime, e sim uma benfeitoria. Aliás, se é filho de Téoder, já posso vê-lo como um grande aliado, defensor da justiça. Então estão indo para a capital... Eu também partirei para lá, mas pensava em ir daqui a quatro ou cinco dias, pois aqueles dos pontos mais distantes demorarão muito para chegar até lá. Quando pretendem partir? — Amanhã, meu senhor. E sim, foi daquele que aqui chamam de Egle que tomei a Saladágni. — Egle?! — desta vez foi Luredás que estranhou. — Sim, esse era o seu nome original — respondeu Hessêni. — E Áigon era o nome de Tromos. Mas é melhor deixarmos essa história triste para trás, pois há detalhes que hão de ser esquecidos. As pessoas erram, mas têm o direito de se redimir. Não é, Nagos? Nagos apenas meneou a cabeça. — Acho melhor partir com vocês — disse Hessêni. — Só tenho dois imanes nos dias atuais, depois da Grande Traição, e um deles teria que ficar. Passar perto das Construções Antigas é muito perigoso quando se está num grupo pequeno. Podemos partir durante a primeira hora? — O que acha, Luredás? — perguntou Arion, como de costume. — Sim, é uma boa hora. — Como foram acolhidos com Nagos, presumo que dormirão mais uma noite lá — disse Hessêni. — Mas se quiserem, meu castelo está de portas abertas. Sempre. — Agradecemos pelo convite — respondeu Arion. — Mas até já fizemos negócios com ele, e ficaremos por lá. No entanto, vai assistir à apresentação de hoje à noite? Nem sei do que se trata, mas Luredás e eu viremos, juntamente com Nagos. — Sim, virei — confirmou o béli. — Quando estou aqui, não perco as apresentações de forma alguma! Sobre a encenação, ela é a que tem mais sucesso nos últimos tempos. Fala da lenda que ainda anda entre nós. Intitula-se “O que sobrepujou os lobos”, e acho que vai gostar muito, pois conta o mais famoso episódio da vida do seu pai. Arion ficou quieto, e Luredás se sentiu envergonhado, pois sabia que era uma situação embaraçosa. No entanto, cada vez que Arion ouvia o quanto Téoder era admirado, e como era importante para quase todos que o tinham visto ao menos uma vez, ele próprio sentia mais amor pelo 206

ERIC MUSASHI


pai. A ferida em seu coração diminuía. Mas só podia ver um paradoxo: como aquele homem tão cheio de qualidades podia ter assassinado tão brutalmente a mulher que amava? Sim, era uma ordem da Rainha, Rainha Imortal, como gritavam por todos os cantos. Entretanto, lembrou-se do que Hessêni disse sobre homens terem direito de se redimir. O silêncio foi quebrado: — Sim, ficarei feliz e honrado por ter a chance de conhecer melhor uma face do meu pai que jamais foi mostrada para mim — respondeu o filho de Téoder, para a surpresa de Luredás. Os outros dois acharam que era apenas uma resposta comum e cortês. — Agora, tenho que ir — disse Hessêni. — Assuntos urgentes me aguardam, e tenho que preparar tudo para a viagem amanhã. Mas deixarei ordens para que sejam bem-vindos em meu palácio, e que um bom vinho seja servido a vocês. Caso queiram, cortesãs também os aguardam. — Muito obrigado — respondeu Luredás, e agora sim estava sendo cortês, pois nada daquilo o interessava. — Estou ansioso pela apresentação. — Ah, e já ia me esquecendo! — disse Hessêni. — Por favor, antes que eu parta, toque alguma melodia para mim. Eu lhe peço, pois se for tão bom como presumo que seja, então pedirei que toque durante a noite. Está com a sua lira, ou flauta, aí? — Sim, estou. Ele então começou a tocar uma de suas melhores peças, mas não era nada além disso. Nagos até se admirou, pois seus dedos eram ligeiros, muito mais do que o normal. Mas Arion, que pensava sobre o pai, enaltecendo-o em sua mente, foi se enfurecendo. Por que Luredás não tocava o máximo que podia fazer? A peça se acabou, e Hessêni sorriu. Luredás era bom, mas havia outros como ele em Ancatébia. — É, realmente, merece tocar para todos ouvirem. Traga a sua lira hoje à noite — disse, e se despediu. Quando já ia longe, Arion correu até ele, indignado. — Um momento, meu senhor! Eu não sei o que há com Luredás, mas isso não é o melhor que ele pode fazer. Quando estávamos em Lira dos Titãs, ele tocou de uma forma que fez caírem lágrimas pelos rostos de todos. E recentemente descobri que até foi chamado de Filho dos Titãs em Porto da Vitória. Por favor, volte! Eu farei com que ele lhe mostre.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

207


Hessêni nada respondeu, mas voltou — não havia nada a perder mesmo. Chegou a duvidar do que Arion disse, até. E quando voltaram, ainda viu Arion dar uma bronca em Luredás. Ele relutou, mas não só Arion, também Nagos e Hessêni insistiram. Ele então começou a dedilhar lira lentamente. A harmonia da sequência de notas já os surpreendeu, preparando-os para o que estava por vir. Enquanto a música se desenvolvia, alternando entre momentos de clímax e partes extremamente calmas, eles viajavam em pensamento e espírito. Hessêni parecia ver a paz completa, um teatro lotado, muito vinho e donzelas de perfeita beleza ao seu redor. Nagos tinha vários pensamentos, pensamentos que ele não revelaria para ninguém até que fosse chegada a hora. Já Arion via Téoder e Faná. Lobos voaram sobre ela, mas ele, com sua espada, produziu uma luminescência branca que cegou a todos, e os venceu. Contudo, os lobos não paravam de vir, e ela pegou a espada dele e se esfaqueou. Ele chorou muito, mas não havia solução. A melodia acabou, e voltaram a si. Nagos foi o que menos se impressionou, mas ainda assim se vidrava em Luredás, como que estivesse enfeitiçado. Arion se virou de costas, para esconder a emoção. Hessêni tinha um sorriso muito sincero no rosto, revelando uma alegria de viver, uma felicidade infantil. Ser feliz por não saber que se é feliz. — Você deveria ser punido por tentar esconder o seu tesouro dos outros — disse Hessêni. — Mas só por possuir esse tesouro, já está acima das punições. — É por esse motivo que o escondo — explicou Luredás. — Não quero estar acima de ninguém. Podem até me chamar de Filho dos Titãs, pois creio que foi deles que peguei emprestada tal preciosidade. Mas, por favor, não são todos que estão preparados para ouvir isso. Não me peça; não tocaria algo tão profundo e verdadeiro nesta noite. Ao homem foi dado o direito de estremecer a natureza, mas não à toa. Foi só aí que os três perceberam que havia muitos pássaros ao redor deles, principalmente perto de Luredás. O chão parecia lhes dar toda a segurança, e as flores cantariam, se pudessem. Uma chuva torrencial caía sobre eles, mas era refrescante, e de modo algum danosa. A luz do sol os tocava, e não abafava o ar, apenas os aquecia da forma que necessitavam. O vento os enlaçava, e sentiam que queria levá-los ao Desconhecido. Arion desembainhou a espada, e viu que ela emitia um azul intenso. No entanto, não tinha o poder de ferir, mas apenas de confortar — assim como fora nas bordas da Floresta Sem Vida. 208

ERIC MUSASHI


— Não tenho o direito de exigir nada de você, pois é maior do que eu, quer queira ou quer não. É um Filho dos Titãs — confessou Hessêni. — Sinto-me abençoado por saber que viajarei com vocês dois, o filho de Téoder e o maior músico que já ouvi tocar. Mas agora devo ir. Espero vê-los durante a noite. — Ele fez um gesto cortês e se afastou dos dois, entrando novamente no castelo. — Surpreendeu-me muito, Luredás — disse Nagos. E eles continuaram andando, e conhecendo a cidade. Comeram algumas frutas na sétima hora, e também viram piscinas e praças, todas movimentadas. Um dia era o suficiente para conhecer os mais formosos lugares de uma cidade de menos de 20.000 habitantes — fora os 15.000 que viviam nas comunidades rurais. Luredás gostava de cada lugar que via, mas Arion nem prestava atenção. Seu pai não lhe saía da mente. E assim o dia passou, o sol se pôs e eles voltaram para a casa de Nagos. Muitas carruagens regressavam das vinhas e das outras plantações. Tomaram um bom banho de banheira e se arrumaram. Logo estariam vendo a apresentação “O que sobrepujou os lobos”!

VI As noites costumavam ser escuras em Ancatébia, mas não quando ia ter uma apresentação. Tochas foram acesas, e quem viesse das colinas veria muitos pontos luminosos, como que um exército de vagalumes. Se durante o dia a cidade já era especial ao ser vista dali, durante esta noite, seria como um diamante. Com certeza Hessêni espalhara boatos sobre Luredás, pois muitas moças o cumprimentavam enquanto cruzavam com ele pelas ruas. Isso deixou Arion ainda mais curioso a respeito de Nagos, pois provavelmente Hessêni teria dito “aquele que anda com Nagos, de cabelos mais longos”, uma vez que Luredás e Arion não eram desta cidade. Por que Nagos era tão conhecido assim? A taverna de Nagos ficava numa das extremidades da cidade, portanto, teriam um caminho um pouco longo, já que o Teatro e o castelo ficavam praticamente no centro. Arion fez questão de ir montado em Valente, e Luredás pegou um dos seus cavalos, oferecendo o outro para Nagos. Este tinha os seus, mas aceitou para ser gentil. E assim os três se foram, logo chegando. Havia muitos lugares de pedra ao sul do palco, e todos estavam muito cheios. Quando eles chegaram, perceberam que Hessêni acenava

OS HERDEIROS DOS TITÃS

209


para eles. Como era o béli, todos os outros se levantaram e olharam para trás. Arion inclusive se sentiu envergonhado, sendo o centro das atenções. Vários telapuros foram até eles, e levaram os cavalos para o estábulo do castelo. Os três foram até Hessêni, sentando-se ao seu lado. — Que bom que vieram — sorriu o béli. Arion e Luredás então notaram que várias mulheres estavam atrás dele. Sim, era confiável, mas havia nascido nos costumes dos tempos de Quetabel, e na capital de Ancatebe. Dois homens se levantaram e foram até eles. Os dois tinham olhos verdes e cabelos castanho-claros, e portavam espadas longas com pedrinhas de sevaste. — Estes aqui são Ádiler e Elmo, meus dois imanes. Ádiler irá conosco. — Ele então se virou para Arion e Luredás. — Ádiler e Elmo; estes são Arion, filho de Téoder, e Luredás, o hábil lirista do qual lhes falei. — É um prazer conhecê-los — disseram Arion e Luredás, e todos se sentaram. Enquanto Luredás se maravilhava com palco, imaginando-se ali, tocando, Arion percebeu furiosos olhares sendo trocados entre Nagos e Ádiler. Nagos tocava a própria testa, desviando os cabelos para o lado, e só agora Arion notou que ali havia uma horrenda cicatriz, com coloração roxa. Só poderia ter sido causada por poderes etéreos. Então alguns homens e mulheres subiram no palco. Um deles, que tinha uma espada leve repousando na cintura, cabelos grisalhos e penetrantes olhos verdes, vestia uma armadura de béli, mas não era verdadeira. Seus cristais, bem como os da espada, eram pedras sem valor comercial. Um outro com longos cabelos da cor do céu noturno e olhos azuis empunhava uma lâmina longa de imane e trajava uma armadura assim também. Outros homens usavam roupas de telapuros. Uma mulher se vestia com poucas partes de couro; um tapa-sexo e um bustiê, botas e braceletes. Tinha ondulados cabelos castanhos e olhos da mesma cor. Outra, vestia roupas de béli, e portava uma lança, pintada de azul na lâmina. Suas madeixas eram loiras, e os olhos, azuis. Também repousava uma espada leve na cintura. Todos estavam mascarados. Um último homem ficou mais próximo da plateia, com vestimentas comuns — uma túnica azul escura e sandálias de couro. — Sejam bemvindos ao Teatro! — ele disse. Sua voz era grave e gostosa de se ouvir. — Aqui, hoje, será apresentada “O que sobrepujou os lobos”, que foi baseada nos versos de vários poetas de Acaldã, que chegaram até aqui por inter210

ERIC MUSASHI


médio do nosso béli Hessêni, o Belo. Tudo isso aconteceu realmente, e o Grande Téoder pode confirmar, além de Seida, béli de Acaldã. Antes de começarmos, lerei os versos escritos naquela cidade, morada do saber. Passos no escuro... posso ouvir Sonhos no coração... posso sentir Um Filho dos Titãs... ei-lo aqui Um novo amanhã... pois vai surgir O melhor aluno... ele foi sim Orgulho do mestre... contou a mim E brandiu espada... só em ardor É sua amada... oh Béli-Mor Sábio grão-mestre soube de tudo Mas vento mudo em tarde fria Mostrou o erro que cometia Lobos viriam em pleno dia O passado traz ensinamento E a quem não ouve é tormento Por que de novo esse caminho Que é todo feito de espinhos? Alil caiu e ninguém viu E a missão foi só lição Mas Céu sorriu e se abriu A explosão, consumação Em Acaldã está a resposta E Téoder fez sua aposta A aliança está formada Pela lança e pela espada Passos no escuro... não vou ouvir Sonhos no coração... posso sentir Um Filho dos Titãs... ei-lo aqui Um novo amanhã... não vai surgir Porque ele está... já bem aqui!

OS HERDEIROS DOS TITÃS

211


O narrador terminou, e um silêncio se deu no local. Arion sentiu-se nu; haviam tocado no fundo de sua alma. Depois de um tempo, enfim o homem voltou a falar: — Vocês já devem ter percebido que a nossa Rainha não permite que tais versos sejam pronunciados. No entanto, quebramos sua lei. Sim, se alguém quer nos denunciar, que o faça. Mas cremos em Téoder, e ele é um Filho dos Titãs. O do nosso tempo. Quem preferir seguir Quetabel, a que não foi capaz de sobreviver aos lobos, pode se retirar. Ninguém se levantou. Pelo contrário, todos começaram a assobiar, e o homem então se foi, com um largo sorriso no rosto. Pela primeira vez Luredás e Arion tinham visto uma manifestação contra Quetabel, além do seu movimento — que, aliás, dera errado. Em seguida, os atores começaram a se mexer no palco. — Téoder, filho de Odel — disse o homem de cabelos grisalhos —, o seu treinamento está encerrado. Você se destaca dos demais, não só pela habilidade nata com as armas, que creio que supera a minha, mas também pelo seu coração, justo e leal.A partir de agora é um imane, e o seu destino é ser o meu sucessor, o novo Béli-Mor.A espada etérea será entregue a você — concluiu, e só então perceberam que aquele que representava Téoder não estava mais com a espada na cintura. — Fico feliz em recebê-la, sábio mestre — disse ele, apanhando o presente. — Juro, deste momento em diante, honrar os conhecimentos que recebi e a espada mágica que me foi entregue. Lutarei sempre para o bem de Catebete e de Grabatal, mesmo que algum dia tenha que ir contra os meus próprios interesses. Morrerei em batalha, se for meu destino, e farei com que fiquem felizes por terem me escolhido para ser um imane. Se o juramento era igual ao verdadeiro, ninguém podia saber, uma vez que costumava variar de uma cidade para outra. Mas Arion se comoveu, principalmente quando falava sobre ir contra os próprios interesses para o bem do Reino. E assim a peça continuou. Falou sobre os dias em que Téoder esteve comandando a cidade, enquanto Alil fazia viagens misteriosas. Fantasiaram sobre sua viagem, inventando uma ida até Acaldã e uma preparação para a viagem famosa. No entanto, diferente da versão romanceada, a viagem de Alil tinha sido impensada e inconsequente. Então falaram da jornada, da estadia em Acaldã, quando Téoder conheceu Seida. Depois, do confronto contra os lobos, quando todos os telapuros morreram. Os lobos eram de 212

ERIC MUSASHI


madeira, controlados por cordas, que vinham de cima. Seida pressentiu o perigo que Téoder passava, e quando chegou ao campo de batalha estava lá, ele, com muitos ferimentos no corpo, mas com cerca de trinta lobos mortos ao seu redor — isso na versão real, mas no teatro, pouco mais de meia dúzia estavam ali. — Agradeço a ajuda — disse o Téoder da apresentação. — É tão hábil e poderosa quanto formosa, Seida, béli de Acaldã. O que me entristece é que meu sábio mestre está morto. Não gostaria de deixar seu corpo aqui, e nem de cremá-lo. Seu corpo deve ser preservado com os dos últimos Filhos dos Titãs. Isso lhe peço. — Vamos voltar para Acaldã. Seus ferimentos precisam ser tratados — disse a moça. — Vejo que Filho dos Ventos também está ferido. — Este cavalo é especial — o homem continuou. — Lutou até o fim para salvar o seu mestre, e não se abalou com a sua morte. Ajudoume, e talvez me reconheça como seu novo senhor a partir de agora. Mas vamos voltar. Ainda encenaram um discurso de Seida e Téoder em Acaldã, e depois a volta do Béli-Mor até Catebete. O narrador retornou e falou sobre como a história tinha se espalhado pelas cidades mais próximas, e como se enfraquecera e se tornara apenas fantasia nas mais distantes. Quando ele terminou, os atores se apresentaram e reverenciaram o público, que aplaudiu — coisa rara fora de Acaldã — em troca. Todos então começaram a se levantar. Muito vinho já tinha sido preparado, e logo alguns homens voltaram, dando copos para Luredás, Arion, Hessêni, Ádiler e Elmo, mas não para Nagos. Hessêni foi até o palco, e começou a falar em voz alta. O povo ficou em silêncio. — Este que tocará para vocês agora é o maior músico que já ouvi. Não façam barulho, senão estarão maculando a peça divina que ouvirão. Que venha até aqui, Luredás! Luredás subiu no palco. Acanhou-se, de início, mas logo começou a fazer o seu melhor. As músicas envolviam a todos — e não podia mesmo ser diferente. Quando terminava cada uma delas, elogios e gritos de incentivo brotavam de todos os cantos. Alguns se levantavam e começavam a dançar. Apesar da beleza que possuíam, não eram aquelas dos titãs, que exerciam controle sobre tudo aquilo que tem o dom de sentir qualquer coisa.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

213


— Vou até o castelo! — disse Hessêni para Arion, enquanto saía abraçado com duas raparigas. — Preciso levar uma boa lembrança daqui enquanto estiver fora. Arion nada respondeu. Bebeu mais, mas não queria dançar. Um bom tempo se passou, e já devia ser a quinta ou sexta hora da noite quando Nagos se aproximou: — Vou até o castelo, pois preciso falar com Hessêni. Vi que ele foi se divertir, mas preciso falar com ele antes que parta. — Arion estranhou tudo aquilo. Por um bom tempo achou que fosse apenas um pressentimento idiota, mas então percebeu algo muito suspeito: — Onde está a minha espada?! — Buscou a imagem de Nagos, que já estava se perdendo no meio da multidão, mas ainda podia ver a silhueta da espada leve e embainhada na sua mão direita. — Ei, quem lhe deu o direito?! — murmurou, e saiu correndo atrás dele. Hessêni ainda bebia, deitado na cama, enquanto as duas amantes, seminuas, tiravam a sua roupa lentamente. Ele já estava sonolento, mas em Ancatébia os homens estavam acostumados a se entorpecer muito durante quase todas as noites. — Como se chamam mesmo? — perguntou, e elas começaram a rir. — O nome não importa, meu senhor — disse uma delas. Eram irmãs, e a que falara era a mais moça. As duas tinham uma boa aparência, apesar de não ser tão notável assim a sua beleza. — Você tem razão! — soou uma voz. — Um homem que vai morrer não precisa saber o nome de ninguém! Hessêni rapidamente despertou, surpreso: lá estava Nagos, sem a parte de cima da túnica, e com uma faixa roxa na cabeça, como costumava se vestir quando era um imane de Ancatébia, juntamente com os seus irmãos Egle e Áigon. Seus olhos tinham um castanho que parecia querer imitar o rubro dos olhos dos irmãos. Nagos, o irmão bastardo de Egle, Áigon e... Hessêni! — Quem permitiu que tocasse numa espada de novo?! — Hessêni soltou sua fúria e espanto. — Eu lhe dei uma nova chance, mas não deveria lutar, como antes. Cometeu erros sendo um imane, mas estava tudo indo tão bem desde que tinha se tornado um simples taverneiro. Por quê? Por quê, meu irmão? — O seu maior erro foi ter impedido a minha morte nas mãos de Ádiler, béli Hessêni! Mas ele ainda vai pagar pela cicatriz que deixou no 214

ERIC MUSASHI


meu rosto! Você morre hoje, e logo meus irmãos estarão comigo. Representarei Ancatébia no conselho, e mais tarde, juntamente com os meus verdadeiros parentes, encontrarei Animelcar, e despertarei a Chama Negra! As mulheres começaram a gritar, atarantadas. Uma delas tentou correr para fora, a mais velha. Quando ela passava ao lado de Nagos, que havia avançado uns dois passos desde que entrara no quarto, um rastro vermelho fez-se no ar. Era o poder da Espada de Fogo se manifestando! A cabeça dela voou, e o corpo morto caiu lentamente no chão. Sua irmã ficou histérica. — Vamos, pegue a sua espada — disse Nagos. — Devemos acabar com isso de uma vez por todas! Você não serve para governar esta cidade! — Como penetrou no castelo? — Você é um tolo! Os dez guardas de nada não poderiam me impedir; há pessoas que não gostam de você por aqui, seu bastardo, e devia se proteger melhor! Agora chega de conversa; levante-se e lute como homem! Hessêni não gostava de lutar. Nem tinha tanta técnica assim, mas agora não havia o que se fazer, e nem havia para onde ir. Apanhou a arma no canto do quarto, jogou longe a bainha, e foi correndo na direção de Nagos. — Não vai me vencer no meu próprio quarto! — berrou. Desferiu um golpe descendente, na diagonal, indo da direita para a esquerda. Segurava a espada firmemente com as duas mãos, e um fraco brilho pôde ser visto — tão débil que nem tomou conta de todo o sabre. Nagos sorriu, e segurando a espada com a mão direita, somente, defendeu-se, deixando-a no meio do caminho. Uma forte luz vermelha se viu nela, e um som alto se fez. Hessêni deu um passo para trás, mas Nagos nem se mexeu. Há vários estágios no aprendizado de um imane, que futuramente pode se tornar um béli. Como qualquer telapuro, é instruído nas técnicas de ataque e defesa de seu clã, porém como um aluno especial, do qual é exigido o limite. Com a espada longa de imane e a armadura, é ensinado a ter concentração e foco suficientes para despertar o poder do sevaste, enrijecendo o metal para destruir ou resistir. Embora os mádis possuam armaduras com o cristal etéreo, poucos dentre eles sabem despertar o seu poder, e geralmente são alunos dedicados, que provavelmente se tornarão imanes algum dia. E com o tempo, aos mais hábeis, chamuscadas azuis tornam-se capazes de ofuscar as vistas de quem olha diretamente para elas. Esse costuma ser o limite para os imanes e bélis.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

215


No entanto, há aqueles que conseguem invocar a Chama Branca, um azul tão claro que rompe os próprios limites do azul. Outrossim, há uma chama que, segundo muitos, é tão poderosa quanto; o oposto, a Chama Vermelha. Um caminho conhecido somente pelos clãs nômades Espada de Cretos e Espada de Antros, já extintos. Muitos peregrinam atrás de textos perdidos para despertarem esse poder, a fim de superarem Téoder. O coração de Hessêni batia depressa e descompassado, pois ele sabia que não havia como vencer — mas era um guerreiro acima de tudo, e guerreiros aceitavam a morte, ainda que temessem. Diante dele estava Nagos, seu meio-irmão, e agora descobria que ele sabia usar a Chama Vermelha. Escleros e Tromos, ou Egle e Áigon, não eram os últimos. De qualquer forma, devia aproveitar seus últimos momentos, e avançou. Tentou um golpe penetrante, para atingir o umbigo de Nagos. — Isso não tem graça! — vociferou o atacado, enquanto dava um golpe cruzado com Saladágni. A Chama Vermelha atingiu a Chama Azul, e a espada de Hessêni foi quebrada ao meio. Estraçalhada no ponto de impacto, e pequenos pedaços dos cristais voaram pelos ares, inutilizados. Hessêni ficou parado, sem saber o que fazer; o punho esquerdo de Nagos atingiu o seu queixo, e ele foi parar a uns quatro passos de distância de onde estava. Os gritos da moça com os peitos de fora cessaram, mas não o choro. — Eu sempre soube que você não era digno de ser o béli de Ancatébia, Hessêni! — sentenciou Nagos. — Como pôde ter tirado o meu cargo de imane, simplesmente porque fiz valer a lei? Sim, é a Cidade das Festas, mas um líder deve ser, antes de tudo, um opressor. Você desonra o cargo que recebeu! E agora, acabarei com tudo isso. Porque... — Ele fez uma pausa. — Quer fazer o favor de parar de chorar, sua idiota?! Se não ficar quieta, vai morrer primeiro. Covardia é o maior defeito que um ser humano pode carregar. Você é linda; talvez eu não a mate, caso seja capaz de me divertir um pouco. Mas tem que fazer silêncio agora. — Ele voltou a olhar para Hessêni: — Como eu dizia, há alguém mais capacitado do que você para assumir o posto de béli de Ancatébia. — Se há, não é você! — gritou Arion, depois de atacar Nagos logo que entrou com uma espada de telapuro apanhada não se sabe onde. Contudo, o traidor estava preparado, e o choque das armas acabou por destruir a fraca lâmina da mão direita do tuata.Atacou então com a da mão esquerda, 216

ERIC MUSASHI


e, ao que o oponente se concentrou em acabar com ela também, chutou-o na orelha esquerda, Nagos caiu bem próximo de Hessêni, e foi desarmado. Arion tentou se aproximar para ir ao encontro da Saladágni, mas Nagos era mais resistente do que ele imaginava; levantou-se com muita rapidez, e apanhou de volta a Espada de Fogo. — Chegou aqui na hora errada, filho de Téoder! Humf... é melhor matá-lo primeiro, pois é muito mais perigoso do que Hessêni. Não devo lhe dar as costas. E por que está me olhando assim, tão assustado? Ah, quase esqueci que está desarmado. É uma pena, o seu infortúnio... Tomou a espada do meu irmão, crendo que estaria fazendo um bem, mas a trouxe até mim, e garantiu o sucesso da minha investida. O que fará agora? Morrerá! Um golpe descendente, totalmente vertical, veio de Nagos. Segurava a espada firmemente com as duas mãos, e parecia querer cortar Arion ao meio. Porém, este pôde notar que, apesar de ser irmão de Escleros e Tromos, como acabara de ouvir, Nagos não possuía nem metade da velocidade deles. O rastro vermelho fez um semicírculo no ar, e parou abruptamente. A quase nua fechou os olhos, mas Hessêni observou bem; Arion uniu as mãos, que estavam em forma de concha, e parou a investida de Nagos. Tinha uma expressão de dor, que ao mesmo tempo se confundia com uma face corajosa. Nagos admirou-se, e nem viu a perna direita de Arion se movimentando horizontalmente — realmente, suas pernas eram preocupantes. Foi uma rápida rasteira, e enquanto Nagos caía para o lado, Arion, já com a Saladágni em punho, acertou-lhe uma cotovelada na boca do estômago, com o braço direito. Nagos foi forçado a contorcer-se para frente, pois o último ataque o atingiu no ventre. Enfim caiu, e ficou ali por um bom tempo; os golpes de Punho Etéreo não exigiam muito esforço físico, mas eram extremamente danosos. — Parece que a situação se inverteu — disse Arion, com um desafiador sorriso no rosto. Nagos soergueu-se com uma furiosa expressão.Antes mesmo de ficar de pé, apanhou no chão os restos da espada de Hessêni. Pegou a parte que tinha o cabo. — O que espera fazer? Você não faz ideia do que é uma técnica verdadeira, garoto! — ameaçou. — Eu é que me pergunto o que seria capaz de fazer com uma espada quebrada — disse Arion. — Agora encerrarei esta luta, e Hessêni que me perdoe, mas você deve ser morto!

OS HERDEIROS DOS TITÃS

217


Nagos avançou com a espada quebrada. Só então que Arion percebeu que esta arma agora se comportaria como uma pequena adaga, e ele não tinha aprendido a se defender dessas armas — e além do mais, para a sua infelicidade, ainda havia cacos de sevaste nela. Foi desferido um golpe penetrante, tentando impedir a aproximação de Nagos, e a confluência de luzes nauseou a todos, pois antes de Arion atingir o corpo do ex-imane, os restos da pequena espada ameaçadoramente coruscaram, revelando a Chama Vermelha. O ambiente foi tomado pela coloração roxa — curiosamente a cor de Ancatébia e que está no nome do seu clã de guerreiros, Túnicas Roxas —, e desta vez até mesmo Hessêni colocou as mãos sobre os olhos. Depois, quando já podia enxergar novamente, viu o resultado do choque etéreo: na parede próxima a ele, estava Nagos, sem nada nas mãos, que sangravam em demasia. Estava de joelhos, ofegando. Na outra parede, ao lado da porta,Arion se punha sentado no chão, com somente o cabo da espada que fora de Egle na mão direita. Soltou-o instintivamente enquanto se levantava com dificuldade, e também arfando. A garota, aproveitando a situação, saiu correndo. Estava muito abalada, e nem percebia que os seios balançavam enquanto corria alucinada. Logo chegaria ao Teatro, e provavelmente contaria sua história, mas já seria tarde demais. Hessêni se levantou lentamente, e o sangue brotava do canto direito dos seus lábios. Estava indo ao encontro de Arion, que cambaleava. Este só via sombras, mas até que enfim recuperava a visão. — Cuidado! — alertou, ao ver um vulto atrás do béli. Hessêni se virou para trás, e só o fez para receber um forte chute frontal, novamente no queixo. Caiu inconsciente. — Depois eu termino com você, seu covarde! — Nagos prometeu, apesar de sua voz sair baixa, pelo tanto que estava enfraquecido. — Ainda tem forças para lutar, filho de Téoder? Espero que seu pai tenha lhe ensinado bem a lutar com os punhos, pois não há mais armas! Ou melhor... — tirou um punhal de dentro da roupa — ...acho que tenho uma aqui. — Não esperava atitude mais covarde vinda de você — disse Arion. — Mas esta arma é para você, para ter mais chances de vitória! — brincou, e jogou a lâmina com muita força na direção de Arion, esperando logo vê-lo com a testa perfurada bem no centro. No entanto, para a sua surpresa, o filho de Téoder a apanhou no ar — não sem antes, por precaução, ter se desviado da trajetória. 218

ERIC MUSASHI


— Grande erro. Mas, para a sua infelicidade, não sou cortês como você! — vociferou Arion, e atacou Nagos. Entretanto, apesar de possuir rápidos reflexos e de ter apanhado o punhal no ar, estava muito fragilizado. O domínio de Nagos sobre o éter era maior, e por isso era mais resistente. Um golpe veio da mão direita do tuata, mas Nagos nem precisou se esquivar dele; com a mão esquerda apanhou o pulso direito de Arion, contendo o seu murro. Quase ao mesmo tempo, com o outro punho, acertou o peito de Arion com um forte soco, vindo de cima. O rapaz de olhos azuis expulsou o ar dos pulmões, e caiu no chão. Os atalais gostavam muito de falar antes de matarem seus inimigos. Isso era herança de Mul, da Terra dos Titãs, da Idade de Ouro, onde palavras tinham um poder muito maior do que nos Tempos de Grabatal. Mas Nagos não se arriscaria a falar alguma coisa; Arion possuía força e técnica incomuns. Golpeou para baixo, visando o coração do inimigo, já com a lâmina em mãos. Todavia, a terra tremeu violentamente, e ele se desequilibrou. Arion chutou para o alto, atingindo o seu nariz. Levantou-se, apanhou a faca e enfiou-a na garganta de Nagos. — Aarrgghh! — foi o que conseguiu gritar o já encomendado. Arion não queria ter feito aquilo. Mas é como a leve brisa que, ao se enfurecer, acaba se transformando num furacão, e, ao invés de ser gentil, destrói tudo ao seu redor. Logo voltou a si, e o chão parou de tremer, mas as paredes do castelo já se mostravam violentamente abaladas, com muitas rachaduras. Ele correu até Hessêni, acordando-o depois de muito esforço. Enquanto o béli ainda se mexia, o filho de Téoder olhou para Nagos; já estava morto. — O que houve, Arion? — perguntou Hessêni. — Por que há areia aqui, e as paredes estão cheias de rachaduras? — Venha comigo, béli Hessêni; não é seguro ficar aqui. Explicar-lhe-ei tudo quando estivermos lá fora. — Hessêni não questionou. Os dois saíram correndo do castelo que parecia imponente, mas provavelmente já estava condenado. Não havia tremores de terra em Grabatal desde que Anjifum havia nascido, e as construções não eram preparadas para isso. Passaram pelo rastro de mortos de Nagos, e quando estavam lá fora, foram vagarosamente se encaminhando para o Teatro, e Arion narrava tudo para Hessêni, inclusive falando sobre o outro tremor de terra naquele dia, nos arredores da Floresta Sem Vida.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

219


VII Todos ainda estavam assustados.Arion e Hessêni puderam ver alguns se levantando, muitos cotovelos e joelhos ralados, e também centenas de copos no chão, com bastante vinho derramado. Várias vozes se misturavam, como depois de qualquer susto. Luredás, no palco, dirigia todas as suas atenções para o céu. — Vou ver se tem alguém muito ferido! — disse Hessêni. — Vá! — disse Arion. — Vou falar com Luredás. Arion correu até o amigo, cruzando com várias pessoas no caminho, e por várias vezes tendo que empurrar alguém para o lado para poder passar. Inclusive, deparou-se com a jovem quase despida que há pouco tempo estivera no quarto de Hessêni. Ela conversava com alguns telapuros, e pranteava. Quando enfim viu-se no palco, sentou-se ao lado de Luredás. — O que houve aqui? Você está bem? — Eu estou — sussurrou o músico. — Eles se alarmaram muito, mas já estou quase me acostumando com esses repentinos terremotos — sorriu, mas foi um sorriso muito rápido e frio. — É estranho, Arion; parece que aquela estrela que você não conhece está um pouco maior. Ou então está brilhando mais. Não posso afirmar nada com certeza... Arion então olhou para o céu, e, apesar de seus olhos lhe contarem que não havia diferença, sentia: Luredás tinha razão! Ficou por um certo tempo olhando para ela, e isso fez com que se lembrasse de Ortes. Uma tristeza tomou o seu coração, não só pela saudade, mas também por ela ter dito que não fazia ideia do que estava acontecendo. Será que estava bem agora? Ele a veria novamente? Então viu Hessêni se aproximando. Ádiler e Elmo estavam junto com ele, e também a mulher do quarto — agora, no entanto, já haviam a coberto com um pano roxo, talvez um lençol. Ádiler tinha um pouco de sangue escorrendo pela testa, e tanto ele como Elmo empunhavam as espadas longas. Arion viu no instante em que Elmo entregou a sua para Hessêni. Não era uma noite comum, e se o béli queria passar segurança para o seu povo, seria bom que estivesse com a principal característica do seu cargo, ainda que fosse uma arma de imane. — Viemos aqui agradecer pelo que fez,Arion, filho de Téoder — disse Ádiler. — Você salvou a vida do nosso béli, e também desta mulher, arris220

ERIC MUSASHI


cando a sua própria. Será para sempre um amigo de Ancatébia, e bemvindo aqui. Bem se vê que é filho do Grande Téoder, e parece que algumas características estão presentes no sangue, passando de pai para filho. Providenciaremos o que precisar, e peço que tanto você como Luredás fiquem no castelo durante a noite. — É, presumo que a mãe de Nagos não nos deixaria ficar lá mesmo, não é? — disse Arion, e todos começaram a rir. Tinham passado por momentos de tensão, principalmente Hessêni e Arion, e precisavam descarregar. Somente a jovem não riu, e logo foi levada por Elmo para algum lugar. — De começo só pretendia pegar a espada de volta e dar uma bronca em... vocês sabem quem! Mas quando vi a porta entreaberta e o sangue no chão, corri para ajudar Hessêni. — Não precisa se justificar por não ter dado o alarme; como poderia imaginar que ele pretendia me matar? — disse Hessêni, e então subiu no palco também; virou-se para os que estavam ali, e que tinham assistido ao espetáculo. — Homens e mulheres de Ancatébia. Sei que passaram por momentos assustadores e tenebrosos nesta noite, e eu também enfrentei alguns. Não só o chão que tremeu, mas uma dura batalha contra Nagos. E não nego; não fosse pela ajuda de Arion, filho de Téoder, eu poderia estar morto agora. Fui pego desprevenido por aquela cobra, aquele que teve uma segunda chance, mas não soube aproveitar. Se me perguntarem qual foi o motivo do tremor de terra, eu lhes responderei: não sei! Entretanto, ele já passou. Não há mais por que temer, ou assim espero. O vinho está esfriando, e a lira pede para ser dedilhada novamente. Vamos terminar esta festa! Então todos voltaram a beber. Hessêni pediu que Luredás recomeçasse a tocar, e ele o fez, ainda que não se sentisse confortável o suficiente. Ádiler levou Arion e Hessêni para uma sala atrás do palco, onde duas moças com poucas roupas cuidaram dos seus ferimentos. Lá fora, aos poucos, todos foram se acalmando. Quando Arion e Hessêni voltaram para lá, já se parecia com uma festa uma vez mais. Logo Hessêni se perdeu no meio da multidão, dançando com a enfermeira que o tratara. Arion observava como podia passar por uma situação de vida ou morte e logo em seguida voltar a festejar e namorar. Não só Hessêni, mas os outros também, pois apesar de rápido, o tremor de terra havia sido forte. Levavam a vida tão... sem seriedade!

OS HERDEIROS DOS TITÃS

221


— É muito atraente, senhor Arion — disse a sua enfermeira. — Eu soube que o senhor luta muito bem, e que é muito corajoso. — Agradeço os elogios; também é bela — respondeu, sendo cordial. — Dança comigo? — pediu. “Que seja!”, pensou Arion, e aceitou o convite. Ele a segurava pela cintura, e olhava para os lados o tempo todo, evitando sua dedicação em servi-lo. As mãos dela não paravam um momento sequer, movimentandose pelas costas dele enquanto mantinham-se no ritmo. Arion já estava sem saber o que fazer quando ela lhe deu um longo beijo. — Mas... por que fez isso? — Fiz por ter tido vontade — explicou ela, com uma inocência estampada em seu rosto. — Por quê, não gostou? — Não é isso, mas é que... Olhe, eu nem sei o seu nome! Arion resolveu se afastar dela, a fim de evitar maiores constrangimentos, e foi pegar mais vinho. Não foi difícil, pois todos estavam preocupados em achar um par para dançar e, longe da animação, sentou-se na grama com o copo na mão.Voltou a ver o céu, mas uma nuvem agora estava sobre a estrela que era o centro das suas atenções no que se referia a observação celeste. — Ah, aí está você! — disse Hessêni, e só então Arion viu que ele se aproximava. — Eu gostaria de conversar com você, mas esperava encontrá-lo sozinho. Eis a oportunidade, não? — Sentou-se. Sua fala estava mais irônica e articulada, provavelmente um efeito da bebida. — Desde que soube que era o filho de Téoder comecei a pensar nisso, mas depois que vi como me defendeu naquele momento, sem medo da morte e com extrema perícia, então tive certeza:Arion, quero que você se torne um dos meus imanes, e, provavelmente, para ser o meu sucessor. Arion engasgou com a bebida, e tossiu algumas vezes. — Não acha que está se precipitando? — Talvez esteja, pois o conheci hoje mesmo — replicou Hessêni. — No entanto, tudo o que aconteceu hoje mostra o quanto sou incapaz para o posto de béli. Não deixei que Ádiler matasse Nagos, por crer que ele tivesse chance de se recuperar. Não fiz valer a lei dos bélis. E Ádiler e Elmo são ótimos guerreiros, mas Elmo é como eu, pacífico. Já Ádiler, não sabe como administrar uma cidade, e entregar Ancatébia para ele seria uma 222

ERIC MUSASHI


loucura. Ele próprio sabe disso, e uma vez já me pediu que escolhesse outro para ser o meu sucessor. Talvez eu esteja mesmo me precipitando, como você diz, mas é uma oportunidade única. Você não é apenas o filho de Téoder. É Arion, que tirou a espada de Egle, ou Escleros, e que salvou a minha vida, derrotando Nagos. Não sei se pensava em fazer tudo isso, mas nos últimos tempos passou por aventuras que nem mesmo os maiores do mundo são capazes de imaginar. — É verdade — disse Arion. — Sobretudo, agradeço ao meu pai por ter me ensinado tudo isso. Mas não sou um guerreiro. Sim, diferente de você, eu tenho coragem de matar. Todavia, não gosto de lutar. Quando estou no meio de uma batalha, meu coração dispara, e tenho vontade de vencer. Só que quando a batalha termina, então percebo os danos que foram causados, e me arrependo de ter lutado. Pode compreender isso? — Claro que sim. Mas ainda assim o convite está de pé, pois... o que é isso?! — assustou-se Hessêni. Uma forte ventania começou a operar, com ventos gélidos que cantavam pela depressão onde ficava a cidade. Arion instintivamente olhou para o céu, e não mais a nuvem cobria a estrela, que ria dele lá de cima. Folhas voavam por todos os cantos, e Luredás parou de tocar. Então o vento cessou, e um silêncio amedrontador tomou conta do local. Todas as tochas haviam se apagado, e a cidade estava numa escuridão total. Um ribombar foi ouvido, aumentando gradativamente. Pequenas pedras tremiam no solo, emitindo um ruído característico. Muitos começaram a gritar, principalmente mulheres, e então o chão voltou a sacudir violentamente. Arion, que já se levantara, caiu de joelhos no chão. — Oh, não. De novo! E está tremendo com maior intensidade do que da outra vez. Não entendo tanto assim sobre construções, mas o meu castelo vai acabar caindo antes do raiar do dia!Quando Hessêni falou sobre o seu castelo, Arion sentiu um frio na barriga, não sabia por quê. O que tinha no castelo? Valente! Isso, ele estava lá! — Por favor, Hessêni, onde fica o seu estábulo? — O que isso importa agora? Abaixe-se! — foi tudo que o béli disse. — Diga logo! O meu cavalo está lá! — Arion fazia muito esforço para ficar de pé. — Além disso, dê-me a espada que Elmo lhe deu, pois precisarei dela para cortar as cordas com rapidez!

OS HERDEIROS DOS TITÃS

223


Enfim Hessêni compreendeu. Tirou a espada longa da bainha, que Elmo também havia lhe emprestado, e entregou para Arion. — Vá pela porta da frente, mas não suba em escada alguma. Cruzará todo o castelo, e então terá que destruir a porta dos fundos com a lâmina. Há um jardim, e se olhar para o nascente poderá ver uma construção de madeira. É lá. — Arion então se virou e saiu correndo. — Boa sorte! — desejou Hessêni antes que ele se afastasse demais. Arion corria o mais rápido que podia. Ao que se voltou para o lado, pôde ver Luredás saltando do palco. Instantes depois, todo o teto desabou, e o Teatro talvez se tornasse uma mera lembrança. A poeira levantou, e muitos tossiam. Estavam nos assentos, e nenhum teto cairia sobre eles. A menos que o céu resolvesse fazer o serviço! Ao ver o castelo, Arion quis voar com o vento e chegar ao mesmo instante ao estábulo. Os quartos, que eram mais altos que o teto principal, desabavam, e suas janelas de madeira caíam no chão, quebrando-se em alguns pedaços. As pedras quadradas da rua também racharam em vários pontos, mas Arion não estava com medo de prosseguir. Ele não era tão corajoso quanto Téoder, mas tinha um amigo a salvar. Um forte vento se deu novamente, e a porta esquerda da entrada ia se fechar, atingindo Arion. Ele então despertou as energias inerentes à arma, estraçalhando-a. Não só aqueles que estavam nos restos do Teatro viram aquilo, mas também os que moravam nas proximidades. Pássaros que voavam se assustaram, mas assim como era forte, o chamuscar também era instantâneo. Correndo pelos corredores escuros Arion só podia ouvir o som dos próprios passos. Os pés atingiam a pedra, mas entre os dois havia um grosso tapete roxo, vindo de Ticêmis, que abafava o som. A única luz que guiava Arion era a luz azulada dos cinco minúsculos cristais. O tremor, que estava mais ameno, voltou a ficar forte, e se desequilibrou e caiu. Um pedaço do teto — que também era o chão de um dos quartos — desabou sobre ele, mas uma vez mais invocou o poder etéreo, destruindo-o e fazendo com que os pedaços fossem jogados para os lados. Levantou-se, e graças ao último golpe que dera, viu a porta. Correu até ela, e se viu forçado a atacar de novo; outra luz azulada, mas não forte como as anteriores.Arion já estava fraco, e depois de derrubar a porta, caiu no chão. O tremor se intensificou, e ouviu o som de madeira quebrando. — Valente! 224

ERIC MUSASHI


Apoiando-se na espada de Hessêni, soergueu-se, e foi a passos largos até o estábulo. Atrás dele, mais e mais pedaços do castelo caíam. Provavelmente já estava vazio desde o fim do primeiro terremoto, de horas atrás. Tropeçou e caiu mais duas vezes até chegar onde estava o seu amado animal. Ao vê-lo, Valente se agitou, e tentou se soltar. Estava com uma aparência cansada; deveria ter tentado se livrar das cordas desde que o terremoto se iniciou, mas sem êxito, pelo que Arion concluía. — Não tema, parceiro leal — disse, e com um golpe, dotado de um fraco brilho, quase imperceptível, soltou o cavalo. — Agora vá! — ordenou, e deu um tapa no dorso de Valente. O equino saiu com velocidade dali de dentro, mas Arion tratou de soltar outros, golpeando incansavelmente com a espada. Antes que pudesse salvar a todos, no entanto, o tremor ficou mais forte, e talvez estivesse no seu ponto máximo. Era como se Arion tivesse saltado de um penhasco, sem a segurança de que havia um chão embaixo dele. Não tinha mais nenhuma condição de se manter de pé, e as vigas se quebraram. A cobertura de sapé caiu sobre Arion, e também pesadas vigas de madeira maciça, acertando várias partes do seu esbelto corpo. O tremor ainda continuou por um bom tempo, mas ele não mais podia perceber. Fechou os olhos, não por vontade própria. Antes, porém, viu Téoder. Ele empunhou a sua espada, e com a Luz Total, destruiu a cobertura, e se salvou. — Não sou Téoder... — Foram as últimas palavras de Arion, antes de desmaiar. Valente não saiu dali de perto. Andava, tentava procurar pelo seu dono, mas não conseguia encontrar nada. O tremor já havia passado, e agora não tinha nada que o faria sair daquele lugar. Esperou, e esperou até demais. O sono tomou conta do destemido animal, e ali ele dormiu, ao lado de Arion, o seu mestre.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

225


Passado glorioso I Foi uma noite silenciosa em Ancatébia a noite de 21 de protomês. Algo incomum àquela cidade, uma vez que sempre se podiam ver inúmeras tochas acesas e pessoas caminhando pelas ruas, além de centenas de vozes ecoando e se misturando, geralmente gargalhadas ou discussões, dependendo da hora da noite. Mas, realmente, foi diferente desta vez; o tremor de terra, que durou cerca de um quarto de hora, foi muito intenso. Ao que ele terminou quase ninguém arriscou sair do chão ou parar de tremer — ou se lamuriar. Depois o céu escureceu e relâmpagos e trovões eram os únicos sons que se deram durante várias horas. O dia seguinte amanheceu cinzento, e logo depois que a primeira hora se iniciou, uma chuva fria e fraca copiosamente caiu, e parecia que ia demorar muito. — Acho melhor irmos procurar o Arion — disse Luredás, ao se aproximar de Hessêni, o único que ele conhecia ali. Hessêni estava dormindo, mas o medo havia impedido que tivesse um sono profundo. Ao ouvir os passos de Luredás, logo abriu os olhos: — É estranho que ele ainda não tenha voltado. Mas talvez foi prudente em ficar perto de seu cavalo; passar duas vezes por dentro do castelo seria arriscado demais, e as paredes de pedras que cercam o estábulo e os jardins não deve ter caído — completou. — Por falar em castelo, tomara que o filho de Téoder tenha sido rápido — disse Ádiler, que se aproximava e pôde ouvir parte da conversa. — Eu vi quando ele desmoronou. — O quê?! — exclamou Hessêni. Ele e Luredás então se voltaram rapidamente para o castelo — ou melhor, para o que sobrara dele —; a única parte que resistira fora a cozinha, pois não havia quarto algum sobre ela. No entanto, de longe já podiam ver rachaduras em suas paredes, que insistiam em ficar de pé. Hessêni se levantou: — Espero que ninguém tenha morrido. Devemos manter as esperanças. Vamos até lá. — Um momento, meu senhor! — pediu Elmo, que só agora chegava até eles. — Eu sei que tem vontade de procurar o senhor Arion, mas, antes disso, deve fazer um discurso para o seu povo, nem que seja breve. 226

ERIC MUSASHI


Eles estão muito assustados. E como pode ver, há vários outros aqui, que vieram de suas casas. — Ele apontou para os lados, e, com total certeza, mais de 5.000 pessoas estavam em volta dos restos do Teatro e nas ruas que davam para ele. — Tem razão — disse Hessêni, depois de um breve silêncio. — Vão à frente, Ádiler e Luredás. Elmo, você deve ficar aqui e ver como eles estão depois que eu terminar de acalmá-los; eu também irei procurar Arion. Conheci-o ontem, todavia, além de ele ter salvado a minha vida, também simpatizei com o rapaz. Não quero que ele tenha morrido. — Sim senhor — disseram Elmo e Ádiler, nesta sequência. — Vamos, Luredás? — perguntou Ádiler. Luredás não respondeu; seguiu-o. Em seguida Hessêni foi até o palco, que havia resistido. Algumas rachaduras se mostravam presentes nas outrora rijas pedras brancas, e grandes pedaços do que era o teto estavam agora no chão. Quando subiu lá, o béli fez um sinal para o povo.“Seu líder vai falar!”, gritou Elmo, e todos se sentaram no chão — alguns sobre pedras soltas. Dali, olhando para a cidade, Hessêni podia ter uma ideia do tamanho do estrago. Altos prédios já não podiam ser vistos, apesar de poucos pilares resistirem. Estátuas que adornavam as praças estavam caídas e destruídas. Uma tristeza tomou conta do seu coração, mas tinha que confortar e encorajar o povo. — Eu sei que a última noite foi assustadora — começou ele, e tirava forças não sabia de onde para falar tão alto. — Sim, jamais tínhamos pensado em passar por isso. Não só pelo terremoto, o qual enfrentamos juntos, mas eu também tive uma batalha de vida ou morte contra Nagos. — Voltou a enfatizar o duelo. — Ele me traiu, e roubou a espada que Arion, filho de Téoder, carregava. Admito, seria derrotado por ele, pois me preparava para dormir; entretanto, Arion me ajudou, e agora o ingrato está morto. Não bastasse isso e o primeiro terremoto, tivemos que resistir a um bem pior logo depois. Meu coração chora lágrimas de sangue por esta cidade, idealizada e construída por Ancatebe, Filho dos Titãs. Muitos podem ter se ferido, e alguns podem até ter morrido nessa noite maligna. Mas nós, que sobrevivemos, não devemos nos amedrontar, desistir, ou mesmo enlouquecer. Há muitas pedras no mundo, e temos força para deixar tudo como era antes. Haverá novos tremores de terra? Não posso responder com certeza, pois ontem mesmo achei que tinha acabado, porém, como puderam ver, era só uma prévia. Ele parou e descansou por um pouco de tempo.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

227


— Eu poderia ficar o dia todo falando com vocês, contudo, tenho coisas mais urgentes para fazer; Arion foi até o estábulo ontem, pois tentava salvar o seu cavalo. Oh, rapaz corajoso! Agora, devemos tentar fazer algo por ele, se ainda estiver vivo. Sugiro que pensem assim também por seus amigos e parentes; muitas casas desabaram, mas isso não significa que todos que ficaram sob as vigas de madeira e as pedras estão mortos. Agradeço ao Destino por cada um que sobreviveu, e tudo que podemos fazer é provar que merecemos seguir respirando. Vamos lá, meu povo! Hessêni não era um grande guerreiro, e ele não queria esconder isso de ninguém. É claro, um béli deve mostrar ser temível, e, assim, ele não admitia em público que teria sido derrotado por Nagos, sendo pego de surpresa ou não. Mas suas palavras eram capazes de confortar qualquer um, e o medo do povo passou. Levantaram e gritaram o seu nome, numa confluência de palmas e sibilos. Ele então se foi, e Elmo se misturou com o povo, para ajudar nos resgates. Enquanto isso, Luredás e Ádiler andavam vagarosamente pelo corredor do palácio. Tentavam fazer o mínimo possível de barulho, pois temiam que desmoronasse mais. Ádiler vira a porta estraçalhada, mas não tinha certeza de que Arion havia passado por ali na noite passada. De repente, encontrou uma pedra bem grande no chão, estraçalhada. — Agora não há mais dúvidas — murmurou —; o filho de Téoder passou por aqui. — Sério mesmo? — indagou Luredás, ameaçando um sorriso. — Sim. Olhe — e apontou para a pedra, que teria o tamanho de um homem se não estivesse partida em dois pedaços. — A queda foi grande, mas esta pedra é muito resistente. Não vê que as outras não se quebraram? Sim, esta tinha a possibilidade de estar mais fraca, mas há um corte perfeito no meio dela, e só um golpe apoiado em sevaste podia fazer isso. — Então notou a porta que dava para os fundos: — Já posso imaginar a cena: ele arrebentou a porta da frente, porque talvez estivesse fechada. Enquanto corria, pôde ouvir esta pedra enorme caindo sobre ele, e com sua técnica e o poder desse cristal abençoado, destruiu-a. A porta dos fundos também estava fechada, e usou a espada de Elmo, o outro imane, uma vez mais. A madeira foi totalmente destruída naquele ponto. — Apontou, ao que Luredás viu que as abas da porta, bem na parte onde se juntavam uma com a outra, estavam realmente estraçalhadas. 228

ERIC MUSASHI


— Então é melhor irmos lá para fora logo — disse o músico. — Aqui dentro ele não está, a menos que estivesse louco e subisse pelas escadas. Escadas aliás, que nem existem direito. — Tem razão — disse o imane. — Mas não devemos falar nada desnecessário aqui. Eles prosseguiram, cautelosos. O silêncio era sua companhia; não obstante, Ádiler parecia estar perturbado, pois segurava com firmeza o cabo da sua espada longa. Já iam passar pela porta quando ouviram o som de um galope; a porta caiu, e Ádiler saltou para trás. Luredás estava mais distante, e apenas observou, amedrontado. Um cavalo veio correndo loucamente na direção dos dois, relinchando. Ádiler empurrou Luredás, derrubando-o no chão, e saltou para o outro lado. Ainda caídos, viraram-se para trás, de onde haviam vindo, e se puseram a observar o cavalo, que se afastava em grande velocidade. Devia estar louco, depois do que tinha acontecido na noite anterior. Ádiler sorria, após o susto, e já se levantava quando um pedaço da parede desabou em cima de Luredás. — Cuidado! — bradou, e saltou, ficando sobre o músico, que estava deitado. Sua espada já estava desferindo um golpe naquele momento, pois ele aproveitou o movimento de sacar para atacar. A luz da lâmina foi intensa, e Luredás foi forçado a fechar os olhos, para não ficar cego. Quando ele os abriu, percebeu que havia muita poeira no ar. Nenhum pedaço da pedra estava ao seu redor. Ádiler ofegava. — O barulho que o animal fez foi o bastante para derrubar as pedras — disse Ádiler. — Aliás, devemos agradecer por não estar ventando. Mas é melhor prosseguirmos, pois esta chuva fina pode contribuir para que sejamos soterrados para um sono eterno neste lugar. Venha. Como Ádiler ordenou, Luredás fez. Mas estava muito surpreso pelo que ele havia feito; ouvira de Elmo, durante a festa, entre uma música e outra, que Ádiler fora capaz de derrotar Nagos no passado, e agora tinha certeza disso, mesmo depois de descobrir que o traidor era irmão de Escleros e Tromos, ou Egle e Áigon, como o próprio Elmo falou. Luredás sabia se defender, apesar de não entender tanto sobre como empunhar uma espada — a postura usada por Ádiler se parecia muito com a de Arion, nas vezes que Luredás viu-o lutar. Havia pequenas diferenças, pois Ádiler era mais seguro, e também tinha mais controle sobre o poder intrínseco ao seu montante.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

229


— Você é um mádi, Luredás? — perguntou o imane. — Ou é um telapuro? Pois jamais o vi com sua espada, mas o Elmo me contou que você tem uma. Ela é dourada? — Sim — replicou Luredás. — Todavia, não sou telapuro nem mádi; ganhei a minha espada do béli Achades, da cidade Lira dos Titãs. Já ouviu falar de lá? — questionou, enquanto finalmente saíam do castelo. — Não — admitiu Ádiler. — No entanto, para ter ganhado um presente desses, deve saber como usar uma arma. — Tem razão. Não sei muitas coisas, como socar, chutar, esquivar-me ou bloquear golpes, mas aprendi alguns ataques com o meu pai. Na época eu achava que não serviria para nada, mas agora vejo que conhecimento algum deve ser jogado fora. Jamais imaginei que faria uma jornada tão difícil, e enfrentaria tantos perigos. Apesar de que, no fundo, não sei lutar nada se for comparado com Arion ou com você. Luredás então percebeu que Ádiler já nem prestava mais atenção no que ele falava; o imane olhava fixamente para o leste. Luredás também se virou para o ponto que o outro se voltava, e viu o estábulo desmoronado. A cobertura de sapé estava sobre vários pedaços de madeira, muitos rompidos. Não havia nenhum som ali, mas ele pôde ver um cavalo parado, fitando-os. Era Valente! — Arion fez bem em ter salvado esse animal! — murmurou. — Ele não saiu de perto do dono um instante sequer, pelo que posso concluir. Nem mesmo esta fria chuva o afastou de Arion; não é à toa que se chama Valente. Acho até que poderia se chamar Leal! — Valente ou Leal — disse Ádiler —, pode ter tudo sido em vão.Arion tem poucas chances de ter sobrevivido aí embaixo. Não sou um homem de esperança, como pode ver. Só não gostaria de ter que dar esta triste notícia para o Grande Téoder. — Não diga uma coisa dessas; enquanto não o virmos morto, ainda não haverá certeza alguma! Vamos procurá-lo! Após algum tempo, a fria chuva que tocava o rosto de Arion o acordou. A água passara pelo sapé e pelas vigas que estavam sobre ele.Teve sonhos estranhos e sombrios, mas agora já estava desperto, e podia se lembrar claramente do ocorrido na noite anterior e de como tinha tido sorte de não ser atingido no tronco por nenhuma viga. Podia ouvir algumas vozes chamando o seu nome, mas ainda estava atordoado, e elas pareciam distantes. 230

ERIC MUSASHI


Ele então tentou se mexer, movendo as traves, mas não conseguiu. Estava rouco, e por mais que tentasse gritar, a voz não saía. Também estava quase sem ar, visto que entrava pouco pelas aberturas. Ouviu uma voz dizendo “Não adianta; se estivesse vivo, já teria falado alguma coisa”. — Queria ter a sua força, pai — sussurrou. Mas de modo algum pensava em desistir. Depois de um pouco de tempo, enfim se lembrou: como, afinal, havia cortado as cordas e soltado os cavalos? Estava com a espada de Elmo! Ainda podia sentir uma reconfortante força na mão direita, e era da joia de sevaste que repousava ali. Não era capaz de mexer o braço, mas o pulso ainda estava livre.Tentou buscar dentro do seu espírito um pouco de força, e o metal ardeu, de modo que ele podia ver o fulgor azul. Mexeu o pulso, e fez um corte circular; um semicírculo de quase 180º, de modo que uma viga que prendia os seus braços e que estava sobre as coxas foi quebrada, e os dois pedaços penderam para baixo. — Agora tem que dar! — balbuciou, e cortou novamente. O brilho foi mais fraco desta vez, mas o movimento mais livre, e grande quantidade de sapé voou para cima. Já podia ver o céu, e sentir a chuva tocando o seu rosto, ajudando-o a acordar. Ficou sentado, e viu que Valente, Luredás e Ádiler olhavam fixamente para ele. — Eu estou vivo, mas quase sem voz. Já passei por perigos maiores, imane Ádiler! — falou o mais alto que podia. Valente correu até ele, que acariciou o pescoço do animal. Luredás e Ádiler sorriram, e começaram a ajudá-lo a sair. Ádiler deu alguns rápidos golpes com sua espada, que emitia chamuscadas azuis. Rapidamente Arion já estava livre, mas Luredás pôde perceber que ele tinha ficado surpreso ao ver o modo como o imane atacava. O filho de Téoder tentou se soerguer, mas desequilibrou-se, e então foi amparado por Luredás e Ádiler. Neste momento os três viram Hessêni se aproximando. — Que bom que está vivo, Arion, filho de Téoder! — disse, correndo e abraçando o jovem. — Meu coração pesou quando percebi que já tinha amanhecido e você ainda não havia voltado. Mas agora vejo que graças a Luredás e a Ádiler foi encontrado. — Esse mérito não é meu, senhor — disse Ádiler. — E nem meu — disse Luredás. — Arion se salvou sozinho. Sim, ajudamo-lo — seguiu dizendo, ao receber um reprovador olhar do amigo —, mas se não fosse por Valente, jamais teríamos suposto que

OS HERDEIROS DOS TITÃS

231


ele estava aqui. E Arion está muito fraco; não podia gritar. Bendita seja a espada que ele carrega, que cortou tudo o que ficou em seu caminho e o revelou para nós. — Bendito seja Elmo, que me entregou essa espada, bendito seja Arion, que a pediu emprestada para salvar Valente, e bendito seja Téoder, que ensinou o seu filho a lutar! — brincou o béli Hessêni, invadido por uma onda de alívio. — Agradeço pelas palavras — falou Arion, e depois tossiu. Sua voz estava rouca e fraca, quase sussurrada. — Admito que foram corretas, e sou muito melhor com as palavras do que com a espada — disse Hessêni. — Porém, já conversamos demais. Vejo que está muito ferido e cansado, e também deve estar com muita sede e faminto. Meu castelo caiu, mas ainda há as piscinas.Vou mandar que criadas o banhem e o sirvam com lentilhas e vinho! Arion assentiu, agradecendo. — Peço também que cuidem bem de Valente, e o alimentem. — Seu desejo será prontamente atendido. Ádiler, leve o corcel para alguns servos que possam cuidar dele. E ordene que preparem um banho para Arion, e uma boa refeição para nós todos — disse o béli. — Sim senhor — respondeu o imane, já saindo. — E uma última ordem — falou Hessêni com firmeza, e Ádiler voltouse. — Chame Elmo, e não se atrase para o banquete. É descuidado consigo próprio, mas é o meu mais valoroso guerreiro, além de um grande amigo. Ádiler sorriu e agradeceu, curvando-se e reverenciando o béli, e se foi a passos largos. Hessêni foi levando Valente, e Luredás ajudando Arion a se locomover. A precipitação parou, mas o céu continuou nublado. Enquanto andavam, perceberam o quanto o terremoto fora destruidor. Por que, afinal, isso estava acontecendo?

II Antes que Arion tivesse entrado na água, Hessêni percebeu o ferimento aberto, e ordenou que algumas mulheres cuidassem dele. Eles saíram dali, e o banho que Arion tomou foi muito reconfortante; a água morna, com ervas medicinais, e três moças o banhando. Arion pôde notar que Hessêni não se conformava com o ocorrido. Pensou em perguntar por que sofria, mas achou melhor não tocar no assunto, pelo menos não neste momento. 232

ERIC MUSASHI


Depois, vestiu uma túnica roxa do béli, com uma faixa vermelha na testa, costume local. Uma mesa estava posta ao lado da piscina, e tinha uma grande quantidade de lentilhas numa panela bem grande. Arion, Luredás, Hessêni, Ádiler e Elmo se serviram, e comeram como se não o fizessem há vários dias, pois estavam afadigados e fracos depois da noite anterior. A espada de Elmo agora estava com o seu senhor. Arion e Luredás gostaram muito do sabor das lentilhas, e repetiram duas vezes mais. Hessêni e Elmo apenas riam ao verem como os dois comiam apressados; Ádiler, no entanto, ficava em silêncio, fitando Arion. Terminaram de comer, e então beberam um vinho bem quente. — Agora já podemos conversar melhor — disse Hessêni. — Conversar sobre o quê? — perguntou Arion. — Temos que decidir muitas coisas, filho de Téoder — respondeu Ádiler. — Estávamos prontos para viajar hoje, e já não devíamos mais estar aqui. No entanto, depois de tudo o que aconteceu, muitas decisões deverão ser tomadas antes da partida. — Que tipo de decisões? — quis saber Luredás. — Hessêni é o béli de Ancatébia, jatitano — respondeu Elmo. — Não sabemos se é bom que deixe a cidade justamente agora que o povo mais precisa dele. Por mim, ele ficaria, pois não sei se saberei administrar um momento tão difícil como este. Mas, além disso, há o Conselho dos Bélis, e também a iminente ameaça de Egle e Áigon, ou Escleros e Tromos, como aqueles que não são daqui dizem. Ninguém se arriscou a falar depois de Elmo. Arion e Luredás beberam seus vinhos, e serviram de novo; Hessêni apenas olhava para as águas da piscina, para o sol que começava a aparecer, e para as construções destruídas; e Ádiler, visava um ponto entre o norte e o oeste, onde devia estar Catebete, o seu destino. — Estive pensando — disse Hessêni, quebrando o silêncio —; talvez é melhor que eu vá para Catebete, e você também, Ádiler. Elmo pode administrar a reconstrução da cidade enquanto eu estiver fora, e depois que o conselho acabar, voltarei o mais depressa possível. Eu sei que tentaremos invadir as Planícies Proibidas, mas até que as tropas sejam reunidas, levará tempo. Enquanto isso, ampararei o meu povo. Houve um certo burburinho, uma parede de uma casa próxima ruiu, mas logo tudo foi voltando ao seu ritmo normal, e nas ruas se via pessoas tristes, mas também corajosas e confiantes.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

233


— Não vejo muita coisa para ser decidida — disse Arion. — Já estamos na quinta ou sexta hora, e se pretendemos chegar a Catebete num único dia de viagem, é melhor partirmos cedo. Amanhã é o melhor dia. — Tem razão, filho de Téoder — disse Hessêni. — Mas também há outra coisa a ser decidida por vocês, e isso nos envolve: aceita o meu convite para ser um imane de Ancatébia? Arion respirou fundo, e sentiu o chamado do céu, onde alguns pássaros voavam livres, mostrando que não choveria mais. Os raios do sol tocavam a sua face, e ele protegia os olhos com a mão direita. Luredás e Elmo trocaram olhares surpresos ante a proposta de Hessêni, mas Ádiler continuou a beber normalmente. — Ontem você me disse que a proposta sempre estaria de pé, béli Hessêni — disse Arion, ainda parecendo absorto. — Pois mantenho a minha resposta, por hora. Eu quero ser livre, como aqueles pássaros, compreende? Sim, seria extremamente feliz sendo o béli de Ancatébia, mas me contentaria apenas morando aqui, neste lugar abençoado. Não compreendo por que insiste na proposta, uma vez que já estava tudo definido ontem. — Arion parou de observar o céu, e voltou a se deleitar com o tesouro de Ancatebe como os seus companheiros. — A cidade precisa de mais guerreiros — disse Ádiler. — No entanto, não precisa desejar ser como os pássaros, filho de Téoder, pois já é livre. Eu peço, béli, que não insista mais com a proposta. Se algum dia ele quiser aceitá-la, vira até nós. — Está certo, Ádiler — disse o béli, um tanto frustrado. — Então eu peço que descansem, Ádiler, Arion e Luredás. Partiremos pela manhã. Eu andarei pela cidade com Elmo, para passar as últimas instruções para ele. Ele e Elmo se levantaram, e Hessêni levava a espada longa que era do seu imane. Ádiler, Arion e Luredás saborearam a bebida mais um pouco, e depois também saíram dali. Ádiler os conduziu até uma casa próxima, que ficara de pé. O anfitrião os recebeu bem e permitiu que dormissem no seu quarto. A tarde passou depressa, pois estavam muito cansados, e o sono profundo foi muito reparador. Ádiler ainda dormia quando Arion acordou e saiu do quarto. Luredás, percebendo, foi atrás dele. O dono da casa serviu um pouco de vinho para os dois, tentando ser gentil, e eles aceitaram. Depois se sentaram à frente da casa, e ficaram observando as pessoas andando para todos os lados, 234

ERIC MUSASHI


enquanto os raios alaranjados do sol faziam com que o ouro e a prata dos pilares das construções emitissem um brilho magnífico. O coração de Arion batia depressa. Não era pelo que tinha passado na noite anterior, ou pela cidade que estava parcialmente destruída; não era por saber que logo estaria revendo o seu pai, ou por se lembrar da estranha estrela avermelhada que estava vendo nos últimos dias. Luredás, sentindo que o amigo estava diferente, resolveu conversar com ele: — O que houve, Arion? Está com um olhar perdido. — Eu estou muito feliz, Luredás — disse. — Eu odiava a vida que tinha desde que o meu pai... você sabe o que ele fez. Eu odiava a minha vida, queria acabar com ela a qualquer momento, e por isso entrava em guerras perdidas. Mas desde que saí de Jatitã, conheci muitos lugares amáveis, e fiz amigos que jamais imaginava fazer. Antes lhe reclamei por ter passado por várias situações de perigo, entretanto, agora fico feliz por ter saído vivo de todas elas. Você, Ariádan, Valente, Achades, Ortes e Hessêni são apenas algumas das coisas boas que apareceram no meu caminho. — Fico feliz que esteja gostando da jornada — disse Luredás. — Eu também estou gostando dela, apesar de não ser a primeira que faço por estas terras. Mas, agora que falou dela, fico pensando no que Ariádan poderia estar fazendo.Também sente saudades dela, não é? Arion ficou em silêncio, e voltou a olhar para o ouro e para a prata, que o remetiam a tesouros e fama. — Sim — respondeu. — Sempre a amei, e ela jamais deixará de ser a irmã que nunca tive. Contudo, é melhor que estejamos separados. Eu fui muito imprudente ao tirar a pureza dela. Ariádan não é desfrutável como a maioria das mulheres deste Reino, para as quais um amor não tem importância alguma. Mas é melhor pararmos de falar sobre isso, Luredás. Eu fico triste ao lembrar que a abandonei. — Tem razão. — Luredás, podia tocar uma peça para nós? — pediu Arion, depois de mais um momento de silêncio. Luredás não respondeu — como costumava ser —; tirou a lira de dentro da túnica, começando a tocar. E assim foi até o meio da noite. Muitos paravam, às vezes, para ouvir, e as melodias confortavam os seus corações, sofridos pela destruição da sua cidade. Durante a terceira hora da noite, Arion e Luredás entraram para dormir de novo. Ainda se alimentaram com lentilhas, que o dono da casa preparou para eles. Ádiler, que acabara de acordar, também

OS HERDEIROS DOS TITÃS

235


comeu. Depois que terminaram, repousaram, exceto Ádiler, que saiu para fazer todos os preparativos para a viagem. Tiveram uma noite tranquila de sono, e o dia ainda não tinha raiado quando se levantaram. Um dos cavalos de Luredás morreu na queda da cobertura do estábulo, mas ele poderia ir montado no outro — apesar de ter de largar a carruagem agora. Arion foi em Valente, Ádiler num cavalo castanho e Hessêni num negro. Elmo se despediu deles, e estava sem a sua espada, que ia com Hessêni. — Mensageiros foram enviados ontem — disse o béli para Elmo. — Um trará a sua espada até aqui, e o outro levará uma espada de béli para mim em Catebete. Por favor, não deixem que Egle e Áigon saibam nada sobre o que ocorreu por aqui, caso eles venham até a nossa cidade. Se estiver desarmado, eu peço que fuja; mas não tema, pois os idabarás irão o mais depressa que lhes for permitido. — Tem certeza de que só levará quatro telapuros? — É uma curta viagem, e os outros terão mais trabalho por aqui, Elmo — treplicou Hessêni. E logo desapareceram. Ao que andavam pelas ruas, o povo os admirava em silêncio, e muitos jogavam ramos de plantas em seus caminhos. Arion e Luredás puderam perceber o quanto Hessêni era querido, e lágrimas verdadeiras tomaram as ruas. Passaram por várias praças, algumas com as piscinas secas, pois depois do terremoto as rachaduras fizeram com que toda a água vazasse. Enfim saíram, e conforme subiam a colina — colina pela qual Arion e Luredás haviam descido com Nagos ao chegarem à cidade —, parecia que estavam sendo expulsos de um paraíso terreno. Hessêni ainda olhou para trás por inúmeras vezes, mas logo já estavam no topo, e dali em diante a cidade não mais seria vista. O sol que nascia atrás deles aquecia suas costas, e impedia que ficassem se voltando para o passado. Pouco tempo depois se desviaram para o noroeste, e não demoraria para encontrarem o Rio das Sereias.

III Cavalgaram por cerca de uma hora, e então Ádiler sugeriu que atravessassem o Rio das Serias, quando já estavam próximos da sua margem. O fizeram, pois era um ponto onde o rio era extremamente 236

ERIC MUSASHI


largo, com rochas aparecendo e águas rasas. O solo ao seu redor já estava deserto, com muitas pequenas pedras no chão. — Acho melhor você ficar com ela, Arion, filho de Téoder — admitiu Hessêni, estendendo a espada de Elmo. Arion foi pego de surpresa, e acabara de atravessar o rio. — Não acho que seja correto, pois você é o béli, e não deve chegar de mãos vazias a Catebete. Além do mais, até prefiro ficar longe das armas. — No entanto, esta espada será muito mais útil em suas mãos — foi o que Hessêni respondeu. — Aceite — pediu Ádiler, depois que Arion ficou indeciso, enquanto os cavalos se moviam lentamente. — Não devemos nos atrasar por causa de problemas pequenos. Pegue a espada, e seremos os batedores. Eu sei que estamos num grupo pequeno, mas é melhor nós dois irmos à frente, pois é o filho de Téoder, e Luredás não é um guerreiro.Alias, existe algo que me deixa curioso — disse, virando-se para Luredás —: você já chegou a usar essa espada? — Já, apesar de eu não achar que um metal cobiçado como o ouro deva ser usado para ferir. É um belo adorno, e também muito resistente. Sei que o ferro ou aço com sevaste destruiriam esta espada facilmente, se usados pelas mãos certas. Mas fico feliz em crer que ela pode durar para sempre. — Deixe-me dar uma olhada nela — solicitou o imane. Luredás hesitou, mas quando viu que Arion e Hessêni também se mostravam curiosos por quererem ouvir o que Ádiler diria, desembainhou-a e a entregou. Ádiler se admirou de início, mas depois de dar alguns golpes no ar, deu uma boa gargalhada. — Isto aqui não é ouro! — exclamou. — Sim, tem uma fina camada de ouro em volta dela, para não enferrujar, como é comum nas espadas de mádis. Mas o seu interior é de ferro. — Como pode afirmar isso com tanta convicção? — indagou Arion. — É muito leve para ser de ouro — respondeu Ádiler, devolvendo a espada para Luredás. — Se fosse realmente, pesaria o dobro, ou até mais um pouco. Não obstante — continuou, já com as mãos livres —, ainda assim é uma joia rara, e durará mais se não precisar ser usada. Poderá deixar para os seus descendentes, Luredás. — É, caso eu venha a ter descendentes.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

237


— Humf. — Ádiler estranhou a visão pessimista do músico. — Mas chega de conversa. Vamos logo, Arion, cumprir o nosso papel de batedores! Ainda não pegou a espada? Eu sei que não quer ser um dos imanes de Hessêni, mas de fato é um deles, pelo menos no decorrer desta curta jornada. Venha depressa! — E ele saiu à frente. Arion apanhou a espada com Hessêni e foi atrás de Ádiler. Hessêni e Luredás esperaram os dois se distanciarem bastante, até que ficassem pequenos no horizonte, e então também fizeram com que seus cavalos corressem, levando os quatro telapuros consigo. O sol se mostrava quente, atingindo a sua direita com seus raios. O clima estava abafado, sem ventos, mas a cavalgada amenizava isso, com a sensação de vento produzida por estarem em movimento. — Não devia ser pessimista assim, Luredás — disse Hessêni. — Do que fala? — É o sonho de todo homem ver a sua descendência — disse o béli. — Até mesmo para mim. Tenho somente 23 anos, e gosto muito de me divertir. Não tinha pensado nisso antes, ainda. Entretanto, depois do que passei na noite retrasada, passei a me preocupar. Sou moço, mas sendo o béli de uma cidade importante como Ancatébia, posso morrer a qualquer momento, não é mesmo? — perguntou, e Luredás percebeu que não via mais um jovem atalai, um béli que ganhara o seu título facilmente, e que só queria participar de festas e dormir com dezenas de donzelas. — Tornei-me béli simplesmente por ser filho do béli predecessor. Hessêni, filho de Vólnai, era como costumavam me chamar. De todos os filhos que teve, o béli tinha que escolher justamente o único que não possuía talento para lutar, só porque amava mais a sua mãe? — Tem irmãos, Hessêni? — questionou Luredás, surpreso. Então Hessêni pareceu surpreso; queria desabafar, e, pelo modo como via Luredás — um autêntico Filho dos Titãs —, esperava ouvir bons conselhos e palavras confortadoras. Mas agora percebera que estava falando com um rapaz como ele. Um jovem com pensamentos diferentes, mas ainda um jovem. — Estaria mentindo se dissesse que não — respondeu. Tinha uma vontade imensa de negar, mas não queria mentir. Ao menos não afirmou. — Mas, mudando de assunto, é verdade que não sou o primeiro a chamá-lo de Filho dos Titãs, Luredás? 238

ERIC MUSASHI


— Humf, não sei como soube sobre isso, mas, assim como não quer falar sobre seus irmãos, pelo que pude perceber, também não quero falar sobre o meu passado — respondeu Luredás, secamente. Isso fez com que não sobrasse qualquer resquício da imagem divina que Hessêni tinha feito dele ao tentar desabafar. — Desculpe-me pelo modo como falei, béli Hessêni — escusou-se Luredás —, mas eu não gosto que me tratem assim, como se eu fosse uma divindade. Você já sabe disso. — Perdoe-me — disse Hessêni. — Tentarei não fazê-lo novamente. Enquanto isso, longe dali, Arion e Ádiler iam cavalgando com menos pressa, e prestando atenção em tudo que viam ao seu redor: fortes templos erguidos, com pilares cilíndricos adornados com ouro, prata e rubi. Todos tinham hieróglifos; pássaros, lobos, triângulos e olhos humanos. Tudo aquilo numa região agora deserta e inóspita, mas começaram a imaginar como seria quando os templos foram construídos. Avançaram mais, e já estavam sendo alcançados por Luredás e Hessêni. Então puderam ver, primeiramente bem distante, um tanto distante do leito do rio, e depois mais perto, quando enfim se desviaram da margem: um tetraedro se erguia, e de longe parecia um simples triângulo. Feito de calcário, com a altura de 30 homens, ou cento e vinte passos — algo entre 50 e 60 metros —, na famosa forma de medida local. Todas as arestas tinham a mesma medida; contudo, apesar do monumento ter um dia sido um tetraedro perfeito, com a face voltada para o solo também em triângulo, ele estava cheio de irregularidades, com rachaduras e defeitos, causados pelo tremor de terra de duas noites atrás e pelo tempo. Após se aproximarem, Ádiler e Arion perceberam que havia três portas, uma de cada lado. Eles resolveram entrar, e seus cavalos, que eram treinados, ficaram esperando do lado de fora. Lá dentro, havia uma certa quantidade de luz. Espelhos de prata dispostos em várias posições refletiam a luz uns nos outros, provocando uma suave claridade. Alguns estavam faltando, e desse modo outros nem recebiam brilho. Provavelmente foram levados por ladrões. Bem no centro, era erguido um pedestal, da altura de um homem. Ele tinha quatro pedras pequenas de sevaste, que com seu fulgurar azulado também ajudavam a manter o interior do tetraedro iluminado. Acima do pedestal, estava um pedaço de pedra negra, com as seguintes inscrições:

OS HERDEIROS DOS TITÃS

239


Arion se aproximou e começou a lê-las. Não levou muito tempo, e então ficou perdido em pensamentos, apertando o punho direito com força. Ádiler, já impaciente, perguntou: — O que está escrito aí, afinal? Arion se surpreendeu com a pergunta, uma vez que em Jatitã, onde tinha crescido, era comum que todos fossem alfabetizados. Ele não sabia que isso não era uma realidade no resto do Reino, e que até mesmo em Catebete muitos não sabiam ler e escrever. — Por acaso, imane, não foi apresentado às letras? — Não — disse Ádiler, abaixando a cabeça, envergonhado. — Desculpe-me — disse Arion. — Mas de modo algum isso é motivo para sentir vergonha. Só agora percebo que longe de Jatitã, nem todos têm acesso a esse tipo de conhecimento. Entretanto, sendo um imane, achei que deveria saber. — Comecei a aprender recentemente — disse Ádiler, depois de algum tempo. — Mas cresci nas ruas de Catebete, como muitos outros. Não faz tanto tempo assim que me tornei um imane, e só agora tive tempo para me dedicar à pena. — É uma surpresa saber que é catebétio! — Sim, eu sou. Mas isso não é relevante agora. Por favor, filho de Téoder, diga para mim o que está escrito nesta pedra! — Ádiler se mostrava ansioso, e Arion concordou balançando a cabeça. Quetabel: Perfeita preciosidade Mãe da fortuna Rainha imortal de valor inestimável — São lindos versos — disse Arion, depois de ter suspirado. 240

ERIC MUSASHI


— Até demais — disse Ádiler. — Talvez isso toque o seu coração, mas não se iluda; Quetabel é cruel e mentirosa. Quase todos creem que ela é uma Deusa, e até desisti de discutir isso com Hessêni. Poucos, como eu, veem que é uma falsária. Tudo o que ela tem no coração é cobiça, e tudo o que tem na boca são palavras malignas e enfeitiçadoras. Arion então riu. — Suspirei sim, mas foi de raiva! Se não fosse por ela, minha mãe ainda estaria viva. Entretanto — ele disse depois de um silêncio constrangedor —, é melhor que saiamos deste lugar o mais depressa possível. Não quero ficar mais um instante sequer num templo de adoração a esta Deusa corrompida! — Faça minhas as suas palavras! — exclamou Ádiler. — O que estão fazendo aqui dentro? — soou uma voz, e então puderam ver que Hessêni e Luredás também estavam ali. — Vimos os cavalos ali fora e... — Hessêni parou bruscamente quando viu as inscrições na pedra, e ele e Luredás começaram a ler. Depois que terminou, o béli de Ancatébia fez uma reverência, e em seguida os quatro saíram do monumento. Os telapuros vigiavam do lado de fora. — Acho melhor nos apressarmos — disse Ádiler, já montando no cavalo. — Cada hora é importante, e logo teremos que parar para uma refeição, e também para alimentar os animais. Vamos voltar para a margem do rio, uma vez que precisaremos de água. Devemos sair logo de perto destas Construções Antigas, as Construções Gloriosas do Passado, uma vez que há boatos sobre desertores nestas terras. — Tem razão, meu bom imane — disse Hessêni. — Então está decidido: logo que sairmos dos domínios dos templos erguidos para Quetabel, nossa Rainha e Deusa, faremos uma refeição e descansaremos um pouco. O que me deixa triste é que estas terras sejam profanadas desta forma — a sua face entristeceu-se. Com isso eles se foram, de acordo com as limitações dos seus animais. Arion e Ádiler foram à frente, como antes, e Arion era o primeiro. A velocidade de Valente contribuía, mas ele também queria chegar a Catebete logo. Queria rever o seu pai, por mais que não soubesse qual atitude tomaria quando o encontrasse. O mesmo também pensava sobre Quetabel.

IV Tiveram que galopar muito até que todas as construções erguidas em homenagem a Quetabel se tornassem só memórias. Era óbvio que o tetraedro era a principal, por ser mais engenhosa, ousada e mais alta que

OS HERDEIROS DOS TITÃS

241


as demais. Eles notaram que todos os templos eram erguidos para Ágni, o Elemento Fogo. Além disso, o próprio tetraedro era como os atalais representavam esse elemento, sendo o hexaedro para Agar, o octaedro para Vaiú, o icosaedro para Suí e o dodecaedro para o Éter. Uma forma de representação mais moderna, e muito comum entre os membros da Ordem de Acaldã, o principal grupo de estudiosos do país-continente. Chegado um ponto médio entre a quarta e a quinta hora, eles pararam. Deixaram que os cavalos descansassem, e deram feno para eles. Os animais, no entanto, primeiro foram beber água. Arion apanhou os cantis e foi reenchê-los, e enquanto isso Hessêni dava frutas para todos — e só durante a noite preparariam lentilhas. Luredás e Hessêni ficaram sentados comendo, e o filho de Téoder foi comer com o imane. — Veja, ele está fazendo amizade com Ádiler — apontou Hessêni, e então deu mais uma abocanhada na maçã. — Isso é bom — disse, depois de mastigar e engolir —, e talvez o seu amigo aceite ser o novo béli de Ancatébia. — Há essa possibilidade — respondeu Luredás —, mas pelo que sei sobre Arion, ele não aceitará. Entretanto, sobre outro assunto, creio que Arion mudará a sua opinião, e perceberá que ser feliz só depende dele próprio. Hessêni não falou mais nada, e tudo o que Luredás conseguiu foi deixá-lo confuso. O sol já estava alto no céu, levemente deslocado para o leste, ainda. Um vento fresco vinha do norte, e isso fez com que se sentissem mais tranquilos quanto ao seu destino. Comeram felizes; talvez em Catebete um clima gostoso os esperasse. — Aqui está! — disse Arion, entregando o prato para Ádiler. — Muito obrigado — disse o imane, com um sorriso cordial, algo não tão fácil assim de ser ver naquele rosto marcado por um passado infeliz e por duras batalhas. Seus longos cabelos castanho-claros eram tocados pela brisa, e por várias vezes cobriam os seus olhos — que eram ora verdes, ora castanhos — uma vez que estava de frente para o sul. — Não gosto de estar perto dessas construções. Mas não posso ir contra a vontade de Hessêni — retrucou, e começou a comer. Só então que Arion lembrou que ainda estavam próximos do perigo; observou aqueles templos uma vez mais. O único som que vinha deles era o do vento cruzando a terra deserta. Não havia muita areia, e sim um solo seco e pedregoso. Lembrou-se dos prédios erguidos para Vaiú em Jatitã, 242

ERIC MUSASHI


com muitas safiras, e detalhes em prata nos pilares. Mas não, não estava mais lá, e talvez nunca mais voltasse. — Eu também odeio estar aqui — ele disse. — Pelo menos há templos para Ágni. Mas o mais formoso deles é para ela... Ádiler riu. — Sim, também não gosto da Rainha. Mas não era disso que eu falava.Acontece que viajei muito para Catebete nos últimos anos, e já passei por momentos difíceis nesses lugares. Mas... — relaxou — parece que será uma viagem calma. Uma entre cem. Arion retesou. Eles comeram tudo, e só depois que tinham terminado é que novas palavras foram trocadas. Ádiler se deitou no chão, e não se preocupava em sujar a sua túnica roxa. — Deve ter sido muito trabalhoso e caro construir isso tudo — puxou conversa Arion. — Pelo que dizem as lendas, foi sim — respondeu Ádiler. — “A maior de todas as obras”, costumavam dizer. Já faz setecentos anos desde que Quetabel se declarou a Deusa, aquela que tinha criado o povo atalai, e que agora caminhava entre os vivos. Furiosa, a Rainha Lisleia enviou alguns de seus homens para acabarem com aquela idiota, como ela dizia. Mas Quetabel não estava sozinha. Convencera todos os de Catebete, e também os dos arredores. Houve guerra, e no fim os homens de Jatitã pereceram. Lisleia perdeu a cabeça, e Quetabel era a nova Rainha. Foi um golpe rápido, e ela, juntamente com Astarote e os Quatro, passou a governar. Novas revoltas se deram, mas foram contidas, e aos poucos ela foi ganhando a confiança de todos os bélis, e recebendo a sua aprovação como de origem divina. Anos se passaram, e muitos morreram. Mas lá está ela, e também os seus anjos, ou mensageiros divinos, que a auxiliam. — Ninguém nunca tinha me falado muito sobre isso — disse Arion. — Lisleia foi uma idiota! — esbravejou Ádiler, mas ainda rindo. — Ela não sabia administrar esta nação. Mas o fato é que Quetabel e os Cinco não são pessoas normais, e muitos morreram crendo que ela era uma Deusa. Ordenou que todo o continente se submetesse a ela, e quanto mais servos ela tinha, mais confiantes estávamos. Só queríamos festejar, e fizemos filhos demais. Além disso, não havia mais terras para serem conquistadas. Nesses mil anos, ou mais, usamos tudo o que o solo tinha para oferecer, e agora enfrentamos até mesmo uma seca longa demais. Entretanto, não era disso que eu devia estar falando. Quetabel ordenou que muitos e muitos templos fossem erguidos para ela, e por fim o tetraedro. Os Templos Antigos costumavam ser guardados

OS HERDEIROS DOS TITÃS

243


por vários telapuros e alguns mádis. Muitos pergaminhos falam sobre os inigualáveis jardins que já existiram aqui. — Levou muito tempo para que tudo fosse construído? — Cerca de 150 anos — replicou o imane, e Arion ficou boquiaberto. — Mas o tempo passou, os jardins desapareceram, e mais e mais homens começaram a ser mandados para conquistar as Montanhas dos Dragões e além, de início, e as Planícies Proibidas, no boreal-nascente, depois, luta esta que perdura até hoje. Poucos ficaram para guardar os templos do passado, e estes acabaram sendo atacados por rebeldes, que agora dominam o lugar. Não há segurança alguma aqui, nem mesmo para bélis ou imanes. — Agora compreendo — disse Arion. — Só me sentirei seguro quando tiver deixado para trás este lugar. Vamos nos preparar para partir, Arion, filho de Téoder. Também sinto vontade de tomar um pouco de vinho. Venha comi... — Ádiler nem terminou de falar. Acabara de se levantar, e ao olhar para o norte, viu Hessêni, Luredás e os soldados cercados por cerca de trinta homens, todos eles com cimitarras apontadas para os atalais. — Não acredito! Estive cuidando por aqui; como puderam fazer isso? — O que houve? — indagou Arion, e então se virou também. Antes que Ádiler esboçasse qualquer reação, o filho de Téoder sacou a espada de Elmo e foi correndo para salvar os amigos. — Afastem-se, seus ladrões! — bradou, algumas vezes. Arion corria para perto de Hessêni e de Luredás, então sentiu uma fisgada na perna; o ferimento sangrava novamente! Ádiler notou que ele começou a mancar, mas ainda assim manteve a velocidade. Ao que se achegaram aos companheiros, Luredás e os telapuros tinham as espadas sacadas, e Hessêni apenas mantinha um semblante preocupado. Estavam cercados por vinte e sete pessoas, e todos agitavam suas cimitarras raivosamente pelo ar, enquanto gargalhavam. — O que está havendo aqui? — perguntou Ádiler. Todos pararam, e a roda foi aberta. Ádiler e Arion não entraram, ficando apenas nas proximidades. Um deles se aproximou do imane, e vestia uma surrada túnica encardida, que devia ter sido branca algum dia. Um pano da mesma cor estava amarrado, cobrindo a cabeça. Tinha grossas sobrancelhas, castanhas, e os cabelos encaracolados que caíam por sobre os ombros eram queimados nas pontas, talvez pelo sol. Usava 244

ERIC MUSASHI


várias correntes de ouro, e também alguns braceletes e um cinto, que era decorado com esmeraldas e safiras. Provavelmente era o líder deles. — Ora, ora, o que temos aqui? — ironizou. — Ádiler, o protetor do béli de Ancatébia. Uma grande sorte, não? — Tanto ele como os outros caíram na gargalhada. — Um béli que não carrega uma espada sequer. Será muito fácil saqueá-los hoje! Eles começaram a gritar “sim!”, e Ádiler, Arion, Hessêni e Luredás trocaram olhares aflitos. — Se eu fosse você, não estaria tão certo disso — disse Ádiler. — Sei muito sobre a sua técnica e força, discípulo do Grande Téoder — disse o homem, e Arion e Luredás respiraram fundo ante a novidade, agora mais surpresos do que tensos. — O Punho Etéreo é uma técnica sensata, poderosa e letal. Já perdi muitos homens para as suas espadas. Mas você está sozinho hoje. Há aqui um mádi, pelo que posso ver, e um outro imane, mas são dois moleques. E o seu béli, Hessêni, filho de Vólnai, como dizem as vozes que ecoam de Ancatébia até minhas terras, está desarmado. — Então ele se aproximou mais de Ádiler e Arion. — Sozinho não — respondeu Ádiler, e apontou para Arion com a espada longa. Todos os outros começaram a rir, e Ádiler ficou em silêncio até que parassem. — Este é Arion, filho de Téoder. Não precisam me olhar assim, assustados — a situação se invertera. — Téoder só existe um! E este “moleque” foi treinado no Punho Etéreo pelo pai. Não posso lhes garantir que é melhor do que eu, mas há poucos dias ele venceu Nagos, que, como devem saber — já que sabem tanto sobre a minha cidade —, aprendeu a usar a Chama Vermelha com Egle e Áigon. Todos ficaram aturdidos, e Arion, seguro, passou a fitar os saqueadores nômades, e eles se afastavam para trás. — Palavras costumam ser vazias, principalmente para nós, imane Ádiler — disse o provável líder. — Já vi aqueles que se dizem grandes sofrendo vergonhosas e fatais derrotas para os meus mais inexperientes homens, e não se iluda achando que nos amedrontará com isso. Que seja feito um teste! — Que tipo de teste? — perguntou Hessêni, enfim se manifestando. — Ordenarei que alguém o enfrente, e se ele for mesmo o filho de Téoder, não será derrotado. Devem ficar de fora, pois se tentarem ajudá-lo, então meus outros vinte e cinco homens e eu entraremos em combate.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

245


— Que tal um outro teste? — indagou Arion. — Sei muito bem que só querem se divertir enquanto eu sangro, e estão em maioria, podendo mandar muitos para cima de mim enquanto luto. Assim, eu arranco a sua cabeça e o resto vemos depois! — E golpeou tão depressa que o desertor nem viu, já caindo morto no chão. E a confusão começou a tomar conta de tudo, de modo que os telapuros ancatebienses logo caíram mortos, ao que Luredás derrubou dois com espadadas, Ádiler fez logo cinco vítimas e outros três agarraram Hessêni, desarmado, fazendo com que o lirista ficasse sem ação. — Quem é homem para me enfrentar? — vociferou Arion, já que os mais próximos gemiam no chão, e ninguém ousava se aproximar. — E quem disse que um homem acabará com você? — disse um dos mais subestimáveis. — Halá, mostre para ele que também há mulheres poderosas e temíveis! — E um dos que se escondiam atrás dele tirou o capuz e o véu que cobria o seu rosto. Vestia uma túnica azulada, mas sem a tradicional faixa presa na cintura, como mulheres costumavam usar. Era de uma beleza rústica, com penetrantes olhos verdes, e cabelos castanhos. Tinha uma pequena cicatriz que impedia que pêlos crescessem na sobrancelha direita, mas o olho estava intacto. Seus lábios eram finos e sorriu, parecendo o sorriso de um felino. — Oh não! — disse Ádiler, entre mais duas espadadas. — Tome cuidado, Arion. — Qual é o problema? É só uma mulher — disse ele. — Halá veio de Acaldã, e luta como nenhuma mulher jamais lutou. — seguiu golpeando, derrubando mais dois, e se preparou para ir na direção do seu béli e de Luredás, que já eram imobilizados a esta altura.Ainda disse: — Ela só foi derrotada por Seida, a béli! Arion se aproximou dela, vagarosamente. Antes que a luta justa se iniciasse, um homem voou sobre Arion, na tentativa de agarrá-lo, ao que perdeu um braço e parte do peito. Uma lâmina o seguiu, rebatida no ar pela espada longa, e o arremessador deu passos para trás, pasmo. Halá então o atacou com sua cimitarra, num golpe descendente, indo na diagonal, da direita para a esquerda. Ele apenas parou o golpe, colocando a sua arma no caminho. Girou o pulso, e fez com que a espada dela fosse derrubada de sua mão, caindo uns cinco passos para o lado. — Humf — sorriu. — Bem que dizem que o povo costuma criar seus próprios mitos... — E Arion olhou para onde Ádiler estava, e notou que não havia mais ninguém ali. Ele, neste momento, aproximava-se devagar 246

ERIC MUSASHI


dos que imploravam por uma fuga ao se apoiarem no tuata e no béli, no patético medo de dez contra três. — Vamos, não há por que prosseguir — disse Arion, estendendo a mão esquerda para Halá, e não desejando tirar a vida de uma mulher. Para a sua surpresa, ela tirou com grande destreza uma lança que estava presa nas suas costas, e golpeou a mão de Arion. Ele a puxou, mas o golpe fez um estrondo ao cortar o ar, e uma chamuscada azul o feriu.Arion se afastou, e ela apontou uma lança com peças de sevaste para ele, arma típica de Acaldã. Ela avançou com um golpe penetrante, e Arion se afastou, desviando o golpe com a ponta da espada. Halá saltou e veio com mais um golpe penetrante, mas desta vez, descendente.Arion golpeou com a sua espada para cima, e a arma emitiu uma fraca chama azul. Entretanto, isso bastou para que Halá se desequilibrasse, e teve de fazer movimentos extras para não cair. — Eu posso permitir que se salvem... — murmurou Ádiler, e no momento em que viu a lâmina que roçava o pescoço de Luredás se afrouxar, jogou um punhal na garganta do que prendia Hessêni. Fez o mesmo com o captor de Luredás, e este golpeou o outro com a cimitarra recémapanhada, atingindo a sua perna direita. O desespero tomou conta dos guardiões desertores; mais dois que tentaram ajudar Halá — a última esperança de vitória — caíram nas mãos de Arion, e Ádiler, Hessêni e Luredás, somados, fizeram mais quatro vítimas. Os outros três, já morrendo, com suas cimitarras quebradas em pontos próximos do punho — provavelmente tinham tentado se defender — e com grandes cortes expondo suas vísceras, berravam ao Nada por uma improvável ajuda. Arion, assim como Luredás, havia atingido nas pernas, acertando ambos na parte de trás dos seus joelhos, e não houve magia no golpe. Halá se levantou assustada, crendo que seria o seu fim — mas como toda boa atalai, enfrentaria a morte com dignidade. Viu Arion virando-se para ela uma vez mais, e sem aliados para protegê-la. Furiosa, avançou sobre o segundo melhor oponente que já tivera — em primeiro lugar estava Seida —, e dois desertores que brotaram do nada fizeram o mesmo. — Arion, cuidado! — avisou Ádiler. Entretanto, nem precisava ter gritado. Se Halá estava furiosa, Arion estava extremamente instintivo. A adrenalina fez com que atacasse quase duas vezes mais rápido. Teria que enfrentar uma imane, pelo que tudo indicava, e também mais dois guerreiros, tudo ao mesmo tempo. Não queria matar ninguém, mas agora já não era mais o senhor dos próprios

OS HERDEIROS DOS TITÃS

247


atos. A sua espada coruscou, e se a lança de Halá não tivesse demonstrado o seu poder também, teria sido destruída. A arma voou da mão dela, que foi arremessada para trás, caindo de costas no chão. O próximo foi um indigente, atingido na garganta antes que sua cimitarra pudesse encostar em Arion. O último ainda atingiu o tuata, mesmo depois deste ter se esquivado para trás. Antes de morrer, ainda viu uma linha avermelhada no peito do filho de Téoder. Mas a Chama Azul o decapitou. Vendo Halá desarmada e caída, e a chacina que tinha se dado, quem restava vivo tentou fugir — até mesmo os que tinham as pernas feridas. Logo já estavam se escondendo nas ruínas, e quando Ádiler tentou ir atrás deles, Luredás o deteve. Halá se levantou, e ao tentar apanhar sua lança viu que ela estava com Arion. Os outros três também se aproximaram dela. Atemorizada, como bicho do mato, tentou fugir, mas Ádiler a segurou pelo braço. — Eu sei quem você é, Halá — disse. — Imane Halá, de Acaldã. — O que isso importa? Largue-me! — ela tentava se soltar, mas por mais que fosse hábil, o robusto imane era mais forte do que ela. Eis a vantagem da maioria dos homens sobre as mulheres. Vantagem esta que era praticamente anulada quando eram armas que se batiam. — Por favor, acalme-se. Não queremos de modo algum feri-la. — O que querem, então? Satisfazer suas vontades sexuais? — Quero que siga conosco — disse Ádiler, e ela parou de se agitar. — Se for para ser uma escrava, eu prefiro que me perfurem com a minha própria lança — disse ela, olhando para Arion, que ainda estava com a arma. — Tudo o que sempre quis foi ser livre; a senhora do meu próprio destino. Dar ordens, é tudo o que os homens sabem fazer. Jamais fui de homem algum, de modo algum; amante, serva, escrava. — Fique calma. — Ádiler notou que ela se exaltava de novo. — Você é uma valorosa guerreira, e é disso que estamos precisando neste momento. Não quero de modo algum privá-la de sua liberdade, e é por isso que estou pedindo que siga conosco. Por favor. Então Ádiler a soltou. Ela ficou por algum tempo refletindo sobre tudo; a oportunidade de pegar o béli, a derrota, e a proposta. — E o que eu ganharia com isso? — Todos ficaram quietos. Ádiler propunha que ela os seguisse, mas não tinha pensado em que vantagem ela teria por fazê-lo. — Vejo que pedem demais de uma mulher livre — zombou. 248

ERIC MUSASHI


— Você será a béli de Ancatébia, quando tudo isso acabar — disse Hessêni, para a surpresa de todos. Halá, que já tinha dado as costas para eles, voltou-se, e seus olhos verdes chamuscaram. — Meu senhor...! — assustou-se Ádiler. — Já que Arion não quer me suceder, talvez ela queira — disse o béli. — Você luta muito bem, e sabe impor respeito. Ádiler está certo em pedir que vá conosco, pois nosso povo terá uma dura luta pela frente. Se vier e sobreviver, entregar-lhe-ei o comando da Cidade do Vinho. — É... — ela ponderou — ...é um bom prêmio. Mas antes preciso saber de que luta vocês falam. Já faz muito tempo que não sou mais uma subordinada da sua Deusa, e não sei muito bem o que se passa no Reino. — Nós estamos indo neste momento para o Conselho dos Bélis, promovido por Astarote e Quetabel na capital — disse Hessêni. — Pretendem planejar uma invasão definitiva das Planícies Proibidas. Pelo que parece, o caminho pelo Vale dos Lobos não mais será tentado. — É melhor que seja assim — disse Halá. — Não quero ter que passar por Acaldã novamente. Mas eu aceito a proposta, a menos que seja uma luta sem volta. Irei com vocês até Catebete, e depois que o conselho terminar, e que eu souber o tamanho do perigo no qual estarei entrando, aí sim lhes darei a minha resposta. Mas por hora — ficou algum tempo fitando Arion —, eu quero a minha lança de volta. Ele ficou perdido, mas Ádiler ordenou que fosse devolvida. Já tinha a tirado dela uma vez, e mesmo que tivesse sido um golpe de sorte, agora estava com a maioria. Ele entregou, e ela puxou com força. — Vejo que não há um cavalo para mim. Meus antigos aliados e eu tínhamos passado por vocês silenciosamente, e por isso fomos a pé. Mas agora, meu animal ficou no território deles. Como irei com vocês? — Cavalgue comigo — sugeriu Ádiler. — Que insolência! — exclamou ela, e se fechou como antes. Eles, sem entender, também não disseram nada. — Eu posso até ir com você, imane Ádiler, mas somente se eu assumir as rédeas. — Que seja. E partiram, não sem antes homenagearem os mortos. Cavalgaram bastante, mas a cremação os atrasou. A noite chegou, e não podiam ouvir o som da cachoeira do Rio das Sereias. Resolveram descansar, e esperar o raiar do dia seguinte. Aí então chegariam a Catebete.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

249


Jornada por Grabatal I Já fazia sete dias que Téoder e Sólen e seus homens haviam saído de Porto da Vitória, e no segundo pôr-do-sol de viagem a Mata do Extremo Poente não podia mais ser vista, e se embrenhavam nos alagados que compunham o grande delta do Rio Anzafassuí. O 25 de protomês amanheceu com um céu limpo, mas com úmidos ventos austrais. Logo as Montanhas Assassinas estariam entre eles e o mar, e as nuvens iriam desaparecer, para só retornarem no outono. Téoder foi acordado por Sólen: — É melhor partirmos, Béli-Mor — disse. — Apesar de estarmos numa terra rica em água, diferente do empobrecido Centro, não saímos de férias. E teremos, uma hora ou outra, que rumar para boreal e margear o Canal; que seja feito o mais tardar possível, perto das Montanhas Toradon. Até lá, temos muito chão pela frente. — Eu sei de tudo isso. — Téoder foi seco. — Já fiz este caminho, e outros bem piores — acrescentou. — Sei de muitas histórias sobre você, não precisa se dar o trabalho de contá-las para mim. — Sólen deu as costas para o Béli-Mor, mas de repente pareceu se lembrar de algo: — É melhor comer alguma coisa agora. Não pararemos para o almoço até as próximas elevações secas. Téoder assentiu, e Sólen se foi. Ele se levantou, tirou um pouco de feno para Filho dos Ventos e preparou mingau de trigo para si, como em campanhas militares. Enquanto comia, podia perceber os olhares de Namior e Sólen em sua direção. Retribuiu-os, e logo deixou de ser o foco da atenção dos dois. Terminou de arrumar suas coisas, montou em Filho dos Ventos e foi até os companheiros de viagem. Nuvens carregadas começaram a tomar o sul e o sudoeste. — É melhor que partamos logo; creio que vai chover — disse Téoder. — Suas palavras são vazias aqui — disse Namior. — Está tentando aconselhar o mais sábio viajante destes tempos. Conheço esta terra 250

ERIC MUSASHI


mais do que o meu próprio corpo, Béli-Mor. — Sua voz era rouca e grave, em combinação com sua face amedrontadora. Sólen fez um sinal; ele se calou. — Isto não é uma navegação — disse Téoder. — Vamos — ordenou o béli de Porto da Vitória, ainda que o Béli-Mor estivesse entre eles. — Deixemos as discussões para outra hora. — Vejo que terei dias em que precisarei de extrema cautela — disse Téoder, e foi se afastando deles, ainda montado em Filho dos Ventos. — Estarei esperando-os mais adiante. — Namior, mais cuidado com suas palavras — alertou Sólen. — Deve respeitá-lo mais do que me respeita, pois está diante do Béli-Mor. Por mais que eu acredite que ele não mereça esse título, por enquanto ele o tem. Mas isso pode mudar. Assim sendo, nada de brigas até chegarmos a Catebete. Eles seguiram viagem, e passaram por lamaçais. Às vezes as patas dos cavalos afundavam bastante, mas nenhum deles caiu.As carruagens tiveram muita dificuldade, e acabaram se atrasando.Téoder ficou pensando nas palavras de Nábia. Realmente, Sólen parecia crer que ele não merecia ser o Béli-Mor. Mas será que ele não sabia sobre o episódio dos lobos? E também sobre as jornadas de Téoder — dentre as quais uma guerra vencida no Nascente? Não era esse o problema. Sólen sabia, sim. Não obstante, lendas não bastavam para impressioná-lo. Téoder notou que numa das carruagens havia um saco todo esticado, com formas estranhas. Não conseguia imaginar o que estava ali. Parecia um semicírculo, mas o que poderia ser? Namior vivia parando para averiguar, quando o ritmo era lento por causa das carruagens. Ou passava o tempo produzindo dardos de madeira. O Béli-Mor também se atentou ao fato de que, além de carregarem seus sabres, os imanes de Sólen levavam tridentes. Lanças com lâminas triplas nas pontas, e tinham sevaste. Sólen, por outro lado, carregava dois pequenos tridentes presos em seu cinto — ao mesmo modo, com o cristal etéreo —, cinto este que era preso na parte do peito da armadura com pequenas correntes, e fixava o saiote da mesma forma. A armadura de Téoder, deixada em Catebete, era similar, mas possuía desenhos mais estilizados. Assim como Sólen, ele também tinha protetores para os braços e punhos, mas não era comum que os bélis atalais

OS HERDEIROS DOS TITÃS

251


usassem capacetes. Um béli deveria conseguir defender a sua cabeça apenas com sua habilidade, e o rosto devia ser mostrado para todo e qualquer adversário — a não ser em guerras francas, onde setas perdidas eram um grande perigo. Téoder se vestia como um aldeão — a não ser pela espada —, e não achou que encontraria tanta hostilidade na famosa cidade portuária. Contudo, não era com o fato de estar parcialmente desprotegido que ele se importava agora; o que era escondido naquele saco que Namior protegia tanto? — Sólen? — indagou, enquanto se aproximava do béli. Namior, que ia bem à frente, não foi capaz de ouvir, e seguiu normalmente. — O que houve, Béli-Mor? — Eu fiquei curioso: vi que todos os seus imanes carregam tridentes, e você também, mas dos pequenos. O seu clã prefere usar essas armas a espadas, diferente da maioria dos outros? — Nossos soldados são lanceiros, e mantêm a formação em falange, com a qual dominamos Grabatal. Os tridentes são para os imanes, e não há melhores armas do que eles, uma herança do Rei Navegador. Poderosos como as lanças, capazes de atingir oponentes distantes; mas, ao contrário das mesmas, têm três pontas. É como usar três lanças ao mesmo tempo. — Pode ser. Mas até onde sei, quanto maior a arma, mais pesada ela é, e mais demorado e desajeitado sai o golpe. Ao ouvir isso, Sólen o fitou com raiva. — Não creio que haja uma forma de lutar melhor que a outra — prosseguiu Téoder. — Há sim, melhores guerreiros. — Pode ter certeza de que não compartilho da mesma opinião que a sua.Três Lâminas é uma técnica sem paralelos. — Punho Etéreo também — rebateu Téoder. — Assim como todos os outros. Era isso que eu estava tentando dizer. Mas não quero discutir com você uma vez mais. Só tenho mais uma pergunta a fazer. — Pois faça — disse Sólen, depois de respirar fundo. — O que é aquilo que carregam no saco escuro, com a forma de um grande semicírculo, numa das carruagens? 252

ERIC MUSASHI


— Só posso lhe dizer que é algo sem paralelos. Mas, como você diz, nada tem paralelos. Então, reformulando, digo-lhe que é uma coisa que você jamais viu. Aliás, nem você e nem aqueles que moram em Catebete e nas outras cidades pensaram alguma vez em aprimorar um invento de forma tão útil quanto fizeram com esse. — E qual invento e aprimoramento são? — Quando chegar a hora, saberá, Béli-Mor... O Béli-Mor olhou uma vez mais para as carruagens, e notou que os imanes que as conduziam também o fitavam do mesmo modo que Namior e Sólen. Ele também os encarou, assim como fizera com os outros dois. O olhar de Téoder era algo difícil de se aguentar por muito tempo; até animais o temiam e respeitavam por causa disso.

II Aquele dia passou depressa, e logo estavam sentados ao redor de uma fogueira enquanto ventos frios sopravam. Os animais descansavam, e num canto, sozinho, estava Téoder com sua fraca fogueira. O único que permanecia com ele era Filho dos Ventos, e isso confortava o Béli-Mor. E assim foi pelos dias seguintes. Os rios que eles atravessavam se mostravam cada vez mais largos, indicando que logo estariam próximos do coração do Poente. Inicialmente cruzados com um único passo, logo os cavalos já molhavam um pouco mais que os cascos, e precisavam dar dois ou três passos para atravessar. A chuva que não caiu no dia 25 e nem no dia 26 se revelou muito forte no dia 27, e eles se cobriram com suas capas de couro. Os cavalos iam devagar, e eles podiam se deleitar com cada detalhe da paisagem. — Seria bom se em Catebete chovesse assim, não é, Téoder? — perguntou Sólen. — Ah, chamou-me pelo nome — riu. — Mas, de fato, lá podia chover mais. Estudiosos de Acaldã têm sustentado que a aridez diminui as chuvas, que trazem mais aridez, e assim por diante, num círculo vicioso. Pode ser verdade. De qualquer forma, lá estamos próximos do Rio das Sereias e do Rio dos Bosques; irrigamos nossas plantações com suas águas. Além disso — acrescentou, depois de ponderar um pouco — nossas plantações superam todas as de Grabatal. Você vai ver.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

253


— Talvez. Mas não é só da terra que o homem pode tirar bons frutos; os pescadores que vocês inferiorizam trazem os mais apetitosos peixes. E das terras que visitamos trazemos vegetais que vocês nem sonham conhecer — Sólen falava com soberba. — Disso eu já sei, de tanto que você e seus homens gostam de se gabar — retrucou Téoder. — E não nego que seus feitos são memoráveis. Aliás, pergunto-lhe: por acaso tem tanta rivalidade comigo por achar que não sou capaz de ser...? Téoder ia continuar, mas viu que Namior, que ia à frente, derrubou um grande pássaro com seu estilingue — uma arma de guerra de tempos passados. Em Grabatal, as aves e os répteis assumiam tamanhos superiores aos similares no resto do mundo. E os felinos eram mais ousados, agressivos. Uma pantera saltou de um arbusto e agarrou o pássaro, inclusive derrubando o imane, que o tinha em mãos, do cavalo. Namior se levantou com dificuldade. Apesar de saber que não desfrutaria daquela ave, saborosa à primeira vista, Téoder deveria ajudar o, até então, rival. Como seu velho mestre dizia: “O que o difere dos demais, Téoder, filho de Odel, é a sua capacidade de ajudar aqueles que precisam. A sua vontade de ser útil mesmo quando o que depende de você é o que quer o seu mal. Isso faz de você o que nomearei como meu sucessor. Quetabel já foi consultada sobre isso, e também revelou que era o que queria.” Téoder não gostava que ninguém falasse o nome de seu pai, exceto Alil, o seu mestre. O pai que lutou até o fim contra os soldados que queriam molestar sua esposa, e que morreu por isso. Se Téoder não fosse tão incapaz, se houvesse ajudado o seu pai a tempo... Mas não foi assim, e quando a fúria tomou conta daquele jovem, e ele apanhou a faca do pai e incrivelmente matou os telapuros, já era tarde demais. Sua mãe tentou contribuir para a vitória do filho, ainda que desonrada e humilhada, e também pagou com a vida. Téoder foi aceito como imane do Béli-Mor Alil, pois pelo menos algo de bom deveria vir disso tudo. Também jurou para si mesmo que jamais deixaria de ajudar alguém quando pudesse, e com todas as suas forças. E agora era a hora de fazer valer as palavras do passado. — Oh não, ele vai perder seu almoço! — gritou, e ameaçou ir para fazer sua parte. — Espere! — berrou Sólen, o que surpreendeu o Béli-Mor. Ele apenas apontou para Namior, que já estava de pé. — A pontaria de 254

ERIC MUSASHI


Namior é surpreendente. Não precisa se preocupar em ajudá-lo, pois já o vi acertar alvos mais rápidos que essa pantera, e muito mais distantes do que ela está agora. Téoder, sem ter o que fazer, ficou a assistir. Namior, enquanto se recompunha, empunhou um de seus dardos e o arremessou. Parecia querer jogar muito além de onde a pantera estava, mas o fazia porque ela também se movia. Além disso, atirava um objeto contra o vento, e no curto espaço de tempo, surpreendentemente pensou em tudo isso. Deveria ser mesmo um guerreiro de muita habilidade. O dardo a atingiu no meio das costas, e o sangue voou, misturandose com a água da chuva no ar e perdendo a cor. O animal vociferou com a dor lancinante, e logo depois ficou imóvel. Namior montou no cavalo novamente e correu até o felino. — Eu não disse? — riu Sólen. — Às vezes me pergunto se até mesmo eu não seria derrotado por ele. É claro que num combate corporal minha experiência conta muito, e, além disso, sou um béli, e ele é apenas um dos meus aprendizes. Mas se ele fosse um adversário, e estivéssemos distantes, pode ter certeza de que eu estaria em grandes apuros. Téoder se lembrou de outras palavras de Alil, enquanto Sólen falava com sabedoria. “Meu sucessor”, dizia ele, “todos treinam para enfrentar oponentes corpo-a-corpo. Mas eu lhe digo: e se algum dia, porventura, enfrentar um dragão das terras ao Boreal? Eu não duvido que eles existam. Ou então, num exemplo menos extremo, for atacado por aves furiosas, ou ainda oponentes que arremessem pedras? Sua espada não é apenas um instrumento de ataque, e esta é a chave do Punho Etéreo. Não há tanta diferença entre um dardo arremessado e o salto de um lobo. E não me olhe desta forma, pois você sabe o Vale dos Lobos é a porta para a conquista. Mas, voltando ao assunto, sua espada é a sua maior defesa, além de ser sua arma. Enquanto desvia o ataque do oponente, você também o fere, e assim a vitória estará garantida.” Era isso. Assim Téoder conseguiu se livrar do cerco da alcateia, tornando-se famoso como era. Não eram eles, mas a cordilheira alta, de avalanches e prováveis dragões, que impediam a conquista pelo vale, mas Téoder, e não um exército, era uma presa para os lobos — e soubera vencê-los.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

255


— Vejo que é mais sagaz do que eu supunha — admitiu Téoder. — Todavia, não sei se devo concordar que Namior é invencível num combate a distância. — Humf. Sendo orgulhoso, Béli-Mor? Téoder não disse mais nada. Seria melhor assim. De qualquer forma, se algum embate se desse, não se resolveria com simples palavras tolas proferidas em momentos de raiva. Namior já estava se aproximando, com a grande ave numa mão e a pantera sobre as costas do seu cavalo. Ele jogou a ave para Téoder, que a apanhou no ar. — Pode ficar com isso, Béli-Mor — disse, e se virou para os seus amigos. — Parece que consegui comida para alguns dias. Não sabia que as panteras haviam deixado os arredores da Floresta Sem Vida e tinham vindo para cá, no Delta do Poente. Estão muito ousadas, não é? — Será que as Montanhas Assassinas ficaram inóspitas demais até para elas, meu senhor? — perguntou Saânu, um imane de uma carruagem. — Talvez — respondeu o béli, mas seu pensamento parecia estar longe. — Eu acho melhor que fique conosco, Béli-Mor — pediu para Téoder. Por mais que ainda não tivesse visto suas habilidades em uso, o gesto do filho de Odel de tentar ajudar a recuperar o alimento que não seria seu o comovera, atravessando a barreira do respeito imposto. — Estamos viajando juntos, não concorda? — Muito mais do que a grande chuva que ainda cai e os feitos de Namior, isto me surpreende neste dia — disse Téoder, com um involuntário e animado sorriso no rosto. Aquele majestoso e forte rosto, marcado pelo tempo, mas ainda mais atraente do que quando tinha os seus vinte anos. Apesar de quase todas as moças de Catebete suspirarem por ele, nenhuma ousava tocá-lo, temendo a fúria de Quetabel. É claro,Téoder nem suspeitava disso. — Apesar da solidão ser boa em certos dias, aceitarei o convite. Homens não foram feitos para ficarem longe uns dos outros — concluiu. — Um convite, mesmo vindo de Sólen, não é capaz de conseguir tanta comida assim como minha lança — respondeu Namior. Sólen não ligava para citações desse tipo, como a maioria dos bélis. O seu respeito se restringia a confiança e subordinação. — Mas sua lança jamais me poria perto de vocês. E eu sozinho posso conseguir cinquenta panteras iguais a essa, assim como fiz com os lobos 256

ERIC MUSASHI


do vale no passado — disse Téoder. Realmente uma resposta à altura, mas que poderia estragar tudo, e, como de costume, tentou consertar. — Mas todos aqui somos notáveis guerreiros, cada um com suas habilidades. É melhor nos esquecermos das diferenças, se o convite ainda estiver de pé. — E está — respondeu Sólen. A chuva deu uma trégua, e puderam fazer uma fogueira e assar fatias da pantera. Estava sem sal, mas não sentiam mais falta desse tempero desde que haviam começado a viajar. As conversas preencheram o ambiente; contudo, Téoder, Sólen e Namior não riam abertamente como os outros. Os três se dedicavam aos próprios questionamentos.

III A noite caiu chuvosa no Delta do Poente, e o pranto celeste só se enfraqueceu mais ou menos pela nona ou décima hora, no meio da tarde, e se esgotou no primeiro quarto da noite seguinte. Quando eles pararam, Téoder repentinamente desapareceu, para logo em seguida voltar com frutas verdes guardadas na sua capa, que funcionava como protetor para chuva e cobertor durante as noites frias. Eles já assavam mais um pouco da pantera, e aproveitavam para se aquecer. — Aonde foi,Téoder de Catebete? — quis saber Sólen. — Fui buscar limões; vi que havia alguns pés desta fruta nas redondezas — explicou, e se sentou com os demais. Ele cortou um limão, e espremeu em seu pedaço de carne. — Vocês da capital têm modos muito estranhos — objetou Saanu. — Por acaso essa fruta azeda tem alguma serventia? — Isso não é um “modo de Catebete”, e sim um “modo dos sábios” — rebateu Téoder, confiante. — O tempero é saboroso, provem e verão. Eu vim de Jatitã, e lá ele é usado em grande variedade de pratos, de saladas a camarões. Até me espantei de encontrá-la no Poente. — É um fruto do além-mar — disse Namior. — Sua introdução no Poente deve ser da época da colonização de Ansar. — Ansar? — indagou Téoder. — É o modo como mais nos referimos a Anzafassuí — apressou-se em responder Sólen, ao que lançava um olhar reprovador a Namior. —

OS HERDEIROS DOS TITÃS

257


É algo interno. — E, para mudar o foco da conversa, pegou o limão de Téoder e espremeu em uma carne sua, experimentando. — Talvez não seja tão azeda assim depois que percebemos que há utilidade nela. É melhor que comer sem sal, admito. Ao que eles comiam, o mais jovem dos imanes, verde-aloirado como todos os outros, exceto Namior, tirou um pouco de vinho de um recipiente numa das carruagens, e aqueceu, servindo a todos. Sentiam-se como se o conforto de uma metrópole os rodeasse. — Bem pensado, Sólen — elogiou Téoder, que sabia ser uma ordem do béli. — Ajudará a combater o frio desta noite. Todos foram tombando aos poucos, inclusive os cavalos. Filho dos Ventos comeu tudo o que Téoder deu para ele, e dormiu feliz, bem como os outros animais. A noite passou depressa, mas todos conseguiram descansar e recompor as forças. O sol não nasceu com chuva, mas ainda havia a brisa fria vinda do sul, e nuvens tomavam o céu, muitas delas mais rechonchudas e baixas, já outras mais distantes e menos espessas, como se houvessem sido esticadas pelo firmamento. O cheiro de grama molhada incomodava, de tão forte. Téoder se perguntava por que queriam tanto as Planícies Proibidas. O continente era desértico principalmente no centro, e somente técnicas de irrigação garantiam o verde dos campos nas proximidades das cidades. Mas as terras inundadas do Delta do Poente talvez fossem férteis se tratadas. No fundo, eles queriam muito aqueles campos abençoados, e, de qualquer forma, havia mais superfície aquosa do que seca no delta, o que acabava atrapalhando o cultivo. O Béli-Mor se levantou e foi até um pequeno veio turvo que corria próximo a ele. Lá lavou o rosto e bebeu água. Seu pai, Odel, costumava lhe dizer que a água que se bebe ao acordar mantém o ânimo durante o dia todo. Superstição ou não,Téoder ainda obedecia a esse conselho. — Vamos, Filho dos Ventos — disse, firme mas sereno. O cavalo prontamente o atendeu, acordando, e ele o afagou. — Tenho sorte de nossos caminhos terem se cruzado, meu bom amigo. Ele voltou até o rio novamente e ficou observando o próprio reflexo, ao que ajeitava os longos cabelos negro-azulados, prendendo-os em várias tranças. 258

ERIC MUSASHI


— É melhor partirmos. Que bom que já está pronto — disse Sólen. Eles juntaram seus pertences e foram cavalgando um pouco mais rápido que o normal. De início se desviaram mais para o sul, e Téoder até achou que Sólen estivesse apenas tentando transpor algum obstáculo e pegar outro caminho. Mas várias horas se passaram, e continuaram nessa direção. O sol que subia pelo leste não estava à sua frente, mas deslocado para a esquerda no céu, mostrando o quanto estavam fora do objetivo. — Sólen? — chamou Téoder. — Algum problema? — Talvez eu esteja errado, mas creio que não estamos indo como devíamos para o boreal. Se continuarmos assim, acabaremos parando nas Montanhas Assassinas. Não deveríamos rumar para Catebete? Sólen apenas sorriu: — Desculpe-me por não ter dito nada antes, mas vamos fazer uma passagem rápida em Alagados. É uma cidade pequena, muito receptiva às visitas. A minha preferida no Poente. Namior já havia me pedido isso antes de partirmos, pois, segundo ele, quer ver uma donzela de lá. — Mas quanto tempo pretende ficar por lá? — insistiu Téoder. Desde o que havia acontecido em Catebete, passara a desejar estar o mais longe possível de lá; de Quetabel, Astarote e toda aquela hipocrisia. Por outro lado, estava ansioso para voltar e receber de Adum a resposta de Arion sobre a sua carta. — O tempo que julgar necessário — disse Sólen, e Téoder fez uma desanimada expressão. — Mas não se preocupe; não ficaremos mais do que dois dias. Se a Rainha e Deusa me chamou, tenho a obrigação de não me atrasar. — E a distância até lá? — Não precisa se preocupar, como eu já disse. Contando a ida e a volta ao caminho, desviar-nos-emos cerca de dez ruaidas, ou um pouco mais. Téoder não perguntou mais nada. Seguiram pelo caminho até o fim da tarde, quando casas elevadas de madeira surgiram ao longe. Não havia muros ou portais de entrada. Alagados era suspensa no charco que lhe dava nome; vigas resistentes

OS HERDEIROS DOS TITÃS

259


nas edificações a mantinham assim, e no passado, quando o Delta do Poente ainda tinha cheias regulares, elas não eram invadidas pelas águas. Pelo número de casas, Téoder calculou que havia algumas centenas de habitantes ali. Uma construção era um pouco maior, quase no centro, e cercada de varandas. Devia ser a casa do béli local. Barcos pequenos se deixavam levar num canal aparentemente mais profundo, uma “rua” principal que era navegável o ano todo. Téoder tentou acompanhar o seu leito e viu que ele desembocava num rio relativamente grande, que nascia do Rio Anzafassuí. Crianças corriam, e faziam círculos em volta de Namior, mostrando que provavelmente ele costumava aparecer neste lugar. Todas tinham cabelos verde-aloirados e olhos de esmeralda. Uma jovem saiu de dentro da grande casa, e seu rosto se alumiou quando viu o homem da boa pontaria; ela, assim como os outros, era loira, mas seus olhos eram castanhos. Uma mulher mais velha com feições parecidas às da jovem veio logo depois dela. Vestia uma túnica branca encardida, e uma faixa estava presa na sua cintura, deixando a roupa justa e segurando a bainha onde repousava uma espada leve de béli. — Olá, homens do mar — cumprimentou, com sua voz rouca. — Sólen e Namior; fico feliz em vê-los. Todavia, desta vez trouxeram muitos que não conheço.Vejo oito imanes, mas aquele que vem atrás é um béli, e, pelo que posso sentir, é muito prestigioso. Sólen e Namior ficaram sérios, um pouco amuados pelo que ela falara por último. — Sua visão sempre foi apurada, minha cara Naua, mas não se mede a capacidade de um homem numa primeira impressão — disse Sólen. — Há a possibilidade de estar certa, pois ele é Téoder, discípulo de Alil. Caso isso não signifique nada para você, então lhe digo que é Téoder de Catebete, o Béli-Mor. Ela ficou admirada. Olhou por algum tempo para Téoder, e ele, como sempre, retribuiu o olhar. — Então o que está esperando, meu amigo? — perguntou para Sólen. — Por favor, apresente-nos — pediu, ao que Sólen desmontou. Téoder fez o mesmo, e ficou aguardando a aproximação dos dois. Enquanto isso, Namior e a garota não se continham, comendo-se com os olhos. 260

ERIC MUSASHI


— Téoder, esta é Naua, béli de Alagados — disse Sólen, e Naua fez uma reverência. — É uma honrada mulher, uma grande guerreira que já lutou ao meu lado e me acolheu quando bandoleiros ousaram atacar meus homens. Ajudou-me a expulsá-los destas terras. — É um grande prazer conhecê-la — disse Téoder. — Fico feliz em ser apresentado a uma mulher guerreira. Não há nenhuma em Catebete, até onde eu sei. Muitos dizem que só os homens têm a capacidade de lutar, mas quando enfrentei os lobos do vale, acabei sendo acolhido em Acaldã, e lá vi grandes lutadoras. Uma delas, chamada Seida, ajudou-me em outras aventuras. Tenho boas lembranças da sua companhia. Ela beijou as suas mãos, como era comum se fazer com um superior, de mulher para homem, ou num cortejo — o que não era o caso —, de homem para mulher. — Se é o sucessor de Alil, tenho certeza de que é digno de ser o Béli-Mor. Vejo também que é culto, e livre dos preconceitos dos seus predecessores. Agora venha comigo. Aliás, venham vocês todos. Presumo que queiram descansar da viagem. Enquanto Téoder a seguia ainda pôde ouvir Namior falando com a menina, segurando as suas mãos delicadas. Estive com saudades, minha Venai, disse ele. — Entrem vocês também — solicitou Naua. — Terão bastante tempo para conversar mais tarde.

IV Já era noite, e todos se divertiam ao redor de uma fogueira, no solo úmido. Téoder entrara na casa de Naua, que por dentro era aconchegante e calorosa, de paredes num marrom vibrante, com algumas almofadas. Não saiu dali em momento algum. Enquanto Sólen e oito dos seus imanes se mantinham ao redor da fogueira, juntamente com Naua, Namior e Venai conversavam num canto. Os outros aldeões ficavam em volta dos visitantes, curiosos — apesar de já conhecerem alguns deles, eram como primos distantes visitando suas casas; sempre chamativos. Téoder, da janela, apenas observava, e alisava o pentagrama de prata que um dia foi de Faná, e que ele tirara de Quetabel antes de sair da capital.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

261


Naua se levantou, e foi até Namior e sua filha. Eles conversavam, mantendo uma mútua troca de olhares, e o semblante de Namior, sempre carrancudo, agora tinha uma ponta de alegria. — Há muito tempo Namior espera uma resposta de mim — disse Naua, por fim, e Namior a fitou com grande expectativa. — Pensei muito, e também notei como coisas estranhas começaram a ocorrer. Então concluí: podemos morrer a qualquer momento. Isso é evidente. Por mais que eu ache que deva pensar muito antes de decidir se permito que minha filha seja sua ou não, agora percebo que estive errada durante todos esses meses, desde que se interessaram um pelo outro. Quase cometi o mesmo erro dos meus pais. Essa decisão jamais será minha. — O que quer dizer, senhora? Quer dizer que já posso ter a sua filha? — quis saber Namior, e Naua concordou, balançando a cabeça. Venai deu um grande beijo na testa da mãe, e depois a abraçou com força. Era uma menina muito obediente, e estava feliz por ter ganhado a permissão para ficar com o seu amor. Namior a envolveu e eles se beijaram. — Acalmem-se, crianças! — riu Naua. — Ainda há um depois. Por hora, venham festejar. Vamos comer; os peixes já estão prontos. Téoder seguia a observar a cena, imerso na escuridão que caía dentro da casa. Ele não é tão frio quanto tenta me fazer crer que é, pensou o Béli-Mor. Voltou a acariciar a última relíquia de sua amada, e viu como o casal estava radiante. — Ei, senhor Téoder! — soou uma voz rouca. — Quem está aí? — Sou eu, meu senhor. Naua — disse ela, e ele a viu entrando pela porta. — Vai ficar sozinho? Por que não vem conosco? — Não sei — disse ele, abaixando a cabeça. — Às vezes tenho medo de confiar em alguém que não seja a solidão, a minha eterna companheira. Naua viu que ele estava segurando um objeto que insistia em reluzir, refletindo a pouca luz que vinha de fora, mesmo no meio de toda aquela sombra. — Que lembranças isso traz para você, filho de Odel? 262

ERIC MUSASHI


Por um instante Téoder pensou em não responder à pergunta. O que Naua tinha a ver com aquilo, afinal? No entanto, ela parecia ter conhecido o falecido Alil, e também se mostrava como alguém que merecia respeito. — Isto pertenceu à minha amada. À mulher que não fui capaz de proteger — respondeu ele, e sua voz saiu fraca no fim. — É; por trás de cada lenda sempre há um ser humano, como outro qualquer. Pelo menos é isso que Sólen costuma dizer. Mas não devia se culpar por sua morte, seja qual for o motivo pelo qual não pôde protegê-la. — Você não entenderia... — reforçou ele. — É, talvez não entendesse mesmo. — Naua se aproximou dele. — Mas lhe digo: um dia ela tinha que morrer mesmo. Histórias de amor não foram feitas para terem um final feliz. A minha também não teve. Téoder se mexeu, notavelmente surpreso. — Se quiser dizer algo... Antes que ele pudesse concluir a frase, ela o interrompeu: — Fico muito feliz de conhecer aquele que Alil escolheu para substituí-lo. Por mais que você não tenha nenhum laço sanguíneo com ele, é como se fosse o filho que não tivemos. — Quis ter um filho com meu mestre?! — Muito mais do que isso. A noite passa devagar, e talvez tenhamos tempo para uma história, não concorda? Ela então acendeu uma vela e fechou a porta. Puxou uma cadeira para Téoder, e se sentou na outra. — Meu pai era um mádi — começou ela. — A busca desesperada de Quetabel e Astarote pelas Planícies Proibidas fez com que ele perdesse sua vida, de uma viagem sem nenhum sobrevivente. Alil era jovem, e o seu béli havia morrido, e também os outros imanes. — Sim, isso era constante na história atalai, e Quetabel queria aquela conquista para marcar o seu reinado. — Enquanto isso, ele ficou cuidando da cidade, e o título de Béli-Mor praticamente caiu em seu colo. Não que ele não o merecesse. — Eu não conhecia essa história — disse Téoder.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

263


— Talvez você não fosse nem nascido quando ela se deu. Mas, continuando, eu precisava arrumar um jeito de sustentar a minha mãe, pois ela estava velha e doente. Como sabia lutar, por ter tido umas lições com meu pai, e tinha amigos de prestígio no castelo, consegui ser aceita para a classe dos guerreiros e entrei para a escola Punho Etéreo. Logo revelei alguns talentos adormecidos, e me tornei uma imane de Alil. A primeira, e tinha a idade dele. — Impressionante! Eu já ouvi falar sobre a única imane de Catebete quando era criança, mas até onde haviam me contado, ela tinha morrido! — Foi quase isso — sorriu Naua. — No pouco tempo em que estive com Alil, eventualmente nos envolvemos. Entretanto, ele achava isso antiético, pois seria estranho termos um romance. Podiam achar que eu só fora promovida por favorecimento. Ele então pediu que eu deixasse de ser militar, e aí poderíamos viver o nosso amor. Mas eu não quis, e brigamos. Resolvi ir embora de Catebete. Assim encontrei este lugar, e, como o béli estava velho, e não tinha filhos, logo o substituí. — Entendo. Mas e... sua filha? Quem é o pai de Venai? — Alil — respondeu Naua, e continuou como estava, como se fosse a resposta mais natural do mundo. Téoder pulou na cadeira, e depois coçou a cabeça, tentando compreender como isso era possível. Ele tinha trinta e oito anos, e ela fora embora da capital antes dele completar cinco, pelo menos. Venai parecia não ter mais que dezoito anos; como era possível? — Há quanto tempo se tornou o Béli-Mor,Téoder? — Foi alguns anos após completar o meu treinamento de imane. Há onze anos, para ser mais exato. Mas que relevância isso tem? — Alil se arrependeu muito pelo que fizera, e começou a enviar idabarás para todos os cantos, a fim de descobrir se eu ainda estava viva, e, se estivesse, onde estava. Num certo dia, um deles veio parar aqui. Mas Alil não confiava muito em nenhum dos seus imanes, nem mesmo em Adum. Até que você adquiriu maturidade suficiente para cuidar de Catebete, e logo depois ele viajou, deixando a cidade em suas mãos. Não se lembra? — É verdade! — exclamou, até se levantando da cadeira. — Na ocasião, eu achei que fosse apenas um teste, mas logo depois... 264

ERIC MUSASHI


— Alil pretendia ficar muito tempo comigo — continuou o relato. — Reencontramo-nos, e não nego, a saudade era imensa. Tivemos-nos por vários dias, mas, quando a novidade já não existia mais, tentamos resolver os problemas do passado. Discutimos, pois eu queria que ele largasse tudo. Cometi o mesmo erro que ele cometera antes. Alil foi embora com muita tristeza e... e... — ela derramou uma lágrima, que limpou rapidamente. Era uma mulher endurecida pelas desilusões. — Ao voltar para Catebete, foi numa tentativa suicida de conquistar as Planícies Proibidas. Eu fui junto, e venci os lobos que nos cercaram, mas ele pereceu... — terminou sussurrando Téoder. — Eu não devia ter exigido nada dele, e sim ter ido com ele! Mas, apesar de amá-lo, eu tinha muita raiva, e exigia que fizesse sacrifícios, apenas para pagar por todos aqueles que eu tive que fazer. Oh, como fui tola! — e ela não segurou mais o choro, escondendo o rosto entre as mãos. — Sua culpa não é tão grande assim. Pelo menos não foi você que desferiu o golpe — disse Téoder, e sentou-se na cadeira uma vez mais. Ela tirou as mãos do rosto, e ficou por algum tempo observando-o. Respirou fundo. — Por Suí, do que você está falando? — Da minha história. Da história da dona deste pentagrama de prata, que me deu seu coração, e recebeu em troca uma apunhalada pelas costas. Eu sei que ninguém teria feito o que eu fiz, temendo a própria morte, ou talvez até mesmo por fidelidade à sua Deusa. Deusa, que bobagem! Naua achou melhor não falar nada; ficou de pé e o abraçou. Sentiuse extremamente envergonhada por tê-lo feito falar sobre aquilo. O que era o seu sofrimento perante o de Téoder? Ficou por algum tempo tentando compreender o que realmente havia acontecido. Teria Quetabel ordenado a morte de sua mulher? Mas outro enigma era ainda maior: por que Téoder disse a sua última frase? “Ah, especulações...! Se eu não tivesse errado com Alil, se ele não houvesse ido para o Vale dos Lobos, se...” E Naua parou de pensar nisso tudo. Téoder se livrou do seu abraço, um tanto envergonhado pelo que acabou deixando escapar. — Agora chega de histórias tristes — disse Naua. — Vamos até lá fora, afinal, hoje é um dia de festa. Téoder assentiu e a acompanhou.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

265


A tristeza de dentro da casa ficou lá mesmo. A fogueira parecia livrá-los do frio da noite, e algumas raparigas dançavam, naquela típica pureza do interior que esconde sensualidade similar à das cidades. Muitas delas olhavam para Téoder com sorrisos nas faces, pois não era possível negar; ele era um homem muito atraente, e era o Béli-Mor. Mas só queria ver uma nesta noite: Venai, a filha de Alil. — Talvez não entenda o motivo disso, mas deixe-me beijar suas mãos, por favor — pediu a ela, ao se aproximar. — Tenha mais respeito! — protestou Namior, pondo-se de pé. — Não é porque é o Béli-Mor que... Ele ia continuar, mas Naua fez um sinal para que permitisse. — Tudo bem, meu senhor — disse Venai para Téoder, ao ver que sua mãe concordava com aquilo. Antes, porém,Téoder ficou por um bom tempo tentando memorizar cada detalhe dela. Nisto, Venai abaixou a cabeça, corada. Téoder, vendo que eram o centro das atenções, pegou sua mão esquerda e beijou, e em seguida a direita. — Muito obrigado, filha de Alil — falou sem querer. — Cuide bem dela — disse, virando-se para Namior, e se afastou, indo para perto de Naua. — Ele é um idiota! — exclamou Namior. — “Cuide bem dela”! Não se preocupe, Venai; darei um jeito nele da próxima vez que vier incomodar. Mas ela nada respondeu. Apesar de ter estranhado o gesto, as suas palavras eram novidade que soava como afago; sua mãe jamais tinha falado sobre o seu pai, e ela ouvira claramente: “filha de Alil”. Ficou sentada por um bom tempo virada para Téoder, que apenas notava aquele pentagrama. Namior, como sua futura esposa, ficou encarando o Béli-Mor, mas não pelo mesmo motivo.

V O dia 29 de protomês amanheceu frio e enevoado, algo incomum naquela época do ano — mas não naquele lugar. Téoder foi acordado por Naua, que lhe deu um um prato com arroz cozido — não havia mel por ali, ou pães. Era o Poente, com os grãos do além-mar. Ele comeu e 266

ERIC MUSASHI


arrumou suas poucas coisas ao mesmo tempo, andando para lá e para cá. Aproveitou e foi até o lado de fora para alimentar Filho dos Ventos. Sólen, Namior e os outros já estavam esperando. — Muito obrigado por ter dividido a sua história comigo, Naua — agradeceu Téoder, depois de se livrar do seu abraço. — E fiquei muito feliz por ter conhecido a filha do meu mestre. Mas agora devo ir. — Também fiquei feliz por conhecê-lo — disse ela. — Até mais, minha amiga — despediu-se Sólen. — Até, Sólen. Há ventos estranhos nestes tempos, mas talvez nos seja concedido o direito de nos revermos. — Quem sabe? Vamos, Namior! Este ainda se despedia de Venai, depois de sua primeira noite de amor — com ela. Os seus braços a enlaçavam com força, como se jamais fossem soltá-la. Tocavam os lábios por longos períodos, e demorou até se separarem. Namior se arrependeu e abraçou-a novamente. — Até parece que não vão se ver nunca mais! — esbravejou o béli navegador, com pressa.Téoder e Naua tiveram pensamentos que acharam melhor não comentar — ela também achou que veria Alil novamente antes de ele ter decidido ir para a última conquista de sua vida. Finalmente Namior se deu por vencido, e eles foram se afastando. Por causa da forte neblina, logo não podiam ver mais nada do que era abandonado. Nem Alagados, nem os sentimentos esquecidos como roupa velha. Contudo, se a vida queria levá-los por esses caminhos tristes, nada poderiam fazer senão aceitar e tentar lutar para vencer.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

267


A Cidade dos Portões de Ouro I Já fazia alguns dias desde que Seida havia chegado a Catebete, juntamente com sua imane Sile. Há um bom tempo ela não via Téoder, e se sentia feliz por saber que estariam próximos uma vez mais. Os últimos dias foram muito frios, mas nada que duas mulheres de Acaldã não pudessem suportar. Diferente dos anteriores, o dia 23 de protomês amanheceu com um calor inusitado; depois de dois dias em que os raios do sol não puderam ser vistos, enfim o Astro-Rei se apresentava. Seida tivera uma noite tranquila, e se sonhou, não se lembrou ao acordar. A voz suave e gentil de Sile parecia distante, bem como a última vez que havia visto Téoder, fato que veio subitamente em sua mente. — Perdoe-me, minha béli, mas a senhora pediu que eu a acordasse cedo — justificou-se a imane. — Ah, é claro! — exclamou Seida, sentando-se e colocando a mão direita sobre a testa, ainda com muito sono. — A Rainha andou muito ocupada nos últimos dias, e mandou que me dissessem que só hoje, entre a primeira e a terceira hora, ela estaria disponível. Devo me apressar! Que horas são? — Acalme-se — disse Sile, sem conseguir conter o riso. Quando ela ria, seus olhos azuis não mais podiam ser vistos, e covinhas apareciam nas suas bochechas. Ela então colocou os cabelos — castanhos para um, loiros para outros — que caíam sobre os ombros para trás. — Ainda é a primeira hora. Eu trouxe uma túnica branca de cerimônias para a senhora, e uma faixa azul para colocar na cintura. — Hum... — Seida ficou envergonhada. Mas acabara de acordar, e costumava não pensar muito quando seu sono era interrompido. Agora, depois de algum tempo, finalmente seus olhos estavam totalmente abertos, e um azul faiscante — mais até que o dos olhos de Téoder ou Arion — podia ser visto. Os cabelos castanho-claros ondulados estavam sobre o seu rosto, e ela tentou penteá-los com as mãos. — A roupa é muito oportuna. Apesar d’eu estar indo ver a Rainha, creio que não deva usar um vestido, como aqueles que as moças de quase todo o resto de 268

ERIC MUSASHI


Grabatal costumam vestir. Tentarei ser eu mesma, afinal, ela é uma Deusa, não é? — Então ela tirou a camisola amarela-transparente, revelando o seu corpo de formas bem torneadas. Com exceção de uma cicatriz que ia da mão esquerda até quase o cotovelo, nenhuma outra era presente na sua pele. Algo raro, mas que provava a sua grande habilidade de lutar. Ela vestiu a túnica, e quando pegou na faixa, levou-a até o nariz, fechando os olhos. — Azul... uma linda cor. Traz-me gostosas lembranças. — A senhora é uma grande amiga do Béli-Mor, não é? — perguntou Sile. — Sou sim — respondeu Seida, voltando para a realidade e olhando surpresa para a imane. — Mas por que pergunta isso neste momento? — Eu sei que foi ele quem lhe deu esse presente — explicou. — É verdade. — Seida ficou em silêncio, e sorriu, um dos mais belos sorrisos de toda Grabatal, por sinal, e sua maior marca. — Foi há dois anos, quase. No meu aniversário. Eu estava fazendo 28 anos, uma idade muito importante, quando o quarto círculo é completado e se entra no quinto, o último da juventude. Ele é o meu melhor amigo, e eu achei que ele não ia aparecer. De repente, quando muitos já caíam bêbados pelo chão, e a música já soava desafinada, eu vi uma figura montada num cavalo. Era ele; ele e Filho dos Ventos! Então se achegou e tirou a faixa que eu usava, colocando esta no lugar. Você sabe como o Téoder é; sempre deixando de lado as etiquetas e conveniências — riu, mas logo ficou séria novamente. — Mas agora eu devo me aprontar, senão acabarei perdendo a minha audiência com a Rainha. — Eu trouxe duas bananas, e também um pouco de vinho — disse Sile, deixando uma bandeja sobre a cama. Seida começou a comer depressa. Depois, pediu que sua imane levasse até ela um pouco de água num balde. Ela então lavou o rosto, e também molhou os cabelos, penteando-os em seguida. Os cabelos de Seida eram próximos do loiro, o que fazia com que certas confusões se dessem — como na peça de Ancatébia, onde a atriz que a interpreta é loira. Depois colocou braceletes de prata e se foi. Após perguntar para algumas servas, logo descobriu que a Rainha estava no jardim. Voltou até o seu quarto e colocou o cinto que prendia a bainha de sua espada de sevaste, e foi com a arma. Era uma béli, e seria melhor que se apresentasse como tal.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

269


Desceu as escadas e saiu pela Porta Norte, indo para onde estavam os jardins. Uma grama brilhante, e margaridas e violetas. No entanto, notou que os de Acaldã eram muito mais formosos, com suas estátuas de pedra branca, piscinas e fontes naturais. Vários caminhos de pedra cortavam entre a vegetação, e eles eram cercados por árvores, seja na direita ou na esquerda. Seida não conhecia aquelas árvores, mas todas tinham galhos que iam longe horizontalmente. Andou um pouco, e logo notou Quetabel sentada, com as costas apoiadas numa árvore e sobre um pano colorido. Parecia pensativa, olhando para o oeste — de onde Téoder deveria estar vindo. — Olá, minha Rainha e Deusa — cumprimentou Seida, curvando-se respeitosamente. — Ah, está aí, béli Seida, de Acaldã — respondeu a Rainha, sem se virar. — Eu me lembrei que gostaria de falar comigo pela manhã, então vim para os jardins. Ultimamente é o único lugar desta cidade em que posso encontrar paz. Mas o que gostaria de falar comigo? — quis saber, enfim se virando para Seida, com um sorriso amigável no rosto. Seida se admirou pela extrema beleza de Quetabel.Vestimentas de seda negra com peças de ouro cobriam seus seios, virilha, dos joelhos aos tornozelos e dos pulsos aos cotovelos. — Eu não queria incomodá-la até o dia do conselho, admirável e eminente senhora, mas já faz alguns dias que estou aqui e a única com que tenho conversado é Sile, uma imane minha. — Seida tentava se portar da melhor forma possível diante da Rainha-Deusa, uma vez que nunca tinha conversado com ela. Na verdade, durante todos os dias em que estivera em Catebete, tentara juntar forças para este momento. Era a béli de uma das mais importantes cidades de Grabatal, mas era um pouco tímida, mesmo estando quase nos seus trinta anos de idade. — Primeiramente, eu gostaria de saber quando se dará o Conselho dos Bélis. Quetabel ficou algum tempo olhando nos olhos de Seida, e esta logo abaixou o olhar. Não é tão corajosa quanto o meu béli falou, pensou a Rainha. — Não tenho certeza, mas precisamos esperar que aqueles que moram nos pontos mais distantes cheguem. O béli de Porto da Vitória, por exemplo. Creio que ele aparecerá no fim do mês. Um silêncio se deu entre elas. Quetabel ficou esperando alguma reação por parte de Seida, mas ela apenas se voltava para o chão. Parecia 270

ERIC MUSASHI


que muitas coisas se passavam pela sua cabeça. — E qual é a outra pergunta? — indagou Quetabel. — Outra pergunta...? — Seida não entendeu. — É. Você disse “primeiramente”, portanto, no mínimo uma segunda pergunta deve existir, não é? — Realmente — disse Seida, corada. — Eu gostaria de saber também onde se encontra o senhor Téoder, filho de Odel, o Béli-Mor. O olhar de Quetabel pareceu mudar, e a gentileza diminuiu um pouco. — Qual é o motivo desse interesse no béli da minha cidade, no Béli-Mor? — S-somos amigos... Sim, somos sim! — Seida se assustou. — Eu esperava revê-lo quando chegasse por aqui. A senhora já ouviu sobre a amizade que fizemos no Vale dos Lobos, quando o grande Alil caiu, não ouviu? Somos amigos, e... — Você já disse isso três vezes! — explodiu a Rainha. Percebendo que estava quase perdendo o controle, Seida tentou se acalmar. Estava diante da Deusa, e se ela resolvesse puni-la por demonstrar medo? Respirou fundo: — É o melhor amigo que eu tenho, e como não o vi no ano passado, no meu aniversário de 29 anos, esperava vê-lo pelo menos no dia cinquenta deste mês. Onde ele está, afinal? — Isso não é da sua conta, está ouvindo?! — Quetabel se levantou, enfurecida, e voltou a olhar nos olhos da béli. Desta vez Seida não abaixou o olhar. — Esse seu interesse no meu béli é muito estranho. Nem tente se aproximar dele com segundas intenções, está ouvindo?! Você é a béli de Acaldã, a Cidade da Sabedoria, isso eu sei. Entretanto, nem mesmo tal título lhe concederia o direito de roubá-lo de mim! — Minha senhora, não compreendo... — sussurrou Seida. — Há muitas coisas além da compreensão de todos vocês, mortais! — Quetabel estava tão acostumada a ser considerada uma Deusa que ela própria se considerava assim, exceto quando estava perto de Téoder ou de Astarote. — Mas responderei a sua pergunta: Téoder foi até Porto da Vitória, convocar Sólen, o Grande Navegador, para o conselho. Sinto desapontá-la, mas ele não chegará para o seu aniversário. Agora, se me dá licença! — Quetabel a empurrou para o lado e foi até o castelo. — Não compreendo... — murmurou Seida para si própria. Apanhou uma violeta no chão, e se lembrou de quando tinha ido com Téoder até

OS HERDEIROS DOS TITÃS

271


Ancatébia. Tiveram uma grande festa, e lá também estava Ádiler, um dos mais talentosos guerreiros que ela já vira em ação. Realmente, sentia muita falta dele, e quando tinha chegado a Catebete esperava ser recebida por ele. Saiu correndo dali, e a flor ficou jogada no chão. Qual era o motivo para a Rainha ter agido daquela forma com ela?

II — Que som é este? — perguntou Arion. Ádiler fez com que o seu cavalo brecasse subitamente. — Tem ouvidos valiosos, assim como o seu pai — apontou o imane. — Estamos próximos! Não há erro; é o som da Cachoeira do Encontro, onde o Rio dos Bosques se desvia da elevação e morre, fazendo um lago com o das Sereias, e do outro lado ele prossegue virtualmente num canal feito há muito tempo, até ir se encontrar com o Poente-Boreal. — Interessante... — disse Arion. — Talvez no passado tenha sido uma depressão coberta de verde, com muitos animais correndo e pássaros cantando, não é? — Sim, talvez — respondeu Ádiler. — Mas se quer ouvir os pássaros cantando, deve ir até a Mata dos Pássaros, que fica entre Catebete e Acaldã. Talvez, depois que encontrar o Grande Téoder e resolver os seus problemas, possa ir até lá. Sendo o filho dele, será muito bem recebido, pois a béli é Seida, uma grande amiga nossa. — Seida...? Ah, sim, ela foi representada na peça! — Ela mesma — disse Ádiler, e depois voltou a olhar para o norte, de onde devia vir o fraco som da queda d’água. — Eu não quero ouvir falar em Acaldã! — esbravejou Halá, enfim se manifestando. — São conselhos vazios esses que Ádiler lhe dá, jovem. Se Seida <argh!> é gentil com o seu pai, deve ser pela fama dele como grande guerreiro. — Não sei... — Arion não queria discutir com ela, e Ádiler percebeu que ele não dava importância para as palavras da ex-imane. — Agora chega de conversa — disse Ádiler. — Halá e eu vamos à frente; você deve voltar e avisar Hessêni e Luredás que já estamos chegando. 272

ERIC MUSASHI


— E desde quando é você quem dá as ordens?! — exclamou Halá, e Ádiler ficou olhando para ela sem entender. Arion riu. Vou deixar que se entendam, ele disse, e foi avisar Luredás e Hessêni, para pedir que acelerassem o passo. — Acho que teremos que conversar um pouco sobre hierarquia — brincou Ádiler. — Tem razão — disse Halá, para a sua surpresa. Ela se virou para trás, e seus olhos verdes se cruzaram com os dele. — Eu sou uma imane, assim como você. E além disso, logo serei a béli de Ancatébia, a sua superior! — Como você disse, você será a béli de Ancatébia; ainda não é. E você já deixou de ser uma imane há muito tempo, embora eu deva reconhecer que sua habilidade de luta é alta. Mas, depois de ver você lutar com Arion, percebi que você não conseguiria me vencer. E costumo ser muito sincero. — Quer um teste? — sugeriu, e sua mão alcançou a lança. — Você não acha que a ação real supera — e muito — os testes? — Ele sorria sarcasticamente. — Além do mais, apesar de sermos imanes, não devemos ficar pensando o tempo todo em lutar. Há muitas outras coisas interessantes a se fazer. — Que tipo de coisa, por exemplo? Ela nem bem terminou de perguntar e Ádiler a beijou. Halá estava com o corpo virado para trás, para poder olhar para ele, e essa posição facilitou a ação deles. Suas línguas se cruzaram, e por um momento pareceu que ela retribuía o gesto. No entanto, subitamente vieram sombrias lembranças na mente de Halá, e ela empurrou Ádiler com todas as suas forças. Ele caiu no chão, sem poder evitar a queda. — Nunca mais faça isso! — ela gritou, e saiu a toda velocidade com o animal. Luredás e Hessêni iam depressa com seus cavalos. Vez ou outra trocavam palavras, mas não dialogavam, pois já estavam exaustos. Viajar em grande velocidade pode ser melhor do que poupar os animais, mas o gesto deve ser prudente. Para curtas distâncias, como entre Ancatébia e Catebete, Jatitã e Lira dos Titãs e Catebete e Acaldã, costumava funcionar. Mas aqueles que tentavam fazê-lo em grandes jornadas, acabavam perdendo os seus animais e morrendo no meio do caminho.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

273


— Luredás — disse Hessêni —, eu sei que não quer ser um mádi, mas poderia morar na minha cidade quando tiver cumprido a sua missão com Arion. É um ótimo lugar de se morar, e sendo o grande músico que é, seria muito querido por lá. O que acha? Luredás ficou pensativo. — Talvez — finalmente respondeu. — No fundo, nem sei se viverei por muito tempo. — Hessêni ficou embasbacado, mas Luredás não se importou e continuou: — Eu nunca tive medo de morrer. Entretanto, ultimamente venho tendo estranhos pressentimentos. Arion e eu já passamos por várias situações demasiadamente perigosas desde que saímos de Jatitã, mas parece que algo mudou. Talvez seja só impressão, mas a cada passo que dou, sinto que vou cumprindo o meu destino, o meu papel nesta terra. — Você não devia ser tão pessimista — disse o béli. — Mas... é Arion que está vindo? Os dois forçaram as vistas. Um vento forte tocava aquela terra deserta, e muitas pequenas pedras se desprendiam do chão e atingiam seus rostos. Protegeram os olhos com as mãos, e perceberam que era Arion mesmo. Não demorou para que ele chegasse perto dos dois, e então todos ficaram parados. — O que houve, meu amigo? — perguntou Luredás. — Parece que já estamos bem próximos de Catebete — respondeu o filho de Téoder. — Ádiler e eu ouvimos o som da Cachoeira do... como era mesmo? Ah, sim, Cachoeira do Encontro! Ontem ele me disse que de lá até a cidade é menos do que um quarto de farisia. Não obstante, a noite se aproxima, e seria bom se pudéssemos passar depressa por lá, apenas enchendo os cantis. — Tem razão — disse o béli. — Mas eu gostaria muito de observar a cachoeira — disse Luredás, fechando os olhos. — Dizem que ela é linda e imponente, e mesmo que fiquemos lá apenas um sexto de hora, já me sentirei realizado. — Você sabe que sempre considerei a sua opinião, não sabe, Luredás? — Há uma condição — disse Hessêni —: você deve tocar uma das suas melodias enquanto estivermos apreciando as águas cristalinas que caem. Se prometer que o fará, então valerá a pena perdermos tempo ali. — Tudo bem — disse Luredás. — Mas agora vamos nos apressar, pois Ádiler já deve estar lá. 274

ERIC MUSASHI


E eles foram mesmo com muita pressa, sempre na margem direita do rio, mas não demorou muito para encontrarem Ádiler. Estava ali, jogando pedras no leito do grande Rio das Sereias, enquanto olhava para o leste, de costas para o sol alaranjado. — Ei, Ádiler, o que houve?! — indagou Arion, surpreso. — Onde estão o seu cavalo e Halá? — Ela quer cavalgar sozinha — disse o imane, erguendo-se. — Pode me dar uma carona, filho de Téoder? — Ele parecia não querer falar mais nada. Arion simplesmente permitiu que ele montasse, e os quatro foram para onde deveria estar a cachoeira. Cavalgaram por pouco tempo, e então, depois de uma colina, viram a grande queda d’água. Havia um lago grande e raso ali, e dele partia a continuação do rio que ia até Jatitã e o Mar Quetabza, como costumavam falar. Um paredão de rocha estava diante deles, e ao longe, tanto na direita como na esquerda, colinas subiam, e o terreno logo ficava no nível do ponto mais alto da parede rochosa, de modo que podiam prosseguir pelo caminho — sem precisar escalar o paredão — tanto pelo leste como pelo oeste. A altura da cachoeira era de cerca de cem homens, ou algo como 180 metros, nas nossas medidas. Havia um pouco de vegetação rasteira ao redor do lago, e, de certa forma, era um oásis neste deserto chamado Grabatal. Havia várias pedras grandes no centro do lago, e o seu fundo podia ser visto, pois a água era cristalina — bem como em grande parte do leito do Rio das Sereias. O vento oriental ecoava pelo vale sem cantar, e não os assustava, pois era realmente impressionante a visão da cachoeira. Os quatro desceram dos três cavalos. Luredás, Hessêni e Arion tiraram suas roupas e caíram na água — apesar dela não passar de seus joelhos. Ádiler ficou sentado no chão, e logo percebeu uma figura ao longe. Montou no cavalo de Hessêni e foi até onde ela estava, no outro extremo do lago, a cerca de seiscentos passos. Quando se aproximou, viu que era Halá. Ela olhava para a água que caía com muita força, e para a grande rocha que impedia a passagem caso não houvesse um desvio do caminho. — Encontrou outra montaria — disse. — Halá, eu gostaria que... — Eu quero que me respeite. — Halá interrompeu-o, secamente. — Nós nem nos conhecemos direito, e mesmo se nos conhecêssemos... — então ela olhou para ele.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

275


— Desculpe-me. Não acontecerá novamente. — Então aceito prosseguir — disse Halá, e eles foram até onde os outros estavam. Ao voltarem, Ádiler percebeu que os três já estavam secos, e agora apenas apreciavam a paisagem. Halá e ele desceram dos cavalos, e se sentaram com os três. Hessêni fez um sinal para Luredás, e este apanhou a lira e começou a tocar. Era só Luredás estar disposto a mostrar um pedaço do paraíso para os amigos que ele conseguia. A música entrava pelos seus ouvidos e alcançava os seus mais utópicos devaneios. Além disso, trazia de volta memórias outrora adormecidas, e fazia com que o que tinham sentido na ocasião aflorasse novamente. Não era mais uma simples lembrança, e sim uma nova chance de viver a situação. Para Arion e Hessêni, isso não era surpresa alguma, mas Ádiler e Halá experimentavam algo que supunham não ser possível. Trocaram alguns olhares; luzes verdes sonhadoras, emitindo brilhos que se chocam no ar. Halá se levantou, e se virou de costas para todos. Mas não queria sair dali; de modo algum queria parar de ouvir tão sublime melodia. Lágrimas escorreram pelos seus olhos, agora fechados, e quando Arion e Ádiler viram que ela tremia os ombros, provavelmente por estar chorando, não tiveram coragem de se levantar para ampará-la. Ela se abaixou, ficando de joelhos. Pela posição de sua cabeça, devia olhar para o alto. Luredás terminou, e vários sons de inspirações profundas foram ouvidos. Halá, sorrateiramente, foi até o lago, onde lavou o rosto e bebeu água. Só então Ádiler notou que ela não tinha um cantil. Deve ter sentido sede o dia todo, pensou. Ela ficou ali por um bom tempo, e todos já estavam prontos para partir, pois o sol já tinha se posto, e enquanto as primeiras estrelas apareciam, nuvens alaranjadas e roxas embelezavam o céu, esticadas. A sombra vinha do nascente, e logo todo o ambiente seria uma total escuridão. Ádiler foi até ela, e tocou em seu ombro esquerdo. — Vamos — pediu. Ela apenas olhou para ele, que, assustado, afastou-se um pouco. Halá se levantou, e se aproximou de Arion: — Posso ir com você? — Ele até se assustou, pois a imperatividade já não se mostrava presente no seu 276

ERIC MUSASHI


modo de falar, e tinha um semblante meigo e sincero, algo que acreditava não ser possível de ser visto na sua face. — Não sei — admitiu. — Valente é forte, mas acho que seria melhor que fosse com Ádiler. Não quero que você controle. Ela então foi até Ádiler, e ele a ajudou na subida. Eles conversaram um pouco, mas eram apenas cochichos, palavras que Arion, Luredás ou Hessêni não podiam ouvir com clareza. Depois Ádiler acenou para eles com um sorriso, e ele e Arion uma vez mais foram à frente, cumprindo o seu papel de batedores. Foram pelo oeste — pelo leste, estariam indo na direção contrária a de Catebete —, e enquanto se afastavam, ao olharem para o lago viam apenas águas calmas e acesas, como uma piscina de gelo durante a noite. O som da cachoeira era repetitivo e interminável, como qualquer cachoeira, e era a melodia de sua despedida do lugar. Palavras não seriam proferidas até que estivessem bem longe dali.

III Cerca de três horas depois, sempre indo para o oeste, finalmente podiam ver os muros de Catebete. Muros com a altura de cinco homens, e quase tão largos quanto altos. Assim diziam os relatos daqueles que já tinham visitado a capital atalai. Somente uma construção era mais alta que os muros: o castelo de Quetabel, que podia ser visto de fora da cidade, como um aglomerado de torres para quem vinha de longe. Agora já passavam por várias plantações. Trigo, lentilhas e outros vegetais, e também carneiros e ovelhas no pasto. O ar com cheiro de terra seca já havia ficado para trás, e agora sentiam o aroma do campo. Valente já estava mais animado, assim como os outros equinos. Até mesmo Halá tinha um semblante menos triste, e Arion e Ádiler, e Luredás e Hessêni, trocavam sorrisos satisfeitos, afinal, a jornada parecia estar chegando ao fim. Conforme se aproximavam, Ádiler pediu que Halá fizesse com que o animal fosse mais devagar, a fim de que Hessêni e Luredás os alcançassem. O imane também tomou a decisão de pegarem o Portão Austral, uma vez que tinham duas decisões, ou esse portão ou o Portão Nascente. — Satisfeito, filho de Téoder? — perguntou Ádiler. — Mais ou menos. Só estarei satisfeito depois de vê-lo.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

277


— Algo me diz que ficaremos em Catebete mais tempo do que imaginamos — disse Luredás, recém-chegado. — Por que fala isso, meu amigo? — Eu não sei, Arion. É só o que eu sinto. — Vocês são muito estranhos — disse Halá. — Só quero ver se valerá a pena mesmo ter vindo até aqui. Ninguém falou nada em resposta. — Fique tranquilo, Luredás — disse Arion. — Eu só vou encontrar o meu pai e fazer com que cumpra a promessa de nos ajudar. Depois disso, teremos uma vida feliz em Lira dos Titãs. — Que assim seja! — disse o músico. E eles prosseguiram. Durante um bom tempo viram apenas o muro à sua direita e o Rio dos Bosques, um pouco longe, à sua esquerda. A cidade era imensa! Já estavam impacientes quando se depararam com o Portão Austral. Era realmente grande, quase da altura do muro, e alguns homens que estavam relaxados se levantaram depressa — alguns telapuros. O portão estava fechado, e todo o esplendor de Catebete podia ser visto nele, feito de ouro. Os dez homens sacaram suas cimitarras, e as apontavam para aqueles que tinham chegado. Um deles se aproximou, e seus cabelos loiro-esverdeados estavam na altura do ombro. — Eu sou Silas, e sou o mádi responsável pelo Portão Austral de Catebete! — exclamou. Tirou a capa negra que cobria o corpo, e revelou uma armadura de ferro com algumas pedras de sevaste, demonstrando que era mesmo um mádi. Sacou a sua espada dourada com filetes de prata. — Quem são vocês? — É de se admirar que conheça todos de uma cidade com 100.000 habitantes e não se lembre de mim — ironizou Ádiler. — Eu não conheço todos; é que não é mais hora de... — ele parou por algum tempo, observando o imane. — Senhor Ádiler?! Perdoe-me por isso, mas é que já faz algum tempo que o senhor não aparece aqui, e também está escuro. — Não precisa se desculpar, Silas. — Ádiler gargalhou. — Este aqui é Hessêni, o béli de Ancatébia, o meu comandante, e viemos para o Conselho dos Bélis. Os outros são Halá, ex-imane de Acaldã, Luredás, grande músico e nosso amigo e... 278

ERIC MUSASHI


— Odel, o novo imane de Ancatébia — disse Arion, antes que Ádiler pudesse falar qualquer coisa. Ninguém conseguiu conter o espanto, principalmente Halá. — Sim, é um novo companheiro nosso — remendou Ádiler, tentando consertar. — Agora já deve ser a terceira ou quarta hora da noite, amigo Silas, e estamos muito cansados pela viagem. Gostaríamos de descansar, e presumo que o castelo esteja com as portas abertas para nós, não é? — É claro que sim — ele disse —, mas, não querendo duvidar da sua palavra, se ele é mesmo o béli Hessêni, onde está a sua espada? — Eu não tenho obrigação de responder — disse Hessêni. — Mas para evitar hostilidades, apenas lhe direi o seguinte: tive uma dura batalha contra um traidor há alguns dias, e ele me pegou desprevenido, apossando-se da minha arma — sim, sei que é vergonhoso, mas aconteceu. Graças à ajuda de Á... de Odel, eu me salvei. Ele não teve opção a não ser usar toda a sua técnica, destruindo a lâmina que herdei do meu pai. Outra já está sendo providenciada, mas até lá, ainda assim serei o béli, e mereço total respeito! — Silas se afastou, amedrontado. — Não quero ter que dar mais satisfações. — Venham comigo — disse Silas, não querendo estender ainda mais a conversa depois de suas insutilezas. — Até que o Hessêni finge muito bem — sussurrou Halá para Ádiler, e os dois riram tentando não fazer barulho. Ádiler não gostava que falassem mal do seu senhor, mas, além de ser verdade o que Halá estava dizendo, ele também estava muito atraído por ela, e tentava ser amigável e gentil. O grande portão se abriu, e os visitantes aguardavam ansiosos, exceto Ádiler e Hessêni, que já haviam estado na capital. Viram ruas de pedra, como em qualquer outra grande cidade, e com exceção da altura dos muros e do palácio descomunal que se erguia ao fundo, não havia tantas diferenças assim com qualquer outra metrópole. Silas os chamou, e o seguiram. Conforme andavam com o mádi do Portão Austro, ou Austral, tinham todas as atenções voltadas para eles. Havia um certo movimento nas ruas, mas não chegava nem perto da festividade e das gargalhadas de Ancatébia. Moças se insinuavam para Arion e Ádiler, que carregavam armas de

OS HERDEIROS DOS TITÃS

279


imane, e até mesmo para Halá. Esta não olhava para ninguém, e sim para o imenso castelo, desejando-o de todo o coração. Quetabel deveria ser feliz, ela pensava; afinal, ela tinha o direito de mandar em todos. Ádiler olhava fixamente para Halá, pois Catebete não era novidade para ele. Sentia o cheiro de seus cabelos, e tentava imaginar no que ela pensava. Já tinha ouvido muito sobre ela, da boca da própria Seida. Então enfim se lembrou: elas iam acabar se encontrando! Quando a béli de Acaldã morreu, há algum tempo, Halá queria de qualquer forma ser a béli. Mas o povo gostava mais de Seida, e o antigo béli também, e ela era a escolhida. Halá não se conformava com isso, e tramou contra a sua béli, tentando assassiná-la. Contudo, Seida era melhor guerreira do que Halá supunha, e esta sofreu uma vergonhosa derrota. O pior foi que Seida a deixou viva, e a exilou de Acaldã. Seria mesmo um encontro nada amigável. Mas não havia mais volta, pensava Ádiler. — Arion, por que inventou que se chamava Odel? — questionou Luredás. — Eu não sei. Tive medo de... Ah, você sabe; há a possibilidade de Escleros e Tromos estarem aqui, e não quero ter que enfrentá-los. Eu sou o criminoso, e deduzo que haja vários bélis nesta cidade. — Você pensa rápido — disse Hessêni, rindo. — Odel é o nome do seu avô. De qualquer forma, além de estar oculto, seu pai também vai entender a mensagem e procurá-lo. — Eu não tinha pensado nisso. Foi só o primeiro nome que veio na minha mente. Depois disso, Arion se fechou, e Luredás e Hessêni não ousaram se dirigirem a ele. Quanto mais cavalgavam, mais a silhueta do castelo crescia na sua frente, e passaram por algumas pequenas elevações e depressões. Arion não conseguia compreender esse medo repentino de se reencontrar com Téoder. Imaginava que seria corriqueiro: encontrava-se com seu pai, exigia algumas coisas dele e depois ia embora. Mas não era tão simples; seu coração batia acelerado, e seria mais fácil se ainda o odiasse como antes. Ouvira muito sobre ele durante a jornada, e agora não tinha certeza sobre o que sentir. Como uma balança sem peso em nenhum dos lados — ou com peso igual em ambos —, Arion ficava sobre o muro. 280

ERIC MUSASHI


IV Anoitecia quando Seida foi até o Salão de Reuniões do castelo, onde provavelmente, alguns dias depois, estar-se-ia dando o Conselho dos Bélis. A grande porta de duas abas de madeira precisou ser empurrada com muita força para ser aberta, mas a béli conseguiu. Logo teve que tapar os olhos com a mão direita, uma vez que o sol da tarde entrava pela sacada, e a porta ali estava aberta. Entrou, e desistiu de enfrentar o Opressor. A sala era ampla, perfeitamente redonda; uma circunferência de cerca de sessenta passos de diâmetro, na medida deles. Havia uma mesa fina e comprida, de modo que se estendia de quinze passos da porta de entrada até a quinze passos da sacada. A mesa era de madeira, e havia quinze cadeiras de cada lado. As paredes eram pintadas de amarelo, e no chão havia um tapete roxo. Seida também notou que havia dois mapas nas paredes, um de cada lado. Um deles, à sua esquerda, era o do continente, aquele que as pessoas viam poucas vezes em suas vidas — uma vez que estavam acostumados a ver mapas apenas de suas cidades e das redondezas. Do outro lado, havia um mapa que abrangia uma área maior do que a da ilhacontinente. Também mostrava terras estranhas, além-mar, ao sudeste, denominadas Grabônsi ali, e outras mais ao leste, denominadas Perlândia. Uma rota marítima era representada no mapa, de Porto da Vitória até a Perlândia, e alguns desenhos de dragões marinhos e barcos completavam os espaços vazios, como em qualquer mapa antigo. O sol emitia seus últimos raios quando algo tocou os seus olhos azuis, algo dourado e muito brilhante. Seida se virou bruscamente, e viu, no centro da mesa, um pequeno tetraedro dourado. Era o símbolo do comando de Quetabel. A béli se aproximou e o apanhou; seu fulgurar era ofuscante. Havia alguns hieróglifos nele, de pássaros e leões, e também estava escrito “Rainha Imortal” em cada uma das quatro faces. — Por favor, não toque nisso, minha senhora! — exclamou um servo, entrando na sala subitamente. Seida se assustou e se virou para ele. O empregado se envergonhou por chamar a atenção de alguém tão superior. — E por que eu não deveria? — A Rainha não gosta — disse ele. — Ninguém pode tocar nisso. Ela diz que enquanto sua ordem for obedecida, e ninguém tocar nesse

OS HERDEIROS DOS TITÃS

281


ou nos outros quatro que estão em praças na cidade, estará provado que o povo crê em sua divindade. — É um ouro um tanto diferente — disse Seida. — Não é ouro, é oricalco. — ...? — a béli arregalou os olhos. — Sim. Um metal muito raro, que é mais resistente que o ouro, e brilha mais. É algo tão raro que há poucas pedras em Grabatal atualmente. Estima-se que Anjifum, Filho dos Titãs, tenha encontrado uma grande quantidade nas Minas das Trevas, próximas das Montanhas Assassinas, mas seus homens foram soterrados, e desde então ninguém voltou até lá. Poucas pedras sobraram, algumas estão em Melcártis e as outras aqui. Em nenhuma outra cidade do Reino eles se lembram sobre o oricalco. — E o que acontece com quem toca nisto? — perguntou Seida, depois de algum tempo. — O Grande Téoder tem que aplicar a pena, minha senhora — respondeu o garoto, e se foi. — Estranho... — disse Seida, já sozinha — ...Téoder não faria uma coisa dessas. Matar alguém só por tocar em algo. Mesmo sendo uma pedra tão rara, ela é morta. Essa Rainha está me soando um tanto autoritária demais. Não sou ninguém para julgar uma Deusa, mas... Seida desistiu de falar sozinha e foi até a sacada. Já era noite agora, e de lá podia ver as pessoas andando pelas ruas de pedra, ver as primeiras tochas sendo acesas, e sentir o vento gostoso do início da noite tocando os seus cabelos. Olhou para trás, e notou que não estava escuro. Só então percebeu que esta sala tinha vários cristais no teto, e sua luz vencia parte da escuridão. Não reluziam como o sevaste ou os diamantes, mas já eram suficientes. O castelo era muito alto, e como a cidade estava numa planície, da sacada ela podia ver um risco azul escuro, além das muralhas, quase onde sua visão não alcançava mais. Estava ao sul, e era o Rio dos Bosques. Conforme escurecia, logo se mesclaria com o resto da sombra. Passado algum tempo, o servo voltou, e perguntou se ela queria beber ou comer algo. Seida preferiu esperar o jantar para comer, mas pediu que ele levasse vinho para ela. E ali ficou, enquanto a noite passava tranquila. 282

ERIC MUSASHI


E já estava sonolenta quando viu algumas figuras se aproximando do castelo. Não conseguia identificá-los, pois o lugar onde ela estava era bem alto, e também estava escuro. No entanto, podia ver o azul do sevaste das armaduras. “Você tem olhos de águia”, costumava dizer Téoder para ela. Ela saiu correndo dali e desceu as inúmeras escadas, com muita pressa. Seria Téoder que estava chegando? Cruzou a Sala Poente, e se dirigiu para a Sala Austral, de onde os homens estavam vindo. Encontrou Sile no caminho, e esta a seguiu. Seida abriu a grande porta, e, ofegante, viu alguns telapuros conversando com um mádi: Silas, do Portão Austro. — O senhor Téoder chegou? — indagou, e os telapuros se afastaram de Silas. Este ficou olhando para ela, tentando compreender o motivo daquela pergunta. — Devia controlar mais suas emoções, cara Seida — soou uma voz, e ela se virou, assustada. — Já conversamos várias vezes sobre isso, não é? — brincou Ádiler, e um sorriso se fez no rosto da béli. — Ádiler! O imane desceu do cavalo, e eles se abraçaram por um longo tempo; eram bons amigos. Foi uma surpresa tão boa, que Seida nem mesmo percebeu a presença de Halá, que já tinha descido do cavalo e estava sentada no chão. Mas isso não passou despercebido para Sile, que fitava, raivosa, a traidora. — Não nos convida para entrar? — perguntou Ádiler. — O castelo não é meu, mas sei que são bem-vindos aqui — disse Seida. — Muito obrigado por nos acompanhar até aqui, meu amigo Silas — disse Ádiler. — Já faz um bom tempo, e admito que as ruas estão um pouco mudadas. Eu teria me perdido, não fosse por sua ajuda. Que bom que ainda está no Portão Austro! — É verdade... — disse o mádi. — Mas se não precisam mais de mim, então me vou, pois minha presença é importante naquele portão. Então Silas se foi, e eles ficaram por algum tempo observando-o partir. — Venham, entrem! — disse Seida. Eles já iam entrando quando de repente a béli parou bruscamente. — Mas... mas o que essa traidora está fazendo aqui?!

OS HERDEIROS DOS TITÃS

283


— Acalme-se; eu posso explicar... — tentou falar Ádiler. — Então quer dizer que vim até aqui para ter que me encontrar com essa idiota? — disse Halá, enfim se levantando e se virando para Seida. — Se tiver que lutar ao lado dela para conseguir aquilo que me prometeram, presumo que seja melhor desistir. Só de pensar em ser sua aliada tenho nojo de mim mesma. E... — Fique quieta, Halá! — gritou Ádiler. — Quem você pensa que é... para.. me... fazer... — Halá aos poucos foi diminuindo o tom de voz, pois Ádiler a encarava com um olhar tão amedrontador que ela não conseguia manter a sua pose de indomável. Ele não era muito bom com palavras, mas era um intimidador nato. No fundo, não foi o medo que fez Halá parar de falar, e sim aquele olhar verdadeiro, de um modo que homem algum jamais tinha olhado para ela. Naquele instante, pelo menos, sentiu vontade de se deixar aos seus cuidados, de ser protegida. — Desculpe-me, amiga Seida — continuou o imane —, mas ela viajou conosco, e apesar de terem brigado no passado, peço que releve ao menos enquanto se der o conselho. — Olhava para ela, e Seida podia perceber que era algo importante para ele. Sim, Halá fora traiçoeira, mas Seida era capaz de sobrepujá-la. — Tudo bem. — Minha senhora... — finalmente Sile se pronunciou, mas com um mero gesto Seida pediu que ela ficasse em silêncio. Eles entraram, sem trocar uma palavra sequer. Subiram algumas escadas, e tochas eram acesas nos corredores. Arion e Luredás viravamse um para o outro em intervalos regulares, e o músico podia perceber a ansiedade do amigo. Finalmente entraram num quarto, e era o quarto de Seida. Ela se sentou na cama, e Ádiler se sentou ao lado dela. Halá preferiu ficar do lado de fora, e Sile também, para vigiar de perto a “traidora”, como ela costumava dizer quando se referia àquela. — Como já deve saber, Seida, caso ainda se lembre, este aqui é Hessêni, o béli de Ancatébia — disse Ádiler, logo que se sentaram. — Claro que sim. É um prazer revê-lo — disse ela, polidamente, e Hessêni retribuiu a mesura. — Mas vocês dois estão muito abatidos, mais do que estariam por uma simples viagem como a de Ancatébia até Catebete. Aconteceu alguma coisa? 284

ERIC MUSASHI


— Sim, muita coisa — respondeu o imane. — Mas antes de lhe contar sobre os tristes acontecimentos que se deram na minha cidade, tenho que lhe apresentar dois rapazes: Luredás, filho de Lurai, grande lirista, e Arion, filho de Téoder. Seida ainda sorria cumprimentando Luredás quando ouviu Ádiler falar de Arion. Filho de Téoder? Então era este o jovem do qual o seu amigo tanto falava. Realmente, seus olhos lembravam muito os do pai, e o modo de fitar as pessoas também. Só então ela notou que além de Ádiler, ele também carregava uma espada de imane. — Então é o filho de Téoder...! — disse Seida, maravilhada. — ele falava muito sobre este garoto, sobre o quanto ele era inteligente, sobre os seus ideais, e sobre como acabou estragando tudo... — a sua voz então se enfraqueceu, transformando-se num sussurro. — Afinal, por que vocês brigaram? Seida tinha tocado numa profunda ferida. Luredás abaixou a cabeça, mas os outros apenas se viraram para Arion, incluindo Sile e Halá, que ouviam a conversa mesmo estando no corredor, pois a porta estava aberta. — Isso é um problema apenas nosso — disse ele, rispidamente, e sem se importar se estava falando com uma béli que nem bem conhecia ou com simples amigos. — E, para todos os efeitos, sou Odel, até que tudo esteja resolvido. Aliás, onde está o meu pai? — É verdade, amiga Seida, onde está o meu mestre? — perguntou Ádiler, depois que a surpresa pela insolência de Arion já tinha passado. Seida abaixou a cabeça. — Eu estava com muitas saudades dele, assim como vocês devem estar. Mas ao chegar, soube que ele não estava, e hoje a Rainha me disse que provavelmente ele só voltará no fim do mês. Tomara que esteja aqui no meu aniversário. — Estará — disse Ádiler —, se bem o conheço. — Então quer dizer que vim de tão longe para nada! — exclamou Arion, e sua ansiedade agora, somada à frustração, havia se transformado em raiva. — Mantenha a calma, Arion — disse Luredás. — É isso mesmo — disse Hessêni. — Eu conheço pouco o seu pai, mas ele é o Béli-Mor, não é? Espere e se acalme, pois o Grande Téoder logo voltará.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

285


— Vocês não estão entendendo nada! — Arion estava alterado. — Eu não sou o guerreiro que meu pai é; matei Namirai, Sevijá, e agora Nagos. Logo Egle e Áigon, ou Escleros e Tromos, estarão aqui. São imanes, ou melhor, um deles é o béli de Jatitã, e sou um criminoso. Posso ter noção de quantos bélis e imanes estão neste lugar. — Então ele se sentou no chão, sobre o tapete azul de Ticêmis — como os outros tapetes do castelo — colocando as mãos sobre o rosto. — Uma grande história — ironizou Halá. — Mas, infelizmente, tenho que concordar com eles, filho de Téoder. Manter a calma é a chave. Você disse a Silas — é este o nome? — que se chama Odel, e com isso a situação voltou a estar nas suas mãos. Está em Catebete, a maior cidade do mundo! Simpatizei com você, ainda mais depois de saber que é um desertor, assim como eu. Ajuda-lo-ei a encontrar uma casa, e com o nome de Odel, não será achado. Quando o seu pai chegar, ele irá até você. Arion, Luredás e Hessêni ficaram olhando surpresos para a ex-imane, e Seida e Sile apertaram os punhos, furiosas. — Sempre soube que mostraria que acertamos em trazê-la conosco, quando preciso — disse Ádiler, não contendo o sorriso. — Obrigada, mas... — Halá parecia uma donzela uma vez mais, mas as marcas de tristeza que havia em sua face apareceram novamente — ...eu não preciso dos elogios de homem nenhum! — E um novo silêncio se deu no quarto. — Devo admitir que a ideia é boa — disse Arion. — É melhor que Luredás venha comigo, pois também é visto como um traidor. Somos os últimos sobreviventes do nosso movimento. Eles conversaram mais um pouco, e Sile ordenou que quartos fossem preparados para Hessêni e Ádiler. Halá preferiu ir com Arion e Luredás. Ádiler e Seida prometeram visitá-los, mas ficaram dialogando, colocando a conversa em dia. Hessêni foi ter com a Rainha, e depois iria tomar um bom banho e beber um pouco, e Sile acompanhou os dois jatitanos e sua inimiga, para conseguir um lugar para eles ficarem. Já mais calmo, Arion observava os corredores do castelo enquanto se dirigia para a saída. Luredás fazia o mesmo. Nas paredes pintadas de branco repousavam desenhos e pinturas de Quetabel, e também havia peças raras espalhadas pelos corredores, de prata e de ouro, quase todas com pedras preciosas, na maioria dos casos rubi e jaspe. Uma delas 286

ERIC MUSASHI


chamou a atenção de Arion, e era a de um homem com longos cabelos — feitos de safira — e uma espada com pérolas. Era da altura de um homem. — Esse aí deve ser Anjifum — disse Halá. — Não pouparam recursos para fazerem a estátua, não concordam? — apontou Luredás, coçando a cabeça. — É interessante notar que tenham se preocupado em mostrar que seus cabelos eram azuis. Não há muitos assim por aqui, certo? — Originalmente, os povos de Jatitã tinham cabelos negros que cintilavam azulados à luz direta, um motivo de orgulho; os do Poente tinham olhos verdes e cabelos loiros-esmeralda; os do interior, olhos castanhos ou verdes e cabelos castanhos; e os das proximidades de Acaldã, olhos claros e cabelos castanho-claros, ruivos ou loiros — disse Halá, que se orgulhava por saber tanto sobre as etnias dos povos de Grabatal; fruto de suas jornadas com os bandidos desertores das Terras Mortas e do estudo na Morada do Saber. — Algumas cores não eram como as vemos atualmente — prosseguiu, enquanto os quatro já andavam —; o anil jatitano, misturado ao verde-aloirado no Poente, ficou feito cinzas, como no béli Sólen, de Porto da Vitória, e o verde já é quase loiro, como puderam ver em Silas — o loiro-esverdeado não era como o que viram nele —, e isso falando apenas dos cabelos. Admirei-me quando vi o loiro-esverdeado de Anes, esposa de Sólen. — Eu gostaria de saber um pouco sobre os cabelos brancos e os olhos dourados, já que é tão entendida no assunto — disse Arion, lembrando-se de sua mãe. Halá sorriu, e parecia se divertir muito em conversar sobre isso com Arion e Luredás, primeiro por simpatizar muito com eles, como ela mesma havia dito, e também por adorar mostrar o seu valor e sua sabedoria sempre que possível. Sile apenas a encarava, num misto de raiva e desprezo, mas ela, como se não se importasse, prosseguiu: — Mas antes eu deveria falar sobre os cabelos vermelhos e olhos azuis, ou cabelos e olhos vermelhos, nos mais puros casos, originários da região de Ancatébia. Mas agora, vendo que o branco dos seus cabelos é tuata, concluo que é melhor falar sobre a bela etnia que residia na outrora chamada Floresta Alegre, que agora se transformou na Floresta Sem Vida. Eram pacíficos, e seus homens rapidamente foram mortos pelas espadas de Jatitã. Tomaram suas mulheres, e poucas famílias mantiveram a sua lendária beleza intacta. Além de cabelos brancos,

OS HERDEIROS DOS TITÃS

287


tinham olhos dourados ou prateados, e dizia-se que, apesar das cinco raças de Grabatal descenderem dos titãs de Mul, os vivictas eram os que mais se pareciam com eles. — Pura bobagem — soou uma voz. Eles já se viam no grande Salão Austro, e ali estava uma mulher com um cinto de ouro repleto de diamantes, as raras pedras vindas de Grabônsi — o grande continente ao leste do Mar Quetabza e ao sul do Mar Sólen —, mais resistentes até mesmo que o sevaste, apesar de não possuírem tantas capacidades energéticas como o cristal azulado. Seu vestido era branco e decotado, e o cinto dourado era o símbolo da realeza. Aproximava-se deles com altivez, e tinha um copo de prata na mão direita. Conforme andava, seus cabelos castanhos caíam por sobre a sua face, e estavam presos num trabalhoso penteado. Arion não acreditava que pudesse haver uma mulher tão encantadora, mas era um encanto sombrio, pois sua beleza era fria. — Eu já disse inúmeras vezes que não há titãs, filhos dos titãs, Mul ou qualquer outra bobagem que suas mentes humanas puderem inventar — continuou. — Eu posso saber quem são vocês? — Por acaso é a Rainha? — perguntou Halá, cuidadosa, mas mantendo a sua tradicional prepotência. A mulher fechou os olhos e sorriu: só podia ser Quetabel. — É um prazer conhecê-la, Majestade — disse Luredás. — Não é, Odel? O filho de Téoder rangeu os dentes. Diante dele estava a culpada pela morte de Faná, sua mãe. Sua mão direita buscou o cabo da espada longa; poderia fazer o que sempre desejou que seu pai tivesse feito quando a Rainha-Deusa estava na sua frente. Olhou para os lados, e viu dezenas de telapuros observando-o cuidadosamente. Sentiu medo, e percebeu que não era tão simples como presumira que fosse. — Sim — disse Arion, tremendo de raiva, mas curvando-se, assim como Luredás, Sile e — até mesmo — Halá. Sentia raiva não só de Quetabel, mas também de si próprio e de sua covardia. Abraçar a morte não era para ele, mesmo crendo não ser apegado a nada ou a ninguém. — Vejo uma espada e uma lança de imanes — apontou a Rainha, ignorando o gesto dos três. — Quem, afinal, são vocês? — Meu nome é Halá, e eu, juntamente com Odel, sou uma nova imane de Ancatébia — disse a dona da lança. — E este é Luredás, hábil 288

ERIC MUSASHI


na lira, e um grande amigo nosso. Ah, e presumo que já deva conhecer esta imane de Acaldã. Sim, Halá mentia muito bem! Quetabel os observou atentamente, ficando por três vezes o tempo que tinha gastado nos outros a olhar para Arion. — Odel... Este nome não me é estranho. E seus olhos me lembram alguém. — Ela riu: — Já vi tantas pessoas... Mas então o jovem Luredás é músico! Eu gostaria que tocasse para mim, já que está aqui. Aliás, para onde vocês estavam indo? — Eu ia levá-los para a casa de um amigo deles, onde pretendem ficar — disse Sile, que finalmente falava algo. — Antes, porém, Luredás irá tocar uma música para mim. Vamos, ande! — Quetabel se sentou sobre as almofadas novamente. Luredás trocou olhares com Arion e Halá. Parecia uma ovelha acanhada, presa na caverna enquanto o lobo entrava. Mas poderia esperar outra coisa de uma Rainha? Até mesmo alguns mádis costumavam agir assim — ou até de forma pior, às vezes. Um coelho passou correndo perto de Quetabel, e ela o apanhou, começando a acariciá-lo. De início, Luredás pretendia tocar uma melodia simples, e até mesmo infantil, mas também era um homem, suscetível à vaidade. Estava diante da Rainha, e apesar de não dedilhar a lira nas sete vogais da natureza, tocou uma das mais tocantes músicas que conhecia. Quetabel ficou muito admirada, perdendo um pouco de sua pose. — Eu ordeno que fique, Luredás — ela disse. — Pode ir visitar os seus amigos todos os dias, mas não haverá um pôr-do-sol no qual não tocará para mim, até que aconteça o Conselho dos Bélis. — Mas... — ele tentou protestar. — E não faça objeções! Despeça-se dos imanes, e pela manhã já poderão se ver novamente. Tome um bom banho, pois logo comerá com a Deusa e com os bélis que aqui estão. Não vê como o considero? É uma honra sem igual — disse Quetabel, e se afastou deles, saindo do salão. — É, Luredás, parece que agora está a serviço da Rainha — disse Halá, com o seu sarcasmo. Arion percebia que, apesar de amarga, ela sabia ser divertida, e também tinha conhecimentos sobre algumas áreas. — Nem brinque com isso — disse Luredás. — Arion, controle o seu ímpeto. Eu vi quando quis empunhar a espada, e por sorte a Rainha não percebeu. Até logo, meu amigo.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

289


Os dois se abraçaram, e Sile e Halá ficaram sem compreender. Luredás foi atrás de Hessêni, Seida e Ádiler, e Arion, Halá e Sile deixaram o castelo. Arion ainda olhou para trás inúmeras vezes, enquanto a colossal construção — a maior já erguida por homens até então — ia ficando para trás, lembrando-se do momento amargo em que fraquejara.

V Já fazia mais de meia hora que estavam andando, e as torres agora se mesclavam com o céu azul escuro, parecendo novamente algo distante. De fato, para Arion era melhor que fosse assim — literalmente. Caminhava ao lado de Halá, a mais nova amiga que fazia nesta jornada que havia o surpreendido tanto. Aprendera em dois meses o que não tinha aprendido em toda uma vida; vida, aliás, que novamente tinha medo de perder. No fundo se tem medo é de perder os outros, pensava o filho de Téoder. — Chegamos — disse Sile, com um sorriso jovial. Como as outras casas de Catebete, tinha paredes de pedras brancas e uma grande varanda de frente para a rua. Seus pilares, com formas circulares nos pontos onde se encontravam com o teto, tinham faixas de cobre. Alguns rapazes bebiam alegremente espalhados pelos cinco degraus que separavam a casa da rua. — Esta é uma das casas de Silas, o mádi do Portão Austral — prosseguiu a imane. — Aqui moram alguns dos seus filhos. Insaciável, ele, não? Arion deu umas palmadas de leve no pescoço de Valente. Os filhos do mádi sorriram para Sile, como se a conhecessem, e todos portavam cimitarras, provavelmente sendo telapuros. — Um quarto será dado a estes dois até que se realize o Conselho dos Bélis. — Sile não disse mais nada, e nenhum dos seis apresentou objeção. Passaram pela sala, que não tinha tapetes, mas várias almofadas espalhadas pelo chão. Então chegaram, e no quarto havia uma grande cama. — Por enquanto, Silas está tendo um caso com uma pombinha das proximidades do portão que ele vigia, mas quando está sozinho vem dormir aqui. Eis a razão para a existência deste quarto. — Parece confortável — disse Arion, após olhar um pouco, e ver que havia uma janela por onde podia ver o castelo, ao nordeste. Também tinha travesseiros e um mosquiteiro, invenção muito útil; mais um dos orgulhos de Acaldã. — Só preciso ir falar com Silas. Ele não se importará — e até ficará feliz em hospedar o filho do Béli-Mor —, mas é melhor que seja avisado, não concorda? 290

ERIC MUSASHI


— Sim, é verdade. Permito você que vá com Valente, senhora Sile, contanto que o traga até aqui depois. Quero que meu amigo fique comigo. — Estará me ajudando muito — agradeceu Sile. — Eu teria que ir até o castelo para buscar minha montaria. Prometo que logo voltarei. Sile se foi, e Arion deixou a sua sacola no chão. Halá apenas olhava pela janela, e tinha-se calado bruscamente. Arion não ficava íntimo de alguém com facilidade, portanto, compartilhou o silêncio. — Está com fome, Halá? — indagou, enquanto finalmente podia ouvir o som dos cascos de Valente, mostrando que Sile e o animal se afastavam. Ela devia ter conversado um pouco com os filhos de Silas. — Não nego que estou. — Gosta de lentilhas? — Já ouvi falar, mas nunca comi — respondeu a ex-imane, olhando com carinho para Arion. — Deve haver lenha por aqui. Venha comigo! Eles foram até lá fora, onde existiam algumas marcas de fogo no chão seco. Ao olhar para o lado, Arion viu vários gravetos, dispostos de um modo que só podiam ter sido arrumados por alguém. Ele não tinha muitos dotes culinários, mas uma qualidade sua era aprender tudo com extrema facilidade. Isso, como também a boa memória, ele herdara de Téoder. Enquanto o fogo fazia o seu trabalho, Arion se voltou para Halá: — Você não terminou o que estava dizendo lá no castelo, quando a Rainha interveio. Ela se virou bruscamente. — Sobre o povo de cabelos alvos e olhos prateados e dourados? — Sim. — Era só aquilo. — Ela se virou para o leste. — Parece que havia um outro povo, ao boreal de Jatitã e ao nascente da Floresta Sem Vida, e há muito tempo ele se foi. — Voltava a falar como se a frase anterior não tivesse valor algum. — Pelo menos é isso que os nômades desertores diziam. Seus sobreviventes tinham pele morena-clara e cabelos negros; mas como tiveram que partir para muito longe, agora são mais morenos, e alguns deles se aventuram por aqui. Já vi pessoas assim — acrescentou.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

291


— Não era só aquilo — riu Arion. — Fico triste pelo verde, o azul e o alvo estarem se perdendo — disse, sem se importar com a ironia do tuata. — E o vermelho, o prateado, e o dourado dos olhos. Os cabelos e olhos brilhantes, segundo alguns estudiosos, vêm de uma época muito antiga, quando havia mais éter no ar e também nuvens espessas. Parece-me que a tendência é o Sol ficar cada vez mais forte, e haver menos nuvens no céu. Seria a maior chuva de todos os tempos, e confesso que Grabatal agradeceria. — Aprendeu isso com os nômades também? — Eu sou de Acaldã, esqueceu-se? — Ah, é mesmo. Mas como descobrem coisas assim? — Não sei muito sobre isso — confessou. — O que sei é que estudam pedras que julgam serem antigas, e alguns viajam por todas as suas vidas. São admiráveis os estudiosos de Acaldã, mesmo sendo homens. — Você se interessa muito por isso, pelo que vejo. — É natural com todos aqueles que nascem na Cidade do Saber... — Ela ficou pensativa, como se estivesse tentando decidir sobre algo. Depois olhou um tempo para Arion. Parecia querer desabafar. — Às vezes, quando nossas vidas se tornam sombrias demais, passamos a ver o brilho nas histórias do passado. Alguns admiram grandes reis, mas prefiro me interessar pelo conhecimento sobre nós próprios. Tanto no interior como no exterior. Arion não falou mais nada, e notou que o prato já estava pronto. Ele havia colocado folhas de louro, para dar um sabor especial. Só então se lembrou de que não tinha pratos, apenas duas colheres, uma dele e a outra de Luredás. — Teremos que comer juntos — disse, e Halá fez uma expressão de não gostar nada disso. — Ora, vamos, estaremos selando a nossa amizade! — brincou. Halá se sentou com ele no chão, e ali se deliciaram, rindo e se divertindo muito. — Ora, ora, temos um cozinheiro! — exclamou um jovem de longos cabelos castanhos e uma túnica vermelha, que se aproximara. Era mais alto do que o normal, e sua voz soava divertida. — Desculpe-me — disse Arion —, mas já comemos tudo. Entretanto, posso preparar mais. É um prato muito bom, não é, Halá? 292

ERIC MUSASHI


— Sim — foi tudo o que ela disse. — Faça-o, então, bom jovem — disse o filho de Silas. — Chamarei meus irmãos, e traremos vinho para vocês. Se vamos morar juntos, então é melhor que sejamos colegas! E Arion começou a preparar mais. O outro se apresentou — seu nome era Louã — e apresentou os irmãos. Tanto Arion como Halá não se preocuparam em gravar os nomes, e eles riram muito. Esta se mostrou uma companhia muito agradável, e talvez fosse esse um dos motivos para ter sido aceita entre os desertores. A noite passou depressa, como sempre é com os momentos bons. Já era dada a nona ou décima hora quando Sile voltou com Valente, e Arion e Halá se recolheram. Já no quarto, iam dormir o mais depressa possível, pois logo o sol estaria nascendo. Halá quase tinha pegado no sono quando Arion deitou ao seu lado. Ela deu um pulo: — Saia daqui! — O que houve, Halá? — Arion não compreendia. — Saia! Saia! Saia! — ela gritava sem parar, e empurrou Arion com força, derrubando-o no chão. — Halá, não a reconheço — disse ele, depois de se levantar com vagareza. — Por favor, deixe-me em paz... — implorou ela, e começou a chorar com grande amargura.Arion a abraçou com força, mesmo sem ter a menor noção do que estava acontecendo. Halá, primeiro uma cruel e antipática lanceira, para depois se mostrar culta em alguns assuntos e uma amável pessoa, e agora, chorando copiosamente e agindo de forma estranha. Mesmo se Arion fosse um irmão mais novo talvez tivesse dificuldade para prever o que poderia vir depois. Logo ela dormiu, e ele deitou no chão, fazendo as suas túnicas de travesseiro. O cansaço o transportou a um sono profundo, que durou muito mais do que ele podia esperar.

VI Apesar de achar que seus dias em Catebete seriam diferentes e decisivos, Arion logo notou que era apenas mais uma cidade. O tempo passou tranquilo para ele e para Halá, e vez ou outra Luredás, Ádiler e Hessêni vinham visitá-los. Louã e seus irmãos eram uma boa companhia, e quando se entediava, Arion saía para cavalgar com o inseparável Valente. Halá também ia, e como sempre, em se tratando de Halá, assumia as rédeas.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

293


Já no castelo, os dias foram mais longos, seja para Luredás, Ádiler ou Seida. Luredás não tinha o que fazer, exceto quando estava tocando para a Rainha. Ádiler morria de saudades de Halá, e percebia que sua atração por ela tinha se transformado num sentimento que crescia a cada dia. Também sentia falta das conversas com Arion. E por fim, Seida não aguentava mais esperar por Téoder. Passaram os dias da segunda dezena, da terceira e os da quarta já estavam no fim, mas ele não aparecia. O único, talvez, que não estava entediado era Hessêni, que gostara muito da Rainha, e também das sensuais garotas e das festas. Era 47 de protomês quando Luredás apareceu ofegante no quarto de Arion e Halá. Tinha ido a cavalo. — O que houve? — perguntou Arion. — Eles estão aqui! Escleros e Tromos! — E o meu pai? — Ainda não chegou... Todavia, vim pedir que tomasse demasiado cuidado, pois soube que querem pegá-lo acima de tudo. Perguntaram ao mádi Silas sobre “um tal de Arion”, como ele mesmo me disse, e felizmente não se lembraram de mim, uma vez que dei o meu nome verdadeiro — apesar de o mádi jurar que não nos delataria. Arion ficou quieto. Halá e Luredás encararam-se confusos. — E a hora que vinha de encontro me acertou. Mas eu hei de permanecer aqui. Se tentar fugir, aí sim é que serei descoberto, não é?

294

ERIC MUSASHI


O Conselho dos Bélis I Durante o resto do dia Luredás ficou junto com Arion e Halá, e no fundo ele tinha medo de voltar para o castelo e ser reconhecido por Escleros ou Tromos, resolvendo passar a noite na casa de Silas. Planejaram sobre a viagem de volta, uma vez que esperavam que Téoder logo chegasse, e somente dois dias depois Luredás voltou para perto da Rainha. Ficou pensativo no caminho, lembrando-se de quando aderira ao movimento contra Sevijá, e depois, na batalha no castelo, a fuga para Lira dos Titãs, o amor impossível com Neara, a Floresta Sem Vida, a casa de Ortes, o tremor de terra em Ancatébia e agora, tocando para a Rainha-Deusa em Catebete. Se tivesse todos esses objetivos como sonho — apesar de alguns deles não fazerem diferença alguma para Luredás por terem acontecido — seria difícil esperar que dois ou três pudessem se realizar. Enquanto caminhava, fez o que raramente fazia: pôs-se a olhar para as pessoas ao seu redor, observando-as e se preocupando com suas vidas; o modo como as levavam e se eram felizes ou não. Catebete era a Terra dos Sonhos, a Cidade dos Portões de Ouro, o Seio da Deusa, e deveria ser uma cidade de cristal, um lugar eterno — a representação perfeita da Idade dos Cristais. Viu que algumas moças desfilavam com vestidos azuis e vermelhos, outras com os seios quase à mostra, e ainda algumas com roupas semitransparentes que deveriam ser camisolas. Mas não era nada disso que ele observava. Tentava ver a alegria de morar no Seio da Deusa em cada uma das faces, mas não a encontrava.Talvez até mesmo as jovens infantis e vergonhosas de Lira dos Titãs tivessem sorrisos mais verdadeiros. Ele nunca acreditara que Quetabel era a Deusa, e nem tinha motivos para desacreditar. Luredás sabia que passaríamos as nossas vidas todas cheios de dúvidas, e a maioria delas levaríamos para onde quer que fossemos quando morrêssemos; para uma terra jubilosa, para um lugar sombrio, ou mesmo para o esquecimento total. Entretanto, agora tinha motivos para acreditar que Quetabel podia ser qualquer coisa, exceto uma Deusa. Sentiu-se muito triste, vendo que ela, Astarote, Etael, Ofis, Ireá e Oritai não passavam de charlatões, ou então ao menos falavam ser muito mais do que eram, caso ainda assim estivessem acima dos mortais. Estava tão descontente e desanimado que quis chorar, mas não foi capaz de fazê-lo. Um povo que se corrompia mais a cada dia até que merecia crer somente

OS HERDEIROS DOS TITÃS

295


em mentiras, por mais cruel que isso fosse. Já haviam se esquecido do valor de ajudar alguém que precisa, do valor de um amor verdadeiro, e da alegria que se tem em gerar um sorriso na face de outra pessoa. O castelo apareceu imponente, e Luredás entrou esquecido dos próprios problemas. Não se preocupava mais se seria visto por Escleros ou Tromos, e tudo o que queria era notar que sua missão no mundo já estava cumprida e então obter a permissão para voltar para a morada da alma. Entrou pelo Salão Austro, e dali as escadas até o quarto de Hessêni. Queria que pelo menos o seu amigo caísse em si e notasse que deuses não permitem que seus filhos tenham vidas tão tristes, caso caminhassem sobre o mundo. Fariam algo, ou pelo menos morreriam tentando fazê-lo. Luredás sabia que seria notado a qualquer momento, e ele estava certo. Enquanto entrava, de uma janela dois andares acima do solo foi visto, e por olhos vermelhos que enxergavam longe. Ele alisava a sua espada, tão mortal como somente outra única exemplar que existia. — Meu irmão, não há mais dúvidas — disse, virando-se para a cama, onde o outro permanecia deitado, olhando para o teto. — Ele é Luredás, o que estava com o filho do Béli-Mor em Lira dos Titãs. Eu irei pegá-lo! — Espere,Tromos! — gritou Escleros. — Não vamos derramar sangue antes da hora. Primeiro, vamos deixar que ele nos leve até Arion. Sabemos que este veio até aqui para falar com o seu pai, mas se não passou nenhum Arion pelos quatro portões, então ele deu um nome falso. Fê-lo por saber que viríamos para cá, portanto, se é esperto como presumo que seja, vai esperar até a hora do conselho, e só aí se revelará. Quero que fique de olho em Luredás, principalmente durante o Conselho dos Bélis, entendido? — Sim... — Tromos abaixou a cabeça. Queria pegar Luredás agora! Então se lembrou de Ariádan. É verdade; era a única que fora gentil com ele sem saber quem ele era. Fora gentil pela pessoa que ele realmente era, e não pelo seu título de imane. Onde ela estaria agora? Não importava se Egle estivesse no comando, mas não deixaria que ele a matasse, de jeito nenhum! — Humf, eu só gostaria de saber o que Arion teria feito com a minha Saladágni — disse Escleros, com um sorriso, quebrando o silêncio. — No entanto, já tenho outra espada, e esta se chama Dalhebal, ou, “Poder da Chama Superior”. — Sua técnica melhora a cada dia meu irmão — disse Áigon, por dizer. — Mesmo se Arion fosse tão bom como você, ao usar a Saladágni 296

ERIC MUSASHI


contra Dalhebal, teria sua arma destruída. Além disso, foi sorte encontrar rubis para adorná-la. A espada era formidável. Parecia-se com as espadas de béli, um pouco menor que uma espada de imane — uma diferença sutil —, mas notavelmente menos larga. Tinha desenhos de dragões e chamas, e os rubis que adornavam-na se mostravam colocados bem no meio da lâmina cinzenta com ponta azulada, dispostos em linha; três pedras de um lado, e quatro do outro. O cabo tinha tiras de couro cobrindo a terminação de sevaste, mas com a extremidade descoberta, possibilitando o uso de golpes como o que Sevijá usara em Arion, com o sabre de cabeça para baixo. É uma técnica dos clãs Espada de Cretos e Espada de Antros, não ensinada no Pégaso Branco, clã de Jatitã e de Sevijá. Obviamente, foi passada a ele pelos seus antigos imanes. — É verdade — respondeu Egle. — Creio que nada, ouça bem, pois digo que nada, nada será capaz de destruir Dalhebal. Nem mesmo se o Béli-Mor vier com a sua espada e sua Chama Branca poderá causar um arranhão sequer nesta obra-prima. Mas vejo que parece preocupado com outra coisa, meu irmão. Áigon não queria conversar, mas como resistir ao irmão? — Sim, estou preocupado. Eu não quero que mate Ariádan, meu irmão, pois a quero só para mim. — Nós já conversamos sobre isso — resmungou Egle. — Além disso, Tromos, há outras coisas com que devemos nos preocupar. Por exemplo, com Nagos, em Ancatébia. Eu vi Hessêni por aqui, o que significa que o que quer que tenha acontecido, o nosso irmão não conseguiu matá-lo. Você foi até lá em segredo enquanto eu trabalhava em Dalhebal, e o avisou a respeito da possível passagem de Arion por ali. Ou Arion não passou, ou então ele pode ter confrontado com Nagos. — Não acho que o filho do Béli-Mor seria capaz de vencê-lo — disse Tromos. — É verdade, e, além disso, o idiota do Hessêni permitiu que Nagos continuasse morando ali. Ele tem a casa de sua mãe, e até foi bom que sua mãe tenha sido deixada viva. Arion e Luredás precisariam de algum lugar para ficar. Aliás, é capaz de até mesmo Arion já estar morto, mas se Nagos tiver o matado e se apossado da Saladágni, então por que, por Antel, que ele não exterminou Hessêni? — Enquanto Egle criava várias hipóteses espontaneamente, Ariádan insistia em não sair da cabeça de Tromos, não o deixando em paz um instante sequer.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

297


— Qualquer uma dessas alternativas pode ser verdadeira, como também pode não ser — disse Tromos. — Agora irei fazer o que me mandou. — e ele saiu. — Ah, meu irmão. Há muitas outras jovens tão lindas como estátuas em Grabatal... — sorriu Egle. Ao caminhar pelos corredores rochosos, Áigon ficava pensando num modo de salvar Ariádan, caso ela estivesse em Catebete. “Enfrenta-lo-ei, se necessário!”, era o que latejava em sua mente. Sabia que Escleros possuía mais técnica que ele, e também mais experiência. O modo como tinha salvado a jovem em Lira dos Titãs havia pegado o irmão de surpresa, mas não aconteceria novamente. E para a sua sorte Arion estava ali. Arion, aliás, que deveria ser morto. Sim, ele podia se lembrar de como Ariádan se atirou aos pés de seu irmão implorando pela vida do filho do Béli-Mor. — Olhe só quem temos aqui! — soou uma voz. Áigon se voltou para frente, e viu ali uma figura conhecida. Trajando uma túnica com algumas tonalidades de roxo, sapatos de couro, com uma espada de béli na cintura, e com seus olhos chamuscando, ali estava Hessêni. Seus cabelos escuros, como os de seu pai, Vólnai, faziam com que o coração de Áigon parecesse ser pisado por um grande urso, como diziam que havia nas Cordilheiras Roana. — Já faz muito tempo que não o vejo. Você, que já foi um dia um honrado guerreiro da Cidade do Vinho. — Eu não queria ter o desprazer de vê-lo antes da batalha que se aproxima! — Mantenha a calma, só quero conversar amigavelmente — disse Hessêni serenamente. — Nunca quis ser seu inimigo, inimigo de Egle ou de Nagos. Eu não sei o que aquele lhe diz, Áigon, mas eu gostaria que soubesse que eu... — Pare com esses nomes! — Tromos se descontrolou. — Já faz muito tempo que deixei de ser Áigon, o servo de Hessêni. E o mesmo aconteceu com Egle, que agora é Escleros. Somos os filhos de Antel, que voltaram a andar sobre estas terras! Admiro-me muito de Ádiler, discípulo do Béli-Mor e o segundo maior no clã Punho Etéreo, aceitar obedecer a um béli fraco e covarde. Hessêni respirou fundo, tentando manter a frieza. — Tudo bem, Tromos. É assim que quer ser chamado, certo? Não sei por que insiste em me provocar, mas continuarei em paz enquanto ainda for possível para mim, que perdi o pai, a mãe e os irmãos de maneira tão trágica, e 298

ERIC MUSASHI


que recentemente enfrentei um tremor de terra na minha cidade, que foi parcialmente destruída. Eu esperava encontrar um antigo amigo, alguém que me visse como um homem que já foi importante, mas mesmo agora não é uma ameaça. Agora me vou; tenho outras pessoas que merecem mais a minha companhia. — Espere, Hessêni! — exclamou Áigon. O béli de Ancatébia parou, mas se manteve de costas para aquele, apenas virando o rosto para o lado, vendo uma imagem embaçada dele com o olho esquerdo. — Eu peço que me desculpe pelo modo como o tratei, pois como disse, não somos inimigos, apenas não somos mais aliados. No entanto, pergunto-lhe: que tremor de terra é esse do qual fala? — Nem se eu quisesse eu poderia lhe dizer — disse Hessêni. — Foi muito forte, e eu achava que eram apenas lendas idiotas que falavam sobre abalos sísmicos. A noite de 21 de protomês de 3.993 foi muito, muito longa. Agora devo ir, pois fui informado que um amigo me espera no meu quarto. E amigos vêm antes de “não-amigos, não-inimigos”. Áigon, ou Tromos, como ele preferia, ficou olhando Hessêni se distanciar. Será que o lado que Escleros defendia era mesmo o lado correto? Sim, Tromos sabia que o lado correto era o lado da coragem, o lado da espada, mas este lado jamais deveria oprimir inocentes. E por mais que Ariádan tivesse ajudado um criminoso, ela podia tê-lo feito apenas por amizade, ou mesmo sendo enganada. Sentou-se no chão e ali ficou por bastante tempo. Enquanto isso, Ádiler olhava pela sacada do Salão de Reuniões, onde logo estaria acontecendo o iminente Conselho dos Bélis. Ele não estaria ali, por não ser um béli, mas depois saberia de tudo por meio de seu mestre Téoder e sua amiga Seida. De lá, tentava ver Halá, uma vez que da casa onde ela estava a sacada podia ser vista. Ele sabia que seria impossível enxergá-la, mas imaginava-a ali, buscando-o também. Na maioria do tempo, Halá parecia não se sentir tocada pelas declarações sutis de Ádiler, vindas em formas de gestos ou mesmo de palavras. Entretanto, por vezes eles se pegavam trocando olhares denunciadores, e também quando ele tocava a sua cintura, ao cavalgarem, sentia que ela ficava ofegante, ou ainda a via com expressões de felicidade. Ele sorriu, animado pelo que estava por vir. — Perdoe-me por interrompê-lo, meu senhor, mas é o senhor Ádiler? — perguntou um rapaz. Ádiler se virou para trás e viu um ruivo de olhos azuis, com cabelos finos e extremamente lisos, caindo pela testa e quase

OS HERDEIROS DOS TITÃS

299


encostando nos ombros, na parte de trás. Vestia uma túnica negra, com detalhes roxos, e uma espada de imane repousava na sua cintura.Também estava com uma leve armadura com pedras de sevaste, mesmo estando fora de uma batalha, mas sim seguro, dentro do castelo de Catebete. Seu semblante era de um jovem que é submisso a alguém que ele sabe ser maior do que ele. — Já ouvi falar do senhor, e pela sua bainha, presumo que seja um dos maiores no clã Punho Etéreo; o segundo maior, se for mesmo Ádiler, discípulo direto do Grande Téoder. — Quem é você? É um imane? — Sou Berânu, filho de Nassá — respondeu o imane, curvando-se cordialmente. — Meu pai e eu viemos até aqui para o Conselho dos Bélis, uma vez que ele é o béli de Melcártis. Recentemente o nosso mais valioso imane foi morto numa batalha contra alguns rebeldes da Bacia do Nascente, e eu fui escolhido para vir até aqui, sendo o segundo melhor da Cidade das Espadas. — É um prazer conhecê-lo, e não precisa me chamar de senhor, pois não sou seu superior. Também sou um imane. E você não é do clã Punho Etéreo, onde somente Téoder está acima de mim. — Ádiler então saiu da sacada e puxou uma cadeira, sentando-se. — Agora me diga: conhece tanto assim sobre espadas mesmo? — Esforço-me muito para ser o melhor ferreiro de Grabatal — disse Berânu. — Recentemente, as técnicas dos clãs de Antel foram encontradas por dois irmãos, e mesmo que suas espadas não sejam vendidas — eles só produzem para eles próprios —, meu pai quer que a fama de Melcártis seja mantida. “Já que não pode me orgulhar sendo o melhor guerreiro, então que o faça sendo o melhor ferreiro”, diz o meu velho pai. Eu fiz essa espada que carrega, imane Ádiler, e se passarmos por Melcártis novamente, prometo lhe dar uma espada melhor. A técnica já melhorou mais ainda. Ádiler riu: — Eu agradeço, mas estou feliz com esta. Porém, vejo que o seu pai é muito exigente. — Ele é um bom homem, e só quer o melhor para mim — disse Berânu, mas Ádiler sentiu que, apesar de não estar mentindo, ele sofria por falar sobre essas coisas. — Ele admira muito o Grande Téoder, e seu sonho era ter um filho que fosse tão bom quanto ele. Mas não consegui ser aceito para ser o seu discípulo direto, e acabei preferindo treinar com o meu pai mesmo a ser qualquer telapuro do Punho Etéreo. Agora, mais que nunca, devo orgulhar meu pai de outra forma. Venho estudando há muito tempo, e preparo uma espada que será a melhor já vista. 300

ERIC MUSASHI


— O que faz um homem não é o que ele conseguiu, e sim o que ele é capaz de fazer com que os outros consigam — disse Ádiler. — Essa foi uma das frases mais sábias que já ouvi. — Téoder me ensinou. Sabe, Berânu — disse Ádiler, depois de uma pausa —, numa coisa eu concordo com o seu pai: Téoder é o melhor guerreiro que já existiu. Você perdeu muito por não ter conseguido treinar com ele. Não me lembro de você, mas espero que não sinta raiva de mim por eu ter roubado a sua vaga. Eu só peço que não deixe que o que seu pai diz o faça um homem infeliz. É natural que os pais nos cobrem muito, pois querem que sejamos maiores do que eles próprios, apesar de muitas vezes isso não ser possível. Eu queria que meus pais ainda estivessem aqui, mesmo agora, que já sei me cuidar sozinho. — Obrigado pelos ensinamentos, e se foi discípulo de Téoder, devo absorver todo julgamento que me der de bom grado. Agora, devo ir, pois meu pai me aguarda. Apenas passava pelo corredor quando me deparei com a porta aberta e o vi na varanda. Aliás, antes de ir eu gostaria de ver a cidade da mais alta e ampla sacada. Posso? — Eu não sou o dono do castelo — brincou Ádiler. — Venha! E os dois ficaram ali, apoiados no parapeito, olhando maravilhados. Casas e mais casas, as pessoas perambulando pelas ruas; tudo parecia distante, lento. O sol alaranjado atingia suas faces, e bem longe, ao sul, o Canal corria, silencioso para eles. O castelo se erguia como uma espada, destacando muito do resto de toda a cidade. Berânu se sentiu grande, forte e capaz de vencer qualquer obstáculo. — Agora vejo como é lindo... — sussurrou ele. — Mas, como já disse, devo ir. Obrigado pela companhia, senhor Ádiler, e espero que nos vejamos novamente! — Ele é tão... educado — disse Ádiler, coçando a nuca, depois do garoto já ter deixado a sala.

II O sol se punha e Arion via memórias no teto, enquanto sua mão direita tocava o cabo da espada de Elmo, e ele sentia sua reconfortante energia. Lembrava-se de Ortes, e não tinha mais tido sonho algum com ela, com Faná, ou mesmo com a morena do Vale dos Lobos. Halá havia saído com Valente, e fizera uma amizade com ele nos dias que se passaram. O clima era abafado, e estavam no verão agora.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

301


Não estava mais ansioso como de início, e o encontro com Téoder agora parecia algo distante, semoto. De repente, sentiu saudade do som da lira de Luredás, e quis ir até o castelo o mais depressa possível. Levantou-se da cama, e quando já ia colocar os calçados de couro, veio à sua mente a imagem de Escleros e Tromos, e da Chama Vermelha. Foi até a varanda, e decidiria lá se arriscaria ou não. A luz do fim da tarde estava utópica como sempre, e logo os dias seriam cada vez mais longos, uma vez que o solstício se aproximava. O clima em Grabatal, apesar de ter as quatro estações do ano bem definidas, costumava sofrer grandes oscilações, uma vez que os ventos quentes vinham de Grabônsi, e não havia uma regra para quando podia esquentar. Com isso, viajantes costumavam sofrer muito no inverno e outono, e para a sorte de Arion e Luredás, eles peregrinaram durante a primavera. — Não sei o que minha mãe temia... Esta cidade não é tão má assim — disse Arion para si próprio, já sentado no degrau mais alto. Sua túnica branca estava muito encardida, e por isso tinha vestido uma roxa que havia ganhado de Hessêni, antes da partida de lá. Ela tinha mais de uma camada, com detalhes trabalhosos, e moças e rapazes que passavam por ali olhavam surpresos para ele, achando que se tratava de alguém muito importante — e a arma que repousava na sua cintura apenas aumentava as dúvidas que tinham se criado sobre ele. — Arion! — soou uma voz feminina; intimidadora e firme. Ele se virou para a esquerda e viu que ali, no meio da rua, estavam Halá e Valente. — O que houve? — perguntou. — Eu não sei, mas há uma grande multidão ao redor do castelo.Venha comigo, vamos ver o que é, meu amigo! — Mas e Egle e Áigon? — Jamais o verão! — Halá falava depressa. — Há, no mínimo, mil pessoas; não há por que temer. Venha logo, pois ouvi dizer que vão presentear a Deusa! Arion foi correndo, e com um salto montou em Valente. Agarrou-se na cintura de Halá, mas sem malícia. “Presentear a Deusa?”, ele pensava. Soava estranho. O que dariam a Quetabel? Ela tinha o que quisesse, ou pelo menos assim pensava Arion. O caminho que fizeram em meia hora com Sile há vários dias foi feito em pouco mais de um vigésimo de hora, e chegaram ofegantes. Arion jamais tinha visto tanta gente no mesmo lugar, e ficou notavelmente pasmo, sentindo-se um inculto do interior. 302

ERIC MUSASHI


Como não havia mais a luz do sol, todos podiam olhar para o alto sem o desconforto que têm quando o fazem durante um dia com poucas nuvens, e lá estava a Rainha-Deusa, na sacada. Suas feições não podiam ser vistas, mas, numa sacada um pouco mais abaixo, um homem era visto, vestindo uma túnica sombria com um capuz. Uma moça nua, de cabelos castanho-claros, pelo que Arion e Halá podiam perceber, era segurada por ele, e deveria estar desmaiada. — Astarote vai realizar o sacrifício! — soavam algumas vozes. — Astarote? — perguntou Arion, virando-se para Halá. — Quem é ele? — É o Sumo-Sacerdote de Quetabel — disse a ex-imane. — Conta-se que quando ela veio ao mundo, ele a encontrou e ajudou-a a recuperar a memória, tomando consciência de sua condição divina. — Ah, sim, agora me lembro! — exclamou Arion. — Ádiler me falou sobre Quetabel e os Cinco, e também sobre esse tal de Astarote. Mas... — Olhe! Arion olhou, como Halá mandara, e tudo o que viu, ainda estando longe, foi uma faca de combate brilhante como o ouro rasgando a garganta da garota, que devia estar desacordada antes de receber o golpe final. O sangue escorria pelo seu pescoço, e o povo começou a gritar sem parar. “Viva Quetabel!”,“Mãe da Fortuna!”,“Rainha Imortal!”, dentre outras frases. — O que está acontecendo aqui? — perguntou Hessêni, entrando no quarto de Seida, e encontrando Ádiler lá também, sentado na sua cama. — Há muita gente lá fora, e ouço muitos gritos — disse Luredás, que havia entrado no quarto junto com o béli de Ancatébia, inseparável companheiro. Seida e Ádiler trocaram olhares. De fato, apesar de não morarem em Catebete — não mais, no caso do imane —, cenas assim não eram incomuns para eles. Bem como na primeira vez que Seida visitara a capital, ou mesmo em alguns episódios na adolescência de Ádiler, os sacrifícios humanos ocorreram. Os sacerdotes não costumavam fazer muito alarde — com exceção de Astarote —, mas mesmo assim algumas pessoas apareciam para presenciar os sacrifícios em sua homenagem. Desta vez, como na primeira visita de Seida, o sacrifício era para a Rainha, e por isso havia tanta gente assistindo. — Se é tão superior a nós, não consigo compreender por que pede sacrifícios — disse Ádiler.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

303


— Concordo com você, meu amigo. — Então a béli foi até a janela, para tentar ver algo. — Do que é que estão falando? Não entendo uma vírgula! — Hessêni se mostrou impaciente. — Jovens imolados... — disse Luredás, entristecendo-se. Hessêni se virou surpreso para ele. — Muito se diz a respeito dos inocentes que são mortos para homenagear a Rainha-Deusa. Poucos boatos sobre isso chegam a Jatitã, mas na viagem de volta de Porto da Vitória para casa, que fiz um dia, ouvi de um dos meus acompanhantes uma história sobre isso. Hessêni não falou mais nada. A imagem que tinha de Quetabel como uma Deusa justa e benevolente se desfez com extrema rapidez. Sim, pois o que ele mais abominava era a morte desnecessária, principalmente neste caso; para homenagear uma Deusa. Ainda cria em sua divindade, mas agora percebia que ela tinha defeitos; não estava tão acima dele assim como ele imaginava que fosse. A noite agora já havia chegado; sorrateira como um ágil cão que rouba a comida de seu dono. Um vento frio agitou a planície onde estava Catebete, e ao tocar as torres do castelo, produziu um som sibilante. Pareciam ouvir a voz da morte; não sabiam por que associavam o som com este caminho desconhecido. Talvez era apenas uma lembrança de imagens vistas em sonhos, sonhos que foram sucedidos por tristes despedidas para uma viagem sem volta. Pelo menos por um lado. — Tudo isso já acabou? — perguntou Hessêni, com uma voz fraca. — Não — disse Seida, e neste momento ela se lembrou de como a Rainha tinha a tratado durante o encontro no jardim. — Ainda falta o prato principal. — Prato principal? — murmurou Hessêni. Mas ninguém ousou responder. Os quatro ficaram olhando pela janela, esperando que acontecesse o fato ao qual Seida se referia; apenas Ádiler sabia o que seria. As tochas das ruas foram acesas, e nuvens espessas vinham do norte, com relâmpagos chamuscando no céu, mais claro do que o comum, para uma noite. Enquanto isso, no seu quarto, Egle e Áigon assistiam como os outros quatro. Estavam muito curiosos pelo que estava por vir. 304

ERIC MUSASHI


— Ouvi dizer que sacrificariam uma rapariga, e era só isso — disse Áigon-Tromos. — Isso já aconteceu, meu irmão. — Escleros estava com o seu humor levemente alterado. Tromos tinha um temperamento explosivo, e adorava combater, principalmente se fosse um combate até a morte. Mas, ao contrário de Escleros, não achava nada divertido — ou atraente — um sacrifício, e nem considerava isso justo, para usar um termo mais correto. Apenas olhava para a sua espada, a fonte de seu senso de honra e de justiça. Uma arma sem nome; ao contrário do que pode parecer, poucas armas em Grabatal recebiam nome, e tais peças costumavam ser consideradas sagradas. Escleros — ou Egle — tinha o costume de nomear as que ele produzia, e isso aumentava ainda mais a atmosfera que se fazia ao seu redor para todos aqueles que tinham um contato com ele, crendo que era o filho de Antel, que havia voltado. Mas era somente Egle de Ancatébia, nome que já ficara no passado. Saladágni, Dalhebal, Animelcar... Nenhum destes nomes significava alguma coisa para o irmão mais novo daquele que se intitulava “O Cruel Amedrontador”. — Estou farto disso tudo — disse ele, saindo de perto da janela e se dirigindo até a porta. — Farto do que, especificamente? — perguntou Egle. — Deste quarto, deste castelo, desta cidade... Desta vida! — E saiu, quase batendo a porta. O último termo podia ser relacionado com muitas coisas, mas Egle sabia que ele falava de Ariádan. De não poder estar no comando uma vez sequer. Mas tudo o que ele fazia era para protegê-lo, será que não era capaz de entender? — Espere! Fique aqui, e me diga o que estará ocorrendo lá fora. — Escleros impediu que a porta de madeira ficasse entre ele e o irmão. — Ei, acha que sou um escravo seu, assim como os remadores de Porto da Vitória?! — Áigon estava a ponto de explodir, e Egle sabia o quanto isso era perigoso, mesmo quando se tratava dele, seu irmão mais velho. — Desculpe-me, meu irmão. Prometo que pensarei a respeito de Ariádan, e se chegar à conclusão de que ela é inocente, eu a pouparei. Então Áigon voltou, e ficou apoiado numa janela uma vez mais. Eles não estavam num lugar tão alto, mas desta vez ele notou algo que não tinha visto antes: aqueles cabelos brancos só podiam ser de uma pessoa!

OS HERDEIROS DOS TITÃS

305


No meio da multidão, com um cavalo e uma moça, tentando se aproximar o máximo do castelo, lá estava o inimigo. Inocente e prepotente — se é que é possível unir as duas características — como sempre. — Eu não posso estar errado...! — O que houve,Tromos? — Escleros se sentou na cama. — Aquele é Arion! Isso mesmo, o filho do Béli-Mor! O irmão mais velho de Áigon foi correndo até ele, e este o ajudou a achar a imagem perdida. Eles se encararam, e sorriram maliciosamente. Diante deles estava a chance de punir o traidor. No fundo, não gostavam tanto assim de Sevijá, apesar de quererem fazer cumprir a lei. O que mais queriam, por sinal, era lutarem até o fim contra o filho do Grande Téoder — era um guerreiro como nunca haviam conhecido. — É muito bom saber que ele está aqui. — Irei pegá-lo! — gritou Tromos, ameaçando correr. — Espere! Eu já não disse para ter calma? — Escleros voltou até a cama, sentando-se. — Crê mesmo que o pegaria no meio de todo esse tumulto? Ele irá partir, mas é mesmo esperto como presumimos que fosse. Mentiu o nome, e não veio até o castelo. Sabia que estaríamos aqui. Luredás está próximo de nós, e já tinha dito para segui-lo, meu irmão. Agora reforço: siga-o! Tromos apenas concordou, balançando vagarosamente a cabeça. Astarote voltou novamente, agora com a jovem no colo, envolta num pano branco, manchado de sangue. Neste momento, Arion, Halá e Valente já estavam bem próximos, e podiam ver claramente o rosto da falecida, pois o pano não estava a cobrindo naquele ponto. Tinha os olhos abertos, e eles estavam brancos em sua totalidade. Não havia cor também em sua face. Existia algo diferente, como que morto, em seu rosto, mas com toda a certeza era a mesma garota. O povo voltou a se agitar, e um sorriso podia ser visto na face do Sumo-Sacerdote, mesmo estando ela oculta pelas sombras. Ele começou a falar algumas coisas, mas apesar de Arion estar perto, não era capaz de entender tudo. Algumas coisas como “...o momento que aguardavam...” e “...eu sei que querem ser como ela...”. Por mais que tentem, não conseguirão, mas afinal, é uma festa; ele terminou dizendo, e então jogou o corpo no meio da multidão. 306

ERIC MUSASHI


Uma roda se abriu, e somente Arion ficou parado no lugar que estava, assustado por tudo o que acontecia. A jovem caiu do seu lado, e ele pôde ouvir o barulho de vários ossos se quebrando. Novamente o povo avançou, e rapidamente o pano foi jogado longe. O corpo dela estava mais magro e mais seco, como se tivesse morrido há muitos dias. Além do corte no pescoço, havia outros em vários pontos do corpo; pequenos cortes, quase imperceptíveis, um pouco abaixo do umbigo, e em outras regiões também. Arion era empurrado por todos os lados, e logo já não podia mais ver a garota. Viu o sangue voando para todos os lados, como quando lobos atacam desesperados um magro e pequeno coelho, sabendo que não haverá carne para todos. Alguns eram tirados da roda à força, e levavam pedaços de pele nas bocas, ou mesmo pedaços de músculos, com um pouco de gordura. O estômago de Arion se embrulhou, e ele sentiu nojo daquela gente. Quis sair dali o mais rápido possível, e nem se preocupou em chamar Halá. Empurrou com força aqueles que ficaram em seu caminho, e quando já não dava mais para sair, montou em Valente, e ameaçou passar por cima dos que o impedissem de deixar o local. Halá saltou no cavalo atrás dele, e vendo que Arion estava transtornado de um modo como ela jamais havia imaginado que ele pudesse ficar, ela achou melhor nem pedir para assumir as rédeas. Demorou, mas conseguiram sair dos arredores do castelo, provavelmente um pouco antes de só restarem os ossos e as vísceras da jovem, pois ainda ouviam os gritos da briga pelos melhores pedaços de carne. — Você... está...Você está bem? — perguntou Halá, depois de arriscar algumas vezes, quando já estavam bem longe. Arion nem olhou para trás: — Um dia minha mãe me fez prometer que jamais viria a Catebete, e eu prometi. O tempo passou, recebi uma carta de meu pai, e eu não tinha opção, a não ser quebrar a promessa. Hoje entendo do que minha mãe tentou me deixar longe. O coração de Halá se entristeceu, e ela segurou para que as lágrimas que afloraram não caíssem. Ela já tinha visto coisas piores, mas Arion era um homem puro, e deveria mesmo ficar distante da perversidade humana. Halá pensava assim desde quando ele passou a dormir desconfortavelmente no chão, simplesmente por um capricho dela, como ele devia pensar. Mas ele, achando ou não que era um capricho, optou por respeitá-la. Além disso, consolou-a quando ela precisou, e suas atitudes

OS HERDEIROS DOS TITÃS

307


desde que ela o conheceu mostraram o quanto ele era bom. Arion deu um pulo, admirado, quando Halá o abraçou por trás. — Não fique assim... — ela disse. — Eu sei muito mais do que você o quanto o mundo é cruel. É engraçado... — ela sorriu. — Engraçado?! O que é engraçado? — Arion finalmente se virou para trás. — Nem parece que é um homem. Nem homem, nem mulher. É só um amigo. Ele não entendeu a profundidade das suas palavras, e Halá apenas apontou para frente: haviam chegado. Desceram do cavalo, e foram recebidos por Louã e alguns dos seus irmãos. Já era noite, e agora não era o turno deles. Tinham trazido carne de carneiro, coisa que Halá não via há muito tempo. Beberam vinho, e aliviaram os corações. A noite se revelou fria, como a noite de um deserto, e quando deitou no chão, Arion percebeu o quanto estava gelado. — Deite aqui, na cama, meu amigo — disse Halá. Arion não questionou, pois assim como o motivo dela ter jogado-o para o chão, a razão para permitir que ele voltasse também era de conhecimento apenas da moça. Ele logo pegou no sono, mas Halá ficou por um bom tempo observando-o. Depois foi até a janela, e ficou pensando em Ádiler até que o frio fosse grande demais para que ela permanecesse exposta a ele. — Você é um homem honrado, Ádiler? Talvez seja... — disse para si mesma.

III A noite foi barulhenta, mas não para aqueles que estavam no castelo. Estranhamente, a Rainha Quetabel não se apresentou para o jantar, e depois do triste espetáculo que presenciaram, Hessêni, Ádiler, Seida, Nassá e Berânu comeram em seus quartos. Luredás também, mas ele já estava acostumado a comer sozinho, uma vez que Escleros e Tromos agora haviam chegado à capital. Para a sua sorte, a Rainha se envolvia em outros assuntos, e o deixou em paz. O dia seguinte amanheceu calmo, como num campo onde recentemente ocorreu uma grande batalha. A voz de Quetabel — proferindo 308

ERIC MUSASHI


ordens — não podia ser ouvida por ali, pelo menos durante o dia. Para Seida, ele foi demasiadamente longo, pois ela ficou o tempo todo ao lado da janela, esperando ver Téoder aparecendo, montado em Filho dos Ventos, e acenando para ela. Mas não viu nada. Nada era tudo o que ela podia sentir, ver ou viver naquele dia. Chorando, deitou-se na cama e resolveu dormir, abraçada na faixa azul. Enquanto isso, um grupo caminhava pelas ruas da cidade, atraindo a atenção de todos por onde passava. Olhares assustados, reverências e assobios eram acompanhados por frases surpresas, como: “Olhem, o Béli-Mor voltou!”, “Quantos imanes!” e “Téoder, Filho dos Titãs!”. Coincidentemente — ou não, para os sábios que não creem em coincidências —, eles passaram bem na frente da casa de Silas, desviados pelo tumulto que se fazia nas ruas, e Louã foi correndo acordar Arion e Halá. — O que houve? — perguntou Arion. — É o Béli-Mor; ele voltou! — exclamou o telapuro. — Venha! Louã saiu correndo, e Arion e Halá fizeram o mesmo, vestindo suas túnicas depressa. Lá estava ele, montado em Filho dos Ventos, e acompanhado de outro béli e nove imanes, um deles sozinho num cavalo e os outros oito separados em quatro carruagens. As suas barbas estavam grandes, e as roupas sujas pela viagem. Téoder acenava para alguns, mas não tentando se vangloriar, e sim cumprimentando o povo que o amava. Tentava ser discreto, mas ao mesmo tempo gentil. O coração de Arion bateu acelerado, e ele deu um passo para frente, apertando com força o braço de Halá. — Pai! — gritou. Téoder fez com que Filho dos Ventos parasse bruscamente, e Sólen e Namior fitaram-no sem entender. — O que houve, Béli-Mor? — perguntou o béli de Porto da Vitória. — Eu ouvi alguém me chamar — disse Téoder. — Há-há-há-há-há! Todos estão o chamando, Béli-Mor! — ironizou Namior. — Ouvi uma voz familiar... — Téoder não quis dizer que tinham o chamado de pai, e não pelo seu nome. Talvez fosse apenas um garoto falando com o próprio pai, mas só havia uma forma de saber. Virou-se para trás, olhando diretamente na casa de Silas, de onde parecia ter vindo a voz. Mas na varanda só viu os filhos do mádi, e uma mulher

OS HERDEIROS DOS TITÃS

309


que ele já tinha visto em algum lugar. Então se lembrou: era Halá, uma ex-imane de Acaldã! — Vamos, foi só um daqueles que adoram um nome — disse Sólen. — É, talvez esteja certo... Eles continuaram o caminho, e apesar da multidão, não o fizeram com tanta dificuldade, pois como o povo respeitava demais o Béli-Mor, o caminho foi se abrindo. Halá os viu se afastando, e em seguida voltou para dentro da casa. Encontrou Arion encolhido num canto, com o rosto entre os joelhos. Ela se aproximou dele, e quando tocou no seu ombro o tuata olhou para ela. — Por que veio para dentro justamente quando ele parou o cavalo? — Não tenho coragem de vê-lo — confessou Arion. — Mas ele é o seu pai! — Halá não compreendia. — Faz mais de três anos que não o vejo, e na última vez que nos encontramos, ele era o homem que matou a minha mãe. Sim, de fato ainda o culpo por isso, e ele terá que me explicar muito bem o motivo de sua atitude. Mas depois de toda a viagem, passei a vê-lo como um homem muito bom, um bom homem que errou por estar sofrendo, e ter se sentido impotente, ameaçado. Todos falaram bem dele para mim, todos... — Arion voltou a abaixar a cabeça. Halá não disse nada, pois apesar de ser muito boa para falar sobre a história das etnias atalais e sobre os seus próprios sentimentos, não conseguia consolar alguém com facilidade. Apenas se sentou ao lado dele, e ficou olhando para a luz da lua cheia que entrava pela janela nesta noite, que era quente, em contraposição à anterior. Ela se admirou pela bela lua daquela noite, que parecia estar feliz pela volta do Grande Téoder. Sorriu, inconscientemente. Os onze chegaram ao castelo quando era a quinta hora da noite. Os guardas do Salão Austro ameaçaram impedir a sua entrada, mas ao verem que era Téoder, curvaram-se, e também cumprimentaram o béli de Porto da Vitória e seus imanes. Eles entraram, e seus cavalos foram levados para o estábulo — bem como as carruagens. Neste momento, Namior pegou o embrulho estranho, que Téoder observara durante a jornada, e abraçou-o com grande cautela, como se fosse muito importante. Entraram no salão, e lá viram uma grande mesa posta. Além de algumas faces desconhecidas, Téoder viu grandes amigos, como Hessêni, 310

ERIC MUSASHI


Ádiler, Sile e Adum. Quetabel também estava lá, juntamente com Astarote, Oritai, Etael, Ireá e Ofis. A Rainha-Deusa se levantou, surpresa, e então se sentiu um pouco fraca, rapidamente se sentando de novo. — Quem são eles? — perguntou Berânu para seu pai, Nassá. Nassá nada respondeu, e Namior, Sólen e Téoder foram se aproximando, enquanto os outros imanes de Porto da Vitória mantiveram-se próximos da grande porta, que ainda tinha as duas abas semi-abertas. Astarote se levantou. — O Béli-Mor está de volta — disse ele, num tom irônico. Todos os outros se levantaram, e assim ficaram até que Téoder chegasse onde Quetabel estava, juntamente com Sólen e Namior. — Olá, minha Rainha — disse Téoder. — Estes são Sólen, o béli de Porto da Vitória, e Namior, o seu principal imane. — É um prazer conhecê-la, minha Rainha e Deusa — disse Sólen, curvando-se, e Namior fez o mesmo. — Que bom que veio — disse Quetabel, e então, como que por magia, sua aparência debilitada se dissipou, sendo substituída por uma beleza encantadora e sedutora, como jamais havia sido vista antes. Téoder e Sólen, que estavam mais próximos, sentiram-se fracos e com as defesas abertas, inutilizadas. Parecia que era realmente uma Deusa que estava diante deles, e isso ajudou Sólen no seu julgamento da “primeira impressão”. — Mas por que foi até lá, meu Béli-Mor? — Tínhamos pressa — justificou ele. Um silêncio constrangedor se deu no salão. — Sentem-se e comam, Homens do Mar — disse Quetabel, tentando ser gentil. — Normalmente, para que se sentem aqui, as pessoas devem estar muito bem arrumadas, mas hoje abrirei uma exceção. Sua viagem foi um tanto longa, e presumo que estejam com fome. Preparem mais onze pratos! — Sim, minha Rainha — disseram Sólen e Namior, e este acenou para os outros, que também vieram para perto da Deusa. — Perdoe-me, mas não vejo a béli Seida, de Acaldã — disse Téoder. — Onde ela está? Quetabel se recusou a responder, sentando-se e voltando a comer e beber.Téoder se virou para Ádiler, Hessêni e Sile, e foi até eles, abraçandoos com força. — Tive muitas saudades suas, meu mestre — disse Ádiler. — Por vezes necessitei de sua sabedoria, e também de sua companhia agradável.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

311


— Ora, também gosto da sua companhia — disse Téoder, um tanto encabulado. — Mas eu sei de alguém que necessita mais ainda de você — disse Sile, mesmo não sendo tão íntima do Béli-Mor e não estando certa sobre os sentimentos de sua béli em relação a ele. — Onde está Seida? Sile apontou, dizendo “Torre Boreal, último andar”, e ele nem bem abraçou Hessêni e partiu, subindo correndo as escadas. Os três riram, e se sentaram, voltando a comer. Ádiler, muito próximo de Seida, sabia o quanto Téoder era importante para ela. Uma animada reunião se deu, principalmente por conta de Sólen, que falou bastante, e se mostrou divertido, apesar de um pouco soberbo. Téoder enfim chegou ao último andar da Torre Boreal, uma das quatro maiores, que ficava sobre o Salão Boreal. Havia poucos quartos ali, um era o seu antigo quarto, um outro, o de Adum, e o terceiro, estava desocupado até então. Só podia ser esse. Abriu a porta vagarosamente, e as velas estavam apagadas. Deitada, sob um lençol azul, estava Seida, provavelmente já dormindo. Ele foi andando sem fazer barulho, e, já próximo da cama, abaixou-se, para ver o seu tenro rosto enquanto ela relaxava. Abaixou a sua cabeça, e beijou a sua nuca, num lugar próximo da orelha esquerda, uma vez que ela dormia voltada para a direita. Seida, com tremenda rapidez, apanhou a sua lança com pedras de sevaste, uma arma rústica, mas que nunca havia sido ferida por outra, dada a grande habilidade etérea da béli. Ela atacou o intruso com muita rapidez, mas ele tinha sacado a sua espada com velocidade maior ainda, e se defendeu do golpe. O choque das armas produziu chamuscadas azuis, e quando ele olhou para ela novamente, a moça estava já de pé, e a luz da lua tocava a sua camisola rosada, revelando perfeitamente a silhueta do seu corpo. — Já que é assim, então não dou presente nenhum! — disse Téoder, e se sentou no chão, gargalhando. Seida soltou a lança. — Téoder! — Ela correu até ele, abraçando-o com força, e lágrimas afloravam dos seus olhos azuis. Téoder ficou quase sem ar, pois apesar de não ser tão alta, ela tirou forças não se sabia de onde, apertando-o como se não quisesse que ele se afastasse dele nunca mais. — Eu já não esperava mais que você viesse... 312

ERIC MUSASHI


— Sim, realmente, eu não estava lá para vê-la no ano passado — ele disse, e se afastou do abraço da béli. — Senti muito, mas houve um grande problema aqui naquele tempo. Eu queria estar lá. Olhe, eu vou lhe explicar, tudo bem? Desta vez foi Seida que começou a rir. — Não seja bobo. Não tem que me dar explicações; tem a sua vida, e seus afazeres. Só fico muito feliz por estar vendo-o novamente. Aliás, o seu aniversário também se aproxima, não é mesmo? Ele não disse nada. Aproximou-se de Seida, e ficou olhando nos seus olhos por um bom tempo. — Eu quero que aceite isto — disse ele, estendendo a mão esquerda. Ela se abriu, revelando uma corrente de prata e uma joia do mesmo metal; um pentagrama, feito apenas pelas hastes, que se cruzavam. Ela olhou maravilhada por um bom tempo, e novas lágrimas tocaram as suas bochechas. — O pentagrama de Faná... — Ele estará melhor com você do que comigo ou com Quetabel — disse Téoder, já colocando no pescoço dela. — É a melhor guardiã para as minhas lembranças. — Eu não posso aceitar — ela disse, e Téoder não compreendeu. — Isto ela deixou para você, e não para que desse para mim. Nem que você me amasse como a amou; e se assim fosse, seria pior ainda. Fico feliz pela decisão que teve de confiar isto a mim, e isso já pode ser considerado o melhor presente de aniversário que já ganhei na minha vida. — Intenções não são presentes, pois os sentimentos passam — disse Téoder. — São sim, se os sentimentos forem fortes o bastante para durarem para sempre. — Então ela se levantou, sorrindo para ele. Um sorriso sem igual e belo o suficiente para aquecer o seu coração numa noite de inverno. Téoder não entendeu o que ela queria dizer com aquelas palavras, mas se levantou e a abraçou novamente, com muita força: — Eu providenciarei outro presente para você antes que o dia seguinte chegue! — Não, Téoder, espere! — ela exclamou, antes dele sair do quarto, e o Béli-Mor parou no meio do caminho. — Eu não quero um presente. Só quero que fique aqui comigo, nesta linda noite de lua cheia. Conversaremos sobre as novidades, o que acha?

OS HERDEIROS DOS TITÃS

313


— Adorarei! Mas não pense que se livrará do meu presente, hein? Vou buscar algo para comermos, e também vinho. Ele saiu correndo, como de costume, e Seida se sentou no chão. O sorriso se desfez, e ela começou a chorar copiosamente. Não, não havia motivo para estar triste. Ela estava extremamente feliz. Téoder tinha decidido dar para ela o pentagrama do qual não costumava se separar nem para dormir, o que significava que talvez estivesse se esquecendo de Faná. Talvez estivesse na hora de Seida revelar para o Béli-Mor que o amava, não como uma amiga, mas como uma amante. Amava-o há muito tempo, mas sabia o quanto ele amava aquela, mesmo depois de sua morte. Logo ele voltou, e comeram animadamente, beberam, e riram até o fim da noite. Téoder dormiu ali mesmo, na cama dela, segurando em sua mão.

IV Quase todos os moradores de Catebete acordaram animados no 51 de protomês — aquele que lhes dava segurança, o discípulo de Alil, Grande Téoder, o Béli-Mor, estava de volta. Nem mesmo o “espetáculo” do dia anterior à volta de Téoder fora tão significativo quanto esse evento. Muitas vozes furtivas sussurravam que ele era um Filho dos Titãs, apesar de todos que serem pegos dizendo isso serem prontamente executados por negarem a autoridade da Deusa. Entretanto, quase todos os telapuros e mádis — com exceção dos invejosos — tinham extrema admiração pelo filho de Odel, e pensavam o mesmo que os aldeões, poetas, músicos e toda a sorte de pessoas que não eram militares. O dia amanheceu nublado, e talvez estivesse refletindo a confluência de opiniões diferentes que residiam no castelo de Quetabel. Ela, já cansada de esperar, resolveu realizar o conselho neste dia mesmo. Mandou que os criados avisassem a todos os bélis que ali estavam, e então um banquete seria preparado no Salão de Reuniões; depois de comerem, a reunião seria iniciada. Luredás, que falava com Hessêni, ficou sabendo disso, e resolveu ir buscar Téoder para ver Arion depois das discussões. Quetabel ficou olhando o alvorecer da capital atalai e o início do movimento depois de uma noite de bebedeira enquanto os bélis iam entrando para a reunião. Astarote, Oritai, Etael, Ireá e Ofis também estavam ali, encapuzados e com uma sombra caindo sobre os seus rostos, e conversando num baixo tom. Logo eles começaram a chegar, os que tinham vindo: Sólen, de Porto da Vitória; Hessêni, de Ancatébia; Semer, 314

ERIC MUSASHI


de Anátis; Selmalin, de Colinas Azuis; Ardra, de Terras Altas; Hári, de Porto da Neblina — Colinas Azuis, Terras Altas e Porto da Neblina são três vilarejos da região de Melcártis, próximos das Montanhas Brancas e do Mar Amulcum —; e esses foram os primeiros. Depois chegaram Seida, de Acaldã, Téoder, e Nassá, de Melcártis. Enquanto entravam juntos, Nassá parou o Béli-Mor: — Ontem o senhor chegou, mas não tive a oportunidade de conhecê-lo melhor, já que da outra vez sequer nos falamos — disse ele. — Você é um béli, isso posso ver — disse Téoder. — Mas de onde? — Sou Nassá, o béli de Melcártis. É um prazer estar com o senhor, que sobreviveu ao Vale e salvou minha cidade. — Obrigado — disse Téoder. — O prazer é meu, bravo béli. Então eles se sentaram. Depois de algum tempo, o desjejum foi servido. Quetabel logo saiu da sacada, indo se sentar com todos. Ninguém mais chegou, e a menos que tivesse ocorrido um grande imprevisto na estrada, não chegaria mais. Ao terminarem de comer, água foi servida para todos; deviam estar sóbrios para discutirem um assunto de tamanha importância. A Rainha se levantou. — Vejo que vieram muito menos do que eu imaginava ou esperava. Há dezenas, talvez centenas de pequenos centros nas regiões das grandes cidades, isso sem falar nos incontáveis vilarejos; seria bom que seus bélis ainda respeitassem a sua Deusa e viessem até aqui. Será que já se sentem todos menores que os bélis mais eminentes de Atala? — ponderou ela. — Mas que seja! Creio que ninguém mais chegará; então que se inicie o... — Desculpe-me! — exclamou Escleros, entrando no salão. — Eu não imaginava que o conselho se daria hoje, e esqueceram de me acordar. — Eu o conheço... — disse Téoder. — Que cidade está representando? — Meu nome é Escleros, e sou o béli de Jatitã! — disse com firmeza, encarando o Béli-Mor, e vários olhares surpresos foram trocados. Sólen e Astarote sorriram. — Agora quero que cada um se levante e se apresente, partindo do que está à minha direita, e indo até o que se põe à minha esquerda — disse Quetabel.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

315


— Eu sou Sólen, filho de Seólen, de Porto da Vitória. Há muito o que falar sobre a minha cidade, e sobre o quanto ajudamos o Reino de Atala a crescer nesses últimos tempos, mas este não é o momento oportuno. — e ele se sentou. — Sou Hessêni, filho de Vólnai, o béli de Anca... — Não devia ousar se intitular filho de Vólnai! — exclamou Escleros, levantando-se também e encarando Hessêni, uma vez que estavam de frente um para o outro. — Você, diferente dos outros filhos dele, não é nem metade do guerreiro que ele foi! — Pois fique sabendo, meu irmão bastardo — disse Hessêni, e novamente muitos foram pegos de surpresa —, que seu... como você diz mesmo? Que seu “grande guerreiro” Nagos foi morto por um de meus imanes! Escleros buscou o cabo da espada, apontando Dalhebal para o seu meio-irmão. — Ádiler vai pagar muito caro por isso, mas antes eu quero a sua vida! — Não foi Ádiler quem o matou — disse Hessêni, mantendo a calma. — Basta! — vociferou Quetabel. — Será que vocês não têm respeito? Se possuem diferenças, que as acertem em outra hora, e, de preferência, depois da missão a qual pretendo enviá-los. — ela voltou a se sentar. — Continuem com as apresentações. — Minha senhora, sou Semer, filho de Bazé, e béli de Anátis. Apesar das lutas difíceis que possuímos, por sermos vizinhos das Montanhas dos Dragões, resistimos com grande força, e devemos um pouco aos guerreiros de Forte Esperança, pela ajuda concedida no passado. Aqui estou eu, e espero ser útil à Vossa Majestade. — Depois ele se sentou, e uma lança matadora de dragões repousava ao seu lado, com pedras azuis como a sua túnica e os seus olhos. — Eu sou Selmalin, de Colinas Azuis, vilarejo que não aparece em mapa algum, senão nos mapas de Melcártis, assim como Terras Altas e Porto da Neblina. Meu povo é alheio aos assuntos do resto do Reino, bem como os de outros pequenos vilarejos espalhados pelo continente. No entanto, somos guerreiros honrados, e quando recebemos o chamado do senhor Nassá, então para cá viemos, dispostos a morrer pela RainhaDeusa. — Enquanto ele falava, Ardra e Hári, bélis de Terras Altas e Porto da Neblina, respectivamente, mantiveram-se de pé também. Selmalin era 316

ERIC MUSASHI


um jovem de olhos azuis e cabelos vermelhos, bem como os outros dois, e tinha imponência, apesar de ser de um pequeno vilarejo. — Dar-me-ei o direito de apresentar os dois, pois somos íntimos, e eu fiz o chamado para que viessem. Esta é Ardra, a béli de Terras Altas, vilarejo vizinho do meu, e até pensamos em fundir nossas terras, originando uma nova cidade importante.Temos um filho, e ele é um imane de Colinas Azuis, que também veio conosco até a capital. Tem quatorze anos, mas é um admirável guerreiro. — Quase todos riram neste ponto, exceto Escleros, Téoder, Seida e Nassá. — E este outro é Hári, o béli de Porto da Neblina, que fica nas proximidades do Mar Amulcum. Ele é um grande amigo, e também tem notícias que podem ser importantes, dependendo do que este conselho irá discutir. — Agradeço a detalhada apresentação, Selmalin — disse Téoder. — Jamais fui para seus vilarejos, mas tentarei ir o mais cedo possível. — Eu acho que seria melhor que não interrompesse, Béli-Mor — disse Astarote, o único sacerdote que não temia Téoder. — Prossigam — foi tudo o que disse Quetabel. — Eu sou Nassá, filho de Eston, o béli de Melcártis. Durante muito tempo minha cidade se contentou em fornecer as melhores armas para toda Grabatal — neste momento, Escleros deu uma pequena risada —, mas vejo que é chegada a hora em que mostraremos outra habilidade nossa. Somos conhecidos pela bravura diante da morte, e não desapontaremos ninguém, nem mesmo o Béli-Mor — concluiu o béli, que era alto e robusto, com cabelos ruivos e uma barba da mesma cor. — Eu sou Escleros, filho de Vólnai — e ele olhou para Hessêni, com um sorriso sarcástico no rosto. — Depois da morte do béli Sevijá, de Jatitã, nas mãos de dois criminosos — desta vez foi para Téoder que ele olhou —, eu assumi o posto de béli naquela cidade, como era de se esperar. Muitos podem dizer que Melcártis ainda produz as melhores armas de Grabatal, entretanto, meu irmão e eu descobrimos as técnicas perdidas de Antel, e se quiserem comprovar, podem olhar para a minha Dalhebal. — Então colocou a espada sobre a mesa. — Nunca me importei muito com politicagens, mas se querem conquistar as Terras Desconhecidas, minha espada trabalhará para vocês. — sem dúvida, foi prepotente, mas era essa a imagem que ele queria passar.Terminando de falar, sentou-se. — Eu sou Seida, filha de Zafarin, a béli de Acaldã — disse a amiga de Téoder, pondo-se de pé, como era de se esperar. — Assim como o senhor Nassá, estou disposta a provar que na minha cidade também há guerreiros

OS HERDEIROS DOS TITÃS

317


— e guerreiras — corajosos, dispostos a morrer em combate. Sim, somos famosos pelos estudos, mas não é a nossa única qualidade. — Todos os convidados se apresentaram — disse Quetabel. — Estes são Ofis, Ireá, Etael, Oritai e Astarote, meus sacerdotes. — ela apontou para cada um enquanto falava. — E este é Téoder, filho de Odel, o Béli-Mor. Depois de mim, ele e meus sacerdotes são autoridades aqui, acima de vocês. Portanto, devem tratá-los com o maior respeito possível. — Nem eles próprios se respeitam... — ironizou Escleros, e alguns contiveram o riso — incluindo Téoder. — Mais cautela ao modo como fala comigo! Mas não o culparei; faz pouco tempo que Jatitã abriu os olhos para a verdade. No entanto, agora que sabe quem sou eu, e como posso destruí-lo num sacar de adagas, meça suas palavras. — ele levantou as mãos, num gesto de desculpas. — Agora podemos começar? — Perdão, minha Rainha — disse Hessêni —, mas eu gostaria de lhe fazer um pedido. — Quetabel se voltou para ele. — Há lugares vazios, e eu acho que seria melhor se alguns imanes pudessem entrar. Creio que não sou o único béli que tem um imane de total confiança. — Tem razão, béli de Ancatébia — disse ela. Um tempo se passou, até que todos fossem chamados. Os que entraram depois foram: Namior, a mando de Sólen; Ádiler, chamado por Hessêni; Tefer, por Semer; Veilin, por Selmalin e Ardra; Berânu, por Nassá; Sile, por Seida; e Adum, por Téoder. Muitos podem ter estranhado o fato de Escleros não ter chamado o seu irmão, mas ele tinha uma boa razão para isso; nesta hora,Tromos devia estar de olho em Luredás, esperando que o lirista encontrasse Arion. O conselho enfim começou, e o primeiro a falar foi o Sumo-Sacerdote Astarote: — Primeiramente, tomarei a palavra para falar o motivo de vocês todos estarem aqui — e começou a andar ao redor da mesa. — Há muito tempo viemos tentando conquistar novas terras, uma vez que as nossas não mais são generosas, e as chuvas passaram a ser escassas. De início, fomos indo para o boreal e o nascente, e encontramos Melcártis, a cidade lendária fundada por Anágni; erguemos Acaldã, atualmente centro do conhecimento no mundo; e também encontramos a Vila de Lótus, que agora é Anátis. Essa história costuma ser contada para todas as crianças pelos seus pais, e capítulos como as duras batalhas contra os dragões, tidos por 318

ERIC MUSASHI


lendas nos dias atuais, realmente ocorreram, e Forte Esperança e Anátis tiveram um papel muito importante. Mas sejamos racionais: não há como vencer os dragões e tomar seus domínios nas montanhas. — O tempo passou, e quando começamos a conhecer mais sobre o nosso continente, descobrimos que não havia mar, como imaginávamos antes, além da Cordilheira Roana, do Vale dos Lobos, do Pântano Tanistus, dos Bosques Inundados e do Deserto Dezrã — prosseguiu, apanhando o seu copo e bebendo alguns goles d’água vez ou outra. — Lutamos, tentamos os mais diversos caminhos, mas não conseguimos. O Vale dos Lobos se mostrou uma estrada para a morte; a Cordilheira Roana, vencida com dificuldades há muito tempo, é infestada de dragões, como já sabíamos — e só deu em poucas terras inférteis; nos Bosques Inundados, não podemos ir de barco, pois há galhos e árvores demais no caminho, e as águas têm a profundidade da altura de um homem, impossibilitando também a travessia a pé; e, por fim, o Deserto Dezrã termina em montanhas intransponíveis. Já era a hora de desistir, não é mesmo? Não, eu respondo. Fui até Melcártis, e de lá parti para o Deserto Dezrã. Queria atravessá-lo, pois talvez houvesse um vale além daquele lugar triste e morto, pelo qual pudéssemos passar e conquistar as Planícies Proibidas. No entanto, fui desviado do caminho por uma tempestade de areia, e acabei indo parar ao lado dos Bosques Inundados, quase no seu fim. Percebi que ali havia o caminho que eu tinha procurado! Voltei para cá, e comuniquei à Rainha a minha descoberta. Este é o motivo do conselho estar se dando, e agora decidiremos qual será o melhor modo de fazermos esse caminho e quantos homens irão. — Ao terminar de falar, Astarote se sentou. Muitos começaram a cochichar algumas coisas; Sólen com Namior, Hessêni com Ádiler, Semer com Tefer, Selmalin com Ardra e Veilin, Nassá com Berânu e Seida com Téoder. Os Quatro não disseram nada, e Astarote bebia enquanto esperava que novamente a Rainha pedisse silêncio. Escleros, que estava ao seu lado, cutucou-o: — É de se admirar que tenha enfrentado o Deserto Dezrã — disse. — Acho que nem mesmo se Animelcar estivesse por lá eu teria forças para atingir o fim daquela terra morta. — Eu não esperava mesmo ouvir isso de você — disse Astarote, sinceramente. — Parecia ser apenas um homem inconsequente e prepotente. Mas não. Você é Egle, mas suponho que não deseje mais ser chamado assim. Agora é Escleros, e merece ser chamado Filho de Antel, Filho do Filho dos Titãs. Você e seu irmão encontraram as técnicas perdidas, não

OS HERDEIROS DOS TITÃS

319


é? Eu, Astarote, não preciso de aliados, mas jamais recusaria uma amizade com alguém como você. — E assim, vagarosamente, primeiro demonstrando não estar interessado no valor do béli de Jatitã, e depois conquistando a sua confiança com adocicadas palavras, Astarote foi inclinando a vontade de Escleros para si. — Agora me diga: o que sabe sobre Animelcar, a Dádiva da Tempestade? — Eu acho melhor conversarmos depois sobre isso — respondeu Escleros, apontando para Quetabel, que tinha se levantado uma vez mais. — Além disso, há gente demais aqui, e apesar de eu crer que você deva conhecer este segredo, outros podem ouvir. — Agora — disse a Rainha — creio que devamos prosseguir. Astarote já revelou o motivo deste conselho estar se dando, e não chamei todos vocês até aqui para que ouvissem a história que ele contou. Podem ter certeza, meus filhos: uma viagem os aguarda. Será uma jornada decisiva, onde avançarão para as Planícies Proibidas, e as conquistarão. Não perecerão nas Montanhas dos Dragões. Não mais serão comida dos peixes do Rio das Sereias ou dos Lobos do Vale, naquele caminho estreito e arriscado. E não morrerão de fome nesta terra infértil. O tempo é chegado, e, ajudada pela sabedoria dos sacerdotes e dos maiores bélis do Reino, decisões importantes serão tomadas. — Com sua licença, minha Rainha, mas de que tipo de decisões a senhora está falando? — perguntou Nassá. — Todas as possíveis — respondeu Quetabel. — Será uma viagem longa, onde nossos homens estarão se desviando dos perigos. Desviando-se das montanhas, atravessando o mais rápido possível o deserto e enfim indo além dos Bosques Inundados. Por não ser uma simples jornada como a de Catebete até Acaldã, por exemplo, deverá ser minuciosamente planejada. Deveremos decidir se todos poderão partir de Catebete, ou se haverá mais de um ponto de encontro. Não sou guerreira, e eis a razão de vocês terem sido chamados para me auxiliar. — Perdoe-me pela interrupção, minha Deusa — disse Sólen —, mas, vendo que mesmo sendo o caminho menos perigoso ainda não será simples, não posso me omitir. A senhora permitiria que eu falasse sobre os triunfos navais de Porto da Vitória, e sobre as terras que encontramos? — Não sei o que os triunfos de Anzafassuí teriam a ver com a invasão das Planícies Proibidas — disse Quetabel, com o seu velho costume de diminuir os feitos dos reis e heróis do passado, principalmente agora que 320

ERIC MUSASHI


não era mais tão bem vista pelo povo, e eles voltavam a contar as histórias de Anjifum, Turaquê, Anzafassuí, Zurissabaz e tantos outros. — Já sei sobre Grabônsi e a Perlândia. Veja aquele mapa — ela apontou para o mapa que estava na parede —; sim ele cumpriu o seu papel, mas agora é momento de brandir espadas, e não de se perder pelo mar. Entretanto, existe algo em mim que não me deixa impedi-lo de falar. Talvez tenha algo importante a dizer, béli Sólen. — Tenho certeza de que não se arrependerá por isso, Majestade — disse Sólen. — Há muito a se dizer, e me perdoe pela correção, mas não falarei sobre os feitos de Anzafassuí. Falarei sobre os feitos de Sólen, Namior e seus marinheiros. Falar-lhes-ei sobre o Mar Sólen, o Mar Sombrio, o Mar Côldius, o Rio Ocosseria e Ticêmis, a Terra das Maravilhas. — Ele levantou, e todos ficaram curiosos, até mesmo Téoder. — Acharam que eu era um louco quando me arrisquei para as terras do Nascente. “Não há portulanos sobre aqueles mares, e tentar encontrar Ticêmis dali acabará numa luta mortal contra homens sem cultura, afinal, não existe passagem fluvial para lá”, era o que me diziam, pois de acordo com as informações de Anzafassuí e de navegadores de até quinhentos anos atrás, não havia mesmo — e, apesar de dizerem que encontrei Ticêmis, tal feito não é meu: na verdade íamos até lá pela Perlândia e pelo Deserto dos Nômades há centenas de anos, apesar das nossas relações com eles serem escassas naqueles tempos. Entretanto, foi-me revelado em visões que eu deveria ir até lá: “Lá, para o nascente; sem medo, só o mar / homens que não se arriscam, tesouro algum podem encontrar”, era a canção que oito jovens, dispostas formando um círculo ao meu redor, cantavam no meu sonho. Poucos aceitaram tal empreendimento, e o meu mestre estava velho e fraco. Assumi todos os riscos, e se eu encontrasse algo, seria o escolhido para ser o seu sucessor. Foram dias terríveis, tão terríveis que inclusive nos perdemos na contagem do tempo, visto que aqueles mares eram ignorados e não aprendi nada sobre eles. Até que, como que por magia, encontramos forma de vencer os desafios do mar dos pelasgos, e, exultantes, meus homens o renomearam Solen. Quem diria? Hoje temos possessões permanentes por lá! — Ele sorriu, cheio de si, e então prosseguiu. — Seguimos adiante por um estreito até um novo mar de águas turvas, que chamamos Sombrio. Ele era conhecido como Núrio de relatos dos poucos sobreviventes que se aventuravam por lá e de piratas capturados, e até duvidávamos de sua existência, mas nos dedicamos ao trabalho de mapeá-lo. Cheguei a

OS HERDEIROS DOS TITÃS

321


cogitar que o Mar Núrio fosse o tal Côldius que margeava suas terras e sua capital Charcala, porém precisamos aportar e conhecer o território para descobrir que não era essa a resposta. Um planalto impedia que os dois mares fossem um só, e, após transpô-lo, nos deparamos com o belo e imenso Côldius — e além dele, Ticêmis livre para nós. Durante alguns anos por lá ficamos, e firmamos acordos melhores não mais tendo a Perlândia como intermediária. Nesse período, inclusive, cavamos um canal ligando dois rios do planalto, uma rota permanente por água para Ticêmis, que seguimos usando desde então. — É uma bela história — disse Astarote. — Mas vejo que a Rainha estava errada. — A história ainda não acabou, senhor sacerdote — disse Namior, levantando-se. Sólen apenas sinalizou, pedindo que se sentasse. — Na verdade, apesar de Ticêmis ser uma grande aliada de Porto da Vitória, e, portanto, de toda Grabatal, de lá apenas trazemos belezas e confortos. Entretanto, não é de lá que vêm as melhores descobertas. De fato, além da Perlândia e de Ticêmis, nos confins do mundo oriental, esconde-se Maral, com seus verdejantes campos alagados de arroz, suas vestes brilhantes de seda, e seus vilarejos de cortesãs exóticas e assassinos eficientes. Vejam o magnífico presente que me deram, em nossas negociações! — exclamou o béli, pondo-se de pé e indo até um canto vazio da sala. De um saco de couro junto ao seu corpo, ele despejou um pó escuro no chão, e se afastou, ficando ereto de costas para a mesa e de frente para o quer que estivesse a fazer. Esfregando pedaços de madeira, produziu fogo, que atirou na direção do pó preto. De repente, para a surpresa de todos, assim que o fogo entrou em contato com a mínima quantidade de pó, houve uma explosão de som alto e agudo, e alguns gritaram, assustados. — Surpresos? Os povos daquele país fazem explodir no céu noturno luzes em suas comemorações, mas pretendíamos estudar uma forma de utilizar essa tecnologia em nossas naus, ateando fogo nas inimigas à distância, sem precisar abalroá-las. Chamamos este pó de maisanúria, porém é difícil consegui-lo, e precisamos de bastante a fim de aperfeiçoar nosso invento. O fato é que essa é só uma das coisas estranhas que podemos encontrar no além-mar. — Posso estar soando impaciente, mas poderia chegar logo ao ponto onde tem a ver com o Conselho dos Bélis? — perguntou Quetabel. 322

ERIC MUSASHI


— Sim, Vossa Majestade. — Sólen se sentou novamente, e guardou o saco de couro com o resto da maisanúria. — Mais tarde, empreendemos uma nova viagem, dessa vez, para o poente, com o intuito de mapearmos as ilhas que lá se encontram, terras de onde, há séculos, trouxemos o milho. E, surpreendentemente, o continente parece circundar o mar, umas dez vezes maior do que supúnhamos. O mapa que trago aqui — disse ele, e desenrolou um pergaminho amarelado, colocando-o sobre a mesa; muitos se levantaram e se inclinaram para ver — não mostra tais terras, que chamamos de Praias Belas, ou também de Leongraba, a Nova Terra. Estamos planejando novas cartas, porém o mapeamento está demorando mais do que previmos, e só pequenas regiões, mais específicas, foram colocadas no papel. — E o que há de tão importante lá? — perguntou Téoder. — Muitas terras verdes, Béli-Mor — respondeu o béli de Porto da Vitória. — Mais do que suficiente para todos nós. Lá, vivem povos de pele morena e cabelos negros e lisos, parecidos com os trigueiros — e talvez seja de lá que vieram. Apesar de eu não ter ficado tempo suficiente para acompanhar o trabalho de catalogar tribos e povoados, pois a minha cidade me chamava, conheci-os um pouco. Como na época dos navegadores do passado, plantavam milho em extensos campos; contudo, eram tão poucos para toda aquela imensidão e abundância! Não pude deixar de pensar em Atala, na crise de produção e em nossos problemas. Parecendo ter chegado ao ponto, Sólen colocou os cotovelos sobre a mesa e respirou fundo, dizendo: — Sei o quanto é importante a conquista das Planícies Proibidas, mas há outros meios de termos terras férteis uma vez mais. Como eu disse, as terras do Poente são imensas, e não conseguimos encontrar o fim do continente até hoje. Seria melhor irmos até lá, abandonando a terra dos nossos antepassados. Não veio nosso povo de outro lugar, a Terra dos Titãs? O milho, que tantos comem, e o arroz plantado no Poente, não foram trazidos do além-mar? Nós nascemos para viajarmos, e o mundo deve ser nosso! Nem mesmo ele previu o quanto seria polêmica a conclusão de seu discurso. Para o béli, era um pensamento lógico e uma solução natural para os problemas atuais dos atalais. Mas não era tão simples assim deixar para trás os templos de Jatitã, o castelo de Catebete e a biblioteca de Acaldã.Ao invés de cochichos, agora muitos conversavam normalmente, e mesmo tendo poucas pessoas ali, uma confusão logo acabaria se dando.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

323


Inesperadamente, a porta se abriu com muita força; provavelmente um potente chute. Todos ficaram em silêncio instantaneamente, e ali estavam Silas, o mádi do Portão Austral, e Louã, o seu filho mais velho. Silas vestia a sua armadura com pedras etéreas, e empunhava a sua espada banhada em ouro. Louã tinha a sua cimitarra em mãos. — Mas o que significa isto?! — gritou Quetabel. — Quanta insolência! Não vê que está se dando um conselho estritamente sigiloso aqui, mádi do Portão Austro! Não é porque o Béli-Mor lhe dá mais atenção do que devia é que você pode ir entrando onde bem entender, seu... — Assassina! — gritou o mádi, e em seus olhos se via o mesmo brilho que se vê num lobo quando vai atacar alguém que invadiu o seu território. — É isso que é! A senhora matou... — então começou a chorar, soluçando — ...matou a minha filha! — Após falar isso, tanto ele como Louã partiram para cima da Rainha-Deusa, e Téoder e Ádiler trataram de impedi-los. Com um rápido golpe, Ádiler derrubou a cimitarra do jovem, e empurrou-o para o lado, agarrando-o pelas costas, e imobilizando-o. — Mantenha a calma, Silas! — exclamou Téoder. Mas o mádi estava fora de si, e atacou o Béli-Mor, aquele que o tinha ensinado a lutar. Uma atitude nada sábia. O golpe cruzado visava o pescoço do alvo, um alvo sem rosto, quase sem forma diante daquele homem alucinado. Téoder se defendeu com a sua espada, sacada com extrema rapidez. Assim como o golpe de Silas foi, ele voltou, e o filho de Odel tinha usado a sua mão esquerda, a mais hábil. Então ele socou o estômago do mádi, agora com a mão direita. — Espere, o que quer que tenha acontecido, será um ato imprudente atacar a Rainha! — alertava Téoder, até que, aos poucos, Silas foi voltando a si. — Agora, Silas, que está mais calmo, explique-se! — disse Téoder. Silas se sentou na cadeira do Béli-Mor, uma vez que este a cedeu para ele. Bebeu um pouco d’água, e começou a falar. — Eu não sabia que ela era minha filha... — Ádiler percebeu que lágrimas também afloravam no rosto de Louã. — A mãe dos dois morreu há muito tempo, e eu não sabia mesmo. Louã e ela eram irmãos por parte de mãe também. Então, de repente o meu filho chega até o meu posto em prantos, dizendo que sua irmã foi morta, dada em sacrifício. Eu não acredito! Descubro que tenho uma filha, e logo depois me contam que foi morta... — Ele voltou a chorar, e Téoder, levantando-o da cadeira, abraçou-o. — Ela acabara de completar o duplo-dois — disse Silas, em meio a lágrimas. O duplo-dois era quando 324

ERIC MUSASHI


um atalai se tornava maior de idade, e isso acontecia aos dezesseis anos. Eles consideravam um ciclo cada sete anos, portanto, chamavam a transição da infância para a maioridade de duplo-dois, uma vez que eram dois ciclos e dois anos (14+2). Era a idade em que um pai mais tinha contato com um filho — ou uma filha —, pois antes o contato era demasiadamente maior com a mãe. — Eu a tinha escondido a mando de minha mãe — disse Louã, enfim falando algo. — Ela não queria que Púrdia fosse criada solta por aí. Mamãe também queria livrá-la dos constantes... sacrifícios. — Certamente, para ele foi muito difícil pronunciar a última palavra. — Bom... — disse Astarote, levantando-se. — Agora que a história já foi contada, para matar a curiosidade de todos, estes dois homens devem ser punidos por terem tentado ferir a Deusa. Não é, Béli-Mor? — Eu não concordo — disse Téoder. — Silas estava fora de si, pude ver isso em seus olhos. E creio que o mesmo ocorreu com o jovem Louã. E assim como Silas não sabia que ela era a sua filha, a Rainha também não devia saber. Mas não concordo com sacrifícios humanos. Sei que não sou eu quem deve concordar ou não; meu dever é apenas cuidar da segurança do povo. — Um crime desses deve ser punido com a morte! — manifestou-se Escleros. — Assim como o de Arion, que matou Sevijá! — Sim, ele sabia que Arion era filho de Téoder.Agora demonstrava o quanto tinha confiança em si mesmo. — A Rainha não quer mais derramamento de sangue, não é mesmo? — perguntou Téoder, virando-se para Quetabel. — Sim, ele está perdoado — disse. — Mas agora o conselho entrará em recesso por meia hora, para que acalmemos os ânimos. Podem dar uma volta pelo castelo, mas estejam aqui na hora certa, pois não esperarei por ninguém. — ela terminou de falar e todos se retiraram, com exceção de Téoder, Seida, Ádiler, Louã, Silas e Quetabel.

V Já fazia um bom tempo que Áigon estava ali, sentado no corredor, olhando para a estátua de Anjifum, com seus cabelos azuis, feitos de safira. Se Luredás saísse do quarto, teria que passar por aquele lugar, a menos que não fosse deixar o castelo. E Áigon acertou, pois logo ouviu alguns passos,

OS HERDEIROS DOS TITÃS

325


e se afastou, entrando num corredor lateral. O jovem músico cruzou o corredor, que agora estava à frente do filho de Vólnai, e, dali em diante, passou a ser seguido. Enquanto ele andava pelas ruas da cidade, várias vezes se voltava para trás, mas apesar de seguir alguém não ser uma das habilidades de Áigon, ele se deu bem. Havia muita gente nas ruas neste dia, uma vez que ventos frios vindos do norte fizeram com que quase ninguém fosse trabalhar no campo. Aproveitando-se disso, o perseguidor se misturou na multidão, e Luredás nada viu. Era desperto para a Voz da Natureza, mas a sensação de estar sendo seguido não serviu de nada desta vez. Enfim Luredás chegou à casa de Silas. Hesitou por um instante, e tinha quase certeza de que olhos os perseguiam; olhos vermelhos, não tão sagazes, mas ainda assim, espreitadores. Subiu os degraus, mas não precisou entrar, pois Arion estava saindo, e se abraçaram fortemente. Instintivamente, Áigon puxou a espada da bainha, e deu dois passos pesados para frente, mas então se conteve. Escleros quer a vida de Arion, ele pensou. Saiu dali o mais depressa possível, e esperava que o conselho já estivesse terminado. — O que houve, Luredás? — perguntou Arion. — Seu pai chegou — respondeu o tuata. — Ele chegou ontem à noite, e eu vim lhe perguntar se posso dizer para ele que você está aqui. Arion se sentou no degrau. — Meu pai passou por esta rua ontem — ele disse, com um tom de tristeza. — Eu até o chamei, mas tive medo de reencontrá-lo. Já faz três anos que não nos vemos, Luredás, e eu posso até estar soando idiota, ou mesmo covarde, entretanto, nem sei qual será a minha reação quando o momento fatídico chegar. — Só há um modo de saber — disse Halá, sentando-se ao seu lado. — E se não o fizer logo, não fará nunca. Não pense no amanhã; e lhe digo isso por experiência própria. — Talvez tenham razão, meus amigos. Chame-o, Luredás, por favor — disse Arion. Halá colocou a mão sobre o ombro de Arion enquanto eles observavam Luredás, que se afastava. — Eu vou deixar vocês dois sozinhos, quando ele chegar. Eu posso sair com o Valente? — Arion apenas balançou a cabeça, autorizando. Halá colocou os cabelos dele — que já estavam além dos ombros — atrás da orelha direita, e ele olhou para ela, que tinha um sorriso confortador. Nesse tempo todo em que esteve com ela, Arion 326

ERIC MUSASHI


conseguiu trazer de volta a menina que morava dentro da sofrida desertora. Oculta nas escamas deste rude e selvagem dragão, mas ainda viva. Assim ficaram por mais algum tempo, até que ela se foi. Ao passar por Arion, Valente parecia sentir o seu desequilíbrio emocional, e não queria deixá-lo sozinho — mas não teve escolha. No castelo,Téoder e os outros já haviam deixado o Salão de Reuniões. Apenas conversaram por um curto tempo, no qual Silas e Louã juraram não tentar nada contra a Rainha, e Téoder fez com que ela pedisse desculpas para ele, alegando que não sabia que era a sua filha Púrdia. Lá fora, o Béli-Mor foi procurar por Astarote, pois tinha estranhado o fato dele não ter ficado para o acerto de contas com o mádi e seu filho. Após caminhar um pouco com Seida, viu-o — através da janela do quarto da béli — lá embaixo, ao lado de Escleros, pelo que parecia — suas roupas vermelhas eram inconfundíveis. — Sinto pena de Silas — disse Seida. — Eu perdi minha mãe há muito tempo, e não tenho filhos, mas posso imaginar o quanto ele está sofrendo. Não concorda, Téoder? Téoder? — ela se virou e viu o seu amigo olhando pela janela, e não dava atenção para o que ela dizia. Aproximou-se dele, e, mesmo sendo baixa, colocou o rosto sobre o seu ombro direito, ficando na ponta dos pés. — Você está aqui, meu amigo? — Ahn? Ah, sim, é você, Seida — corou. — Eu estava olhando lá para baixo. Acho muito estranho Astarote e Escleros terem feito amizade tão depressa. Seida olhou, e eles ainda estavam lá. — Você teme pelo seu filho, não teme? — Por que fala isso? — Eu o vi — disse ela, e se sentou na cama novamente. — O jovem Arion. Ele tem os seus olhos, sabia disso? — ela sorriu para ele, mas viu que Téoder queria um relato conciso neste momento. — Ele estava aqui, junto com um amigo chamado Luredás, hábil na lira, pelo que me disseram. Na verdade, os dois vieram com Ádiler e Hessêni, e pareciam ter um relacionamento íntimo. Hessêni, aliás, teve a sua vida salva por Arion quando Nagos tentou matá-lo. — Então o imane do qual Hessêni falou era... — ...O seu filho. Mas não se iluda: ele não se tornou um imane de Hessêni. Pelo menos não por enquanto.Arion quer ser livre, e também não aceitaria servir a Rainha que... bom, você sabe.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

327


— Foi um erro — disse Téoder, sentando-se também e abaixando a cabeça. — Se ele tivesse se tornado um imane de Hessêni, Escleros não tentaria matá-lo. Talvez até tentasse, mas antes disso teria que lutar contra Hessêni, Ádiler e eu. — E eu! — exclamou Seida. — É, mas ele não o fez, e agora estará em sérios apuros. Preciso vê-lo! — Tenha calma, meu Téoder — disse Seida, segurando-o pelo braço. — O conselho logo recomeçará, e será muito suspeita a sua ausência. Além disso, Escleros também estará lá. Vamos voltar, e depois poderá falar com o seu filho. Eu sei onde ele está. Téoder nada disse, mas o seu peito parecia estar sendo apertado; uma aflição pelo destino do filho. Perdera a mulher que amava mais do que a si próprio de forma trágica, e não permitiria que o Arion morresse assim também. Inocente, não sabia que estava além de sua vontade ou de suas forças a segurança de um jovem, um jovem que já havia feito o duplo-dois, e que estava solto no mundo. Já de volta, o conselho prosseguiu. Antes, no entanto, eles comeram; maçãs, pães e vinho tinham sido colocados na mesa, servidos para cada um dos que estariam ali. Todos estavam com fome, e também cansados, não só física, mas também psicologicamente, por tudo que tinha acontecido neste dia. Algum tempo depois, várias servas entraram e retiraram os pratos e os restos, e novos recipientes com água foram trazidos. De todos, Téoder foi o único que não comeu. Nassá e Selmalin, crendo que seria desrespeitoso comer enquanto o Béli-Mor não comia, pararam instantaneamente, avisando Berânu, Veilin e Ardra. Com a saída das empregadas do castelo, Quetabel se levantou, e começou a falar: — Enquanto vocês espaireciam — disse —, Astarote e eu estávamos conversando, e decidimos prosseguir com o plano de invadir as Planícies Proibidas. — Quando ela disse isso, Sólen se levantou, mas ela apenas acenou, pedindo que ele se sentasse. — A ideia do béli Sólen é muito interessante, e agradecemos pelos serviços prestados por Porto da Vitória, mas seria muito triste deixar nossas cidades para trás, e só o faríamos se fosse estritamente necessário. Tentaremos uma vez mais; digo-lhes novamente, e, caso o fracasso apareça de novo, então faremos o que ele pede. 328

ERIC MUSASHI


Entretanto, já que tudo está decidido quanto ao que faremos, deveremos planejar o modo como faremos. Alguém tem alguma sugestão? Um silêncio se deu no lugar, e todos olhavam para os lados freneticamente, esperando que algum deles trouxesse uma solução. — Creio que levaria um mês, ou até mesmo mais, dependendo das condições impostas pelo Destino, para que os idabarás levassem as mensagens para as cidades mais distantes, e para que as tropas chegassem até aqui — disse Ádiler, depois de algum tempo. — Entretanto, senhor, algumas viagens poderiam ser inúteis, como a dos meus homens, uma vez que teríamos que sair de nossa cidade, para depois voltarmos até o Deserto Dezrã, que fica próximo de nossas terras — disse Selmalin. — Antes de decidir quais tropas viriam até aqui, nós precisaríamos decidir qual caminho será feito. — A meu ver — disse Téoder, levantando-se e chamando a atenção de todos, não só pela sua posição social, mas também pelo seu carisma —, Melcártis é um caminho pelo qual deveríamos passar, de uma forma ou de outra. Ela está localizada no ponto de encontro dos Bosques Inundados com o Deserto Dezrã, se é que existe esse ponto de encontro. Eu não sei qual é a condição econômica da cidade de onde vêm as melhores armas do Reino neste momento, mas, se puderem hospedar-nos, seria de grande ajuda. — Poderíamos sim, com toda a sua licença, Béli-Mor — disse Nassá, pondo-se de pé. Sua voz era grave, e parecia ser um homem robusto e bruto, um verdadeiro guerreiro. Sim, tinha educação e respeito pelos outros, mas seria alvo dos olhares dos nobres numa festa, uma vez que a maioria dos bélis e imanes do Reino tinha etiqueta, pelo que pode se dizer. — Isso até seria melhor para nós e para os nossos amigos de Colinas Azuis, Terras Altas, Porto da Neblina e outros vilarejos, que não puderam mandar seus bélis para cá, mas que ajudarão com telapuros da forma que lhes for permitida. — Que bom que este problema está resolvido — disse Téoder. — Não ainda, Béli-Mor — disse Sólen. — Sim, realmente, para eles será muito bom um ponto de encontro em Melcártis, mas e para aqueles que moram mais para o poente, ou para o boreal, como os de Porto da Vitória, Anátis e Jatitã? — Catebete será o primeiro ponto de encontro — disse Quetabel, defendendo o seu amado, mas falando de uma forma calma, para não

OS HERDEIROS DOS TITÃS

329


demonstrar o seu sentimento. — Presumo que um mês seja o suficiente para que aqueles que vêm de longe cheguem aqui. Sim, a pé, fariam no máximo quatro ruaidas, ou até um quarto de farisia; isso não colocando sua saúde em risco. Acabariam perdendo mais de um mês no trajeto. Que eles caminhem mais, para que cheguem aqui no primeiro dia de tritomês. — Seria difícil, mas os treinados pelo Punho Etéreo conseguiriam suportar — disse Ádiler. — Meus homens também conseguirão! — exclamou Sólen. — Resta decidir qual caminho será tomado — disse Astarote. Berânu tinha uma ideia, mas não queria falar. Havia tantos homens sábios e poderosos naquele lugar, e também mulheres; todos com histórias sobre eles que eram contadas em poesias ou lidas em livros, dos mais novos. No entanto, como o silêncio imperava no Salão de Reuniões, talvez pudesse ajudar: — Vocês podem ir pela margem Austral do Rio dos Bosques, uma vez que lá não passarão sede, e há alguns vilarejos pelo caminho. Assim, chegarão a Melcártis em pouco tempo, e as tropas até poderão descansar. De lá, partiremos para a grande jornada. — ele terminou de falar, e se sentou de novo, voltando a ser o jovem tímido de sempre. Nassá olhava orgulhoso para o filho, e todos os outros beberam água, crendo que o conselho já estava no fim. — Sim, é um bom caminho — disse Quetabel. — Se os bélis dos vilarejos não virão — disse Semer —, devemos decidir quais bélis ficarão no comando dos telapuros de quais regiões. É claro, todos sob o comando do Béli-Mor — completou ele, com medo de ter ofendido Téoder dentro dos seus domínios. — É interessante que os de Porto da Vitória e Anátis dividam o comando das tropas da forma que acharem melhor, os de Jatitã e Ancatébia também e igualmente com os do Nascente — disse Hessêni. — Aliás, até seria melhor que tomassem as decisões juntos, inclusive dando ouvidos aos seus imanes. É claro, tratando-se de decisões pequenas. — Eu jamais tomaria decisões com esse... esse... — Esse grande béli que é Hessêni, e que traz uma luz para um dos nossos problemas — disse Téoder, antes que Escleros pudesse completar a sua frase. — Agora só falta decidirmos quantos homens irão. 330

ERIC MUSASHI


Astarote se levantou: — De cada sete telapuros, seis partirão para a guerra. — Seis em cada sete?! — escandalizaram-se muitas vozes, algumas em uníssono, outras um pouco atrasadas; mas o ponto em comum é que todas tinham a mesma tonalidade de surpresa. — Já partiram dois de cada cinco de Catebete, ou mesmo três de cada quatro de Acaldã, e foram empreendimentos desastrosos! — exclamou Seida, levantando-se e batendo com o punho fechado na mesa. — As cidades ficarão desprotegidas demais! — Eis o motivo de todos os empreendimentos passados terem falhado — disse Astarote, com um sorriso sagaz. — Foram poucos demais. Agora que temos um caminho mais seguro, temos que ir com o maior número de tropas. Nada será capaz de nos segurar. E — disse ele, virando-se para Seida —, alega que as cidades ficarão desprotegidas, mas desprotegidas do quê? — Dos desertores, por exemplo — falou, ainda com um tom raivoso. — Eles nunca foram uma ameaça. E a decisão já foi tomada, não é, minha Deusa? — Sim — confessou Quetabel. — Considero um bom número de homens, e garanto que, desta vez, conseguiremos conquistar as terras que foram prometidas para nós. As terras pelas quais vim ao mundo; para chegar até elas. Talvez haja outras decisões para serem tomadas, mas poderão ser discutidas pelos meus sacerdotes, pelo béli de minha cidade e por mim. Agradeço por todos terem vindo até aqui, e os idabarás serão mandados imediatamente. Pernoitem em Catebete, se acharem melhor; ou até mesmo fiquem aqui. — Ádiler e eu teremos que partir, pois há alguns problemas em Ancatébia — disse Hessêni. — No entanto, nossa cidade é muito próxima da capital, e estaremos aqui no primeiro dia de tritomês. — Que assim seja — disse a Rainha. — Está encerrado o Conselho dos Bélis.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

331


Ódio e saudade I Após o término do conselho, muitos se dirigiram para os seus quartos, com exceção de alguns, que tinham coisas para resolver neste dia tão longo. Nassá e Berânu foram até Téoder, e Berânu também se despediu de Ádiler. Dois meses depois estariam se vendo novamente, em Melcártis. Ádiler e Hessêni também se despediram de Téoder — e de Seida —, e olhares furiosos foram trocados entre o béli de Ancatébia e o atual béli de Jatitã. Os últimos a saírem da sala foram Seida, Téoder e Quetabel, e enquanto o Béli-Mor se dirigia para a porta, ouviu a voz de sua superior. — Espere, meu Béli-Mor — disse Quetabel. Téoder apenas olhou para o lado, tentando enxergar aquela que estava atrás dele. Nada disse. — Eu gostaria de falar a sós com você — falou a Rainha. — Agora não tenho tempo — disse ele. — Amanhã poderemos conversar melhor sobre a jornada que se aproxima. — Não é sobre isso que quero conversar. — Quando Quetabel disse isso, Seida arregalou os olhos. Mas é claro! Pelo modo como a RainhaDeusa havia falado com ela naquele dia, nos jardins, ela devia mesmo ter um interesse especial em Téoder. Seida olhou para o seu amigo, e depois para a Rainha. Eles olhavam um para o outro, mas, apesar dos olhos de Quetabel trazerem uma doçura que Seida jamais tinha visto ali, os de Téoder eram frios e rudes. — O que quer que seja que tenha para falar comigo, minha Rainha, ficará para amanhã — disse Téoder. — Já estou farto de trabalho por hoje. Ele se foi, e Seida, após ficar olhando por algum tempo para Quetabel, foi correndo atrás dele. Lágrimas escorreram pela face jovem e lisa da Rainha; uma juventude mantida a um preço alto demais. Ela sabia que cometia erros periodicamente, mas não tinha mais como voltar atrás. Tudo o que ela queria neste momento era Téoder só para ela, no entanto, a sua ruína era a prova de que por mais que se tenha, nunca se está satisfeito. — Ela deixa que fale com ela desse jeito? — perguntou Seida, quando Téoder e ela já estavam longe do Salão de Reuniões. 332

ERIC MUSASHI


— Ela não tem que deixar ou não deixar — foi tudo o que ele respondeu. — Aonde estamos indo? — perguntou Seida, ao ver que ele não estava indo para o quarto dela. — Você, eu não sei — ele brincou, e ela o olhou de forma reprovadora. — Estamos indo para o meu antigo quarto. O quarto onde não dormirei novamente. Tenho algumas coisas para pegar, e também... Bom, você logo saberá. E eles continuaram andando, enfim chegando ao quarto de Quetabel. Seida ficou admirada pelos móveis finos, e também pelos vestidos, que eram muito belos. Sim, era uma jovem feminista de Acaldã, uma daquelas que não concordava com o fato da beleza da mulher existir apenas para agradar ao homem. Apesar desse feminismo não ser barrado em nenhum lugar do Reino, uma vez que quem mandava era a RainhaDeusa, muitas vezes Seida desejava ser apenas uma donzela que seria salva por seu amado. Alguém que não teria por que temer, pois sempre teria para onde correr. — Vamos? — ele perguntou, e tinha uma sacola de pano azul escuro cheia de roupas numa das mãos, e duas belas armaduras de sevaste na outra, sendo seguradas pelas correntes que prendiam as peças umas às outras. Os melcártios realmente tinham ótimas técnicas, não só na produção de espadas e outras armas, mas também de escudos e armaduras. As armaduras produzidas lá eram formadas por várias placas, unidas por correntes, de modo que o usuário teria muito mais liberdade para lutar. — Ah, poderia pegar aquele vestido para mim? — perguntou Téoder. Era o vestido de Faná, que Quetabel tinha usado naquela festa, fato que o tinha deixado furioso. — Sim — disse Seida, apanhando-o. Eles atravessaram os corredores rochosos e logo estavam no quarto dela, onde Téoder dispôs suas coisas. Ele era mesmo deste jeito: fazia tudo sem consultar ninguém — mas no fundo sabia que ela não imporia objeções. Arrumou tudo com pressa, e depois se sentou na cama. Seida se sentou ao seu lado. — Eu sei que o aniversário foi ontem, mas só hoje posso lhe dar um presente — disse ele.

OS HERDEIROS DOS TITÃS

333


Abriu a mão, e ali havia uma bela pulseira. Era feita de ouro, e tinha três diamantes incrustados ao redor do círculo, de modo que cada um deles tinha a mesma distância para os outros dois. — Téoder, isso é muito belo... — Você merece.Tem sido a minha melhor amiga em todos esses anos. — Muito obrigada! — ela abraçou com muita força, e deu um beijo no rosto dele. Ficaram assim por algum tempo. De repente, ouviram batidas na porta. — Quem é? — perguntou Seida, soltando-se do abraço repentinamente. — Desculpem-me se interrompo algo — disse. — É Luredás, e ouvi dizer que o Béli-Mor tinha vindo para cá. — Ah, sim. Pode entrar, Luredás — disse Seida, recompondo-se. — Quem é Luredás? — cochichou Téoder. — O amigo de Arion, do qual falei. — Agora me lembro! É um prazer conhecê-lo, Luredás — disse Téoder, quando o jovem músico já tinha entrado. — O prazer é todo meu — respondeu Luredás, e abraçaram-se, como de costume. — No entanto, com o perdão da palavra, não temos tempo para cordialidades. O seu filho está aqui, senhor Téoder, e a cada hora que passa, ele corre mais perigo, pois como o senhor já deve saber, Escleros e Tromos estão atrás dele. — Sim, eu sei. — Arion quer vê-lo, meu senhor — disse Luredás. — Venha comigo. — Posso ir também? — perguntou Seida. — Acho melhor não — respondeu Luredás. — Será uma conversa apenas entre um pai e um filho que não se entendem há muito tempo, e para os quais o Destino reservou tão boa oportunidade. — Boa sorte — desejou Seida, enquanto abraçava Téoder antes que ele partisse. Ela foi até a janela, e depois de algum tempo pôde vê-los atravessando as ruas, e neste momento a tarde caía. O sol já começava a se tornar alaranjado no céu, e cada objeto ou ser era capaz de fazer sombras até duas vezes maiores que os próprios objetos — ou seres. Que assim fosse com Arion e Téoder; que fossem maiores do que simples homens, e capazes de entender um ao outro e curar as feridas que o tempo não tinha conseguido apagar. 334

ERIC MUSASHI


Noutro ponto do castelo, Escleros e Astarote tinham uma importante conversa. Conversa essa que se dava num corredor, mas que ninguém podia ouvir. Sussurravam como cobras, e espreitavam feito panteras. O conteúdo da conversa era de conhecimento apenas deles, e nem mesmo Tromos, que procurava incansavelmente pelo irmão no castelo, imaginava o que podia ser. Os dois pararam de falar, pois uma figura se aproximava. — Irmão, procurei-o por toda parte! — exclamou Tromos. — Não vê que estou ocupado?! — Eu encontrei Arion — disse Tromos, ignorando o que Escleros havia falado — Mas precisamos ir logo até lá. — Se me dá licença, senhor Astarote, tenho algo a fazer — disse Escleros. Ele e Tromos saíram dali, e desceram as escadas, chegando até o Salão Austro. Tromos segurava com excitação o cabo da espada; a batalha seria muito divertida. Subitamente, Escleros parou e se virou para ele: — Aonde pensa que está indo? Você tem que ficar aqui, meu irmão. Eu irei até lá, mas você alertará a Rainha e também irá avisar os mádis dos portões, para evitar que ele fuja. — Mas, meu irmão, eu quero lutar! — exclamou Tromos. — Terá a sua luta. Entretanto, eu disse que Arion é meu, não se lembra? A minha garganta ainda dói, às vezes, e nem posso gritar — não que eu gostasse de fazê-lo antes. E se ele estiver com a Saladágni, terei que recuperá-la. Agora tenho a Dalhebal, mas ele não tem o direito de empunhar uma espada feita por mim, pelo Grande Escleros! — Escleros desembainhou a espada que ele tinha levado vários dias para fazer, e que tinha atrasado tanto a sua chegada a Catebete. Tromos fez uma cara de quem não tinha gostado, e respirou fundo. Viu Escleros se afastando, e se lembrou de Ariádan, e do modo como ela estava disposta a morrer por Arion. Toda vez que ouvia o nome do filho de Téoder, lembrava-se daquele momento. — Isso não é justo, meu irmão! — foi o que ele disse.

II Arion estava muito nervoso.Andava de um lado para o outro, apanhava a espada, largava a espada; era como um adolescente que terá o seu primeiro encontro com uma rapariga. Lembrava-se daqueles olhos pesados, da barba mal-feita, da voz chorosa e da aparência deplorável do seu pai no

OS HERDEIROS DOS TITÃS

335


encontro de mais de três anos atrás. Por que tinha vindo até Catebete? De início, tudo o que queria era cobrar aquilo que Téoder tinha prometido na carta levada a Arion por Adum: o comando de Jatitã de volta a alguém justo e honesto, ou mesmo a morte de Escleros e Tromos, e assim Arion teria paz. Mas quando deixou Lira dos Titãs para trás, um dos motivos era mesmo a morte de Bíades. Entretanto, o motivo principal era fugir de Ariádan, e do seu sentimento tão bonito que fazia Arion se sentir muito cruel e sem forças ao mesmo tempo. Parou, e ficou olhando para a reluzente espada de aço e sevaste. Era pesada, uma das características da espada de um imane — pois esta pertencia a Elmo, de Ancatébia. Sim, as espadas de béli eram mesmo mais leves e rápidas, e ainda assim feriam da mesma forma que as espadas longas e largas de imanes, pois eram feitas com técnicas surpreendentes. Mas não era hora de pensar nessas coisas. Arion prendeu a espada — junto com a bainha — na cintura, usando o cinto de couro, também cedido por Elmo. E, dessa forma, ficou esperando por Téoder, sentado na cama. Demorou um pouco para que Luredás e Téoder chegassem, pois o músico teve de esperar até que o conselho fosse encerrado, e depois ainda correu duas vezes pelo castelo, subindo e descendo escadas, à procura do Béli-Mor. Quando ouviu passos pela casa, Arion sentiu um frio em todo o seu corpo, principalmente na nuca, onde se arrepiou, e o coração passou a bater acelerado e descompassado. Mas não havia mais como fugir, pois poucos instantes depois estavam ali, na sua frente, Luredás e Téoder, o seu pai. Luredás olhou para Arion com um sorriso, e se foi; ia ficar sentado na escada da varanda, esperando que Béli-Mor conversasse com o filho e eles tomassem as decisões necessárias. Seu pai parecia mais belo e altivo do que da última vez que tinham se encontrado.Vestia uma túnica negra, com detalhes em vermelho, e na saia, que cobria as pernas, existiam, no mínimo, três camadas de tecidos, com vários cortes diferentes, mostrando-se presentes. Sua barba estava feita, e ele tinha tomado banho recentemente, talvez neste mesmo dia, pois cheirava bem. Seus cabelos anis estavam presos em três rabos-de-cavalo, um bem no meio da parte da cabeça, e os outros dois bem próximos do primeiro, um de cada lado deste. Os seus olhos emitiam um azul intenso e profundo, obviamente mais claro que o dos cabelos, pois estes quase chegavam ao negro. Aqueles olhos pareciam trazer ao mesmo tempo a profundidade de um mar e a clareza e sinceridade de uma lâmina termi336

ERIC MUSASHI


nada em sevaste, e Arion não conseguia olhar para ele por muito tempo; não porque diante dele estava o Grande Téoder, Béli-Mor, mas sim porque este era o seu pai, e novamente era digno de respeito por parte do jovem de cabelos brancos. — É muito bom vê-lo, meu filho — disse Téoder. Arion não disse nada. Sim, queria falar algo para o seu pai, mas não conseguia decidir sobre o que falar; e mesmo que fosse capaz de fazê-lo, não teria coragem para dizer mesmo. Ofegava, apesar de tentar esconder isso. Queria saltar sobre ele, e abraçá-lo com todas as forças, entretanto, havia algo que o impedia. Téoder se aproximou do filho e se sentou ao seu lado. — Eu jamais achei que viria até aqui, para me ver — ele disse, e colocou a mão esquerda sobre o ombro direito de Arion. Neste momento, os olhos de Arion brilharam, e ele se levantou da cama, muito alterado. Parecia que ele estava prestes a explodir, e que agora Téoder tinha acionado o estopim. — Nunca mais me toque, seu assassino! — Arion desembainhou a espada de Elmo, e avançou na direção de Téoder, percorrendo os três passos que ele tinha se afastado no momento em que pulou da cama. Estava totalmente fora de si, e segurava a pesada arma com as duas mãos, pretendendo um golpe descendente. Por ser destro, estava mais apoiado na mão direita, e seria um golpe que viria da direita para esquerda, e de cima para baixo — e a espada emitia um forte brilho azul. Téoder se levantou rapidamente, e sacou a sua espada com extrema destreza, saindo do golpe de Arion, que atingiu o colchão, rasgando-o, e fazendo voar ervas para todos os lados. — Filho...? — indagou Téoder, mas de nada adiantou. Arion, que tinha empregado todas as suas forças e o peso do corpo no primeiro ataque, agora estava ali, curvado, com a espada fincada no colchão — ou no que tinha sobrado dele. Téoder tinha saído para a sua direita e para frente, ou para a esquerda de Arion, e agora estava ao lado do filho, e quase atrás dele. Se quisesse ferir o jovem, este seria uma presa fácil, principalmente para Téoder, pelo grande guerreiro que era. Mas um novo golpe partiu de Arion, e dali mesmo. Rapidamente tirou a espada do colchão e golpeou para a sua esquerda, na direção de Téoder. Foi um golpe cruzado, um daqueles que podem fazer um largo ferimento no peito do oponente, ou mesmo decapitá-lo. Foi inferior ao primeiro, e até mesmo desengonçado — e sem magia. O Béli-Mor, ao invés de se esquivar, golpeou

OS HERDEIROS DOS TITÃS

337


contra a espada de Arion, mas foi um golpe com a espada quase que totalmente na vertical. A espada de Arion voou longe, pois, apesar dele e Téoder terem praticamente a mesma altura, Arion era esbelto, de constituição delicada, e Téoder, um robusto guerreiro.Arion olhou para a direita, e viu a espada batendo contra a parede e caindo no chão, com um som característico do metal. — Filho, sou eu, o seu pai! — exclamou Téoder várias vezes. — O seu pai! — ele continuou, e agora a sua espada já estava no chão também. Num combate, ou mesmo numa guerra, não seria imprudente assim, e teria a guardado de volta, para que pudesse prender o seu alvo. Mas não neste momento. Tomado pela emoção, soltou-a, e, com as duas mãos, segurou Arion pelos pulsos, antes que ele pudesse tentar qualquer coisa. Entretanto, uma joelhada veio da perna direita de Arion, e Téoder já estava ficando furioso; fez o mesmo, e o seu golpe foi muito mais forte, fazendo com que Arion gritasse de dor — apesar do joelho do Béli-Mor também ter doído um pouco. — Ei! Acorde, Arion! Sou eu, o Téoder! O seu pai! Arion! De repente, como que finalmente tendo os olhos abertos, Arion parou, e ficou por um bom tempo olhando para o seu pai. Seus olhos se encheram de lágrimas, e, quando enfim foi solto, caiu sentado na cama. Ali, pôs as mãos sobre o rosto e começou a chorar, soluçando. Téoder se abaixou, e depois de colocar as mãos sobre os ombros do filho, abraçou-o, começando a chorar também. — Meu filho, meu filho! Quanta saudade sua eu senti! Depois de ficarem assim por algum tempo, limparam as lágrimas, e Arion calmamente convidou o pai para se sentar ao seu lado. — Antes de mais nada, meu pai — ele disse —, eu gostaria que me contasse o que realmente aconteceu quando minha mãe foi morta. — Filho, por que tocar em feridas tão profundas, que já estavam se cicatrizando? — Só assim poderei entender, meu pai, o que o levou a tomar aquela decisão — disse Arion. — Além disso, também queria entender por que a Rainha queria a morte de minha mãe. Téoder nada mais disse. Levantou-se, olhou para o castelo que podia ser visto pela janela, e respirou fundo. De costas para Arion, começou a falar, mas as palavras pareciam sair com dificuldade: — Contarei, meu filho, mas direi o menor número de palavras possível, uma vez que é doloroso demais falar sobre isso. Tudo começou quando me tornei o Béli-Mor. 338

ERIC MUSASHI


Eu já havia mandado tanto Faná como você para Jatitã, pois sabia que seria difícil a vida aqui. Sacrifícios humanos, intrigas, bandidos; tudo isso pode ser visto na capital Catebete. Pois bem, meu mestre Alil morreu, e naquele episódio me tornei famoso, pois sobrevivi aos Lobos do Vale, e fui o único capaz de voltar dali. Ao chegar, tive uma festa, dada pela Rainha. Até então achei normal, uma vez que tinha me tornado um herói, um homem que seria lembrado, mesmo tendo feito algo tão pequeno. Entretanto, o tempo foi passando, e sempre a Rainha me tocava demais, ou mesmo me beijava, e até me convidava para que eu dormisse em seu quarto. Sempre soube que ela andava com muitos homens, e até mesmo mulheres algumas vezes, mas não queria ser uma dessas pessoas. Ela é muito bela, e é impossível se negar esse fato. Por isso, Quetabel não compreendia por que eu a rejeitava, e também estranhava as minhas viagens periódicas para Jatitã. Fui seguido, e assim ela descobriu que eu tinha uma mulher a quem eu amava, uma das poucas que sobraram de cabelos claros como a neve e olhos dourados, e também um filho, um laço que me prendia a ela bem como o sentimento em nossos corações. Sentiu-se enciumada, e, quando eu voltei para cá, ordenou que eu trouxesse a mãe de meu filho para que ela a conhecesse. Fiz como ela mandou, no entanto, aí eu soube o que ela queria: fez-me uma chantagem; ou eu matava Faná e a entregava a ela, ou então ela ordenaria que sua mãe e você fossem mortos. O resto da história você já conhece, e não quero ter que contar. — Téoder suspirou, e Arion ficou boquiaberto. Então era isso? Seu pai teve que escolher entre perder a amada e o filho, ou então matar a amada com as próprias mãos. Sim, para a Rainha, Faná morreria de qualquer forma, mesmo que fosse para não ser entregue para ela. Mas o destino de Arion tinha ficado nas mãos de Téoder, e se ele não tivesse tomado aquela decisão, Arion não estaria conversando com ele neste momento. Arion quis chorar com todas as forças que tinha, mas nem mesmo se fosse forte como um dragão, e usasse toda a força para chorar, não conseguiria se livrar do sentimento que o afligia. — Agora me diga, meu filho, por que veio até aqui? — perguntou Téoder. Arion ainda não tinha se recuperado do baque causado pelas duas últimas frases da história contada por Téoder, e por isso demorou um pouco para responder. — Eu recebi sua carta — ele disse. — Sim, Adum a levou até mim, e, sinceramente, eu não queria mais vê-lo. Mas depois que quase morri nas mãos de Escleros e Tromos — só sobrevivi graças à ajuda do béli Achades, e de uma discórdia entre os dois irmãos —, resolvi

OS HERDEIROS DOS TITÃS

339


ser humilde e pedir a sua ajuda. Temo pelas vidas de Achades — que, caso não conheça, é o béli de Lira dos Titãs —, Luredás e Ariádan, e também pela minha própria, apesar de querer acreditar que não. — Eu posso ajudá-lo — disse Téoder. — Vi o tal Escleros no Conselho dos Bélis, e, sinceramente, não parecia ser grande coisa. Sim, ele se dizia um construtor de espadas, como Anágni, Filho dos Titãs e fundador de Melcártis, foi um dia. Mas não creio que seja grande dificuldade ajudá-lo nesse assunto, meu filho. O que quer que eu faça? — Ainda não sei... — confessou Arion. — Quer beber algo, meu pai? Téoder balançou a cabeça, concordando, e Arion foi buscar vinho para os dois. Já estava morando na casa de Silas há um bom tempo, e sabia onde a bebida e a comida eram guardadas. O Béli-Mor se sentou na cama, e sorriu. Sim, Arion não tinha dito que tinham voltado a ser pai e filho, a ser grandes amigos, como em outrora. Mas estavam começando a se entender, e o filho até mesmo tinha lhe oferecido bebida e o chamado de pai! Enquanto isso,Arion procurava pelo vinho na cozinha. O tonel estava vazio, mas ele tinha certeza de que havia uma garrafa de barro com um pouco, em algum lugar. Sorriu, e coçou a cabeça. Subitamente, olhou para a esquerda, onde estava a porta que dava para a varanda. Não tinha dúvidas; era um braço estendido que tinha visto no chão! Deu alguns passos para o lado, e ali viu Luredás, que tinha um pouco de sangue escorrendo pela boca. — Tem sorte, pois prometi ao meu irmão que ele tiraria a vida do seu amigo! — exclamou uma voz, e Arion se virou e viu Escleros, ao seu lado, com uma espada de béli empunhada. — Mas agora é a sua vez, garoto, e pagará por tudo que me fez até hoje! Ele desferiu um golpe descendente, da direita para a esquerda, pois a espada estava na sua mão direita, e Arion deu um rápido passo para trás, procurando se esquivar. — Eu, como o béli de Jatitã, faço o julgamento. A sentença: é claro, a morte! Uma simples surra não faria com que pagasse por todos os crimes que cometeu, Arion, filho de Téoder! Escleros avançou com um novo golpe, e era totalmente horizontal, um cruzado, buscando acertar o pescoço de Arion, separando a sua cabeça do corpo. Arion tentou se abaixar, esquivando-se, mas, diferente do primeiro golpe, que tinha sido apenas um teste, esse agora era muito 340

ERIC MUSASHI


mais rápido, e, como na maioria dos golpes do Espada de Cretos — como também do Espada de Antros —, tinha um trajeto o mais curto possível. Arion não escaparia, a menos que... — Ugh! — gemeu Escleros, sendo jogado para frente e quase caindo sobre Arion — mas este rolou para a esquerda, evitando a colisão. Atrás de Escleros estava Téoder, completando o movimento do chute giratório, desferido com a perna esquerda, que atingira Escleros na nuca. — Mas aqui quem julga sou eu, pois estamos em Catebete, a dez farisias de Jatitã! — Téoder tinha a espada na mão esquerda, e a de Escleros não saiu de sua mão um instante sequer. O Béli-Mor acenou, e Arion, obedecendo, afastou-se. O béli de Jatitã demorou para se levantar, mas o fez, e, a menos que estivesse fingindo, estava em perfeitas condições de combate. — Então quer dizer que Catebete quer interromper Jatitã de executar um criminoso? — perguntou Escleros. — Tome cuidado, pois mesmo sendo o Béli-Mor, pode gerar um conflito entre as duas cidades... — A menos que desista — respondeu Téoder. — Jamais o farei! — Escleros rangeu os dentes. — Hoje me tornarei o Béli-Mor! Escleros avançou na direção de Téoder, com um golpe penetrante. Apesar da velocidade não ter sido tão assombrosa como do golpe que ele usou para tentar decapitar Arion, ainda assim foi muito rápido. Téoder, dando um passo para trás, golpeou com a sua espada para baixo, desviando o golpe da Dalhebal. Agora ele avançou, tentando acertar o rosto de Escleros com um soco com a mão direita. Escleros levantou o braço, e se defendeu, mas, antes que pudesse partir com um novo ataque, percebeu que Téoder agarrou sua nuca e o puxou para perto de si, acertando o seu estômago com uma joelhada com a perna direita. O golpe não teve tanta potência, mas ainda assim feriu notavelmente o béli de Jatitã. Várias pessoas já disseram que é o primeiro golpe que decide quem vencerá uma batalha. Obviamente, estavam falando do primeiro golpe que atinge o alvo, e, em parte, isso é verdade — principalmente numa luta de espadas. A menos que Escleros tivesse muito sangue frio e também grande resistência, ou então se Téoder não fosse um bom guerreiro — o que não é o caso —, a luta já estaria nas mãos do Béli-Mor. Aproveitandose da joelhada certeira, Téoder acertou o nariz de Escleros com o cabo da sua espada enquanto este se afastava, uma vez que não havia espaço

OS HERDEIROS DOS TITÃS

341


para atacar com a lâmina — e ele o fez girando o punho no cabo com muita rapidez. Prosseguiu, agora com um ataque descendente; Escleros, porém, golpeou às cegas, e este ataque fez com que Téoder tivesse que se defender. Como Escleros tinha a guarda aberta e a espada jogada para o lado, o Béli-Mor tentou acabar com o combate; atacou enfim com a espada, mas teve que puxar o braço esquerdo para trás antes de desferir o golpe, uma vez que investiria com um ataque perfurante. Esse meio tempo foi o bastante para grão-mestre do Espada de Cretos. O golpe perfurante de Téoder avançou, mas Escleros simplesmente se esquivou para a sua direita, e golpeou a espada de Téoder com a Dalhebal. Arion tentou gritar, pois a espada de Escleros emitia chamuscadas vermelhas. Não havia tempo para Téoder invocar a Chama Branca, o grande segredo de sua técnica, e, para evitar que sua espada fosse quebrada, soltou-a. Após ser atingida pela Dalhebal, ela foi jogada contra a parede, rodopiando no ar; Arion virou a cabeça para a esquerda, e um pequeno corte foi feito no seu rosto, do lado direito. Agora Téoder estava desarmado, e por mais que Escleros estivesse ferido, deveria ser temido. O modo como tinha desarmado o Béli-Mor mostrava o valoroso guerreiro que era, e ele sorriu, mesmo que por um curto espaço de tempo. Arion não teve dúvidas: apanhou a espada do seu pai no chão. Enquanto ele fazia isso, Escleros atacou novamente, sem precisar se recompor após o ataque lateral que tinha jogado longe a arma inimiga. Do modo como estava, com a lâmina virada para Arion e para a parede, e a espada totalmente vertical, desferiu um ataque cruzado, na direção do peito de Téoder, com um rápido movimento de pulso. O Béli-Mor arregalou os olhos, e pôde dar apenas meio passo para trás, e com isso um largo corte — embora não profundo, pois fora feito apenas pelo deslocamento do ar — tinha sido produzido pela Chama Vermelha em seu peito. Após o golpe cruzado, a Dalhebal parou bruscamente, já quase apontando para a outra parede. Assim ela voltou, e o golpe perfurante tinha como alvo o coração de Téoder. Este, entretanto, impulsionou o lado esquerdo do seu corpo para trás, ficando totalmente de lado para Escleros. Um novo corte foi feito em seu peito, mas não era paralelo ao primeiro, pois se fossem retas infinitas, logo se cruzariam, uma vez que este novo era ascendente. Agora, depois do surpreendente ataque triplo, Escleros teria que se recompor para uma nova investida, e, ao contrário do que ele presumira, Téoder ainda estava vivo. 342

ERIC MUSASHI


Enquanto Escleros se levantava, Téoder tirou uma faca de sevaste de uma das dobras da túnica, agora que enfim tinha tempo para fazê-lo. — Ah, espera mesmo me vencer com uma faca...? Há-há-há-há-há-há-há! — Após gargalhar, ele avançou, e o brilho vermelho da Dalhebal estava mais forte do que nunca, quase ofuscando a todos. Entretanto, um brilho branco veio do punhal de Téoder, e ele se sobrepôs ao da Dalhebal. Depois que tudo tinha passado, a cena que podia ser vista era a de dois guerreiros que tinham desferido seus golpes decisivos. Os dois estavam abaixados, com um de seus joelhos tocando o chão, e imóveis. O punhal de Téoder tinha sido fincado no peito direito de Escleros, e a Dalhebal roçava o peito daquele. Surpreendentemente, ele tinha arremessado a faca. Seria atingido primeiro, caso não fizesse isso. — Vai pagar por ter ferido o meu pai! — gritou Arion, e com a espada de Téoder, decapitou Escleros. Depois disso, soltou-a no chão, e caiu de joelhos, ofegante.

III Estava sendo muito entediante para Tromos. Cavalgando calmamente, já tinha ido para os Portões Nascente e Poente, e se dirigia para o Portão Boreal, a fim de avisar o mádi e os telapuros dali, para que impedissem a saída de qualquer um que batesse com a descrição de Arion. Foi fácil, pois Luredás também batia com a descrição do filho de Téoder. Mas o que estava fazendo? Não era o escravo de Escleros! Decidiu avisar os telapuros do castelo e ir até a casa de Silas. Na casa do mádi, Téoder e Arion ainda olhavam pasmos para o corpo morto do béli, cada um por seu motivo. Téoder, pelo trabalho que ele tinha dado, e pela sua grande técnica de combate, e Arion, pelo medo que ele tinha dele, e por tê-lo matado com tanta facilidade. — Você o matou — disse Téoder. — Já está feito, e agora só falta Tromos. — Meu pai, isso não devia ter acontecido — disse Arion, quase sussurrando. — Por quê? Até onde eu sei, tanto ele quanto aquele querem matá-lo, não é mesmo? — Não é capaz de entender? — Arion sempre tinha sido assim, mesmo quando era um garoto de dez anos de idade; falando com qual-

OS HERDEIROS DOS TITÃS

343


quer um como um igual. Talvez ele estivesse certo. — Aliás, sendo o Béli-Mor, que tipo de problema isso pode lhe trazer, meu pai? Eu falo do fato de ficar contra o julgamento de Jatitã e me proteger. — Teoricamente, nenhum — respondeu Téoder, levantando-se e apanhando a sua espada. Com um pano que tirou de dentro da roupa, limpou-a e a embainhou. — Entretanto, se eles tiverem muitos simpatizantes em Jatitã, pode haver uma batalha entre as duas cidades, e também podem entrar na briga as cidades que forem aliadas deles. E, por fim, Astarote, o Sumo-Sacerdote, pode tentar me derrubar, pois ele conversava muito com Escleros, e nunca gostou de mim. Mas não é nada que não possamos enfrentar juntos! — ele sorriu, olhando para o filho. — Não, pai... — murmurou Arion. — Não quero colocá-lo em problemas, e não quero também que muitos morram por minha causa. Aliás, já estou cansado de gerar mortes. Partirei daqui, e o mais rápido possível. Até me pergunto o que Áigon, ou melhor, Tromos, como o conhece, estaria fazendo agora, e por que não veio me matar também. — Ele está avisando os mádis e telapuros da cidade — disse uma voz. Téoder e Arion se viraram rapidamente para a porta, de onde ela vinha. Lá estava Luredás, cambaleando, com sangue escorrendo pela boca. Seu rosto estava começando a se avermelhar nas redondezas do queixo; ali deveria ter tomado a pancada, e devia ter sido muito forte mesmo, para fazer com que o sangue escorresse. Deu alguns passos na direção dos dois. — Foi isso o que Escleros me disse quando tentei impedi-lo de entrar, avisando que o Béli-Mor estava aqui. Creio que devemos partir o mais depressa possível. — Mas podem ficar; eu garantirei sua sobrevivência — insistia Téoder. — Desculpe-me, senhor — disse Luredás —, mas, assim como Arion, também não quero que aconteçam mortes por minha causa. É melhor partirmos, e é melhor irmos para algum lugar onde Tromos jamais estará. Para o austro, ele pode voltar, e para o poente, eu não desejo ir. Se ao menos eu soubesse qual caminho tomariam na jornada que desejam empreender... — Iremos para o nascente — disse Téoder. — Até Melcártis, e daí, para o boreal. Vejo que pretendem mesmo conquistar a paz, e não negarei o seu desejo, meu filho. Vão para o boreal, além da Mata dos Pássaros. Acaldã, lá é a cidade da béli Seida, uma grande amiga minha 344

ERIC MUSASHI


— aliás, que vocês já conheceram. Provavelmente, teremos que ir atrás de vocês, portanto, apressem-se; irei atrasá-los o máximo possível. O mádi do Portão Boreal contará que os viu saindo por lá, e mesmo que saíssem por outro portão e contornassem a cidade, seriam vistos pelos vigilantes do castelo. — Vou pegar a minha espada — disse Arion. — Não — disse Téoder. — Leve a Dalhebal, e deixe a espada de imane aqui. Direi que ao chegar, vi Escleros morto no chão, e banharei a sua espada com o sangue dele. Mas se apressem em arrumar suas coisas, e eu cuidarei para que nenhuma evidência me incrimine. Por sorte, ninguém estava na rua quando cheguei, e posso mudar o horário da minha chegada. E sou o Béli-Mor, por isso confiarão em minha palavra. Vão! — ele falou, como um béli fala para seus homens, ou como um general falaria para nós. Arion e Luredás correram, e arrumaram tudo com muita pressa. As roupas de Arion poderiam ser levadas, mas as de Luredás não; seria muito arriscado voltarem até o castelo, e para a sorte do lirista, ele sempre carregava o seu instrumento consigo. Combinaram que dividiriam tudo como fariam dois irmãos, e era isso que eles se consideravam agora, depois de tudo. Arion jogou a espada de Elmo para Téoder, e já estava pronto para ir. Neste momento, Halá chegou, pois tinha visto dezenas de telapuros andando pelas ruas da cidade, e queria avisar o seu amigo Arion. Deixou Valente na frente da casa — era um animal obediente, apesar de corajoso e dotado de uma personalidade forte —, e subiu correndo os degraus. Mesmo estando acostumada com mortes, espadas e sangue, soltou um grito agudo ao ver um corpo sem cabeça estendido no chão da cozinha. Tapou a boca com a mão direita, e procurou pela cabeça. Ao ver que não era Arion, sentiu-se aliviada, e só então notou que ali estava Téoder, o Béli-Mor. — Quem é você? — ele perguntou. — Sou Halá, amiga de Arion e futura béli de Ancatébia. Vim até aqui para avisá-lo que há muitos telapuros vindo para esta região da cidade, provavelmente à sua procura. — Futura béli de Ancatébia? — Téoder não compreendia. — Pretende matar Hessêni, assim como Escleros tentou me assassinar hoje?

OS HERDEIROS DOS TITÃS

345


— Não, mas isso é um assunto apenas nosso; meu, de Ádiler e de Hessêni — disse ela. — Halá! — exclamou Arion, correndo e abraçando-a com muita força. — Eu ouvi o que você disse para o meu pai, e já estava parcialmente ciente disso tudo. Não tenho tempo para me despedir de você com calma, minha amiga, mas só lhe digo que sentirei a sua falta, e que pretendo encontrá-la novamente. — Para onde pretende ir? — ela perguntou. — Para Acaldã — respondeu Arion, e se afastou dela. — Luredás virá comigo. — Eu também irei! — ela exclamou. — Espere que arrumarei minhas coisas. — E deixaria a chance de comandar Ancatébia para trás por minha causa? — Sim — confessou a moça, depois de um pouco de hesitação. Arion sorriu. — Como é esplêndido tudo o que o Destino costuma fazer conosco, não é? Por muito tempo achei que tinha o direito de reclamar da vida, mas tenho pessoas que deixariam muito para trás simplesmente por minha causa. — Lágrimas escorreram por sua face. — Mas não hoje. Você tem a sua vida, Halá, e os seus sonhos. Partirei para Acaldã, e talvez não seja achado por lá. E, de qualquer forma, sei que a encontrarei em Ancatébia quando a demanda estiver cumprida. Adeus. — Há alguma coisa que eu possa fazer para você, meu filho? — perguntou Téoder. O tuata ponderou por algum tempo. — Há sim, pai. Eu sei que Áigon tentará me pegar, e, não importando se ele conseguirá ou não, quero que proteja Lira dos Titãs da sua ira, e também Ariádan e Luredás. E muito obrigado por ter salvado a minha vida. — Filho — chamou Téoder, novamente. — Você me perdoa por... aquilo? — Foi uma dor muito grande que me causou nesses três anos, pai, e estaria mentindo ao dizer que poderia perdoá-lo. Eu não queria lembrar disso hoje, pois estamos apenas matando a saudade. Mas o ódio ainda vive em mim, e digo, sem me envergonhar por isso, que não tenho nenhuma vontade de lutar contra ele. Não sei como será daqui para frente, mas... — Arion nada mais disse, e correu até Valente, mon346

ERIC MUSASHI


tando com rapidez. Ele montou Luredás na sua frente, segurando as rédeas, não se sabia por quê. — Adeus, e obrigado por tudo — disse Arion, e Luredás chicoteou o cavalo, que saiu em disparada. Na primeira travessa subiram para o boreal, em direção ao castelo e ao Portão Boreal. O tempo agora era inimigo deles.

IV Já fazia cerca de meia hora que Arion e Luredás tinham deixado a casa de Silas, montados em Valente. O sol estava se preparando para o belo crepúsculo alaranjado, e apesar de ninguém ainda conseguir olhar fixamente para ele nesta hora, seus raios não tinham a mesma força que tinham ao meio-dia. Téoder cuidara para que as evidências não o incriminassem, fazendo uma limpeza mais cuidadosa na sua espada, fincando a espada de imane no peito de Escleros e também a passando no seu pescoço. Halá não tinha muita intimidade com o Béli-Mor, e, por isso, ficou sozinha no quarto, olhando para o boreal e derramando lágrimas. O seu coração, que tinha sido tão duro por tanto tempo, havia sido tocado por Arion, e agora era como se ele fosse um irmão para ela. Estava com a sua lança na mão direita, acariciando-a, quando ouviu alguma conversa, indicando que alguém tinha chegado. — Espere! — gritou Téoder, e quando Halá chegou à cozinha, ele estava com a sua espada quase que totalmente na vertical, contendo um golpe de Tromos. Havia vários telapuros ali, e também um mádi, que deveria ser o mádi deste bairro. — Como pode ver, não fui eu quem matou seu irmão — continuou Téoder, e, de certa forma, não estava mentindo; mas logo estaria o fazendo. — Quando cheguei aqui, ele jazia morto, bem onde está, e esta espada estava derrubada no chão. — Ele apanhou a espada de Elmo e entregou para Tromos. — Além disso, parece-me que a espada de Escleros foi roubada, uma vez que aqui não está, e não creio que ele teria vindo até esta casa sem ela. Tromos olhou para Escleros, e seus lábios tremiam. Apertou os punhos com força, e até mesmo fez alguns pequenos cortes nas palmas das mãos. Seus olhos brilhavam, e ele fazia de tudo para segurar as lágrimas. — Não sei se devo confiar em você, afinal, Arion é o seu filho! Tenho minhas razões para crer que você matou o meu irmão, apesar de... — Apesar de quê? — perguntou Halá, intrometendo-se. — Teoricamente, Arion jamais seria capaz de vencer o meu irmão — ele disse, e estava um pouco mais calmo. — Mas, quando fomos pegá-lo

OS HERDEIROS DOS TITÃS

347


em Lira dos Titãs, ele conseguiu atingi-lo com um chute, e assim tomou a sua Saladágni. Talvez ele tenha mesmo interesse na Dalhebal, porque se chegou até aqui com uma simples espada de imane, a Espada de Fogo deve ter sido extraviada. — Ele é o meu filho, como você bem disse, e foi treinado por mim — disse Téoder. Tromos olhou mais uma vez para a espada de Téoder, procurando vestígios de sangue, vestígios que não seria capaz de encontrar mesmo. Embainhou a sua espada, e foi correndo para fora, onde montou no seu cavalo. — Eu vou pegá-lo, nem que tenha que ir até os confins de Grabatal! — ele exclamou, e saiu a toda velocidade. Os telapuros e o mádi também iam saindo, mas Téoder os parou. — Esperem — disse ele para o mádi. — Precisamos organizar uma busca para pegá-lo. Eu já olhei a casa toda, e parece que ele levou as suas coisas. Pretende ir para longe. Eu quero um cavalo para ir até o castelo, onde me aprontarei. E vocês, tratem de voltar para os seus postos, pois agora ele já não deve mais estar aqui. — todos obedeceram, e antes de sair, Téoder olhou para Halá e sorriu. Enquanto isso, Arion e Luredás ainda cavalgavam, um tanto perdidos. O caminho, já conheciam, pois se seriam vistos de uma forma ou de outra, era melhor que saíssem pelo Portão Boreal. Mas já tinham se desviado várias vezes, pois viram ao longe grupos de telapuros. Agora estavam na parte Boreal da cidade, apesar de estarem um pouco desviados para o nascente — os portões estavam dispostos de modo que representavam os quatro pontos cardeais, e cada um deles tinha uma distância igual para os seus dois adjacentes. — Luredás, não temos alternativa — disse Arion —: teremos que enfrentar a concentração de tropas que há no Portão Boreal. Parece que a notícia se espalhou muito rápido; ou Áigon fez muito bem o seu trabalho, ou há outros interessados nisso. — Realmente, Arion tinha razão, pois Astarote não ficou parado enquanto Áigon indagava se devia ou não obedecer todas as ordens de Escleros. Prosseguiram, e conforme andavam pelas ruas de pedra, contra o sol que já estava avermelhado, percebiam que vários telapuros solitários os observavam, embora não tivessem coragem de fazer alguma coisa. Valente parecia sentir que estavam indo de encontro ao perigo, mas, como já fora mencionado antes, o seu nome não era um mero acaso. Arion sentia que ele estava cavalgando cada vez mais rápido, e tanto isso, 348

ERIC MUSASHI


como a energia vinda da Dalhebal, traziam de volta a coragem para ele — se é que ela tinha faltado em algum momento. Pouco tempo depois, já estavam vendo o grande portão de ouro, um dos quatro, este chamado Portão Boreal. Brilhava de uma forma extremamente bela, principalmente por estar refletindo o rubro do sol vespertino, aquele sol que trazia alegria a corações mergulhados em trevas. Havia no mínimo trinta telapuros por ali, e também um mádi. — Faça o possível, Arion, pois me concentrarei em guiar Valente! — Meu coração me diz que ele não precisa que o guiem, meu amigo — disse Arion, e sua voz soava como o rugido de um leão, como aparecia em seu nome.3 O próprio Téoder não entendia o motivo desse nome, quando Faná decidiu dá-lo, e ela não deu o braço a torcer. De fato, foi num sonho que lhe foi revelado por um anjo — um mensageiro de verdade, e não um sacerdote de Quetabel — que assim o seu filho deveria se chamar, porque tinha um grande destino a ser cumprido. Qual destino seria esse, ninguém sabia, mas provavelmente atravessar o Portão Boreal neste 51 de protomês fazia parte dele, e aqueles que ficassem em seu caminho descobririam isso da pior maneira. Seguindo o conselho de Arion, Luredás também empunhou a sua espada, espada dourada que tinha sido de Bíades, e que agora, uma vez mais, teria de provar o seu valor. Gritaram, como seres que são jogados num abismo, mas mantiveram os olhos abertos, pois ainda podiam ver a luz. — Defenda o meu cavalo! — gritou Arion para Luredás. Algumas cimitarras iam mesmo em direção ao cavalo, e Luredás tratou de atingi-las. Revelou uma força que nem ele mesmo sabia que tinha, e várias das espadas de tecnologia precária dos telapuros foram quebradas, deixando os seus donos sem poder fazer nada. Mas a maioria dos soldados rasos tentava mesmo atingir Luredás, e este foi bravamente defendido por Arion. Os portões estavam fechados, e Arion e Luredás teriam que ficar e lutar de qualquer forma. Mas quando desceram de Valente, havia apenas cinco dos mais de trinta telapuros que havia antes, e suas pernas tremiam alucinadamente. Rangeram os dentes e partiram para cima dos dois. Mas já não tinham a lucidez de outrora, e foram sem respeitar formação alguma de combate. Um a um, receberam espadadas nas mãos e pernas, e caíram no chão. O último tentou atingir Arion 3 “Leão do Criador”, em atalai (Seynebas).

OS HERDEIROS DOS TITÃS

349


pelas costas, recebendo um golpe da espada dourada de Luredás no braço direito, soltando imediatamente a sua cimitarra. Aqueles quase trinta, que tinham ficado pelo caminho, desarmados, não ousaram se aproximar de Arion. Querendo intimidá-los, ele fez com que Dalhebal emitisse um forte brilho azul, e a apontou para o mádi, exigindo que o portão fosse aberto. Ele o fez, mesmo após hesitar por alguns instantes. Apenas um dos lados do portão foi aberto, e foi o suficiente para que Arion e Luredás se fossem. Eles saltaram rapidamente em Valente, e saíram galopando em grande velocidade. Numa última tentativa de tentar deter os criminosos, o mádi tirou um arco de dentro de sua roupa, e de um saco que estava no chão, apanhou uma flecha. Apontou na direção de Arion, tentando atingi-lo no meio das costas. Disparou, e a flecha foi cortando o ar, pronta para ferir quem estivesse em sua trajetória. Arion sentiu algo estranho, como se pudesse ver o movimento de várias coisas ao seu redor. Parecia que tinha um terceiro olho, e que este estava começando a se abrir. Percebeu que uma flecha estava vindo em sua direção, e, mesmo crendo que não haveria como escapar dela, inclinou o seu corpo para trás, agarrando-se na roupa de Luredás com a mão esquerda e ficando deitado sobre o lombo do cavalo. Assim, olhou para trás, vendo tudo de cabeça para baixo. A flecha agora ia acertar Luredás, mas antes disso, a Dalhebal brilhou quase como o sol, numa chama azul, e Arion acertou a flecha no ar, fazendo-a em milhares de pequenos pedaços. Ainda olhou com um sorriso confiante para o mádi, mesmo sabendo que este não era mais capaz de ver suas expressões faciais, pela distância que já estavam um do outro. O mádi, surpreso, soltou o arco no chão. — Ele foi mesmo treinado pelo... pelo Grande Téoder — murmurou o mádi, monologando. — O que está fazendo, Arion? — perguntou Luredás, ao se virar para trás. — Salvando a sua vida — ele brincou, e se sentia realmente feliz, mesmo depois de um dia tão estressante e emocionante. Arion não sabia o que havia acontecido com ele, e em seguida, também não compreendendo o porquê disso, lembrou-se dos olhos dourados de sua mãe, e da jovem alada de seu sonho sobre o Vale dos Lobos. Voltou à posição normal de cavalgada, e assim eles se foram, até que a noite ficasse escura demais para que seguissem cavalgando. 350

ERIC MUSASHI


Mapa

OS HERDEIROS DOS TITÃS

351



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.