A RELAÇÃO DAS CIDADES COM SEU SUBÚRBIO Um passeio pela realidade suburbana carioca
Figura 1. Trecho da revista Módulo Brasil Arquitetura (RJ) - 1955 a 1986
Ano 1955/ Edição 00003 (2)
Discente: Leticia Evelyn Soares Porto - 190126124 Docente: Andrey Rosenthal Schlee História do Brasil Colônia e Império FAU - UnB
introdução
O presente estudo visa observar a relação das cidades com seu subúrbio e o impacto da mudança sociológica deste termo que, com o tempo, passou a designar polos antagônicos de riqueza e pobreza que repercutem na perspectiva da arquitetura, urbanismo e paisagismo. Como principal acervo à céu aberto para este tema, o Rio de Janeiro, cujo povo suburbano enfrentou as duras realidades da falta de um protagonismo positivo na história, tendo seu conceito de subúrbio substituído por periferia, enfatizando uma segregação socioespacial utilizada como negação para futuras transformações nesta parte inerente da cidade.
Será feito um passeio pela formação da cidade, a fim de entender a posição geográfica dos subúrbios e, em seguida, será observado o impacto desta expansão no conceito sociológico do termo, trazendo textos, trechos de periódicos e imagens comparativas da diferença física no dia a dia dos subúrbios que repercute nas maneiras de viver até os dias atuais.
Segundo o dicionário
Subúrbio Substantivo masculino 1. no Terceiro Mundo, periferia das cidades ou aglomerado de terrenos de difícil utilização, carentes de serviços, nos quais o valor da terra é baixo e o transporte, precário, sendo, por isso, seu valor locativo o único acessível às classes menos favorecidas.
a realidade nos subúrbios cariocas se difere até mesmo na relação com seu conceito, pois além de ser uma área periurbana na visão geográfica é, sobretudo, um conceito que se relaciona com identidades, estas trouxeram as ressignificações no termo, considerando o subúrbio uma área externa à cidade e utilizando esta noção como justificativa para a falta de conexão com as áreas mais centrais e adição de estereótipos pejorativos concebidos por perfis socioeconômicos resultantes da falta de protagonismo nas políticas territoriais e planejamento urbano.
Através de seus trilhos surgiram conceitos de subúrbio e periferia, que foram moldando os espaços de sociabilidade, habitação (habitat) (ABREU, 2003), consumo e cultura.
Trecho retirado do artigo ‘’subúrbio carioca: conceitos, transformações e fluxos comunicacionais da cidade por João Luis Araújo Maia e Adelaide Rocha de la Torre Chao
Entendendo a formação do subúrbio carioca Como definidor da forma que o subúrbio carioca assumiu e decisivo na expansão física da cidade, o trem.
O início do século XX para o Rio de Janeiro foi marcado por obras com objetivo de ressaltar o progresso da cidade, o espírito de modernização. A linha férrea foi de extrema importância para o desenvolvimento desta, uma vez que a distribuição da população acontece de forma abrupta pela disposição de atividades comerciais ao longo da linha férrea e, consequentemente, de empreendimentos imobiliários mais valorizados. Com o tempo a população pobre é arrancada das áreas mais centrais da cidade com a destruição dos cortiços e as distâncias entre local de trabalho e residência aumentam cada vez mais.
Figura 2. Linhas da Estrada de Ferro Central do Brasil em 1880, ligando as então províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e a então capital do país. Fonte: Biblioteca Nacional
Figura 3. Linhas da Estrada de Ferro Central do Brasil em 1919. Fonte: Biblioteca Nacional/UFRJ apud SCHWARCZ, 2017, p,169
Tijuca
Engenho Novo
Vila Isabel
Riachuelo (ferrovia) Francisco Xavier Rio Comprido (Bondes)
Rocha
São Cristóvao
Botafogo
Catete
Centro
Figura 4. Planta da Cidade do Rio de Janeiro e o surgimento dos subúrbios. Greiner, Ulrik. 190-? Fonte. Acervo da Biblioteca Nacional. Adaptado pela autora.
Figura 5. Mapas da cidade do rio de Janeiro. 1994
a malha urbana foi fruto de uma expansão linear da linha férrea, com traçado não integralmente retilíneo, havendo uma mistura de traçado irregular e regular nos miolos dos bairros e bordas dos subúrbios, além de uma forma orgânica das vias resultantes da topografia dos morros.
Figura 6. Detalhe dos subúrbios cariocas da Zona Norte em 1930. O traçado preto indica as linhas férreas. Fonte: Fonte: MEDEIROS, 2020, p. 176.
Os subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa coisa em matéria de edificação da cidade. A topografia do local, caprichosamente montuosa, influiu decerto para tal aspecto, mais influíram, porém, os azares das construções. Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado. As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas, as ruas se fizeram. Há algumas delas que começam largas como boulevards e acabam estreitas que nem vielas; dão voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado. Às vezes se sucedem na mesma direção com uma freqüência irritante, outras se afastam, e deixam de permeio um longo intervalo coeso e fechado de casas. Num trecho, há casas amontoadas umas sobre outras numa angústia de espaço desoladora, logo adiante um vasto campo abre ao nosso olhar uma ampla perspectiva. Marcham assim ao acaso as edificações e conseguintemente o arruamento (LIMA BARRETO, 2018d, p. 285).
É a classe social que determina o que é subúrbio, a geografia não importa, a tal ponto de a posição excêntrica e francamente suburbana da Barra da Tijuca ser vista como um acidente, algo fora dos nossos padrões e difícil de ser admitido. (FERNANDES, 2011, p. 36).
A maioria das sediadoras de turismo estão localizadas na Av. Rio Branco e Praça Mauá, onde se inicia a avenida.
Figura 7. Mapas turísticos da cidade do Rio de Janeiro. Guanabara, Departamento de Turismo e Certames, 1961. Fonte. Acervo da Biblioteca Nacional
A “cidade”
Aberta no período das grandes intervenções urbanísticas na cidade no início do século, a avenida Rio Branco marcou um grande rasgo no centro da cidade, da Praça Mauá onde se localiza o Porto até a avenida Beira Mar, expandindo os limites da cidade para o subúrbio e Zona Sul. Enquanto estas zonas não possuíam características residenciais, a população buscava entretenimento e novidades neste novo centro.
Figura 8. A avenida atualmente que, apesar de a partir de 1940 sua arquitetura começar a ser descaracterizada, possibilita um desfile pela história.
A cultura
Figura 9. Igreja Metodista do Catete, considerado pelo mapa turístico da cidade um dos principais pontos a serem visitados, fachada principal. Malta, Augusto. Fonte: Acervo da Biblioteca Nacional
Figura 10 - Subúrbio de Inhaúma, sobre o morro, encontra-se a Igreja da Penha, construída no século XVII e é a primeira imagem que se destaca ao chegar no subúrbio carioca
Lugar alto, livre e local fronteiro largo
“Como outros monumentos, o santuário caminha com a trajetória da cidade. Ela é tão importante que deu nome a três bairros do entorno, Penha, Vila da Penha e Penha Circular. Mas não é valorizada à altura. Acredito que seja o fato de não estar localizada na Zona Sul. Se estivesse na Pedra da Gávea seria uma das maravilhas do mundo. A Igreja da Penha é um monumento singular no mundo. Uma igreja, construída sobre um penhasco, com 382 degraus esculpidos na própria pedra... As agências de turismo não têm interesse porque os acessos são difíceis e não há investimento em transporte público de qualidade.” Pároco, reitor Serafim Fernandes, 2015
A habitação “afrancesada”
o novo século trazia novos hábitos e costumes sociais, casas com vasos sanitários de descargas automáticas, novos lugares, novas plantas, novas determinações de conduta a fim de se assemelhar ao estilo europeu, afinal, o mais importante era aparentar ser, livrar-se do aspecto anterior e ''afrancesar-se'', forçar estes novos estilos de vida considerados como marca do progresso da cidade.
Tudo isso contribuiu para as noções de subúrbio conhecidas atualmente, para "afrancesar-se" era necessária a retirada do que não era condizente de forma estética e financeira das áreas centrais, as largas avenidas e novos espaços de prédios públicos se destinavam a pessoas de maior poder econômico, sendo assim, foram criados bairros distantes do centro que abrigaram a classe operária, o Poder Público, a fim de controlar uma nova forma de habitar, acabou por contribuir para esta migração, com regras que impunham regulação das construções com exigências específicas, penalidades e controle de tráfego de animais e pedestres, produções advindas da revolução industrial como trem a vapor, alterações nos planos urbanísticos e na arquitetura, as famílias que ainda residiam em cortiços ou estalagens não viam outra escolha a não ser buscar outros espaços para habitar, a cidade deixava de ser de todos.
Figura 11. Análise de espaços livres privados por quadras Fonte: SEL – RJ adaptado, 2017. Não autoral
Figura 14 – Estudo de residência econômica de José Biancardi, planta baixa e fachada Fonte: Revista Acropole, julho de 1939
Figura 12 – Anúncios de venda datados de 1938 e 1958 de lotes em áreas próximas ao traçado ferroviário, denotando a baixa densidade construída e o predomínio de espaços livres, sendo considerados bons investimentos os terrenos situados próximo aos caminhos da linha ferroviária.
Figura 13 – Lançamento de empreendimento imobiliário no bairro de Maria da Graça. Fonte: Revista A CASA, edição de setembro de 1925
A medida que a demanda por moradia nos novos bairros que surgiam no subúrbio carioca aumentava, maior a necessidade por soluções rápidas de moradias baratas, higiênicas e atrativas. Em 1925, a revista "A Casa" promove um concurso de projetos de casas econômicas para a zona suburbana, projetadas de acordo com a legislação municipal, admitindo duas soluções: "casa térrea e casa sobrado, com o seguinte programa: uma sala comum, três quartos de dormir, uma pequena cozinha, banho e W.C., pequeno terraço coberto (varanda)"(Publicado na revista “A CASA”, agosto de 1925, nº. 16). Figura 16 - Cortiço
Nesse período, a fim de baratear a construção, inicia-se então certa padronização dos gabaritos e dimensões de portas e janelas, as casas passam a se tornar afastadas das divisas, trazendo o estilo de morar francês. Assim, com uma construção seguindo a situação econômica local, foram concebidas as novas residências econômicas, na qual muitas foram chamadas de casas coloniais. Esta era uma tentativa de delinear um novo morar diferente da realidade dos cortiços de uma região esquecida pelas ações do Estado e agora, através da iniciativa privada, repensava seus novos padrões de moradia e de espaço urbano.
Figura 15 – Estudo de residência econômica de José Biancardi, planta baixa e fachada Fonte: Revista Acropole, julho de 1939
Figura 17 - frontão de inspiração art déco (Higienópolis – Rio de Janeiro)
Figura 18: Frontão de inspiração colonial e imagem religiosa em azulejo (Higienópolis – Rio de Janeiro)
Excessivamente urbana, a nossa gente abastada não povoa os arredores do Rio de Janeiro de vivendas de campo com pomares, jardins, que os figurem graciosos como a linda paisagem da maioria deles está pedindo. Os nossos arrabaldes e subúrbios são uma desolação. As casas de gente abastada têm, quando muito, um jardinzito liliputiano de polegada e meia; e as da gente pobre não têm coisa alguma.
(BARRETO, Lima. “O Cedro de Teresópolis”, In: Bagatelas), 27-2-1920. Figura 19. Rua de um subúrbio carioca no século XX
Figura 20 – Cinelândia, praça Floriano
Figura 21 – Avenida Beira Mar e os Jardins Botafogo
Fonte: Acervo da Biblioteca Nacional
Figura 23 – vista aérea Hotel Glória, bairro da Glória
Figura 22 – Rua de Grajaú
em concomitância, nas zonas mais nobres, grandes jardins arborizados, palacetes com estilo de vida francês, onde a residência era afastada das divisas do lote, o que propiciava a iluminação e ventilação natural nos cômodos, além de um porão alto que evitava umidade da alvenaria proveniente do solo. Um morar saudável, distante da realidade do considerado morar periférico.
Negada não apenas a moradia, mas as condições favoráveis para realização da vida
Figura 24. Trecho do periódico Progresso Suburbano (RJ) – 1902
Ano 1902/ Edição 00004
em 1902, no Rio de Janeiro, surge o periódico ''Progresso Suburbano'', no qual ao relatar a realidade diária dos moradores, tornando pública a falta de infraestrutura que dificultava a qualidade de vida e desenvolvimento destas áreas, denota o grande senso de comunidade, mas também exclusão, lutando por seus direitos de forma autônoma, com tentativas de mostrar o porquê de merecerem mais atenção pública, de modo a se sentirem pertencentes à cidade.
Forte sentimento de pertencimento, representado pela valorização do espaço através da imagem, do corpo e dos lugares para elucidar a “superação do indivíduo num conjunto mais amplo”. (MAFESSOLI, 1998). Fazer em comum, sentir em comum.
Utilizada a arte, literatura, jornais ou qualquer outra ferramenta cultural como forma de dar voz à realidade diária.
Figura 25. Trecho do periódico Progresso Suburbano (RJ) – 1902
Ano 1902/ Edição 00003
“Na vida dos subúrbios, a estação da estrada de ferro representa um grande papel: é o centro, é o eixo dessa vida. Antigamente, quando ainda não havia por aquelas bandas jardins e cinemas, era o lugar predileto para os passeios domingueiros das meninas casadouras da localidade e dos rapazes que querem casar, com vontade ou sem ela. Hoje mesmo, a gare suburbana não perdeu de todo essa feição de ponto de recreio, de encontro e conversa. Há algumas que ainda a mantêm tenazmente, como Cascadura, Madureira e outras mais afastadas. De resto, é em torno da “estação” que se aglomeram as principais casas de comércio do respectivo subúrbio. Nas suas proximidades, abrem-se os armazéns de comestíveis mais sortidos, os armarinhos, as farmácias, ou açougues e – é preciso não esquecer – a característica e inolvidável quitanda (LIMA BARRETO, 2004, p. 439). “
Figura 26. Trecho do periódico Progresso Suburbano (RJ) – 1902
Ano 1902/ Edição 00004
O comércio e a identidade
Figura 27. Trecho do periódico Progresso Suburbano (RJ) – 1902
Ano 1902/ Edição 00004
No final do século XIX, novos bairros foram surgindo e junto a eles uma vida comunitária independente, tendo como eixo central a estação ferroviária, foram desenvolvidos ao redor comércio próprio, feiras livres, escritórios e novas residências. A ocupação se dava por moradores, em sua maioria negros e imigrantes nordestinos que faziam parte da mão de obra operária das fábricas instaladas no entorno. A palavra subúrbio já era atribuída ao “desprestígio social” e a representada apenas pelos bairros populares e ferroviários, ocupados por operários, imigrantes nordestinos, descendentes de ex-escravos que foram expulsos dos cortiços nas áreas centrais da cidade. O mapa da cidade representava uma divisão de classes, e o desejo e luta por qualidade de vida criava experiências conjuntas de valorização do espaço e da comunidade, sentindo que tudo para o povo seria feito pelo povo, por sua luta, já que estas áreas eram cada vez mais esquecidas pelas políticas públicas.
Considerações Finais
As percepções atuais em relação ao que é um morar suburbano vieram ao longo do tempo, fruto da falta de um planejamento urbano a priori, apenas posicionando edificações às margens da linha férrea, mapeando classes sociais e forçando novas maneiras de viver. Este caso ainda se repete não apenas no Rio da Janeiro e, apesar de sentimentos de exclusão em relação ao poder público e descaso com questões salubres para realização da vida, a população suburbana vista como periférica se reinventou diariamente com práticas sociais comunitárias e soluções cotidianas, isso desempenha certo caráter plástico nos subúrbios, pois estes estão em constante mudança. É necessária a ressignificação do termo com aplicações físicas, rejeitando a ideia de que acesso a infraestrutura urbana básica, por exemplo, é de domínio de áreas nobres. Subúrbios são áreas que se tornaram independentes, podendo ser geradoras de trabalho, acesso à educação, cultura e, principalmente, oferecer experiências de um "habitar a cidade", com sociabilidade e identidade.
Revista Módulo Brasil Arquitetura (RJ) - 1955 a 1986
Ano 1955/ Edição 00003 (2)
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