O MÉDICO E O MONSTRO
Robert Louis Stevenson 2014
2014 - Raízes do Conhecimento TÍTULO ORIGINAL: Dr. Jekyll & Mr. Hyde TRADUÇÃO: Elisabete Moura e Letícia Daniel REVISÃO: Naila Barboni e Letícia Cabral DIAGRAMAÇÃO: Silvestre Bruno
Índice para catálogo sistemático: Ficção cientifica; literatura estrangeira
Curso de Produção Editorial com Ênfase em Multimeios Turma de 2014 – 1º Semestre Universidade Anhembi Morumbi.
Trabalho orientado por: Profº Ms. Roberto Ferreira da Silva de Projeto de Prodoução Editorial em Mídia Impressa e Profº Ms. Whaner Endo de Mercado Editorial Nacional e Internacional.
“Quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.” Friedrich Nietzsche
A história de
O
Uma porta
advogado Sr. Utterson era um homem carrancudo que nunca sorria: frio, de poucas palavras, tímido ao expressar sentimentos, esguio,
alto, chapado e mesmo assim adorável de algum jeito. Em reuniões de amigos, quando o vinho era de seu gosto, um lampejo de humanidade irradiava de seus olhos, algo que não era mostrado em sua fala, mas que era demonstrado não só nos gestos mudos após o jantar, como também de modo eloquente em momentos de sua vida. Era firme consigo próprio, bebia gim quando sozinho e, embora gostasse de teatro, não pisava em um fazia vinte anos. Em contrapartida, era de uma tolerância reconhecida pelos outros, às
vezes admirando quase que com inveja a grande força de espírito que atos ilegais envolviam e, em casos extremos, preferia ajudar ao invés de condenar. – Prefiro a heresia de Caim – dizia com frequência – Eu deixaria meu irmão ir para a Escuridão por si próprio. Com esse caráter, era frequentemente destinado a ser o último consultado devido ao seu respeitável conhecimento e a última boa influência nas vidas de homens a caminho da degeneração. E, para estes, enquanto eles o visitavam, nunca demonstrou o menor vestígio de mudança em sua conduta. Sem dúvida esta façanha vinha fácil para um homem como o Sr. Utterson, que era reservado e suas amizades pareciam ser baseadas em uma similaridade de boa natureza. É a marca de um homem modesto aceitar um círculo de amigos bem afortunados, e este era o jeito do advogado. Seus amigos eram membros de sua família ou aqueles a quem ele conheceu por toda sua vida. Suas afeições, como hera, cresciam com o tempo e não envolviam nenhuma aptidão em qualquer assunto. Era deste tipo o laço que o unia ao Sr. Richard Enfield, seu parente distante e bastante conhecido na cidade. Era difícil para muitos entender o que os dois viam um no outro ou qual assunto eles tinha em comum. Era reportado por aqueles que os encontravam em suas caminhadas de domingo que eles nada diziam, pareciam singularmente entediados e que saudavam com certo alívio o aparecimento de um amigo. E, contudo, os dois
homens consideravam estes os melhores momentos da semana, rejeitando outras oportunidades de entretenimento ou mesmo chamados profissionais para as desfrutarem sem interrupções. Aconteceu que, em um desses passeios, foram dar em uma rua de um dos quarteirões mais disputados e acalorados de Londres. A rua era pequena e tranquila, mas com grande movimento no comércio durante os dias de semana. Os habitantes eram prósperos, assim parecia, e todos esperavam por melhorarem, gastando seus ganhos em luxo, de tal modo que as lojas que ficavam na via pública tivessem um ar convidativo, como vendedoras sorridentes. Mesmo aos domingos, quando seu encanto era menor e ficava quase vazia, a ruela brilhava em contraste com a vizinhança sombria, como uma fogueira em uma floresta, com suas janelas recém-pintadas e metais bem polidos, e sua limpeza e alegria geral imediatamente fisgavam o olhar do transeunte. A duas portas de uma esquina, do lado esquerdo indo à direção leste, a linha era quebrada pela entrada de um pátio. Precisamente daquele ponto, um edifício sinistro se projetava com a empena de seu telhado para a rua. Tinha dois andares e nenhuma janela, somente uma porta no primeiro andar e um muro descolorido no andar superior. Cada pedaçinho da casa mostrava um longo e total abandono. A porta, que não tinha campainha nem batente, estava com a pintura arranhada e desbotada. Vagabundos ficam na entrada e acendiam fósforos nos painéis, crianças brincavam nas escadas e estudantes rasgavam as molduras com seus
canivetes, testando-os. E por quase uma geração ninguém apareceu para retirar esses visitantes ou para consertar os estragos. O Sr. Enfield e o advogado andavam do outro lado da rua. Ao chegarem perto da entrada, o primeiro levantou sua bengala e apontou: – Já havia reparado na porta alguma vez? – perguntou e, quando seu companheiro lhe deu uma resposta afirmativa, continuou: – Em minha cabeça está tudo conectado, com uma história bem estranha! – Verdade? – disse o Sr. Utterson com uma pequena alteração na sua voz – E qual seria esta história? – Bem, aconteceu o seguinte – continuou Sr. Enfield. – Estava eu voltando para casa de algum lugar no fim do mundo, em torno das três horas de uma manhã de inverno, e tinha de atravessar por uma parte da cidade onde não havia nada para se ver além de lampiões. Rua após rua, tudo estava iluminado como se fosse uma procissão e vazio como se fosse uma igreja, até que enfim entrei no estado mental em que, ao escutarmos o menor dos ruídos, começamos a rezar para ao menos um policial aparecer. De repente, vi duas figuras, um homem pequeno que andava no rumo leste apressadamente e uma garota de talvez oito ou dez anos, que corria o mais rápido que podia na direção de um cruzamento. Bem, ¹ Juggernaut: carro de Jagrená, divindade hindu. Sob ele, pessoas se jogavam com a certeza de que tal morte lhes traria a salvação.
senhor, os dois se trombaram na esquina, e aí vem a pior parte da história: o homem atropelou e pisoteou calmante o corpo da criança e a deixou gritando no chão. Ouvindo a historia não parece tão tuim, mas ver foi horrível. Não parecia com um homem, mas sim como Juggernaut¹ “Gritei, corri, peguei o cavalheiro por seu colarinho e o trouxe para perto de um grupo que já se juntava ao redor da garotinha. Ele estava tranquilo e não resistiu, mas me olhou de um modo horrível que me fez suar tanto como se eu estivesse correndo. As pessoas que estavam ao redor da garota eram de sua própria família, e rapidamente o doutor a quem a menina ia chamar apareceu. Bem, a criança não estava tão machucada, mas sim assustada, de acordo com o doutor, e você talvez pense que este seja o final da história. Entretanto, havia algo de estranho ali, eu tinha tido repugnância pelo cavalheiro desde a primeira vez que o olhei, assim como a família da menina, o que era natural. “Porém, foi o médico que chamou minha atenção, ele era o típico boticário, sem idade e cor, com um sotaque forte de Edimburgo e quase tão emocional quanto uma gaita de fole. Senhor, ele era como nós, toda vez que olhava para o meu prisioneiro, eu via que o doutor parecia enjoado e cada vez mais branco com o desejo de matá-lo. Eu sabia o que se passava pela mente dele, como ele sabia o que se passava na minha, porém matar estava fora de questão. Então fizemos o melhor que podíamos: dissemos ao homem que podíamos e iríamos fazer um escândalo e que faríamos o seu nome sujar-se por toda Londres. E se ele tivesse algum
amigo ou crédito, iria perdê-los. “Por todo esse tempo, nós mantivemos as mulheres longe dele, pois elas pareciam harpias selvagens. Eu nunca havia visto um grupo com tanto ódio no olhar. E o homem estava no meio disso, com uma aparência calma e tranquila. Ele estava assustado? Sim, eu podia ver que sim, mas ele dominava seu temor como se fosse o diabo. ‘Se vocês escolherem fazer um escândalo deste acidente’, disse ele, ‘estarei naturalmente desamparado, não há um cavalheiro que não deseje evitar um escândalo. Diga o quanto querem.’ Bem, nós exigimos cem libras que iriam para a família da criança. Ele claramente queria se safar daquilo, mas havia algo de ameaçador em nós que o fez ceder. “O próximo passo era pegar o dinheiro. E aonde você acha que ele nos levou senão exatamente a essa porta? Sacou uma chave, entrou e voltou com dez libras em ouro e um cheque ao portador sacado contra o banco Coutts, assinado com um nome que não posso mencionar – ainda que seja um dos pontos desta história. Apenas digo que era um nome bem conhecido e que aparecia frequentemente na imprensa. A quantia era alta, mas a assinatura valeria mais se fosse autêntica. Tomei a liberdade de dizer ao cavalheiro que todo aquele negócio parecia falso, que um homem não entrava pela porta de um sótão às quatro da manhã e saia dela com um cheque de quase cem libras. ‘Dê um tempo para a sua mente’, ele disse, tranquilo e insolente. ‘Ficarei com os senhores até que os bancos abram e descontarei eu mesmo o cheque’. Com tudo arranjado, eu, o cavalheiro,
o médico e o pai da garota passamos o resto da noite em meu escritório. No dia seguinte, tomamos café da manhã e fomos para o banco. Eu pessoalmente entreguei o cheque e pensei que tinha todos os motivos para desconfiar do mesmo. Ledo engano. O cheque era verdadeiro.” – Ora essa – estranhou o Sr. Utterson. – Vejo que está pensando o mesmo que eu – disse o Sr. Enfield. – Sim, é uma história horrível. Pois era um homem com quem ninguém queria fazer negócio, um homem realmente detestável; e então havia a pessoa que assinou o cheque, rica, famosa e, o que era pior, alguém que outros diziam que fazia o “bem”. Chantagem, creio eu. Um homem honesto pagando por alguma tolice feita durante a juventude. “Casa da chantagem” é como chamo esta construção. Mesmo que tudo isso que lhe contei esteja longe de explicar tudo – acrescentou e se calou. O Sr. Utterson, então, perguntou de repente: – E você não sabe se o dono do cheque vive aqui? – Um lugar adorável, não é? – respondeu o Sr. Enfield. – Mas verifiquei seu endereço. Ele vive em uma praça qualquer. – Nunca perguntou da casa da porta? – o Sr. Utterson questionou. – Não, senhor, mantive a discrição – foi a resposta do outro. – Não me sinto bem fazendo questionamentos. Faz-me
lembrar o dia do Juízo Final. Você começa uma pergunta e é como mover uma pedra enquanto se senta tranquilamente no topo de uma montanha. A pedra se desloca, colocando outras em movimento e, de repente, um pobre infeliz é atingido na cabeça em seu próprio jardim e toda sua família tem que mudar de nome. Não senhor, eu faço disso minha própria regra, quanto mais próxima da rua excêntrica, menos eu pergunto. – Uma regra muito boa – disse o advogado. – Mas eu mesmo tenho estudado o lugar – continuou o Sr. Enfield. – Não me parece em nada com uma casa. Não há outra porta, ninguém entra ou sai dela a não ser o cavalheiro da minha aventura. Há três janelas que dão para o pátio no primeiro andar e nenhuma no térreo; elas sempre estão fechadas e limpas. E então há a chaminé que está fumegando. Alguém deve morar lá, mas ainda não tenho certeza, pois os edifícios foram construídos tão próximos do pátio que é difícil dizer onde um começa e outro termina. A dupla começou a andar novamente por um tempo, em silêncio, até o Sr. Utterson dizer: – Richard, esta sua regra é muito boa. – É, acho que sim – respondeu o Sr. Enfield. – E por tudo isto – prosseguiu o advogado –, há algo que quero lhe perguntar: gostaria de saber o nome do homem que pisou na criança.
– Bem – disse o Sr. Enfield –, não consigo ver algum mal nisso. O nome dele era Hyde. – Hum – fez o Sr. Utterson. – Que tipo de homem ele é? – Não é fácil descrevê-lo. Há algo de errado com sua aparência, algo esquisito, detestável. Nunca vi um homem que me provocasse tanto desgosto sem eu saber a razão. Deve ter alguma deformação, essa é a sensação que passa, embora eu não possa ser específico quanto a isto. Ele é um homem de aparência fora do comum e mesmo assim não consigo nomear nada fora do normal. Não, senhor, não consigo descrevê-lo, não por falta de memória, pois consigo vê-lo claramente agora. O Sr. Utterson recomeçou a andar, novamente em silêncio, preso em seus próprios pensamentos. – É certeza que ele tinha a chave? – indagou. – Meu querido amigo... – começou o Sr. Enfield, desconcertado. – Sim, eu sei – disse o Sr. Utterson. – Eu sei que pode parecer estranho. O fato é que, se não perguntei o nome da outra pessoa, é porque já o sei. Veja, Richard, sua história faz sentido. Se você foi inexato em alguma parte, é melhor se corrigir. – Acho que você devia ter me alertado – retrucou o outro com um toque de irritação. – Mas fui extremamente correto, o homem tinha a chave. E, tem mais, ele ainda a tem. Eu o
vi usando-a faz uma semana. O Sr. Utterson concordou sem dizer uma palavra e o jovem homem tornou a falar: – Estou envergonhado de minha língua grande. Vamos fazer um trato e nunca mais nos referir à esta história novamente. – Com todo meu coração – disse o advogado. – Eu concordo, Richard.
N
À procura do Sr. Hyde
aquela noite, o Sr. Utterson foi para sua casa de celibatário desanimado e se sentou para jantar, mesmo sem apetite. Era seu costume, aos
domingos, depois de jantar, sentar-se perto da lareira com algum livro de sua biblioteca até que o relógio da igreja tocasse à meia-noite, quando então iria sóbrio e agradecido para a cama. Porém, naquela noite, depois que a mesa foi retirada, ele pegou uma vela e foi até seu escritório. Abriu seu cofre e, do local mais secreto, retirou um documento onde se lia “Testamento do Dr. Jekyll”. Sentou-se com o cenho franzido para ler o seu conteúdo. O testamento fora escrito à mão, pois o Sr. Utterson só tomou posse dele depois de pronto e havia se recusado a ajudar a escrevê-lo. Ali era
dito que, em caso da morte de Henry Jekyll, doutor em Medicina, doutor em Direito Civil, doutor em Leis e membro da Royal So-
ciety, todas as suas posses deveriam ir para seu amigo e benfeitor Edward Hyde, como também que, em caso de desaparecimento ou em ausência inexplicada superior a três meses, Edward Hyde deveria tomar posse dos bens do Dr. Henry Jekyll sem nenhum atraso e livre de todos os encargos e obrigações, para além do pagamento de alguns membros da criadagem do médico. Fazia algum tempo que esse documento intrigava o advogado. Ofendia não só a ele como advogado, mas também como amante da sensatez e dos costumes dos aspectos da vida, para quem o imaginativo era pouco modesto. E se até então a ignorância de quem pudesse ser Hyde lhe havia aumentado a indignação, agora, por uma repentina mudança dos acontecimentos, era de seu conhecimento e isto o indignava ainda mais. Se já era bastante desagradável quando aquele nome não era mais do que isso, um nome, do qual nada podia averiguar, tanto pior era agora, quando passava a estar revestido de atributos desagradáveis. – Pensei que era loucura – falou, devolvendo o papel ao cofre. – E agora começo a temer que seja uma desgraça. Com isto, apagou a vela, colocou um casaco e foi em direção à Cavendish Square, a cidadela de medicina onde seu amigo, o Dr. Lanyon, tinha sua casa e recebia seus pacientes. “Se alguém sabe de algo, esse alguém é Lanyon”, pen-
sou. O mordomo o conhecia e lhe deu as boas vindas. Foi levado diretamente para a sala de estar, onde o Dr. Lanyon sentava-se sozinho com seu vinho. Este era um homem saudável, amável, corado com cabelos prematuramente brancos e de modos decisivos e tempestuosos. Quando viu o Sr. Utterson, levantou-se e o cumprimentou com ambas as mãos. Seu contentamento parecia-lhe teatral, mas se baseava em um sentimento genuíno. Os dois eram velhos amigos e foram companheiros na escola e na universidade; ambos respeitavam-se e admiravam-se mutuamente e a si próprios e, o que nem sempre vinha como consequência, gostavam da companhia um do outro. Depois de conversarem um pouco, o advogado começou a falar sobre o assunto que desagradava e ocupava sua mente. – Suponho, Lanyon, que nós dois somos os amigos mais velhos de Henry Jekyll certo? – Eu desejava que fôssemos os amigos mais jovens – brincou o Dr. Lanyon. – Mas suponho que somos. Por quê? Eu o vejo bem pouco agora. – Mesmo? – disse o Sr. Utterson. – Pensei que tinha com ele interesses em comum. – Nós tínhamos, mas faz mais de dez anos que Henry Jekyll se tornou extravagante demais para mim. Ele começou a mostrar-se vítima de problemas mentais, e, apesar de eu
ainda ter interesse nele, pelos velhos tempos, como dizem, tenho visto bem pouco dele. Bobagens poucos cientificas – continuou o médico, corando levemente. – Teria levado Damon e Péricles2 a se estranharem. Esse pequena demonstração de irritação, foi, de certa forma, um alívio para o Sr. Utterson. “Eles devem ter tido alguns pontos divergentes no que se trata de ciências”, pensou, e, sendo um homem sem paixão pelas ciências (exceto quando lhe eram convenientes), acrescentou: “Não há nada pior que isso!” Deu ao seu amigo alguns segundos para se recompor, então lhe disse a questão que não lhe saia da mente. – Você alguma vez já cruzou com o seu protegido, aquele Hyde? – Hyde? – repetiu o Dr. Lanyon. – Não, nunca ouvi nada sobre ele, pelo menos enquanto eu via o Henry. Essa foi a quantidade de informação que o advogado levou de volta para a sua a cama, e que continuou com ele até as primeiras horas da manhã. Foi uma noite de pouco descanso para sua mente atormentada pela escuridão de suas dúvidas. Soou a badalada das seis horas nos sinos da igreja, que Presos por Dionísio, Damon e Péricles, com sua amizade, impressionaram o deus de tal forma, que ele os libertou e livrou da pena de morte. 2
era convenientemente perto da casa do Sr. Utterson, e ele continuava absorto em seus pensamentos. Até então tinha sido somente seu lado intelectual a ser afetado, porém, sua imaginação foi pega engajada ou, melhor dizendo, escravizada pelo assunto. Enquanto jazia e agitava-se em seu quarto escuro, não lhe saía da mente a história do Sr. Enfield, como se passasse em imagens iluminadas. Ele podia ver as lâmpadas acessas na cidade noturna, o homem andando apressadamente, a criança correndo da casa do médico, e então a colisão, o humano Juggernaut derrubando a criança e pisando sobre ela apesar de seus gritos. Ou mais: podia ver o quarto em uma rica casa, onde seu amigo dormia, sonhava e sorria em seus sonhos; e então a porta do quarto seria aberta e as cortinas da cama puxadas, o homem adormecido seria chamado. E ali estaria, ao seu lado, a figura a quem o poder havia sido dado de, mesmo a essa hora da noite, obriga-lo a se levantar e cumprir suas ordens. A figura protagonista nestas duas cenas atormentou o advogado durante toda a noite e, se ele cochilasse por um momento que fosse, ela voltava mais vívida, espreitando-se por entre as casas adormecidas, ou movendo-se cada vez mais rapidamente pelos amplos labirintos da cidade, e, em cada esquina, esmagava uma criança e a deixava gritando. A figura não tinha um rosto que conhecesse e mesmo em seus sonhos não tinha uma face, ou então uma face aparecia e se desfazia diante de seus olhos. Mesmo sem rosto, cresceu rapidamente na mente do advogado uma curiosidade sobre os traços do verdadeiro Sr. Hyde. Se pudesse vê-lo somente uma vez, pensava que todo o mistério seria resolvido e
explicado, também poderia ver a razão pela estranha preferência, ou sujeição (chamem como quiser), de seu amigo e até entender as cláusulas do testamento. Pelo menos seria um rosto que valeria a pena ver, o rosto de um homem sem traços (entranhas?) de misericórdia, um rosto que se fizera aparecer apenas uma vez na mente do pouco impressionável Sr. Enfield para gerar um ódio duradouro. Daquele dia em diante, o Sr. Utterson começou a rondar aquela porta na rua das lojas. Fazia-o de manhã antes do horário de trabalho, ao meio dia, quando o trabalho era muito e o tempo escasso, e à noite, sob o nevoeiro da lua. Sob qualquer luz e a qualquer hora, o advogado era encontrado no seu posto escolhido. – Se ele for o Sr. Hyde – pensou –, devo ser o Sr. Seek³. E sua paciência foi recompensada. Era uma noite seca, sem chuva, as ruas estavam limpas como salões de festa, os lampiões não eram sacudidos pelo vento e desenhavam um padrão de luz e sombra. Às dez da noite, quando as lojas estavam fechadas, a rua estava vazia e silenciosa apesar dos sons abafados que vinham de toda Londres. Sons domésticos vinham das casas e eram audíveis dos dois lados da rua, e o barulho de aproximação de pessoas o precedia com bastante tempo. O Sr. Utterson estava havia alguns minutos em seu posto quando percebeu que passos ligeiros e mis³ A palavra “Hyde” é pronunciada da mesma forma que “hide”, que, em inglês, significa “esconder”. “Seek” significa “procurar”. Trata-se de um jogo de palavras intraduzível.
teriosos se aproximavam. Durante suas patrulhas noturnas, havia se acostumado ao fato curioso de que os passos de uma pessoa se tornavam audíveis mesmo ela estando a uma boa distância e com todo o barulho da cidade. Contudo, sua atenção nunca fora atraída tão definida e intensamente. Com uma forte intuição e previsão de sucesso, dirigiu-se para a entrada do pátio. Os passos foram se aproximando e se tornaram mais audíveis quando contornaram a rua. O advogado, olhando de perto, da entrada, pode rapidamente ver o homem com quem teria de lidar. Era pequeno e estava vestido de um modo comum. Entrou diretamente pelo pátio, atravessando a rua para poupar tempo e, quando chegou à porta, retirou uma chave do bolso. O Sr. Utterson se aproximou e lhe tocou o ombro. – Sr. Hyde, eu suponho? O Sr. Hyde o olhou assustado e respirou fundo, mas seu medo foi momentâneo. Mesmo não olhando o advogado nos olhos, respondeu calmamente: – Este é o meu nome. O que o senhor deseja? – Percebi que o senhor ia entrar – disse ao advogado. – Sou um velho amigo do Dr. Jekyll, Sr. Utterson da rua Gaunt. O senhor deve ter ouvido o meu nome e, como o encontrei em um momento oportuno, pensei que me deixaria entrar. – O senhor não encontrará o Dr. Jekyll aqui, ele não está
em casa – o Sr. Hyde retrucou, colocando a chave na fechadura. De repente questionou, ainda sem olhar: – Como me conhecia? – O senhor antes me faria um favor? – Com prazer – retrucou o outro. – Do que se trata? – Importa-se de me deixar ver seu rosto? O Sr. Hyde hesitou por um momento, para então, de repente, o olhar com um ar de desafio. Os dois se encararam fixamente por alguns segundos. – Poderei reconhecê-lo facilmente da próxima vez. Será útil – o Sr. Utterson afirmou. – Sim – respondeu o Sr. Hyde. – É bom que tenhamos nos encontrado. A propósito, o senhor deve ter meu endereço – e então lhe deu o número de uma rua no Soho. “Bom Deus”, pensou o Sr. Utterson. “Poderia ele também estar pensando no testamento?” Mas o advogado reservou seus sentimentos para si mesmo e não fez mais do que resmungar em agradecimento pelo endereço. – Agora – começou o outro –, como me reconheceu? – Por uma descrição. – Descrição de quem? – Nós temos amigos em comum – disse o Sr. Utterson.
– Amigos em comum – repetiu o Sr. Hyde. – Quem são eles? – Jekyll, claro – disse o advogado. – Ele nunca lhe falou de mim! – exclamou o Sr. Hyde, com ódio. – Não pensei que o senhor mentisse. – Ora, vamos lá – disse o Sr. Utterson. – Este não é um modo adequado de se falar. O outro explodiu em uma risada selvagem e, no momento seguinte, com uma extraordinária rapidez, destrancou a porta e desapareceu dentro da casa. O advogado ficou estático em seu lugar, deixado com sua inquietação. Devagar, começou a andar pela rua, pausando a cada dois passos para colocar sua cabeça em suas mãos como um homem perplexo. O problema com o qual se debatia enquanto andava era daqueles bem difíceis de resolver. O Sr. Hyde era pálido e parecia um anão, passava a impressão de ter alguma deformidade, sem mencionar alguma má formação; tinha um sorriso desagradável; comportara-se diante do advogado com uma mistura homicida de timidez e audácia e falava com uma voz rouca, sussurrante e fraca. Tudo isto eram pontos contra ele, e nem todos juntos podiam explicar a aversão, o medo e a repugnância com os quais o Sr. Utterson se recordava dele, sentimentos que até então lhe eram desconhecidos. – Deve haver mais alguma coisa – disse, confuso. – Há mais alguma coisa. Se eu pudesse nomear... Deus me per-
doe, aquele homem nem humano parecia. Algo de troglodita havia nele, podemos dizer assim? Ou pode ser a velha história do Dr. Fell4? Ou é a mera radiação de uma alma má que transpira enquanto transfigura o corpo ao qual pertence? E ainda penso: pobre e velho Henry Jekyll! Se eu já vi a assinatura do Diabo no rosto de alguém, foi com certeza no de seu novo amigo. Virando a esquina, havia uma quadra com lindas casas antigas, a maioria delas decadentes e transformadas em apartamentos e escritórios para todos os tipos de homens: gravadores de mapas, arquitetos, advogados e agentes de empresas obscuras. Entretanto, uma das casas, a segunda a partir da esquina, permanecia intocada, sendo ocupada por apenas um inquilino. À porta desta, que transmitia conforto e grandiosidade – ainda que estivesse mergulhada nas sombras a não ser por uma luz vinda da claraboia –, o Sr. Utterson parou e bateu. Um criado de idade avançada e bem vestido a abriu. – O Dr. Jekyll está em casa, Poole? – questionou o advogado. – Irei verificar, Sr. Utterson – disse Poole, deixando o visitante entrar, enquanto falava, em uma ampla sala com teto rebaixado e decorada com lajotas, aquecida (ao modo de uma casa do campo) com uma lareira e mobiliada com luJohn Fell: foi um bispo de Oxford no séc. XVII; com o tempo viu o seu nome convertido em sinônimo do homem por quem se cria antipatia sem causa justificada. 4
xuosa mobília de carvalho. – Irá esperar aqui perto do fogo, senhor? Ou prefere que eu acenda as luzes da sala de estar? – Ficarei aqui mesmo, obrigado – falou o advogado, aproximando-se da lareira. Esta sala, onde agora se encontrava sozinho, era a favorita de seu amigo e Utterson gostava de dizer que era a sala mais agradável de Londres. Porém, esta noite, sentia calafrios percorrerem suas veias. O rosto de Hyde não saía de sua memória, sentia-se nauseado e desgosto da sua vida (algo raro para si), e, em seu estado sombrio, parecia ler a ameaça no tremeluzir das chamas sobre os móveis polidos e na inquieta movimentação das sombras no teto. Sentiu-se envergonhado quando, ao regresso de Poole, anunciando que o Dr. Jekyll estava fora, uma sensação de alívio o tomou. – Vi o Sr. Hyde entrar pela sala de dissecação, Poole. Está certo de que o Dr. Jekyll não está em casa? – Sim, Sr. Utterson. O Sr. Hyde tem a chave – respondeu o criado. – O seu chefe parece ter bastante confiança nesse jovem homem, Poole – retornou o outro. – Sim, senhor, ele tem. Todos temos ordens de obedecê -lo – disse Poole. – Creio nunca ter me encontrado com o Sr. Hyde – o Sr. Utterson falou. – Oh, senhor, não mesmo. Ele nunca janta aqui – respon-
deu o mordomo. – Na verdade, nós o vemos muito pouco neste lado da casa, ele sempre entra e sai pelo laboratório. – Bem, boa noite, Poole. – Boa noite, Sr. Utterson. O advogado saiu triste da casa e com o coração pesado. “Pobre Harry Jekyll”, pensou. “Minha mente me diz que está em maus lençóis. Ele era animado quando jovem, há bastante tempo, claro, mas na lei de Deus, não há limitações. É, tem de ser isso, o fantasma de algum antigo pecado, o câncer de alguma desgraça oculta, o castigo que chega com passos trôpegos, anos depois de ter sido esquecido pela memória e perdoado pelo amor próprio”. O advogado, assustado com a ideia, pensou em seu próprio passado, procurando em toda a sua memória por alguma inquietude que viesse à luz. Seu passado era nada mais que irrepreensível, poucos homens podiam ver suas próprias vidas com menos apreensão. Ele era humilde para admitir as coisas erradas que já fizera, e voltou a se elevar pela sobriedade e temerosa gratidão pelas tantas que estivera perto de cometer, mas evitou. E então, voltando ao seu antigo assunto, teve um lampejo de esperança. “Este Sr. Hyde, se fosse investigado”, pensou. “Ele deve ter segredos, segredos escuros, segredos que, ao serem comparados com os do pobre Jekyll, fariam os deste parecerem como a luz do sol. As coisas não podem continuar assim. Fico arrepiado ao pensar nessa criatura rondando como um ladrão a cama de Henry. Pobre Henry, que
despertar! E o perigo que corre! Se esse Hyde suspeitar da existência do testamento, pode se tornar impaciente para se tornar o herdeiro. Oh, devo fazer algo. Se Jekyll me deixasse ajudar...�. Mais uma vez viu em sua mente claramente as estranhas clåusulas do testamento.
U
Dr. Jekyll estava Bem à vontade
ma quinzena depois, com um ótimo humor, o doutor deu um dos seus adoráveis jantares, para cinco ou seis velhos amigos, todos homens inte-
ligentes, com excelente reputação e conhecedores de um bom vinho. O Sr. Utterson conseguiu um jeito de ficar mais, mesmo depois de os outros terem ido embora. Isto não era novidade, era algo que já havia acontecido várias vezes anteriormente. Quando gostavam de Utterson, faziam-no verdadeiramente. Anfitriões amavam conversar com o advogado tímido quando ele já estava com a língua solta e os fofoqueiros já haviam ido embora; gostavam de se sentar com a sua discreta companhia e apreciar a solidão, mode-
rando as suas mentes depois de tanto contentamento no rico silêncio do homem. Para essa regra, o Dr. Jekyll não era exceção, e lá estava ele sentado do lado oposto à lareira, um grande, alto homem de cinquenta anos de feições amáveis, com certo toque de malicia, porém marcado por sua bondade; podia-se ver por seu olhar que tinha pelo Sr. Utterson uma sincera e calorosa afeição. – Eu estava querendo falar com você, Jekyll – começou o advogado. – Sabe o seu testamento? Um observador atento poderia dizer que aquele assunto era desagradável, mas o doutor prestou atenção alegremente. – Meu pobre Utterson... Você não teve sorte com esse cliente. Eu nunca vi homem mais angustiado por um testamento como você ficou com o meu, a não ser Lanyon sobre minhas heresias científicas. Oh, eu sei que ele é um bom amigo, não precisa se preocupar, um excelente amigo, e eu sempre quis vê-lo mais, apesar de ele ser um ignorante pedante e dissimulado. Nunca fiquei tão decepcionado com um homem, como fiquei com Lanyon – ele disse. – Você sabe que nunca aprovei – continuou Utterson, afastando rudemente do assunto. – Meu testamento? Sim, certamente eu sei sobre isto – retrucou o doutor sem dar importância – Você me disse. – Bem, irei lhe dizer novamente – retornou o advogado. –
Fiquei sabendo algumas coisas sobre o jovem Hyde. O rosto largo do Dr. Jekyll ficou pálido, até mesmo seus lábios, e os olhos ficaram escuros, quase negros. – Não quero escutar mais nada sobre isso. Este é um assunto que concordamos nunca mais mencionar. – O que eu ouvi era abominável – forçou Utterson. – Não irá mudar a minha opinião, você não entende a minha posição – respondeu o doutor em tom de contradição. – Estou em uma situação angustiante, minha posição é estranha. Não é um dos casos que pode ser resolvido com conversas. – Jekyll, você me conhece. Sabe que pode confiar em mim, me diga a verdade em confidência e prometo lhe tirar dessa. – Meu bom Utterson, isto é amável de sua parte e não consigo achar palavras para lhe agradecer. Acredito plenamente em você, acredito em você antes de qualquer homem vivo e antes mesmo de mim próprio. Porém, certamente, não é o que você está pensando, não se preocupe. Posso lhe dizer uma coisa: no momento em que eu escolher me livrar do Sr. Hyde, eu o farei. Prometo-lhe e agradeço de novo e de novo. Só irei acrescentar uma coisa, Utterson, e tenho certeza que você irá entender. Isto é assunto pessoal e lhe imploro que o deixe em paz. Utterson refletiu um pouco enquanto olhava para o fogo. – Não tenho dúvidas de que você está certo.
– Bem, já que tocamos nesse assunto, pela última vez, espero – continuou o doutor –, há algo que quero que entenda. Tenho muito interesse no pobre Hyde. Eu sei que o viu, ele me contou, e tenho medo de que ele tenha sido rude. Mas tenho sinceramente um grande afeto e interesse pelo jovem e, seu eu morrer, quero que você prometa ajudá-lo a defender o que lhe é de direito. Acho que você faria se soubesse de tudo, e me tiraria um peso das costas se me prometesse. – Não posso fingir que gosto dele – falou o advogado. – Não estou pedindo por isso – implorou Jekyll, pondo sua mão no braço do outro homem. – Só lhe peço justiça, peço que o ajude quando eu não estiver aqui. Utterson suspirou e disse: – Bem, eu prometo.
O caso do assassinato de Carew
Q
uase um ano depois, no dia 18 de outubro, Londres foi abalada por um crime tão feroz e notável pela alta posição da vitima. Os detalhes eram pou-
cos e assustadores. Uma empregada doméstica vivia sozinha em uma casa não muito longe do rio, subiu para ir dormir perto das vinte e três horas. Mesmo tendo uma névoa que sobrevoava a cidade, o começo da noite estava sem nuvens e a viela que se via da janela da empregada estava iluminada pela lua. Parecia que ela estava apaixonada. A mulher se sentou sobre o baú que dava para a janela e ficou sonhando acordada. Nunca (ela costumava dizer, com lágrimas nos olhos, enquanto narrava a experiência), nunca se sentira tão
em paz com todos os homens ou havia pensando no mundo tão carinhosamente. E, enquanto estava sentada, teve sua atenção voltada a um belo cavalheiro de cabelos brancos, se aproximando da viela e com outro cavalheiro indo ao seu encontro, este mais baixo, a quem ela não deu muita atenção. Quando eles começaram a conversar (o que aconteceu embaixo dos olhos da empregada), o cavalheiro mais velho se curvou em reverência educadamente. Não pareceu que sua saudação tivera a mínima importância, na verdade parecia que ele apenas perguntava a direção. A lua iluminou o seu rosto conforme ele falava e a mulher estava feliz em assistir: parecia transmitir uma delicadeza, uma disposição à moda antiga e, ao mesmo tempo, transmitia ser um homem satisfeito consigo mesmo. O olhar dela caiu, então, no outro cavalheiro, a quem ela reconheceu como sendo o Sr. Hyde, que já havia visitado o seu patrão e a quem ela tinha certo desgosto. Ele tinha em sua mão uma pesada bengala, e escutava com certa impaciência, nunca dizendo uma palavra. De repente, rebelou-se em fúria, batendo os pés no chão, brandindo a bengala e comportando-se como um homem louco. O cavalheiro mais velho deu um passo para trás, surpreso, e, naquele momento, o Sr. Hyde se descontrolou e o mandou ao chão com golpes da sua bengala. No próximo momento, estava pisando e quebrando os ossos de sua vítima. O som do corpo caindo na calçada, sem vida, junto ao
horror dessas cenas fizeram a empregada desmaiar. Eram duas horas da manhã quando ela voltou a si e ligou para a polícia. O assassinato havia acontecido há algum tempo, porém a vítima ainda estava no meio do beco, completamente mutilada. A bengala, que havia sido feita com uma madeira pesada e forte, quebrou-se no meio, tamanha a crueldade; um pedaço estava próximo à sarjeta e outro sem dúvidas havia sido levado pelo assassino. Uma carteira e um relógio de ouro foram encontrados próximos da vítima, nenhum cartão ou documento, exceto por um envelope lacrado e selado que provavelmente estava levando ao correio e que era endereçado ao Sr. Utterson. O envelope foi entregue ao advogado na manhã seguinte, antes mesmo que ele se levantasse, e assim que o viu e ficou sabendo das circunstâncias, disse solenemente: – Nada direi até ver o corpo. Talvez isto seja sério. Por favor, aguarde enquanto eu me visto. E, com a mesma feição, apressou-se para o café da manhã e foi até a delegacia, para onde o corpo havia sido levado. Assim que entrou na sala, assentiu. – Sim, eu o reconheço. Sinto muito dizer que este era o Sr. Danvers Carew. – Bom Deus, senhor! Isso é possível? – exclamou o policial. No momento seguinte, seus olhos brilharam com ambição profissional.
– Isso irá gerar um grande estardalhaço – o policial falou. – E talvez o senhor possa nos ajudar a encontrar o homem. Ele rapidamente narrou os fatos contados pela empregada e lhe mostrou a bengala quebrada. O Sr. Utterson tremeu ao ouvir o nome do Sr. Hyde, mas, quando o pedaço de bengala foi posto diante de si, ele não tinha mais dúvidas. Mesmo quebrada, reconhecia a bengala, ele mesmo a dera de presente para Henry Jekyll anos antes do acontecido. – Esse Sr. Hyde é de baixa estatura? – perguntou. – “Particularmente pequeno e de feições malignas” foi como a empregada o descreveu – disse o policial. O Sr. Utterson refletiu e então levantando sua cabeça: – Se vier comigo até minha carruagem, poderei lhe mostrar sua casa. Era quase nove horas da manhã e a primeira névoa da estação, um grande manto cor de chocolate, desceu do céu, mas o vento continuava soprando forte. Enquanto a carruagem passava de rua em rua, o Sr. Utterson observava cores em tons crepusculares. Estava quase tão escura quanto a noite e, por um momento, a névoa parecia quebrada, pois um pouco de luz solar aparecia entre ela. O lúgubre bairro do Soho – com suas ruas lamacentas, seus transeuntes sujos e seus postes, que nunca foram totalmente apagados para combater aquelas manhãs fúnebres –, aos olhos do advo-
gado parecia com alguma cidade saída de um pesadelo. Os pensamentos em sua mente, porém, ficavam cada vez mais tenebrosos e, quando ele olhava para a companhia durante o trajeto, ficava consciente do terror da lei e seus oficiais, que às vezes podem assombrar o mais honesto dos homens. Quando a carruagem se aproximou do endereço indicado, a névoa se dissipou um pouco e mostrou uma rua sombria, com um bar, um restaurante francês barato, uma loja de noventa e nove centavos, várias crianças em roupas esfarrapas se esgueirando pelas portas e várias mulheres de diferentes nacionalidades passando com chaves em mão, rumo a seu fumo matinal. No próximo momento, a névoa se dissipou mais um pouco, isolando-o naquele lugar tenebroso. Esta era a casa do protegido de Henry Jekyll, um homem herdeiro de mais de um milhão de libras. Uma senhora idosa abriu a porta. Tinha um rosto maligno cheio de hipocrisia, mas seus modos eram excelentes. Sim, ela disse, aquela era a casa do Sr. Hyde, mas ele não estava em casa. Era noite, mas ele tinha saído fazia menos de uma hora. Não havia nada de estranho nisso, os hábitos deles eram bem irregulares e ele raramente ficava em casa, para falar a verdade fazia quase dois meses que ela o havia visto em casa, até o dia anterior. – Bem, quero ver o quarto dele então! – falou o advogado e, quando a mulher começou a dizer que seria impossível, completou: – É melhor que eu lhe diga quem é essa pessoa. Este é o Inspetor Newcomen da Scotland Yard.
Um raio de odiosa alegria apareceu no rosto da mulher – Ah, ele está com problemas. O que ele fez? – ela perguntou. O Sr. Utterson e o inspetor trocaram olhares. – Ele não parece ser muito popular – observou o inspetor. – E agora, boa mulher, deixe que eu e o cavalheiro façamos uma busca. Em toda a extensão da casa não havia nada a não ser a velha senhora. Sr. Hyde havia utilizado apenas alguns quartos, mas que eram mobiliados com luxúria e bom gosto. Um armário com vinho, os pratos de prata, as toalhas elegantes, uma bela pintura pendurada na parede – presente, Utterson supunha, de Henry Jekyll, que era um conhecedor da arte – e tapetes de cores agradáveis. Naquele momento, entretanto, os quartos tinham todas as marcas de terem sidos arrumados há pouco tempo: roupas estavam no chão com os bolsos pra fora, gavetas estavam abertas e, na lareira, havia muitas cinzas, como se muitos papéis tivessem sido queimados. O inspetor desenterrou dali a lombada de um talonário verde que tinha resistido ao fogo. A outra metade da bengala foi achada atrás da porta, e tudo isto confirmava suas suspeitas. O inspetor se mostrou encantado. Depois de uma visita ao banco, onde milhares de libras estavam no nome do assassino, sua satisfação era completa. – Pode contar com isso, senhor – disse o Sr. Utterson. – Eu o tenho em minhas mãos. Ele deve ter perdido a cabeça ou
nunca teria deixado a bengala ou queimado o talonário. Por quê? Bem, dinheiro é a vida desse homem. Não temos nada a fazer a não ser esperá-lo no banco. Contudo, não foi tão fácil quanto eles esperavam. O Sr. Hyde tinha poucos familiares, mesmo o patrão da empregada o havia visto poucas vezes, sua família não podia ser achada, ele nunca havia sido fotografado e os poucos que podiam descrevê-lo o faziam de modo contraditório. Somente um ponto era concordado: a sensação de deformidade que o fugitivo deixava em todos.
J
O incidente da Carta
á era tarde quando o Sr. Utterson chegou à casa do Dr. Jekyll, onde mais uma vez foi recepcionado por Poole, que o levou à cozinha, atravessando o pátio que
antes havia sido um jardim até a construção que era conhecida como laboratório ou sala de dissecação. O médico havia comprado a casa de herdeiros de um famoso cirurgião e, como seus próprios gostos eram mais químicos que anatômicos, o doutor alterou a finalidade da construção no começo do jardim. Era a primeira vez que o advogado era levado a essa parte da casa. Ele observava o edifício sombrio e sem janelas com curiosidade e sentiu uma desagradável
sensação ao cruzar o anfiteatro, antes cheio de estudantes e agora silencioso e sem vida, as mesas cheias de aparatos químicos, o chão recoberto de caixotes e a luz saindo da cúpula embaciada. E no fim, uma escada dava a uma porta vermelha e, através dela, Utterson foi admitido no gabinete do douto. Era uma sala larga, cheia de armários de vidro, uma mesa de negócios, três janelas empoleiradas com barras de ferro. O fogo queimava na lareira, uma lâmpada estava acessa e, lá perto do fogo, estava o doutor Jekyll com um olhar triste, morto. Ele não se levantou para receber o seu amigo, mas lhe segurou a mão e o lhe deu boas vindas com uma voz gelada. – E agora – começou Utterson assim que Poole fechou a porta atrás dele –, você soube das notícias? O doutor estremeceu e respondeu: – Só se fala disso na praça, eu as escutei da minha sala de estar. – Uma palavra - disse o advogado. – Carew era meu cliente como você e quero saber o que estou fazendo. Você não está louco o bastante para esconder o seu protegido, certo? – Utterson, juro por Deus – chorou o doutor. – Juro por Deus que nunca mais olharei para ele. Dou-lhe a minha palavra que rompi com ele, está tudo acabado, e ele também não quer minha ajuda. Você não o conhece como eu, ele está a salvo, ele está a salvo. Guarde minhas palavras: você
nunca mais ouvirá nada sobre ele. O advogado ouviu tristemente. Não gostou da excitação febril de seu amigo. – Você parece ter certeza que ele se foi e, pelo seu próprio bem, espero que esteja certo. Se isso for a julgamento, talvez seu nome seja envolvido. – Eu tenho certeza – retorquiu Jekyll. – Tenho toda a certeza, mas não posso lhe dizer por quê. Mas há algo sobre o que irei precisar de conselhos. Recebi uma carta e não tenho certeza se devo mostrá-la a policia. Eu gostaria de entregar a você, Utterson, você julgaria sabiamente, sei disso. Confio plenamente em você. – Você está com medo, eu suponho. Você acredita que talvez essa carta possa levá-lo a ser preso? – perguntou o advogado. – Não, não me importo com que venha acontecer com Hyde, eu já rompi com ele. Eu estava pensando em mim mesmo, que fui muito exposto com esse caso. Utterson refletiu por um momento, estava surpreso com o egoísmo de seu amigo e ao mesmo tempo aliviado. – Bem, deixe-me ver a carta – pediu. A carta estava escrita com uma letra de mão estranha, reta e terminava com a assinatura “Edward Hyde”. Dizia brevemente ao seu benfeitor, o doutor Jekyll, que fora indignamente pago por sua generosidade sem medida, que não de-
via se preocupar com a sua segurança, que ele tinha meios de escapar e tinha total confiança em seus planos. O advogado tinha gostado daquela carta, colocava cor naquele relacionamento, e ele se culpou pelas suposições antigas. – Você tem o envelope? – Eu o queimei, antes que pensasse no que estava fazendo. Mas não tinha selos, foi entregue em mãos. – Devo ficar com isso e pensar sobre? – questionou Utterson. – Desejo que você o julgue por tudo. Perdi a confiança em mim mesmo. – Bem, irei considerar. E agora, mais uma pergunta, foi Hyde quem ditou as cláusulas do seu testamento? O doutor parecia fraco. Apertou os lábios juntos e concordou com a cabeça. – Eu sabia! Ele pretendia assassiná-lo! Você foi sortudo em escapar. – Recebi algo muito mais apropriado a esse propósito. Aprendi minha lição. Oh, Deus, Utterson, que lição eu tive – então cobriu seu rosto com as mãos. Ao sair do gabinete, o advogado conversou brevemente com Poole. – A propósito, quem entregou a carta? Qual era a aparência do mensageiro?
Mas Poole tinha certeza que só havia sido entregue cartas pelo correios. – E só foram entregues malas diretas – acrescentou. Essas notícias deixaram o visitante com os seus medos renovados. Era evidente que a carta chegara pela porta do laboratório, era provável que ela tivesse sido escrita no gabinete. E, se esse fosse a verdade, ele deveria julgar de modo diferente e com mais cautela. Os vendedores de jornal gritavam a plenos pulmões as notícias: – Edição extra: o assassinato chocante de um membro do parlamento! Aquela era a oração fúnebre de um amigo e cliente, e ele não podia deixar de sentir certa apreensão por achar que pelo menos o nome de outro iria estar envolvido nesse escândalo. Ao mesmo tempo, era uma decisão crítica que ele tinha que fazer. Sendo autoconfiante por hábito, começou a pensar em pedir conselhos a alguém. Talvez não diretamente, talvez pudesse jogar a isca e ver se era fisgado. Pouco depois, estava sentado perto de sua lareira com o Sr. Guest, o encarregado de seu escritório, e no meio deles a uma boa distância do fogo, estava uma garrafa de vinho maduro, que ficara muito tempo escondido do sol nas estufas da sua casa. A névoa continuava sobre a cidade, mas a sala estava iluminada pela luz proveniente da lareira, fazia tempo que os ácidos haviam sido libertados da garrafa, a
cor imperial se suavizara com o tempo, e a cor se tornava mais vivida nos vitrais. O advogado foi se acalmando, não havia ninguém a quem ele havia confiado mais segredos que o Sr. Guest, e nem sempre tinha certeza que ele os guardava como deveria. Guest já estava nos negócios havia um tempo, ele conhecia Poole, devia ter ouvido algo sobre o Sr. Hyde, se era familiarizado com o caso, podia tirar suas próprias conclusões. Sendo assim, ele poderia ter ouvido sobre a carta e poria um fim a esse mistério, certo? E, sobretudo, Guest sendo um grande estudante de caligrafia, consideraria natural essa consulta, era parte de sua obrigação. O encarregado era um bom conselheiro, ele dificilmente leria um documento sem fazer alguma observação, assim Utterson escolheria o momento certo para tomar uma decisão. – Que triste esse caso do Sr. Danvers. – Sim, senhor. Ele levantou opinião pública. O homem, claramente, era louco – disse Guest. – Eu gostaria de ouvir suas opiniões sobre o caso. Tenho aqui um documento com a caligrafia do sujeito. Peço que deixe somente entre nós, pois não sei o que fazer com isso. É um caso horrível. Mas aqui está, a assinatura do assassino. Os olhos de Guest brilharam e ele se sentou para estudar a caligrafia. – Não, senhor, ele não é louco. Mas esta caligrafia é estranha. – E certamente um escritor estranho – falou ao advogado.
De repente, a empregada entrou com uma nota. – É do Dr. Jekyll, senhor? – indagou o encarregado. – Pensei que conhecia a caligrafia. É algo privado, Sr. Utterson? – Somente um convite para jantar. Por quê? Quer dar uma olhada? – Por um momento. Obrigado, senhor. O encarregado colocou os dois papéis um ao lado do outro, comparando-os cuidadosamente. – Obrigado, senhor! – proferiu, devolvendo os papéis. – É uma assinatura bem interessante. Houve uma pausa, durante a qual o Sr. Utterson lutou contra si mesmo. – Por que as comparou, Guest? – Bem, senhor, há uma singularidade nelas, as duas escritas são quase idênticas, só a inclinação varia. – Muito estranho! – Como o senhor diz, muito estranho. – Eu não comentaria nada com ninguém sobre esta carta, você compreende? – Sim, senhor, eu entendo – respondeu o encarregado. Não muito depois, o Sr. Utterson depositou a carta em seu cofre. “Por que”, ele pensou “Henry Jekyll se fez passar pelo
assassino?�. Seu sangue gelou em suas veias com esse pensamento.
O
O incidente do Dr. Lanyon
tempo passou, milhares de libras foram oferecidas como recompensa, pois a morte do Sr. Danvers era considerada uma afronta pública. Porém,
o Sr. Hyde havia desaparecido dos olhos da polícia como se nunca tivesse existido. Muito de seu passado foi desenterrado, e todo ele era desrespeitável. Contos sobre sua crueldade foram revelados. Como era possível ele ser tão cruel e insensível? Histórias sobre sua vida vil, seus companheiros estranhos, sobre o ódio que parecia rondar toda a sua vida, mas, quando se falava da sua atual situação, nem um suspiro sequer era ouvido. Desde que saiu de sua casa no Soho
até a hora do assassinato, ele simplesmente havia sumido. E, enquanto o tempo passava, o Sr. Utterson começou a se recuperar do ardor do escândalo, sentindo-se mais calmo. A morte do Sr. Danvers, pensava, havia sido o preço para o desaparecimento do Sr. Hyde. Agora que a má influencia havia sido “enterrada”, uma nova vida começou para o doutor. Ele saiu da sua reclusão, renovou seus relacionamentos e voltou a ser um visitante adorável. Se antes era famoso por suas caridades, agora era conhecido por sua religião. Estava sempre ocupado, fazia exercícios ao ar livre e todo o bem que podia. Seu rosto estava iluminado como se tivesse em seu íntimo a consciência de ser útil. Por pelo menos dois meses, o doutor esteva em paz. No dia 08 de Janeiro, Utterson tinha jantado com o doutor Jekyll e um pequeno grupo de convidados. Lanyon havia sido convidado, e o rosto do anfitrião ia de um amigo ao outro, relembrando os velhos tempos onde o trio de amigos era inseparável. Porém, nos dias 13 e 14, a porta não se abriu para o advogado. – O doutor está confinado em casa – contou Poole. – Ele não vê ninguém. No dia 15, o advogado tentou novamente e foi recusado outra vez. E agora, acostumado a ver seu amigo todos os dias, achou o retorno à solidão um peso em suas costas. Na quinta noite, recebeu Guest para jantar e, na sexta, foi para a casa do Dr. Lanyon.
Lá, pelo menos, ele não era recusado, mas assim que entrou, ficou em choque com a mudança que havia acontecido na aparência do doutor. Ele tinha a morte aparente em seu rosto. O homem outrora rosado agora estava pálido, sua pele estava caída, ele estava careca e parecia mais velho. E ainda assim não foi a aparência que se sobressaiu aos olhos do advogado: era o olhar, um olhar de alguém que havia visto o horror com os próprios olhos. Não era possível que o médico estivesse com medo da morte, mas essa foi a ideia que ocorreu a Utterson. “Sim”, pensou. “Ele é um médico, deve ter conhecimento que os seus dias estão contados, e o conhecimento desse fato deve ser mais do que ele pode aguentar”. Quando Utterson comentou sobre sua aparência, Lanyon lhe disse que era um homem condenado. – Eu tive uma surpresa terrível! Nunca devo me recuperar, é questão de semanas. Bem, a minha vida foi agradável. Eu a aproveitei, sim, e costumava gostar dela. Às vezes, penso que se soubéssemos de tudo, seríamos mais agradecidos por ir embora. – Jekyll está doente também. Você o tem visto? – perguntou Utterson. O rosto de Lanyon mudou, e ele se segurou com a mão tremendo. – Desejo não ver e nem ouvir mais sobre o Dr. Jekyll – disse, com a voz alta e áspera. – Rompi completamente com esta pessoa e lhe peço que nunca mais faça alusão a este alguém que considero morto.
– Tudo bem – Utterson respondeu, depois uma pausa considerável. – Não há nada que eu possa fazer? Nós éramos um trio de amigos bem próximos, não viveremos para fazer outros. – Nada pode ser feito. Pergunte a ele – retorquiu Lanyon. – Ele não quer me ver – disse o advogado. – Não estou surpreso. Um dia depois que eu estiver morto Utterson, quero que você venha descobrir o que aconteceu, o certo e o errado. Não posso lhe contar, e, se nesse meio tempo você quiser sentar e falar sobre outros assuntos, por Deus, faça-o. Mas se não puder fugir desse assunto, peço a Deus que me ajude, pois não posso aguentar.
A
O incidente Da Janela
conteceu num certo domingo, enquanto o Sr. Utterson estava em sua habitual caminhada com o Sr. Enfield. Mais uma vez, seu caminho cruzou
com “aquela rua” e, quando caminharam pela porta da frente, os dois pararam e observaram. – Bem, aquela história teve um final, ao menos. Nunca mais iremos ver o Sr. Hyde – disse o Sr. Enfield. – Espero que não. – retrucou o Sr. Utterson. – Eu lhe disse que o vi uma única vez e passei a partilhar o seu sentimento de repulsa?
– Seria impossível outro resultado. E, a propósito, deve ter me achado um burro, por não saber que essa é a porta dos fundos da casa do Dr. Jekyll. Foi parte sua culpa que descobri. – Então você descobriu, não foi? Nesse caso, nós devíamos entrar pelo pátio e olhar pelas janelas. Para dizer a verdade, estou preocupado com o pobre Jekyll. E, mesmo aqui fora, acho que a presença de um amigo talvez o faça bem. O pátio estava gelado e pouco iluminado, era a única fonte de luz sendo o crepúsculo, mesmo o céu ainda brilhando com o sol. A janela do meio, entre três, estava meio aberta. E, sentado perto dela, respirando tristemente, o encarcerado desconsolado. Utterson olhou para o Dr. Jekyll. – Jekyll, espero que esteja melhor! – Estou bem mal, Utterson – respondeu o doutor sombriamente. – Bem mal. Não irei durar muito, graças a Deus. – Você fica muito preso dentro de casa – disse o advogado. – Você devia sair, deixar circular seu sangue, como eu e o Sr. Enfield. Este é meu primo, Sr. Enfield, e este é o Dr. Jekyll – apresentou. – Venha, pegue o seu chapéu e venha andar um pouco conosco. – Você é muito bom – retorquiu o doutor. – Eu gostaria muito mesmo, mas não... Não, não, não. É quase impossível. Não devo ir, mas, Sr. Utterson, estou muito feliz em vê-lo, foi um prazer. Até perguntaria se você e o Sr. Enfield gostariam de entrar, mas está tudo uma bagunça.
– Bem, o melhor que podemos fazer então é conversar com você de onde estamos – falou o advogado. – Era isso que iria propor! – respondeu o doutor, com um sorriso. Mas suas palavras nem foram completadas, pois o sorriso foi transformado em uma expressão de horror e desdém que congelou o sangue dos dois cavalheiros. Eles viram aquela expressão somente por um instante, mas foi o suficiente, se viraram e deixaram o pátio sem dizer uma palavra. Em silêncio, atravessam a rua, e não foi até chegaram a sua vizinhança, que mesmo aos domingos era cheia de vida, que o Sr. Utterson finalmente se virou para a sua companhia. Os dois estavam pálidos e com os olhos cheios de terror. – Deus nos perdoe. Deus nos perdoe – disse Utterson. O Sr. Enfield apenas acenou com a cabeça e continuou andando em silêncio.
O
A última Noite
Sr. Utterson estava sentado ao lado de sua lareira uma noite após o jantar quando foi surpreendido ao receber uma visita de Poole.
– Desculpe-me, Poole, mas o que o traz aqui? – exclamou. E então o olhou pela segunda vez. – O que o aflige? – acrescentou. – Estaria o doutor doente? – Sr. Utterson – falou o homem –, há algo errado. – Sente-se. Aqui está uma taça de vinho. Agora, não tenha pressa. Conte-me, claramente, o que você precisa.
– O senhor conhece o jeito do doutor – respondeu Poole –, e como ele se exila. Bem, ele se exilou no escritório novamente, e não gosto nada do jeito que as coisas andam, senhor. Eu preferiria morrer a concordar com isso. Estou com medo, Sr. Utterson. – Agora, meu bom homem, seja explícito. Do que você tem medo? – Eu estive assustado por quase uma semana – respondeu Poole, desconsiderando obstinadamente a questão. – E não posso mais suportar. A aparência de Poole trazia para superfície cada palavra, seus trejeitos alteraram-se para o pior e, exceto pelo momento em que anunciou seu terror pela primeira vez, não havia nenhuma vez olhado diretamente o advogado no olho. Até o momento, esteve sentado com a taça de vinho intocada em sua mão, com seus olhos direcionados a um canto qualquer no chão. – Não posso mais suportar – repetiu. – Venha – disse o advogado. – Vejo que você tem boas razões para estar aqui, Poole, vejo que há algo gravemente errado. Tente me dizer o quê. – Acredito que houve um crime – Poole disse, roucamente. – Um crime! – exclamou o advogado, bastante assustado e inclinado a irritar-se. – Que tipo de crime?! O que você quer
dizer, Poole? – Não me atrevo a dizer, senhor – foi a resposta. – Entretanto, o senhor viria comigo e veria por si mesmo? A única resposta do Sr. Utterson foi levantar-se e pegar seu chapéu e seu sobretudo. Observou com admiração a dimensão do alívio que surgiu no semblante do mordomo e, talvez com a mesma admiração, que o vinho encontrava-se ainda intocado quando Poole o devolveu à mesa para acompanhá-lo. Era uma noite selvagem e fria de março, com uma lua pálida a deitar-se de costas como se o vento a tivesse inclinado e feito com que ruínas com texturas de relva translúcida voassem. O vento fazia da conversação algo difícil e do rosto algo corado. Parecia ter despido das ruas seus transeuntes. Além disso, o Sr. Utterson considerava nunca ter visto aquela parte de Londres tão deserta. Ele poderia ter desejado o contrário – nunca em sua vida havia desejado tão fortemente ver e tocar seus semelhantes – porque, por mais que lutasse, não conseguia combater o esmagador sentimento de calamidade impresso em sua mente. Quando chegaram até a praça, tudo estava coberto por vento e poeira, e as finas árvores no jardim chicoteavam-se ao longo dos trilhos. Poole, que no decorrer do caminho havia se mantido um ou dois passos à frente, agora se encontrava parado no meio da calçada e, apesar do tempo tenebroso, tirou seu chapéu e enxugou sua testa com um lenço vermelho. Porém, mesmo com toda a sua pressa por
chegar, não foram os orvalhos frutos do esforço que ele enxugou, mas sim a umidade de uma angústia sufocante, pois seu rosto estava pálido e quando falava sua voz era áspera e entrecortada. – Bem, senhor – falou –, aqui estamos. Deus permita que não haja nada de errado. – Amém, Poole – retorquiu o advogado. Então, o criado bateu à porta de forma bem resguardada. Ela foi aberta pelo cadeado e uma voz vinda de dentro perguntou: – É você, Poole? – Está tudo bem – disse Poole. – Abra a porta. Quando entraram, o corredor estava iluminado de modo bastante vivo; o fogo estava alto e todos os servos, homens e mulheres, estavam amontoados tais como um rebanho de ovelhas. Ao avistar o Sr. Utterson, a empregada começou a choramingar histericamente e o cozinheiro exclamou “Bendito seja Deus! É o Sr. Utterson”, correndo em direção a ele como se fosse carregá-lo em seus braços. – O que, o quê? Vocês estão todos aqui? – disse o advogado de modo irritadiço. – Deveras irregular, muito impróprio. Seu mestre estaria longe de estar satisfeito. – Estão todos assustados – Poole explicou. Um silêncio arrebatador seguiu e ninguém protestou; so-
mente a camareira que agora chorava copiosamente. – Contenha-se! – Poole disse a ela, com uma ferocidade que testemunhava seus próprios nervos abalados; e de fato, quando a moça, tão de repente, começou a aumentar o tom da sua lamentação, todos viraram em direção à porta interna com semblantes de mortal expectativa. – E agora – continuou o mordomo, dirigindo-se ao ajudante de cozinha –, dê-me uma vela, e nós vamos acabar com isso de uma vez por todas com nossas próprias mãos. Então implorou ao Sr. Utterson que o seguisse, levando-o diretamente ao jardim dos fundos. – Agora, senhor, venha o mais suavemente que puder. Quero que o senhor ouça, não que seja ouvido. E preste atenção, senhor: se por acaso ele pedir que entre, não vá. Com esse final inesperado, os nervos do Sr. Utterson deram uma estremecida que quase o desequilibrou; mas ele recompôs sua coragem e seguiu o mordomo pelo prédio do laboratório através do centro cirúrgico, com caixas e garrafas ao pé da escada. Chegando lá, Poole fez-lhe sinal para que ficasse em um canto e ouvisse, enquanto ele mesmo, recolocando a vela e mantendo-se resoluto em sua decisão, subiu os degraus e bateu de forma incerta no batente vermelho da porta do escritório. – É o Sr. Utterson, senhor. Ele gostaria de vê-lo – Poole disse e, como havia feito antes, sinalizou violentamente para que o advogado desse ouvido.
Uma voz respondeu de dentro, queixosamente: – Diga a ele que não posso ver ninguém – Obrigado, senhor – Poole tinha uma pontada de triunfo em sua voz. Com sua vela em mãos, guiou o Sr. Utterson de volta ao jardim até a grande cozinha, onde o fogo queimava e os besouros pulavam no chão. – Senhor – falou Poole, olhando o Sr. Utterson nos olhos –, era essa a voz do meu mestre? – Parecia gravemente alterada – respondeu o advogado, muito pálido, mas retribuindo o encarar do mordomo. – Alterada? Bem, sim, eu acredito que sim. Passei vinte anos na casa deste homem para estar enganado sobre a sua voz? Não, senhor. O mestre foi aniquilado. Foi aniquilado há oito dias, quando nós o ouvimos clamar em nome de Deus. E quem está lá dentro no lugar dele e que insiste em permanecer lá é uma criatura que clama aos céus, Sr. Utterson! – Esse é um conto muito estranho, Poole, é um conto bárbaro, meu bom homem – o Sr. Utterson retrucou enquanto mordia seu dedo. – Supondo que os acontecimentos se deram do jeito como você supõe, supondo que o Dr. Jekyll tenha sido assassinado, por assim dizer. O que levaria o assassino a ficar? Isto é irreal. Não tem razão nenhuma que sustente esta teoria.
– Bem, Sr. Utterson, você é um homem que não se satisfaz facilmente, mas ainda provarei ao senhor – disse Poole. – Tudo isso se sucedeu semana passada, como o senhor deve saber, e ele, ou aquilo, seja lá o que for que está vivendo no escritório, tem clamado noite e dia por algum tipo de substância, e não consegue tirar isso da cabeça. Algumas vezes, era do jeito do meu mestre, o jeito como escrevia suas ordens em uma folha de papel e a arremessava na escada. Nós não tivemos nenhuma carta esta semana, nada além de papéis e uma porta fechada, e os pratos de comida deixados para serem coletados quando ninguém estivesse olhando. Bem, senhor, todos os dias, duas, às vezes três vezes no mesmo dia, tive ordens e reclamações, e tenho sido mandado às pressas para todas as farmácias químicas em atacado da cidade. Cada vez que eu trazia a substância de volta, haveria outro papel me dizendo para devolvê-la, porque a mesma não era pura, e lá ia eu sendo mandado para outra farmácia. Essa droga ruim é amargamente desejada, seja lá para o que for. – Você teria algum desses papéis? – perguntou Sr. Utterson. Poole tateou seu bolso e entregou um bilhete amassado, o qual o advogado aproximou mais perto da vela e examinou com clareza. Em seu conteúdo constava: “Dr. Jekyll apresenta seus comprimentos aos senhores Maw. Ele os assegura de que a última amostra que enviaram era impura e completamente inútil às finalidades desejadas. No ano 18 -, Dr. J. adquiriu uma grande quantidade dos senhores M. Ele
agora implora que os senhores busquem com maior atenção e, se ainda restar algum vestígio de algo da mesma qualidade, entreguem a ele de uma vez. Os custos não importam. A importância que isto tem para o Dr. J. dificilmente pode ser expressa.” Até então a carta estava composta de modo civilizado o bastante, mas de repente, com um abrupto arranhar da caneta no papel, as emoções do escritor romperam-se. “Pelo amor de Deus” acrescentou. “Encontre-me um pouco da boa e velha substância.” – Este é um bilhete muito estranho – disse Sr. Utterson. E completou rispidamente: – Como foi que você o tinha aberto? – O homem na Maw’s estava extremamente zangado, senhor, tão zangado que jogou o bilhete de volta pra mim como se fosse lixo – retrucou Poole. – Essa é inquestionavelmente a caligrafia do doutor, sabia? – retomou o advogado. – Eu achei que parecia com a letra dele – disse o servo com mau humor. E então, com outro tom de voz: – Mas de que importa a escrita? Eu o vi! – O viu? – repetiu o Sr. Utterson. – E então? – Foi isso! Foi dessa maneira, que, enquanto eu vinha repentinamente pelo teatro no jardim, me pareceu que ele tinha saído para procurar a droga ou o que quer que seja, porque a porta do escritório estava aberta, e ali estava ele no outro extremo da sala a revirar entre os caixotes. Olhou
pra cima quando me aproximei, deu uma espécie de grito e subiu correndo para o escritório. Foi por apenas um minuto que o vi, mas o suficiente para que todos os pelos da minha cabeça se erguessem em terror. Senhor, se aquele era o meu mestre, porque teria ele uma máscara sobre seu rosto? Se era o meu mestre, porque chiou como um rato e correu de mim? Eu o servi por tempo suficiente. E então... – Poole pausou e passou a mão sobre seu rosto. – Essas são todas circunstâncias muito estranhas – disse Sr. Utterson –, mas acredito que estou começando ver a luz no fim do túnel. Poole, seu mestre foi apoderado por um desses padecimentos que tanto torturam quanto deformam quem sofre do mal, pelo o que sei, por isso a alteração em sua voz, o uso da máscara e o ato de evitar seus amigos. Consequentemente, sua ânsia por encontrar esta droga, que é a única esperança de que a pobre alma retém para obter a recuperação derradeira. Deus queira que ele não se engane! Essa é a minha explicação. Já é triste o suficiente, Poole, e é apavorante considerar, mas é simples e natural, faz sentido como um todo e nos livra de todos os alardes exorbitantes. – Senhor – rebateu o mordomo, tornando-se pálido –, aquela coisa não era o meu mestre, e essa é a verdade. Meu mestre – Poole olhou em volta de si e começou a sussurrar – é um homem alto e finamente construído, e aquilo estava mais para um anão – Utterson tentou protestar. – Oh, senhor – clamou Poole –, o senhor acha que depois de vinte anos eu não reconheceria meu mestre? O senhor acha que não sei de onde sua cabeça aparece na porta do escritório
onde o vi a cada manhã da minha vida? Não, senhor, aquela coisa na máscara nunca foi o Dr. Jekyll. Só Deus sabe o que era, mas nunca foi o Dr. Jekyll. E acredito de todo meu coração que um assassinato foi cometido. – Poole – retrucou o advogado –, se você está dizendo isso, então tornou meu dever averiguar o caso. Por mais que eu deseje poupar os sentimentos do seu mestre, por mais que eu esteja intrigado com este bilhete que parece provar que ele ainda está vivo, irei considerar meu dever arrebentar esta porta e ver o que há no escritório do Dr. Jekyll. – Ah, Sr. Utterson, é assim que se fala! – exclamou o mordomo. – E agora vem a segunda questão – retomou Utterson: – Quem é que irá arrombar a porta? – Não seja por isso, eu e o senhor – foi a destemida resposta. – Muito bem dito – retornou o advogado. – E o que quer que venha disso, eu farei de meu interesse que você não saia perdendo. – Há um machado no teatro – continuou Poole. – E o senhor pode pegar o atiçador utilizado na cozinha para si. O advogado tomou aquele rústico, porém significativo instrumento em suas mãos e o balançou. – Você sabia, Poole – ele falou, olhando para cima –, que nós estamos prestes a nos colocar em uma posição de certo
risco? – Pode se dizer que sim, senhor, com certeza – respondeu o mordomo. – É bom, então, que sejamos francos – disse o outro. – Nós dois achamos mais do que dissemos. Vamos colocar tudo em pratos limpos. Esta figura mascarada que você viu... Você a reconheceu? – Bem, senhor, passou tão rapidamente que a criatura parecia de certa forma duplicada, eu não pude reconhecer com total certeza – foi a resposta. – Mas se o senhor está sugerindo, seria este o Sr. Hyde? Bem, sim, acredito que era! Veja bem, era do mesmo tamanho e tinha o mesmo jeito rápido e leve, e então quem mais poderia ter entrado pela porta do laboratório? Teria o senhor se esquecido que ele ainda dispunha da chave na época do assassinato? Mas isso não é tudo, Sr. Utterson. O senhor chegou a conhecer o Sr. Hyde? – Sim – replicou o advogado –, conversei com ele uma vez. – Então o senhor deve saber, assim como o restante de nós, que havia algo de estranho naquele cavalheiro, algo que dava a qualquer homem um mau presságio, não sei muito bem como descrever, senhor, além disso: era possível sentir um calafrio precipitando-se sob sua espinha. – Também senti algo como o que você descreveu – disse o Sr. Utterson.
– Isso mesmo, senhor – retornou Poole. – Bem, quando aquela coisa mascarada pulou como um macaco de entre os produtos químicos e correu para o escritório, aquilo subiu na minha espinha como gelo. Oh, eu sei que não pode constar como evidência, Sr. Utterson, fui educado o suficiente pra saber, mas um homem tem suas suspeitas, e eu lhe dou minha palavra de honra de que foi o Sr. Hyde. – Minhas suspeitas tendem para o mesmo ponto – o Sr. Utterson falou. – Receio que nada de bom possa resultar desta situação. Genuinamente acredito em você, acredito que o pobre Henry foi morto, e acredito que o seu assassino (por que razão, apenas Deus pode dizer) ainda está à espreita no quarto de sua vítima. Bem, que o nosso nome seja vingança. Chame Bradshaw. O lacaio veio prontamente, respondendo à convocação, muito pálido e nervoso. – Recomponha-se, Bradshaw – disse o advogado. – Sei que este suspense está pesando sobre todos vocês, mas agora é de nossa intenção colocar um fim a tudo isso. Poole e eu iremos forçar nossa entrada no escritório. Se tudo correr bem, acredito que meus ombros serão largos o suficiente para aguentar a culpa. Enquanto isso, para que não haja a chance de nada dar errado e de que nenhum mal feitor tente escapar pela parte de trás, você e o garoto deverão ir até a esquina com um par de fortes bastões e tomar seus postos na porta do laboratório. Nós lhe daremos dez minutos para chegar a seus postos.
Assim que Bradshaw partiu, o advogado olhou pra seu relógio. – E agora, Poole, vamos nos colocar em posição – e colocando o atiçador debaixo do braço, liderou o caminho até o jardim. Uma ventania havia se apossado da Lua, fazendo com que escurecesse severamente. O vento, que soprava de forma irregular somente naquela parte funda do edifício, atirava a chama da vela para frente e para trás conforme iam descendo as escadas, até encontrarem abrigo no teatro, onde se sentaram silenciosamente esperando por um sinal. Londres cantarolava solenemente ao redor deles; mas de perto, a quietude só era quebrada por sons de passos movendo-se pra lá e pra cá pelo chão do escritório. – E assim ele irá andar o dia inteiro, senhor – sussurrou Poole. – Oh, e na maior parte da noite. Apenas quando uma nova amostra chega do químico que há uma pausa. Ah, uma consciência doentia é um inimigo muito difícil de sedar! Ah, senhor, há sangue incrustado aos montes em cada passo desta coisa! Mas escute mais uma vez, um pouco mais atentamente, coloque seu coração em seus ouvidos, Sr. Utterson, e diga-me: seriam esses os passos do doutor? Os passos caiam de forma leve e estranha, com certa oscilação, seguiam em um ritmo tão devagar. Eram realmente diferentes do jeito pesado de Henry Jekyll. O Sr. Utterson suspirou.
– Existe mais alguma coisa? – perguntou ele. Poole assentiu. – Uma vez – disse ele. – Uma vez eu o ouvi chorar! – Chorar? Como? – questionou o advogado, sentindo um súbito arrepio de horror. – Em prantos como uma mulher ou uma alma perdida – respondeu o mordomo. – Aquilo se abateu sob meu coração de tal forma que eu poderia ter chorado também. Neste momento, os dez minutos chegaram ao fim. Poole desenterrou o machado debaixo de uma pilha de palha usada para embalar; a vela foi colocada sob a mesa mais próxima para que pudesse iluminar o caminho quando eles atacassem; e, com a respiração suspensa, eles se aproximavam para onde os passos vacilantes ainda estavam pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, no calar da noite. – Jekyll – o advogado exclamou, em voz alta –, exijo ver você! – hesitou por um momento, porém não houve nenhuma resposta de dentro do escritório. – Dou-lhe um sincero aviso, nossas suspeitas foram despertadas, e eu preciso e irei vê-lo – continuou. – Se não por meios legais, então por meios desagradáveis. Se não dispomos do seu consentimento, usaremos a força bruta! – Utterson – proferiu a voz –, pelo amor de Deus, tenha piedade! – Ah, essa não é a voz do Jekyll, é a voz de Hyde! – bradou
o Sr. Utterson. –Abaixo com esta porta, Poole! Poole balançou o machado acima de seu ombro; o golpe abalou o edifício, o batente vermelho saltou contra a fechadura e as dobradiças da porta. Um grito sinistro, assim como o de um animal aterrorizado, ecoou do escritório. E para cima ia o machado, de novo e de novo. Os painéis caíram e as estruturas estavam prestes a ceder. Por quatro vezes o golpe foi desferido, mas a madeira era resistente e os acessórios foram convenientemente forjados. E não foi até o quinto golpe que a fechadura arrebentou e os destroços da porta caíram para dentro do tapete. Os invasores, atraídos pelo seu próprio tumulto e pela calmaria que se sucedeu depois dele, colocaram-se um passo atrás e ficaram à espreita. Em frente aos seus olhos, estava o escritório sob a luz tranquila do abajur, um fogo rubro a crepitar na lareira, a chaleira cantando sua melodia de ebulição, uma ou duas gavetas abertas, papéis ordenadamente definidos sob a mesa de negócios e, próximo ao fogo, as coisas estavam postas para o chá. O cômodo mais quieto, poderia ser dito, e, a não ser pelas prateleiras de vidro cheias de substâncias químicas, mais comum em Londres naquela noite. Bem no meio deste cenário encontrava-se o corpo dolorosamente contorcido de um homem e que ainda apresentava pungentes espasmos. O advogado e o mordomo se aproximaram cautelosamente, viraram a coisa de costas e contemplaram o rosto de Edward Hyde. Ele estava vesti-
do em roupas largas demais para seu tamanho – roupas do comprimento das do doutor. Os músculos de seu rosto ainda moviam-se com algum vestígio de vida, mas a vida nele havia se esvaído há tempos: pelo frasco estilhaçado em sua mão e o forte odor de amêndoa que pairava no ar, Utterson sabia que estava olhando para o corpo de um suicida. – Chegamos tarde demais – ele falou, severamente – seja pra salvar ou punir. Hyde se foi por conta própria. E só nos resta agora achar o corpo do seu mestre. A maior proporção do edifício era ocupada pelo teatro, que ocupava todo o pavimento térreo e foi iluminado de cima, e pelo escritório, que formava um andar superior em um dos lados e localizava-se em direção ao pátio. Um corredor unia o teatro à porta da rua, e por um lance de escadas o escritório tornava-se um cômodo independente. Não havia nada além de alguns poucos armários obscuros e um espaçoso porão. Tudo isso agora estava sendo minuciosamente examinado. Bastava um olhar para cada armário, já que todos estavam vazios, e pela poeira que caía quando os abriam, todos eles permaneceram fechados por muito tempo. De fato, o porão estava repleto de cacarecos aleatórios, a maioria do tempo do cirurgião que precedeu Jekyll; entretanto, pelo tapete de teia perfeitamente tecido que havia selado a entrada da porta por anos, deram-se conta da inutilidade de persistir na procura. Não havia nenhum vestígio de Henry Jekyll, vivo ou morto. Poole indicou as lajes no corredor.
– Ele deve estar enterrado aqui – disse ele, ouvindo atentamente ao som. – Ou ele pode ter fugido – retrucou Utterson, e virou para examinar a porta que dava para a rua. Ela porta estava trancada e, ao lado das bandeiras, encontraram a chave manchada pela ferrugem. – Isso não parece algo utilizável – observou o advogado. – Usada! – ecoou Poole. – O senhor não consegue ver que está quebrada em cima? Como se um homem a tivesse pisoteado. – Ah – continuou Utterson – e as dobradiças estão enferrujadas também – os dois homens olharam-se com pavor. – Isso vai muito além de mim, Poole. Vamos voltar para o escritório. Subiram as escadas em silêncio e ocasionalmente ainda olhavam com certo terror para o cadáver, seguindo a vasculhar meticulosamente o conteúdo do escritório. Em uma mesa havia vestígios de experiências químicas, uma série de montinhos de algum sal branco distribuídos em discos de vidro, como se o infeliz estivesse se preparando para algum tipo de experimento. – Essa é a mesma droga que eu lhe trazia sempre – contou Poole. Assim que ele terminou de falar, a chaleira transbordou com um ruído espantoso. Isso os levou para perto da lareira, onde a poltrona esta-
va confortavelmente posicionada, e a louça do chá estava à mão para quem ali estivesse sentado, o açúcar ainda na xícara. Havia vários livros em uma prateleira. Um deles encontrava-se aberto ao lado das coisas para o chá, e Utterson ficou impressionado em encontrar uma cópia de um manuscrito religioso, pelo qual Jekyll tinha muito apreço e o qual havia mencionado várias vezes, escrito com sua própria mão com chocantes blasfêmias. Seguindo com o curso da busca ao redor do escritório, os dois homens depararam-se com um grande espelho, e olharam para o objeto com um horror involuntário. O espelho estava posicionado de uma forma que não refletia nada além do brilho rosado do forro, o fogo reluzindo em centenas de repetições nas frentes vítreas dos armários, juntamente com seus próprios reflexos que mostravam semblantes pálidos e temerosos. – Esse espelho já viu muitas coisas estranhas, senhor – sussurrou Poole. – E, certamente, nada mais estranho que a si mesmo – ecoou o advogado no mesmo tom. – Por que Jekyll faria... – ele sentiu a palavra cair com um começo de acesso, mas controlou a súbita fraqueza. – O que poderia Jekyll querer com esta coisa? – É uma ótima pergunta! – disse Poole. Em seguida, dirigiram-se para a escrivaninha. Em cima dela, juntamente com a organização perfeita de papéis, um
grande envelope destacava-se e, escrito com a caligrafia do médico, estava o nome do Sr. Utterson. O advogado abriu a carta e vários anexos caíram ao chão. O primeiro era um documento estruturado nos mesmos termos excêntricos que aquele que o médico devolvera seis meses antes, para servir como um testamento em caso de morte e como uma escritura de doação em caso de desaparecimento. Porém, ao invés do nome de Edward Hyde, o advogado, com indescritível assombro, leu o nome de Gabriel John Utterson. Ele olhou para Poole, e então de volta para o papel, e por último para o malfeitor estendido no tapete. – Minha cabeça está dando voltas – falou. – Edward Hyde esteve todos esses dias em posse desta carta. Ele não tinha nenhum motivo para gostar de mim. Deve ter se enfurecido por se ver ser substituído e mesmo assim não destruiu este documento. Ele pegou o próximo papel, um breve bilhete escrito com a letra do médico e datado no topo. – Oh, Poole! – o advogado exclamou. – Ele estava vivo bem aqui ainda hoje. Não pode ter sido descartado em tão pouco tempo. Deve estar vivo, deve ter fugido! Mas então, por que fugir? E como? E, nesse caso, podemos nos aventurar a categorizar isso como suicídio? Oh, nós devemos ser cautelosos. Prevejo que ainda podemos envolver seu mestre em uma catástrofe horrenda. – Por que não as lê, senhor? – perguntou Poole.
– Porque tenho medo – respondeu o advogado, solenemente. – Deus queira que eu não tenha nenhum motivo para tanto! E assim ele trouxe o papel para mais perto dos olhos e leu o que ali havia:
“Meu caro Utterson, Quando esta carta cair em suas mãos, eu já terei desaparecido, sob quais circunstâncias não tenho o poder de prever, mas meu instinto e todo o contexto da minha obscura situação me dizem que o fim é certo e deve ocorrer logo. Vá agora ler o relato que Lanyon me alertou que iria colocar em suas mãos. E se você se importar em saber mais, volte-se para a confissão de seu indigno e infeliz amigo, HENRY JEKYLL”
– Havia um terceiro anexo? – indagou Utterson. – Aqui, senhor – disse Poole e o deu em mãos um considerável pacote selado em vários lugares. O advogado o colocou em seu bolso. – Eu não falaria a respeito deste papel. Esteja o seu mestre desaparecido ou morto, nós podemos ao menos salvar
sua reputação. São dez horas agora, devo retornar a minha casa e ler estes documentos calmamente. Mas devo estar de volta até a meia-noite, quando nós mandaremos chamar a polícia. Saíram, trancando a porta do teatro atrás deles e Utterson, mais uma vez deixando os criados juntos à lareira no corredor, marchou penosamente de volta ao seu escritório para ler as duas histórias nas quais este mistério seria revelado.
N
A narrativa do Dr. Lanyon
o dia nove de janeiro, exatamente quatro dias atrás, recebi pelo correio noturno uma carta registrada e endereçada com a caligrafia do meu
colega de profissão e um antigo companheiro de escola, Henry Jekyll. Eu estava bastante surpreso por esta entrega, porque não tínhamos, de forma alguma, o hábito de trocar cartas. Eu via o homem, jantava com ele, inclusive na noite anterior a chegada da carta, e não poderia imaginar nada em nossa amizade que justificaria a formalidade da chegada de uma carta registrada. O conteúdo só fez aumentar o meu espanto. Era assim que a carta seguia:
“10 de Dezembro, 18-.
Querido Lanyon, você é um dos meus amigos mais antigos, e mesmo que nós tivéssemos divergido em relação a questões cientificas, não consigo lembrar, pelo menos a meu ver, de qualquer pausa na sua afeição em relação à nossa amizade. Não existiu um dia onde, se caso dissesse para mim “Jekyll, minha vida, minha honra, minha razão, dependem de você”, eu hesitaria em sacrificar minha mão esquerda para ajudá-lo. Lanyon, minha vida, minha honra, minha razão, estão todas à mercê da sua piedade; se me abandonar esta noite, estarei perdido. Você pode supor, após esse prefácio, que estou prestes a lhe pedir que me conceda algo indigno. Julgue por si mesmo. Quero que adie todos os seus compromissos desta noite – ah, mesmo que tenha sido convocado a comparecer à cabeceira de um imperador. Quero que pegue um táxi, a menos que sua carruagem esteja, literalmente, à porta. E, com esta carta em suas mãos para posterior consulta, dirija-se diretamente para minha casa. Poole, meu mordomo, já tem suas instruções. Você irá encontrá-lo a sua espera com um chaveiro. A porta do meu escritório deve então ser forçada, e você deve adentrá -lo sozinho. Abra a prensa de vidro (letra E) à esquerda, rompendo a fechadura caso esteja fechada. Deve retirar a quarta gaveta de cima
pra baixo ou (o que dá na mesma) a terceira de baixo pra cima, com todo o conteúdo que apresentar-se nelas. Em meio a minha extrema aflição de espírito, tenho um mórbido receio de lhe dar as instruções erradas; mas, mesmo que eu erre, você poderá identificar a gaveta correta pelo seu conteúdo: alguns pós, um pequeno frasco de vidro e um livro. Imploro que você leve esta gaveta, exatamente da maneira como você a encontrou, de volta com você até a Praça Cavendish. Esta é a primeira parte do serviço. Agora, para a segunda parte: deve estar de volta, se aceitar o recebimento desta proposta, bem antes da meia-noite; mas irei deixar para você uma margem grande de horas, não só por temer um daqueles obstáculos que não podem ser prevenidos nem previstos, mas sim porque é preferível que espere até uma hora depois dos serventes estarem em repouso para dar andamento ao que resta a ser feito. Então, à meia-noite, quero que esteja sozinho em seu consultório, para pessoalmente permitir a entrada de um homem que irá se apresentar em meu nome e confiar em suas mãos a gaveta que terá retirado do meu escritório. Aí, então, você terá desempenhado sua parte e conquistado minha gratidão completamente. Cinco minutos depois, se insistir em uma explicação,
entenderá que essas preparações são de suma importância, e que, com o esquecimento de uma delas, por mais que pareçam elementos fantásticos, pode debitar da sua consciência a minha morte ou o naufrágio da minha razão. Por mais que eu esteja confiante de que você não irá menosprezar a situação, meu coração está pesado e minhas mãos tremem só de considerar esta possibilidade. Lembre-se de mim neste momento, em um lugar estranho, trabalhando envolta de um negrume de aflição a que toda as pessoas estão aderindo, e mesmo assim bem informado de que, se você me servir pontualmente, meus problemas irão rolar para longe, assim como uma um piada que é contada. Sirva-me, meu querido Lanyon, e me salve. Seu amigo, H. J.”
P.S. – Eu havia selado este envelope quando um repentino terror abateu-se sob minha alma. É possível que o carteiro falhe, e esta carta pode não chegar a suas mãos até amanhã de manhã. Nesse caso, caro Lanyon, atenda aos meus pedidos, durante o dia, quando for
mais conveniente; e mais uma vez espere meu mensageiro à meia-noite. Pode ser tarde demais agora; e, se, esta noite passar em branco, você vai saber que viu o fim de Henry Jekyll.
Após ler esta carta, constatei que meu amigo estava louco; mas até que isso fosse provado, acima de qualquer dúvida, senti-me obrigado a fazer como ele pedia. Quanto menos eu compreendia daquela confusão, menor era a minha capacidade de determinar sua importância; e um apelo tão estrategicamente regido não poderia ser colocado de lado sem ser tomado com grande responsabilidade. Levantei-me da mesa de acordo com as especificações, entrei em uma carruagem e me dirigi diretamente à casa do Jekyll. O mordomo estava aguardando minha chegada; ele havia recebido uma carta registrada com instruções pelo mesmo correio que o meu e prontamente mandou chamar um chaveiro e um carpinteiro. Os comerciantes chegaram enquanto ainda estávamos conversando, e nos deslocamos para o velho centro cirúrgico do Dr. Denman, de onde (como você está, sem dúvida nenhuma, ciente) o escritório particular de Jekyll é mais convenientemente acessado. A porta era muito bem estruturada, a fechadura era excelente. O carpinteiro adiantou que teria bastante dificuldade e que ele teria que causar severos danos, caso fosse preciso o uso da força; e o chaveiro estava à beira de se desesperar. Porém, ele era um companheiro extremamente útil e, após duas horas de trabalho, a porta encontrava-se aberta. A prensa com o “E”
demarcado estava destrancada. Retirei a gaveta, a preenchi com palha, amarrei em uma camada protetora e retornei com o objeto para Cavendish Square. Prossegui admirando seu conteúdo. Os pós foram compostos de forma razoavelmente pura, mas não com a precisão de um químico, de modo que era claro que eles eram da produção particular de Jekyll. E, quando abri um dos embrulhos, encontrei o que me pareceu um simples e cristalino sal de cor branca. O pequeno frasco de vidro – o qual eu agora estava examinando com total atenção – deveria estar preenchido com um licor de cor vermelho-sangue, que era altamente ofensivo às vias respiratórias e me pareceu conter fósforo e alguns elementos voláteis. Já dos outros ingredientes eu não conseguia fazer nenhuma ideia. O livro era uma versão em formato comum para os livros e continha poucas coisas, mas abrangeu várias datas. Isso cobriu muitos anos, mas observei que as entradas cessaram quase um ano atrás e de forma abrupta. Aqui e ali uma breve observação anexada a algumas datas, geralmente não mais que uma palavra: “duplicar” repetiu-se quase seis vezes em um total de centenas de entradas, e uma vez, bem no começo da lista seguido de vários pontos de exclamação, “fracasso absoluto!!!!”. Tudo isso despertou minha curiosidade, mas não deu nenhuma resposta em definitivo sobre o que seria isto. Ali estava um frasco de algum sal e o registro de uma série de experimentos que levaram (como muitas das investigações do Jekyll) a nenhum fim prático de utilidade. Como pode a presença desses artigos em minha casa afetar a honra, a sanidade ou a vida do meu amigo inconsequente? Se sua
mensagem pode chegar a um lugar, como pode não chegar a outros? E mesmo acontecendo algum imprevisto, porque este cavalheiro deveria ser recebido por mim em segredo? Quanto mais eu ponderava, mais convencido eu estava de estar lidando com um caso de doença mental. E, mesmo tendo mandado meus ajudantes dormir, recarreguei um revolver antigo, para que pudesse ser encontrado em posição de autodefesa. Meia-noite havia se apossado de Londres de forma breve, antes que o esperado visitante batesse à porta de forma muito gentil. Eu mesmo fui atender ao chamado da porta e encontrei um homenzinho agachado aos pilares da varanda. – O senhor vem da parte do Dr. Jekyll? – perguntei. Ele me disse “sim” através de um gesto constrangedor e, quando eu o convidei a entrar, não me obedeceu sem antes vasculhar com o olhar toda a escuridão da praça. Havia um policial não tão longe, antecipando-se com seu olhar de touro bem aberto. Ao avistar o policial, achei que meu visitante começou a apressar o procedimento e a fazer uma grande pressão. Devo confessar que essas particulares abateram-se sobre mim de forma desagradável. Enquanto eu o seguia sob a luz forte do consultório, mantive minha mão prontamente posicionada sob a minha arma. Aqui, finalmente, tive a oportunidade de vê-lo claramente. Eu nunca havia colocado os olhos nele antes, mas uma coisa era certa: ele era pequeno, como eu havia dito; porém, além disto, fui abatido pela cho-
cante expressão em seu rosto, com sua notória combinação de grande atividade muscular e aparente deformidade da constituição física, e – por último, mas não menos importante – com estranha e subjetiva perturbação causada por sua permanência na vizinhança. Isso trouxe certa semelhança ao emergente rigor e foi acompanhado por uma marca funda no pulso. Naquele momento, assumi isto a uma aversão pessoal e idiossincrática, e me espantei com a intensidade desses sintomas. Depois disto, tive razões para acreditar que a causa repousava mais profundamente, na natureza do homem e que dependia de algo mais nobre que mero sentimento de ódio. Esta pessoa (que tinha, portanto, do primeiro momento de sua entrada, despertado em mim o que posso somente descrever como uma curiosidade de mau gosto) estava vestido de forma que faria uma pessoa comum digna de risos; as roupas dele, por assim dizer, embora fossem de material rico e de tecidos sóbrios, eram em cada centímetro simplesmente folgadas demais para ele – as calças penduradas em suas pernas e dobradas pra cima para mantê-las fora do alcance do chão, a cintura do casaco embaixo de seu quadril, e o colarinho esparramado de forma ampla em seus ombros. Porém, por mais estranho que possa parecer, esse encontro estava longe de me despertar risos. Pelo contrário, existia algo anormal e ilegítimo na criatura que me encarava – algo de apreensão, surpresa e revoltante –, essa nova disparidade parecia se encaixar bem para reforçar sua personalidade. Deste modo, passou a ser de meu interesse a natureza do homem e seu caráter, adicionados à curiosidade com rela-
ção a origem dele, sua vida, sua fortuna e status no mundo. Essas observações, mesmo que tenham tido grande espaço para serem escritas, foram a impressão de poucos segundos. O visitante parecia estar em brasas, preso por uma obscura excitação. – Você o tem? – exclamou ele. – Você o tem? – e tão evidente era sua impaciência que chegou a repousar sua mão em meu braço e tentou me sacudir. Recuei de seu toque, consciente de que aquilo causaria certa pontada gelada em meu sangue. – Venha, senhor – disse eu. – O senhor se esqueceu de que ainda não tive o prazer de conhecê-lo. Sente-se, se quiser. Dei o exemplo, claro, e me sentei em meu assento habitual, com uma imitação razoável de minha postura corriqueira com relação a um paciente, tanto quanto me permitia a noite que corria tarde, a natureza da minha preocupação, e o horror que eu tinha do meu visitante. – Perdão, Dr. Lanyon – respondeu, suficientemente civilizado. – O que o senhor disse foi bem estruturado; e minha impaciência se desigualou às minhas boas maneiras. Aqui venho em nome de seu colega, Dr. Henry Jekyll, para resolver alguns assuntos de momento; e eu havia entendido... – pausou e pôs suas mãos em sua garganta. Eu pude ver, apesar de sua maneira calma, que ele estava lutando contra a aproximação da histeria – Eu havia entendido, que uma gaveta...
Neste momento, me compadeci do suspense do meu visitante e, talvez, da minha própria curiosidade crescente. – Aqui está, senhor – falei, apontando para a gaveta que se encontrava no chão atrás de uma mesa e ainda coberta com o papel. Ele pulou em sua direção e então fez uma pausa, colocando sua mão sobre seu coração. Eu podia ouvir seus dentes rangerem devido à ação convulsiva de sua mandíbula; seu rosto era pavoroso de se ver, tanto que temi por sua vida e por sua sanidade. – Recomponha-se – proferi. Ele retornou um sorriso terrível para mim e, como se agisse por desespero, arrancou a folha que cobria a gaveta. Ao avistar o conteúdo dali de dentro, soltou um soluço estridente de imenso alivio, de tal forma que me sentei petrificado. E no momento seguinte, em sua voz que já estava razoavelmente sob controle: – O senhor teria um cilindro de medição? – indagou. Levantei-me de onde estava com certo esforço e dei a ele o que havia pedido. Agradeceu-me com um aceno sorridente, mediu uma porcentagem da tintura vermelha e adicionou os pós. A mistura, que no começo era de uma tonalidade avermelhada, começou, na proporção em que os cristais derretiam, a clarear, a efervescer de modo audível e a jorrar pequenas nuvens de
vapor. De repente e ao mesmo tempo, a ebulição cessou e o composto mudou para roxo escuro, então desbotou novamente, dessa vez para um verde aguado. Meu visitante, que havia observado estas metamorfoses com um olhar penetrante, sorriu, colocou o cilindro sobre a mesa, e então virou e olhou para mim com um ar minucioso. – E agora – disse –, vamos liquidar o que resta. O senhor me acompanhará o raciocínio? O senhor me permitiria pegar este copo e sair de sua asa sem mais explicações? Ou a avidez da curiosidade já tomou pleno controle do senhor? Pense antes de responder, pois isso será feito como o senhor decidir. De acordo com sua decisão, o senhor será deixado como estava antes, nem mais rico, nem mais sábio, a não ser que o senso de dever cumprido para com um homem em mortal angústia possa ser contado como um tipo de riqueza da alma. Ou, se assim preferir, uma nova província de conhecimentos, e novos caminhos para fama e poder irão se abrir para o senhor aqui, neste cômodo, neste instante, e sua vista será golpeada por um fenômeno capaz de estupefar o próprio Satã. – Senhor – retorqui, apresentando uma frieza que eu estava longe de possuir verdadeiramente –, o senhor fala em enigmas e talvez não irá se espantar com o fato de eu o escutar com crença não muito forte. Entretanto, já cheguei longe demais neste caminho de serviços inexplicáveis para pausar antes que eu veja o fim. – Muito bem então – respondeu meu visitante. – Dr.
Lanyon, o senhor se lembra dos seus votos; o que se seguira está sob o juramento de nossa profissão. E, agora, o senhor que por tanto tempo ligou-se às visões mais estreitas e materiais, que tem negado a virtude da medicina transcendental, que zombou de seus superiores... Contemple! Ele pôs o copo em seus lábios e bebeu em um gole só. Um grito se seguiu. Ele cambaleou, vacilou, agarrou-se à mesa, olhando com olhos injetados, ofegando com a boca aberta. E, conforme eu observava, ali surgiu, pensei, uma mudança: ele parecia ter inchado, seu rosto tornou-se repentinamente preto e suas características derreteram-se e modificaram-se. No momento seguinte, coloquei-me em pé e saltei contra a parede, meus braços ergueram-se para me proteger daquele fenômeno, minha mente submergida em terror. – Oh, Deus! – gritei. – Oh, Deus! – e de novo e de novo. Pois ali, bem em frente aos meus olhos, estava ele, pálido e trêmulo, quase desmaiando e tateando a sua frente como um homem restaurado da morte, ali estava Henry Jekyll! O que me contou na hora seguinte, não consigo trazer à mente de modo a colocar no papel. Eu vi o que vi, eu ouvi o que ouvi, e minha alma encheu-se de náuseas. E mesmo agora que a visão desapareceu dos meus olhos, perguntome se acredito e não consigo encontrar resposta. Minha vida foi abalada até suas raízes; o sono me deixou; o terror mais mortal senta-se ao meu lado em todas as horas do dia e da noite; e sinto que meus dias estão contados, que devo morrer; e ainda assim morrerei incrédulo. Como a moral torpe
que a humanidade revelou a mim, mesmo com lágrimas de penitência, não consigo, mesmo em memória, debruçar-me sobre o acontecido sem um começo de horror. E vou dizer uma coisa, Utterson, e que (se você conseguir com que sua mente dê crédito a isso) será mais que suficiente. A criatura que penetrou meu lar àquela noite era, na própria confissão de Jekyll, conhecido pelo nome de Hyde e caçado por todos os cantos da Terra como o assassino de Carew. Dr. HASTIE LANYON
O depoimento comple to de Henry Jekyll sobre o
N
Caso
asci no ano de 18-, com grande fortuna; dotado, inclusive, de excelentes talentos, naturalmente inclinado à indústria; apreciador do respeito à
sabedoria e à bondade entre meus semelhantes; e, assim, como se pode supor, com todas as garantias de um futuro honrável e distinto. E, de fato, o pior dos meus defeitos era certa alegre impaciência no temperamento, que fez a felicidade de muitos, mas que também era difícil de conciliar com meu imperioso desejo de andar com a cabeça erguida e de exibir nada mais que uma expressão mais sóbria diante do
público. Assim, então, acabei por esconder meus prazeres e, depois de refletir por anos, comecei a olhar ao meu redor para avaliar meu progresso e posição no mundo, vi-me acometido de uma grande duplicidade em mim mesmo. Muitos homens teriam até mesmo exibido as mesmas irregularidades das quais eu era culpado, mas vistos os altos padrões que eu havia colocado para mim, os considerei e escondi com um senso de ridículo quase mórbido. Foi isso, mais a natureza exata das minhas aspirações, do que qualquer degradação particular em meus defeitos, que fez de mim o que eu era e me deu uma vala mais profunda do que a da maioria dos homens, separando em mim as duas metades – boa e má – da qual é composta a natureza dual do ser humano. Neste caso, fui levado a refletir profundamente naquela dura lei da vida, que jaz nas raízes da religião e é uma das fontes mais abundantes de agonia. Embora paradoxal, eu não era um hipócrita; ambos os lados eram verdadeiros em mim; não era menos eu quando colocava de lado meu contentamento e mergulhava em vergonha, nem quando trabalhava, à luz do dia, no avanço do conhecimento ou no alívio da dor e sofrimento. E aconteceu que meus estudos científicos, que se direcionavam para o místico e transcendental, reagiram e iluminaram fortemente a perene guerra entre meus membros. Todos os dias, com os dois lados de minha inteligência – o moral e o intelectual –, eu me encontrava cada vez mais perto daquela verdade, cuja descoberta parcial me condenou a uma terrível conclusão: que o homem não é verdadeiramente um, mas dois. Digo dois, pois
minha própria sabedoria não vai além deste ponto. Alguns me seguirão, outros me ultrapassarão em tal raciocínio e arrisco dizer que o homem ficará conhecido meramente como uma política de habitantes multiformes, incongruentes e independentes. De minha parte, tendo em vista a natureza de minha vida, segui em uma direção, e uma direção apenas. Foi no lado moral e em minha própria pessoa, que aprendi a reconhecer a completa e primitiva dualidade do homem; vi que, das duas naturezas presentes no campo de minha consciência, mesmo que eu pudesse ser corretamente reconhecido como uma delas, seria apenas porque eu era radicalmente ambas. E, desde muito cedo, mesmo antes que o rumo de minhas descobertas científicas começassem a sugerir a mais remota possibilidade de um milagre, aprendi a divagar prazerosamente, em um adorável devaneio, na separação desses elementos. Eu disse a mim mesmo que, se cada um pudesse ser guardado em identidades separadas, a vida estaria livre de tudo o que é insustentável: o injusto seguiria seu caminho, livre das aspirações e remorsos de seu gêmeo opressor, e o justo caminharia com firmeza e segurança, fazendo as coisas boas nas quais encontrasse prazer, não mais exposto à desgraça e penitência nas mãos desse estranho mal. A maldição da humanidade era ter estes ramos incongruentes amarrados juntos – no útero agonizante da consciência, estes gêmeos polares seriam Dr. Jekyll e Sr. Hyde brigando constantemente. Como, então, eles se dissociariam? Estava perdido em minhas reflexões, quando, da minha
mesa no laboratório, vi brilhar uma luz sobre tal questão. Passei a perceber, mais profundamente do que nunca, a frágil imaterialidade, a transigência nebulosa deste dito sólido corpo no qual andamos atados. Descobri que certos agentes tinham o poder de agitar e arrancar esse revestimento carnal, da mesma forma que o vento balançaria as cortinas de uma janela. Por duas boas razões, não me aprofundarei na ciência de minha confissão: primeira, porque fui forçado a aprender que a desgraça e o fardo de nossa vida estão para sempre ligados aos ombros dos homens e que a tentativa de livrá-lo disso faz com que volte para nós com uma pressão desconhecida e terrível. Segunda, porque, como minha narrativa deixará claro, minhas descobertas foram incompletas. Mas basta saber que não apenas reconheci meu corpo natural por sua simples aura e o fulgor de certos poderes que fazem meu espírito, mas compus uma droga pela qual tais poderes seriam depostos de sua supremacia e substituídos por uma segunda forma, não menos naturais para mim, pois eram a expressão nua e crua dos elementos mais baixos de minha alma. Hesitei muito, bem antes de testar a prática dessa teoria. Eu sabia muito bem que corria risco de morte, pois a droga que controlava e abalava com tanta potência a fortaleza da identidade, poderia – com uma pequenina overdose ou uma ínfima oportunidade de erro no momento da exibição – destruir o tabernáculo imaterial que eu procurava mudar. Porém, a tentação de uma descoberta tão profunda e singular finalmente sobrepôs os alarmes de perigo. Meu extrato estava preparado há muito tempo; comprei, numa indústria
química, grande quantidade de um sal peculiar que eu sabia, por meus experimentos, ser o último ingrediente necessário. Tarde da noite, juntei todos esses elementos, observei enquanto borbulhavam e ferviam dentro do béquer e, quando a ebulição terminou, em um relance de coragem, bebi toda a poção. Logo após engolir, senti dores lancinantes: trituração nos ossos, uma náusea mortal e um horror no espírito que não pode ser excedido na hora do nascimento nem na hora da morte. Então essas agonias começaram a diminuir vagarosamente e voltei a mim como se tivesse me recuperado de uma grave doença. Havia algo estranho em minhas sensações, algo indescritivelmente novo e, dada a sua novidade, incrivelmente doce. Sentia-me mais jovem, mais leve, mais disposto. Por dentro, estava consciente de uma impetuosa imprudência, uma sequência de imagens sensuais em desordem passando como um filme em minha mente, uma solução aos laços do dever; uma liberdade desconhecida, mas não inocente, da alma. Vi-me, com o primeiro sopro desta nova vida, mais cruel. Dez vezes mais cruel, vendido como escravo àquela minha maldade original e me deleitei com isso, naquele momento, como quem se deleita com um bom vinho. Estiquei minhas mãos, exultante com a novidade daquelas sensações e, ao fazê-lo, percebi que havia perdido estatura. Naquela época, não havia um espelho em meu escritório. Aquele que fica ao lado de minha escrivaninha veio depois, para que eu pudesse ver o resultado dessas transforma-
ções. A noite, contudo, já se transformara em manhã – negra como estava, parecia quase madura para a concepção do Dr. Jekyll e o Sr. Hyde. Os criados estavam dormindo um sono profundo e eu, determinado, cheio de esperança e triunfo, levei minha nova forma até meu quarto. Atravessei o pátio, onde as estrelas olharam para mim – curiosas, pensei, pois era a primeira vez que uma criatura assim cruzava sua vigilância sem sono. Passei às escondidas pelos corredores, um estranho em minha própria casa, e, chegando em meu quarto, vi pela primeira vez a face de Edward Hyde. Agora, falo apenas teoricamente, dizendo não o que sei, mas o que imagino ser mais provável. O lado mau de minha natureza, para o qual eu transferira o poder, era menos robusto e desenvolvido do que o lado bom que eu acabara de depor. Dado o fato de minha vida ser, desde sempre, nove décimos de uma vida esforçada, virtuosa e controlada, meu lado mau foi muito menos exercitado e exaurido. Por isso, creio eu, que Edward Hyde era muito menor, mais magro e mais jovem do que Henry Jekyll. Da mesma forma que, no rosto de um havia bondade estampada, na face do outro, estava o mal ampla e claramente inscrito. O mal – que ainda devo acreditar ser a parte letal do homem –, deixara naquele corpo uma marca de deformidade e decadência; ainda assim, quando olhei para aquela criatura feiosa no espelho, não senti repugnância, mas uma tendência a recebê-lo. Este também era eu. Parecia natural e humano. Aos meus olhos, ele carregava uma imagem mais viva do espírito, parecia mais singular e expressivo do que o semblante imperfeito e dividido ao qual eu estava acostumado. Até aqui, eu estava completamente
certo. Pude observar que, enquanto eu usava o semblante de Edward Hyde, ninguém se aproximava de mim pela primeira vez sem se retrair visivelmente. Isso, imaginei, se devia ao fato de que os seres humanos, como os conhecemos, são uma combinação de bem e mal. E Edward Hyde, sozinho no gênero humano, era puramente mau. Não permaneci muito tempo na frente do espelho: o segundo experimento, mais conclusivo, ainda precisava ser feito. Faltava-me descobrir se eu perdera de vez minha identidade, o que me faria fugir antes do amanhecer de uma casa que já não era mais minha. De volta ao meu gabinete, novamente preparei e bebi da poção; mais uma vez sofri das agonias da dissolução e voltei a mim, outra vez com o caráter, a estatura e o rosto de Henry Jekyll. Naquela noite, eu chegara à encruzilhada fatal. Se tivesse chegado àqueles resultados com um espírito mais nobre, se tivesse feito o experimento com aspirações pias ou generosas, tudo teria sido diferente e, a partir das agonias de morte e nascimento, eu teria saído um anjo ao invés de um demônio. A droga não tinha resultado previsto, não era nem diabólica nem divina, ela apenas escancarou as portas de minha prisão interior e, como os cativos de Philippi5 , o que estava dentro correu porta afora. Naquele momento, minha virtude caiu, sonolenta; a minha maldade manteve a ambição acordada, alerta e pronta para aproveitar-se da ocasião 5
Referência à prisão de S. Paulo em Filipos, Atos dos Apóstolos, cap. XVI.
e o que foi projetado foi Edward Hyde. Assim, apesar de eu ter agora dois caráteres, juntamente com duas aparências, um era completamente mal e o outro permanecia o velho Henry Jekyll – aquele conjunto de incongruências cuja reforma e melhoria eu desistira de esperar. Dessa forma, a mudança, gradual, só poderia ser para pior. Mesmo naquela época, eu não conquistara minhas aversões à secura de uma vida estudiosa. Por vezes me encontrava bem disposto e animado; como meus prazeres eram, no mínimo, impróprios e eu não só era muito conhecido e altamente considerado, como estava envelhecendo e essa incoerência de minha vida estava, cada dia mais, insuportável. Foi esse lado que minha nova força tentou, até que eu me tornasse seu escravo. Eu precisava beber, apenas, para me livrar do corpo do notável professor e assumir, como uma capa espessa, Edward Hyde. Sorri àquele pensamento; me parecia engraçado e me preparei com muita cautela. Comprei e mobiliei a casa no Soho, onde Hyde estava sendo seguido pela polícia, e contratei como governanta uma criatura que eu sabia ser discreta e inescrupulosa. Por outro lado, avisei a criadagem que um tal Sr. Hyde (a quem descrevi) teria total liberdade e poder sobre a minha casa da praça e, a fim de evitar problemas, cheguei mesmo a visitar a casa sob minha segunda aparência, para me tornar alguém familiar. Depois, rascunhei aquele testamento que você tanto contestou, para que, caso qualquer coisa me acometesse como Dr. Jekyll, eu poderia retornar como Edward Hyde sem perdas financeiras. Então, supondo-me completamente seguro, passei a me beneficiar da estranha imunidade de
minha posição. Antigamente, os homens contratavam bandidos para cometer seus crimes, protegendo, assim, a si mesmos e suas reputações. Fui o primeiro a fazê-lo por prazer. Fui o primeiro a poder passear em público com uma carga de sociável respeitabilidade e, no momento seguinte, como se fosse um estudante, me livrar de tais amarras e me jogar no mar da liberdade. Mas, para mim, em meu impenetrável manto, a segurança estava completa. Pense nisso: eu nem mesmo existia! Deixe que eu escape até meu laboratório, com um ou dois segundos para misturar e beber da poção que eu sempre tinha pronta e, o que quer que tenha sido feito, Edward Hyde sumiria como uma mancha de hálito bafejado num espelho; e cá em seu estável e quieto lar, sob a luz de seu escritório, o homem que pode se dar ao luxo de rir de qualquer suspeita sobre si, esse seria Henry Jekyll. Os prazeres que apressei em procurar sob meu disfarce, eram, como eu havia dito, infames; eu dificilmente usaria um outro termo mais pesado. Porém, nas mãos de Edward Hyde, eles logo se tornaram monstruosos. Ao voltar de uma dessas excursões, eu geralmente era tomado por um assombro ante as atrocidades que realizava. Esse parente que eu chamara de minha própria alma e mandara sozinho para fazer o que lhe aprouvesse, era alguém inerentemente maligno e vil; todos os seus atos e pensamentos voltados para si próprio; bebendo prazer de qualquer nível de tortura com uma avidez bestial; implacável como um homem de pedra. Henry Jekyll, às vezes, ficava horrorizado com os atos de
Edward Hyde, mas a situação fugia às leis comuns e insidiosamente relaxava o peso na consciência. Afinal de contas, era Hyde, e apenas ele, o culpado. Jekyll não era pior; acordava novamente para suas boas qualidades, como se inalterado, e até mesmo apressava-se, quando possível, em desfazer o mal causado por Hyde. E assim sua consciência adormecia. Sobre os detalhes das infâmias das quais fui cúmplice (quais mesmo agora ainda me é difícil admitir) não pretendo adentrar. Quero apenas apontar os avisos e os sucessivos passos em que meu castigo se aproximava. Tive um acidente no qual, como não teve consequências mais graves, apenas mencionarei. Um ato de crueldade com uma criança levou sobre mim a ira de transeunte, que reconheci outro dia na figura de seu parente; o doutor e a família da criança se juntaram a ele; houve momentos em que senti pela minha vida; e então, a fim de acalmar sua indignação, Edward Hyde os trouxe até a porta, e lhes pagou em um cheque assinado por Henry Jekyll. Mas esse perigo foi logo eliminado, ao abrir-se uma conta em outro banco no nome do próprio Edward Hyde; e assim, inclinando minha letra de mão para trás, forneci ao meu outro eu uma assinatura, e achei que estava além do alcance da falta de sorte. Cerca de dois meses antes do assassinato do Sr. Danvers, eu estava em uma de minhas aventuras. Tinha retornado bem tarde, e acordei no dia seguinte em minha cama com uma sensação estranha. Em vão olhei ao meu redor; em vão observei os discretos móveis e a grande proporção de
minha casa junto à praça; em vão reconheci o padrão das cortinas do quarto e o desenho da moldura de magno; algo continuava insistindo que eu não estava onde estava, que não havia acordado onde me encontrava, mas sim em um pequeno quarto em Soho, onde me acostumei a dormir no corpo de Edward Hyde. Sorri para mim mesmo, e no meu jeito psicológico de ser, comecei a preguiçosamente me examinar sobre os elementos dessa ilusão, ocasionalmente, enquanto isso fazia, mergulhando em um confortável cochilo matinal. E assim eu estava quando, em um dos meus momentos mais vigilantes, meus olhos caíram sobre minhas mãos. As mãos de Henry Jekyll (como comentou diversas vezes) eram profissionalmente perfeitas: largas, firmes, brancas e graciosas. Mas as mãos com as quais me deparava agora eram, claramente, diante das luzes amareladas de uma manhã em Londres, finas, cobertas de veias, com juntas salientes, com uma palidez sombria e com tufos de pelo. Eram as mãos de Edward Hyde. Devo tê-las encarado por cerca de meio minuto, mergulhado, como estava, na mera estupidez do espanto, antes do terror tomar conta de meu peito tão repentina e surpreendentemente quanto o estrondar de louças caindo ao chão. E, saltando da cama, corri ao espelho. A visão que tive fez meu sangue se transformar em algo repentinamente fino e gelado. Exatamente, eu havia me deitado como Henry Jekyll e acordado como Edward Hyde. Como poderia explicar isso? Perguntei-me, então, com outro sobressalto de terror: como posso concertar isso? Já estávamos no meio da manhã, os criados já estavam de pé; os meus remédios
estavam no escritório - uma longa jornada por dois pares de escadas, passando pela passagem dos fundos, através do pátio interno até o anfiteatro, tudo muito além de onde me encontrava agora, amedrontado. Poderia cobrir meu rosto, mas isso de nada adiantaria já que não poderia esconder a alteração de minha estatura. E então, com uma poderosa dose de alívio, lembrei que os criados já estavam acostumados com as idas e vindas de meu segundo eu. Logo me vesti, tão bem quanto pude, em roupas do meu próprio tamanho: atravessei a casa, onde Bradshaw me avistou e recuou ao ver o Sr. Hyde aquela hora em trajes improvisados. E então, dez minutos depois, Dr. Jekyll reassumia sua própria aparência e se sentava à mesa para tomar café da manhã, com sua fronte escurecida. Estava sem apetite. Esse acidente inexplicável, essa reversão das minhas experiências anteriores, parecia, como o dedo babilônico que escrevia na parede, estar soletrando as letras de meu julgamento; e comecei a pensar, mais do que nunca, sobre os problemas e possibilidades de minha dupla existência. Essa parte de mim, que eu tinha o poder de projetar, vinha sendo muito exercitada e alimentada; parecia para mim que, ultimamente, o corpo de Edward Hyde havia crescido em estatura, e que (quando eu assumia aquela forma) eu possuía uma energia maior; comecei a perceber um perigo que, caso isto fosse prolongado, o equilíbrio de minha natureza poderia ser mudada permanentemente, o poder de minha troca voluntária seria ameaçado, e o personagem de Edward Hyde passaria a ser irrevogavelmente eu. O poder da droga não se manifestava sempre com a
mesma intensidade. Uma vez, bem cedo em minhas experiências, ela falhou completamente; desde então venho sendo obrigado, em diversas ocasiões, a dobrar, e, uma vez, a triplicar a dose, aumentando infinitamente o risco de morte; e essas incertezas tinham projetado a única sombra que pairava sobre minha satisfação. Agora, entretanto, sobre as luzes daquele acidente matinal, eu tinha que admitir que, no começo, minha maior dificuldade era de me transformar para fora do corpo de Jekyll. Isto estava mudando. Tudo parecia apontar para isso, que eu estava lentamente perdendo o controle sobre o meu eu original e de bom caráter, e lentamente me transformando no meu segundo eu, a pior versão. E agora eu sentia que devia escolher entre os dois. Minhas duas naturezas compartilhavam um memória em comum, mas todas as outras características eram completamente diferentes. Jekyll (que era conciso), hora era mais sensível e apreensivo, ora mostrava um gosto ganancioso, projetado e compartilhado sobre os prazeres e aventuras de Hyde; mas Hyde era indiferente a Jekyll, ou talvez pensasse nele como um bandido pensa na caverna na qual usa como esconderijo. Jekyll tinha preocupações de um pai; Hyde tinha a indiferença de um filho. Escolher Jekyll seria matar todo aquele apetite nos quais eu secretamente me deleitava e os quais haviam se tornado tão essenciais para mim. Escolher Hyde seria morrer para milhares de interesses e aspirações, e me tornar, de uma só vez, desprezado e abandonado. A comparação parece desigual, mas ainda havia algo a ser colocado em pauta; pois enquanto Jekyll sofreria a dor da abstinência,
Hyde nem haveria de saber o que tinha perdido. Por mais estranhas que as circunstâncias fossem, os termos desse debate eram tão antigos e corriqueiros quanto o homem; muitos desses argumentos e receios caem sobre a consciência de todo pecador; e sucedeu sobre mim, assim como sucedeu com a maioria de meus semelhantes, que escolhi a melhor parte, apenas para me ver incapaz de sustentá-la. Sim, preferi ser um maduro e insatisfeito médico, cercado de amigos e alimentando esperanças honestas e dei adeus a minha liberdade, a minha juventude, ao meu passo leve, aos impulsos vigorosos e aos prazeres secretos que havia desfrutado sob a pele de Hyde. Fiz essa escolha talvez com uma ressalva inconsciente, pois mantive a casa em Soho e não destruí as roupas de Edward Hyde, as quais continuaram em meu escritório. Por dois meses, no entanto, continuei firme sobre minha escolha; por dois meses vivi uma vida de austeridade como jamais vivi, e aproveitei as compensações de uma consciência tranquila. Mas o tempo foi aos poucos diminuindo a urgência de meu susto; o prazer de minha consciência começou a se tornar algo rotineiro; comecei a ser torturado por impulsos e ânsias, como se Hyde estivesse lutando pela liberdade; e então, em um momento de fraqueza moral, mais uma vez voltei a produzir e ingerir a poção transformadora. Imagino que, quando um viciado se questiona sobre seu vício, uma a cada quinhentas vezes ele perde a noção dos perigos que sua instabilidade física está lhe levando. Do mesmo modo, eu também, depois da decisão tomada, não me dei conta da completa insensibilidade moral e da insensata propensão à crueldade que eram
as características principais de Edward Hyde. Mesmo assim, foram por elas que fui punido. Meu demônio tinha sido encarcerado por muito tempo e ele saiu rugindo. Eu tinha a consciência, mesmo no momento em que bebia a poção, de estar experimentando uma inclinação mais irrefreável e furiosa da prática do mal. Deve ter sido isso, suponho, que despertou em minha alma aquela tempestade de impaciência ao escutar a cortesia de minha infeliz vítima. Eu declaro que, pelo menos diante de Deus, nenhum homem moralmente são deve ser culpado de um crime por um motivo tão fútil; e que agi por um motivo tão pouco razoável quanto uma criança que quebra um brinquedo por raiva. Mas me privei de todos aqueles instintos de equilíbrio nos quais até os piores de nós continuam a caminhar com firmeza mesmo cercado de tentações; no meu caso, ser tentado, ainda que da forma mais leve, era sinônimo de cair. Bastou um instante para que aquele espírito infernal despertasse em mim, cheio de fúria. Com um arrebatamento de júbilo, maltratei o corpo indefeso de minha vítima, deliciando-me com cada pancada; e apenas quando o cansaço começou a chegar, no auge de minha loucura, que então senti um aperto gelado de terror em meu coração. Foi como se uma névoa se dissipasse, vi que havia comprometido o resto de minha vida por aquilo; fugi de lá, ao mesmo tempo satisfeito e trêmulo de medo, com minha sede de maldade satisfeita e estimulada, e meu amor pela vida enterrado em um caixão onde o último prego acabava de ser batido.
Parti para a casa no Soho, para minha segurança, destruí meus papeis; depois parti pelas ruas ainda iluminadas pelos lampiões, com minha mente dividida e em êxtase, me deliciando com meu crime, e já pensando sobre os outros que iria cometer no futuro, e, ao mesmo tempo, apresando o passo e me preocupando em olhar por trás dos ombros, temendo que a vingança me alcançasse. Hyde cantava uma canção enquanto preparava sua poção, e quando a bebeu, brindou ao homem que acabara de matar. As dores da transformação ainda latejavam sobre seu corpo, quando Henry Jekyll, com o rosto banhando em lágrimas de gratidão e remorso, caiu de joelhos e ergueu suas mãos para Deus. O véu de comodismo havia sido rasgado da cabeça aos pés. Vi minha vida por inteiro: desde os dias de minha infância, quando caminhava segurando as mãos de meu pai, através mecanismos de autonegação da minha vida profissional, que chegam por vezes seguidas, com o mesmo sentido de irrealidade, dos terríveis horrores da noite. Eu podia ter gritado para todos ouvirem. Tentei, com lágrimas e orações, afogar a multidão de imagens hediondas e sons de memórias que invadiam minha mente; e, ainda assim, entre uma e outra súplica, minha alma tinha que contemplar a perversidade. Quando a dor aguada do remorso começou a cessar, foi sucedida por um sentimento de alegria. O problema de minha conduta estava resolvido. Hyde, de agora em diante, não era mais possível. Querendo ou não, estava confinado a melhor parte de minha existência. Ah, que alegria isso me causava! E com que vontade mais humilde abracei as novas restrições da minha vida natural! Com que renúncia sincera
tranquei a porta por onde tantas vezes havia entrado e saído e enterrei a chave para não mais achá-la. No dia seguinte, os jornais revelaram que o crime foi presenciado por uma testemunha, que a culpa de Hyde era conhecida por todos, e que a vítima era um homem público altamente considerado. Não tinha sido apenas um crime, mas uma trágica imprudência. Acho que fiquei contente em saber disso; alegreime de ter meus melhores impulsos a salvo e guardados do terror das consequências. Jekyll era agora minha cidade de refúgio, porque se Hyde mostrasse seu rosto, mesmo que apenas por um instante, as mãos de todos os homens estariam prontas para agarrá-lo e levá-lo às garras da justiça. Tomei a decisão de fazer com que minha conduta dali em diante servisse para me redimir do meu passado; e posso afirmar honestamente que minha resolução deu bons frutos. Você tem conhecimento do tanto que me dediquei nos últimos meses do ano passado a aliviar o sofrimento alheio; sabe que fiz muito pelos meus semelhantes, e que os meus dias se passaram de maneira tranquila e, quase poderia dizer, feliz. Também não posso dizer que me cansei dessa experiência inocente e altruísta; ao contrário, penso que dia a dia me apegava mais a ela. Porém, eu ainda sofria a maldição da minha dupla personalidade; e, quando o meu sentimento de castigo foi se esvaindo, meu lado bestial, que eu alimentara por tanto tempo e agora mantinha acorrentado, começou a rosnar impaciente. Não que eu pensasse, nem em sonhos, em ressuscitar Hyde; a mera ideia teria me deixado em pânico; não, era minha própria personalidade que me tentava a violar minha consciência. E foi como um peca-
dor comum, às escondidas, que finalmente cedi ao assédio da tentação. Todas as coisas chegam ao seu fim um dia; a mais espaçosa das medidas acaba sendo preenchida, mais cedo ou mais tarde; e essa breve concessão à minha própria maldade acabou por destruir o equilíbrio de minha alma. No entanto, isto não me deixou alarmado; a queda pareceu natural, como se fosse uma volta aos tempos que antecederam minha descoberta. Era um dia claro e agradável de janeiro, com o chão ainda úmido nos pontos onde a neve derretera, mas com o céu límpido sobre nossas cabeças; o Regent’s Park estava cheio dos gorjeios do inverno e já estava perfumado pelo aroma da primavera. Sentei-me ao sol, em um banco de parque, e o animal que havia em mim se deleitava lembrando-se dos pedaços mais suculentos da memória; meu lado espiritual estava sonolento, prometendo a si mesmo que se penitenciaria mais tarde, mas sem muito ânimo para iniciá-la. Afinal de contas, pensei, eu não era muito diferente de meus vizinhos; e então sorri, comparando-me aos outros homens, comparando minha bondade à crueldade preguiçosa de sua negligência. E, no exato momento em que fui tomado por esse pensamento cheio de vanglória, um mal-estar se apoderou de mim, uma horrível náusea acompanhada de violentos tremores. Isto se continuou por algum tempo, me deixando quase desacordado; e quando retornei, comecei a perceber uma mudança em minhas emoções e meus pensamentos, certa ousadia, um desdém pelo perigo, uma dissolução das amarras da moral. Abaixei os olhos; minhas roupas pendiam frouxas em torno dos membros diminuí-
dos; a mão pousada em meu joelho estava coberta de pelos e veias salientes. Eu tinha voltado a ser Edward Hyde. Um momento antes, eu estava a salvo no respeito da humanidade, era rico, era amado; uma mesa estava sendo posta em casa, à minha espera. E então, era a presa caçada por todos os homens, perseguido, sem casa, uma assassino notório, cujo destino era a forca. Ante a tensão desta condenação constante e da insônia a que eu próprio me obrigava e que ultrapassava tudo quanto pensava possível em um ser humano, converti-me, sob a minha própria aparência, em uma criatura devorada e consumida pela febre, abatido, de debilidade física e espiritual e obcecada por um único pensamento: o horror do meu outro eu. Mas quando dormia, ou quando a força da droga diminuía, voltava quase sem transição (pois as dores da transformação eram a cada dia mais leves) a ser presa de um pesadelo carregado de imagens de terror, de um espírito que se agitava em ódios sem causa e de um corpo que não parecia bastante forte para conter as raivosas energias daquela vida. Os poderes de Hyde pareciam ter aumentado com a enfermidade de Jekyll. E o ódio que agora os dividia era igual em ambas as partes. No caso de Jekyll, era um instinto vital. Havia visto toda a deformidade daquela criatura que compartilhava consigo alguns dos fenômenos da consciência e seria coerdeira de sua morte. Para além desses vínculos, que em si constituíam a parte mais patética da sua desgraça, considerava Hyde e toda a sua energia vital como algo não só infernal, mas também inorgânico. E essa era a coisa
mais espantosa: que a lama da tumba pudesse emitir gritos e vozes, que o pó amorfo gesticulasse e pecasse, que o que estava morto e sem forma usurpasse as funções da vida; e, sobretudo, ter consciência de que esse horror que surgia estava ligado a ele de modo mais íntimo que uma esposa, mais que os seus próprios olhos, encerrado em sua própria carne, onde o sentia a gemer e a lutar para renascer. E, a cada momento de fraqueza, na confiança do sonho profundo, prevalecia sobre ele, despojando-o da vida. O ódio de Hyde para com Jekyll era de natureza diferente. O terror da forca levava-o continuamente a suicidar-se temporariamente e a regressar à sua condição subordinada de parte em vez de pessoa; mas detestava essa necessidade, detestava esse desânimo em que Jekyll estava agora mergulhado e ressentia-se com o desprezo com que este o olhava. Daí os gestos simiescos com que me obsequiava, escrevendo, com meu punho e letra, blasfêmias nas páginas de meus livros, queimando cartas de meu pai e destruindo seu retrato. Claro que, se não tivesse sido por medo da morte, há muito tempo teria procurado a própria ruína com a única finalidade de arrastar a mim também. Mas seu amor pela vida é formidável! Irei mais longe: eu, que fico doente e que sinto um frio terrível só de pensar nele, quando recordo o seu apego abjeto e apaixonado à vida, quando me dou conta de como ele receia o poder que possuo para eliminá-lo mediante o suicídio, sinto pena dele, profundamente em meu coração. Além de me faltar, angustiantemente, tempo, seria inútil prolongar esta descrição; basta dizer que ninguém sofreu tormentos semelhantes. E, contudo, o hábito de sofrer su-
põe, senão um alívio, pelo menos certo endurecimento do espírito, certa aquiescência no desespero. Meu castigo poderia ter-se prolongado durante anos, se não tivesse sido esta última calamidade que me sobreveio e que, finalmente, me despojou de meu próprio rosto e minha própria natureza. A minha provisão de sais, que não havia renovado desde o dia da minha primeira experiência, começou a esgotar-se. Pedi uma nova remessa e preparei a poção; entrou em ebulição e sofreu a primeira mudança de cor, mas não a segunda. Saberás por Poole, como percorri toda a cidade de Londres à procura desse sal; tudo foi em vão e, por fim, tenho agora a certeza de que a primeira remessa que obtive era impura e que foi precisamente essa impureza desconhecida que tornou eficaz a poção. Passou quase uma semana e agora termino esta confissão sob a influência da última dose dos antigos pós. A menos que aconteça um milagre, esta será, pois, a última vez que Henry Jekyll poderá expressar seus próprios pensamentos e ver refletido no espelho o seu rosto (agora tão tristemente alterado!). Não quero prolongar por mais tempo o final deste escrito, pois se até agora tenho conseguido fugir à destruição, isso sem dúvida tem sido devido a uma estranha combinação de prudência e boa sorte. Se a agonia da transformação me assaltasse no momento em que escrevo esta carta, Hyde a faria em pedaços, sem dúvida. Mas, se decorrer algum tempo desde a sua conclusão até à mudança provável, seu extraordinário egoísmo e sua capacidade para se limitar a viver o momento presente é capaz de salvá-la do seu ódio simiesco. A verdade é que o fado que se abate so-
bre nós dois já o modificou e aplacou. Dentro de meia-hora, quando adotar de novo e para sempre essa odiosa personalidade, sei que me deixarei ficar sentado em minha cadeira, a tremer e a chorar, ou que continuarei a percorrer esta casa de cima abaixo (meu último refúgio terreno), atacado por um êxtase de tensão e terror, atento a qualquer ruído ameaçador. Morrerá Hyde no patíbulo? Ou encontrará o valor suficiente para se libertar de si mesmo no último instante? Só Deus sabe. A mim isso já não interessa. Esta é a verdadeira hora da minha morte e o que acontecer daqui em diante só a mim diz respeito. Assim, pois, ao pousar a pena e ao assinar a minha confissão, ponho fim à vida deste desventurado.
Henry Jekyll
Robert Louis Balfour Santiago Stevenson (13 de novembro de 1850, Edimburgo – 3 de dezembro de 1894, Apia, Samoa), foi um novelista, poeta e escritor de roteiros de viagem. Escreveu clássicos como A Ilha do Tesouro, O Médico e o Monstro e As Aventuras de David Balfour (esta dividida em duas partes, Raptado e Catriona).
Este livro foi impresso pela gráfica X em papel Off White 80g/m², em maio de 2014, São Paulo.