O Médico e o Monstro - Editora Raízes do Conhecimento

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Robert L. Stevenson



O MÉDICO E O MONSTRO



Robert Louis Stevenson 2014


2014 - Raízes do Conhecimento TÍTULO ORIGINAL: Dr. Jekyll & Mr. Hyde TRADUÇÃO: Elisabete Moura e Letícia Daniel REVISÃO: Naila Barboni e Letícia Cabral DIAGRAMAÇÃO: Silvestre Bruno

Índice para catálogo sistemático: Ficção cientifica; literatura estrangeira

Curso de Produção Editorial com Ênfase em Multimeios Turma de 2014 – 1º Semestre Universidade Anhembi Morumbi.

Trabalho orientado por: Profº Ms. Roberto Ferreira da Silva de Projeto de Prodoução Editorial em Mídia Impressa e Profº Ms. Waner Endo de Mercado Editorial Nacional e Internacional.


“Quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.” Friedrich Nietzsche



A história de

O

Uma porta

advogado Sr. Utterson era um homem carrancudo que nunca sorria: frio, de poucas palavras, tímido ao expressar sentimentos, esguio, alto, cha-

pado e mesmo assim adorável de algum jeito. Em reuniões de amigos, quando o vinho era de seu gosto, um lampejo de humanidade irradiava de seus olhos, algo que não era mostrado em sua fala, mas que era demonstrado não só nos gestos mudos após o jantar, como também de modo eloquente em momentos de sua vida. Era firme consigo próprio, bebia gim quando sozinho e, embora gostasse de teatro, não pisava em um fazia vinte anos. Em contrapartida, era de uma tolerância reconhecida pelos outros, às vezes admirando 9


quase que com inveja a grande força de espírito que atos ilegais envolviam e, em casos extremos, preferia ajudar ao invés de condenar. – Prefiro a heresia de Caim – dizia com frequência – Eu deixaria meu irmão ir para a Escuridão por si próprio. Com esse caráter, era frequentemente destinado a ser o último consultado devido ao seu respeitável conhecimento e a última boa influência nas vidas de homens a caminho da degeneração. E, para estes, enquanto eles o visitavam, nunca demonstrou o menor vestígio de mudança em sua conduta. Sem dúvida esta façanha vinha fácil para um homem como o Sr. Utterson, que era reservado e suas amizades pareciam ser baseadas em uma similaridade de boa natureza. É a marca de um homem modesto aceitar um círculo de amigos bem afortunados, e este era o jeito do advogado. Seus amigos eram membros de sua família ou aqueles a quem ele conheceu por toda sua vida. Suas afeições, como hera, cresciam com o tempo e não envolviam nenhuma aptidão em qualquer assunto. Era deste tipo o laço que o unia ao Sr. Richard Enfield, seu parente distante e bastante conhecido na cidade. Era difícil para muitos entender o que os dois viam um no outro ou qual assunto eles tinha em comum. Era reportado por aqueles que os encontravam em suas caminhadas de domingo que eles nada diziam, pareciam singularmente entediados e que saudavam com certo alívio o aparecimento de um amigo. E, contudo, os dois 10


homens consideravam estes os melhores momentos da semana, rejeitando outras oportunidades de entretenimento ou mesmo chamados profissionais para as desfrutarem sem interrupções. Aconteceu que, em um desses passeios, foram dar em uma rua de um dos quarteirões mais disputados e acalorados de Londres. A rua era pequena e tranquila, mas com grande movimento no comércio durante os dias de semana. Os habitantes eram prósperos, assim parecia, e todos esperavam por melhorarem, gastando seus ganhos em luxo, de tal modo que as lojas que ficavam na via pública tivessem um ar convidativo, como vendedoras sorridentes. Mesmo aos domingos, quando seu encanto era menor e ficava quase vazia, a ruela brilhava em contraste com a vizinhança sombria, como uma fogueira em uma floresta, com suas janelas recém-pintadas e metais bem polidos, e sua limpeza e alegria geral imediatamente fisgavam o olhar do transeunte. A duas portas de uma esquina, do lado esquerdo indo à direção leste, a linha era quebrada pela entrada de um pátio. Precisamente daquele ponto, um edifício sinistro se projetava com a empena de seu telhado para a rua. Tinha dois andares e nenhuma janela, somente uma porta no primeiro andar e um muro descolorido no andar superior. Cada pedaçinho da casa mostrava um longo e total abandono. A porta, que não tinha campainha nem batente, estava com a pintura arranhada e desbotada. Vagabundos ficam na entrada e acendiam fósforos nos painéis, crianças brincavam nas escadas e estudantes rasgavam as molduras com seus 11


canivetes, testando-os. E por quase uma geração ninguém apareceu para retirar esses visitantes ou para consertar os estragos. O Sr. Enfield e o advogado andavam do outro lado da rua. Ao chegarem perto da entrada, o primeiro levantou sua bengala e apontou: – Já havia reparado na porta alguma vez? – perguntou e, quando seu companheiro lhe deu uma resposta afirmativa, continuou: – Em minha cabeça está tudo conectado, com uma história bem estranha! – Verdade? – disse o Sr. Utterson com uma pequena alteração na sua voz – E qual seria esta história? – Bem, aconteceu o seguinte – continuou Sr. Enfield. – Estava eu voltando para casa de algum lugar no fim do mundo, em torno das três horas de uma manhã de inverno, e tinha de atravessar por uma parte da cidade onde não havia nada para se ver além de lampiões. Rua após rua, tudo estava iluminado como se fosse uma procissão e vazio como se fosse uma igreja, até que enfim entrei no estado mental em que, ao escutarmos o menor dos ruídos, começamos a rezar para ao menos um policial aparecer. De repente, vi duas figuras, um homem pequeno que andava no rumo leste apressadamente e uma garota de talvez oito ou dez anos, que corria o mais rápido que podia na direção de um cruzamento. Bem, ¹ Juggernaut: carro de Jagrená, divindade hindu. Sob ele, pessoas se jogavam com a certeza de que tal morte lhes traria a salvação.

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senhor, os dois se trombaram na esquina, e aí vem a pior parte da história: o homem atropelou e pisoteou calmante o corpo da criança e a deixou gritando no chão. Ouvindo a historia não parece tão tuim, mas ver foi horrível. Não parecia com um homem, mas sim como Juggernaut¹ “Gritei, corri, peguei o cavalheiro por seu colarinho e o trouxe para perto de um grupo que já se juntava ao redor da garotinha. Ele estava tranquilo e não resistiu, mas me olhou de um modo horrível que me fez suar tanto como se eu estivesse correndo. As pessoas que estavam ao redor da garota eram de sua própria família, e rapidamente o doutor a quem a menina ia chamar apareceu. Bem, a criança não estava tão machucada, mas sim assustada, de acordo com o doutor, e você talvez pense que este seja o final da história. Entretanto, havia algo de estranho ali, eu tinha tido repugnância pelo cavalheiro desde a primeira vez que o olhei, assim como a família da menina, o que era natural. “Porém, foi o médico que chamou minha atenção, ele era o típico boticário, sem idade e cor, com um sotaque forte de Edimburgo e quase tão emocional quanto uma gaita de fole. Senhor, ele era como nós, toda vez que olhava para o meu prisioneiro, eu via que o doutor parecia enjoado e cada vez mais branco com o desejo de matá-lo. Eu sabia o que se passava pela mente dele, como ele sabia o que se passava na minha, porém matar estava fora de questão. Então fizemos o melhor que podíamos: dissemos ao homem que podíamos e iríamos fazer um escândalo e que faríamos o seu nome sujar-se por toda Londres. E se ele tivesse algum 13


amigo ou crédito, iria perdê-los. “Por todo esse tempo, nós mantivemos as mulheres longe dele, pois elas pareciam harpias selvagens. Eu nunca havia visto um grupo com tanto ódio no olhar. E o homem estava no meio disso, com uma aparência calma e tranquila. Ele estava assustado? Sim, eu podia ver que sim, mas ele dominava seu temor como se fosse o diabo. ‘Se vocês escolherem fazer um escândalo deste acidente’, disse ele, ‘estarei naturalmente desamparado, não há um cavalheiro que não deseje evitar um escândalo. Diga o quanto querem.’ Bem, nós exigimos cem libras que iriam para a família da criança. Ele claramente queria se safar daquilo, mas havia algo de ameaçador em nós que o fez ceder. “O próximo passo era pegar o dinheiro. E aonde você acha que ele nos levou senão exatamente a essa porta? Sacou uma chave, entrou e voltou com dez libras em ouro e um cheque ao portador sacado contra o banco Coutts, assinado com um nome que não posso mencionar – ainda que seja um dos pontos desta história. Apenas digo que era um nome bem conhecido e que aparecia frequentemente na imprensa. A quantia era alta, mas a assinatura valeria mais se fosse autêntica. Tomei a liberdade de dizer ao cavalheiro que todo aquele negócio parecia falso, que um homem não entrava pela porta de um sótão às quatro da manhã e saia dela com um cheque de quase cem libras. ‘Dê um tempo para a sua mente’, ele disse, tranquilo e insolente. ‘Ficarei com os senhores até que os bancos abram e descontarei eu mesmo o cheque’. Com tudo arranjado, eu, o cavalheiro, 14


o médico e o pai da garota passamos o resto da noite em meu escritório. No dia seguinte, tomamos café da manhã e fomos para o banco. Eu pessoalmente entreguei o cheque e pensei que tinha todos os motivos para desconfiar do mesmo. Ledo engano. O cheque era verdadeiro.” – Ora essa – estranhou o Sr. Utterson. – Vejo que está pensando o mesmo que eu – disse o Sr. Enfield. – Sim, é uma história horrível. Pois era um homem com quem ninguém queria fazer negócio, um homem realmente detestável; e então havia a pessoa que assinou o cheque, rica, famosa e, o que era pior, alguém que outros diziam que fazia o “bem”. Chantagem, creio eu. Um homem honesto pagando por alguma tolice feita durante a juventude. “Casa da chantagem” é como chamo esta construção. Mesmo que tudo isso que lhe contei esteja longe de explicar tudo – acrescentou e se calou. O Sr. Utterson, então, perguntou de repente: – E você não sabe se o dono do cheque vive aqui? – Um lugar adorável, não é? – respondeu o Sr. Enfield. – Mas verifiquei seu endereço. Ele vive em uma praça qualquer. – Nunca perguntou da casa da porta? – o Sr. Utterson questionou. – Não, senhor, mantive a discrição – foi a resposta do outro. – Não me sinto bem fazendo questionamentos. Faz-me 15


lembrar o dia do Juízo Final. Você começa uma pergunta e é como mover uma pedra enquanto se senta tranquilamente no topo de uma montanha. A pedra se desloca, colocando outras em movimento e, de repente, um pobre infeliz é atingido na cabeça em seu próprio jardim e toda sua família tem que mudar de nome. Não senhor, eu faço disso minha própria regra, quanto mais próxima da rua excêntrica, menos eu pergunto. – Uma regra muito boa – disse o advogado. – Mas eu mesmo tenho estudado o lugar – continuou o Sr. Enfield. – Não me parece em nada com uma casa. Não há outra porta, ninguém entra ou sai dela a não ser o cavalheiro da minha aventura. Há três janelas que dão para o pátio no primeiro andar e nenhuma no térreo; elas sempre estão fechadas e limpas. E então há a chaminé que está fumegando. Alguém deve morar lá, mas ainda não tenho certeza, pois os edifícios foram construídos tão próximos do pátio que é difícil dizer onde um começa e outro termina. A dupla começou a andar novamente por um tempo, em silêncio, até o Sr. Utterson dizer: – Richard, esta sua regra é muito boa. – É, acho que sim – respondeu o Sr. Enfield. – E por tudo isto – prosseguiu o advogado –, há algo que quero lhe perguntar: gostaria de saber o nome do homem que pisou na criança. 16


– Bem – disse o Sr. Enfield –, não consigo ver algum mal nisso. O nome dele era Hyde. – Hum – fez o Sr. Utterson. – Que tipo de homem ele é? – Não é fácil descrevê-lo. Há algo de errado com sua aparência, algo esquisito, detestável. Nunca vi um homem que me provocasse tanto desgosto sem eu saber a razão. Deve ter alguma deformação, essa é a sensação que passa, embora eu não possa ser específico quanto a isto. Ele é um homem de aparência fora do comum e mesmo assim não consigo nomear nada fora do normal. Não, senhor, não consigo descrevê-lo, não por falta de memória, pois consigo vê-lo claramente agora. O Sr. Utterson recomeçou a andar, novamente em silêncio, preso em seus próprios pensamentos. – É certeza que ele tinha a chave? – indagou. – Meu querido amigo... – começou o Sr. Enfield, desconcertado. – Sim, eu sei – disse o Sr. Utterson. – Eu sei que pode parecer estranho. O fato é que, se não perguntei o nome da outra pessoa, é porque já o sei. Veja, Richard, sua história faz sentido. Se você foi inexato em alguma parte, é melhor se corrigir. – Acho que você devia ter me alertado – retrucou o outro com um toque de irritação. – Mas fui extremamente correto, o homem tinha a chave. E, tem mais, ele ainda a tem. Eu o 17


vi usando-a faz uma semana. O Sr. Utterson concordou sem dizer uma palavra e o jovem homem tornou a falar: – Estou envergonhado de minha língua grande. Vamos fazer um trato e nunca mais nos referir à esta história novamente. – Com todo meu coração – disse o advogado. – Eu concordo, Richard.

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N

À procura do Sr. Hyde

aquela noite, o Sr. Utterson foi para sua casa de celibatário desanimado e se sentou para jantar, mesmo sem apetite. Era seu costume, aos

domingos, depois de jantar, sentar-se perto da lareira com algum livro de sua biblioteca até que o relógio da igreja tocasse à meia-noite, quando então iria sóbrio e agradecido para a cama. Porém, naquela noite, depois que a mesa foi retirada, ele pegou uma vela e foi até seu escritório. Abriu seu cofre e, do local mais secreto, retirou um documento onde se lia “Testamento do Dr. Jekyll”. Sentou-se com o cenho franzido para ler o seu conteúdo. O testamento fora escrito à mão, pois o Sr. Utterson só tomou posse dele depois de pronto e havia se recusado a ajudar a escrevê-lo. Ali era 21


dito que, em caso da morte de Henry Jekyll, doutor em Medicina, doutor em Direito Civil, doutor em Leis e membro da Royal So-

ciety, todas as suas posses deveriam ir para seu amigo e benfeitor Edward Hyde, como também que, em caso de desaparecimento ou em ausência inexplicada superior a três meses, Edward Hyde deveria tomar posse dos bens do Dr. Henry Jekyll sem nenhum atraso e livre de todos os encargos e obrigações, para além do pagamento de alguns membros da criadagem do médico. Fazia algum tempo que esse documento intrigava o advogado. Ofendia não só a ele como advogado, mas também como amante da sensatez e dos costumes dos aspectos da vida, para quem o imaginativo era pouco modesto. E se até então a ignorância de quem pudesse ser Hyde lhe havia aumentado a indignação, agora, por uma repentina mudança dos acontecimentos, era de seu conhecimento e isto o indignava ainda mais. Se já era bastante desagradável quando aquele nome não era mais do que isso, um nome, do qual nada podia averiguar, tanto pior era agora, quando passava a estar revestido de atributos desagradáveis. – Pensei que era loucura – falou, devolvendo o papel ao cofre. – E agora começo a temer que seja uma desgraça. Com isto, apagou a vela, colocou um casaco e foi em direção à Cavendish Square, a cidadela de medicina onde seu amigo, o Dr. Lanyon, tinha sua casa e recebia seus pacientes. “Se alguém sabe de algo, esse alguém é Lanyon”, pen22


sou. O mordomo o conhecia e lhe deu as boas vindas. Foi levado diretamente para a sala de estar, onde o Dr. Lanyon sentava-se sozinho com seu vinho. Este era um homem saudável, amável, corado com cabelos prematuramente brancos e de modos decisivos e tempestuosos. Quando viu o Sr. Utterson, levantou-se e o cumprimentou com ambas as mãos. Seu contentamento parecia-lhe teatral, mas se baseava em um sentimento genuíno. Os dois eram velhos amigos e foram companheiros na escola e na universidade; ambos respeitavam-se e admiravam-se mutuamente e a si próprios e, o que nem sempre vinha como consequência, gostavam da companhia um do outro. Depois de conversarem um pouco, o advogado começou a falar sobre o assunto que desagradava e ocupava sua mente. – Suponho, Lanyon, que nós dois somos os amigos mais velhos de Henry Jekyll certo? – Eu desejava que fôssemos os amigos mais jovens – brincou o Dr. Lanyon. – Mas suponho que somos. Por quê? Eu o vejo bem pouco agora. – Mesmo? – disse o Sr. Utterson. – Pensei que tinha com ele interesses em comum. – Nós tínhamos, mas faz mais de dez anos que Henry Jekyll se tornou extravagante demais para mim. Ele começou a mostrar-se vítima de problemas mentais, e, apesar de eu 23


ainda ter interesse nele, pelos velhos tempos, como dizem, tenho visto bem pouco dele. Bobagens poucos cientificas – continuou o médico, corando levemente. – Teria levado Damon e Péricles2 a se estranharem. Esse pequena demonstração de irritação, foi, de certa forma, um alívio para o Sr. Utterson. “Eles devem ter tido alguns pontos divergentes no que se trata de ciências”, pensou, e, sendo um homem sem paixão pelas ciências (exceto quando lhe eram convenientes), acrescentou: “Não há nada pior que isso!” Deu ao seu amigo alguns segundos para se recompor, então lhe disse a questão que não lhe saia da mente. – Você alguma vez já cruzou com o seu protegido, aquele Hyde? – Hyde? – repetiu o Dr. Lanyon. – Não, nunca ouvi nada sobre ele, pelo menos enquanto eu via o Henry. Essa foi a quantidade de informação que o advogado levou de volta para a sua a cama, e que continuou com ele até as primeiras horas da manhã. Foi uma noite de pouco descanso para sua mente atormentada pela escuridão de suas dúvidas. Soou a badalada das seis horas nos sinos da igreja, que Presos por Dionísio, Damon e Péricles, com sua amizade, impressionaram o deus de tal forma, que ele os libertou e livrou da pena de morte. 2

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era convenientemente perto da casa do Sr. Utterson, e ele continuava absorto em seus pensamentos. Até então tinha sido somente seu lado intelectual a ser afetado, porém, sua imaginação foi pega engajada ou, melhor dizendo, escravizada pelo assunto. Enquanto jazia e agitava-se em seu quarto escuro, não lhe saía da mente a história do Sr. Enfield, como se passasse em imagens iluminadas. Ele podia ver as lâmpadas acessas na cidade noturna, o homem andando apressadamente, a criança correndo da casa do médico, e então a colisão, o humano Juggernaut derrubando a criança e pisando sobre ela apesar de seus gritos. Ou mais: podia ver o quarto em uma rica casa, onde seu amigo dormia, sonhava e sorria em seus sonhos; e então a porta do quarto seria aberta e as cortinas da cama puxadas, o homem adormecido seria chamado. E ali estaria, ao seu lado, a figura a quem o poder havia sido dado de, mesmo a essa hora da noite, obriga-lo a se levantar e cumprir suas ordens. A figura protagonista nestas duas cenas atormentou o advogado durante toda a noite e, se ele cochilasse por um momento que fosse, ela voltava mais vívida, espreitando-se por entre as casas adormecidas, ou movendo-se cada vez mais rapidamente pelos amplos labirintos da cidade, e, em cada esquina, esmagava uma criança e a deixava gritando. A figura não tinha um rosto que conhecesse e mesmo em seus sonhos não tinha uma face, ou então uma face aparecia e se desfazia diante de seus olhos. Mesmo sem rosto, cresceu rapidamente na mente do advogado uma curiosidade sobre os traços do verdadeiro Sr. Hyde. Se pudesse vê-lo somente uma vez, pensava que todo o mistério seria resolvido e 25


explicado, também poderia ver a razão pela estranha preferência, ou sujeição (chamem como quiser), de seu amigo e até entender as cláusulas do testamento. Pelo menos seria um rosto que valeria a pena ver, o rosto de um homem sem traços (entranhas?) de misericórdia, um rosto que se fizera aparecer apenas uma vez na mente do pouco impressionável Sr. Enfield para gerar um ódio duradouro. Daquele dia em diante, o Sr. Utterson começou a rondar aquela porta na rua das lojas. Fazia-o de manhã antes do horário de trabalho, ao meio dia, quando o trabalho era muito e o tempo escasso, e à noite, sob o nevoeiro da lua. Sob qualquer luz e a qualquer hora, o advogado era encontrado no seu posto escolhido. – Se ele for o Sr. Hyde – pensou –, devo ser o Sr. Seek³. E sua paciência foi recompensada. Era uma noite seca, sem chuva, as ruas estavam limpas como salões de festa, os lampiões não eram sacudidos pelo vento e desenhavam um padrão de luz e sombra. Às dez da noite, quando as lojas estavam fechadas, a rua estava vazia e silenciosa apesar dos sons abafados que vinham de toda Londres. Sons domésticos vinham das casas e eram audíveis dos dois lados da rua, e o barulho de aproximação de pessoas o precedia com bastante tempo. O Sr. Utterson estava havia alguns minutos em seu posto quando percebeu que passos ligeiros e mis³ A palavra “Hyde” é pronunciada da mesma forma que “hide”, que, em inglês, significa “esconder”. “Seek” significa “procurar”. Trata-se de um jogo de palavras intraduzível.

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teriosos se aproximavam. Durante suas patrulhas noturnas, havia se acostumado ao fato curioso de que os passos de uma pessoa se tornavam audíveis mesmo ela estando a uma boa distância e com todo o barulho da cidade. Contudo, sua atenção nunca fora atraída tão definida e intensamente. Com uma forte intuição e previsão de sucesso, dirigiu-se para a entrada do pátio. Os passos foram se aproximando e se tornaram mais audíveis quando contornaram a rua. O advogado, olhando de perto, da entrada, pode rapidamente ver o homem com quem teria de lidar. Era pequeno e estava vestido de um modo comum. Entrou diretamente pelo pátio, atravessando a rua para poupar tempo e, quando chegou à porta, retirou uma chave do bolso. O Sr. Utterson se aproximou e lhe tocou o ombro. – Sr. Hyde, eu suponho? O Sr. Hyde o olhou assustado e respirou fundo, mas seu medo foi momentâneo. Mesmo não olhando o advogado nos olhos, respondeu calmamente: – Este é o meu nome. O que o senhor deseja? – Percebi que o senhor ia entrar – disse ao advogado. – Sou um velho amigo do Dr. Jekyll, Sr. Utterson da rua Gaunt. O senhor deve ter ouvido o meu nome e, como o encontrei em um momento oportuno, pensei que me deixaria entrar. – O senhor não encontrará o Dr. Jekyll aqui, ele não está 27


em casa – o Sr. Hyde retrucou, colocando a chave na fechadura. De repente questionou, ainda sem olhar: – Como me conhecia? – O senhor antes me faria um favor? – Com prazer – retrucou o outro. – Do que se trata? – Importa-se de me deixar ver seu rosto? O Sr. Hyde hesitou por um momento, para então, de repente, o olhar com um ar de desafio. Os dois se encararam fixamente por alguns segundos. – Poderei reconhecê-lo facilmente da próxima vez. Será útil – o Sr. Utterson afirmou. – Sim – respondeu o Sr. Hyde. – É bom que tenhamos nos encontrado. A propósito, o senhor deve ter meu endereço – e então lhe deu o número de uma rua no Soho. “Bom Deus”, pensou o Sr. Utterson. “Poderia ele também estar pensando no testamento?” Mas o advogado reservou seus sentimentos para si mesmo e não fez mais do que resmungar em agradecimento pelo endereço. – Agora – começou o outro –, como me reconheceu? – Por uma descrição. – Descrição de quem? – Nós temos amigos em comum – disse o Sr. Utterson. 28


– Amigos em comum – repetiu o Sr. Hyde. – Quem são eles? – Jekyll, claro – disse o advogado. – Ele nunca lhe falou de mim! – exclamou o Sr. Hyde, com ódio. – Não pensei que o senhor mentisse. – Ora, vamos lá – disse o Sr. Utterson. – Este não é um modo adequado de se falar. O outro explodiu em uma risada selvagem e, no momento seguinte, com uma extraordinária rapidez, destrancou a porta e desapareceu dentro da casa. O advogado ficou estático em seu lugar, deixado com sua inquietação. Devagar, começou a andar pela rua, pausando a cada dois passos para colocar sua cabeça em suas mãos como um homem perplexo. O problema com o qual se debatia enquanto andava era daqueles bem difíceis de resolver. O Sr. Hyde era pálido e parecia um anão, passava a impressão de ter alguma deformidade, sem mencionar alguma má formação; tinha um sorriso desagradável; comportara-se diante do advogado com uma mistura homicida de timidez e audácia e falava com uma voz rouca, sussurrante e fraca. Tudo isto eram pontos contra ele, e nem todos juntos podiam explicar a aversão, o medo e a repugnância com os quais o Sr. Utterson se recordava dele, sentimentos que até então lhe eram desconhecidos. – Deve haver mais alguma coisa – disse, confuso. – Há mais alguma coisa. Se eu pudesse nomear... Deus me per29


doe, aquele homem nem humano parecia. Algo de troglodita havia nele, podemos dizer assim? Ou pode ser a velha história do Dr. Fell4? Ou é a mera radiação de uma alma má que transpira enquanto transfigura o corpo ao qual pertence? E ainda penso: pobre e velho Henry Jekyll! Se eu já vi a assinatura do Diabo no rosto de alguém, foi com certeza no de seu novo amigo. Virando a esquina, havia uma quadra com lindas casas antigas, a maioria delas decadentes e transformadas em apartamentos e escritórios para todos os tipos de homens: gravadores de mapas, arquitetos, advogados e agentes de empresas obscuras. Entretanto, uma das casas, a segunda a partir da esquina, permanecia intocada, sendo ocupada por apenas um inquilino. À porta desta, que transmitia conforto e grandiosidade – ainda que estivesse mergulhada nas sombras a não ser por uma luz vinda da claraboia –, o Sr. Utterson parou e bateu. Um criado de idade avançada e bem vestido a abriu. – O Dr. Jekyll está em casa, Poole? – questionou o advogado. – Irei verificar, Sr. Utterson – disse Poole, deixando o visitante entrar, enquanto falava, em uma ampla sala com teto rebaixado e decorada com lajotas, aquecida (ao modo de uma casa do campo) com uma lareira e mobiliada com luJohn Fell: foi um bispo de Oxford no séc. XVII; com o tempo viu o seu nome convertido em sinônimo do homem por quem se cria antipatia sem causa justificada. 4

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xuosa mobília de carvalho. – Irá esperar aqui perto do fogo, senhor? Ou prefere que eu acenda as luzes da sala de estar? – Ficarei aqui mesmo, obrigado – falou o advogado, aproximando-se da lareira. Esta sala, onde agora se encontrava sozinho, era a favorita de seu amigo e Utterson gostava de dizer que era a sala mais agradável de Londres. Porém, esta noite, sentia calafrios percorrerem suas veias. O rosto de Hyde não saía de sua memória, sentia-se nauseado e desgosto da sua vida (algo raro para si), e, em seu estado sombrio, parecia ler a ameaça no tremeluzir das chamas sobre os móveis polidos e na inquieta movimentação das sombras no teto. Sentiu-se envergonhado quando, ao regresso de Poole, anunciando que o Dr. Jekyll estava fora, uma sensação de alívio o tomou. – Vi o Sr. Hyde entrar pela sala de dissecação, Poole. Está certo de que o Dr. Jekyll não está em casa? – Sim, Sr. Utterson. O Sr. Hyde tem a chave – respondeu o criado. – O seu chefe parece ter bastante confiança nesse jovem homem, Poole – retornou o outro. – Sim, senhor, ele tem. Todos temos ordens de obedecê -lo – disse Poole. – Creio nunca ter me encontrado com o Sr. Hyde – o Sr. Utterson falou. – Oh, senhor, não mesmo. Ele nunca janta aqui – respon31


deu o mordomo. – Na verdade, nós o vemos muito pouco neste lado da casa, ele sempre entra e sai pelo laboratório. – Bem, boa noite, Poole. – Boa noite, Sr. Utterson. O advogado saiu triste da casa e com o coração pesado. “Pobre Harry Jekyll”, pensou. “Minha mente me diz que está em maus lençóis. Ele era animado quando jovem, há bastante tempo, claro, mas na lei de Deus, não há limitações. É, tem de ser isso, o fantasma de algum antigo pecado, o câncer de alguma desgraça oculta, o castigo que chega com passos trôpegos, anos depois de ter sido esquecido pela memória e perdoado pelo amor próprio”. O advogado, assustado com a ideia, pensou em seu próprio passado, procurando em toda a sua memória por alguma inquietude que viesse à luz. Seu passado era nada mais que irrepreensível, poucos homens podiam ver suas próprias vidas com menos apreensão. Ele era humilde para admitir as coisas erradas que já fizera, e voltou a se elevar pela sobriedade e temerosa gratidão pelas tantas que estivera perto de cometer, mas evitou. E então, voltando ao seu antigo assunto, teve um lampejo de esperança. “Este Sr. Hyde, se fosse investigado”, pensou. “Ele deve ter segredos, segredos escuros, segredos que, ao serem comparados com os do pobre Jekyll, fariam os deste parecerem como a luz do sol. As coisas não podem continuar assim. Fico arrepiado ao pensar nessa criatura rondando como um ladrão a cama de Henry. Pobre Henry, que 32


despertar! E o perigo que corre! Se esse Hyde suspeitar da existência do testamento, pode se tornar impaciente para se tornar o herdeiro. Oh, devo fazer algo. Se Jekyll me deixasse ajudar...�. Mais uma vez viu em sua mente claramente as estranhas clåusulas do testamento.

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Robert Louis Balfour Santiago Stevenson (13 de novembro de 1850, Edimburgo – 3 de dezembro de 1894, Apia, Samoa), foi um novelista, poeta e escritor de roteiros de viagem. Escreveu clássicos como A Ilha do Tesouro, O Médico e o Monstro e As Aventuras de David Balfour (esta dividida em duas partes, Raptado e Catriona).

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Papel Polém 75g (miolo) Papel Couché 250g (capa) Tipografia Sanford (texto) Euphorigenic (títulos) Impressão AroPrint (junho 2014)




Robert L. Stevenson

O universo é palco de batalha para as mais diversas forças, isto é irrefutável. Uma delas é o bem e o que ocorre na sua ausência. A humanidade apresenta um extenso histórico de lutas entre o ‘bem’ e o ‘mal’. Mas o que acontece quando essas fronteiras desaparecem e o mal que se julga combater de forma externa na verdade encontra-se dentro de você?


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