Zine Caos Organizado - Edição 1 - Abril 2020

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Este zine e seu conteúdo foram produzidos por Letícia Conca, em São Paulo capital, durante o período de 15/03/2020 a 20/04/2020. As texturas na página seguinte e na arte da capa e contracapa são de autoria do artista plástico e designer Rodrigo Chã. Durante a produção deste zine, o Brasil passa pelo isolamento social decorrente da pandemia do coronavírus. Ao mesmo tempo, nossa sociedade passa por mais um desastre de proporções imensuráveis: Jair Messias Bolsonaro é o presidente do país.

Se quiser participar das próximas edições, mande um email com o seu texto, desenho, poesia, foto... leticia.mlc@gmail.com instagram.com/leticiaconca behance.com/leticiaconca




Caneta posca em foto impressa em papel sulfite


15/03/2020 Ăšltimo dia antes do confinamento MinhocĂŁo - SP

Fotos tiradas com celular LG-K9


Canetas posca em papelĂŁo


São Paulo, esta selva caótica com suas mil tribos. Todas convivendo juntas. Nem sempre de maneira pacífica. Nem sempre de maneira amistosa. Mas ainda assim, sempre juntas. Algumas tribos se dão bem. Outras nem se olham. Assim segue o caos das mil tribos. Com seus conflitos, com suas guerras e, de vez em quando, com um cachimbinho da paz e uma gelada, afinal ninguém é de ferro. Porém, em tempos de isolamento social certas distâncias aumentam... e algumas saudades apertam. Afinal ninguém é de ferro nesta selva caótica feita de pedra.


Canetinhas e tinta nanquim em papel que nem sei qual ĂŠ


O que sinto e como me expresso acabam sendo reações a uma violência pré-existente. Sinto muito intensamente quando vejo atrocidades sendo cometidas contra meus semelhantes e contra mim também. Não tenho sangue de barata E ainda não atingi a iluminação. Sou humana e SINTO. E, em uma sociedade na qual a violência é estrutural, muitas vezes, o que eu sinto é

UMA RAIVA FUDIDA





Foto original por Gabriela Bilรณ


Toda essa raiva… Essa raiva é também uma consequência de um sentimento de estar sempre tendo minha existência e essência invalidadas e sentindo como se estivessem passando por cima de mim! Sinto como se a sociedade brasileira estivesse passando por uma fase que equivale ao final da adolescência: aquela fase de “rebeldia” e de querer destruir tudo pra tentar construir uma realidade melhor aquela fase de finalmente romper com os pais, de perceber que existem outros jeitos de viver a vida, romper com os padrões que não fazem sentido, as velhas regras… E também uma fase de ter que aprender a se expressar pra conseguir ser ouvido. Não dá mais pra continuar assim! Afinal a maior parte do pessoal em seus 30/40 anos nunca teve o costume de debater política e questões sociais... Sempre foi sol, samba, curtição, futebol, carnaval, e “vamos evitar falar de problemas”. No máximo uma discussãozinha no bar. E, ao mesmo tempo, o Brasil é um país muito grande que nunca teve tanta guerra, tanto desastre natural, calamidade quanto em outros países menores do mundo, nos quais a sociedade se viu precisando trabalhar unida para resolver problemas unida, desenvolvendo assim um senso de união. Agora a nossa situação chegou num ponto que não tem mais como ficar no “deboísmo”. Estamos desunidos. Parte da sociedade tem a intenção de manter a população num lugar de ignorância, que faz com que ela seja muito mais fácil de ser manipulada. E com as “faculdades integradas” do whatsapp, do facebook e suas fakenews eles conseguem isso muito mais facilmente. E tem uma outra parte da população que sempre caía em golpe de boleto por email e hoje em dia eles compartilham notícia falsa de conspiração comunista pra destruir o Brasil. Ou seja, parte da população, embora tenha acesso à informação, não


consegue enxergar a realidade. Então penso que enquanto sociedade, estamos saindo da adolescência e entrando na fase adulta, na qual percebemos que somos indivíduos mas também fazemos parte de um todo e neste todo existem muitos problemas a serem resolvidos. Chegou o momento no qual quem tem consciência do que está acontecendo vai precisar de força para cuidar de si e também assumir a responsabilidade pela parte que lhe cabe enquanto membro de sociedade em frangalhos, caso contrário o barco pode afundar... Afinal, se depender do governo ou dos tiozões das fakenews, nada vai mudar e quem está no poder vai continuar fazendo o povo de “gado” e sapato. Mas é importante lembrar que não adianta muito agir com a mentalidade cristã que, por mais ateu/agnóstico/budista que parte do povo brasileiro possa ser, essa mentalidade acaba escorregando pelas frestas... aquela coisa de achar que tem que salvar a sociedade a todo custo e abrir mão completamente de si mesma/mesmo. Tem que haver o mesmo equilíbrio que rola numa emergência em avião: colocar a máscara de oxigênio primeiro em si mesma/mesmo e depois ir ajudar o amiguinho. Senão morre todo mundo mesmo. Tem que existir o equilíbrio entre cuidar de si, respeitar seus próprios limites e pensar no outro, respeitar e também cuidar do outro. Precisamos estar bem enquanto indivíduos para que a gente possa fazer bem a nossa parte na sociedade. Afinal não adianta nada abrir mão de si mesma/mesmo, passar por cima dos próprios limites, se auto-destruir perante as mazelas de um país em colapso, não se cuidar, e daí quando vai tentar ajudar tá só a capa da gaita, rastejando pela vida sem conseguir ajudar a si própria/próprio e nem ao próximo/próxima. Texto inspirado em conversa de whatsapp com Rodrigo Chã.


Na selva de pedra, seguindo a rotina: Casa-trabalho-bar, Casa-trabalho-bar, Casa-trabalho-bar. Máquinas de rotina sem tempo para refletir sobre as próprias escolhas, sobre a influência delas no próprio presente. Eis que de repente, vem uma quarentena… A maioria confinada em prédios. Maquininhas empilhadas uma em cima da outra. As dúvidas começam a aparecer. Quem somos nós fora daquela rotina? O que estamos fazendo aqui além de seguir aquela rotina? Não temos nem ao menos um pedaço de grama para nos reconectar com a Natureza. Dentro dos nossos apartamentos, as dúvidas começam, a crescer. Não temos pra onde sair. O esquema é fechar os olhos e voltar pra si. Voltar pra dentro e tentar achar as respostas. Olhar pra dentro e tentar se reconectar. Desligar o wifi, reconectar o crakra cardíaco e o chakra frontal.


Canetinhas em papel sulfite


Canetinhas em papel sulfite


Não podemos nos tornar máquinas de produção incessante e de planejamento absoluto e acabar abrindo mão da sutileza de ser um ser-humano. Máquinas programadas para passar por cima do que sentimos e, por consequência, muitas vezes acabar passando por cima de quem está próximo. Eu já fui essa pessoa e foi horrível. O ser-humano é dotado de racionalidade e isto nos ajuda muito, nos ajuda a resolver problemas de ordem prática, construir foguetes, desenvolver vacinas, tentar salvar o planeta das cagadas que fazemos... Nosso lado racional é extremamente válido e sim, eu adoro ele, rs. Mas nossa espécie não é dotada apenas do racional e precisamos estar atentos e atentas, para tentar resgatar algo mais sutil que aos poucos está se perdendo em meio caos da produção incessante e do consumismo desenfreado. Ache tempo para você sair do piloto automático. Diga não ao que não é necessário e tente achar tempo para você se reconectar consigo. Deixo aqui uma sugestão: assistam o documentário chamado Innsaei. Ele é sobre issaê, rs.


25/04/2020 Na noite passada eu sonhei que encontrava minha avó na casa dela de Monguaguá. Minha avó foi uma pessoa humilde, que todo domingo ia pra igreja mas que de vez em quando mandava umas reais que deixavam uns e outros com a cara no chão. Minha avó era muito sábia e no sonho ela mandou a seguinte: “O que te machuca é querer estar no controle o tempo todo para tentar suprir essa expectativa que criaram em cima de você… as expectativas e julgamentos alheios se tornaram suas próprias ‘autoexpectativas’ e ‘autojulgamentos’. Agora fia, o que você tem que fazer é parar de lutar contra si mesma e deixa a vida acontecer, deixar as emoções virem a tona, porque se faz sentir, faz sentido. Observa suas emoções sem julgamento de si mesma… Esse julgamento é dos outros, não é seu. Aceita a criança que vc foi, ela ainda está aí... Não é porque o mundo foi contra você que você precisa entrar no time desse mundo maluco e acabar sendo contra você mesma… Tenta aceitar que muita gente não te aceitou. Está tudo bem, ninguém vai agradar todo mundo, não. Você não precisa mudar para agradar ninguém. Você só precisa tentar resgatar aquela criança soterrada nos escombros do julgamento, crítica, abandono, trauma… E quem não gostar dela, que siga o próprio caminho longe de você. Não adianta passar por cima de você mesma para agradar os outros. Não adianta porque isso não TE faz feliz. Temos vida para sermos felizes também... pelo menos em alguns momentos, afinal o sofrimento existe sim, já diria o tal do Buda. Mas não existe só sofrimento, não, minha filha... Tem a parte boa também e todos tem o direito de experienciar isso. Porém a partir do momento em que você tem que negar a sua essência para agradar os outros, você vai sofrer ainda mais e vai se desconectar cada vez mais de si mesma e então tá aí a receita pra uma confusão mental danada.


Fia, a vida é dualidade, é yin e yang que nem vocês mais jovens falam, é luz e também é sombra. Aceita a dualidade da vida, fia, porque o maior sofrimento é achar que só existe um lado e ficar tentando fugir do outro. Aceita que de vez em quando vai ter dor... Mas não precisa se entregar à dor não. Aceitação e conformismo não são a mesma coisa, tem que perceber a diferença e, a partir de agora, a tarefa de tentar perceber isso é sua. Tenta se abrir para a aceitação da impermanência de todas as coisas, fia, tenta se abrir para as incertezas e para os possíveis fracassos... Mas tenta mesmo, afinal já diria aquela banda que você gosta e da qual você tinha vergonha de assumir que gostava: não teria sentido viver sem tentar. Está tudo bem errar, fia. É tudo energia se ajustando... e o único caminho é a evolução. Os ‘erros’ fazem parte do caminho e do aprendizado. Chega de ver os seus ‘erros’ como algo que precisa de punição. Todos erramos e a maioria de nós se aprimora se nos dão uma segunda chance verdadeira pra gente tentar de novo... Perdoa o povo chato que te julgou. E, acima de tudo, se perdoa e se dá uma segunda chance, fia. O ser-humano é uma ferramenta da inteligência universal, minha filha. Tem que tentar deixar as coisas acontecerem naturalmente no tempo delas... no seu tempo também. E você tem que tentar agir com mais naturalidade tbm, pelo amor do Santo Expedito!! Você tem que ultrapassar seus próprios medos e se abrir pros outros: comunidade, comunicação. Tem que tentar se comunicar sem medo de deixar a sua verdade vir à tona. Sem medo dos julgamentos do povo chato do passado... A inteligência universal não é punitiva. A Natureza não quer o mal de ninguém, o intuito é evoluir, se aprimorar. A Natureza não esquematizou um plano pra te fazer sofrer infinitamente, não... Fica tranquila, minha filha.”



Foto do acervo pessoal da LetĂ­cia


Texturas produzidas por Rodrigo ChĂŁ


Agradecimentos especiais: Isabela Santos, por todo o apoio emocional, psicológico e espiritual. Obrigada mesmo, Chu, não sei o que teria sido de mim se você não estivesse ao meu lado durante o inferno pessoal pelo qual passei. Muito obrigada por tudo, amiga! Rodrigo Chã, nem sei por onde começar... Nunca aprendi tanto com alguém como venho aprendendo com você desde que nos reencontramos. Obrigada por todas as risadas e gargalhadas de doer as bochechas e a barriga, obrigada por todas as conversas filosóficas malucas, pelas caídas de fichas existenciais e por toda a sua paciência comigo. Obrigada por ter me inspirado a confiar de novo em mim mesma e nas outras pessoas e por também ter me inspirado a perder o medo e a voltar a ser uma pessoa mais aberta, paciente e mais amorosa. Ah, obrigada pelas texturas também! :)

Mais agradecimentos: Marzio Giudice, Panderino, Mafalda Giudice, Giovanna Panico, Flávia Rabaça, Maíra Vaz Valente, Cello Zero, Carol Scatuzzi, Gabi Fonseca, Camila Conti, Bart Rzeznik, Laurence Hughes, Maya Remenyi, Boryana Ivanova, Vera Vareta, Marcela Lalim, Juliana Mancin, Lígia Duran, Thiago Roque, Gustavo Lambreta, Luiz Franco, Vítor Magliocco e Julia Mazali.


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