Seguindo os Passos de Jesus

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Capítulos

1. Identidade Messiânica 1.1. Quem é Jesus? – Tendências Culturais - A Visão da Multidão - Os “Tipos” de Jesus Contemporâneos 1.2 . Quem é Jesus? - Epistemologia Revelacional - Conteúdo Escriturístico  O Deus Encarnado  Adoração  Padrão de Humanidade - Iluminação do Espírito Santo 2. Condição Para o Discipulado - Abnegação: Rendidos ao Senhor - Proposta Avessa - Três Boas Razões 3. Espiritualidade Integral – Equilíbrio - Devoção e Diaconia - Sofrimento e Glória - Mistério e Revelação - Humildade e Crescimento - Verdade e Unidade - Zelo e Compaixão 4. Promessas do Caminho - No Caminho Haverá Desconforto - No Caminho Haverá Dilema - No Caminho Haverá Desgaste


Prefácio

O presente livro é uma tentativa de apresentar aquilo que considero pontos importantes para a caminhada do discípulo, e quem sabe também, de trazer um pouco de inspiração e encorajamento aos cristãos a partir da vida de Jesus de Nazaré, de modo, que procurem tanto o embasamento bíblico necessário como também a fé viva e contagiante típica dos primeiros cristãos e dos heróis da igreja ao longo da história. Ele foi escrito tendo em vista, especialmente, os recém chegados à fé cristã, (ainda mais nesta era tecnológica, onde somos bombardeados de informações por todos os lados, o que tanto pode ajudar como atrapalhar, dependendo do tipo de conceito assimilado), para que compreendam as implicações desse projeto de vida proposto por Jesus. E por esse motivo minha intenção foi de apresentar o conteúdo de forma simples, sem linguagem acadêmica, mas evitando também o simplismo, razão essa da presença de algumas informações imprescindíveis da tradição cristã e até mesmo das citações de diversos autores a fim de aguçar a curiosidade do leitor para conhecer suas obras. Pelo menos essa é minha expectativa, pois entendo ser totalmente necessário o diálogo em comunidade, tanto com a atual quanto com a histórica. Nós aprendemos muito mais dessa forma, ouvindo uns aos outros. Agradeço desde já a minha esposa Aletea e meus filhos Elias e Lavínia que contribuem sempre em minha vida, tornando-a muito mais alegre e vibrante. Acima de tudo agradeço a Deus por ter me alcançado em sua graça e me inserido nesta jornada de vida maravilhosa. Eu o louvo por todas as bênçãos e dádivas que ele me concedeu, especialmente a família e os amigos de caminhada que me fazem crescer, seja me incentivando seja me admoestando. Espero com toda sinceridade e oro para que o leitor seja edificado através das páginas deste livro. Se eu puder de alguma forma cooperar com a edificação de alguns me darei por satisfeito. Que em tudo Deus seja glorificado. Esse é meu desejo!


Introdução

Não existe, em toda história humana, um projeto que se compare ao de seguir Jesus de Nazaré. Segui-lo é maravilhoso, revolucionário e desafiador. Maravilhoso, pois, nele achamos descanso para inquietação do nosso ser, como bem afirmou Santo Agostinho: "Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti". Toda busca dos homens por sentido e origem só será plenamente satisfeita em Cristo. Nele, o Verdadeiro, o Bom e o Belo se abraçam! Revolucionário, pois tal experiência é transformadora, toca em todas as dimensões da nossa vida: nosso coração, entendimento, alma e forças. Direciona-nos a sujeitar tudo a Ele: “Não há um único centímetro quadrado em todos os domínios da existência humana sobre o qual Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: é meu!” (Abraham Kuyper) Desafiador, pois, demanda coragem. O discípulo de Jesus, embora liberto ainda vive na "presença" do pecado. Ele está inserido em um ambiente onde a pressão do mundo, da carne e do Diabo é uma realidade. Ele vive cercado pelo sistema babilônico, mas já sujeito, aos valores da Nova Jerusalém, seus olhos, seu coração aspiram por essa cidade superior, e isso torna inevitável a tensão aqui. Por essa razão que afirmou com muita propriedade o pastor Antonio Carlos Costa: "Se a sua caminhada cristã não demanda coragem, procure saber quem você está seguindo".

O conteúdo deste pequeno livro trata da magnitude desse convite para seguir os passos de Jesus. Aborda a necessidade, condição, abrangência e realidade desse caminho.

Para aqueles que desejam seguir nessa viagem, ofereço essa leitura.

Que Deus o abençoe!


Capítulo 1 Identidade Messiânica

1.1-

Quem é Jesus? – Tendências Culturais

1.1-1. A Visão da Multidão

Quando Jesus chegou à região de Cesaréia de Filipe, consultou seus discípulos: “Quem as pessoas dizem que o Filho do homem é?” E eles responderam: “Alguns dizem que é João Batista; outros Elias; e ainda há quem diga, Jeremias ou um dos profetas”. (Mateus 16.13-14) Certa ocasião, estava Jesus orando em particular, e com Ele estavam seus discípulos; então lhes indagou: “Quem as multidões afirmam que sou Eu?” Ao que eles replicaram: “Alguns comentam que és João Batista; outros, Elias; e ainda outros afirmam que és um dos profetas do passado que ressuscitou”. (Lucas 9.18-19)

Um discipulado genuíno, uma caminhada cristã saudável será sempre proveniente de uma visão adequada sobre Jesus. O já falecido bispo anglicano Robinson Cavalcanti disse certa vez que nossos pensamentos determinarão nossas atitudes. Se pensarmos, por exemplo, a partir da Teologia da Prosperidade teremos um determinado comportamento na sociedade (místico, egocêntrico, materialista e irreal), por outro lado, se pensarmos tendo em vista a Teologia da Libertação incorreremos em outro comportamento (exclusivamente temporal também, visto desconsiderar a hierarquia das necessidades humanas, relativismo ético, entre outros), por isso se faz necessário compreender a identidade de Jesus Cristo se desejamos segui-lo.

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Os textos bíblicos citados acima tratam sobre o modo de como a multidão enxergava Jesus. Segundo o relato dos evangelistas o povo possuía uma visão bem equivocada. Para estes Jesus era um profeta semelhante a Jeremias, Elias e João Batista, e vale ressaltar aqui que todos os três foram profetas de mensagem dura, de discurso ácido. Jeremias profetizou antagonicamente aos falsos profetas de seus dias, que ludibriavam o povo com falsas esperanças, o cativeiro babilônico:

Um discipulado genuíno, uma caminhada cristã saudável será sempre proveniente de uma visão adequada sobre Jesus.

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“Portanto, assim diz o SENHOR dos Exércitos: „Visto que vocês não ouviram as minhas palavras, convocarei todos os povos do norte e o meu servo Nabucodonosor, rei da Babilônia‟, declara o SENHOR, „e os trarei para atacar esta terra, os seus habitantes e todas as nações ao redor. Eu os destruirei completamente e os farei um objeto de pavor e de zombaria, e uma ruína permanente. Darei fim às vozes de júbilo e de alegria, às vozes do noivo e da noiva, ao som do moinho e à luz das candeias. Toda esta terra se tornará uma ruína desolada, e essas nações estarão sujeitas ao rei da Babilônia durante setenta anos. (Jeremias 25.8-11)

Elias desafiou os falsos profetas de Baal e Ásera, confrontou o rei Acabe e o povo de Israel com a palavra de Deus: E sucedeu que, vendo Acabe a Elias, disse-lhe: És tu o perturbador de Israel? Então disse ele: Eu não tenho perturbado a Israel, mas tu e a casa de teu pai, porque deixastes os mandamentos do Senhor, e seguistes a Baalim. Agora, pois, manda reunir-se a mim todo o Israel no monte Carmelo; como também os quatrocentos e cinqüenta profetas de Baal, e os quatrocentos profetas de Aserá, que comem da mesa de Jezabel. Então Acabe convocou todos os filhos de Israel; e reuniu os profetas no monte Carmelo. Então Elias se chegou a todo o povo, e disse: Até quando coxeareis entre dois pensamentos? Se o Senhor é Deus, segui-o, e se Baal, segui-o. Porém o povo nada lhe respondeu.

(1 Reis 18:17-21)

E finalmente João Batista, que se dirigia as multidões que vinham a ele a fim de serem batizadas, com as seguintes palavras: "Raça de víboras! Quem lhes deu a idéia de fugir da ira que se aproxima? Dêem frutos que mostrem o arrependimento. E não comecem a dizer a si mesmos: „Abraão é nosso pai‟. Pois eu lhes digo que destas pedras Deus pode fazer surgir filhos a Abraão. O machado já está posto à raiz das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo".

(Lucas 3:7-9

Não é sem razão que os três foram ameaçados, resistidos e sofreram nas mãos do povo e das autoridades. A mensagem cristã nunca será atrativa a todos, pois ela confronta o ser humano quanto ao seu estado de rebelião para com Deus e o anúncio de Jesus não menosprezava esse aspecto. Basta lembrarmos do discurso relatado em João no capítulo seis onde muitos o abandonaram, chacoalhando inclusive com as estruturas dos doze.


Esse Jesus de discurso meloso e meigo é só uma constatação de como a visão de muitos, inclusive cristãos, está limitada, ponto que discorreremos em um momento posterior. Todavia, retomando nosso raciocínio, a multidão via Jesus como um profeta, alguém que trás uma palavra de exortação, consolo e edificação, o que não deixava de ser verdade sob um aspecto, mas que ainda estava bem distante da realidade de sua identidade. A visão deturpada da multidão, inclusive, gerou muitas das vezes uma relação com Jesus de utilitarismo, o Cristo se tornou apenas um meio para obter bênçãos e favores, como curas e milagres (Mc 3.10), pão (Jo 6.26), resolução de problemas (Lc 12.13), entre outros. E infelizmente essa deturpação da identidade de Jesus não é um problema restrito a multidão daqueles dias. Vivemos em um contexto onde vários tipos de Jesus são apresentados as pessoas. Este é o ponto que iremos discorrer agora.

1.1-2. Os “Tipos” de Jesus Contemporâneos O grande Rev. John Stott em seu livro “Ouça o Espírito, Ouça o Mundo” diz que assim como os soldados romanos colocaram suas vestes sobre Jesus, nós temos a tendência de colocar nossa roupagem cultural nele, deturpando assim sua identidade. Stott destaca muitas dessas tendências ao longo da história cristã, minha intenção, todavia, é apontar alguns modelos atuais que tem gerado equívocos no entendimento das pessoas. Diferentemente dele, não focarei nos tipos anunciados de modo explicito em trabalhos acadêmicos (embora alguns o sejam), antes pretendo diagnosticar, de modo simples, quatro que estão presentes muito mais no imaginário de boa parte dos cristãos da igreja brasileira, nem todos respaldados oficialmente, embora bem difundidos. Alguns tipos que serão destacados já são alvos, inclusive, de criticas de pensadores comprometidos com a ortodoxia.

O Jesus Coach A expressão coach possui significados específicos dentro de cada contexto histórico (embora apresente também uma idéia central em todos), atualmente, descrito de modo bem simples, remete a alguém capacitado a ajudar outros a alcançarem seus objetivos, sejam profissionais, financeiros através de uma metodologia de desenvolvimento humano. A técnica do coaching tem crescido amplamente no mundo dos negócios e o grande problema é que ela está presente hoje em diversas igrejas.


Infelizmente presenciamos em nossa era igrejas que se tornaram empresas de coaching, “treinando” seus membros (processo esse que, de modo curioso, contempla até um comprometimento cego desses para o crescimento da instituição) para terem seus objetivos pessoais alcançados. A vida cristã é retratada como um aprendizado de técnicas para alcançar desejos pessoais. Este se tornou o paradigma para o cristão. Jesus, de modo sutil (e às vezes escancarado) se torna um modelo de empreendedorismo, uma espécie de Bil Gates, que se copiado nos leva a suprir nossos sonhos e ambições. Todo o aspecto estratégico, de planejamento e organizacional de Jesus em seu ministério, por exemplo, (coisas comuns a vida) são retirados do seu contexto e conseqüentemente do seu real propósito e significado divino estabelecido para a vida e são apresentados como uma receita de sucesso, do ponto de vista da “presente era”, é claro. Os cristãos nesses ambientes acabam assimilando um “conceito” errôneo (lembre-se das palavras citadas no início: “nossos pensamentos acabam determinando nosso comportamento”), o resultado é praticamente uma justificação para o crente abraçar o hedonismo e o materialismo em sua existência.

O Jesus Empregado Mesmo havendo atualmente uma critica maior no país em relação à Teologia da Prosperidade, as igrejas que a adotaram ainda crescem assustadoramente. Há muita familiaridade nestes movimentos com o tipo de Jesus apresentado no exemplo anterior, divergindo, no entanto, para uma idéia mais mística e menos acional. O apresentador de um programa religioso da TV, R.R. Soares, em um de seus livros ensina o povo a “colocar Deus na parede” em suas orações, a determinar e exigir sua benção. Jesus é transformado em um empregado, impossibilitado de desacatar as reivindicações feitas pelo cristão, desde que estas sejam feitas “pela fé”. O resultado além de ser semelhante quanto ao materialismo e hedonismo, acrescenta muitas vezes a omissão na dimensão diaconal e profética na sociedade em função da ênfase espiritualista. Pois para esses, basta orar determinando ou repreendendo os agentes do mal que a vida e a sociedade progredirão.

O Jesus “Politicamente Correto” Em contrapartida a esses exemplos vistos acima, existem movimentos com uma forte ênfase sentimentalista. Fazem inclusive muitas ações filantrópicas, tentam conscientizar as pessoas a julgarem menos e terem mais expressões de afeto ao próximo, especialmente aos carentes da sociedade. Entretanto, pregam um Jesus quase idêntico muitas vezes ao anunciado por um dos primeiros hereges da era cristã: Marcião. Este fazia uma distinção do Deus do A.T. (uma carrasco em sua concepção) e o Deus manifesto em Jesus Cristo, cheio de amor e compaixão. Marcião acabou rompendo com a idéia de juízo divino, de justiça e incorreu no universalismo.


Muitas igrejas tem flexibilizado doutrinas essenciais, assim como valores éticos em função de um amor que não passa de sentimentalismo barato, tudo em função de uma deturpação de sua visão de Jesus Cristo, inclusive da acidez de sua mensagem já mencionada. A conseqüência é o relativismo ético e um inclusivismo na igreja que profana o sangue da aliança que nos santifica.

O Jesus “Che Guevara” Esse Jesus é praticamente elaborado em solo Latino Americano, embora com prenúncios norte-americanos (Walter Rauschenbusch). É claro que muitas das criticas feitas por teólogos daqui foram e ainda são pertinentes, mas a solução apresentada e o conceito de pano de fundo que possuem em relação a Cristo são completamente equivocados. Jesus é reduzido a um militante que veio acabar com toda forma de opressão. No passado denunciou a exploração dos ricos e poderosos e hoje também nos convoca a acabar com esta, especialmente do imperialismo norte-americano. O pobre se tornou a figura central nas Escrituras e a miséria é o grande pecado a ser vencido via o estabelecimento de um Estado que distribui toda renda nacional de forma justa. Assim acabam negligenciando o real problema humano: coração. Incorrem em uma prática ditada pelo materialismo histórico, perdem a perspectiva da eternidade no seu cotidiano, incluindo o já citado relativismo ético.

Pode-se pensar em outros, contudo esses quatro tipos de Jesus a meu ver são os mais difundidos e influentes no imaginário da igreja evangélica brasileira.

Passamos agora a discorrer sobre qual é a identidade apropriada, a identidade a ser anunciada pelos cristãos.

1.2-

Quem é Jesus? - Epistemologia Revelacional

Conteúdo Escriturístico O fato é que os cristãos não podem aceitar de modo algum qualquer anuncio de Jesus que não seja preenchido

 Muitas igrejas tem flexibilizado doutrinas essenciais, assim como valores éticos em função de um amor que não passa de sentimentalismo barato, tudo em função de uma deturpação de sua visão de Jesus Cristo, inclusive da acidez de sua mensagem.

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pelo conteúdo das Escrituras. Nós só conhecemos a Cristo através dela, compreendemos seu propósito para a criação, a situação em que esta se encontra e o processo de redenção pelo texto sagrado. É a tríade criação-queda-redenção que possibilita uma visão adequada da vida, o que os filósofos reformados chamam de “Cosmovisão Cristã” (cuja abordagem detalhada foge ao foco do presente trabalho, mas que recomendo a todo cristão a fim de obter uma visão da vida mais harmônica com a fé cristã). Como protestantes então, temos a Bíblia como regra de fé, como autoridade máxima. Este é o princípio da Sola Scriptura (Somente a Escritura). Ela foi o instrumento que Deus decidiu usar para se comunicar com os homens, foi à forma usada pelos apóstolos e evangelistas, inspirados pelo Espírito Santo de Deus, de relatarem a encarnação Divina, de anunciarem a vida, morte e ressurreição de Cristo a nós. Se conhecemos algo correto sobre Jesus é por causa das Sagradas Letras. Qualquer Tradição e ensino que forem conflitantes com ela devem ser descartados, pois Deus não pode se contradizer. Essa foi apontada pelos apóstolos como inspirada e útil para preparar o cristão a tudo (2 Tm 3.16, 2 Pd 3.16). É o fundamento dado a nós, é à base da igreja (Ef. 2.20). Enfim só ela pode apresentar de modo fidedigno quem é Jesus Cristo. Desta forma, gostaria de destacar pelo menos duas afirmações que ela faz sobre Ele.

O Deus Encarnado – Adoração “Mas vós”, inquiriu Jesus, “quem dizeis que Eu Sou?” Então Pedro tomou a palavra e declarou: “És o Cristo de Deus!” (Lucas 9.20)

Já foi visto que a multidão enxergava Jesus como um profeta, o que tornava a relação problemática, pois no máximo, essa ouviria alguma palavra dele. Pedro, no entanto, declara algo mais contundente sobre Jesus: Ele é o Filho de Deus, ele é o próprio Deus. E se Jesus é Deus, não iremos apenas ouvi-lo, não iremos apenas aprender um ensino, iremos nos render em adoração a ele. Pois Deus a gente adora. C.S. Lewis, em seu clássico “Cristianismo Puro e Simples” adverte quanto à tentativa de não levar a sério esta declaração de Pedro:

“Tento aqui impedir que alguém diga a grande tolice que sempre dizem sobre Jesus Cristo: „Estou pronto a aceitar Jesus como um grande mestre em moral, mas não aceito sua afirmação em ser Deus.‟


Isto é exatamente a única coisa que não devemos dizer. Um homem que foi simplesmente homem, dizendo o tipo de coisa que Jesus disse, não seria um grande mestre em moral. Poderia ser um lunático, no mesmo nível de um que afirma ser um ovo pochê, ou mais, poderia ser o próprio Demônio dos Infernos. Você decide. Ou este homem foi, e é, o Filho de Deus, ou é então um louco, ou coisa pior… Você pode achar que ele é tolo, pode cuspir nele ou matá-lo como um demônio; ou você pode cair a seus pés e chamá-lo Senhor e Deus. Mas não vamos vir com aquela bobagem de que ele foi um grande mestre aqui na terra. Ele não nos deixou esta opção em aberto. Ele não teve esta intenção.”

Não se pode abrandar esta declaração, o homem que pisou há mais de dois mil anos nesta terra era a exata expressão do ser de Deus, era o Verbo que se fez carne. O Deus encarnado é um dos grandes temas do cristianismo, alguns movimentos tentaram perverter esse ensino e foram corretamente resistidos e apontados como heréticos. A necessidade de enfatizar tanto a natureza divina como humana de Jesus se dá porque foi o ser humano que rompeu a relação com Deus, logo necessitava de um ser humano para consertá-la. É o segundo Adão, que repara o que o primeiro havia feito. Isso já havia sido prometido por Deus ao povo de Israel, quando disse em Gênesis que a descendência da mulher esmagaria a serpente e a Abraão que seu descendente abençoaria todas as nações da terra. Jesus é o representante da humanidade diante de Deus Pai, intercedendo por nós. Mas, ele tinha também de ser Deus para cumprir as justas exigências do Pai, para poder conceder o perdão dos pecados ao mundo, visto que sua morte possui valor infinito, por ser Deus. Além disso, ele só pôde ressuscitar dentre os mortos, vitorioso porque era Deus! Assim um discípulo genuíno continua fazendo ressoar as palavras do Evangelho e da Tradição Cristã: Jesus 100% Deus e 100% Homem. O único mediador entre Deus e os homens (1 Tm 2.5). Ele é o Cordeiro que foi morto e o Leão triunfante, o Deus-Homem, o elo entre a humanidade e o Deus Todo Poderoso. A quem seja a glória, a força e o louvor para sempre. Amém!

O Padrão de Humanidade Cabe ainda destacar o fato de que Jesus não veio apenas para mostrar quem Deus é, mas também para mostrar quem nós devemos ser. Ele é o modelo de humanidade perfeita, é o nosso protótipo. Se aprendemos a ser gente da maneira errada com o primeiro homem, devemos aprender a ser gente do modo correto.


Foi o apóstolo João que afirmou em sua primeira carta no capítulo dois e verso seis que: “Quem afirma estar em Cristo deve viver como ele viveu”. A vida de Jesus foi descrita de modo sucinto pelo apóstolo Pedro em sua pregação na casa de Cornélio: Essa Palavra, vós muito bem conheceis, foi proclamada por toda a Judeia, começando pela Galileia, depois do batismo pregado por João, e se refere a Jesus de Nazaré, de como Deus o ungiu com o Espírito Santo e poder, e como ele caminhou por toda a parte realizando o bem e salvando todos os oprimidos pelo Diabo, porquanto Deus era com Ele. (Atos 10.37-38)

Jesus foi ungido com o Espírito Santo e poder, era um com o Pai em perfeita harmonia, tendo sua vontade alinhada a Dele. Vontade essa expressa em uma vida de serviço ao próximo, por onde passava fazia o bem e libertava os oprimidos pelo Diabo. Sobre esse aspecto que envolve a missão de Jesus durante seu ministério iremos discorrer um pouco mais adiante. Por aqui basta, todavia, ter em mente o fato de que Jesus é o referencial de humanidade a ser buscado, o que só é possível através da rendição do cristão ao Espírito Santo de Deus. Willian Temple ilustrou isso de modo fantástico: “Não adianta me darem uma peça como Hamlet ou O Rei Lear e me mandarem escrever algo semelhante. Shakespeare era capaz, eu não. Também não adianta me mostrarem uma vida como a de Jesus e me mandarem viver de igual modo. Jesus era capaz, eu não. Porém, se o gênio de Shakespeare pudesse entrar e viver em mim, então eu seria capaz de escrever peças como as dele. E se o Espírito Santo puder entrar e habitar em mim, então eu serei capaz de viver uma vida como a de Jesus”.

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Esse processo de transformação, a que chamamos de santificação é resultado desta entrega a ação do Espírito Santo, só ocorre quando estamos enraizados em Cristo. Francis Schaeffer falando sobre isso usa o termo “Passividade Ativa/Atividade Passiva” no seu livro Verdadeira Espiritualidade. Só produzimos frutos se estivermos plantados em Cristo, só nele encontramos os recursos necessários para uma vida santa e piedosa, fora dele

Jesus não veio apenas para mostrar quem Deus é, mas também para mostrar quem nós devemos ser. Ele é o modelo de humanidade perfeita, é o nosso protótipo.

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o que resta é legalismo. É como o salmista diz no capítulo primeiro sobre a árvore plantada junto ao ribeiro, que dá fruto no tempo certo, justamente por receber o necessário para se desenvolver, logo necessitamos estar conectados a videira, pois sem Cristo não podemos fazer coisa alguma (João 15.5). Carecemos dele, precisamos do seu Espírito operando em nós. Aliás, a necessidade do Espírito Santo é crucial para a própria assimilação e aceitação da Verdade. Se afirmamos que a Bíblia é a Palavra de Deus e o instrumento que apresenta Jesus de forma objetiva, não podemos desconsiderar também o caráter subjetivo desse processo.

Iluminação do Espírito Santo “... ninguém pode declarar: „Jesus é Senhor!‟, a não ser pelo Espírito Santo”. (1 Coríntios 12.3b)

Essa declaração de Paulo revela não apenas a incapacidade humana de apropriação da verdade, como também manifesta à rica e maravilhosa graça divina. Ninguém pode se apropriar do sagrado nem por meio de boas obras, e tampouco pelo exercício intelectual ou especulação filosófica. Essa é a razão de muitos religiosos não reconhecerem que Deus os visitou em Jesus de Nazaré. Eram homens que se dedicavam ao estudo da Lei e dos Profetas e mesmo assim não perceberam para quem estes apontavam (João 5.7). O mesmo Paulo era um destes. Homem de uma cultura e capacidade diferenciada, instruído aos pés de um dos maiores mestres da nação e mesmo possuindo tal bagagem foi contra a própria verdade. Não fosse a misericórdia revelada a ele no caminho de Damasco estaria perdido. A Verdade se apropriou dele e não ele dela. Nunca é a mente humana que se apropria do sagrado, mas sempre o sagrado que se apropria da mente humana.

Retomando o relato da confissão de Pedro, encontramos a resposta de Jesus a este: “Abençoado és tu, Simão, filho de Jonas! Pois isso não foi revelado a ti por carne ou sangue, mas pelo meu Pai que está nos céus”. (Mateus 16.17)


Desta forma, Jesus afirma que essa verdade dita por Pedro não foi possível pelo seu esforço intelectual, pela sua capacidade de observação e dedução, mas por revelação. São essas coisas que mostram a beleza do Evangelho. Ele não é propriedade dos poderosos, dos filósofos, dos eruditos, pelo contrário, os sábios deste mundo quase sempre o rejeitam, o desprezam, sendo recebido antes pelos pequeninos, pelos incultos, pelos pobres, é acolhido por aqueles que são vistos como nada por este mundo (1 Co 1.27-30), pois foi assim que Deus Pai decidiu fazer, conforme declara Jesus em um dos textos mais graciosos dos Evangelhos:

“Naquela ocasião, em resposta, Jesus proclamou: “Graças te dou, ó Pai, Senhor dos céus e da terra, pois escondeste estas coisas dos sábios e cultos, e as revelaste aos pequeninos. Amém, ó Pai, pois assim foi do teu agrado”! (Mateus 11.25)

Ter isto em mente é o que impede de reduzir o Evangelho a um corpo de doutrinas, o que impossibilita fazer da vida de Jesus um simples estudo de um personagem histórico, é o que nos leva a olhar com apreço para as Escrituras, mas ir além dela, pois nossa relação não é com o livro, mas com o Deus para o qual esse livro aponta. Nunca podemos perder de vista que o Evangelho é uma Pessoa: “Jesus de Nazaré”, a quem somos chamados a seguir. E tal caminhada trás implicações radicais na nossa existência.

É sobre isso que iremos discorrer no próximo capítulo.

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2. Condição Para o Discipulado Abnegação: Rendidos ao Senhor E Jesus proclamava às multidões: “Se alguém deseja seguir-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz dia após dia, e caminhe após mim. (Lucas 9.23) O convite lançado por Jesus traça uma linha divisória para o tipo de relação a se desenvolver com ele: a relação da multidão e a relação do discípulo.

Nunca podemos perder de vista que o Evangelho é uma Pessoa: “Jesus de Nazaré”, a quem somos chamados a seguir. E tal caminhada trás implicações radicais em nossa existência.

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Conforme já mencionado, a multidão se relacionava com Jesus em função da obtenção de favores. Era uma relação superficial e circunstancial. Por outro lado, o discipulado propõe intimidade, implica em um projeto de vida, ele demanda custos. A salvação é pela graça de Deus, é favor imerecido, mas andar com Jesus custa tudo. É como a parábola contada por ele em Mateus 13.44:

“O Reino dos céus assemelha-se a um tesouro escondido no campo. Certo homem, tendo-o encontrado, escondeu-o novamente. Então, transbordando de alegria, vai, vende tudo o que tem, e compra aquele terreno”.

O tesouro encontrado é como a salvação (graça), e a alegria em ter encontrado foi tamanha que este homem vendeu tudo o que possuía para obter o campo (discipulado). A caminhada, portanto, trás implicações, por isso a expressão de condição utilizada por Jesus: “Se”. Sem renúncia não é possível. Se não ocorrer um abandono em relação ao desejo de sermos senhores de nossa própria vida, se não cedermos o “eu” a Cristo, não será possível tal projeto. Há pouco destacamos o papel imprescindível do Espírito Santo de Deus em nós a fim de manifestar a vida de Cristo. Expandindo um pouco mais a questão da sujeição, os apóstolos utilizaram (naquilo que podemos entender como uma primeira confissão de fé) a expressão “Kyrios” para se referirem a Jesus. Essa expressão é muito mais profunda do que o modo como a utilizamos hoje. “Senhor” não é uma idéia apenas de respeito para com alguém mais velho, naquele período era utilizada para fazer referencia ao imperador César. Este era o Senhor de Roma, o dono, o soberano sobre tudo e todos. Os escritores do Novo Testamento então se apropriam desta palavra para fazer referencia a Jesus de Nazaré. Imagine o impacto disso! Imagine os romanos ouvindo o relato de João Marcos no primeiro verso: “Princípio do Evangelho de Jesus, Filho de Deus”. O que ele estava dizendo era que o que importava não eram as notícias referentes ao império romano, seja em relação a herdeiros gerados no trono ou a expansão desse império pelo mundo, o que importava era a boa notícia de Jesus, o verdadeiro Senhor, o único Soberano, o real representante de Deus nesta terra: Jesus era o filho, não César. “Jesus Cristo é o Senhor”, o mínimo irredutível do Evangelho, como diria Stott, era uma notícia bombástica e revelava um compromisso de vida dos discípulos. Significava que sua devoção primaz era a Ele e que não negociariam sua fidelidade de modo algum. Significava que resistiriam a qualquer governo que reivindicasse uma autoridade superior a de seu Mestre, eles estariam dispostos a morrer (nunca a matar), mas jamais negariam aquele que os comprou com seu próprio sangue.


A submissão ao senhorio de Jesus era a compreensão de ser a única maneira de viver a nova vida. Quanto mais ele se apropria do cristão, mas esse manifesta a santidade do seu Senhor. Se não houver uma entrega confiante do controle de nossas vidas a Cristo não será possível caminhar nesta jornada do discipulado, pelo fato de sermos incapazes por nós mesmos. Nossa natureza terrena sempre desejará o oposto ao caminho traçado pelo Cristo.

Proposta Avessa A rota traçada por Jesus em seu ministério estava (e está) na contramão dos planos e das inclinações dos homens. Contudo é o caminho de êxito nesta jornada. Desta forma, gostaria de refletir aqui a partir de cinco sugestões feitas de modo muito lúcido pelo pastor Carlos Queiróz. Ele aponta cinco geografias no ministério de Jesus que servem como protótipo da missão do discípulo. São estas: I- A Manjedoura; II- O Deserto; III- A Entrada em Jerusalém no Jumentinho; IV- O Getsêmani; e V- O Calvário. Elas são elucidativas para mostrar esse trajeto que conduz o discípulo à maturidade.

I- A Manjedoura; O nascimento de Jesus, assim como qualquer situação de seu ministério, não são frutos do acaso. Há um propósito, uma pedagogia em todo o processo da encarnação divina. No relato de Lucas, Jesus nasceu, foi evolvido em panos e colocado em uma manjedoura, pelo fato, de José e Maria não conseguirem local na estalagem. Pastores chegam ali vindos do campo para verem o rei anunciado pelo anjo de Deus.

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Que informação surpreendente, o rei dos judeus, o Soberano, nasceu em um local simples. Diferente dos poderosos, dos reis das nações, a Trindade Santa decidiu que Jesus não nasceria no Palácio. Em seu nascimento ele não se identificou com a corte, ele não ficou em uma geografia que fosse acessível apenas as pessoas de nobre posição. Jesus nasceu em um local onde qualquer pessoa poderia ter acesso, mas acima de tudo as pessoas simples, as pessoas que estavam à margem da vida religiosa da nação, que estavam à parte das atividades e cerimônias no templo, como aqueles pastores, cuja profissão impossibilitava-os.

A submissão ao senhorio de Jesus era a compreensão de ser a única maneira de viver a nova vida. Quanto mais ele se apropria do cristão, mas esse manifesta a santidade do seu Senhor.

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Já em seu nascimento, o Rei dos Reis e Senhor dos Senhores se mostrava acessível aos pequeninos, aos pobres de espírito. Mostrava que encontrá-lo não seria resultado de posição social ou de riquezas, mas de quem fosse humilde para acolher o anúncio celestial. Da mesma forma nem o discípulo nem a igreja devem desenvolver redutos que fomentem relações exclusivistas que possuem como chaves de inclusão o dinheiro, a formação acadêmica e o status quo. O discípulo não pode perder de vista essa identificação com os mais pobres. E é preciso ressaltar aqui que embora a bem-aventurança se refira ao pobre de espírito, ou seja, alguém que reconhece sua miséria espiritual diante de Deus, esses pobres de espírito são muito mais encontrados entre os pobres econômicos. Não é sem razão que Lucas em seu relato do mais famoso Sermão de Jesus, coloca o pobre, diferente de Mateus, na categoria econômica. E mais a frente, Tiago, irmão do Senhor afirma que os pobres aos olhos deste mundo (o que implica na condição econômica) foram escolhidos por Deus, eleitos pelo Pai para serem ricos na fé e herdeiros do Reino (Tg 2.5). Entendimento esse visto nos pais da Igreja, como João Crisóstomo, nos reformadores, como João Calvino e nos avivalistas, como Wesley. Discípulo genuíno e igreja genuína são acessíveis a todos, mas se identificam ainda mais com os pobres, com as “coisas loucas desse mundo”.

II- Deserto; Antes de iniciar seu ministério, logo após seu batismo, Jesus é levado pelo Espírito ao Deserto para ser tentado pelo Diabo. Ali há uma tentativa de persuadi-lo a afirmar sua identidade fora do que Deus Pai havia dito. No batismo o texto diz que se ouviu uma voz do céu dizendo: “Esse é meu filho amado em quem me comprazo”, e logo na primeira tentação é dito: “Se tu és mesmo o filho manda que essas pedras se transformem em pães”. Satanás propôs algo a fim de “averiguar” a identidade de Cristo, ele queria colocar em dúvida a declaração anterior, semelhante ao que propôs no Éden. Jesus, todavia, resiste firmemente, ele não cede à idéia de se fundamentar em algo transitório, seja a satisfação material, seja a aprovação e glória dos homens, sejam

 Discípulo genuíno e igreja genuína são acessíveis a todos, mas se identificam ainda mais com os pobres, com as “coisas loucas desse mundo”.

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todos os bens desta era, sua vida está na vontade eterna de Deus. Em toda a história humana, desde Adão, a humanidade é tentada a substituir o permanente pelo transitório, a construir a vida fora da Palavra de Deus. Assim, o discípulo deve, na solitude do Deserto, longe dos holofotes, dos aplausos humanos e das riquezas, ouvir a voz de Deus, entendendo que esta é a melhor maneira de edificar seu ser.

III-

Entrada em Jerusalém no Jumentinho;

Jesus pede a dois de seus discípulos para irem adiante e buscarem um jumentinho que nunca havia sido montado. Com ele pretendia entrar em Jerusalém onde seria celebrado como rei. Todos esses ingredientes tinham tudo para gerar uma cena patética. O Rei dos Judeus entraria na principal cidade da nação montado em um jumentinho novo. A cena, no entanto, é de glória, é de reconhecimento da grandeza de Jesus, claro que apenas por parte dos simples e das crianças, mas é momento onde celebram a chegada do Salvador. Sem carruagem, sem pompa, sem mecanismos e mesmo assim reconhecido como Rei. Há uma estorinha ilustrativa com base nesta passagem. Conta-se que uma semana depois o jumentinho chegou em sua casa ao final de um dia e disse triste a sua mãe que havia retornado no mesmo caminho da celebração, mas desta vez não havia ninguém gritando, nem crianças louvando, pelo contrário ele havia sido apedrejado e colocado para fora da cidade. Ao que sua mãe respondeu: “A diferença é quem estava com você na semana passada”. O discípulo não precisa dos mecanismos do marketing para realizar a obra. A igreja não precisa das estratégias de publicidade para conseguir cumprir a missão. Se Jesus estiver conosco, sempre haverá pequeninos declarando:

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“Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor” (Mt 21.9).

IV-

Getsêmani

Então lhes disse: A minha alma está cheia de tristeza até a morte; ficai aqui, e velai comigo. E, indo um pouco mais para diante, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é possível,

O discípulo deve, na solitude do Deserto, longe dos holofotes, dos aplausos humanos e das riquezas, ouvir a voz de Deus, entendendo que esta é a melhor maneira de edificar seu ser.

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passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres. (Mateus 26:38,39) O jardim do Getsêmani foi lugar de entrega para Jesus. Foi local de rendição intensa, onde lágrimas de sangue escorreram em sua face. Esta dor, diferente do que muitos pensam não se deu pelo fato de Jesus temer o sofrimento físico na cruz, não era o temor dos pregos que perfurariam suas mãos ou dos ferimentos decorrentes dos cravos. Para Jesus essa tensão era outra. Sua dor provinha da angustia da quebra da comunhão com o Pai no momento em que este assumiria o pecado do mundo, era o abandono do Pai naquele momento, era a separação do Pai e do Filho, pois a pureza e santidade de Deus não contemplariam a iniqüidade assumida. Mais uma vez Stott: “nossos pecados obscureceram o brilho do sol da face de seu pai.” Ele temia suportar o juízo que esses pecados mereciam. De fato, esse era o cálice que ele preferia não beber, esse cálice era angustiante para Jesus, isso o afligia verdadeiramente. Que lição para os discípulos. Primeiro de valorização da comunhão com Deus, da importância primaz de uma relação intima com o Pai. Um discípulo sempre enxergará nisso um maravilhoso privilégio. Desejará a presença de Deus na mesma intensidade expressada por Asafe no Salmo 73.25, a relação com Deus será “o seu maior bem, o desejo mais precioso do seu coração”.

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Em segundo, especialmente, a lição é de renuncia plena, de disposição para entregar nosso ser à vontade de Deus. É a encarnação diária da oração do Pai Nosso: “Santificado seja o teu nome, venha o teu reino, seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”. O discípulo sabe que a vontade de Deus é boa, perfeita e agradável e por isso não se conforma a mentalidade deste século. Sua vida será dedicada a esse objetivo, suas próprias necessidades se tornarão secundárias, o Reino de Deus será colocado acima de tudo! (Mt 6.33). Não importa o quão difícil, não importa o tamanho dos desafios, sua busca incansável se dará pela vontade de Deus, a semelhança do seu Mestre, essa será sua comida e sua bebida, será aquilo que o move nesta vida (Jo 4.34). Seria importante pensar porque razão necessitamos sacrificar toda nossa vida a Deus? Por que a bíblia nos

O discípulo não precisa dos mecanismos do marketing para realizar a obra. A igreja não precisa das estratégias de publicidade para conseguir cumprir a missão. Se Jesus estiver conosco, sempre haverá pequeninos declarando: “Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor”. (Mateus 21.9)

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adverte a essa consagração plena? Além do fato de que este é o caminho para a verdadeira vida, por estar dentro do padrão correto para a humanidade, pode-se pensar que Deus sabe as conseqüências de qualquer tentativa de autonomia em relação a ele. Toda vez que o ser humano se coloca fora do propósito divino ele colhe frutos amargos e o nosso inimigo sabendo disso sempre tenta nos persuadir para que nosso culto seja feito com reservas, para que seja parcial. Ele se dá por satisfeito por ter a menor área de nossas vidas fora da vontade de Deus. Uma ilustração muito pertinente é relatada no livro de Êxodo. Moisés é enviado por Deus a Faraó ordenando que esse liberasse o seu povo para adorá-lo no deserto. As respostas de Faraó em cada anúncio de Moisés revelam uma sugestão diabólica similar aos cristãos, vejamos: Então chamou Faraó a Moisés e a Arão, e disse: Ide, e oferecei sacrifícios ao vosso Deus nesta terra. Respondeu Moisés: Não convém que assim se faça, porque é abominação aos egípcios o que havemos de oferecer ao Senhor nosso Deus. Sacrificando nós a abominação dos egípcios perante os seus olhos, não nos apedrejarão eles? Havemos de ir caminho de três dias ao deserto, para que ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus, como ele nos ordenar. Então disse Faraó: Eu vos deixarei ir, para que ofereçais sacrifícios ao Senhor vosso Deus no deserto; somente não ireis muito longe; e orai por mim. (Êxodo 8.25-28)

Faraó permite a saída no primeiro momento, mas é curiosa a proposta para que Moisés permaneça próximo e ore por ele devido a praga de moscas. Da mesma forma os cristão são persuadidos a incorrer nesta ambigüidade, a viverem não muito distantes da influencia do mal, a terem um proceder, como se diz popularmente de “acender uma vela a Deus e outra ao Diabo”. Engana-se a pessoa que assim vive. Tiago afirma que quem se tona amigo do mundo, automaticamente se constitui inimigo de Deus (4.4). Não podemos ser gente de ânimo dobre, agir como se possuíssemos duas almas, uma para satisfazer a Deus e a outra as paixões terrenas, o convite de Jesus propõe essa radicalidade imprescindível e que Satanás insiste em nos convencer não ser necessária. O relato continua e depois de outras pragas e novo anúncio de Moisés, Faraó apresenta nova proposta: O culto deveria ser realizado apenas pelos homens, sem levar as mulheres e as crianças (10.8-11). Embora a recusa de Faraó se desse devido à desconfiança da fuga do povo, há uma implicação aqui para se pensar: Quantos


cristãos acabam se esquecendo da importância da consagração dos seus lares? Quantos deixam de zelar pela saúde de suas famílias? Não é sem razão que a Bíblia da real importância a família, colocando o bom governo e o cuidado desta (em todos os níveis) como indicador de uma autentica vida cristã. (Josué 24.3 / 1 Tm 5.8 / 1 Tm 3.4). A última proposta de Faraó a Moisés é a permissão do culto com a participação de todos (homens, mulheres e crianças), mas sem os recursos e as posses (10.24). Costuma-se brincar dizendo que o bolso é o último ponto a se converter na pessoa. E isso não deixa de apresentar um pouco de verdade, pois trata da influência que o dinheiro gera na humanidade, fato que é amplamente anunciado por Jesus. Aliás, este foi o segundo tema mais abordado em seu ministério, como diz o nome de um livro do teólogo Rene Padilla: “Mamom: O Maior Concorrente de Iaveh”. Esse exerce fascínio, seduz, tenta o cristão a servir a Deus com reservas. Contudo nossa resposta deve ser a mesma de Moisés: “... os nossos rebanhos também irão conosco; nem um casco de animal será deixado”. (Êxodo 10:26). Em outras palavras: “Tudo deve ser consagrado ao Senhor: Nossa vida, dons, talentos, tempo, nossa família e nossos recursos. Tudo oferecido como culto ao Senhor”.

V – Calvário;

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, o qual, tendo plenamente a natureza de Deus, não reivindicou o ser igual a Deus, mas, pelo contrário, esvaziouse a si mesmo, assumindo plenamente a forma de servo e tornando-se semelhante aos seres humanos. Assim, na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, entregando-se à obediência até a morte, e morte de cruz. Por isso, Deus também o exaltou sobremaneira à mais elevada posição e lhe deu o Nome que está acima de qualquer outro nome; para que ao Nome de Jesus se dobre todo joelho, dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai”. (Filipenses 2.5-11)

Paulo no texto acima estava corrigindo um problema comportamental na igreja dos Filipenses. Curioso é que ele utiliza um hino entoado entre os cristãos para isso. Aliás, com freqüência ele tem esse procedimento. Aos Colossenses, por exemplo, ele o faz,


mas, para corrigir um problema doutrinário. Não há como deixar de destacar como esses cânticos eram completamente cristocêntricos. Eles possuíam o intuito não apenas de moldar a visão dos cristãos a partir de Cristo como também de exaltá-lo. Que diferença para os conteúdos contemporâneos em que as letras são muito mais antropocêntricas, onde o que vale é a falar dos anseios mais terrenos do homem. Lamentável! Entretanto, retomando nosso foco, o texto fala da humildade de Cristo Jesus, que abriu mão de suas prerrogativas e enquanto homem foi obediente até a cruz. Sua morte trouxe vida, de modo que todo aquele que crê a recebe. A cruz é o ponto clímax da missão de Jesus. Paulo então, pinta esse quadro, que destaca a crucificação de Cristo, como fator encorajador de uma vida sacrificial para os cristãos. O texto não apenas mostra a sujeição do Filho ao Pai, como fala de uma compaixão desse pela humanidade. A exortação para o cristão ter o mesmo sentimento ou atitude de Cristo, aponta para a idéia de externar o que já é uma realidade em seu interior. Não se trata de uma imitação feita de modo mecânico, sem o querer ou ausente de vontade. O que ele está dizendo é que a ação decorre de uma decisão interior, ou melhor, ainda, no transformar a potência (sentimento) em ato (ação). O discípulo comprometido com a vontade de Deus, conforme já destacado, manifesta isso especialmente na relação com o próximo, afinal os dois maiores mandamentos estão interligados: Amar a Deus e ao próximo. E assim como Jesus, no cumprimento deste amor, o Calvário se tornará muito provavelmente, um caminho a ser trilhado pelo discípulo. A morte possivelmente se tornará uma realidade em sua caminhada. João faz duas declarações interessantes mostrando isso, uma no Evangelho e outra em sua primeira carta, curiosamente o endereço é o mesmo:

“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho Unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. (3.16)

“Nisto conhecemos todo o significado do amor: Cristo deu a sua vida por nós e devemos dar a nossa vida por nossos irmãos”. (3.16)

Que definição chocante de amor neste último trecho. O amor (ágape) exige sacrifício. A relação do discípulo no mundo nunca o condiciona na passividade e indiferença, pelo contrário, Jesus em sua Lei Áurea, projeta-o em uma relação pró-ativa. Enquanto


o ditado era anunciado em forma negativa: “Não façam aos outros o que vocês não querem que lhes façam”, Cristo declara colocando-a na forma positiva: “Façam aos outros o que vocês querem que seja feito a vocês!” (Mt 7.12). Desta forma o discípulo ao se deparar com gente vivendo cercada de trevas, brilhará luz através de suas boas obras. Terá ações de misericórdia diante da miséria do outro, mas também obras de justiça na construção de uma sociedade de paz, de uma sociedade harmônica. E essa última busca segundo Jesus, resulta em perseguição e morte. “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus”. (Mateus 5.10)

É claro que o discípulo sabe que só é possível uma sociedade justa se essa estiver fundamentada em Deus, se ela se atentar a verdade divina. Qualquer manifestação de justiça que não possui respaldo Nele está dada ao fracasso, pois incorrerá em medidas parciais dos problemas da sociedade. A verdade bíblica, assim toca na raiz do problema que é o coração humano. Ela conduz o cristão tanto a piedade como a justiça. Até porque só conhecemos a justiça se conhecermos a piedade e vice-versa, estas devem andar juntas. E assim como no caso da justiça, a A relação do discípulo vida piedosa, comprometida com o Deus único, com a no mundo nunca o Origem Absoluta da vida também resulta em oposição: condiciona na passividade e “De fato, todas as pessoas que almejam viver indiferença, pelo piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidas”. contrário, Jesus em sua (II Tm 3.12) Lei Áurea, projeta-o em uma relação pró-ativa. Enquanto o ditado era Esta é a razão do martírio dos primeiros cristãos, o anuncio anunciado em forma da verdade e a conformidade de suas vidas a ela provocou o negativa: “Não façam ódio dos romanos. Por outro lado, na história mais recente aos outros o que vocês temos o assassinato do pastor Martin Luther King, por não querem que lhes defender que todos os homens são iguais perante Deus. façam”, Cristo declara colocando-a na forma Em um tempo, onde o país é marcado tanto pelo positiva: “Façam aos relativismo como pelas injustiças sociais fica difícil um outros o que vocês caminho diferente para o discípulo de Jesus de Nazaré. Não querem que seja feito a é sem razão que é necessário coragem para trilhá-lo. vocês!” (Mt 7.12). Assim, somente entregando o controle de sua vida a Cristo, o discípulo poderá percorrer essa estrada, tendo a

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capacidade de acolher a todos, especialmente os mais fragilizados (Manjedoura), construindo sua identidade na Palavra ao invés daquilo que o mundo possa nos oferecer (Deserto), confiando que a presença de Cristo é suficiente para a missão, prescindindo de qualquer aparato e mecanismo de marketing (Jumentinho), valorizando tanto a comunhão divina a ponto de colocá-la acima de tudo (Getsemani) e assumindo a cruz para que a vida possa se manifestar a outros.

Três Boas Razões Embora o caminho seja desafiador, somos encorajados por Cristo. O decorrer do texto de Lucas nove nos apresenta três boas justificativas para acolher tal projeto de discipulado. Vejamos porque é melhor o discípulo renunciar tudo por Cristo: I- Porque Só Ganha a Vida Aquele Que Está Disposto a Perdê-la. Só Experimenta a Vida Quem Passa Pela Morte. Já abordamos a implicação do sacrifício, a necessidade da entrega, aqui Jesus diz que este é o caminho para a vida genuína. O ser humano geralmente tem receio de falar sobre a morte, contudo nem sempre para, a fim de refletir sobre como ela está presente em muitos aspectos. Ela faz parte, por exemplo, do ciclo natural da vida. Estamos acostumados a pensar no Ocidente a cada aniversário, que ganhamos mais um ano na vida e deveríamos pensar também pela perspectiva que perdemos um ano, estamos mais próximos a cada ano de nossa morte. Além disso, a morte se nota a cada fase do ser humano, a criança recém-nascida “morre” para que surja uma criança maior, essa “morre” para que surja um adolescente, esse para que surja um adulto, esse para que surja um ancião e enfim a morte literal para que seja ressuscitado em Cristo plenamente. Caberia aqui a declaração verdadeira de Jurgen Moltmann: “Em cada fim há um começo”. É assim na vida, a morte cessa uma etapa e anuncia uma nova. Na dimensão soteriológica também se vê esta realidade, Cristo teve de morrer para que pudéssemos viver. Foi necessário a morte de um justo para tornar justificados os pecadores. Outra dimensão é a missiológica, Jesus disse em João, capítulo doze, versículo vinte e quatro que é necessário o grão de trigo cair e morrer para que venham os frutos. A história da igreja é constituída de homens entregando suas vidas para anunciar o evangelho às nações. Foi Tertuliano que disse: “O sangue dos mártires é a semente da Igreja”. Mas há também a dimensão do nosso foco aqui, o discipulado, cuja abordagem já foi feita anteriormente. Implica nesta luta diária em que somos chamados a disciplinar


nosso corpo para que esse esteja debaixo da vontade de Cristo Jesus, isso é a implicação de ceder o controle da vida a ele: Mas esmurro o meu próprio corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de haver pregado aos outros, eu mesmo não venha a ser reprovado. (1 Coríntios 9.27)

É somente pelo enfrentamento da morte que o discípulo encontrará a vida. É somente perdendo o controle de sua vida para Cristo que ele acha a vida abundante.

II- Porque a Renúncia Projeta o Discípulo no Engajamento do Que é Permanente. Porquanto, de que adianta ao ser humano ganhar o mundo inteiro, mas perder-se ou destruir a si mesmo? (Lucas 9.25) Jesus declara que nada adianta conquistar tudo nesta existência se o mais importante, se aquilo que de fato é duradouro se perder. Constantemente a Palavra contrasta o permanente com o transitório a fim de colocar o foco do cristão no que é certo. No Sermão do Monte Jesus fala sobre isso, exorta o discípulo a acumular tesouros que não podem ser comidos pelas traças ou corroído pela ferrugem, nem saqueado por ladrões. Tudo isso é corruptível, tudo isso é passageiro. O discípulo é conclamado a acumular para a eternidade. Uma pergunta a se fazer é o que seria esse tesouro? O que pode ser acumulado para eternidade? As Escrituras nos dão algumas pistas. Podemos, segundo ela, levar nosso caráter. Paulo escrevendo aos Romanos (8.28-29) diz que o propósito de Deus é nos tornar semelhantes a Jesus e que todas as coisas cooperam para isso. O Espírito de Deus está moldando nosso ser, fomos libertos do pecado, mas um dia estaremos livres da presença do pecado, receberemos um corpo glorificados, seremos como ele é. (1 Jo 3.2). Podemos levar, de certa forma, amigos, familiares, pessoas através da boa utilização dos talentos que Deus nos confiou. É isso que Jesus disse na parábola do administrador astuto:


Eu vos recomendo: Usai as riquezas deste mundo ímpio para ajudar ao próximo e ganhai amigos, para que, quando aquelas chegarem ao fim, esses amigos vos recebam com alegria nas moradas eternas. (Lucas 16.9)

Esses frutos não se perderão. A produção deste trabalho ninguém pode roubar. Assim: “Dedicai-vos, dia após dia, à obra do Senhor, plenamente conscientes de que no Senhor, todo o vosso trabalho jamais será em vão”. (1 Co 15.58).

III-

Porque No Dia do Juízo o Discípulo Não Será Envergonhado. Porque, quem se envergonhar de mim e das minhas palavras, dele se envergonhará o Filho do homem, quando vier na sua glória, e na do Pai e dos santos anjos. (Lucas 9.26)

Essa é a terceira boa justificativa para o discípulo renunciar a tudo e seguir Jesus. Um dia toda a humanidade estará diante de Deus para ser julgada. É importante destacar esta verdade das Escrituras hoje em dia, visto que muitos a têm negligenciado e incorrido no universalismo. Estes anulam a justiça divina enfatizando apenas o seu amor. Inferno então, mesmo encontrando amplo respaldo bíblico, é algo completamente alegorizado e desacreditado. Por isso a igreja deve preservar a mensagem recebida na sua integralidade. Já foi mencionada a necessidade da coragem na caminhada do discípulo, visto que o compromisso com a piedade e a justiça trazem implicações como a perseguição. E muitos cristãos são mortos ainda hoje em países muçulmanos e outros fechados ao evangelho de Jesus. Mas a perseguição não necessariamente se limita a morte ou agressão física, ela pode ser manifestada na hostilidade, no preconceito e na rejeição. E por incrível que pareça no Ocidente atual muitos ditos cristãos têm negado o senhorio de Cristo para não sofrerem uma espécie de marginalização imposta pela cultura pós-moderna. Uma das características do mundo pós-moderno é o relativismo. A subjetividade é altamente destacada hoje. C. S. Lewis combateu um pouco deste problema em seu livro “A abolição do Homem”. Ele percebeu que alguns pensadores de seu contexto estavam influenciando as novas gerações a não verem as coisas como possuidoras de


valores objetivos. O valor para esses seria estabelecido pelo próprio sujeito. Quando analisasse uma cachoeira, por exemplo, e dissesse que aquilo era sublime, ele estaria simplesmente expressando um sentimento, ou seja, esta não teria valor em si. Lewis passa então a refutar tal idéia, mostrando que os próprios autores caiem em contradição, uma vez que publicaram o livro com o fim de apresentar uma idéia que julgam ser correta, visando substituir à tradicional. Ora se isso ocorre é porque os mesmos crêem em valores que julgam ser corretos ou mais nobres que outros. Por isso Lewis diz que as crianças devem ser treinadas sim a julgarem aquilo que deve merecer nosso desprezo, aprovação ou repúdio. Mas mesmo havendo objeções a mentalidades como essa, não apenas por Lewis, mas por muitos cristãos, esse paradigma de pensamento está presente. A verdade se tornou algo apenas subjetivo, é o homem que determina o que é certo, o que é bom, o que é belo, etc. O desdobramento desse fato é uma sociedade que vive uma singularidade curiosa, para não dizer hipócrita. Prega-se sobre aceitar todos os pontos de vista, de conviver com o pluralismo, da importância da tolerância, mas exceto, se uma das visões se apresentar como a Verdade, neste caso o cristianismo. É impressionante como o cristianismo gera resistência nos pensadores atuais, os mesmos que encorajam as manifestações de religiosidades como a afro, islâmica e espírita na sociedade, são os que condenam as manifestações do cristianismo nesta, mesmo sendo amplamente superior na sua adesão em alguns países. Falar dos valores cristãos, anunciar a piedade exigida no Evangelho é ser projetado pelo humanismo, em uma espécie de ala considerada ignorante, fanática e que impossibilita o “desenvolvimento” de uma sociedade “madura”. É justamente em função dessa pressão, que alguns cristãos têm cedido, abandonando os princípios e valores do Evangelho, a ponto de se chegar ao absurdo de acolher o discurso que questiona aspectos determinados biologicamente por Deus. Os humanistas não apenas desacreditam de um propósito criacional, como tem negado os próprios limites da ordem temporal. Se a humanidade no passado praticamente possuía um consenso em relação ao entendimento de uma ordem natural, daquilo que é certo e errado, estes elaboraram uma visão absolutizando o aspecto historicista com o objetivo de condicionar a moral a cada contexto específico. Tudo não passa de uma construção social, e a tão calorada discussão sobre ideologia de gênero não deixa de seguir tal mentalidade. O discípulo deve ser leal ao seu Senhor, não se importando com o desprezo que venha receber. Ele deve continuar confessando que a criação só encontra o seu significado na Palavra Eterna de Deus que a tudo sustenta. (Hebreus 1.3b).


3. Espiritualidade Integral – Equilíbrio Um dos grandes problemas entre os cristãos ocorre quando deixam de abraçar a integralidade da vida proposta no Evangelho. A tendência ao desequilíbrio ou extremismo vez por outra se manifesta na caminhada da Igreja. John Stott também faz este alerta: “... uma das maiores fraquezas que os cristãos (especialmente os evangélicos) manifestam é a tendência para o extremismo ou desequilíbrio”.

E este equilíbrio e integralidade podem ser vistos em Jesus, em especial, na seqüência do capítulo nove de Lucas. O relato mostra uma série de situações que revelam esta tendência humana, e também o modo como o Mestre vai conduzindo seus discípulos a fim de trilharem em uma caminhada saudável, isto é, uma espiritualidade integral ou equilibrada.

3.1- Uma Espiritualidade Equilibrada Contempla Devoção e Diaconia. Com certeza vos asseguro que alguns que aqui se encontram, de modo algum passarão pela morte antes de verem o Reino de Deus”. Passados quase oito dias após o pronunciamento destas palavras, Jesus tomou consigo a Pedro, João e Tiago e subiu a um monte para orar. Enquanto orava, a aparência do seu rosto foi se transformando e suas roupas ficaram alvas e resplandeceram como o brilho de um relâmpago. Então, surgiram dois homens que começaram a conversar com Jesus. O discípulo deve ser Eram Moisés e Elias. Apareceram em glorioso esplendor e falavam leal ao seu Senhor, não sobre a partida de Jesus, que estava para se cumprir em Jerusalém. Pedro e seus amigos estavam dormindo profundamente, se importando com o mas despertaram de súbito, e viram a fulgurante glória de Jesus e desprezo que venha os dois homens que permaneciam com Ele. Quando estes iam se receber. Ele deve afastando de Jesus, Pedro sugeriu: “Mestre, como é bom que continuar confessando estejamos aqui! Vamos erguer três tabernáculos: um será teu, outro que a criação só para Moisés, e outro, de Elias”. Mas Pedro não sabia, ao certo, o encontra o seu que estava propondo. Entretanto, enquanto ele ainda falava, uma significado na Palavra nuvem surgiu e os encobriu, e grande foi o temor que sentiram os Eterna de Deus que a discípulos ao verem aqueles homens desaparecerem dentro da tudo sustenta. espessa nuvem. Então, dela propagou-se uma voz, afirmando: “Este é o meu Filho, o Escolhido; a Ele dai toda atenção!” Passado (Hebreus 1.3b). o som daquela voz, Jesus ficou só. Os discípulos, então, guardaram o que viram e ouviram somente para si; durante aquele tempo não compartilharam com ninguém o que acontecera.

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No dia seguinte, assim que desceram do monte, uma grande multidão veio ao encontro de Jesus.De repente, um homem surgiu do meio da multidão clamando em alta voz : “Mestre! Suplico-te que socorras meu filho, o meu único filho! Um espírito se apodera dele; e no mesmo instante faz o menino berrar, joga-o no chão, provoca-lhe convulsões até espumar pela boca, jamais o deixa por muito tempo, e por meio de muitos ferimentos o está destruindo. Roguei aos teus discípulos que expulsassem o espírito maligno, mas eles não conseguiram”. Então, declarou Jesus: “Ó geração sem fé e perversa! Até quando estarei convosco e sofrerei com vossa incredulidade? Trazei-me aqui o teu filho”. Enquanto o menino caminhava em sua direção, o demônio o lançou por terra, em convulsão. Porém Jesus repreendeu o espírito imundo, curou o menino e o entregou de volta a seu pai. (Lucas 9.27-45)

A espiritualidade proposta por Jesus nos conduzirá ao Monte, mas também ao Vale. Ela nos levará a uma vida de oração, meditação e adoração, mas também de evangelização, ação social, libertação e denuncia profética.

Neste trecho nos deparamos com duas tendências entre os cristãos. Por um lado há aqueles que absolutizam na experiência eclesiástica a devoção. Eu me recordo que alguns anos atrás no Brasil, naquele frenesi do chamado “louvorzão”, houve uma igreja que fez escala entre os seus músicos, mantendo vinte e quatro horas de música tocada no salão da denominação, ou, segundo eles dizem (equivocadamente), “vinte e quatro horas de louvor diante do altar”. Fato curioso para não dizer absurdo. Mas tal idéia possui uma similaridade em relação ao que Pedro propõe a Jesus. Diante de uma experiência fantástica, do momento sobrenatural da transfiguração do Senhor onde Moisés e Elias conversaram sobre o grande propósito divino, o que pode ser descrito como um “parêntese da eternidade”, ele sugere a perpetuação daquela dimensão: “Mestre, como é bom que estejamos aqui! Vamos erguer três tabernáculos: um será teu, outro para Moisés, e outro, de Elias”. Há ainda outra passagem que nos leva a pensar que aparentemente existe uma tendência, geralmente onde há uma visão escatológica muito forte, da perda de outras dimensões da vida cristã. Pelo menos, Paulo exorta aos Tessalonicenses sobre esse problema. Porque, quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também. Porquanto ouvimos que alguns entre vós andam desordenadamente, não trabalhando, antes fazendo coisas vãs. A esses tais, porém, mandamos, e exortamos por nosso Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando com sossego, comam o seu próprio pão.


E vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem.

(2 Tessalonicenses 3:10-13)

Alguns irmãos em função da expectativa do retorno de Cristo deixaram de trabalhar, de produzir e por esta razão foram exortados pelo apóstolo Paulo. Jesus tinha uma vida de oração disciplinada que Lucas faz questão de registrar, todavia isso não o impedia de executar outros aspectos da missão. Em Marcos no capítulo um, dos versos trinta e cinco a trinta e oito ele se levanta bem cedo, ainda escuro, e vai orar. Quando os discípulos o encontram ele diz que iria se dirigir as aldeias vizinhas a fim de pregar. Exatamente o que se vê na narrativa da Transfiguração, ele contrariamente a sugestão de Pedro desce do monte e lá embaixo o primeiro acontecimento é a cura de um menino epilético atormentado por demônios. Todavia no vale, há outros nove discípulos que permaneceram, diferentes de Pedro, Tiago e João, a noite toda trabalhando tentando libertar o menino. Esta é a turma da diaconia, a turma do serviço. É aquele tipo de gente que está disposta a trabalhar a qualquer momento, que não mede esforços, contudo que negligencia o outro aspecto. Infelizmente há muita gente assim no Brasil. E afirmo isso não menosprezando a importância do serviço, tenho plena convicção que ele é muito necessário no país onde filosofias anticristãs são disseminadas constantemente, especialmente pelas mídias. Entendo a urgência, frente um país com números assustadores de desempregados e miseráveis, e por isso não negligencio o cuidado, a ação social e profética. Contudo muitos cristãos têm incorrido em um fazer desprovido de oração, de meditação e de orientação bíblica. E a conseqüência muitas vezes é a aproximação a ideologias, o levantar de bandeiras com propostas contrárias a nossa fé. É a militância em favor de sistemas humanos, em favor do Estado, por ter perdido de vista o poder de Deus (Rm 1.16). É triste quando os cristãos agem pela força do seu braço. Quando confiam mais nas construções humanas do que no Evangelho da Graça. Quando deixam de depender de Deus. O resultado será o mesmo que aconteceu com os nove discípulos: “E roguei aos teus discípulos que o expulsassem, e não puderam”. (Lucas 9:40). Não haverá resolução, mesmo que haja muitas horas de investimento, muita dedicação, ficaremos perplexos perguntando: “Por que não pudemos nós expulsá-lo?” (Mateus 17:19). E como no caso da turma da devoção Jesus irá nos advertir por estar absolutizando uma dimensão em detrimento de outra: “... esta casta de demônios não se expulsa senão pela oração e pelo jejum”. (Mateus 17:21).


Assim, para a turma do Monte Jesus diz: “Falta Vale”, para a Turma do Vale, ele diz: “Falta Monte”. O primeiro necessitava partilhar de toda benção que recebeu, de olhar para além de si, necessitavam servir ao próximo, ir para os desafios de uma sociedade em trevas. Já o outro carecia de consagração, de vida de piedade, de oração apaixonada, de adoração vibrante, de fundamentação da Palavra Eterna. Se seguirmos verdadeiramente os passos de Jesus, nunca incorreremos nestes extremos, caminharemos tanto pelo Monte, como pelo Vale.

3.2 - Uma Espiritualidade Equilibrada Contempla Sofrimento e Glória. E todos pasmavam da majestade de Deus. E, maravilhando-se todos de todas as coisas que Jesus fazia, disse aos seus discípulos: Ponde vós estas palavras em vossos ouvidos, porque o Filho do homem será entregue nas mãos dos homens.

(Lucas 9:43,44)

Após a cura do menino o texto mostra que a multidão ficou eufórica, admirada com o acontecimento. E no meio desta euforia que ele começa a falar aos seus discípulos sobre seus sofrimentos, sua crucificação, morte e também ressurreição. (Mt 17.22-23). Esse se tornou outro ponto de desequilíbrio na espiritualidade da igreja. A Teologia da Prosperidade, mencionada no primeiro capítulo, promoveu uma espiritualidade irreal por não saber lidar com aquilo que Rene Padilla chama de “Já” e “Ainda Não” do Reino de Deus. Jesus afirmou aos discípulos tanto que o Reino de Deus estava entre eles como que o Reino de Deus viria. Com isso ele simplesmente estava dizendo que embora houvesse sinais da presença deste Reino na História ele não estava presente em plenitude, esta só ocorrerá por conta da parousia. A Teologia da Prosperidade acaba levando os cristãos a querer viver o “Ainda Não” agora e os leva, por outro lado, a rejeitar o “Já” do Reino. Por isso é tão comum expressões do tipo: “Você é filho do Rei, tem que comer o melhor desta terra”, ensinando de modo distorcido, todavia, que os cristãos pela fé têm acesso a todo tipo de bens materiais que suas almas desejarem. É claro que experimentamos no presente parte dessa glória. Paulo escrevendo aos Efésios no capítulo um afirma que os cristãos já foram abençoados com todas as bênçãos espirituais. Esses se tornaram filhos de Deus, não são apenas criaturas, não


carregam apenas a “Bios” (vida natural), mas receberam a “Zoé” (vida espiritual) que os tornam como Jesus, o primogênito entre muitos irmãos. Ainda afirma que foram redimidos, comprados não com prata e ouro, mas com o sangue do Cordeiro, não pertencem mais ao pecado, se tornaram propriedade exclusiva de Cristo. Foram ainda selados com o Espírito Santo de Deus, esse é a garantia do que haverá de vir, é a certeza que aquele que começou a boa obra em nós irá completar. Enfim, há glória experimentada aqui na presente era, mas muito maior na vindoura. Por enquanto nessa experimentaremos a inevitabilidade do sofrimento. Veja que declaração bombástica de Paulo aos Romanos: “Se somos filhos, então, também somos herdeiros; herdeiros de Deus e coherdeiros com Cristo, se realmente participamos dos seus sofrimentos para que, da mesma maneira, participemos da sua glória. ”.

(Romanos 8:17)

Paulo está declarando que um filho de Deus genuíno experimentará a glória no futuro e a certeza disso é o partilhar do sofrimento de Cristo no presente. É uma constatação desta união mística do cristão com o seu Senhor. O mesmo Paulo fala dessa partilha do sofrimento de Cristo: Agora me alegro em meus sofrimentos por vocês, e completo no meu corpo o que resta das aflições de Cristo, em favor do seu corpo, que é a igreja.

(Colossenses 1:24) As aflições de Paulo não eram redentoras como as de Cristo, seus sofrimentos não produziam perdão de pecados aos outros, mas antes eram missiológicas. Faziam parte do seu caminho no cumprimento da missão, algo que ele registra em sua carta mais biográfica (2 Coríntios 11-12). Como já foi anunciado mais de uma vez aqui, não é possível andar com Jesus e querer ignorar o sofrimento. E uma das razões é que só conseguimos enxergar e conseqüentemente imitar o Cristo que deu sua vida ao mundo, que sofreu.


O pastor Ariovaldo Ramos explica isso de modo brilhante em sua leitura do texto de Apocalipse cinco. Lá diz que João chorava muito porque não havia ninguém digno de abrir o livro da mão de Deus (solucionar o drama humano). Então o ancião do céu se aproximou de João e disse: “Não chore, eis o Leão da Tribo de Judá que venceu e abrirá o Livro”. E quando João olhou ele viu um Cordeiro que parecia ter estado morto. O pastor Ariovaldo então diz: “Ou o ancião não sabe a diferença de Leão e Cordeiro, ou o João olhou para o lado errado, ou ainda, o Leão e o Cordeiro são a mesma pessoa. No entanto, o Ancião que pertence ao céu olha e vê o Leão, ele enxerga o Deus vitorioso, poderoso, enquanto que o João, que é da terra, olha e enxerga o Cordeiro que parecia estar morto, enxerga o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, o Deus Homem que sofreu para dar vida a nós, o Servo Sofredor de Isaías (53). Enfim, só dá para imitar o que vemos e a humanidade só enxerga o Cordeiro, o Cristo que trocou o cetro e a coroa pela bacia e a toalha. Essa é a espiritualidade do „já‟.” Contudo enfrentamos todo tipo de dor e sofrimento porque sabemos que eles não se comparam com a glória que em nós há de ser revelada (Romanos 8.18). É nessa esperança que somos fortalecidos e nos movemos. Esse é o segundo ponto de equilíbrio no discipulado: Sofrimento presente e glória vindoura.

3.3 - Uma Espiritualidade Equilibrada Contempla o Mistério e a Revelação. Todavia, eles não conseguiam entender o significado de tais palavras, pois foi-lhes vedado esse entendimento, a fim de que não as compreendessem. E tinham receio de pedir mais explicações a Jesus a este respeito. (45)

Jesus anuncia sobre seu sofrimento, mas os discípulos não compreenderam no primeiro momento, essas coisas estavam encobertas a eles ainda. Isso me faz pensar em uma verdade da caminhada cristã nesta existência, algo ensinado por Moisés aos israelitas: “As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei” (Deuteronômio 29:29)

 Só dá para imitar o que vemos e a humanidade só enxerga o Cordeiro, o Cristo que trocou o cetro e a coroa pela bacia e a toalha. Essa é a espiritualidade do „já‟.”

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Uma terceira dificuldade em uma caminhada equilibrada é essa compreensão de que existem coisas que já nos foram reveladas por Deus e é possível compreende-las, mas também há coisas que estão fora do alcance de nossa razão e nesse caso devemos descansar na soberania divina. Infelizmente não raras às vezes se vê exatamente o contrário, os cristãos não se esforçando para compreender a revelação de Deus atribuindo como mistério verdades possíveis de assimilar e por outro lado querendo discutir assuntos abstratos, como o sexo dos anjos. A igreja brasileira, especialmente pentecostal tem se deixado levar muitas vezes por um misticismo e emocionalismo que enxerga a razão como inimiga da fé. Parecem se esquecer que uma das implicações do primeiro mandamento reside no esforço intelectual e a preguiça neste sentido não deixa de ser pecaminosa. O que denota uma situação engraçada e trágica ao mesmo tempo, pelo fato de que o modo de Deus se comunicar com a humanidade tenha se dado através de proposições. E isso exige do receptor critérios para o entendimento do texto, aliás, pelo menos três princípios podem ser destacado quando nos deparamos com o texto bíblico: I- Princípio da Simplicidade, II- Princípio Histórico e III- Principio da Harmonia. O primeiro leva em conta que é possível entender a Bíblia e só há uma interpretação correta dessa, por isso todas as interpretações devem ser contrastadas em termos de antítese. O segundo é de que preciso ter em mente o contexto histórico do autor, especialmente para discernir entre princípios imutáveis e aplicações circunstanciais dos textos. E terceiro e último ter em mente que Deus não pode se contradizer, assim a Bíblia é sua própria intérprete, um texto paralelo pode trazer luz há algum texto que julgamos mais obscuro. Por isso que Paulo declara que nosso culto é racional (Rm 12.1). O problema então não é o exercício da racionalidade, pois esta nos foi dada pelo Pai, mas sim o racionalismo. A tentativa de compreender todo o cosmos de maneira lógica. Na verdade tal atitude adoece o homem tanto quanto o irracionalismo. Sobre isso afirmou o brilhante pensador católico G.K. Chesterton em seu livro “Ortodoxia”: “Aceitar todas as coisas é um exercício, entender todas as coisas é um esforço. O poeta procura apenas a exaltação e a expansão, isto é, procura um mundo no qual ele possa se expandir. O poeta pretende apenas meter a cabeça no Céu, enquanto que o lógico se esforça por meter o Céu na cabeça. E é a cabeça que acaba por estourar”.


A falta de aceitação do mistério produz loucura. É preciso descansar em Deus, ter um comportamento mais poético, colocar a cabeça no céu. O mesmo Chesterton diz que os que tendem mais a loucura não são os artistas e poetas, mas os matemáticos e jogadores de xadrez. São aqueles que querem entender de modo lógico os mínimos detalhes da vida. Esses que desprezam o mistério acabam incorrendo em um amolecimento do cérebro ao invés do coração. Assim o discípulo é chamado tanto a se esmerar em conhecer a vontade revelada e como aplicá-la a vida, como a apaziguar o coração frente aos mistérios da nossa existência e do próprio Deus, fato esse que comunica a nós a pequeneza e limitação humana.

3.4 - Uma Espiritualidade Equilibrada Contempla o Paradoxo: Humildade e Maturidade.

Emergiu entre os discípulos uma discussão sobre quem, dentre eles, seria o maior. Mas, Jesus, conhecendo os seus anseios mais íntimos, tomou uma criança e a colocou em pé, ao seu lado. Então afirmou: “Quem recebe esta criança em meu Nome, recebe a minha própria pessoa; e quem me recebe, está recebendo Aquele que me enviou. Portanto, aquele que entre vós for o menor, este sim, é grandioso”. (Lucas 9.46-48)

Não é mera coincidência que a primeira discussão entre os discípulos tenha ocorrido logo após a experiência da transfiguração de Jesus e da libertação do epilético. Todos os ingredientes para ela estão ali presentes. Por um lado, encontramos três discípulos com o semblante de admiração e cheios de segredos entre si, visto terem sido proibidos de contar sobre aquilo naqueles dias (36). Por outro, há outros nove frustrados depois de ralar a noite toda. Quem seria maior? A turma do trabalho árduo ou da devoção profunda? E essa discussão leva Jesus a tomar uma criança como referencia de humildade aos discípulos. Maior no Reino de Deus é quem se faz menor, a lógica é inversa. É muito comum e também lamentável ver as pessoas iniciarem sua caminhada na vida cristã de forma humilde como aquela criança, contudo ao passar do tempo se deixarem levar por um sentimento de prepotência em função da experiência e conhecimento


adquirido. Não é raro ver até mesmo entre líderes esse estado de espírito de competitividade em relação a quem tem a maior igreja, ou quem exerce mais influencia política e coisas desse gênero que fogem completamente ao espírito do evangelho. O fato é que quanto mais se caminha com Cristo, mais o sujeito se conscientiza de sua dependência da graça divina. E de modo paradoxal mais esse sujeito cresce enquanto cristão. Paulo é um exemplo claro neste sentido. Ele teve revelações da parte de Deus extraordinárias, realizou mais no que diz respeito à propagação do Evangelho e elaboração doutrinária, (claro, que inspirado por Deus), do que qualquer outro. Todavia pela soberania divina foi concedido a ele um espinho na carne, muito provavelmente, uma enfermidade nos olhos (ver Gálatas 4.13, 15 / 6.11 / Atos 23.1-5) para se gloriar na graça de Deus, para compreender que esta era suficiente em sua vida. O mesmo Paulo faz três declarações em momentos distintos de sua caminhada que revelam esta humildade e dependência. Pois sou o menor dos apóstolos e nem sequer mereço ser chamado apóstolo, porque persegui a igreja de Deus. (1 Co 15.9) A mim, o mais insignificante dentre todos os santos, coube-me a graça de anunciar entre os pagãos a inexplorável riqueza de Cristo,

(Efésios 3:8) Esta afirmação é fiel e digna de toda aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior. (1 Timóteo 1:15)

Que coisa extraordinária! Por volta do ano 55 D.C. ele fez a primeira declaração se colocando como o menor dos apóstolos, na segunda, por volta de 61 D.C. ele se coloca como o mais insignificante dos santos, e por fim, no ano de 64 D.C. (provavelmente) se coloca como o pior dos pecadores. Embora esse homem tenha sido um gigante na fé, o maior missionário da igreja, ele não perde de vista a maravilhosa graça de Deus, tem convicção que essa é responsável por tudo em sua vida.


O discípulo de Jesus deve ter essa consciência, precisa fazer do lema de João Batista o seu lema na vida: “Importa que Cristo cresça e eu diminua”. (Jo 3.30). Viver este efeito gangorra, pois só assim irá crescer diante de Deus e dos homens. Como declarou Tomás de Aquino: “A humildade é o primeiro degrau para a sabedoria”.

3.5 - Uma Espiritualidade Equilibrada Contempla Verdade e Unidade.

Então replicou João: “Mestre, vimos um homem expulsando demônios em teu nome e nos dispusemos a tentar impedi-lo, pois afinal, ele não caminha conosco. Jesus, entretanto, lhes advertiu: “Não o proibais! Pois quem não é contra vós outros, está a vosso favor”. (Lucas 9.49-50)

Esses dois fatores são bem óbvios conforme veremos, todavia é o ponto de equilíbrio que julgo mais difícil na caminhada da igreja, especialmente evangélica. O apóstolo João mostra nesse texto uma tendência ao tão conhecido em nosso meio: sectarismo. Jesus, no entanto, diz a ele para deixar o homem fazer a obra, pois não era inimigo deles. Uma pergunta se faz necessária: Será que Jesus estava incentivando a inclusão de toda pessoa que utilize o nome dele? Se sim, como harmonizamos textos como o de Judas, próprio irmão de Jesus, que encoraja os cristãos a batalharem pela fé (1.3)? Ou então Paulo aos Gálatas no capítulo primeiro versos oito e nove: Contudo, ainda que nós ou mesmo um anjo dos céus vos anuncie um evangelho diferente do que já vos pregamos, seja considerado maldito! Conforme já vos revelei antes, declaro uma vez mais: qualquer pessoa que vos pregar um evangelho diferente daquele que já recebestes, seja amaldiçoado! O fato é que somos exortados tanto a manter a unidade, como também a batalhar pelo evangelho, mas há duas coisas que nos atrapalham nesse processo: o pluralismo e o dogmatismo. O pluralismo é um pensamento muito presente em nossa sociedade, a idéia do politicamente correto, inclusive já foi destacada. Chesterton já alertava em seus dias sobre esse perigo. Ele dizia que a humildade havia sido deslocada do órgão da convicção e se instalado no órgão da modéstia. A pessoa possuir certeza sobre algo passou a ser considerado como presunção hoje. O homem pós-moderno se tornou


humilde demais para crer em absolutos. E isso faz com que aceitemos todo tipo de pensamento, visto que a verdade passou a ter um caráter meramente subjetivo. Assim, os cristãos têm estendido a destra da comunhão a todo tipo de gente e proposta. Não importa se o sujeito pregue algo completamente antagônico, se a expressão “Jesus” é anunciada junto, está valendo hoje em dia. Tudo em nome da “comunhão”. Coloco entre aspas, pois isso contraria a própria expressão, que implica em se “ter algo em comum”. Nós só podemos ter comunhão em torno da verdade. E essa tem sido deturpada. “Há um desvio epistemológico na compreensão da verdade antes considerada transcendente, eterna, universal e revelável. As Escrituras tornam-se então, incompreensíveis ou de leitura absolutamente condicionada ao pluralismo cultural. Já as doutrinas antes essenciais, agora são consideradas inadmissíveis, desnecessárias, anacrônicas ou perigosas para a unidade na relatividade absoluta”. Foi o que escreveu o Bispo Robinson Cavalcanti em seu livro “Reforçando Trincheiras”. Ele ainda complementa: “A nova compreensão ilimitada e relativista de inclusividade, com sua verdade pluriforme, atinge a dimensão comportamental, ética e moral e caracteriza-se fortemente anômica por aceitar qualquer comportamento humano, incluindo-se a área sexual e suas distintas „orientações‟”.

Portanto não podemos abrir mão da verdade, dos valores, da moral, isso é suicídio. Essa conversa pós-moderna que diz ser errado pensar em termos de antítese é absurda, é contraditória, pois ela se apropria do conceito de antítese para querer refutar a antítese. Os seres humanos sempre pensaram assim, se algo é verdadeiro seu oposto será falso. Esse modo de pensar faz parte da racionalidade que Deus concedeu ao homem. Vale destacar que essa inclusividade extrema, anunciada sob pretensão de unidade geralmente se fundamenta em uma falsa idéia de amor. Além de enxergá-lo erroneamente como um sentimento, pensam-no como algo desassociado de verdade. Na cabeça de muitos o amor não pode andar junto com a verdade. A Bíblia, no entanto, não mostra essa dicotomia, Paulo, por exemplo, apresenta em 1 Coríntios 13, o conhecido texto do amor, que esse não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade. João, “o apóstolo do amor” afirma em sua segunda carta que sua


grande alegria era ver seus filhos na verdade, admoesta ainda a não receberem nas reuniões alguém que negue a sã doutrina. Portanto, esse amor dos pluralistas não passa de sentimentalismo barato e é um dos grandes responsáveis pela situação deplorável de boa parte da igreja evangélica no país. Quem ama confronta. Quem ama sabe que o descartar da verdade trará males e por esta razão anuncia, pois deseja o bem ao outro. Mas como citei, há outro inimigo da igreja nesse processo: o dogmatismo. O dogmatismo é a tendência de elevar dogmas humanos acima da própria Palavra de Deus. Os protestantes posteriores a Calvino e Lutero incorreram em um esforço na produção de teologia de cunho dedutivo, de crença no poder da lógica e especulação, típicos do escolasticismo tão desprezado pelos reformadores primitivos. Assim eles estabeleceram um filtro na leitura da Bíblia, tornando essa submissa ao dogma ao invés do contrário. O que não falta na igreja evangélica é divisão por fatores irrelevantes. Até hoje, por exemplo, cristãos discutem sobre a quantidade de água utilizada no batismo. Eles se dividem por defenderem se devemos jogar o sujeito na água ou água no sujeito, por exemplo. Lamentável! Creio que um bom conselho para ajudar os cristãos nesses casos seja o conceito de adiáfora (o indiferente secundário, aquilo que não compromete a fé), elaborado por Filipe Melancton, e tão utilizado pelos irmãos anglicanos:

“No essencial: unidade; No não-essencial: liberdade; Em tudo: a caridade”. Se tivermos coragem para afirmar a verdade, mas amor em conviver com o nãoessencial manteremos uma caminhada saudável. Em outras palavras, se resistirmos tanto o pluralismo inclusivista como o dogmatismo sectarista cumpriremos tanto o imperativo de batalhar pela verdade como o imperativo de preservar a Se resistirmos tanto o unidade da igreja. pluralismo inclusivista como o dogmatismo sectarista cumpriremos tanto o imperativo de 3.6 - Uma Espiritualidade Equilibrada batalhar pela verdade Contempla Zelo e Compaixão. como o imperativo de preservar a unidade da igreja. E ocorreu que, ao se cumprirem os dias em que seria elevado aos céus, Jesus manifestou

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em seu semblante a firme resolução de ir em direção a Jerusalém. E, por isso, enviou mensageiros à sua frente. Indo estes, chegaram a um povoado samaritano a fim de lhe preparar pousada. Contudo, o povo daquela aldeia não o recebeu por notar que Ele estava prioritariamente a caminho de Jerusalém. Diante de tal situação, os discípulos Tiago e João, propuseram: “Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para que sejam aniquilados?” Mas Jesus, mirando-os, admoestou-lhes severamente: “Não sabeis vós de que espécie de espírito sois? Ora, o Filho do homem não veio com o objetivo de destruir a vida dos seres humanos, mas sim para salvá-los!” E assim, rumaram para um outro povoado. (Lucas 9.51-56)

Este é o último ponto que o texto de Lucas dá margem para pensar quanto à busca por um equilíbrio na caminhada. Somos de um lado chamados a tratar a obra de Deus com zelo, mas de outro a não perder de vista o valor imensurável da vida. João e seu irmão Tiago diante da suposta falta de acolhimento e honra dos samaritanos para com Jesus, (isso em sua concepção, pois o texto diz que o próprio Jesus demonstrava no semblante o interesse de ir a Jerusalém e não permanecer ali), perguntaram a Jesus se ele não queria que eles mandassem fogo do céu a fim de aniquilar aquele povoado. Havia um zelo excessivo que os deixou indignados pela não correspondência as expectativas que nutriam. É fato que a falta de zelo é pecaminosa, fazer a obra de Deus de modo negligente é algo que a Escritura nos admoesta. Devemos fazer tudo de coração como para o Senhor (Col 3.23). Aliás, um dos textos mais tristes das Escrituras se refere a Sansão. Esse homem estava tão familiarizado com o sagrado que começou a tratar as coisas de Deus de qualquer maneira. O livro de Juízes mostra com freqüência o Espírito Santo usando-o de modo impressionante, mas posteriormente ele fazendo algo que Deus desaprovava. Até o dia em que ele pensou que Deus estava com ele e esse já não mais estava (Juízes 16.20). Há muita gente assim nas igrejas, fazendo as coisas de modo relaxado. Negligenciam a educação dos filhos transferindo para babás, escolas, pastores, etc. Outros que se comprometem com alguma área da vida eclesiástica e oferecem o mínimo de investimento de tempo, recurso e esforço, deixando os outros envolvidos questionando porque razão os tais decidiram assumir uma responsabilidade se não cumprem? O discípulo deveria procurar realizar tudo do modo mais excelente possível. Foi Martin Luther King que disse: “Se alguém varre as ruas para viver, deve varrê-las como Michelângelo pintava, como Beethoven compunha, como Shakespeare escrevia”. E ainda Lutero respondendo para um sapateiro que lhe perguntou como


poderia servir a Deus em sua profissão, disse: “Faça o melhor sapato que você puder e venda por um preço justo”. É triste ver a falta dessa consciência entre os cristãos. Ver não-cristãos muito mais comprometidos com o que fazem, produzindo coisas sensacionais. Claro que isto se deve muito a falta de senso de vocação, a dicotomia sagrado/secular que permeia a mentalidade evangélica. Deveríamos romper com essa limitação que permitimos ser imposta a fé cristã. Esta ficou restrita a lacuna privada da vida. Os cristãos precisam urgentemente retomar o imperativo cultural (Gn 1.26-30). Obedecerem à exortação do escritor de Hebreus: “Saiamos até ele (Cristo) fora do arraial religioso levando o seu vitupério” (13.13). Há um texto de C.S. Lewis muito lúcido que nos encoraja neste sentido: "(...) Acredito que todo cristão qualificado para escrever um bom livro popular sobre qualquer ciência ajudaria muito mais com isso do que com apologética. A dificuldade com que nos deparamos é a seguinte: conseguimos (com frequência) que as pessoas ouçam o ponto de vista cristão durante mais ou menos meia hora, porém, no momento que em saem de nossa palestra ou acabam de ler nosso artigo, mergulham de volta num mundo onde a opinião oposta é generalizada. Todos os jornais, filmes, romances e livros didáticos minam nosso trabalho. Enquanto tal situação perdurar, o sucesso amplo será simplesmente impossível. Precisamos atacar a linha de comunicação do inimigo. Não precisamos de mais livretos sobre o cristianismo, mas, sim, de mais livretos cristãos sobre outros assuntos - como o cristianismo latente. Vemos isso com mais facilidade olhando por outro lado. Não é provável que nossa fé seja abalada por um livro sobre hinduísmo. Entretanto, se toda vez que lermos um livro de geologia, botânica, politica ou astronomia, encontrarmos implicações hindus, isso nos abalará. Não foram os livros escritos em defesa do materialismo que tornou o homem moderno materialista. Foram as posições materialistas contidas em todos os outros livros. Da mesma forma, os livros sobre cristianismo não os incomodarão muito. Mas ele ficaria perturbado se, toda vez que procurasse um livro de introdução a uma ciência, a melhor obra no mercado fosse sempre escrita por um cristão. O primeiro passo para a reconversão do país seria uma série de livros escritos por cristãos que vencesse os best-sellers em seu próprio terreno."

Se quisermos influenciar a cultura com a nossa fé é necessário zelo. Requer dedicação de nós. Mas diferente de Tiago e João não podemos incorrer em um zelo tão excessivo a ponto de perder de vista a compaixão pelo outro, a compreensão de que a vida é mais importante do que as coisas. Esse é um problema sério nas igrejas. Há pessoas extremamente zelosas com as coisas, altamente organizadas, mas acabam colocando-as acima das pessoas em muitos casos. Quem já transitou no ambiente da música na igreja provavelmente já conviveu com


gente assim. Pessoas que colocam um padrão alto, querem um nível profissional e acabam privando pessoas talentosas, mas que não possuem o nível exigido, naquele momento, de participarem e crescerem nesta área. Perdem crianças e jovens, porque sequer criam alternativas para esses. Veja bem não estou falando de incluir gente fora de seu talento, de incluir qualquer pessoa que cante no chuveiro, eu me refiro ao excesso de zelo, a rigidez ou inflexibilidade de pessoas que desprezam gente com potencial para crescer. Alguns anos atrás ouvi o relato do pastor Ziel Machado sobre uma igreja de Guarulhos. Ele disse que na hora dos cânticos a orquestra da igreja se preparava e ele percebeu duas crianças de mais ou menos seis anos com violinos nas mãos. E de vez em quando na música o regente olhava e dava um sinal para essas crianças e elas tocavam a nota. Curioso, ao término do culto, Ziel perguntou o motivo daquilo. E o regente respondeu que aqueles meninos sabiam apenas uma nota e, portanto toda vez que tinha essa nota na canção ele dava o sinal e os meninos tocavam. Agora, imagine o sentimento de dignidade dessas crianças em fazer parte da orquestra da igreja. Com base nisso o pastor Ziel Machado afirma: “A Igreja deve apreender a pedagogia da nota só. A pedagogia da inclusão, do trazer para perto e caminhar junto”. Essa área da música é apenas um exemplo, mas deveríamos aplicar o conceito da “nota só” em muitas outras da igreja. Inclusive sermos mais pacientes com as pessoas, permitir que essas se aproximem, que pecadores tenham confiança para se achegarem. Em Jesus vemos um leproso se aproximando, contrariando as leis da sociedade, uma mulher de vida promiscua se derramando aos seus pés em lágrimas, pecadores comendo na mesma mesa que ele. Deveríamos desconfiar de nosso cristianismo quando não promovemos essa mesma confiança para que os pecadores se aproximem. Paulo adverte Timóteo a pregar não apenas com toda doutrina, mas também com longanimidade, ser paciente, pois cada um aprende em seu ritmo, assim neste sentido, não podemos tornar os outros reféns de nossas expectativas, do nosso tempo. O fato é que quando há zelo desvencilhado de compaixão pode-se incorrer em tirania ao passo que compaixão sem zelo corre-se o risco de incorrer na bagunça. Portanto o discípulo procurará conciliar esses dois aspectos na caminhada. Assim a caminhada com Jesus contemplará o equilíbrio entre a devoção e a piedade, o sofrimento e a glória, o mistério e a revelação, o paradoxo da humildade e o crescimento, o compromisso com a unidade e a verdade e por fim o equilíbrio entre o zelo e a compaixão.

4. As Promessas Do Caminho É comum ouvir hoje em dia alguns pregadores fazendo uma série de promessas a fim de atrair as pessoas para suas “igrejas”. Frases do tipo: “Venha para Jesus e deixe de

 Em Jesus vemos um leproso se aproximando, contrariando as leis da sociedade, uma mulher de vida promiscua se derramando aos seus pés em lágrimas, pecadores comendo na mesma mesa que ele. Deveríamos desconfiar de nosso cristianismo quando não promovemos essa mesma confiança para que os pecadores se aproximem.

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sofrer”, o que não deixa de carregar certa verdade, desde que esse sofrer se refira a uma crise existencial, a busca por sentido na vida ou o sentimento de culpa. Entretanto tais pregadores do chamado movimento de Confissão Positiva ao se referirem ao fim do sofrimento tem em vista especialmente a idéia de completa ausência de enfermidade na vida do cristão e a prosperidade material. O pastor Jerônimo Onofre da Silveira, um desses pregadores escreveu em um de seus livros: “Eu digo a você que é filho de Deus, e que recebeu um novo coração, chega do pior, esta maldição está quebrada em nome de Jesus; – Chega de comer frango só aos domingos; – Chega de dormir com cobertor velho e rasgado; – Chega de usar dentadura colada com durepox; – Chega de usar roupas rasgadas e furadas; – Chega de escova de dente estraçalhada; – Chega de carro fundindo o motor; – Chega de casa sem acabamento e com goteiras; – Chega de comprar quilinhos de mantimentos; – Chega de guardar o melhor e usar o pior; – Chega de comprar o pior; – Chega de televisão preto e branco; – Chega de cheque sem fundo e nome protestado; – Chega de agiotas e gerentes de bancos; – Chega de geladeira e fogão velhos; – Chega de cama quebrada e colchão remendado; – Chega de dívidas e passar necessidades; – Chega de telefone, água e luz cortados; – Chega de reformar coisas velhas; – Chega de comprar fiado e pagar aluguel; – Chega de receber salário mínimo; Comece agora a “desejar” com fé o melhor, engravide-se do melhor. As promessas se cumprem pelo desejo do nosso coração, de acordo com os nossos ideais, devemos reivindicar com fé todos os dias o melhor desta terra; Andar na presença de Deus atrai prosperidade e sucesso; Esta é outra ministração que buscamos nas cruzadas com grande intensidade, ou seja, o dom de adquirir riquezas. Este dom deve ser buscado [...]; Jeová-Jiré transforma o deserto de Sim num poderoso shopping-center, suprindo nos mínimos detalhes as necessidades”.

Quando olhamos para as palavras de Jesus aos seus seguidores ou candidatos ao discipulado percebemos o quão absurda são declarações como essa acima. Nos últimos versos do capítulo nove do evangelho de Lucas encontramos três diálogos que mostram o que de fato encontraremos no caminho. Há três promessas para quem deseja trilhá-lo.

4.1 – No Caminho Haverá Desconforto.


Quando estavam andando pelo caminho, uma pessoa declarou a Jesus: “Eu te seguirei por onde quer que andares”. Mas Jesus lhe replicou: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça”. (Lucas 9.57-58) O próprio Jesus, mesmo sendo Deus, possuindo todo poder e autoridade, enquanto esteve neste mundo passou por algumas privações. Aliás, nasceu como já foi dito em uma família pobre, que na oferta da cerimônia de sua apresentação levou dois pombinhos em função da falta de recursos, conforme prescrito em Levitico 12.8. Nesse texto ele fala sobre a dificuldade de sua peregrinação. A falta de morada fixa, a realidade de uma vida nômade e o vasto trabalho a realizar eram um conjunto de fatores que retirava qualquer possibilidade de conforto. Um episódio curioso que revela essa demanda que nos tira completamente do comodismo é relatado em Marcos seis. Os discípulos haviam retornado de uma missão e apresentaram o relatório a Jesus, havia tanta gente que não conseguiam sequer se alimentar. Assim Jesus propõe um descanso a eles em um lugar deserto. Seria uma espécie de retiro com seus discípulos. Mas quando chegam do outro lado do mar se deparam com a multidão, que tendo visto o barco se afastar correu para lá. Jesus descendo do barco e vendo a multidão é movido de compaixão por essa, porque eram como ovelhas sem pastor. E por essa razão o descanso é cancelado e cede lugar ao trabalho de ensino e a ação social. Isso mostra que o discípulo deve se adequar a agenda do Reino de Deus. É interessante se pensar que a disciplina do jejum ajuda muito neste sentido. A resistência de Jesus permanecendo horas sem comer devido às demandas, fato esse que deixou até seus familiares chocados (Mc 3.20-21), revela um pouco disso. O caminho também nos tira do conforto porque envolve dependência de Deus. Somos “filhos” de Abraão, aquele que deixou tudo e se colocou sob os cuidados de Iaveh. Projetou-se em uma caminhada sem saber como, quando e até para onde iria. A única certeza era quem estaria com ele. Da mesma forma Jesus enviou setenta e dois discípulos para uma missão orientando-os a não levarem dinheiro, nem bolsa, nem túnica ou sandália extra. Um exercício de dependência do Pai, pois esse que alimenta as aves dos céus e veste os lírios dos campos cuidaria de cada um deles nas coisas necessárias da vida: comida, bebida e vestes (Mt 6.24-34). Esse é um ponto importante a destacar. É muito comum ouvir nas igrejas essas palavras de Jesus quanto à provisão divina sendo aplicadas a uma idéia de satisfação de caprichos e desejos materialistas. Contudo tanto no texto de Mateus 6.33 como de 1 Timóteo 6.8 a fala é sobre o necessário para a vida, sobre o que é básico. O discípulo é encorajado nas Escrituras a adotar um estilo de vida simples. A própria continuação do texto de Timóteo trás uma séria advertência para aqueles que colocam o “enriquecer”


como objetivo de vida. Esses, afirma Paulo, caem em tentações e em armadilhas, incorrendo na ruína e destruição. Com isso não se está dizendo que um discípulo não possa ser rico, José de Arimatéia e alguns outros possuíam muitos recursos, embora tivessem maior responsabilidade nessa área também. A questão bíblica é sobre o perigo de confiar nas posses, sobre o perigo de desperdiçar a vida acumulando bens e a falta de caridade para com o pobre. Os bens que são concedidos a nós podem e devem ser desfrutados com ações de graças (Eclesiastes 9.7-9), mas também serem vistos como uma responsabilidade confiada e por isso utilizados para socorrer outros, ou seja, partilhado entre os irmãos. Por essa razão na oração ensinada por Jesus o pão é nosso, nunca exclusivamente meu. O próprio Senhor viveu isso de tal forma que só foi reconhecido ressurreto por dois discípulos após o partir do pão (Lucas 24.30-31). A igreja primitiva encarnou a mesma consciência, vivendo um nível de solidariedade e fraternidade fantástico: E da multidão dos que creram, um só era o sentimento e a maneira de pensar. Ninguém considerava exclusivamente seu os bens que possuía, mas todos compartilhavam tudo entre si... ...Não havia uma só pessoa necessitada entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o depositavam aos pés dos apóstolos, que por sua vez, o repartiam conforme a necessidade de cada um. (Atos 4.32,34)

Os verbos no grego apontam para uma ação repetida e prolongada, ou seja, todas as vezes que houve necessidade na igreja os irmãos venderam e repartiram suas posses com os necessitados. Essa conscientização se estendeu para as igrejas fora de Jerusalém também, alcançando de modo magnífico a igreja da Macedônia, que mesmo vivendo em pobreza extrema conseguiu levantar recursos para acudir os pobres em Jerusalém (2 Co 8.1-4). Assim, diante de exortações e exemplos como esses e frente a um mundo onde milhões de pessoas morrem de fome todos os dias, fica difícil para um discípulo viver de outra forma que não seja procurando se ajustar a um estilo de vida mais simples. Como bem afirmou Ronald Sider: “Devemos viver de modo simples para que outros possam simplesmente viver”. Viver de modo responsável, portanto, sempre colocará o discípulo fora da zona de conforto. Até mesmo a parábola dos talentos em Mateus vinte e cinco mostra que a fidelidade no pouco nos colocará no muito. E o que está dizendo ali no texto, diferente


do que se pensa, não é que o fiel desfrutará de descanso, mas sim de mais responsabilidade ainda, ou seja, fiel no pouco trabalho receberá mais trabalho da parte de Deus e isso deve ser visto como dádiva. Dá para entender, portanto, como afirmou o rev. Caio Fábio em um de seus livros, porque é muito mais provável que a caminhada com Jesus nos leve a um pequeno apartamento do que a uma suíte presidencial. Porque possivelmente nos conduza a uma humilde residência do que aos palácios desta vida. Porque não raras às vezes as raposas e aves encontrarão maior conforto do que alguns engajados discípulos de Jesus. O desconforto do caminho exigirá confiança e simplicidade do discípulo.

4.2 No Caminho Haverá Dilema

Entretanto, a outro homem fez um convite: “Segueme!” Ele, contudo, argumentou: “Senhor, permite-me ir primeiramente sepultar meu pai”. Todavia, insistiu Jesus: “Deixa os mortos sepultarem os seus próprios mortos. Tu, porém, vai e proclama o Reino de Deus”. (Lucas 9.59-60)

Essa palavra de Jesus deixa muitos perplexos. Que dilema esse: enterrar o pai ou pregar o evangelho? Nesse exemplo extremo, no entanto, ele quer mostrar que o Reino de Deus possui proeminência por lidar com questões muito mais urgentes. A proclamação é tarefa primordial para o discípulo, está acima de qualquer outra necessidade, pois trata de um fator eterno, permanente ao passo que a outra é circunstancial. .

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Em outra ocasião ele faz essa diferença entre a comida que perece e a comida que permanece para vida eterna, nesta última deve estar o foco do discípulo. Por não discernir isso e pela absorção do materialismo histórico, fundamentando inclusive a missão da igreja nesse, que muitos têm incorrido hoje na relativização do kerigma (proclamação verbal). Se por um lado a Bíblia orienta quanto a não incorrermos em uma fé morta, deixando de ter ações filantrópicas associadas à pregação, por outro ela nos orienta aqui quanto à importância

Frente a um mundo onde milhões de pessoas morrem de fome todos os dias, fica difícil para um discípulo viver de outra forma que não seja procurando se ajustar a um estilo de vida mais simples.

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primaz do anuncio. A pregação sem obras é hipócrita, mas a ação social sem pregação é paliativa. Não podemos nem pregar o evangelho deixando a pessoa com fome, nem tampouco permitir que essa vá para o inferno de barriga cheia. É muito comum ouvir, entre esses que relativizaram a pregação, a frase que muitos atribuem a Francisco de Assis: “Pregue o evangelho e se preciso use palavras”. Todavia ela não é plenamente verdadeira, porque a utilização da palavra é imprescindível na missão. Não existe missão kerigmática sem “mostrar o erro ou o problema do ser humano”, sem “anunciar a medida de solução ou correção” e sem ensinar a nova vida em boas obras (2 Tm 4.2). Nem precisamos lembrar que Deus se comunicou com a humanidade de maneira especial através de proposições. E a missão deve ser feita logo. Em João capítulo quatro, verso trinta e cinco Jesus disse que os campos estavam prontos para a colheita. O imperativo já foi dado aos discípulos, não há o que esperar. Diferente também do que geralmente se ouve no meio evangélico pentecostal você não precisa “sentir algo” da parte de Deus para pregar o evangelho, pois no momento da conversão e do entendimento das sagradas escrituras, esse princípio já fica estabelecido no coração do discípulo. Basta somente obedecer à ordem divina: “Indo pregue o evangelho a toda criatura” (Mc 16.15). Portanto não se trata de algo que se fará em outra nação, na vida de algum povo específico, embora Deus possa nos levar caso queira, mas de anunciar por onde formos, enquanto estiver caminhando, ele disse: pregue! Na padaria, na universidade, no ônibus ou em qualquer lugar, essa é a prioridade. Há urgência do Reino, portanto requer prioridade do discípulo diante dos dilemas da vida, isso será sempre inegociável.

4.3 No Caminho Haverá Desgaste

Outro ainda lhe prometeu: “Senhor, eu te acompanharei, mas deixa-me primeiro despedir-me dos meus familiares”. Ao que Jesus lhe asseverou: “Ninguém que coloca a mão no arado, e fica contemplando as coisas que deixou para trás, é apto para o Reino de Deus”. (Lucas 9.61-62)

Jesus compara o Reino de Deus, como de praxe em seu ensino, (são bem comuns as comparações a fim de ressaltar uma verdade), ao trabalho na lavoura. Esse exigia atenção, esforço e consistência para que se obtivessem bons resultados posteriormente.


Na caminhada com Cristo também é assim. Há pouco vimos à agenda de Jesus que o privava muitas vezes de comer e descansar, como essa era desgastante. É bem provável até que Jesus devido a todo esse empenho tenha aparentado ser muito mais velho do que as pessoas de sua idade. O labor possivelmente o envelheceu. Em um diálogo com os fariseus no capítulo oito de João, pelo menos dá a entender assim. Após se descrever como auto-existente e anterior a Abraão, os fariseus respondem: “Você não tem cinqüenta anos, como viu Abraão?”. Não há como fugir das pressões internas devido à responsabilidade para com os irmãos ou externas, no que diz respeito à hostilidade do mundo e dos agentes do mal. Se engajar no Reino, colocar a mão no arado implica em desgaste. Muitos líderes se cansaram frente essas pressões. Moisés e Elias são exemplos de homens muito piedosos, mas que foram acometidos pelo estresse na missão. O apóstolo Paulo também é outro que lidou com isso. Em sua última carta se percebe até um tom meio depressivo. Mas nada disso o venceu, pois seus olhos estavam corretamente em Cristo Jesus, Autor e Consumador da nossa fé. O apóstolo concluiu a corrida que lhe foi proposta, combateu o bom combate e guardou a fé. Nessa última carta, inclusive podemos perceber boas lições para superar esses momentos de dores, sobre como passarmos pelas angustias sem permitir que elas se instalem em nós. Penso ser importante destacar: 

Em Paulo aprendemos que podemos superar as angustias e tensões quando buscamos amparo nos amigos. Procura vir ao meu encontro o mais depressa possível. (2 Timóteo 4.6)

Em um momento difícil, onde o apóstolo se sente abandonado e até frustrado devido alguns irmãos em que havia projetado expectativas, ele solicita a presença de seu discípulo Timóteo. Estava com pressa em vê-lo, estar junto, conversar. A amizade é espaço de cura. Amigos verdadeiros nos tratam naquilo que necessitamos mudar (Pv. 27.6), nos encorajam (Pv 27.9), nos aperfeiçoam (Pv 27.17). Neste tempo de globalização, de facilidade de comunicação tem-se perdido o olho no olho, o “tête – à – tête”. Creio que é altamente necessário os cristãos começarem a trocar os likes das redes sociais por abraços fraternos. Isso é terapêutico. Sem contar o fato de que uma vez que o ser humano foi criado à imagem e semelhança do Deus Triuno ele deve viver de forma comunitária. Ele encontra seu significado enquanto homem na relação com outros. Assim ele reflete em sua existência o “DeusComunidade”. Afinal “o Reino de Deus...”, como disse James Houston, “é um reino de amigos”.


 Em Paulo aprendemos que podemos superar as angustias e tensões quando buscamos discernir e reparar nossos erros. Toma a Marcos e traze-o contigo, pois ele me é de grande auxílio para o ministério. (2 Timóteo 4.11b) Em Atos 15.36-40 é relatado um grande desentendimento entre Paulo e Barnabé por causa de João Marcos. Paulo ao que parece não teve paciência frente à oscilação do jovem que os havia abandonado em uma viagem anterior e devido a isso não queria mais a companhia desse nas viagens missionárias. Desta forma, Paulo e Silas seguiram caminhos diferentes de Barnabé e o jovem João Marcos. Ao ler a biografia de Paulo percebe-se um temperamento colérico, aquele sujeito “carne de pescoço”, focado na missão, não querendo desperdiçar tempo. E isso determinou muito sua atitude relatada acima. Todavia no texto dessa carta vemos um Paulo com uma postura diferente, reconhecendo os valores de Marcos, o quanto esse era útil ao ministério. Não sabemos ao certo se foi ali que ocorreu essa mudança, todavia podemos apreender aqui que nessas horas de aflições, de solidão deveríamos discernir até que ponto nós mesmos não provocamos alguns dos nossos problemas e uma vez diagnosticado procurarmos repará-los.  Em Paulo aprendemos que podemos superar as angustias e tensões quando mantemos o bom senso. “Quando vieres, traze-me a capa que deixei em Trôade, na casa de Carpo” (2 Timóteo 4.13a)

Não é porque Paulo discernia que seu tempo neste mundo estava se findando que ele iria entregar os pontos e deixar de se importar com sua vida, de zelar pela sua saúde. Ele estava aguardando julgamento em uma masmorra fria e por isso solicita que Timóteo traga sua capa a fim de se aquecer. É importante destacar isso hoje, em função de um presente desprezo pelo corpo em boa parte dos evangélicos com base em uma mentalidade grega que enxerga a matéria como má e a alma como boa. Devido a esse dualismo os cristãos têm negligenciado não apenas a responsabilidade de manifestarem sua fé na vida pública, como também incorrido em problemas graves de saúde, como se o corpo não tivesse de ser visto como dádiva de Deus e por essa razão ser zelado pelos cristãos.


É preciso superar essa teologia “pós-morte” que faz do presente uma espécie de saguão do aeroporto celestial, como se ser cristão fosse algo restrito a crer em Deus e aguardar a chamada divina para embarcar na eternidade. Não! Necessitamos de uma teologia de vida, de uma teologia do bem viver. Não é errado zelar pelo corpo, mesmo que o próprio Paulo tenha dito que o exercício físico é de pouco proveito (que naquele período onde muito se andava a pé e a cavalo, tornava-se pouco necessário mesmo, diferente dos dias atuais) em razão do contraste com os resultados da piedade, podemos tirar o máximo possível desse pouco proveito. Infelizmente é por falta de zelo que alguns cristãos têm sua vida encurtada, sendo que poderiam abençoar a vida de pessoas por muito mais anos. Na hora da angustia não se entregue, não permita que ela se instale, saia da cama, sinta o calor do sol, a brisa do vento enquanto você caminha. Não deixe de cuidar do seu “templo”.

 Em Paulo aprendemos que podemos superar as angustias e tensões quando alimentamos nossa mente com bom conteúdo. Traga... Os livros, principalmente os pergaminhos. (2 Timóteo 4.13b) Este pedido poderia ser tanto para poder escrever como os livros do A.T. para estudo. Que coisa maravilhosa! Ele está preso, sentindo que sua morte está se aproximando, sentindo-se abandonado, mas pede livros. Ele foi instruído aos pés de Gamaliel, tinha um domínio extraordinário das Escrituras como da cultura greco-romana, teve experiências fascinantes na vida cristã, mas pede livros. Ele ocupa sua mente com alimento saudável, ele continua meditando e estudando. Continua crescendo e aprendendo. Em um tempo de empobrecimento cultural, seja na literatura como na arte, os cristãos precisam se espelhar em Paulo, alimentando suas mentes com a Palavra de Deus, com bons livros, enfim, rejeitarem esse lixo tóxico que é entregue todos os dias pelas mídias. Se há pouco mencionei o zelo com o corpo, o que envolve boa alimentação, com a mente não é diferente. Busquemos uma mente saudável semelhantemente. Além disso, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, tudo o que é virtuoso e louvável, eis o que deve ocupar vossos pensamentos.

(Filipenses 4:8)


 Em Paulo aprendemos que podemos superar as angustias e tensões quando alimentamos a alma com sentimentos nobres.

É crucial isso, não é porque pessoas nos ofendam ou nos decepcionam que devemos guardar rancor, ódio e outros sentimentos ruins. Isso prejudica a nós mesmos. Paulo abandonado por todos em seu julgamento, mesmo depois de ter feito tanto na vida deles não lhes deseja mal. Na minha primeira defesa, ninguém se fez presente para me ajudar; pelo contrário, todos me desampararam. Contudo, que isto não lhes seja imputado em juízo. (2 Timóteo 4.16)

O apóstolo não permite que abrolhos e ervas daninhas cresçam em seu interior. Ele perdoa, ele roga pelas pessoas que o haviam abandonado. Como é importante regarmos para que se reproduza em nós somente o que é bom, mantermos uma vida encharcada do amor e da misericórdia divina, que nos ensina a não retribuir o mal com o mal.

 Em Paulo aprendemos que podemos superar as angustias e tensões quando mantemos a fé na presença e cuidado de Deus.

Todavia, o Senhor permaneceu ao meu lado e me abençoou com forças para que por meu intermédio a Mensagem fosse plenamente proclamada, e todos os que não são judeus a ouvissem. E eu fui livrado da boca do leão! Assim, o Senhor me livrará também de toda a obra maligna e me conduzirá a salvo para o seu Reino celestial. A Ele seja a glória para todo o sempre. Amém! (2 Timóteo 4.17-18)

As expressões mostram um Paulo confiante: “Deus esteve comigo”, “Deus me fortaleceu”, “Deus me livrou” e ”Deus é e será glorificado”.


Ele pode ter se sentido abandonado pelos amigos, mas nunca por Deus. Ele tem convicção na promessa do Senhor: “... eis que estarei convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28.20). Ele conhece o Deus das Escrituras, conhece o zelo desse Deus com seu próprio nome, por isso não falha, não deixa de cumprir suas promessas. O Deus que ultrapassa até mesmo uma mãe no que diz respeito ao cuidado e a proteção dos seus (Isaías 49.15). Não há problema se a crise e as tensões vierem, o próprio Jesus as enfrentou e disse que elas fazem parte da vida, se mantivermos a fé resoluta descansaremos na certeza de que Deus está conosco nos fortalecendo em todo tempo. A caminhada, portanto, é desgastante, por essa razão exige firmeza, foco e acima de tudo perseverança. Em Cristo sempre encontremos força para seguir adiante, como afirmou o escritor de Hebreus:

Nós, porém, não somos dos que retrocedem e são destruídos, mas dos que crêem e são salvos. (Hebreus 10.39)

Conclusão: Vimos no presente trabalho o quão fundamental é ter uma visão adequada sobre Jesus, como a visão correta determinará o viver correto. Analisamos ainda a condição para seguir a Cristo. Não é possível ir após ele sem renuncia, sem entrega plena do controle de nossas vidas ao senhorio dele, visto que nossa natureza terrena sempre procurará um caminho antagônico, um caminho de auto-satisfação do ego. Contudo há boas razões para essa entrega do nosso “eu” a Cristo. No trajeto do discipulado constatamos que o equilíbrio é imprescindível a fim de evitar a fragmentação da missão e as possíveis patologias. Se quisermos servi-lo de modo integral esse é o caminho. E por fim, diferente do que se ouve hoje em dia, as promessas sobre o caminho não falam de mansões, iates, aplausos e prestigio neste mundo, antes mostram que o discípulo terá em vista desconforto, dilemas e desgaste. Contudo nada disso supera o privilégio de servir a Cristo. Nada disso se compara com a benção divina recebida. Todos aqueles que experimentaram genuinamente a graça de Deus dão sinais através de uma vida em boas obras, pois encontraram em Jesus a razão do seu viver. Eles irão fazer ecoar as palavras do apóstolo Paulo: “Porque para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro!” (Filipenses 1.21). Esse é o percurso quando estamos seguindo os passos de Jesus.


Bibliografia

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