Tradução em contexto: contos de Mark Twain

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Série Tradução em Contexto


Sumário

Apresentação ….………………………………………….………….....6

Mark Twain ….…………………………………………….………….....8

The £1,000,000 bank­note | A nota de 1 milhão de libras ….……..10 Comprehension questions | Exercícios……………………………....92

The $30,000 Bequest | O Legado de US$ 30.000,00 ….……….....94 Comprehension questions | Exercícios ..…………………………...202

The facts concerning the recent carnival of crime in Connecticut | Os fatos sobre o recente festival de crimes em Connecticut….….204 Comprehension questions | Exercícios ..…………………………...266

Answer Key | Respostas dos exercícios …………………………...268


Apresentação Este é o primeiro volume de uma série chamada “Tradução em Contexto” dedicada à apresentação de contos escritos em inglês com sua respectiva tradução. O leitor encontrará, juntamente com os textos em inglês e em português, dicas, comentários e exercícios, visando uma maior compreensão do texto, oferecendo também uma oportunidade para aprofundar algumas questões consideradas pertinentes tanto no processo tradutório quanto na interpretação do original. Este tipo de publicação favorece uma aproximação mais mediada entre o texto original e o traduzido, e pode ser útil para suscitar uma maior curiosidade dos leitores em relação ao processo de tradução. O processo de seleção dos textos se baseou em um critério bastante simples: cada volume é dedicado a contos de um(a) autor(a) já em domínio público. A escolha dos contos como material para o trabalho se deve basicamente ao tamanho, pois são nar­ rativas curtas que podem ser lidas em pouco tempo, bem como aproveitadas para exercícios em sala de aula. Em relação aos textos específicos de cada autor, o critério de escolha pode ser tanto temático – como no caso deste primeiro volume – como algumas ca­ racterísticas do texto que favoreçam comentários sobre dificuldades da tradução ou questões linguísticas, ou mesmo o gosto pessoal dos organizadores, que selecionam três ou quatro contos dentre dezenas escritas por determinado autor. Com o desenvolvimento da coleção, serão escolhidos textos e escritores nem sempre muito conhecidos no país, ou textos menos conhecidos de autores consa­ grados, favorecendo também a introdução de nomes da literatura que, muitas vezes, não são suficientemente divulgados em nossas escolas. Em cada volume, a tradução fica a cargo de um dos organi­ zadores; após a tradução feita, ela é lida individualmente pelos outros dois; o texto corrigido é finalmente lido e discutido em grupo, até que se chegue a um resultado considerado bom pelos três; du­ rante esse processo são escolhidos os pontos que merecem ser 6


comentados. Os comentários, surgidos da prática de ensino da lín­ gua inglesa em sala de aula e da prática como tradutores, podem ser tanto sobre a tradução quanto sobre questões culturais que, muitas vezes, apresentam dificuldades ainda maiores para os tradutores que as questões de diferenças estruturais inglês/portu­ guês ou lexicais. Os exercícios visam à compreensão do texto, bem como aprofundar alguns pontos considerados importantes no origi­ nal inglês, e podem tanto ser usados em sala de aula quanto por leitores interessados em aumentar seu conhecimento da língua, pois as respostas para cada atividade são dadas no fim do volume. Cada volume vai contar igualmente com uma pequena apresentação do autor, situando­o em seu momento histórico, e dos contos, salientan­ do algumas de suas particularidades.

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Mark Twain Man is the only animal that blushes. Or needs to. O Homem é o único animal que enrubesce. Ou precisa. ( The Mysterious Stranger , primeira publicação em 1916)

Samuel Langhorne Clemens (1835, Florida, Missouri – 1910, Redding, Connecticut), mais conhecido pelo pseudônimo Mark Twain, é um famoso escritor estadunidense, que foi escolhido para dar o pontapé inicial na nossa série de volumes com contos bilín­ gues, pela importância de seu papel na literatura estadunidense. Es­ sa relevância pode ser atestada, por exemplo, pelo fato de o escritor William Faulkner (1897­1962) considerar Twain o pai da literatura norte­americana. Mark Twain é especialmente conhecido por seus romances, sendo uns dos mais famosos As Aventuras de Tom Sawyer (1876), Aventuras de Huckleberry Finn (1885) e O Príncipe e o Mendigo (1881). A carreira do autor, no entanto, é marcada por inúmeros ou­ tros romances, assim como crônicas, reportagens, contos, relatos de viagem, cartas, frases memoráveis e outros escritos. Twain foi um escritor prolífico, sendo que a compilação de toda a sua obra atual­ mente é de responsabilidade de um projeto intitulado “Mark Twain Project Online”, que pode ser acessado no endereço: http://www.marktwainproject.org/ Os três contos que compõem este volume, “The £1,000,000 Bank­Note” (1893), “The $30,000 Bequest” (1904) e “The Facts Con­ cerning The Recent Carnival of Crime in Connecticut” (1876), retra­ tam em alguns aspectos The Gilded Age (Era Dourada), período da história dos Estados Unidos que compreende os anos de 1870 a 1900. O termo “gilded age” foi cunhado pelo próprio Mark Twain, quando escreveu, em parceria com Charles Dudley Warner (1829­1900), o romance intitulado The Gilded Age: A Tale Today (1873), que satiriza uma época com sérios problemas sociais mas­ carados por uma “fina camada dourada”. A temática que une os contos é o dinheiro e as relações que ele estabelece. No primeiro conto, o dinheiro aparece em sua 8


forma mais concreta, passando a ser ilusória no segundo e transformando­se em outros valores, no terceiro. De certa forma to­ dos aludem à epígrafe de abertura desta introdução ao autor, visto que a chamada à consciência dos personagens é evocada de forma sutil (primeiro e segundo contos), passando à intensa (terceiro conto).

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The £1,000,000 bank­note 1 1 Podemos notar que o título já apresenta uma diferença entre a expressão do valor em números, e sua expres­ são por extenso. O símbolo da libra, menos conhecido que o cifrão, pode causar confusão, portanto, estabe­ lecer o valor por escrito é uma estratégia tradutória. Outra questão é notar que os números são expressos com vírgulas em inglês, onde se­ riam pontos em português. 2 I was twenty seven years old. Verb to be + age. A ca­ rac terística do inglês é usar o verbo “to be”, nesse caso visto. Em portu guês, pode­ mos usar “ter + idade” ou “estar com + idade”.

When I was 2 twenty­seven years old, I was a mining­broker's clerk in San Francis­ co, and an expert in all the details of stock traffic. I was alone in the world, and had nothing to depend upon but my wits and a clean reputation; but these were setting my feet in the road to eventual fortune, and I was content with the prospect. My time was my own after the after­ noon board, Saturdays, and I was accus­ tomed to put it in on a little sail­boat on the bay. One day I ventured too far, and was carried out to sea. Just at nightfall, when hope was about gone, I was picked up by a small brig which was bound for London. It was a long and stormy voyage, and they made me work my passage without pay, as a common sailor. When I stepped ashore in London my clothes were ragged and shabby, and I had only a dollar in my pock­ et. This money fed and sheltered me twen­ ty­four hours. During the next twenty­four I went without food and shelter.

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A nota de 1 milhão de libras

Quando eu estava com vinte e sete anos, era funcionário de uma corretora de mineração em São Francisco, e especialis­ ta nas particularidades do mercado de ações. Não tinha ninguém no mundo e só dependia da minha sagacidade 3 e de uma reputação impecável; todavia isso me faria aventurar em busca de uma possível fortu­ na, perspectiva que me deixava feliz. Eu era dono do meu tempo depois da reunião de diretores à tarde, no sábado, e estava acostumado a gastá­lo em um 4 pe­ queno barco à vela na baía. Um dia aventurei­me para muito longe e fui carre­ gado em direção ao mar. Ao cair da noite, quando tinha quase perdido a esperança, fui resgatado por um pequeno navio de dois mastros, rumando em direção a Lon­ dres 5 . Foi uma viagem longa, com muitas tempestades, e no navio me fizeram traba­ lhar para pagar a minha passagem como um marujo qualquer. Quando pisei no solo de Londres, minhas roupas estavam rasga­ das e puídas, e eu tinha só um dólar no bolso. Esse dinheiro deu para me alimentar e me abrigar por vinte e quatro horas. Durante as vinte e quatro seguintes fiquei sem comida e abrigo.

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3 A palavra wit não tem uma tradução direta. Ela carrega sentidos de divertimento e de inteligência. Era um conceito muito apreciado pelos poetas ingleses chamados metafísi­ cos, no século XVII. As prin­ cipais traduções da palavra podem ser: talento, engenho­ idade, astúcia, juízo, inteli­ gência e entendimento. 4 Existem duas formas de registrar o artigo que segue a preposição, em português (por exemplo: em + um). Em contextos diversos, temos a possibilidade da combinação do artigo com a preposição (em + um = num). Nesta tra­ dução, escolhemos não con­ trair a preposição em com os artigos que a seguem (um, uma) em todas as suas ocor­ rências, só juntando quando se trata de falas de persona­ gens. 5 Diante do nome de uma ci­ dade nem sempre sabemos se ele é ou não precedido de crase (junção da preposição a com o artigo a [a + a = à]) com verbos regidos pela pre­ posição A. Uma regra sim­ ples para sabermos isso é empregar um verbo que peça a preposição DE . Se a prepo­ sição DE se encaixar, a crase não pode ser usada. No caso de Londres, podemos cons­ truir a frase “Vim de Lon­ dres.” Note que usamos DE Londres e não DA (de + A) Londres. Assim, o nome Lon ­ dres não admite a anteposi­ ção do artigo e, por isso, no texto, temos: “em direção a Londres”, sem crase.


6 Um dos tempos verbais mais utilizados no original foi o “Past Continuous” ou “Past Progressive” (“I was dragging myself...”). No caso, o autor está descrevendo uma ação que estava acontecendo em um tempo bastante específi­ co do passado.

About ten o'clock on the following morning, seedy and hungry, I was dragging 6 myself along Portland Place, when a child that was passing, towed by a nurse­maid, tossed a luscious big pear— minus one bite—into the gutter. I stopped, of course, and fastened my desiring eye on that muddy treasure. My mouth watered for it, my stomach craved it, my whole being begged for it. But every time I made a move to get it some passing eye detected my purpose, and of course I straightened up then, and looked indifferent, and pretended that I hadn't been thinking about the pear at all. This same thing kept hap­ pening and happening, and I couldn't get the pear. I was just getting desperate e­ nough to brave all the shame, and to seize it, when a window behind me was raised, and a gentleman spoke out of it, saying: “Step in here, please.” I was admitted by a gorgeous flunkey, and shown into a sumptuous room where a couple of elderly gentlemen were sitting. They sent away the servant, and made me sit down. They had just finished their break­ fast, and the sight of the remains of it al­ most overpowered me. I could hardly keep my wits together in the presence of that food, but as I was not asked to sample it, I had to bear my trouble as best I could.

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Por volta das dez horas da manhã se­ guinte, abatido e faminto, eu me arrastava pela Portland Place, quando uma criança, que passava puxada pela babá, atirou uma pera grande e saborosa – com uma mordida – na sarjeta. Parei, claro, e cravei meus olhos desejosos nessa preciosidade enlameada. Mi­ nha boca se encheu de água por causa da pera, meu estômago a almejou, todo o meu ser suplicou por ela. Mas a cada gesto que eu fazia para alcançá­la, um transeunte detec­ tava os meus propósitos, e naturalmente, eu me aprumava, parecia indiferente e fingia não estar pensando na pera de forma alguma. Essa situação se manteve e eu não consegui me apossar dela. Estava começando a su­ perar o desespero da vergonha de agarrá­la, quando uma janela atrás de mim se abriu, e um cavalheiro disse em alto e bom tom: “Entre aqui, por favor.” Fui acolhido por um criado pomposo que me conduziu a uma luxuosa sala onde um par de cavalheiros idosos estava sentado. Eles dispensaram o empregado e me fizeram sen­ tar. Tinham acabado de tomar o desjejum, e a visão das sobras quase me desestabilizou. Mal podia me concentrar diante daquela comi­ da, mas como não me convidaram a prová­la, tive de lidar com a minha dificuldade da melhor forma possível.

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7 Mark Twain era norte­ ­americano, e tinha, portanto, uma visão distanciada dos costumes ingleses. Em mui­ tos casos, o autor utiliza es­ ses comentários de maneira irônica, como forma de abor­ dar os estereótipos, reforçan­ do­os ou questionando­os.

Keep my wits together: to stay calm and focused. Now, something had been happening there a little before, which I did not know anything about until a good many days af­ terwards, but I will tell you about it now. Those two old brothers had been having a pretty hot argument a couple of days be­ fore, and had ended by agreeing to decide it by a bet, which is the English way of settling everything 7 . You will remember that the Bank of England once issued two notes of a million pounds each, to be used for a special purpose connected with some public trans­ action with a foreign country. For some reason or other only one of these had been used and cancelled; the other still lay in the vaults of the Bank. Well, the brothers,chat­ ting along, happened to get to wondering what might be the fate of a perfectly honest and intelligent stranger who should be turned adrift in London without a friend, and with no money but that million­pound bank­ note, and no way to account for his being in possession of it.

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Não perder o juízo 8 para permanecer calmo e concentrado. Bem 9 , algo tinha acontecido ali um pou­ co antes, do qual eu não soube nada a respei­ to até alguns dias mais tarde, mas, agora, vou lhe contar o que aconteceu. Aqueles dois ido­ sos eram irmãos e tinham discutido com vee­ mência uns dois dias antes, e acabaram concordando em solucionar tal caso com uma aposta, que é o jeito inglês de resolver tudo. Você 10 deve se lembrar que o Banco da Inglaterra uma vez cunhou duas notas de um milhão de libras cada, para serem usadas em alguma ocasião especial, ligada a uma transação pública com um país estrangeiro. Por uma razão ou outra, somente uma delas fora usada e cancelada; a outra ainda per­ manece na caixa­forte do banco. Ora, os irmãos, conversa vai conversa vem, acaba­ ram curiosos por saber qual seria o destino de um forasteiro de todo honesto e inteligente que aparecesse em Londres à deriva, sem amigos, e sem dinheiro, exceto de posse daquela nota de um milhão de libras, mas sem ter a explicação de possuí­la.

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8 Novamente temos a palavra wit dentro de uma expressão com o verbo keep: apesar de a expressão não se referir à perda de algo, a ex­ pressão equivalente se­ ria “perder o juízo”. 9 Veremos no decorrer da tradução o uso de diversos marcadores dis­ cursivos para dar fluên­ cia ao texto, como bem . Em cada caso, é preciso ver se a tradução do marcador é a mais con­ vencional no outro idio­ ma. Na maioria dos casos, a tradução procu­ rou não ser literal. 10 Aqui, temos o uso do “você genérico”: o nar­ rador está se dirigindo ao leitor, estabelecendo um diálogo. Ambas as línguas permitem esse tipo de uso do pronome, o que não aconteceria, por exemplo, no caso do pronome one .



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