LIGAÇÕES PERIGOSAS CHODERLOS DE LACLOS
TÍTULO ORIGINAL: LES LIAISONS DANGEREUSES TEXTO INTEGRAL: EDITORES ASSOCIADOS TRADUÇÃO: JOÃO PEDRO DE ANDRADE E ALFREDO AMORIM
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PREFÁCIO DO REDATOR Esta obra, ou antes, esta coleção, que o público achará talvez ainda volumosa em demasia, não contém, todavia mais do que um pequeno número das cartas* que compunham a totalidade da correspondência de onde foi extraída. Encarregado de pô-la em ordem pelas pessoas a cujas mãos chegou, e que eu sabia terem a intenção de publicá-la, pedi apenas, como prêmio dos meus cuidados, a permissão de suprimir tudo o que me parecesse inútil; e de fato conservei apenas as cartas que me pareceram necessárias, quer para a compreensão dos acontecimentos, quer para o desenvolvimento dos caracteres. Se acrescentarmos a este ligeiro trabalho o de repor por ordem as cartas que deixei ficar, ordem para a qual eu próprio quase sempre segui a das datas, e, enfim, algumas notas curtas e raras, e que, na sua maior parte não têm outro objetivo senão o de indicar a origem de algumas citações ou de motivar alguns cortes que me permiti fazer, ter-se-á inteiramente idéia da parte que tive nesta obra. A minha missão não ia mais longe. Eu tinha proposto alterações mais consideráveis, quase todas relativas à pureza de dicção ou de estilo, contra a qual se encontrarão muitas faltas. Desejei também ser autorizado a cortar diversas cartas demasiado longas, e das quais algumas tratam separadamente, e quase sem transição, assuntos absolutamente estranhos uns aos outros. Este trabalho, que não foi aceito, não seria bastante sem dúvida para dar mérito à obra, mas ter-lhe-ia pelo menos tirado parte dos defeitos. Foi-me objetado que eram as próprias cartas que se pretendia. ...dar a conhecer, e não apenas uma obra feita segundo as cartas; que seria tanto contra a verossimilhança como contra a verdade que, de oito á dez pessoas que colaboraram nesta correspondência, todas escrevessem com igual pureza. E à minha réplica de que, longe disso, não havia, pelo contrário, nenhuma que não tivesse cometido erros graves, foi-me respondido que todo o leitor razoável esperaria seguramente encontrar erros numa coleção de cartas de alguns particulares, visto que em todas as que se têm publicado de diferentes autores estimados, e mesmo de alguns acadêmicos, não se encontrava nenhuma totalmente ao abrigo desta censura. Estas razões não me persuadiram e achei-as, como as acho ainda, mais fáceis de dar que de receber; mas não me competia mandar, e submeti-me. Somente me reservei o direito de protestar e de declarar que não era essa a minha opinião; o que faço neste momento. Quanto ao mérito que esta obra possa ter, talvez me não caiba explicá-lo, pois a minha opinião não deve nem pode ter influência sobre *Devo prevenir também que suprimi ou mudei todos os nomes das pessoas que intervêm nestas cartas; e que, se no número daqueles que lhes substituí, se encontrarem nomes que pertençam a alguém, terá sido unicamente por erro da minha parte, e do qual não se deverá tirar qualquer conclusão. (N. do A.)
a de ninguém. Entretanto, todos os que, antes de começar uma leitura, ficam satisfeitos por saber aproximadamente com o que podem contar, esses, dizia eu que continuem, os outros farão melhor em passar imediatamente para a obra em si; sabem já o que lhes basta. O que posso dizer antes do mais é que se a minha intenção foi, como reconheço, der a conhecer estas cartas, estou, todavia muito longe de esperar daí um êxito: e que não se tome esta sinceridade da minha parte pela modéstia fingida de um autor; pois declaro com a mesma franqueza que, se esta coleção não me tivesse parecido digna de ser oferecida ao público, eu não me teria ocupado dela. Tratemos de conciliar esta aparente contradição. O mérito de uma obra compõe-se da sua utilidade ou do agrado que desperta, e mesmo duma coisa e doutra, quando disso é suscetível; mas o êxito, que não prova sempre o mérito, deve-se frequentemente mais à escolha do assunto que à sua execução, ao conjunto dos motivos que apresenta do que à maneira como eles são tratados. Ora contendo esta coleção, como o seu título anuncia, as cartas de toda uma sociedade, reina nela uma diversidade de interesse que enfraquece o do leitor. Além disso, sendo quase todos os sentimentos que aí se exprimem fingidos ou dissimulados, deixam de poder mesmo excitar um interesse que não seja o de curiosidade sempre muito abaixo do de sentimento, e que, sobretudo, conduz menos à indulgência e deixa tanto mais a perceber as faltas que se encontram nos pormenores, quanto estes se opõem constantemente ao desejo que unicamente se quer satisfazer. Estes defeitos são talvez resgatados, em parte, por uma qualidade que do mesmo modo tem origem na natureza da obra; é a variedade dos estilos; mérito que um autor atinge dificilmente, mas que se apresentava aqui por si próprio, e que ao menos exclui o aborrecimento da uniformidade. Algumas pessoas poderão ainda esperar encontrar para seu proveito um número assaz grande de observações, ou novas ou pouco conhecidas, e que se encontram dispersas nestas cartas. E nisso se resume, segundo creio, tudo que se pode esperar como motivos de agrado, usando, aliás, de um juízo extremamente favorável. A utilidade da obra, que porventura será ainda mais contestada, parece-me, todavia fácil de estabelecer. Julgo pelo menos que é prestar um serviço aos costumes divulgar os meios que empregam os que os têm maus para corromper os que os têm bons, e creio que estas cartas poderão concorrer eficazmente para esse fim. Encontrar-se-á também nelas a prova e o exemplo de duas verdades importantes que dir-se-ia serem desconhecidas, tão pouco elas são praticadas: a primeira, que toda a mulher que consente em receber no seu meio um homem sem moral acaba por se tornar a sua vítima; a outra, que é pelo menos imprudente toda a mãe que admita que outra pessoa além dela tenha a confiança de sua filha. Os jovens de um e de outro sexo
poderiam também aprender aqui que a amizade que as pessoas de maus costumes parecem dedicar-lhes tão facilmente não é mais que uma perigosa cilada, tão fatal à sua felicidade como à sua virtude. Parece-me, no entanto, muito de temer aqui o abuso, que anda sempre tão perto da medida justa; e, longe de aconselhar esta leitura à mocidade, parece-me mais importante afastar dela todas as deste gênero. A época em que tal leitura pode deixar de ser perigosa e tornar-se útil parece-me ter sido bem escolhida, para o seu sexo, por uma boa mãe não apenas inteligente, mas de inteligência bem guiada. "Julgo", me dizia ela, depois de ter lido o manuscrito desta correspondência, "que prestarei um bom serviço a minha filha, dandolhe este livro no dia do seu casamento." Se todas as mães de família pensarem isto da obra, felicitar-me-ei eternamente por tê-la publicado. Mas, partindo ainda desta suposição favorável, afigura-se-me sempre que esta coleção deve agradar a pouca gente. Os homens e as mulheres de costumes depravados terão interesse em denegrir uma obra que pode ser-lhes prejudicial; e como não lhes falta astúcia, talvez se lembrem de pôr do seu lado os rigoristas, alarmados pelo quadro de maus costumes que não houve receio de apresentar-lhes. Os que se julgam espíritos fortes não terão qualquer interesse por uma mulher devota, que por isso mesmo será para eles uma mulher sem importância, enquanto que os devotos ficarão descontentes por verem sucumbir a virtude, queixando-se do fraco poder com que é mostrada a religião. Por sua vez, as pessoas de gosto delicado hão-de enfastiar-se com o estilo demasiado simples e defeituoso de algumas destas cartas, enquanto que o comum dos leitores, seduzido pela idéia de que tudo o que é impresso é o fruto de um trabalho, julgará ver em algumas outras a maneira dificilmente conseguida de um autor que se mostra por detrás da personagem que fala a seu mandado. Enfim, talvez venha a dizer-se, na generalidade, que cada coisa não vale senão no lugar onde está colocada; e que, se ordinariamente o estilo demasiado castigado dos autores tira de fato toda a graça às cartas de sociedade, as negligências destas se tornam verdadeiros erros e as tornam insuportáveis, uma vez entregues à publicação. Confesso com sinceridade que todas estas censuras podem ter fundamento; creio também que me seria impossível responder-lhes, e mesmo sem ir além da extensão de um prefácio. Mas deve compreender-se que, se me fosse necessário responder a tudo, seria isso sinal de que a obra não responderia a nada; e que, se eu assim o pensasse, teria suprimido ao mesmo tempo o prefácio e o livro.
PRIMEIRA PARTE
CARTA I CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY* No convento das Usulinas de... Bem vês, minha boa amiga, que cumpro a minha palavra, e que as toucas e laços não ocupam todo o meu tempo; sempre me há de ficar algum para ti. Mas olha que só hoje vi mais adereços do que nos quatro anos que passamos juntas; e creio que a orgulhosa Tanvillel terá maior aborrecimento com a minha primeira visita, em que eu conto perguntar por ela, do que ela pensou que nos causaria todas as vezes que vinha ver-nos em Fiorch. A Mamã consultou-me sobre todos os pormenores; trata-me muito menos como pensionista do que noutro tempo. Tenho uma criada de que disponho, e escrevo-te em uma secretária muito bonita, de que possuo a chave, e onde posso fechar tudo o que quiser. A Mamã disse-me que a verei todos os dias logo que ela se levante; que bastará que eu esteja penteada para jantar, porque estaremos sempre sós, e que então ela me dirá a hora em que devemos juntar-nos à tarde. O resto do tempo está à minha disposição, e tenho a minha harpa, o meu desenho e livros como no convento; só não estará a madre Perpétua para ralhar comigo, e dependerá apenas de mim estar sempre sem fazer nada: mas como não tenho a minha Sofia para conversar e para rir, prefiro então ocupar-me dela. Ainda não são cinco horas; não devo estar com a Mamã senão às sete: ora aqui está um grande intervalo, para o caso em que tivesse alguma coisa a dizer-te! Mas ainda não me falaram de nada; e sem os preparativos que vejo fazer, e a quantidade de costureiras que vêm por minha causa, julgaria que ninguém pensa em casar-me, e que é mais um disparate da boa Josefina. Mas a verdade é que a Mamã me disse tantas vezes que uma menina deve ficar no convento até casar, que julgo que Josefina tem razão, visto que ela me fez sair de lá. Acaba de parar uma carruagem à porta, e a Mamã mandoume que fosse ter com ela imediatamente. Se fosse o senhor? Ainda não estou vestida, a minha mão treme e o meu coração bate. Perguntei à criada de quarto se sabia quem estava com minha mãe: "Ora", disse ela, "é o senhor C..." e ria. Oh! Creio que é ele. Voltarei com certeza a contar-te o que se passou. O nome já eu sei. Não devo *Pensionista do mesmo convento.
fazer esperar. Adeus, até daqui a um momento. Como te vais rir da pobre Cecília! envergonhada!
Oh!
Como
fiquei
Mas tu terias caído como eu. Quando entrei nos aposentos da Mamã, vi um senhor vestido de preto, de pé, por detrás dela. Cumprimentei-o o melhor que pude e fiquei sem me poder mexer do meu lugar. Podes imaginar como eu o examinava! "Senhora", disse ele a minha mãe, saudando-me, "trata-se na verdade de uma menina encantadora, e sinto melhor do que nunca o valor dos vossos obséquios". A estas palavras tão positivas tomou-me um tal tremor que não me podia suster; deparei com uma poltrona e senteime nela, toda vermelha e confusa. Mal eu me tinha sentado, eis que o homem se lança a meus pés. Então a tua pobre Cecília perdeu a cabeça; eu estava, como disse a Mamã, verdadeiramente espavorida. Levantei-me lançando um grito agudíssimo;... Olha, como naquele dia do trovão. A Mamã soltou uma gargalhada e disse-me: "Então, que tem? Sente-se e dê o seu pé a esse senhor." Na verdade, minha querida amiga, o senhor era um sapateiro. Não posso dizer-te como fiquei envergonhada; por felicidade só ali estava a Mamã. Julgo que, quando for casada, não voltarei a servir-me daquele sapateiro. Hás-de convir que já sei muitas coisas! Adeus. São perto de seis horas, e a minha criada de quarto disse-me que tenho de me vestir. Adeus, minha querida Sofia; gosto tanto de ti como quando estava no convento. P. S. - Não sei por quem enviar esta carta; por isso espero que Josefina venha. Paris, 3 de Agosto de 17* *.
CARTA II A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT No castelo de... Volte meu caro Visconde, volte; que faz o senhor, que pode o senhor fazer em casa de uma velha tia cujos bens lhe estão garantidos? Parta imediatamente; é-me preciso aqui. Tive uma excelente idéia, e desejo confiar-lhe a execução. Estas palavras deveriam bastar-lhe; e, muito honrado pela minha escolha, devia vir, com solicitude, receber de joelhos as minhas ordens. Mas o senhor abusa das minhas bondades, mesmo depois que deixou de aproveitá-las; e na alternativa de um ódio eterno ou de uma excessiva indulgência, a sua felicidade quer que a minha bondade a conduza. Desejo pois instruí-lo sobre os meus projetos: mas jure-me que
como fiel cavaleiro não correrá nenhuma aventura sem que esta seja levada ao fim. Ela é digna de um herói: o senhor servirá o amor e a vingança; será enfim uma astúcia a mais a pôr nas suas memórias: sim, nas suas memórias, pois eu quero que elas sejam publicadas um dia, encarrego-me de escrevê-las. Mas deixemos isso, e voltemos ao que me preocupa. Madame de Volanges vai casar a filha: é ainda um segredo; mas desde ontem que estou na posse dele. E quem julga que ela escolheu para genro? O Conde de Gercourt. Quem diria que eu viria a ser prima de Gercourt? Sinto-me possuída de tal furor!... Pois bem! Não adivinhou ainda? Oh, inteligência lenta! Já lhe perdoou, pois, a aventura da Intendente*? E eu, não tenho razões para me queixar dele mais ainda, seu monstro? Mas vou-me acalmar, e a esperança de me vingar lança a serenidade na minha alma. Decerto já se tem aborrecido cem vezes, tal como eu, com a importância que Gercourt atribui à sua próxima conquista, e com a tola presunção que o dispõe a crer que evitará a sorte inevitável. Conhece as suas ridículas prevenções a favor das educações claustrais, e o seu preconceito, ainda mais ridículo, em relação à modéstia das louras. Eu apostaria, de fato, que, apesar das sessenta mil libras de renda da pequena Volanges, ele nunca faria esse casamento se ela fosse morena, ou se não tivesse estado no convento. Provemoslhe, pois que é apenas um tolo; com certeza há de sê-lo um dia, não é isso que me preocupa: mas o agradável seria que ele começasse por aí. Como nós nos divertiríamos no dia seguinte ouvindo-o gabar-se, pois ele há de gabar-se; e depois, se o Visconde chegar a instruir essa rapariguinha, será preciso muito pouca sorte se o Gercourt não se tornar como qualquer outro, a fábula de Paris. Aliás, a heroína deste novo romance merece todos os seus cuidados: é na verdade bonita; tem apenas quinze anos, é um botão de rosa; acanhada, de fato, como já se não usa, e de modo nenhum afetada: mas vós, os homens, não temeis isso; além do mais, é senhora de certo olhar langoroso que na verdade promete muito. Acrescente a tudo isto que sou eu que a recomendo: não tem mais que agradecerme e obedecer. Receberá esta carta amanhã de manhã. Exijo que amanhã às sete horas da tarde esteja em minha casa. Não receberei ninguém *Para entender esta passagem, deve saber-se que o Conde de Gercourt tinha deixado a Marquesa de Merteuil pela Intendente de..., que lhe tinha sacrificado o Visconde de Valmont, e que foi então que a Marquesa e o Visconde se ligaram um ao outro. Como esta aventura é muito anterior aos acontecimentos de que tratam estas cartas julgou-se dever suprimir toda a correspondência que com ela se liga. (N. do A.)
senão as oito, nem mesmo o Cavaleiro reinante: esse não tem cabeça para tamanha empresa. Bem vê que o amor não me cega. Às oito horas outorgo-lhe a liberdade, e as dez voltará para cear com o belo objeto, pois a mãe e a filha ceiam sempre em minha casa. Adeus; passa do meio-dia, em breve deixarei de me ocupar do Visconde.
Paris, 4 de Agosto de 17* *.
CARTA III CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Ainda não sei nada, minha boa amiga. A Mamã tinha ontem muita gente a cear. Apesar do interesse que tinha em examinar, os homens principalmente, aborreci-me muito. Toda a gente, homens e mulheres, olhava muito para mim, e depois punham-se a falar ao ouvido; e eu bem via que era de mim que falavam. Isto fazia-me corar; era coisa em que eu não tinha mão. Bem queria impedi-lo, pois reparei que, quando olhavam para as outras mulheres, elas não coravam; ou talvez fosse a pintura que não me deixava ver o seu embaraço, pois deve ser muito difícil deixar de corar quando um homem nos olha fixamente. O que mais me inquietava era não saber o que pensavam a meu respeito. Creio, no entanto ter ouvido duas ou três vezes a palavra bonita; mas ouvi muito distintamente dizer acanhada. E isso deve ser verdade, pois a senhora que pronunciava essa palavra é parente e amiga de minha mãe. Pareceu-me mesmo que de repente tinha sentido amizade por mim. Foi a única pessoa que falou comigo um pouco durante toda a noite. Amanhã ceamos em casa dela. Ouvi ainda, depois da ceia, um homem que estou certa que falava de mim, e que dizia a outro: "É preciso deixar amadurecer, veremos este Inverno." Talvez seja esse que deve casar comigo; mas sendo assim, não será antes de quatro meses! Bem desejaria saber de que se trata. Chegou agora Josefina, e diz-me que está com pressa. Mas quero contar-te ainda uma das minhas acanhezas. Oh, creio que essa senhora tem razão! Depois da ceia puseram-se a jogar. Eu fiquei perto da Mamã; não sei como isso aconteceu, mas adormeci quase a seguir. Acordou-me uma estrepitosa gargalhada. Não sei se riam de mim, mas assim o creio. A Mamã permitiu que me retirasse, e com isso deu-me grande prazer. Imagina que passava das onze horas. Adeus, minha querida Sofia; ama sempre muito a tua Cecília. Podes estar certa de que a sociedade não é tão divertida como a imaginávamos. Paris, 4 de Agosto de 17* *.
CARTA IV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Em Paris As suas ordens são encantadoras; e a sua maneira de dá-las é mais amável ainda. A minha amiga poderia fazer amar o despotismo. Não é a primeira vez, como sabe, que eu lamento não ser já o seu escravo; e por muito monstro que diga que eu sou, não recordo nunca sem prazer o tempo em que me honrava com epítetos mais doces. Muitas vezes mesmo desejo voltar a merecê-los, e acabar por dar, a seu lado, um exemplo de constância ao mundo. Mas outros interesses mais altos nos chamam: conquistar é o nosso destino. É preciso segui-lo. Talvez ao fim do caminho voltemos a encontrar-nos; pois, seja dito sem que se zangue, minha bela Marquesa, a verdade é que a senhora me segue com um passo pelo menos igual. E visto que, separando-nos para a felicidade do mundo, cada um de nós prega por seu lado a sua fé, parece-me que, nesta missão de amor, a minha amiga faz mais prosélitos do que eu. Conheço o seu zelo, o seu ardente fervor. E se Deus nos julgasse segundo as nossas obras, a senhora seria um dia a padroeira de alguma grande cidade, enquanto que o seu amigo seria quando muito um santo de aldeia. Admira-se desta linguagem, não é verdade? Mas há oito dias que eu não ouço nem falo outra; e é para me aperfeiçoar nela que me vejo forçado a desobedecer-lhe. Não se zangue e ouça-me. Depositária de todos os segredos do meu coração, vou confiar-lhe o maior projeto que jamais formei. Que me propõe a minha amiga? Seduzir uma jovem que não viu nada, que não conhece nada; que, por assim dizer, me seria entregue sem defesa; que com certeza se embriagará com uma primeira homenagem, e que será levada mais pela curiosidade do que pelo amor. Há vinte homens que nessa empresa seriam tão bem sucedidos como eu. Já não acontece o mesmo com a empresa que me preocupa; o seu êxito valer-me-á tanto prazer como glória. O amor que prepara a minha coroa hesita ele próprio entre a mirta e o loureiro, ou antes os reunirá para honrar o meu triunfo. Até a minha boa amiga será tomada de um santo respeito, e dirá com entusiasmo: "É este o homem segundo o meu coração." A minha amiga conhece a mulher do Presidente Tourvel, a sua devoção, o seu amor conjugal, os seus princípios austeros. Eis o alvo do meu ataque; eis o inimigo digno de mim; eis o fim que eu pretendo atingir: Et si de l'obtenir ce n'emporte le prix, J'aurais du moins !honneur de l'avoir entrepris.*
É permitido citar maus versos, quando são de um grande poeta. Como deve saber, o Presidente de Tourvel está em Borgonha, seguindo um grande processo (espero fazer-lhe perder outro mais importante). A sua inconsolável metade deve passar aqui todo o tempo desta aflitiva viuvez. Uma missa por dia, algumas visitas aos pobres da região, orações de manhã e à noite, passeios solitários, piedosas conversas com a minha velha tia, e uma vez por outra um triste jogo de whist, deviam ser as suas únicas distrações. Estou-lhe preparando outras mais eficazes. O meu anjo bom conduziu-me aqui para a sua felicidade e para minha. Insensato! Eu lamentava as vinte e quatro horas que ia sacrificar em consideração aos respeitos familiares que são de uso. Como eu seria castigado se me obrigassem a voltar a Paris! Felizmente são precisas quatro pessoas para jogar o whist; e como não há aqui mais ninguém além do prior do lugar, a minha eterna tia instou muito comigo para que eu lhe sacrificasse alguns dias. Já adivinhou que acedi. Não imagina os mimos que ela me prodigaliza desde esse instante, e principalmente como ela está impressionada por me ver assistir regularmente às suas orações e à missa. Nem por sombras lhe passa pela cabeça qual a divindade que eu ali vou adorar. E aqui estou eu, há quatro dias, entregue a uma paixão forte: A minha amiga sabe com que força eu sei desejar, e como os obstáculos pesam pouco para mim; mas o que ignora é quanto a solidão vem reforçar o ardor dos desejos. Apenas uma idéia me ocupa; penso nela de dia, sonho com ela de noite. É-me absolutamente necessário possuir essa mulher, para me salvar do ridículo de estar apaixonado por ela; pois aonde não conduz um desejo contrariado? Ó delicioso prazer! Eu te imploro para a minha felicidade, mas principalmente para o meu descanso. Como nós os homens somos felizes por as mulheres se defenderem tão mal! Sem isso, seríamos junto delas apenas tímidos escravos. Neste momento sinto-me possuído de reconhecimento pelas mulheres fáceis, o que, naturalmente, me conduz a seus pés. Ante eles me ajoelho para obter o meu perdão, e nessa postura termino esta longa carta. *E se eu não conseguir o prémio obter, Terei ao menos a honra de o haver tentado. La Fontaine. (N. do A.)
Adeus, minha amiga: longe de mim qualquer reserva. Do castelo de..., 5 de Agosto de 17 * *.
CARTA V
A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Sabe, Visconde, que a sua carta é de uma insolência rara, e que eu poderia ter-me zangado? Contudo, ela provou-me claramente que o Visconde perdeu a cabeça e só isso o salvou da minha indignação. Amiga generosa e sensível, esqueço a injúria que me dirige para me ocupar apenas do perigo que corre; e embora seja muito aborrecido raciocinar, cedo à necessidade que tem neste momento dos meus raciocínios. O Visconde, possuir a Presidente de Tourvel! Mas que ridículo capricho! Reconheço bem a sua má cabeça que não sabe desejar senão o que crê não poder obter. Que tem pois essa mulher? Traços regulares, se quiser, mas nenhuma expressão; sofrível de corpo, mas sem graça; vestida sempre de modo que faz rir! Com os seus molhos de lacinhos no pescoço e o corpete que lhe chega ao queixo! Digo-lho como amiga, não lhe seria preciso ter duas mulheres como aquela para perder toda a minha consideração. Lembre-se do dia da festa de caridade em Saint-Roch, em que o Visconde tanto me agradeceu por eu lhe ter proporcionado tal espetáculo. Parece que ainda a estou vendo, dando a mão àquele trangalhadanças de cabelos compridos, pronta a cair a cada passo, tendo sempre o cesto de quatro varas em cima da cabeça de alguém, e corando cada vez que a cumprimentavam. Quem lhe diria então que chegaria a desejar essa mulher? Vamos, Visconde, tenha a bondade de corar e voltar a si. Prometo-lhe guardar segredo. E depois, veja a série de coisas desagradáveis que o esperam! Que rival terá a combater? Um marido! Não se sente humilhado só ante esta palavra? Que vergonha se for mal sucedido! E mesmo no caso de triunfar, que pequena glória o espera! Digo-lhe mais: não conte tirar dali nenhum prazer. É isso possível com as mulheres recatadas? Quero dizer com as que o são de, boa fé: reservadas até no meio do prazer, não podem oferecer senão meios gozos. O abandono inteiro de si mesma, o delírio da volúpia em que o prazer se depura pelo seu excesso, estas vantagens do amor não são conhecidas por tais mulheres. Aqui lho profetizo: na mais feliz das suposições, a sua Presidente julgará ter feito tudo pelo Visconde tratando-o como seu marido, e na intimidade conjugal, mesmo a mais terna, há sempre dois. Neste caso é muito pior ainda; essa virtuosa senhora é devota, e a sua devoção é das que condenam a uma eterna infância. É possível que o Visconde venha a saltar o obstáculo, mas não se gabe de vir a destruí-lo: vencedor do amor de Deus, não o será do medo do Diabo; e quando, tendo a sua amante nos braços, tivesse conhecido mais cedo essa mulher, é possível que fizesse dela qualquer coisa; mas tem já vinte e dois anos e há cerca de dois que é casada. Creia-me, Visconde, quando uma mulher se encondeu a tal ponto, é preciso abandoná-la à sua sorte; nunca há de passar de uma espécie.
No entanto, é por esse belo objeto que o Visconde recusa obedecer-me; que se enterra no túmulo de sua tia, e que renuncia à aventura mais deliciosa e mais de molde a proporcionar-lhe honrarias. Por que fatalidade será que Gercourt tem sempre qualquer vantagem sobre o Visconde? Falo-lhe sem má disposição, acredite: mas,neste momento,estou tentada a crer que o senhor não merece a sua reputação; estou tentada principalmente a retirar-lhe a minha confiança. Nunca poderei acostumar-me a dizer os meus segredos ao amante de Madame de Tourvel. Saiba no entanto que a pequena Volanges já fez andar uma cabeça à roda.O jovem Danceny está louco por ela; e na verdade ela canta melhor do que é dado a uma pensionista de convento. É quase certo que ensaiam muitos duetos e ia jurar que de bom grado ela se prestaria ao uníssono; mas este Danceny é uma criança que perderá o seu tempo em galanteios sem chegar a nada de positivo. Pelo seu lado a pequenota é bastante arisca; e, seja o que for que aconteça, sempre há de ser menos divertido do que se o Visconde se resolvesse a intervir. Por isso estou aborrecida e com certeza o Cavaleiro ouvirá ralhar à sua chegada. Eu aconselho-o a ser submisso, pois neste momento não me custaria nada romper com ele. Estou certa de que, se eu tivesse a boa lembrança de o deixar neste momento, ele ficaria cheio de desespero; e nada me diverte tanto como um desespero amoroso. Chamar-me-ia pérfida, e essa palavra sempre me deu prazer; depois da palavra "cruel", é a mais doce para os ouvidos de uma mulher, e a que dá mais trabalho a merecer. Falando sério vou ocuparme deste rompimento. Aqui está um acontecimento de que o Visconde será o causador! Ponho-o sobre a sua consciência. Adeus. Recomende-me às orações da sua Presidente. Paris, 7 de Agosto de 17* *.
CARTA VI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL É pois certo não existir mulher alguma que não abuse do ascendente que conquistou! E mesmo a senhora, a quem tantas vezes chamei indulgente amiga, deixou enfim de o ser, e não receia atacarme no objeto das minhas afeições! Com que traços ousou pintar Madame de Tourvel!... Que homem não teria pagado com a vida essa insolente audácia? Que outra mulher que não fosse a Marquesa teria podido enunciá-la sem suscitar da minha parte uma pequena vingança? Por favor, não me submeta a tão rudes provas; não garanto que as possa
suportar. Em nome da amizade, espere que eu possua essa mulher, se quiser dizer mal dela. Não sabe que só a volúpia tem o direito de dissipar a cegueira do amor? Mas que digo eu? Acaso Madame de Tourvel tem necessidade de ilusão? Não; para ser adorável basta-lhe ser ela própria. Censura-a a Marquesa por se vestir mal; estou de acordo: todos os vestuários a prejudicam; tudo o que a esconde a desfeia. É no abandono do trajo caseiro que ela é verdadeiramente encantadora. Graças aos calores opressivos que sofremos, um simples roupão de pano deixa-me ver as suas formas redondas e flexíveis. Uma ligeira musselina cobre-lhe a garganta; e os meus olhares furtivos, mas penetrantes, descobriram-lhe já as linhas sedutoras. O seu rosto, diz a Marquesa, não tem nenhuma expressão. E que poderia exprimir, nos momentos em que nada lhe fala ao coração? Não, sem dúvida, ela não tem, como as presumidas mulheres do nosso meio, aquele olhar mentiroso que nos seduz algumas vezes e nos engana sempre. Não sabe cobrir o vazio de uma frase com um sorriso estudado; e embora tenha os mais belos dentes do mundo, não costuma rir senão do que a diverte. No entanto é preciso ver como, nos jogos engraçados, ela oferece a imagem de uma alegria ingênua e franca! Como, junto de um infeliz que ela se apressa a socorrer, o seu olhar anuncia o contentamento puro e a bondade compadecida! É preciso ver, principalmente à menor palavra de elogio ou de afago, desenhar-se, no seu rosto celeste, o comovente embaraço de uma modéstia que não é fingida. Modesta e devota, é-o sem dúvida, mas daí a julgá-la fria e inanimada!... O que penso dela é bem diferente. Que extraordinária sensibilidade não deve ter para beneficiar com ela o marido, e para amar sempre um ser sempre ausente! Que prova mais forte se pode desejar? Todavia, consegui descobrir mais uma. Quando há dias saímos a passear, arranjei as coisas de maneira que nos foi necessário transpor um barranco; e, embora muito lesta, Madame de Tourvel é ainda mais tímida. É fácil de ver que uma mulher virtuosa tem sempre receio de saltar o barranco. Foi-lhe necessário confiar-se à minha pessoa. Tive nos meus braços essa mulher modesta. Os nossos preparativos e a passagem da minha velha tia tinham feito rir às gargalhadas a jovial devota: mas, no momento em que a agarrei, por um movimento propositadamente desastrado, os nossos braços enlaçaram-se mutuamente. Apertei o seu seio contra o meu; e, nesse curto intervalo, senti o seu coração bater mais rápido. O rosto coloriu-se-lhe de uma adorável vermelhidão, e no seu pudibundo embaraço pude ver que o seu coração tinha palpitado de amor e não de receio. Entretanto minha tia enganou-se – como a minha amiga - e disse: "A criança teve medo"; mas a encantadora ingenuidade da criança não lhe permitiu a mentira, e fez que ela respondesse singelamente: Oh! Não, mas.... Esta simples palavra
esclareceu-me. Desde aquele momento, a doce esperança substitui a cruel inquietação. Possuirei esta mulher; hei-de arrebatá-la ao marido, que a profana: ousarei roubá-la ao próprio Deus que ela adora. Que delícia ser alternadamente o objeto e o vingador dos seus remorsos! Longe de mim a idéia de destruir os preconceitos que a rodeiam! Servirão para aumentar a minha felicidade e a minha glória. Que creia na virtude, mas que a sacrifique por mim; que as suas faltas a aterrem sem poder evitá-las; e que, agitada de mil terrores, ela não possa esquecê-los, vencê-los senão nos meus braços. Consentirei então que ela me diga: "Adoro-te" ; ela só, entre todas as mulheres, será digna de pronunciar essa palavra. Eu serei, verdadeiramente, o Deus que ela prefere. Falemos de boa fé: nas nossas combinações tão frias como fáceis, aquilo a que chamamos felicidade é apenas prazer. Poderei confessar-lho? Pensava eu que o meu coração estava gasto, e, encontrando em mim apenas os sentidos, lastimava a minha velhice prematura. Madame de Tourvel restituiu-me as encantadoras ilusões da juventude. Junto dela, não tenho necessidade de prazer para ser feliz. A única coisa que me mete medo é o tempo que me vai tomar esta aventura; pois não ouso deixar nada ao acaso. Muito embora me lembrem as minhas audácias bem sucedidas, não posso resolver-me a pô-las em prática. Para que eu seja verdadeiramente feliz; é preciso que ela se dê; e não é pequena empresa. Estou certo de que a Marquesa admiraria a minha prudência. Ainda não pronunciei a palavra amor; mas já chegamos às palavras confiança e interesse. Para a enganar o menos possível, e principalmente para prevenir o efeito das murmurações que poderiam chegar aos seus ouvidos, descrevi-lhe eu próprio, como acusando-me, alguns dos meus defeitos mais conhecidos. A Marquesa havia de rir se visse a candura com que ela me faz sermões. Diz ela que quer converter-me. Nem ela imagina ainda o que lhe virá a custar tal tentativa. Está longe de pensar que defendendo, como ela diz, as infortunadas que eu levei à perdição, advoga de antemão a sua própria causa. Esta idéia veio-me ontem no meio de uma das suas prédicas, e eu não pude recusar-me ao prazer de a interromper, para lhe afirmar que falava como um profeta. Adeus, minha bela amiga. Bem vê que não estou perdido sem recurso. P. S . - A propósito, esse pobre Cavaleiro, matou-se de desespero? Em boa verdade, a Marquesa é uma pessoa cem vezes pior do que eu, e sentir-me-ia humilhado se tivesse amor-próprio. Do Castelo de..., 9 de Agosto de 17 * *.
CARTA VII CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Se nada te disse do meu casamento, é porque não estou mais adiantada do que no primeiro dia. Acostumo-me a não pensar nisso e sinto-me muito bem no meu gênero de vida. Estudo muito canto e harpa; parece-me que gosto mais desses estudos desde que não tenho professor, ou antes, desde que tenho um professor melhor. O Cavaleiro Danceny, aquele senhor de que falei, e com quem cantei em casa de Madame de Merteuil, tem a bondade de vir aqui todos os dias, e de cantar comigo horas inteiras. É extremamente amável. Canta como um anjo, e compõe lindas músicas para as quais escreve também as palavras. É pena que ele seja Cavaleiro de Malta! Acredito que, se ele se casasse, a mulher seria muito feliz... É cativante a doçura do seu trato. Diz coisas sem ar de galanteio, e no entanto tudo o que ele diz agrada. Conversa muito comigo, sobre a música e sobre outras coisas; mas sabe insinuar nas suas críticas tanto interesse e animação, que é impossível não lhe agradecer. Simplesmente, quando olha para nós, tem o ar de dizer qualquer coisa que nos prende. Além de tudo isto, é muito paciente. Ontem, por exemplo, tinha sido convidado para um grande concerto; preferiu ficar todo o serão comigo e com a Mamã. Isto deu-me muito prazer, pois, quando ele não está, ninguém fala comigo e aborreço-me; ao passo que quando ele está presente, cantamos em conjunto e conversamos. Tem sempre alguma coisa para me dizer. Ele e Madame de Merteuil são as duas únicas pessoas amáveis que encontrei. Mas tenho de dizer-te adeus, minha querida amiga: prometi que teria hoje estudada uma arieta de acompanhamento muito difícil, e não quero faltar à minha palavra. Vou lançar-me ao estudo até que ele venha. 7 de Agosto de 17 * *.
CARTA VIII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES Ninguém pode ser mais sensível do que eu, senhora, à confiança que me testemunhais, nem ter maior interesse do que eu pelo futuro casamento de Mademoiselle de Volanges. De toda a minha alma lhe desejo uma felicidade da qual não duvido que ela seja digna, e para a qual contribuirá sem dúvida a prudência de que tendes dado prova. Não conheço o senhor Conde de Gercourt; mas, honrado com a vossa
escolha, só posso ter dele uma idéia muito lisonjeira. Limito-me, senhora, a desejar para esse casamento um resultado tão feliz como o do meu, que é igualmente obra vossa, e pela qual cada vez sinto maior reconhecimento. Que a felicidade de vossa filha seja a recompensa da que conseguistes para mim; e possa a melhor das amigas ser também a mais feliz das mães! Sinto-me verdadeiramente penalizada por não poder oferecervos de viva voz a homenagem deste voto sincero, nem travar conhecimento com Mademoiselle de Volanges tão cedo como desejais. Depois de ter beneficiado das vossas bondades verdadeiramente maternais, tenho o direito de esperar dela a amizade terna de uma irmã. Rogo-vos, senhora, que lhe façais este pedido da minha parte, esperando estar à altura de merecê-la. Conto ficar no campo durante todo o tempo da ausência do Senhor de Tourvel. Serve-me esse tempo para gozar e aproveitar da companhia de Madame de Rosemonde. Esta senhora mantém sempre o seu encanto; a idade nada lhe fez perder. Conserva toda a sua memória e animação. Só o seu corpo tem oitenta e quatro anos; o espírito tem apenas vinte. O nosso isolamento é alegrado por seu sobrinho, o Visconde de Valmont, que teve a bondade de nos sacrificar alguns dias. Conhecia-o apenas pela sua reputação, a qual me não fazia desejar conhecê-lo melhor; mas parece-me que vale mais do que ela. Aqui, onde turbilhão do mundo não o prejudica, diz coisas razoáveis com uma espantosa facilidade e acusa-se do mal que tem praticado com uma candura rara. Fala-me sempre com muita confiança e eu prego-lhe os meus sermões com muita severidade. Vós, que o conheceis, devereis convir que seria uma bela conversão a fazer: mas eu não tenho dúvidas de que, apesar das suas promessas, oito dias de Paris lhe façam esquecer todas as minhas prédicas. A sua estada aqui será pelo menos um intervalo na sua conduta habitual: e eu creio que, atendendo à sua maneira de viver, o que ele pode fazer de melhor é não fazer nada. Sabendo que estou ocupada a escrevermos, encarregou-me de vos apresentar as suas homenagens respeitosas. Aceitai também as minhas com a bondade que vos conheço, e não duvideis nunca dos sentimentos sinceros com que tenho a honra de ser, etc. Do castelo de..., 9 de Agosto de 17 * *.
CARTA IX MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL
Nunca duvidei nunca, minha jovem e bela amiga, nem da amizade que tendes por mim, nem do interesse sincero que tomais em tudo que me diz respeito. Não é para esclarecer esse ponto, que espero esteja assente para sempre entre nós, que respondo à vossa resposta: mas julgo que não poderei dispensar-me de conversar convosco a respeito do Visconde de Valmont. Confesso que não esperava vir a encontrar o nome desse senhor nas vossas cartas. De fato, que pode haver de comum entre vós e ele? Vê-se bem que não conheceis esse homem; pois onde poderíeis ter aprendido a fazer idéia do que é a alma dum libertino? Falais-me da sua rara candura. Ah, sim: a candura de Valmont deve ser de fato muito rara. Ele é ainda mais falso e perigoso do que amável e sedutor, e nunca, desde que atingiu a idade viril, nunca deu um passo ou disse uma palavra sem ter um projeto, e nunca teve um projeto que não fosse criminoso ou desonesto. Minha amiga, conheceis-me bem; bem sabeis que, entre as virtudes que me empenho em adquirir, a indulgência não é daquelas que mais prezo. Por isso, se Valmont fosse arrastado por paixões ardentes; se, como tantos outros, ele tivesse sido seduzido pelos erros da juventude, embora censurasse a sua conduta, eu lamentaria a sua pessoa, e esperaria, em silêncio, a hora em que um regresso feliz o fizesse reconquistar a estima das pessoas honestas. Mas Valmont não é capaz de tal: o seu comportamento é o resultado dos seus princípios. Sabe fazer o cálculo do que um homem pode permitir-se de horrores sem se comprometer; e para ser cruel e mau sem perigo, escolheu por vítimas as mulheres. Não perderei tempo a contar as que ele seduziu; mas quantas delas lançou na perdição? Essas escandalosas aventuras não chegaram ao vosso conhecimento, na vida recatada e simples que tendes levado. Poderia contar-vos coisas que vos fariam estremecer; mas os vossos olhos, puros como a vossa alma, seriam conspurcados por semelhantes quadros. Estou certa de que Valmont não será para vós um perigo, e por isso não tendes necessidade de semelhantes armas para vos defenderdes. A única coisa que tenho a dizer-vos é que, de todas as mulheres que ele distinguiu, com êxito ou não, nenhuma deixou de ter motivo de queixa. Só a Marquesa de Merteuil faz exceção a esta regra geral; só ela soube resistir-lhe e desarmar a sua maldade. Confesso que esse momento da vida da Marquesa é o que mais a honra a meus olhos: chega para justificar plenamente aos olhos de todos de algumas inconseqüências que haveria a censurar-lhe quando do princípio da sua viuvez. Seja como for, minha boa amiga, o que a idade, a experiência e principalmente a amizade me autorizam a dizer-vos, é que na sociedade se começa a notar a ausência de Valmont; e que, caso se venha a saber que ele ficou algum tempo como terceiro entre sua tia e vós, a vossa reputação ficará entre as mãos dele.
E esta será a maior desgraça que pode acontecer a uma mulher. Aconselho-vos pois a conseguir da tia que o não retenha por mais tempo; e, se ele teimar em ficar, creio que não deveis hesitar em ceder-lhe o lugar. Mas por que há de ele ficar aí? Que faz ele no campo? Se tivésseis alguém a espiar os seus passos, estou certa de que descobriríeis que ele apenas escolheu um asilo mais cômodo, para algumas negras ações que pensa praticar por esses lugares. Mas, na impossibilidade de remediar o mal, contentamonos em preservar-nos dele. Adeus, minha boa amiga. O casamento de minha filha está um pouco retardado. O Conde de Gercourt, que esperávamos de um dia para o outro, mandou-me dizer que o seu regimento vai para a Córsega; e, como há ainda alguma agitação devido à guerra, ser-lhe-á impossível ausentar-se antes do Inverno. Isso contraria-me; mas autorizame a esperar que teremos o prazer de vos ver na boda, e aborrecia-me que tal acontecimento não tivesse a vossa presença. Adeus; estou, para além das convenções e sem reserva, inteiramente ao vosso dispor. P. S . - Lembranças minhas para Madame de Rosemonde, a quem aprecio tanto como ela merece. 1 de Agosto de 17* *.
CARTA X A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Está amuado comigo, Visconde? Ou dar-se-á o caso que tenha morrido? Ou, o que se pareceria muito com isso, não vive senão para a sua Presidente? Essa mulher, que o faz reviver as ilusões da juventude, dentro em pouco o fará reviver também os ridículos preconceitos dessa idade. Eis o Visconde tímido e escravo; o que vale tanto como estar apaixonado. Renunciou às suas felizes temeridades. Ei-lo pois a conduzir-se sem princípios, deixando tudo ao acaso, ou antes, ao capricho. Não lhe ocorreu que o amor é, como a medicina, somente a arte de ajudar a Natureza? Bem vê que estou a batê-lo com as suas armas; mas não me sinto orgulhosa por isso, pois é bater num homem caído. É preciso que ela se dê, diz-me o Visconde; oh !, sem dúvida, é preciso. Ela há de entregar-se como as outras, com a diferença de que o fará de má vontade. Mas, para que ela acabe por se entregar, o verdadeiro meio é começar por obrigá-la. A que ponto esta ridícula distinção é um verdadeiro despropósito do amor! Eu digo do amor: porque o Visconde está apaixonado.
Falar-lhe de maneira diferente seria traí-lo; seria esconder-lhe a sua doença. Diga-me, pois, ó langoroso amante, julga ter violado as mulheres que possuiu? Mas, por muito desejo que uma mulher tenha de se entregar, por muito apressada que esteja, ainda lhe é preciso um pretexto; e haverá algum mais cômodo para nós do que aquele que nos dá a aparência de ceder à força? Por mim, confesso-o, uma das coisas que mais me lisonjeiam é um ataque vivo e bem feito, no qual tudo se sucede com ordem embora com rapidez; que não nos põe nunca naquela penosa confusão de termos nós próprias um desacerto de que ao contrário devíamos aproveitar; que sabe manter o ar de violência até nas coisas que concedemos, e lisonjear com habilidade as nossas duas paixões favoritas, a glória da defesa e o prazer da derrota. Convenho que esse talento, mais raro do que se supõe, me deu sempre prazer, mesmo quando não chegou a seduzir-me, e que algumas vezes me aconteceu render-me unicamente como recompensa. Tal como nos nossos antigos torneios, a Beleza dava o prémio do valor e da destreza. Mas o senhor, o senhor que já não é o mesmo, conduz-se como se tivesse medo de vencer. Oh! Desde quando é que viaja por pequenas jornadas e por amigo, quando se quer chegar, empregam-se cavalos de posta e toma-se a estrada principal! Mas deixemos esse assunto, que me aborrece tanto mais quanto me priva do prazer de o ver. Pelo menos escreva-me mais vezes do que o faz, e ponha-me ao corrente dos seus progressos. Já reparou que há mais de quinze dias que esta ridícula aventura o preocupa, e que abandonou todo o convívio? A propósito, o Visconde parece-se com aquelas pessoas que mandam regularmente saber notícias dos seus amigos doentes, mas que nunca esperam pela resposta. No final da sua última carta, perguntava-me se o Cavaleiro tinha morrido. Não respondi, e o Visconde não se inquietou mais por isso. Esqueceu porventura que o amante é seu amigo nato? Mas tranquilize-se, não morre; ou, se tivesse morrido, seria por excesso de alegria. Aquele pobre Cavaleiro, como ele é terno! como ele é feito para o amor! como ele sabe sentir vivamente! Isto põe-me a cabeça à roda. Falando sério, a felicidade perfeita que ele encontra em ser amado por mim liga-me verdadeiramente a ele. No mesmo dia em que lhe escrevi dizendo que ia provocar o rompimento, a que ponto o tornei feliz! No entanto, estava-me ocupando dos melhores meios de o fazer desesperar, quando mo anunciaram. Fosse capricho ou raciocínio, nunca ele me pareceu tão bem. Recebi-o entretanto de mau humor. Ele esperava passar duas horas comigo, antes que a minha porta se abrisse para toda a gente. Disse-lhe que ia sair; perguntou-me aonde ia; recusei-me a dizer-lho. Ele insistiu. Onde o senhor não
estiver, repliquei-lhe eu, com azedume. Felizmente para ele, ficou petrificado com esta resposta; pois, se ele tivesse dito uma palavra, seguir-se-ia infalivelmente uma cena que teria precisamente o rompimento que eu projetava. Admirada com o seu silêncio, lancei os olhos sobre ele sem outro projeto, juro-lhe, que o de ver a expressão com que ficara. Tornei a ver naquele rosto encantador uma tristeza, ao mesmo tempo profunda e terna, à qual o próprio Visconde tem de concordar que é difícil resistir. A mesma causa produziu o mesmo efeito; fui vencida pela segunda vez. Desde esse momento, só me ocupei da maneira de evitar que ele pudesse achar nas minhas palavras qualquer agravo. "Saio para tratar de um assunto", disse-lhe eu com um ar um pouco mais doce, "e esse assunto diz-lhe respeito; mas não me interrogue. Ceio em minha casa; volte, e saberá de que se trata." Foi então que ele recuperou a palavra: mas não lhe permiti que fizesse uso dela. "Estou com muita pressa", continuei. "Deixe-me; até logo à noite." Beijoume a mão e saiu. Nesse momento, para o recompensar, ou talvez para me recompensar a mim própria, resolvi dar-lhe a conhecer a minha casinha, de cuja existência ele não suspeita. Chamo a minha fiel Vitória. Veio-me a enxaqueca; deito-me para todos os meus criados; e, ficando enfim só com a verdadeira, enquanto ela se vestia de lacaio, disfarceime de criada de quarto. Em seguida ela mandou vir um fiacre à porta do jardim, e partimos juntas. Chegada àquele templo de amor, escolhi o roupão mais galante. É um vestuário delicioso, de minha invenção: não deixa ver nada, e faz adivinhar tudo. Prometo dar-lhe o modelo para a sua Presidente, quando o Visconde a tiver tornado digna de o usar. Depois destes preparativos, enquanto Vitória se ocupava de outros pormenores, li um capítulo do Sofá, uma carta de Heloisa e dois contos de La Fontaine, para recordar os diferentes tons que eu queria tomar. Entretanto o Cavaleiro chega à minha porta, com a pressa que tem sempre. O porteiro não o deixa entrar, e diz-lhe que adoeci: primeiro incidente. Entrega-lhe ao mesmo tempo um bilhete meu, mas não com a minha letra, segundo a minha regra de prudência. Ele abreo, e encontra escrito pela mão de Vitória: "Às nove em ponto, no Boulevard, em frente dos cafés." Dirige-se para lá; e, ali, um pequeno lacaio que ele não conhece, que ele julga pelo menos não conhecer, pois é sempre Vitória, vem-lhe anunciar que é preciso mandar embora a carruagem e segui-lo. Todas estas peripécias romanescas lhe esquentavam a cabeça, e uma cabeça esquentada nada prejudica. Por fim chega, e a surpresa e o amor causam nele um verdadeiro encantamento. Para lhe dar tempo a recompor-se passeamos um momento no parque; depois encaminho-o para casa. Ele vê primeiro dois talheres postos; depois uma cama feita.
Passamos ao quarto de vestir, que estava em todo o seu esplendor. Ali, metade por reflexão, metade por sentimento, passei os meus braços em volta dele e deixei-me cair a seus pés: "Ó meu amigo!", disselhe eu, "para poder preparar-te a surpresa deste momento, censuro-me por te ter afligido com a aparência do meu mau humor; por ter um instante velado o meu coração aos teus olhares. Perdoa-me os agravos; quero expiá-los à força de amor." O Visconde julgará do efeito deste discurso sentimental. O feliz Cavaleiro levantou-me, e o meu perdão foi selado sobre aquela otomana onde o Visconde e eu selamos tão alegremente e da mesma maneira a nossa eterna separação. Como tínhamos seis horas para passarmos juntos e eu tinha resolvido que todo esse tempo fosse para ele igualmente delicioso, moderei os seus transportes, e a amável coqueteria veio substituir a ternura. Julgo que nunca pus tanto empenho em agradar, e que nunca estive tão satisfeita de mim própria. Depois da ceia, alternadamente criança e razoável, folgazã e sensível, por vezes mesmo libertina, aprouve-me considerá-lo como um sultão em meio do serralho, do qual eu era de cada vez uma favorita diferente. Na verdade, ao passo que ele repetia as suas homenagens, se elas eram sempre dirigidas à mesma mulher, era sempre uma nova amante que as recebia. Enfim, ao raiar do dia foi preciso separarmo-nos; e o que ele me disse, o que ele fez mesmo para me provar o contrário, tudo mostrava que a necessidade era maior que o desejo. No momento em que saíamos e por último adeus, tomei a chave daquele feliz refúgio, e pondo-lha entre as mãos, disse: "É só para si que a tenho. É justo que seja o seu dono. O sacrificador deve dispor do templo." Com esta habilidade preveni as reflexões que ele poderia fazer sobre a propriedade, sempre suspeita, duma casa pequena. Conheço-o bastante para estar certa de que não se servirá dela senão para mim; e se eu tivesse a fantasia de lá ir sem ele, sempre me restava outra chave. Ele queria à viva força marcar data para lá voltarmos; mas eu amo-o ainda demasiado para querer gastá-lo tão depressa. Só devemos permitir-nos excessos com as pessoas que cedo queremos deixar. Ele não o sabe; mas, felizmente para ele, eu sei-o por dois. Reparo agora que são três da manhã, e que escrevi um volume, quando formara o projeto de escrever apenas uma palavra. Tal é o encanto da amizade confiante: é ela que faz que seja o Visconde quem amo mais; mas, na verdade, o Cavaleiro é quem mais me agrada. 12 de Agosto de 17* *.
CARTA XI
A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES A vossa severa carta ter-me-ia assustado, senhora, se, por felicidade, eu não encontrasse aqui mais motivos de tranqüilidade do que os de temor que me ofereceis. Esse temível senhor de Valmont, que deve ser o terror de todas as mulheres, parece ter deposto as suas armas mortíferas antes de entrar neste castelo. Longe de vir aqui formar os seus projetos, nem mesmo trouxe quaisquer pretensões; e a qualidade de homem amável, que até os seus inimigos lhe concedem, quase desaparece aqui, para não deixar senão a de bom rapaz. Foi aparentemente o ar do campo que produziu este milagre. O que posso assegurar-vos é que, estando constantemente ao pé de mim, parecendo mesmo que isso lhe agrada, não lhe escapou ainda uma palavra que se pareça com o amor, nem uma dessas frases que todos os homens se permitem, sem ter, como ele, o que é necessário para as justificar. Nunca ele obriga àquela reserva na qual hoje é obrigada a manter-se toda a mulher que se respeita, para conter os homens que a rodeiam. Sabe não abusar da animação que inspira. É talvez um pouco pródigo em louvores; mas é com tanta delicadeza que o faz, que obrigaria a própria modéstia a habituar-se ao elogio. Enfim, se eu tivesse um irmão, desejaria que ele fosse tal como o senhor de Valmont se mostra aqui. Talvez muitas mulheres desejassem da sua parte uma galanteria mais marcada; e confesso que lhe estou infinitamente grata por ele me julgar de uma forma que lhe permite não me confundir com elas. Este retrato difere muito sem dúvida do que me fizestes; e, apesar disso, ambos podem estar parecidos, se fixarmos as épocas. Ele próprio concorda ter cometido muitos erros, e com certeza lhe terão atribuído alguns outros. Mas até agora encontrei poucos homens que falassem de mulheres honestas com mais respeito, direi quase entusiasmo. Sob esse aspecto, vós mesma me fizeste saber que ele não engana. A sua conduta em relação a Madame de Merteuil é disso prova. Fala-nos muito dela; e é sempre com tantos elogios e dando mostras de uma dedicação tão verdadeira, que cheguei a crer, antes da recepção da vossa carta, que aquilo que ele chamava amizade entre os dois fosse realmente amor. Acuso-me desse julgamento temerário, o qual foi tanto mais errôneo quanto é certo que ele mesmo tomou a seu cargo, por várias vezes, o cuidado de a justificar. Confesso que tomei por delicadeza o que da sua parte era sinceridade autêntica. Não sei; mas parece-me que aquele que é capaz de uma amizade tão contínua por uma mulher tão estimável, não é um libertino sem resgate. Ignoro, no entanto, se o comportamento reto que ele mantém aqui se deve a alguns projetos por estes lugares, conforme a
vossa suposição. É certo que por estas cercanias há algumas mulheres interessantes; mas ele sai pouco, exceto de manhã, e então diz que vai caçar. É verdade que raramente traz caça; mas assegura que é desastrado nesse exercício. Demais, o que ele faz lá por fora inquieta-me pouco; e se eu desejasse sabê-lo, seria apenas para ter mais um motivo que me aproximasse da vossa opinião ou que vos conduzisse à minha. Acerca da vossa proposta de trabalhar no sentido de abreviar o tempo que o senhor de Valmont conta aqui estar, parece-me muito difícil ousar pedir a sua tia que não tenha o sobrinho junto dela, tanto mais que gosta muito dele. Prometo-vos, todavia, mas somente por deferência e não por necessidade, aproveitar a primeira ocasião para fazer esse pedido, quer a Madame de Rosemonde, quer a ele próprio. Quanto a mim, o senhor de Tourvel é conhecedor do meu projeto de ficar aqui até ao seu regresso, e havia de admirar-se, com razão, da ligeireza que me fizesse mudar de projeto. São bem longos, senhora, estes esclarecimentos; mas julguei dever à verdade um testemunho favorável para o senhor de Valmont, e do qual ele me parece ter grande necessidade junto de vós. Nem por isso sou menos sensível à amizade que ditou os vossos conselhos. É a ela que fico devendo também as vossas penhorantes informações sobre a demora do casamento de vossa filha. Agradeço-vos muito sinceramente: mas, embora me dê prazer a idéia de passar esses momentos convosco, sacrificá-los-ia de bom grado ao desejo de saber Mademoiselle de Volanges mais cedo feliz, se é que ela pode vir a sê-lo mais do que junto de uma mãe tão digna de toda a sua ternura e do seu respeito. Partilho com ela os doces sentimentos que me prendem a vós, e peço-vos que aceiteis a expressão deles com bondade. Tenho a honra de ser, etc. 13 de Agosto de 17* *.
CARTA XII CECÍLIA VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL A Mamã está incomodada, minha senhora; não pode sair hoje, e eu tenho de fazer-lhe companhia. Por esse motivo não terei a honra de vos acompanhar à Ópera. Asseguro-vos que lamento bem mais não estar convosco do que o espetáculo. Peço-vos que acrediteis. Tenho por vós tanta amizade! Tereis a bondade de dizer ao Cavaleiro Danceny que não tenho a coleção de que ele me falou, e que se ma puder trazer amanhã me dará grande
prazer. Se ele vier hoje, dir-lhe-ão que não estamos; mas é a Mamã que não quer receber ninguém. Espero que ela amanhã esteja melhor. Tenho a honra de ser, etc. 13 de Agosto de 17 * *.
CARTA XIII A MARQUESA DE MERTEUIL A CECÍLIA DE VOLANGES Fiquei muito aborrecida, minha linda, por ser privada do prazer de a ver, bem como pelo motivo dessa privação. Espero que outra ocasião se encontrará. Desempenhar-me-ei da sua comissão junto do Cavaleiro Danceny, que certamente ficará muito aborrecido por saber sua Mamã doente. Se ela amanhã me quiser receber, irei fazer-lhe companhia. Faremos um ataque, ela e eu, ao Cavaleiro de Belleroche ao piquet, e, além de lhe ganharmos o seu dinheiro, teremos, por acréscimo de prazer, o de a ouvirmos cantar com o seu amável mestre; encarrego-me de lhe fazer o pedido. Se isso convier a sua Mamã e a si, respondo por mim e pelos meus dois Cavaleiros. Adeus, minha linda; os meus cumprimentos à minha querida Madame de Volanges. Beijo-a muito ternamente. 13 de Agosto de 17* *.
CARTA XIV CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Ontem não te escrevi, minha querida Sofia; mas não foi o prazer o motivo, posso jurar-te. A Mamã esteve doente, e não a deixei em todo o dia. À noite, quando me retirei, não tive cabeça para nada; e deiteime muito depressa, para ter a certeza de que o dia tinha acabado. Nunca tinha passado nenhum tão comprido. Não é que eu não goste da Mamã, mas não sei o que era. Devia ir à Ópera com Madame de Merteuil; o Cavaleiro Danceny devia lá estar. Bem sabes que são as duas de quem eu mais gosto. Quando chegou a hora em que devia ir ter com eles, senti o coração apertado, contra minha vontade. Tudo me aborrecia, e chorei, chorei, sem conseguir impedi-lo. Felizmente a Mamã estava deitada, e não podia ver-me. Estou bem certa de que o Cavaleiro Danceny também ficou aborrecido; mas deve ter-se distraído com o espetáculo e com toda agente que o rodeava.
Foi muito diferente. Por felicidade, a Mamã está hoje melhor, e Madame de Merteuil virá com outra pessoa e com o Cavaleiro Danceny; mas chega sempre muito tarde, Madame de Merteuil; e quando se esteve tanto tempo sozinha, é muito aborrecido. São apenas onze horas. É verdade que tenho de tocar harpa; e depois levarei algum tempo a vestir-me e a arranjar-me, pois hoje quero estar muito bem penteada. Parece-me que madre Perpétua tem razão e que uma pessoa se torna garrida quando vive em sociedade. Nunca tive tanto desejo de ser bonita como de há alguns dias para cá, e acho que não o sou tanto como pensava; e depois, junto de mulheres que se pintam, fica-se a perder muito. Madame de Merteuil, por exemplo: vejo bem que todos os homens a acham mais bonita do que eu. Não me importo muito, porque ela é minha amiga. E além disso ela afirma-me que o Cavaleiro Danceny me acha mais bonita do que ela. É muito honesto da sua parte ter-mo dito! Até parece que estava contente em mo dizer. Aí está uma coisa que eu não compreendo. É porque ela gosta muito de mim! E ele!... Oh!, foi uma coisa que me deu muito prazer! Por isso, até,me parece que só de olhar para ele uma pessoa fica bonita. Eu estaria a olhar sempre para ele, se não tivesse receio de encontrar os seus olhos: pois, todas as vezes que tal me acontece, fico confusa, e parece que me dá pena; mas isto nada quer dizer. Adeus, minha querida amiga. Vou-me pôr diante do espelho. Continuo a gostar de ti como sempre. Paris, 14 de Agosto de 17 * *.
CARTA XV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL É muito honesto da sua parte não me abandonar à minha triste sorte. A vida que levo aqui é realmente fatigante, pelo excesso de repouso que me proporciona e pela sua insípida uniformidade. Lendo a sua carta e os pormenores do seu dia encantador, estive vinte vezes tentado a pretextar um negócio, voar a seus pés e pedir-lhe, em meu favor, uma infidelidade ao seu Cavaleiro, que, no fim de tudo, não merece a felicidade de que desfruta. Sabe a Marquesa que me pôs ciumento dele? Por que me fala da eterna separação? Renego esse juramento, pronunciado em delírio: não seríamos dignos de o fazer, se fôssemos obrigados a mantê-lo. Ah! Que eu possa um dia vingar-me nos seus braços do ciúme involuntário que me causou a felicidade do Cavaleiro!
Estou indignado, confesso, só de pensar que esse homem, sem raciocinar, sem se dar ao menor trabalho, limitando-se a seguir totalmente o instinto do seu coração, encontra uma felicidade que eu não atingirei nunca. Oh! Hei-de perturbá-la... Prometa-me que serei eu a perturbá-la. A Marquesa mesmo não se sente humilhada? Tem trabalho para o enganar, e ele é dos dois o mais feliz. Julga que o tem preso nas suas malhas! É a Marquesa que o está nas dele. Enquanto vela pelos seus prazeres, ele dorme tranquilamente. Que faria de mais se fosse sua escrava? Saiba-o, minha bela amiga, enquanto se divide entre vários, não sinto o mínimo ciúme: não vejo então nos seus amantes senão os sucessores de Alexandre, incapazes de conservar, todos juntos, aquele império onde eu reinei só. Mas que se entregue inteiramente a um deles! Que exista outro homem tão feliz como eu! Não posso sofrê-lo; não espere que eu o sofra. Ou readmita-me, ou pelo menos arranje outro; e não queira trair, por um capricho exclusivo, a amizade inviolável que nos juramos mutuamente. É o momento, sem dúvida, de lhe confessar as minhas queixas amorosas. Bem vê que me presto às suas idéias, e que confesso os meus erros: Na verdade, se estar apaixonado é não poder viver sem possuir o que se deseja, sacrificar a essa idéia o tempo, os prazeres; a vida, então é certo que estou realmente apaixonado. Não estou mais avançado do que estava. Não teria mesmo mais nada a contar-lhe a esse respeito se não fosse um acontecimento que me dá muito que pensar, e que não sei ainda se deve inspirar-me receio ou esperança. A Marquesa conhece o meu criado, tesouro de intriga e verdadeiro lacaio de comédia: e bem pode imaginar que entre as suas atribuições cabe a de se apaixonar pela criada de quarto, e a de perturbar as pessoas. O patife é mais feliz do que eu: já conseguiu uma vitória. Acaba de descobrir que Madame de Tourvel encarregou uma criatura sua de tirar informações sobre a minha conduta, e mesmo de me seguir nos meus passeios de manhã, até onde possa, sem que alguém se aperceba. Que pretende esta mulher? Assim pois a mais modesta de todas ousa arriscar-se a um ponto que nós mal ousaríamos permitir-nos! De que serve protestar?. . Antes de pensar em vingar-me desta astúcia feminina, ocupemo-nos do meio de a pôr ao nosso serviço. Até agora esses passeios de que se suspeita não tinham qualquer objetivo; é preciso dar-lhes um. Isto merece toda a minha atenção, e vou findar para pensar nisso. Adeus minha bela amiga. Sempre do Castelo de. . ., 15 de Agosto de 17 * *.
CARTA XVI CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Ah, minha Sofia, tenho novidades a dar-te! Talvez não devesse dizer: mas é preciso que eu fale nisto a alguém; é mais forte do que eu. Esse Cavaleiro Danceny... Estou tão perturbada que não posso escrever. Não sei por onde começar. Depois que te contei o lindo serão que passei com ele e com Madame de Merteuil junto da Mamã, não voltei a falar-te a seu respeito: é que eu não queria falar dele a ninguém; mas era nele que eu pensava sempre. Depois, tinha-se tornado tão triste, mas tão triste, tão triste, que me fazia pena. E quando eu lhe perguntava porquê, dizia-me que não: mas eu bem via que sim. Enfim, ontem ainda estava mais triste que de costume. Isso não impediu que tivesse a gentileza de cantar comigo, como das outras vezes; mas, sempre que olhava para mim, eu sentia apertar-se-me o coração. Depois de termos acabado de cantar, foi fechar a minha harpa no estojo; e, quando me trouxe a chave, pediu-me que tocasse ainda naquela noite, logo que me encontrasse só. Eu não desconfiei de nada; nem mesmo queria: mas ele pediu-me tanto, que lhe disse que sim. Ele tinha as suas razões. Efetivamente, quando me retirei para o meu quarto, e assim que a criada saiu, fui buscar a harpa. Encontrei nas cordas uma carta, simplesmente dobrada, e não lacrada; era dele! Ah! Se tu soubesses o que me diz! Depois de a ter lido senti tanto prazer que nem posso pensar noutra coisa. Reli-a quatro vezes seguidas, e depois fechei-a na minha secretária. Já a sabia de cor; e depois de deitada repeti-a tantas vezes que nem pensava em dormir. Assim que fechei os olhos vi-o ao pé de mim, dizendo-me tudo quanto eu acabara de ler. Só adormeci muito tarde; e mal tinha acordado (era ainda muito cedo), fui logo buscar a carta para a tornar a ler à minha vontade. Levei-a para a cama e depois beijei-a como se... Talvez seja mal feito beijar uma carta como esta, mas a verdade é que não pude impedir-me de o fazer. Agora, minha querida amiga, sinto-me muito feliz, mas também muito embaraçada; pois é certo que não devo responder a esta carta. Sei bem que isso não se deve fazer, no entanto ele pede-mo; e se eu não responder, estou certa de que se vai pôr ainda mais triste. É uma desgraça para ele! Que me aconselhas tu? É claro que a este respeito não sabes mais do que eu. Tenho muita vontade de falar nisto a Madame de Merteuil, que é tão minha amiga. Bem gostaria de o consolar; mas não quero fazer nada que seja mal feito. Recomendam-nos tanto que tenhamos bom coração! E depois proíbem-nos de seguir o que ele nos inspira, quando se trata de um homem! Isto também não é justo. Por acaso um homem não é o nosso próximo, como uma mulher ou mais ainda? Pois enfim, não temos nós um pai, tal como uma mãe,
um irmão, tal como uma irmã? Além disso ainda fica o marido. Mas se eu fosse fazer qualquer coisa que não fosse bem feita, talvez o próprio senhor Danceny não ficasse com boa idéia a meu respeito! Oh! Isso então era o que me faltava. Prefiro que fique triste. E depois, enfim, estou sempre a tempo. Lá porque ele escreveu ontem, não sou obrigada a escrever-lhe hoje. Esta noite verei Madame de Merteuil, e se tiver coragem contolhe tudo. Se fizer só o que ela me disser, nada terei a censurar-me. Talvez ela me diga que lhe responda poucochinho, para que ele não fique tão triste! Oh! Estou num momento muito difícil. Adeus, minha boa amiga. Diz-me sempre o que pensas. 19 de Agosto de 17 * *.
*A carta em que se fala deste serão não foi encontrada. Devemos supor que é o que Madame de Merteuil propõe no seu bilhete, e de que também se fala na precedente carta de Cecília Volanges.
CARTA XVII O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES Antes de me entregar, Mademoiselle, àquilo que chamo o prazer ou a necessidade de lhe escrever, começo por lhe suplicar que me ouça. Sinto que, para ousar declarar-lhe os meus sentimentos, tenho precisão de indulgência; se apenas tivesse de justificá-los, ela ser-me-ia inútil. Que vou eu fazer, afinal, senão mostrar-lhe o meu íntimo? E que tenho eu a dizer-lhe que os meus olhares, o meu embaraço, a minha conduta e mesmo o meu silêncio lhe não tenham dito antes de mim? Por que se havia pois de zangar por um sentimento que fez nascer? Emanado de si, é sem dúvida digno de lhe ser oferecido; se é ardente como a minha alma, é também puro como a sua. Seria um crime ter sabido apreciar a sua figura encantadora, os seus talentos sedutores, as suas graças fascinantes, essa comovente candura que acrescenta um preço inestimável a qualidades já tão preciosas? Não, sem dúvida. Mas, mesmo não se sendo culpado, pode serse infeliz. E é a sorte que me espera, se se recusar a aceitar a minha homenagem. É a primeira que o meu coração até hoje a ofereceu. Se a não tivesse visto eu seria ainda, não feliz, mas tranqüilo. Vi-a; o repouso fugiu para longe de mim, e o meu coração está inquieto.
Admira-se da minha tristeza; pergunta-me a causa. Algumas vezes julguei ver que ela a afligia. Ah! Diga uma palavra, e a minha felicidade será obra sua. Mas, antes de a pronunciar, pense que uma palavra pode ser também o cúmulo da minha tristeza. Seja pois o árbitro do meu destino. Por si vou ser eternamente feliz ou infeliz. Em que mãos mais queridas poderia eu depositar um interesse maior? Acabarei, como comecei, por implorar a sua indulgência. Pedi-lhe que me ouvisse; ousarei mais, pedir-lhe que me responda. Recusá-lo, seria deixar-me crer que ficou ofendida, e o meu coração é garantia de que em mim o respeito iguala o amor. P. S. - Poderá servir-se, para me responder, do mesmo meio de que me sirvo para fazer chegar esta carta às suas mãos; parece-me igualmente seguro e cômodo. 18 de Agosto de 17* *.
CARTA XVIII CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Pois quê, Sofia! Tu censuras de antemão o que eu vou fazer! Tinha já bastantes inquietações; vieste tu agora aumentá-las. É claro, dizes tu, que não devo responder. Falas disto com todo o àvontade; mas a verdade é que não sabes ao certo do que se trata: não estás aqui para ver. Estou certa de que se estivesses no meu lugar, farias como eu. Com certeza que, de maneira geral, não se deve responder; e tu bem viste, pela minha carta de ontem, que eu própria não queria fazê-lo. Mas é que não creio que alguém se tenha visto alguma vez na situação em que me encontro. E ainda ser obrigada a decidir-me sozinha! Madame de Merteuil, que eu contava ver ontem à noite, não veio. Tudo conspira contra mim: foi ela quem teve a culpa de eu o conhecer. Foi quase sempre na presença dela que eu o vi, que lhe falei. É claro que não lhe quero mal por isso: mas o que é certo é que me abandona no momento mais difícil. Oh! Sou na verdade digna de lástima! Imagina que ontem ele veio como de costume. Eu estava tão perturbada que nem ousei olhá-lo. Ele não podia falar comigo, porque a Mamã estava presente. Tinha quase a certeza de que ele se zangaria, quando visse que eu não lhe tinha escrito. Eu não sabia o que havia de fazer.
Um momento depois perguntou-me se eu queria que fosse buscar a minha harpa. O coração batia-me tão fortemente que tudo quanto pude fazer foi responder-lhe que sim. Quando ele voltou é que foi pior. Só o olhei por um momentinho. Ele nem sequer olhou para mim; mas tinha um aspecto que toda a gente diria que estava doente. Isto dava-me muita pena. Pôs-se a afinar a harpa e, depois, quando ma trouxe, disse-me: "Ah! Mademoiselle!..." Não disse mais do que essas duas palavras; mas disse-as num tal tom que fiquei completamente transtornada. Pus-me logo a tocar sem saber bem o que fazia. A Mamã perguntou-me se não cantávamos. Ele desculpou-se dizendo que estava adoentado; e eu, que não tinha qualquer desculpa, tive de cantar. Desejei então nunca ter tido voz. Escolhi de propósito uma música que não sabia, pois estava certa de que não poderia cantar nada, e assim daria a perceber que havia qualquer coisa. Felizmente entrou uma visita; e, logo que ouvi o ruído de uma carruagem, deixei de cantar e pedi-lhe que fosse arrumar a harpa. Tive muito medo que ele se fosse embora ao mesmo tempo; mas voltou. Enquanto a Mamã e a senhora que veio visitá-la conversavam juntas, quis olhar para ele ainda um instante. Encontrei os seus olhos, e foi-me impossível desviar os meus. Um momento depois vi as suas lágrimas correram, e foi obrigado a voltar-se para não ser visto. Nesse momento não tive mão em mim; senti que ia chorar também. Saí, e imediatamente escrevi a lápis, num pedaço de papel: "Não esteja tão triste, peço-lhe; prometo que lhe responderei." Com certeza não podes dizer que haja algum mal nisto; e depois, foi mais forte do que eu. Pus o papel nas cordas da harpa; como estava a carta dele, e voltei à sala. Sentia-me mais tranqüila. Já me tardava que a senhora se fosse embora. Felizmente; foi uma visita curta; deixou-nos pouco depois. Logo que ela saiu, eu disse que queria outra vez a minha harpa, e pedi-lhe que a fosse buscar. Vi bem, pelo seu aspecto, que não desconfiava de nada. Mas quando voltou, oh!, como ele estava contente! Ao pôr a harpa na minha frente, colocou-se de maneira que a Mamã não podia vê-lo, e tomou-me a mão, que apertou... mas de uma maneira!... Foi apenas um momento; mas eu sou incapaz de te dizer o prazer que isso me deu. No entanto, retirei a mão; por isso não tenho nada a censurar-me. Agora, minha boa amiga, bem vês que não posso dispensar-me de lhe escrever, visto que lho prometi. E depois, não quero que volte a estar triste, pois eu sofreria mais do que ele. Se fosse alguma coisa de mal, eu não a faria. Mas que mal pode haver em escrever, principalmente quando é para impedir que alguém seja infeliz? O que me aborrece é saber que não sou capaz de fazer uma carta bem feita. Mas ele há de perceber que a culpa não é minha. E depois estou bem certa de que só por ser minha lhe dará prazer.
Adeus, minha querida amiga. À medida que se aproxima o momento de lhe escrever, o meu coração bate de uma maneira inconcebível. No entanto é preciso, visto que o prometi. Adeus. 20 de Agosto de 17* *.
CARTA XIX CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Estava ontem tão triste, senhor, e isso causava-me tanta pena, que não resisti a prometer-lhe que responderia à carta que me escreveu. Não é que eu sinta hoje menos que não o devia fazer; mas, como lhe prometi, não quero faltar à minha palavra, e isso deve provarlhe a amizade que sinto pelo senhor. Agora que já sabe, espero que não volte a pedir-me que lhe escreva mais. Espero também que não diga a ninguém que lhe escrevi, porque com certeza me censuravam e isso podia causar-me muitos desgostos. Espero principalmente que não fique a fazer má idéia de mim, o que seria o maior desgosto que eu podia ter. Posso dar-lhe a certeza de que não teria essa complacência para outro que não fosse o senhor. Desejaria que tivesse a bondade de não estar triste como estava, o que me tiraria todo o prazer que sinto em o ver. Bem vê que lhe falo com toda a sinceridade. Só peço que a nossa amizade dure sempre; mas, suplico-lhe, não torne a escrever-me. Tenho a honra de ser, etc. 20 de Agosto de 17* *.
CARTA XX A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Ah, tratante, faz-me festas porque receia a minha troça! Vamos, consinto em perdoar: escreve-me tantas loucuras, que realmente é preciso que eu lhe desculpe a prudência do seu procedimento em relação à sua Presidente. Não creio que o meu Cavaleiro usasse de tanta indulgência como eu; seria homem para não aprovar a renovação do nosso contrato e para não achar nada de divertido na sua louca idéia. No entanto fez-me rir muito, e senti-me verdadeiramente aborrecida de ser obrigada a rir tanto sozinha. Se o Visconde estivesse próximo, não sei onde me poderia ter levado essa
alegria: mas tive tempo para refletir e armei-me de severidade. Não é o caso de recusar para sempre; mas vou adiando, e tenho razão. Poria nisso talvez vaidade, e, uma vez entrada no jogo, não se sabe onde se vai parar. Serei mulher para o prender de novo, para lhe fazer esquecer a sua Presidente; e se eu, ser indigno, o afastasse da virtude, veja que escândalo! Para evitar esse perigo, eis as minhas condições. Assim que tenha possuído a sua devota e me possa fornecer uma prova, venha, e serei sua. Mas não ignora que, nos negócios importantes, não se recebem provas senão por escrito. Por esta combinação, serei, por um lado, uma recompensa em vez de ser uma consolação, e essa idéia agrada-me mais; por outro lado, o seu êxito será mais excitante. Venha pois, venha o mais cedo possível trazer-me o penhor do seu triunfo: semelhante aos nossos esforçados cavaleiros, que vinham depor aos pés das suas damas os frutos brilhantes da vitória. Seriamente, estou curiosa de saber o que pode escrever uma mulher virtuosa depois de um tal momento, e que véu porá nas suas palavras, depois de não ter deixado nenhum sobre a sua pessoa. Ao Visconde cabe avaliar se eu me coloco num preço muito alto; mas previno-o de que não farei qualquer abatimento... Até lá, meu caro Visconde, achará bem que eu fique fiel ao meu Cavaleiro e que me divirta a torná-lo feliz, apesar do pequeno desgosto que isso causa. Entretanto, se os meus costumes não fossem tão regrados, creio que teria, neste momento, um rival perigoso; é a pequena Volanges. Estou louca por essa pequena; é uma verdadeira paixão. Ou eu me engano, ou ela virá a ser uma das nossas mulheres da moda. Vejo o seu coraçãozinho desenvolver-se, e é um espetáculo encantador. É já com furor que ela ama o seu Danceny; mas por enquanto não percebe destas coisas. Quanto a ele, embora muito apaixonado, tem ainda a timidez da sua idade e não ousa ensinar-lhe demasiado. Os dois permanecem em adoração na minha frente. Principalmente a pequena tem grande desejo de me dizer o seu segredo; desde há alguns dias, em particular, vejo-a verdadeiramente sufocada por ele, e eu prestar-lhe-ia um grande serviço se a ajudasse um pouco. Mas não esqueço que é uma criança, e não quero comprometer-me. Danceny falou-me um pouco mais claramente, mas, para ele, o meu partido está tomado, não quero ouvi-lo. Quanto à pequena, sinto-me muitas vezes tentada a fazer dela minha discípula; é um serviço que tenho vontade de prestar a Gercourt. Ele dá-me tempo para isso, porque está na Córsega até ao mês de Outubro. Tenho em mente empregar todo esse tempo, de modo a podermos dar-lhe uma mulher inteiramente formada, em lugar da sua inocente pensionista. Na verdade, em que se baseia a insolente confiança desse homem, que ousa dormir tranqüilo, enquanto uma
mulher, que dele tem motivos de queixa, não se vingou ainda? Creia, se a pequena estivesse aqui neste momento, nem eu sei o que lhe diria. Adeus, Visconde; boa noite e bom êxito: mas, por Deus, veja se avança. Pense que, se não possuir essa mulher, as outras terão vergonha de terem sido possuídas. 20 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Enfim, minha bela amiga, dei um passo em frente, mas um grande passo, e que, se não me conduziu até ao fim, me fez pelo menos conhecer que estou no bom caminho, e dissipou o receio em que estava de me ter perdido. Declarei enfim o meu amor; e embora me tenha respondido o silêncio mais obstinado, obtive a resposta talvez menos equívoca e mais lisonjeira; mas não antecipemos os acontecimentos e voltemos mais atrás. A Marquesa recorda-se que os meus passos eram espiados. Pois bem! Decidi que esse meio escândalo servisse para a edificação do público, e aqui está o que eu fiz. Encarreguei o meu confidente de me encontrar, nos arredores, qualquer infeliz que tivesse necessidade de auxílio. Essa missão não era difícil de cumprir. Ontem de tarde, deu-me ele a notícia de que hoje, de manhã, deviam ser penhorados os móveis de uma família inteira que não podia pagar a derrama. Assegurei-me de que nessa casa não havia nenhuma mulher ou rapariga cuja idade pudesse tornar suspeita a minha ação; e, logo que fiquei bem informado, declarei à ceia o meu projeto de ir à caça no dia seguinte. Devo aqui fazer justiça à minha Presidente: sem dúvida teve ela alguns remorsos das ordens que deu; e, não tendo força de vencer a sua curiosidade, teve pelo menos a de contrariar o meu desejo. Devia haver calor em excesso; arriscava-me a ficar doente; não apanharia nenhuma caça e fatigar-me-ia em vão; e, durante este diálogo, os seus olhos, que falavam talvez mais do que ela queria, davam-me a conhecer que ela desejava que eu tomasse por boas as suas más razões. Como pode crer, eu não pensava em me render a tais razões, e resisti do mesmo modo a uma pequena diatribe contra a caça e os caçadores, e a uma pequena nuvem de mau humor que obscureceu, durante todo o serão, esta figura celeste. Por um momento receei que as suas ordens fossem anuladas e que a sua delicadeza acabasse por me prejudicar.
Fiz um mau cálculo sobre a curiosidade duma mulher; por isso me enganei. O meu criado tranquilizou-me nessa mesma noite, e deiteime satisfeito. Ao romper do Sol, levanto-me e parto. Apenas a cinqüenta passos do castelo, vejo que o meu espião me segue. Entro no terreno da caça e caminho através dos campos para a aldeia onde pretendia dirigir-me; sem outro prazer, na minha jornada, além do de obrigar a correr o patife que me seguia, e que, não se atrevendo a deixar os caminhos, muitas vezes tinha de percorrer, a toda a velocidade, um espaço triplo do meu. De tanto o pôr à prova, eu próprio ia cheio de calor, e sentei-me junto de uma árvore. Pois não teve ele a insolência de deslizar para trás de uma moita, a menos de vinte passos de distância, e de se sentar também? Por um momento estive tentado a mandar-lhe um tiro, que, embora fosse apenas de chumbo, lhe teria dado uma lição suficiente sobre os perigos da curiosidade. Felizmente para ele, tornei a lembrar-me de que estava sendo útil e mesmo necessário aos meus projetos; esta reflexão salvou-o. Entretanto chego à aldeia; vejo que há movimento; avanço; interrogo; contam-me o que se passa. Chamo o cobrador; e, cedendo à minha generosa compaixão, pago nobremente cinqüenta e seis libras, pelas quais cinco pessoas iam ser reduzidas à indigência e ao desespero. Depois desta ação tão simples, não imagina o coro de bênçãos que se ergueu à minha volta por parte dos assistentes! Que lágrimas de reconhecimento corriam dos olhos do velho chefe daquela família, e embelezavam a sua figura de patriarca, que um momento antes a contração feroz do desespero tornava verdadeiramente hedionda! Eu examinava o espetáculo e logo outro camponês mais moço, conduzindo pela mão uma mulher e duas crianças, avança para mim a passos precipitados, dizendo-lhes: "Ajoelhemo-nos todos aos pés desta imagem de Deus!"; e no mesmo instante fui rodeado por toda a família, prosternada perante mim. Confessarei a minha fraqueza; os meus olhos tinham-se molhado de lágrimas, e senti em mim um movimento involuntário, mas delicioso. Fiquei surpreendido do prazer que se experimenta ao fazer-se bem; e estive tentado a crer que aqueles a quem chamamos pessoas virtuosas não têm tanto mérito como geralmente se diz. Fosse como fosse, achei que era justo pagar àquela pobre gente o prazer que acabava de me dar. Tinha comigo dez luíses: dei-lhos. Aqui recomeçaram os agradecimentos, mas já não tinham o mesmo grau de patético: o necessário tinha produzido o grande, o verdadeiro efeito; o resto era apenas uma simples expressão de reconhecimento e de espanto por uma dádiva supérflua. Entretanto, no meio das bênçãos tagarelas daquela família, eu não deixava de me parecer um pouco com o herói de um drama, na cena do desenlace. Calculará decerto que entre a multidão se mantinha a pé firme o espião fiel. O meu fim fora atingido; separei-me de todos, e voltei para o castelo. Deitados todos os cálculos, felicito-me
da minha invenção. Esta mulher vale bem, sem dúvida, que eu me dê a tais cuidados; eles serão um dia os meus títulos junto dela; e tendo-lhe, de algum modo, pago assim de antemão, terei o direito de dispor dela segundo a minha fantasia, sem ter de me censurar. Esquecia-me dizer-lhe que, para que tudo resultasse em meu favor, pedi àquela boa gente que rogasse a Deus pelo bom êxito dos meus projetos. A Marquesa verá se os seus rogos não foram já em parte atendidos... Mas anunciam-me que a ceia está servida e far-se-ia tarde para mandar esta carta se eu não a fechasse ao retirar-me. Assim, o resto no próximo número. Aborrece-me isso, pois o resto é o melhor. Adeus, minha bela amiga. Acaba de me roubar um momento do prazer de vê-la. 20 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES Ficareis sem dúvida satisfeita, senhora, por conhecer um gesto do senhor de Valmont, que contrasta em muito, parece-me, com todos aqueles sob os quais vo-lo apresentaram. É uma coisa tão penosa pensar desfavoravelmente de quem quer que seja, tão aborrecido encontrar apenas vícios naqueles que podem ter todas as qualidades necessárias para fazer amar a virtude! Enfim, gostais tanto de usar de indulgência que dar-vos motivo para reparar um juízo demasiado rigoroso é decerto servir-vos. O senhor de Valmont parece-me ter as condições necessárias para esperar esse favor, direi quase justiça; e vou dizer-vos porque o penso. Esta manhã deu ele um daqueles passeios que poderiam levar a supor qualquer projeto da sua parte nos arredores, conforme a idéia que vos veio; idéia que me acuso de ter partilhado talvez com demasiada vivacidade. Felizmente para ele, e sobretudo felizmente para nós, pois isso nos salva de sermos injustas, um dos meus servidores tinha de ir para os mesmos lados que ele; e foi por aí que a minha curiosidade repreensível, mas feliz, foi satisfeita. Contou-nos o criado que o senhor de Valmont, tendo encontrado na aldeia de... uma infeliz família cujos móveis iam ser vendidos, por não poder pagar os impostos, não somente se apressara a solver a dívida daquela pobre gente, mas lhe dera até uma importância em dinheiro bastante considerável. O meu criado foi testemunha daquela virtuosa ação, e mais me contou que os camponeses, conversando entre si e com ele, haviam dito que um criado que designaram, e que o meu julga ser o do senhor de Valmont, tinha ontem ido tirar informações sobre quais os habitantes
da aldeia que poderiam estar necessitados de auxílio. Se isto é assim, se não é unicamente uma compaixão passageira e que a ocasião determina, então é o projeto formado de fazer bem; é a solicitude da beneficência; é a mais bela virtude das mais belas almas. Mas, seja acaso ou projeto, é sempre uma ação honesta e louvável, e de que a simples narração me enterneceu até às lágrimas. Acrescentarei ainda, e sempre por justiça, que, quando lhe falei dessa ação, da qual ele não dizia palavra, começou por se defender e mostrou atribuir-lhe tão pouco valor que a sua modéstia lhe redobrava o mérito. Dizei-me agora, minha respeitável amiga, se o senhor de Valmont é na verdade um libertino sem remissão? Se ele é apenas isso e procede assim, que ficará para as pessoas honestas? Pois quê! Os maus partilhariam com os bons o prazer sagrado da beneficência? Permitiria Deus que uma família virtuosa recebesse das mãos dum celerado os socorros que teria de agradecer à sua divina Providência? E poderia ele sentir prazer em ouvir, de bocas puras, espalharemse bênçãos sobre um réprobo? Não. Prefiro acreditar que os erros, por durarem longo tempo, não são eternos; e não posso pensar que quem faz o bem seja inimigo da virtude. O senhor de Valmont é talvez um exemplo mais do perigo de certas ligações. Detenho-me nesta idéia que me parece a melhor. Se, por um lado, ela pode servir a justificá-lo no vosso espírito, por outro torna cada vez mais preciosa a terna amizade que me liga a vós por toda a vida. Tenho a honra de ser, etc. P. S. - Madame de Rosemonde e eu vamos, dentro de momentos, ver também a honesta e infeliz família, e juntar os nossos socorros tardios aos do senhor de Valmont. Levá-lo-emos conosco. Daremos ao menos a essa boa gente o prazer de tornar a ver o seu benfeitor; é, creio eu, tudo o que ele deixou para nós fazermos. 20 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXIII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Tínhamos ficado no meu regresso ao castelo: retomo a minha narrativa. Mal tive tempo de me arranjar um pouco, e regressei à sala, onde a minha bela tecia um tapete, enquanto o cura lia a gazeta à minha velha tia.
Sentei-me junto do tear. Alguns olhares, mais doces ainda do que o costume, e quase acariciantes, depressa me fizeram adivinhar que o criado tinha já dado conta da sua missão. De fato, a minha amável curiosa não pôde guardar por muito tempo o segredo que me tinha roubado; e, sem receio de interromper um venerável pastor cuja prédica no entanto se parecia com uma homilia, disse: "Também tenho as minhas novidades a dar"; e imediatamente contou a minha aventura com uma exatidão que fazia honra à inteligência do seu historiador. A Marquesa pode imaginar como eu manifestei toda a minha modéstia; mas quem poderia deter uma mulher que faz, sem o suspeitar, o elogio daquele que ama? Tomei pois o partido de a deixar continuar. Dir-se-ia que ela pregava o panegírico de um santo. Durante esse tempo eu observava, não sem esperança, tudo o que prometiam ao amor os seus olhares cheios de animação, os seus gestos agora mais livres, e principalmente aquele tom de voz que, pela sua alteração já sensível, traía a emoção da sua alma. Logo que ela acabou de falar, Madame de Rosemonde disse-me: "Meu sobrinho, chegue ao pé de mim; quero abraçá-lo." Imediatamente senti que a linda pregadora não poderia defender-se de ser abraçada por sua voz. Quis fugir, entretanto; mais depressa a atraí para os meus braços; e, longe de ter forças para resistir, apenas lhe restavam as bastantes para se manter de pé. Quanto mais observo esta mulher, mais ela me parece desejável. Apressando-se a voltar para junto do tear, simulou, para os presentes, recomeçar a sua tarefa; mas vi bem que a sua mão trêmula não lhe permitia continuá-la. Depois do jantar, as senhoras quiseram ir ver os infortunados que eu tão piedosamente tinha socorrido; acompanhei-as. Poupo a minha boa amiga ao enfado desta segunda cena de reconhecimento e de louvores. O meu coração, impedido por uma recordação deliciosa, apressa o momento do regresso ao castelo. Pelo caminho, a minha bela Presidente, mais pensativa que de costume, não dizia palavra. Eu pensava em encontrar os meios de aproveitar o efeito que nela causara o acontecimento do dia, e por isso mantinha igualmente silêncio. Só Madame de Rosemonde falava e apenas obtinha de nós respostas curtas e raras. Era quase certo que a estávamos aborrecendo: era precisamente o que eu desejava, e fui bem sucedido. Ao descer da carruagem, minha tia dirigiu-se aos seus aposentos, e deixou-nos frente a frente, a minha bela e eu, numa sala mal iluminada: obscuridade doce, que torna ousados os amores tímidos. Não tive o trabalho de orientar a conversação para o ponto em que desejava conduzi-la. O fervor da amável pregadora serviu-me melhor do que não o teria feito a minha habilidade. "Quando se é digno de fazer o bem", disse-me ela, detendo sobre mim o seu doce olhar, "como se pode passar a vida praticando o mal?" "Não mereço", respondi-lhe, "nem esse elogio, nem essa censura; e não compreendo como, com a sua inteligência, não me adivinhou
ainda. Mesmo que a minha confiança viesse a prejudicar-me, a senhora é demasiado digna dela para que eu pudesse recusá-la. Encontrará a chave da minha conduta num temperamento infelizmente fácil em demasia. Rodeado de indivíduos sem moral, deime a imitar os seus vícios; talvez tenha posto algum amor-próprio em ultrapassá-los. Da mesma forma, senti-me seduzido aqui pelo exemplo das virtudes, e, embora sem esperança de poder igualá-la, procurarei ao menos segui-la. Talvez o ato por que hoje me louva perdesse a seus olhos todo o valor, se conhecesse o seu verdadeiro motivo!" (A minha amiga bem vê quanto eu estava perto da verdade.) "Não é a mim", continuei, "que esses infelizes devem o auxílio que lhes prestei. Onde julga ver uma ação meritória, procurei eu apenas um meio de agradar. Eu era apenas, é forçoso dizê-lo, o frágil emissário da divindade que adoro." (Aqui ela quis interromper-me; mas eu não lhe dei tempo para tal.) "Neste momento mesmo", acrescentei, "o meu segredo escapa-me devido a uma fraqueza. Prometera a mim mesmo calar-me; era para mim uma felicidade oferecer às suas virtudes e aos seus encantos uma homenagem que ficaria ignorada para sempre; mas, incapaz de enganar, quando tenho debaixo dos olhos o exemplo da candura, não terei a censurar-me uma culposa dissimulação. Não creia que a ofendo por uma criminosa esperança. Serei infeliz, bem sei; mas os meus sofrimentos ser-me-ão caros; provar-me-ão o excesso do meu amor. É a seus pés, é no seu seio que eu deporei as minhas mágoas. Aí encontrarei forças para sofrer de novo; aí encontrarei a bondade compadecida, e julgar-me-ei consolado, só porque me lastimou. Adoroa! Escute-me, lastime-me, socorra-me!". Entretanto eu estava a seus pés, e apertava as suas mãos nas minhas; ela, porém, desprendendo-as de repente, e cruzando-as sobre os olhos com expressão de desespero, exclamou: "Ah, desventurada!"; e desatou a chorar. Por felicidade, eu a tal ponto me tinha abandonado à emoção que chorei também; e, voltando a tomar-lhe as mãos, banhei-as de lágrimas. Esta precaução era muito necessária, pois ela estava tão ocupada com a sua dor que não se teria apercebido da minha, se eu não tivesse encontrado este meio de patenteá-la. Além disso, aproveitei o momento para contemplar à minha vontade aquele rosto encantador, embelezado ainda pelo poderoso atrativo das lágrimas. Senti a cabeça quente, e estava tão pouco senhor de mim que me senti tentado a aproveitar aquele momento. Que fraqueza é esta nossa?! A que ponto nos dominam as circunstâncias, se eu próprio, esquecendo os meus projetos, me arrisquei a perder, por um triunfo prematuro, o encanto dos longos combates e os pormenores de uma penosa derrota? Se, seduzido por um desejo de homem moço, pensei expor o vencedor de Madame de Tourvel a não recolher, como fruto dos seus trabalhos, senão a insípida vitória de possuir mais uma mulher?!
Ah! Que ela se renda, mas que combata; que, sem ter a força de vencer, tenha a de resistir; que saboreie à vontade o sentimento da sua fraqueza, e seja obrigada a confessar a sua derrota. Deixemos o obscuro caçador furtivo matar o veado que surpreendeu numa cilada; o verdadeiro caçador deve forçá-lo. É sublime este projeto, não acha? Mas talvez neste momento eu lamentasse não o ter seguido, se o acaso não viesse em socorro da minha prudência. Ouvimos ruído. Alguém vinha do salão. Madame de Tourvel, horrorizada, levantou-se precipitadamente, agarrou um dos candelabros e saiu. Tive de a deixar proceder. Era apenas um criado. Logo que me assegurei disso, segui-a. Apenas eu tinha dado alguns passos, fosse porque ela me reconhecesse, fosse por um sentimento de vago terror, ouvi-a precipitar os passos e lançar-se, em vez de entrar, no seu quarto, fechando a porta atrás de si. Fui junto da porta; mas a chave estava do lado de dentro. Tive o cuidado de não bater; seria fornecer-lhe a ocasião de uma resistência demasiado fácil. Tive a feliz e simples idéia de tentar ver através da fechadura, e vi de fato essa mulher adorável de joelhos, banhada em lágrimas, rezando com fervor. Que Deus ousava ela invocar? Existirá algum com poder bastante contra o amor? É em vão que ela procura agora socorros estranhos; só eu decidirei da sua sorte. Julgando ter já feito bastante para um só dia, retirei-me também para o meu quarto e comecei a escrever esta carta. Esperava voltar a vê-la à ceia; no entanto, ela mandou dizer que se sentira indisposta e se tinha deitado. Madame de Rosemonde quis subir ao quarto dela, mas a maliciosa doente pretextou uma dor de cabeça que não lhe permitia ver ninguém. Como facilmente imagina, depois da ceia pouco tempo estivemos à mesa, e também eu tive a minha dor de cabeça. Fechado no meu quarto, escrevi uma longa carta para me queixar de tal rigor, e deitei-me, com o projeto de a entregar esta manhã. Dormi mal, como poderá ver pela data desta carta. Levantei-me, e reli a minha epístola. Verifiquei que nela eu me sujeitara a uma medíocre observação, que mostrava mais ardor do que amor, e mais contrariedade do que tristeza. É preciso refazê-la; mas necessitarei de estar mais calmo. O dia começa a romper, e espero que a frescura que o acompanha me trará o sono. Vou meter-me na cama; e, seja qual for o império desta mulher, prometo-lhe não me ocupar dela a tal ponto que não fique tempo para sonhar muito consigo. Adeus, minha bela amiga. 21 de Agosto de 17* * , 4 horas da manhã.
CARTA XXIV
O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Ah! Por piedade, senhora, dignai-vos acalmar a perturbação da minha alma; dignai-vos dizer-me o que devo esperar ou recear. Colocado entre o excesso da felicidade e o do infortúnio, a incerteza é um tormento cruel. Por que vos falei? Por que não pude eu resistir ao encanto imperioso que vos entregava os meus pensamentos? Contente de vos adorar em silêncio, eu gozava ao menos do amor que sentia; e esse sentimento puro, que não era perturbado ainda pela imagem da vossa dor, bastava para a minha felicidade. Mas essa fonte de ventura transformou-se em fonte de desespero, desde que vi correrem lágrimas dos vossos olhos; desde que ouvi aquele cruel ah, desventurada! Senhora, aquelas duas palavras ressoarão por muito tempo no meu coração. Por que fatalidade o mais doce dos sentimentos não pode inspirar-vos mais do que horror? Que receio é esse que sentis? Ah! Não é o receio de partilhar tal sentimento: o vosso coração, que conheci mal, não foi feito para o amor; o meu, que caluniais sem cessar, é dos dois o único sensível. O vosso não tem piedade. Se assim não fosse, não teríeis recusado uma palavra de consolação ao desgraçado que vos contava os seus sofrimentos; não vos teríeis furtado aos olhares de quem não tem outro prazer além de ver-vos; não vos teríeis divertido cruelmente com a sua inquietação, anunciando-lhe que estáveis doente sem lhe permitir que se informasse do vosso estado; teríeis sentido que essa mesma noite, que para vós representava doze horas de repouso, ia ser para ele século de dores. Por onde mereci, dizei-me, esse rigor implacável? Não tenho receio de tomar-vos por juiz: que fiz eu, além de ceder a um sentimento involuntário, inspirado pela beleza e justificado pela virtude, sempre contido pelo respeito, e cuja inocente confissão foi o efeito da confiança e não da esperança? Pois traireis essa confiança, que me pareceu vós mesma terdes permitido, e à qual me entreguei sem reservas? Não, não posso acreditá-lo; seria supor-vos capaz de malevolência, e o meu coração revolta-se só com a idéia de vos achar em semelhante falta. Retiro as minhas censuras: pude escrevê-las, mas não pensá-las. Ah! Deixai-me supor-vos perfeita, é o único prazer que me resta. Provai-me que o sois concedendo-me os vossos generosos cuidados. Que infeliz tereis já socorrido que tivesse tanta necessidade deles como eu? Não me abandoneis no delírio em que me lançastes! Concedeime a vossa razão, já que me roubastes a minha! Depois de me haverdes corrigido, esclarecei-me para terminardes a vossa obra! Não desejo iludir-vos: não conseguireis vencer o meu amor; mas ensinar-me-eis a governá-lo: guiando os meus passos, ditando as minhas palavras, salvar-me-eis ao menos da horrível desgraça de vos desagradar.
Acima de tudo, dissipai este desesperador receio; dizei-me que me perdoais, que me lamentais; dai-me a certeza da vossa indulgência! É certo que nunca disporeis de tanta como eu desejaria que tivésseis; mas reclamo aquela de que necessito. Podereis recusar-me? Adeus, senhora. Recebei com bondade a homenagem dos meus sentimentos; ela não impede a do meu respeito. 20 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Aqui lhe apresento o boletim do dia de ontem. As onze horas entrei nos aposentos de Madame de Rosemonde; e, sob os seus auspícios, fui introduzido no quarto da doente fingida, que permanecia deitada. Tinha os olhos muito pisados; espero que tenha dormido tão mal como eu. Aproveitei um momento em que Madame de Rosemonde se afastara para entregar a minha carta; recusou-se a aceitá-la, mas deixei-a sobre a cama, e fui muito honestamente aproximar a poltrona da minha velha tia, que queria estar junto da sua querida filha; para evitar o escândalo, teve de guardá-la. Sem convicção alguma, a doente disse que julgava ter um pouco de febre. Madame de Rosemonde intimou-me a que lhe tomasse o pulso, elogiando muito os meus conhecimentos de medicina. A minha bela teve pois o duplo desgosto de ser obrigada a estender-me o braço, e de sentir que a sua mentirola ia ser descoberta. De fato, tomei a sua mão que apertei numa das minhas, enquanto que com a outra percorria o seu braço fresco e redondo. A maliciosa pessoa não respondeu a nada, o que me fez dizer ao retirar-me: "Não tem sequer a mais ligeira perturbação." Calculei que os seus olhares deviam ser severos, e para a castigar não os procurei. Após um instante, disse que desejava levantar-se, e deixámo-la só. Apareceu ao jantar, que foi triste; anunciou que não sairia para passear, o que era dizer-me que eu não teria ocasião de lhe falar. Senti bem que era o momento de soltar um suspiro e lançar um olhar doloroso. Ela esperava isso por certo, pois foi a única vez durante o dia que consegui encontrar os seus olhos. Apesar de toda a sua honestidade, tem os seus pequenos ardis como qualquer outra. Encontrei o momento de lhe perguntar "se tinha a bondade de me instruir sobre a minha sorte", e fiquei um pouco admirado de a ouvir responder-me: "Sim, senhor, escrevi-lhe." Eu estava muito apressado em receber a carta; mas fosse ainda por ardil,
desastramento ou timidez, ela só ma entregou à noite, no momento de se retirar para o seu quarto. Aqui lha envio, juntamente com o rascunho da minha; leia e julgue: veja com que insigne falsidade ela afirma que não sente amor, quando eu estou convencido do contrário. E há de queixar-se se eu a enganar depois, quando ela não receia enganar-me antes! Minha bela amiga, o homem mais avisado consegue apenas manter-se ao nível da mulher mais verdadeira. Será pois preciso acreditar em todo este contra-senso, e fatigar-me de desespero, porque apetece à senhora simular rigor! Como é possível evitar vingarmo-nos de tais perfídias?... Mas paciência... Adeus. Tenho ainda muito para escrever. A propósito, devolver-me-á a carta da desumana; pode dar-se o caso que por diante ela pretenda dar valor a essas misérias, e é preciso estar em regra. Não lhe falo da pequena Volanges; falaremos disso noutro dia. Do castelo, 22 de Agosto de 17* *.
CARTA XXVI A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT Decerto, senhor, não viríeis a receber qualquer carta minha se a minha tola conduta de ontem à noite não me obrigasse a entrar hoje em explicações convosco. Sim, chorei, confesso-o: é possível também que me tivessem escapado as duas palavras que citais com tanto escrúpulo. Lágrimas e palavras, tudo notastes; é preciso, pois, explicar-vos tudo. Habituada a inspirar apenas sentimentos honestos, a ouvir apenas palavras que posso escutar sem corar, a gozar por conseqüência de uma tranqüilidade que ouso dizer que mereço, não sei dissimular nem combater as impressões que experimento. O espanto e a confusão em que me lançou o vosso procedimento; não sei que receio, inspirado por uma situação que não foi feita para mim; talvez a idéia revoltante de me ver confundida com as mulheres que desprezais e tratada tão ligeiramente como elas; todas estas causas reunidas provocaram as minhas lágrimas e puderam fazer-me dizer, com razão segundo penso, que era desventurada. Esta expressão, que achais demasiado forte, seria certamente demasiado fraca se as minhas lágrimas e as minhas palavras tivessem motivo diferente; se, em vez de reprovar sentimentos que me ofendem, eu tivesse receio de os partilhar.
Não, senhor Visconde, não tenho esse receio; se o tivesse, eu fugiria para cem léguas de distância. Iria chorar para um deserto a desgraça de vos ter conhecido. Talvez mesmo, apesar da certeza em que estou de nunca vos poder amar, talvez eu fizesse melhor em seguir os conselhos dos meus amigos: não deixar que vos aproximásseis de mim. Supus, e é esse o meu único erro, supus que respeitaríeis uma mulher honesta, que não pedia mais do que achar-vos igualmente honesto e fazer-vos justiça; que já vos defendia, enquanto a ultrajáveis com os vossos criminosos desejos. Bem se vê que não me conheceis; não, senhor Visconde, não me conheceis. Se me conhecêsseis não teríeis querido transformar em direitos os vossos agravos: porque me dirigistes palavras que eu não devia ouvir, não vos julgaríeis autorizado a escrever-me uma carta que eu não devia ler. E pedis-me que guie os vossos passos, que dite as vossas palavras! Pois bem, senhor, o silêncio e o esquecimento, eis os conselhos que me apraz dar-vos, e que vos convém seguir: então tereis, na verdade, direito à minha indulgência. E só de vós depende obterdes mesmo o meu reconhecimento... Mas não, não farei um pedido a quem não teve respeito por mim; não darei mostras de confiança a quem abusou da minha tranqüilidade. Sois vós quem me obriga a recear-vos, talvez a odiar-vos. Eu não o desejava; queria ver em vós apenas o sobrinho da minha mais respeitável amiga: opunha a voz da amizade à voz pública que vos acusava. Vós destruístes tudo; e, já o prevejo, não fareis nada para reparar o que destruístes. Me ofendem, que a confissão deles me ultraja, e sobretudo que, longe de poder um dia partilhá-los, me forçais a não tornar a ver-vos se não vos impuserdes a tal respeito um silêncio que me parece ter o direito de esperar, e mesmo de vos exigir. Junto a esta carta a que me escrevestes e espero que fareis o favor de me devolver esta; ficaria verdadeiramente desgostosa se ficasse algum vestígio de um acontecimento que não deveria nunca ter-se produzido. Tenho a honra de ser, etc. 21 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXVII CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL Meu Deus, como sois boa, senhora Marquesa! Como compreendeste que me seria mais fácil escrever-nos do que falar-vos! Na verdade, o que tenho a dizer-vos é muito difícil. Mas sois minha amiga, não é verdade? Oh! Sim, minha boa amiga!
Vou fazer o possível por não ter medo; e, depois, tenho tanta precisão de vós, dos vossos conselhos! Sinto-me muito triste, parece-me que toda a gente adivinha o que eu penso; e principalmente quando ele está presente, coro assim que alguém olha para mim. Ontem, quando me vistes chorar, foi porque eu queria falar-vos e havia não sei quê que me impedia; e quando me perguntastes o que eu tinha, saltaram-me as lágrimas contra minha vontade. Não teria podido dizer uma palavra. Se não fósseis vós, a Mamã saberia logo do que se tratava, e que iria ser de mim? E no entanto é assim que eu passo a minha vida, principalmente de há quatro dias para cá! Foi nesse dia, senhora Marquesa, sim, sempre vos digo, foi nesse dia que o senhor Cavaleiro Danceny me escreveu: oh!, posso dar-vos a certeza de que quando encontrei a carta eu não sabia do que se tratava; mas, para não mentir, não nego que senti muito prazer ao lê-la. Podeis acreditar, gostaria mais de; ficar triste toda a vida, do que se ele me não tivesse escrito. Mas eu sabia bem que não devia dizer-lhe isso, e posso garantirvos que cheguei a dizer-lhe que tinha ficado zangada; mas ele disse que era mais forte do que ele e eu acreditei; pois tinha resolvido não lhe responder, e no entanto não pude deixar de o fazer. Oh! Escrevi-lhe apenas uma vez, e mesmo isso foi em parte para lhe dizer que não voltasse a escrever-me. Mas apesar disso ele continua; e como eu não lhe respondo, vejo bem que ele está triste, e isso aflige-me ainda mais. De maneira que não sei que fazer; nem o que resolver, e o que é certo é que sou digna de lástima. Dizei-me, peço-vos, senhora Marquesa, será mal feito responderlhe de tempos a tempos? Só até que ele compreenda que não deve voltar a escrever-me, e ficarmos como dantes; pois, por meu lado, se isto continua, não sei o que vai ser de mim. E estou bem certa de que se eu não lhe respondo, isso nos fará sofrer aos dois. Vou enviar-vos também a carta dele, ou uma cópia, e fareis o vosso juízo; vereis que o que ele me pede não é nada de mal. Mas se virdes que não é coisa que se deva fazer, prometo-vos que não continuarei; entretanto, creio que pensareis como eu e que em tudo isto não há nada de mal. Enquanto aguardo o vosso parecer, permiti-me, senhora Marquesa, que vos faça ainda uma pergunta: têm-me dito que é feio amar alguém; mas porque? O que me leva a perguntar-vos isto é que o Cavaleiro Danceny pretende que não é feio tal e que quase todas as pessoas amam alguém; se é assim, não vejo porque serei a única a não poder fazê-lo; ou será que só é feio para as meninas solteiras? Pois eu tenho ouvido até à Mamã dizer que Madame D... amava o senhor M...; e quando ela falava a esse respeito não parecia referir-se a uma coisa má, mas no entanto tenho a certeza de que ela se zangaria comigo se suspeitasse da minha amizade pelo senhor Danceny. A Mamã trata-me sempre como se eu fosse uma criança e não me diz nada. Eu julgava, quando ela me fez sair do convento, que era para me casar; mas agora
parece-me que não. Não é que eu tenha nisso interesse, asseguro-vos. Mas, sendo tão amiga da Mamã, sabeis talvez o que há a esse respeito e, se o souberdes, espero que mo direis. Ora aqui está uma carta comprida, senhora Marquesa, mas, como permitistes que eu vos escrevesse, aproveitei para vos dizer tudo e conto com a vossa amizade. Tenho a honra de ser, etc. Paris, 23 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXVIII O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES Pois quê, Mademoiselle, continua a recusar responder-me! Não há nada que a possa comover, e cada dia leva consigo a esperança que trouxera! Se consente que subsista entre nós uma amizade, que amizade é essa não bastante poderosa para a tornar sensível à minha mágoa? Se a deixa fria e tranqüila, enquanto eu passo pelos tormentos dum fogo que não posso extinguir? Se, longe de lhe inspirar confiança, não chega sequer para fazer nascer a sua piedade? Pois quê! O seu amigo sofre, e não faz nada para o socorrer! Pede-lhe apenas uma palavra, e recusa-lha! E quer que ele se contente com um sentimento tão fraco, e tem até receio de lho confirmar! Disse-me ontem que não desejaria ser ingrata. Ah!, creia-me, Mademoiselle, querer pagar amor com amizade não é temer apenas a ingratidão, é amedrontar-se só da idéia de parecer ingrata. Entretanto, não ouso continuar a falar-lhe dum sentimento que não pode deixar de a aborrecer, se não lhe interessa. É preciso pelo menos encerrá-lo dentro de mim mesmo, aguardando que possa um dia vencê-lo. Eu sinto quanto será penoso esse trabalho; não dissimulo perante mim próprio que terei necessidade de todas as minhas forças; tentarei todos os meios: existe um que será o mais difícil para o meu coração, é o de repetir muitas vezes comigo mesmo que o seu é insensível. Terei de experimentar vê-la menos vezes, e penso já na maneira de encontrar um pretexto plausível. Pois quê! Terei de perder o doce hábito de a ver todos os dias! Ah! Pelo menos não deixarei jamais de lamentá-lo. Uma perpétua angústia será o preço do amor mais terno; assim o terá querido, e essa será sua obra! Jamais, sinto-o, tornarei a encontrar a felicidade que hoje perco; só a Cecília era feita para o meu coração. Com que prazer farei o
juramento de não viver senão para si! Mas vejo bem que não quer receber esse juramento. O seu silêncio basta para me fazer compreender que o seu coração não lhe diz nada em meu favor; é ao mesmo tempo a prova mais segura da sua indiferença e a maneira mais cruel de ma anunciar. Adeus, Mademoiselle. Já não ouso esperar uma resposta; o amor tê-la-ia escrito com solicitude, a amizade com prazer, a piedade mesmo com complacência; mas a piedade, a amizade e o amor são igualmente estranhos ao seu coração. Paris, 23 de Agosto de 17 * *
CARTA XXXIX CECíLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Eu bem te tinha dito, Sofia, que havia casos em que se podia escrever; e asseguro-te que me censuro muito por ter seguido o teu conselho, que nos deu tanta mágoa, ao Cavaleiro Danceny e a mim. A prova de que eu tinha razão é que Madame de Merteuil, que é uma mulher que com certeza o sabe muito bem, acabou por pensar como eu. Confessei-lhe tudo. Primeiro ela disse-me o mesmo que tu; mas quando eu lhe expliquei tudo, concordou que era muito diferente. Exige somente que eu lhe mostre todas as minhas cartas e todas as do Cavaleiro Danceny, a fim de estar certa de que eu não direi senão o que for necessário. Por isso, sinto-me agora tranqüila. Meu Deus, como eu gosto de Madame de Merteuil! É tão boa! E olha que é uma senhora muito respeitável. Por isso não há nada a dizer. De que maneira vou escrever ao senhor Danceny e como ele vai ficar contente! Vai ficar ainda mais contente do que ele pensa, pois até aqui eu só lhe falava da minha amizade, e ele queria sempre que eu dissesse o meu amor. Julgo que é a mesma coisa; mas enfim eu não ousava, e ele teimava nesse ponto. Contei isso a Madame de Merteuil; ela disse-me que eu tinha razão, e que não convinha falar de amor, enquanto uma pessoa se pode impedir de o fazer. Ora eu tenho a certeza de que não poderei impedir-me de o fazer por muito tempo; no fim de contas é a mesma coisa, e isso agradar-lhe-á muito mais. Madame de Merteuil disse-me também que ia emprestar-me livros que falam de tudo isso, e que me ensinariam a conduzir-me, e também a escrever melhor do que o faço; pois, como vês, ela diz-me todos os meus defeitos, o que é uma prova de que é muito minha amiga. Só me recomendou que não dissesse nada à Mamã a respeito
dos livros, porque podia parecer que ela julgava que a Mamã tinha descuidado a minha educação e isso fazer com que ela se zangasse. Oh ! Não lhe direi nada a tal respeito. Acho no entanto muito extraordinário que uma senhora que quase não é da minha família tenha mais cuidado comigo do que a minha mãe! Foi uma felicidade para mim tê-la conhecido! Ela pediu também à Mamã que me deixasse ir com ela depois de amanhã à Ópera, para o seu camarote; disse-me que estaríamos sozinhas e que conversaríamos todo o tempo, sem receio de que alguém nos ouvisse: prefiro isso muito mais a ouvir a ópera. Conversaremos também a respeito do meu casamento, pois ela disseme que sempre era certo que eu ia casar-me; mas não pude saber mais do que isso. Ora não é na verdade muito de admirar que a Mamã não me tenha dito nada a tal respeito? Adeus, minha Sofia; vou imediatamente escrever ao Cavaleiro Danceny. Oh! Como eu estou contente! 24 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXX CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Enfim, senhor, consinto em escrever-lhe, para que esteja certo da minha amizade, do meu amor, visto que, sem isso, se sentiria infeliz. Diz o senhor que eu não tenho bom coração; garanto-lhe que se engana e espero que de agora em diante não tenha dúvidas a esse respeito. Se se sentia triste por eu não lhe escrever, julga que isso não me fazia pena a mim também? Mas é que, por coisa nenhuma do mundo, eu desejaria fazer qualquer coisa que me ficasse mal; e mesmo não estaria tão certa do meu amor por si se não tivesse sentido mágoa por não lhe escrever. Mas a sua tristeza custava-me muito. Espero que daqui por diante já a não sinta e que iremos ser muito felizes. Conto ter o prazer de o ver esta noite e que virá tão cedo quanto possível; nunca será tão cedo como eu desejo. A Mamã ceia em casa, e creio que lhe dirá para ficar. Espero que não esteja comprometido como anteontem. Era então muito agradável a ceia a que ia assistir? O certo é que foi para lá muito cedo. Mas enfim, não falemos disso: agora que já sabe que o amo, espero que ficará junto de mim o mais tempo que possa. Pois eu não estou contente senão quando está ao pé de mim, e desejaria que o mesmo acontecesse com o senhor.
Aborrece-me muito que esteja ainda triste neste momento, mas não é minha a culpa. Logo que chegue, pedirei para tocar harpa, a fim de que receba a minha carta o mais cedo possível. Não posso fazer mais do que isto. Adeus. Amo-o muito, de todo o coração. Quanto mais lho digo, mais me sinto satisfeita. Espero que o esteja também. 24 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXXI O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES Sim, sem dúvida, seremos felizes. A minha felicidade é certa, porque sou amado por si; a sua não terá fim, se tiver de durar tanto como o amor que me inspirou. Pois quê! Ama-me, e já não receia falarme do seu amor! Quanto mais mo diz, mais se sente satisfeita! Depois de ler aquele encantador amo-o, escrito pela sua mão, ouvi a sua linda boca confessar-mo de novo. Vi fixarem-se em mim esses olhos encantadores que a expressão de ternura embelezava ainda mais. Recebi a jura de viver sempre para mim somente. Ah! Receba a minha de consagrar a vida inteira à sua felicidade; receba-a, e pode estar certa de que não a trairei nunca. Que dia feliz passamos ontem! Ah! Por que é que Madame de Merteuil não tem segredos para dizer todos os dias à sua Mamã? Por que é necessário que a idéia do constrangimento que nos espera venha misturar-se à lembrança deliciosa que me prende? Por que não posso eu ter sempre segura essa linda mão que me escreveu amo-o? Cobri-la de beijos, vingar-me assim da recusa de me conceder um favor maior? Diga-me, minha Cecília: quando a sua Mamã voltou para junto de nós; quando fomos obrigados, pela sua presença, a não dirigirmos um ao outro mais do que olhares indiferentes; quando não podia já consolar-me, pela certeza do seu amor, da recusa de me dar provas dele, não sentiu nenhum pesar? Não disse consigo mesma: "Um beijo têlo-ia tornado mais feliz, e fui eu quem lhe roubou essa felicidade?" Prometa-me, minha adorável amiga, que na primeira ocasião será menos severa. Como auxílio dessa promessa, encontrarei coragem para suportar as contrariedades que as circunstâncias nos preparam; e as privações cruéis serão ao menos suavizadas pela certeza de que a Cecília partilha comigo esse segredo. Adeus, minha encantadora Cecília. Chegou a hora em que devo dirigir-me a sua casa. Ser-me-ia impossível deixá-la, se não fosse
para a tornar a ver. Adeus, ó ente que tanto amo e a quem amarei cada vez mais! 25 de Agosto de 17**.
CARTA XXXII MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL Desejais pois, senhora, que eu acredite na virtude do senhor de Valmont? Confesso que não posso resolver-me a isso, e que farei tanto esforço em supô-lo honesto, em face da única circunstância de que me destes parte, como em julgar vicioso um homem de bem reconhecido como tal, de quem tivesse chegado ao meu conhecimento uma falta. A humanidade não é perfeita em nenhum gênero, nem no mal nem no bem. O celerado tem as suas virtudes, como o homem honesto tem as suas fraquezas. Esta verdade parece-me tanto mais necessária a ter presente quanto é dela que depende a necessidade de indulgência para os maus como para os bons; e é ela que preserva estes do orgulho, e salva os outros do desânimo. Deveis sem dúvida achar que eu uso muito mal neste momento daquela indulgência que preconizo; mas não vejo nela senão uma fraqueza perigosa, se nos obrigar a tratar de igual modo o vicioso e o homem de bem. Não me permitirei perscrutar os motivos da ação do senhor de Valmont; desejo acreditar que tais motivos são tão louváveis como a própria ação. Mas, por isso, deixou ele de passar a sua vida a levar a perturbação, a desonra e o escândalo ao seio das famílias? Escutai, se o entendeis, a voz do infeliz que ele socorreu; mas que ela não vos prive de ouvirdes os gritos das cem vítimas que ele imolou. Ainda que ele não fosse, como dizeis, senão um exemplo do perigo de certas ligações, deixaria por isso de ser ele próprio uma ligação perigosa? Podeis julgá-lo suscetível de um resgate feliz? Vamos mais longe: suponhamos que esse milagre se cumpriu. Não ficaria ainda contra ele a opinião pública e não basta ela para regular a vossa conduta? Só Deus pode absolver no instante do arrependimento; Ele lê nos corações. Mas os homens não podem julgar os pensamentos senão através dos atos; e nenhum de entre eles, depois de ter perdido a estima dos outros homens, tem o direito de se queixar da desconfiança necessária, que torna essa perda tão difícil de reparar. Pensai sobretudo, minha jovem amiga, que, para perder essa estima, basta algumas vezes parecer atribuir-lhe pouco valor; e não chameis injustiça a essa severidade; pois, além de haver fundamento para crer que não se renuncia a esse bem precioso quando se tem o
direito de o pretender, quem assim procede está na verdade mais próximo de praticar o mal quando não é impedido por esse poderoso freio. Esse seria, entretanto, o aspecto sob o qual vos deveria aparecer uma ligação íntima com o senhor de Valmont, por muito inocente que ela pudesse ser. Amedrontada pelo calor com que o defendeis, apresso-me a prevenir as objeções que antevejo. Citar-me-eis Madame de Merteuil, a quem foi perdoada essa ligação; ides perguntar-me por que motivo o recebo eu em minha casa; dir-me-eis que, longe de ser repelido pelas pessoas honestas, ele é admitido, procurado mesmo pelo que se chama a boa sociedade. Posso, segundo creio, responder a tudo. Em primeiro lugar Madame de Merteuil, de fato uma pessoa muito estimável, não tem talvez outro defeito além de depositar demasiada confiança nas suas forças: é um guia muito hábil que se compraz em conduzir um carro entre rochedos e precipícios e que só o êxito justifica. É justo que a louvemos, mas seria imprudente segui-la. Ela própria está de acordo e disso se acusa. À medida que os seus olhos se foram abrindo, os seus princípios tornaram-se mais severos; e não tenho receio de afirmar-vos que ela deve pensar como eu. Quanto ao que me diz respeito, não me justificarei mais do que aos outros. Sem dúvida, recebo o senhor de Valmont, que é recebido em toda a parte; é uma inconseqüência mais a acrescentar a muitas outras que governam a sociedade. Sabeis tão bem como eu que passamos a vida a notá-las, a lamentá-las e a entregarmo-nos a elas. O senhor de Valmont, com um bom nome, uma grande fortuna, muitas qualidades amáveis, reconheceu muito cedo que, para dominar na sociedade, basta saber manejar, com igual destreza, o louvor e o ridículo. Ninguém como ele possui esse duplo talento: seduz com um e faz-se temer com o outro. Ninguém o estima; mas todos o lisonjeiam. Tal é a sua existência no meio de um mundo que, mais prudente que corajoso, prefere poupá-lo a combatê-lo. Mas nem a própria Madame de Merteuil, nem nenhuma outra mulher, ousaria sem dúvida ir encerrar-se no campo, quase a sós com semelhante homem. Estava reservado a mais ajuizada, à mais modesta de todas as mulheres, dar o exemplo dessa inconseqüência; perdoaime esta palavra, que escapou à minha amizade. Minha boa amiga, é a vossa própria honestidade que está a trair-vos, em virtude da segurança que vos inspira. Pensai entretanto que tereis por juízes, por um lado, pessoas frívolas que não acreditarão numa virtude de que não encontram o modelo à sua volta; e, por outro, pessoas malévolas, que fingirão não acreditar em tal virtude, para vos castigarem de a possuirdes. Considerai que estais fazendo, neste momento, o que alguns homens não ousariam arriscar. De fato, entre as pessoas jovens, de quem o senhor de Valmont se tornou em excesso o oráculo, vejo que as mais prudentes receiam parecer ligadas demasiado intimamente com ele; e vós não tendes qualquer receio!
Ah! Pensai, pensai muito nisto, sou eu que vos peço... Se as minhas razões não forem suficientes para vos persuadir, cedei então à minha amizade; é ela que me faz renovar as minhas instâncias, é a ela que cabe justificá-las. Por certo a achareis severa eu desejo que ela seja inútil; mas prefiro que tenhais antes de vos queixardes da vossa solicitude do que da vossa negligência. 24 de Agosto de 17* *.
CARTA XXXIII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Uma vez que receia ser bem sucedido, meu caro Visconde uma vez que o seu projeto consiste em fornecer armas contra si próprio, e que deseja menos triunfar do que combater, nada mais tenho a dizerlhe. A sua conduta é uma obra-prima de prudência. Seria uma obraprima de tolice na suposição contrária; e para lhe falar com franqueza, receio que o Visconde se esteja a iludir. O que eu lhe censuro não é o ter deixado de aproveitar o momento. Por um lado, não vejo muito claramente que ele se tivesse apresentado; por outro, sei suficientemente, digam o que disserem, que uma ocasião perdida se torna a encontrar, ao passo que não se resgata nunca um passo precipitado. Mas é de verdadeiro colegial o ter sido levado a escrever. Desafio-o neste momento a prever onde isso o pode conduzir. Porventura espera provar a essa mulher que deve entregar-se? Afigura-se-me que nisso pode haver uma verdade de sentimento, não de demonstração; e que, para a fazer reconhecer, é preciso agir pelo enternecimento e não pelo raciocínio; mas de que lhe servirá enternecer por meio de cartas, visto que o Visconde não estaria lá para se aproveitar do momento? Mesmo que as suas belas frases produzam a embriaguez do amor, pode o Visconde ter a pretensão de que essa embriaguez seja bastante durável para que a reflexão não venha a impedir-lhe a confissão? Depois, pense em tudo o que é necessário para escrever uma carta, em tudo o que se passa antes de a remeter; e veja-se, sobretudo uma mulher de princípios, como a sua devota, pode querer por tanto tempo o que ela procura não querer nunca. Esse procedimento pode dar resultado com crianças, que, quando escrevem "eu amo", não sabem que dizem "eu entrego-me". Mas a virtude raciocinadora de Madame de Tourvel conhece muito bem, segundo creio, o valor das palavras. Por isso, apesar da vantagem que o Visconde tomara sobre ela na conversação que tiveram, ela venceu-o na carta que lhe
escreveu. E depois, sabe o que acontece? Só pelo motivo de se discutir, não se deseja ceder força de procurar boas razões, acaba-se por encontrá-las; dizem-se essas razões, e depois sente-se apego a elas, não tanto porque são boas, como para não se desmentir. Além do mais, uma observação que me admiro que o Visconde não tenha feito, é que não há nada tão difícil em amor como escrever o que se não sente. Quero dizer, escrever de maneira verossímil: não é que as palavras usadas não sejam as mesmas; mas não são arranjadas do mesmo modo, ou antes, são arranjadas, e isso basta. Releia a sua carta: reina nela uma ordem que a cada frase o denuncia. Quero acreditar que a sua Presidente não tem instrução bastante para disso se aperceber: mas que importa? Nem por isso o efeito deixa de frustrar-se. É este o defeito dos romances; o autor esforça-se em vão para elevar a temperatura, e o leitor fica frio. Heloísa é o único que pode fazer exceção; e apesar do talento do autor, esta observação levou-me sempre a crer que o fundo era verdadeiro. Não é o mesmo quando se fala. O hábito de trabalhar o seu órgão dá-lhe sensibilidade; a facilidade das lágrimas aumenta o efeito: a expressão do desejo confunde-se nos olhos com a ternura; enfim, o discurso menos seguido conduz mais facilmente àquele ar de perturbação e de desordem que é a verdadeira eloqüência do amor; e principalmente a presença do objeto amado impede a reflexão e faz-nos desejar sermos vencidos. Creia-me, Visconde: ser-lhe-á favorável não escrever mais: aproveite essa pausa para reparar a sua falta e espere a ocasião de falar. Sabe que essa mulher tem mais força do que supunha? A sua defesa é boa; sem a extensão da sua carta e o pretexto que ela lhe dá para voltar ao assunto na sua frase de reconhecimento, de nenhum modo se teria traído. O que me parece ainda que deve convencê-lo do triunfo, é que ela emprega demasiadas forças ao mesmo tempo; prevejo que ela acabará por as esgotar pela defesa da palavra e que nenhuma lhe ficará para a do ato. Devolvo-lhe as duas cartas, e, se for prudente, serão essas as últimas até ao feliz momento. Se não fosse tão tarde falar-lhe-ia da pequena Volanges, que avança bastante depressa, o que muito me satisfaz. Creio que terminarei a minha tarefa antes do Visconde, e deve sentir-se feliz por isso. Adeus por hoje. 24 de Agosto de 17* *.
CARTA XXXIV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL
Fala maravilhosamente, minha boa amiga; mas para que se fatiga tanto a provar aquilo que ninguém ignora? Para avançar depressa no amor, vale mais falar do que escrever; a isto, creia, se resume, a sua carta. Pois sim! Mas são os elementos mais simples da arte de seduzir. Observarei somente que a Marquesa abre apenas uma exceção a este princípio; e que na verdade há duas. as crianças que seguem esse caminho por timidez e se entregam por ignorância, devemos acrescentar as mulheres espirituosas, que se deixam comprometer por amor-próprio, e que se deixam cair na ratoeira por vaidade. Por exemplo; estou bem certo de que a Condessa de B..., que respondeu sem dificuldade à minha primeira carta, não tinha então mais amor por mim do que eu por ela, e que viu apenas a ocasião de tratar um assunto que lhe faria honra. De qualquer modo, um advogado diria à minha boa amiga que o princípio não se aplica à questão. De fato, a Marquesa supõe que eu posso escolher entre escrever e falar, o que não é o caso. Desde a história do dia 19, a minha desumana, que se mantém na defensiva, tem evitado os encontros com uma habilidade que desarmou a minha. A coisa chegou a tal ponto que, se isto continua, ela acabará por me obrigar a ocupar-me seriamente dos meios de recuperar a vantagem perdida; pois seguramente não quero ser vencido por ela em qualquer campo. Mesmo as minhas cartas estão sendo motivo de uma pequena guerra: não contente de lhes não responder, recusa recebê-las. Para cada uma é necessário pôr em prática uma nova astúcia, que nem sempre resulta. Deve recordar-se do meio simples de que usei para lhe entregar a primeira; a segunda não ofereceu maior dificuldade. Ela pedira-me que lhe devolvesse a sua carta: dei-lhe a minha no lugar daquela, sem que ela tivesse a menor suspeita. Mas, fosse pelo despeito de ter sido apanhada, fosse por capricho, ou, enfim, por virtude, pois ela forçarme-á a crer nessa virtude, recusou-se teimosamente a receber a terceira. Espero todavia que o embaraço em que acabará por a lançar a obstinação nessa recusa lhe servirá de corretivo para o futuro. Não me admirei muito por ela não querer receber a carta que eu lhe oferecia com toda a simplicidade; seria já conceder qualquer coisa, e eu estou na expectativa de uma defesa mais prolongada. Após esta tentativa, que não passou de uma experiência passageira, pus um sobrescrito na minha carta; e, aproveitando o momento da toalete, quando Madame de Rosemonde e a criada de quarto estavam presentes, enviei-lha pelo meu criado, com ordem de lhe dizer que era o papel que ela me tinha pedido. Eu adivinhara que ela teria receio da explicação escandalosa a que uma recusa obrigaria: com efeito aceitou a carta; e o meu embaixador, que tinha ordem de observar o seu rosto, e que tem boa vista, enxergou apenas uma leve vermelhidão e mais embaraço do que cólera.
Felicitei-me pois por ela ter guardado a carta, a menos que quisesse entregar-ma, o que só poderia fazer estando só comigo, dando-me ocasião de lhe falar. Cerca de uma hora depois, um dos seus criados entra-me no quarto e entrega-me, da parte da sua senhora, um embrulho de forma diferente do meu, e em cujo sobrescrito reconheci a letra tão desejada. Abro-o precipitadamente... Era a minha própria carta, por abrir, e apenas dobrada ao meio. Suspeito que só o receio de que eu fosse menos escrupuloso do que ela sobre o escândalo a levou a empregar esta astúcia diabólica. A Marquesa conhece-me; não tenho necessidade de lhe descrever a minha cólera. Foi-me preciso no entanto recuperar o sangue-frio e procurar novos meios. Eis o único que encontrei. Todos os dias alguém vai daqui buscar as cartas ao correio, que fica a cerca de três quartos de légua; para este fim, servem-se de uma caixa coberta pouco mais ou menos como um tronco, de que o chefe do correio tem uma chave e Madame de Rosemonde outra. Durante o dias as cartas são aí depositadas, a qualquer hora; à noite levam-nas para o correio, e de manhã vão buscar as que chegaram. Todos, mesmo os estranhos ao castelo, fazem esse serviço igualmente. Não era a vez do meu criado; mas ele encarregou-se de lá ir, com o pretexto de que tinha afazeres para aquele lado. Entretanto escrevi a minha carta. Disfarcei a letra para o endereço, e imitei muito bem, no sobrescrito, o carimbo de Dijon. Escolhi esta cidade porque achei mais engraçado; visto que eu me candidatava aos mesmos direitos que o marido, escrever do lugar onde ele se encontra, e também porque a minha bela falava durante todo o dia do desejo que tinha de receber cartas de Dijon. Pareceu-me justo conceder-lhe esse prazer. Tomadas estas precauções, era fácil fazer que esta carta se juntasse às outras. Com este expediente tive ainda a vantagem de ser testemunha da recepção, pois há aqui o uso de nos juntarmos para almoçar e esperar a chegada das cartas antes de nos separarmos. Chegaram enfim as cartas. Madame de Rosemonde abriu a caixa. "De Dijon", disse ela, dando a carta de Madame de Tourvel. "Não é a letra de meu marido", replicou ela com voz inquieta, rompendo o lacre com vivacidade. O primeiro olhar deu-lhe a saber de que se tratava; e houve tamanha alteração no seu rosto, que Madame de Rosemonde, dando conta disso, perguntou: "Que tem?" Aproximei-me também, dizendo: "É assim tão terrível essa carta?" A tímida devota não ousava levantar os olhos, não dizia palavra, e, para disfarçar o seu embaraço, fingia percorrer a epístola, que ela não estava em estado de ler. Eu gozava da sua perturbação, e não fiz cerimônia em a aumentar: "O seu aspecto mais tranqüilo", acrescentei, "faz esperar que essa carta lhe tenha causado mais surpresa do que mágoa.” A cólera então inspirou-a melhor do que não o havia feito a
prudência. "Esta carta contém coisas que me ofendem", respondeu ela, "e surpreendeu-me que alguém ousasse escrevê-las." "Quem foi então?", interrompeu Madame de Rosemonde. "Não está assinada", respondeu a bela encolerizada, "mas a carta e o seu autor inspiram-me igual desprezo. Obsequeiam-me não me falando mais nisto". Dizendo estas palavras, rasgou a audaciosa missiva, meteu os pedaços no bolso, levantou-se e saiu. Apesar da sua cólera, não deixou de receber a minha carta; e eu confio bastante na sua curiosidade, que a obrigará a lê-la por inteiro. Os pormenores do dia levar-me-iam muito longe. Junto a esta narrativa os rascunhos das minhas duas cartas: assim a Marquesa ficará tão instruída como eu. Se quiser estar ao corrente da minha correspondência, é preciso acostumar-se a decifrar as minhas minutas, pois por nada no mundo eu devoraria o aborrecimento de ter de as copiar. Adeus, minha bela amiga. 25 de Agosto de 17* *.
CARTA XXXV O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL É preciso obedecer-vos, senhora, é preciso provar-vos que, no meio dos agravos que vos comprazeis em atribuir-me, me resta ao menos bastante delicadeza para não me permitir uma censura e bastante coragem para me impor os mais dolorosos sacrifícios. Ordenais-me o silêncio e o esquecimento! Pois bem! Forçarei o meu amor a calar-se; e esquecerei, se for possível, a maneira cruel como o acolhestes. Sem dúvida o desejo de vos agradar não dava tal direito, e confesso ainda que a necessidade que tenho da vossa indulgência não era um título para a obter. Mas achais que o meu amor é um ultraje; esqueceis que se ele pudesse ser um agravo, seríeis ao mesmo tempo a causa e a justificação. Esqueceis também que, acostumado a abrir-vos a minha alma, mesmo quando essa confiança podia ser-me desvantajosa, já me não era possível esconder-vos os sentimentos de que estou penetrado; e o que foi a obra da minha boa fé, é por vós avaliado como o fruto da audácia. Como preço por amor mais terno, mais respeitoso, mais verdadeiro, expulsais-me para longe de vós. E, por fim, falais-me do vosso ódio... Que outro se não queixaria de ser tratado assim? Eu, contudo, submeto-me: sofro tudo e não me lamento de nada; feris-me e eu adoro-vos. O inconcebível domínio que tendes sobre mim torna-vos
senhora absoluta dos meus sentimentos; e se só o meu amor vos resiste, se não o podeis destruir, é porque ele é a vossa obra e não a minha. Não peço um regresso a um tratamento de que nunca pude gozar. Não espero mesmo aquela piedade que o interesse que algumas vezes me testemunhastes podia fazer-me esperar. Mas creio, confesso-o, poder reclamar a vossa justiça. Fizestes-me compreender, senhora, que alguém procurou diminuir-me no vosso espírito. Se tivésseis seguido o conselho dos vossos amigos, não teríeis deixado sequer que me aproximasse: são os vossos próprios termos. Quais são pois esses amigos oficiosos? Sem dúvida pessoas tão severas, e duma virtude tão rígida, consentem em ser nomeadas; sem dúvida não quererão cobrirse de uma obscuridade que as confundiria com vis caluniadores; e não ignorarei nem os seus nomes, nem as suas censuras. Pensai, senhora, que tenho o direito de conhecer uns e outros, pois que me julgareis segundo eles. Não se condena um criminoso sem se lhe dizer qual o seu crime, sem lhe nomear os seus acusadores. Não peço outra graça, e comprometo-me de antemão a justificar-me, a forçá-los a desdizeremse. Se desprezei demasiado, talvez, os vãos clamores de um público que tive em pequena conta, não acontece assim com a vossa estima: e quando consagro a minha vida a merecê-la, não deixarei impunemente que ma roubem. Ela tornar-se-me-á tanto mais preciosa, quanto lhe deverei sem dúvida esta pergunta que temeis fazer-me, e que me daria, como dizeis, direitos ao vosso reconhecimento. Ah! Longe de o exigir, julgarei ficar-vos em dívida, se me concederdes a ocasião de vos ser agradável. Começai pois por me fazer mais justiça, não me deixando ignorar o que desejais de mim. Se eu pudesse adivinhá-lo, evitar-vos-ia a pena de o dizer. Ao prazer de vos ver, acrescentai felicidade de vos servir, e louvar-me-ei da vossa indulgência. Que pode deter-vos? Não é, espero-o, o receio de uma recusa. Sinto que não poderia perdoar-vos tal receio. Desejo, mais do que vós, senhora, que ela deixe de me ser necessária: mas acostumado a julgarvos uma alma tão doce, é nessa carta que eu posso encontrar-vos tal como quereis parecer. Quando formulo o voto de vos tornar sensível, vejo nessa carta que, em vez de consentirdes em tal, mais depressa fugiríeis para cem léguas de distância de mim; quando tudo aumenta e justifica o meu amor, é ainda ela que me repete que o meu amor é recebido como um ultraje; e quando, ao ver-vos, esse amor me parece o bem supremo, tenho necessidade de ler essa carta, para sentir que ele é apenas um horrível tormento. Concebei agora que a minha maior felicidade estaria em poder entregar-vos essa carta fatal; pedir-ma ainda seria autorizar-me a não acreditar no que ela contém; não duvidareis, espero, da minha prontidão em devolvê-la. 21 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXXVI O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL (carimbo de Dijon) A vossa severidade aumenta dia a dia, senhora; e se me é permitido dizê-lo, parece-me que receais menos ser injusta do que ser indulgente. Depois de me haverdes condenado sem me ouvir, deveis ter sentido, de fato, que vos seria mais fácil não ler as minhas razões que responder-lhes. Recusais as minhas cartas com obstinação; devolveis-mas com desprezo. Obrigais-me por fim a recorrer à astúcia, no próprio momento em que o meu único fim é convencer-vos da minha boa fé. A necessidade em que me pusestes de me defender bastará sem dúvida para desculpar os meios que uso para tal fim. Convencido, aliás, pela sinceridade dos meus sentimentos, que para os justificar a vossos olhos me basta dá-los bem a conhecer, julguei poder permitir-me este ligeiro desvio. Ouso crer também que mo perdoareis; e que pouco vos deverá surpreender que o amor seja mais engenhoso a produzir-se do que a indiferença a afastá-lo. Permiti, pois, senhora, que o meu coração se vos descubra inteiramente. Pertence-vos, é justo que o conheçais. Ao chegar a casa de Madame de Rosemonde, eu estava muito longe de prever a sorte que aí me esperava. Ignorava que estivésseis aqui; e acrescentarei, com a sinceridade que me caracteriza, que, ainda que o soubesse, a minha tranqüilidade não se perturbaria. Não que a vossa beleza não me merecesse a justiça que é impossível recusar-lhe; mas, acostumado a sentir apenas desejos, e a entregar-me apenas àqueles que eram animados pela esperança, eu não conhecia os tormentos do amor. Fostes testemunha das instâncias de Madame de Rosemonde para que eu me demorasse algum tempo. Tinha já passado um dia a vosso lado; entretanto não me rendi, ou pelo menos julguei render-me apenas ao prazer, tão natural e tão legítimo, de dedicar algumas atenções a uma parenta respeitável. O gênero de vida que se levava aqui era sem dúvida muito diferente daquele a que estava acostumado. Nada me custou conformar-me a ele; e, sem procurar penetrar a causa da mudança que se operava em mim, atribuí-a ainda unicamente àquela felicidade de caráter de que julgo ter-vos falado. Infelizmente (e por que é necessário que isto seja uma infelicidade?), conhecendo-vos melhor, depressa reconheci que essa figura encantadora, que simplesmente me havia impressionado, era o
menor dos vossos dotes; a vossa alma celestial surpreendeu, seduziu a minha. Admirava a beleza; fiquei adorando a virtude. Sem pretender obter-vos, preocupava-me em vos merecer. Reclamando a vossa indulgência para o passado, ambicionava a vossa aprovação para o futuro. Procurava-a nas vossas palavras, espiava-a nos vossos olhares; nesses olhares donde partia um veneno tanto mais perigoso quanto era derramado sem intenção e recebido sem desconfiança. Então conheci o amor. Mas como eu estava longe de me lamentar! Decidido a sepultá-lo num eterno silêncio, entregava-me sem receio e sem reserva a esse sentimento delicioso. Cada dia aumentava o seu império. Depressa o prazer de vos ver se transformou em necessidade. Se vos ausentáveis por um momento, o meu coração sentia-se apertado de tristeza; e palpitava de alegria, ao ruído que me anunciava o vosso regresso. Eu já não existia senão por vós, e para vós. Entretanto, é a vós mesmo que suplico uma resposta: porventura na alegria dos jogos despreocupados, ou no interesse duma conversação séria, me escapou uma palavra que pudesse trair o segredo do meu coração? Chegou enfim um dia em que devia começar o meu infortúnio; e por uma inconcebível fatalidade, uma ação honesta devia marcar esse começo. Sim, foi no meio dos infelizes que eu tinha socorrido, que vós, senhora, entregando-vos a essa sensibilidade preciosa que embeleza a própria beleza e aumenta o preço da virtude, acabastes de desvairar um coração inebriado já por excesso de amor. Lembraisvos, talvez, da preocupação que se apoderou de mim no regresso! Ai de mim! Procurava combater uma inclinação que eu sentia tornar-se mais forte do que eu. Foi depois de ter esgotado as minhas forças nesse combate desigual, que um acaso, que eu não pudera prever, me fez encontrar a sós convosco. Sucumbi nesse momento, confesso-o. O meu coração demasiado cheio não pôde reter as suas palavras e as suas lágrimas. Mas é isso um crime? E se o é, não sofreu já castigo bastante pelos tormentos horrorosos a que estou entregue? Devorado por um amor sem esperança, imploro a vossa piedade e encontro apenas o vosso ódio. Sem outra felicidade além de ver-vos, os meus olhos procuram-vos para além da minha vontade, e tremo de encontrar os vossos olhares. No estado cruel a que me reduzistes, passo os dias a disfarçar as minhas penas e as noites a entregar-me a elas; enquanto que vós, tranqüila e calma, não conheceis esses tormentos senão para os causardes e aplaudir-vos deles. Entretanto, sois vós que vos lamentais, e sou eu quem pede perdão. Aqui está, todavia, senhora, a narração fiel do que chamais os meus agravos, e que talvez fosse mais justo chamar os meus infortúnios.
Um amor puro e sincero, um respeito que jamais se desmentiu, uma submissão perfeita: tais são os sentimentos que me inspirastes. Não recearia apresentar semelhante homenagem à própria divindade. Ó vós, que sois a sua mais bela obra, imitai-a na sua indulgência! Pensai nas minhas penas cruéis; pensai sobretudo que, colocado por vós entre o desespero e a felicidade suprema, a primeira palavra que pronunciardes decidirá para sempre da minha sorte. 23 de Agosto de 17* *.
CARTA XXXVII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES dá.
Submeto-me, senhora, aos conselhos que a vossa amizade me
Acostumada a tudo confiar nas vossas opiniões, creio firmemente que elas se fundam sempre na razão. Confessarei mesmo que o senhor de Valmont deve ser, na verdade, infinitamente perigoso, se pode ao mesmo tempo fingir ser aquilo que parece aqui, e ficar tal como o descreveis. De qualquer modo visto que o exigis, afastá-lo-ei de mim; pelo menos farei para isso o que estiver ao meu alcance: pois, muitas vezes, as coisas que no fundo deveriam ser as mais simples tornam-se embaraçosas na prática. Continua a parecer-me impraticável fazer esse pedido a sua tia; seria igualmente descortês, para ela e para ele. Também não tomarei sem alguma repugnância o partido de me afastar eu própria: pois além das razões que vos comuniquei, relativas ao senhor de Tourvel, se a minha partida viesse a contrariar o senhor de Valmont, como é possível, não teria ele facilidade de me seguir a Paris? E o seu regresso, do qual eu seria, ou de que ao menos pareceria ser o objeto, não se afiguraria mais estranho do que um encontro no campo, em casa de uma pessoa que se sabe ser sua parenta e minha amiga? Não me resta pois outro recurso senão obter dele próprio que se afaste. Sinto que esta proposta é difícil de fazer; entretanto, como me parece que ele toma a peito provar-me que é na verdade mais honesto do que o supõem, não desespero de o vir a conseguir. Não sentirei mesmo qualquer embaraço em tentá-lo; e isso me dará ocasião de ajuizar se, como ele diz muitas vezes, as mulheres honestas nunca tiveram e não terão nunca motivo de queixa do seu procedimento. Se ele se afastar como eu desejo, será de fato por respeito à minha pessoa: pois não posso duvidar de que ele tivesse o projeto de passar aqui uma grande parte do Outono. Se ele recusar aceder ao meu pedido e se se obstinar em ficar, estarei a tempo de me afastar eu própria, e prometo-vos que o farei.
Segundo creio, senhora, é tudo o que a vossa amizade exigia de mim: apresso-me a dar-lhe satisfação, e a provar-vos que, apesar do calor que porventura pus na defesa do senhor de Valmont, nem por isso estou menos disposta, não somente a escutar, mas até a seguir os conselhos dos meus amigos. Tenho a honra de ser, etc. 25 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXXVIII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT O seu enorme pacote chega-me neste instante às mãos, meu caro Visconde. Se a data está exata, deveria tê-lo recebido vinte e quatro horas mais cedo; de qualquer modo, se tivesse tempo de o ler, não teria já o de lhe responder. Prefiro pois acusar-lhe somente a recepção, e conversaremos sobre outro assunto. Não é que eu tenha alguma coisa a dizer-lhe a meu respeito; o Outono não deixa em Paris quase nenhum homem que tenha figura humana. Por isso, há um mês que me mantenho numa moderação desesperadora; e qualquer outro que não fosse o meu Cavaleiro estaria fatigado das provas da minha constância. Não tendo qualquer ocupação, distraio-me com a pequena Volanges; e é dela que lhe quero falar. Sabe, Visconde, que perdeu mais do que supõe não querendo encarregar-se dessa criança? É verdadeiramente deliciosa! Não tem nem caráter nem princípios; imagine como a sua convivência será doce e fácil. Não creio que ela venha a brilhar pelo sentimento; mas tudo anuncia nela as sensações mais vivas. Sem espírito e sem finura, ela tem todavia certa falsidade natural, se se pode dizer assim, que algumas vezes a mim própria me espanta e de que ela virá a aproveitar tanto mais quanto o seu rosto oferece a imagem da candura e da ingenuidade. Ela é naturalmente muito meiga, e isso diverte-me algumas vezes. Aquela cabecita perturba-se com uma facilidade incrível; e é nesses momentos tanto mais graciosa quanto é certo que nada sabe, absolutamente nada, daquilo que tanto deseja saber. Tem às vezes impaciências muito engraçadas; ri, atordoa-se, chora, e depois pede-me que a ensine, com uma boa fé realmente sedutora. Na verdade, quase me sinto ciumenta daquele a quem esse prazer está reservado. Não sei se lhe mandei dizer que há quatro ou cinco dias tenho a honra de ser a sua confidente. Imagina decerto que ao princípio afetei severidade; mas logo percebi que ela julgava ter-me convencido com as suas más razões, comecei a fingir que as aceitava por boas; e ela
está intimamente persuadida de que deve o êxito à sua eloqüência: esta precaução era necessária para não me comprometer. Permiti-lhe que escrevesse e que dissesse eu amo ; e nesse mesmo dia, sem que ela o suspeitasse, proporcionei-lhe um encontro a sós com o seu Danceny. Mas imagine que ele é tão tolo que ainda não conseguiu nem ao menos um beijo. No entanto esse rapaz faz versos bem bonitos! Meu Deus! Como são estúpidas as pessoas de talento! Esse é-o a tal ponto que me embaraça; pois, enfim, a ele não posso eu conduzi-lo! É neste momento que o Visconde me seria muito útil. Está ligado com Danceny o bastante para obter as suas confidências, e se ele lhas fizesse uma vez que fosse, iríamos a galope. Apresse-se por conseguinte com a sua Presidente, pois, enfim, não quero que Gercourt se salve: aliás, falei ontem dele à rapariguinha, e descrevi-o tão bem, que, ainda que ela fosse sua mulher há dez anos, não o odiaria mais do que o ficou odiando. No entanto, preguei-lhe muito acerca da fidelidade conjugal; nada iguala a minha severidade sobre este ponto. Por esse meio, restabeleço junto dela, por um lado, a minha reputação de virtude, que demasiada condescendência poderia destruir; por outro, aumento nela o ódio com que pretendo gratificar o marido. E, enfim, espero que, fazendo-lhe crer que não lhe é permitido entregar-se ao amor senão durante o pouco tempo que lhe resta de solteira, ela se decidirá mais depressa a não perder nada. Adeus, Visconde; vou para o meu quarto de vestir onde lerei o seu volume. 27 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXXIX CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Estou triste e inquieta, minha querida Sofia. Chorei quase toda a noite. Não é que neste momento eu não seja muito feliz; mas prevejo que isso não durará. Estive ontem na Ópera com Madame de Merteuil; falamos lá do meu casamento, e o que soube a esse respeito não foi bom. É com o senhor Conde de Gercourt que eu devo casar, e deve ser no mês de Outubro. É rico, é homem de qualidade, é coronel do regimento de... Até aí tudo vai muito bem. Mas, primeiro, é velho: imagina que tem pelo menos trinta e seis anos! E depois, Madame de Merteuil diz que é triste e severo, e receia que eu não seja feliz com ele. Vi mesmo que ela está certa disso e que não queria dizer-mo para não me afligir. Durante toda a noite quase não falou de outra coisa senão dos deveres das mulheres para com seus maridos: concorda que o senhor de Gercourt não é nada amável e no entanto diz que é preciso
que eu o ame. Pois não me disse também que, uma vez casada, eu devia deixar de amar o Cavaleiro Danceny? Como se isso fosse possível! Oh, podes ter a certeza de que o amarei sempre. Bem vês, gostava mais de não me casar. Esse senhor de Gercourt que se arranje, eu não o fui procurar. Ele está agora na Córsega, muito longe daqui; desejaria que lá ficasse dez anos. Se eu não tivesse medo de voltar para o convento, diria à Mamã que não quero aquele marido; mas seria pior ainda. Estou muito aborrecida. Sinto que nunca amei tanto o senhor Danceny como agora; e quando penso que não me resta mais do que um mês para ser como sou, vêem-me as lágrimas aos olhos imediatamente. Não encontro consolação a não ser na amizade de Madame de Merteuil. Tem tão bom coração! Partilha as minhas tristezas como eu própria. E é tão amável que, quando estou com ela, quase nem penso em tais tristezas. Além disso é-me muito útil: pois o pouco que sei, foi ela quem mo ensinou. E é tão boa, que eu digo-lhe tudo quanto penso, sem me sentir nada envergonhada. Quando acha que não está bem, ralha-me algumas vezes; mas é muito brandamente, e depois eu abraço-a de todo o coração, até ver que ela não está zangada. Ao menos essa, posso-a amar quanto me apetece, sem que nisso haja mal algum, o que me dá muito prazer. Entretanto combinamos que eu não daria a perceber diante das outras pessoas que gosto dela como gosto, principalmente diante da Mamã, para que não desconfie nada a respeito do Cavaleiro Danceny. Posso garantir-te que se eu pudesse viver sempre como vivo agora, creio que seria muito feliz. A minha única pena é aquele feio senhor de Gercourt!... Mas não quero falar-te mais dele, pois acabaria por ficar triste. Em vez disso, vou escrever ao Cavaleiro Danceny; só lhe falarei do meu amor e não das minhas tristezas, pois não quero que se aflija. Adeus, minha boa amiga. Bem vês que não tens razão de te queixar, e que o meu prazer é estar ocupada, como tu dizes, pois nem por isso me falta o tempo para ser tua amiga e te escrever. 27 de Agosto de 17 * *.
CARTA XL O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL É pouco para a minha desumana não responder às minhas cartas e recusar-se a recebê-las; quer-me privar de a ver e exige que eu me afaste. O que surpreenderá mais ainda a minha boa amiga, é que eu me submeta a tamanho rigor. Bem sei que vai censurar-me. Entretanto, julguei não dever perder a ocasião de deixar que me dessem uma ordem: persuadido, por um lado, de que quem manda se
compromete; e, por outro, de que a autoridade ilusória que nós simulamos deixar tomarem as mulheres é uma das ciladas que elas evitam mais dificilmente. Além disto, a habilidade que esta soube pôr em evitar encontrar-se comigo a sós colocava-me numa situação perigosa, da qual julguei dever sair custasse o que custasse; pois estando continuamente junto dela, sem poder ocupá-la do meu amor, havia lugar para o receio de que ela viesse a acostumar-se de me ver, por fim, sem se perturbar; e é esta uma disposição da qual a Marquesa sabe bem como é difícil sair. Adivinha, aliás, que eu não me submeti sem condições. Tive mesmo o cuidado de pôr uma impossível de conceder; tanto para ficar sempre senhor de manter a minha palavra, ou de faltar a ela, como para poder iniciar uma discussão, ou verbal ou por escrito, num momento em que a minha bela está satisfeita comigo, ou tem necessidade de que eu o esteja dela; sem contar que eu seria bem desastrado se não encontrasse meio de me compensar da minha desistência a esta pretensão, por insustentável que ela seja. Depois de lhe ter exposto as minhas razões neste longo preâmbulo, começo a história destes dois últimos dias. Juntarei como peças justificativas a carta da minha bela e a minha resposta. A Marquesa há de convir que poucos historiadores haverá tão exatos como eu. Recorda-se do efeito que fez anteontem de manhã a minha carta de Dijon; o resto do dia foi muito tempestuoso. A linda hipócrita chegou só à hora de jantar e anunciou uma forte enxaqueca; pretexto com que quis encobrir um dos violentos acessos de mau humor que uma mulher pode ter. O seu rosto estava verdadeiramente alterado; a expressão de doçura que lhe conheço transformara-se num ar de rebeldia que lhe dava uma nova beleza. Prometo a mim próprio fazer uso mais tarde desta descoberta: substituir algumas vezes a amante terna pela amante rebelde. Previ que o resto da tarde seria triste; e para me poupar o aborrecimento, pretextei cartas a escrever e retirei-me para o meu quarto. Voltei ao salão pelas seis horas; Madame de Rosemonde propôs que passeássemos, o que foi aceite. Mas no momento de subir para a carruagem, a pretendida doente, por malícia infernal, pretextou por sua vez, e talvez para se vingar da minha ausência, um redobramento de dores, e obrigou-me a suportar sem piedade a companhia da minha velha parenta. Não sei se as imprecações que dirigi contra esse demônio feminino foram exaltadas, mas encontrámo-la deitada no regresso. No dia seguinte ao almoço, não era a mesma mulher. Voltara a doçura natural, e tive razão para me julgar perdoado. Acabáramos apenas de almoçar, quando a doce criatura se levantou com ar dolente e se dirigiu ao parque; segui-a, como pode crer.
"Donde pode nascer esse desejo de passear?", perguntei-lhe ao abordá-la. "Escrevi muito esta manhã", respondeu-me ela, "e tenho a cabeça um pouco cansada". "Não serei eu bastante feliz", tornei, "para ter de me censurar desse cansaço?". "Escrevi-vos", respondeu ela ainda, "mas hesito em dar-vos a minha carta. Essa carta contém um pedido, e não me acostumastes a esperar resposta favorável". "Ah! Juro que se me for possível..." "Nada há mais fácil", interrompeu ela, "e embora pudésseis talvez conceder-mo como justiça, consinto em obtê-lo como graça". Dizendo estas palavras, apresentou-me a sua carta; ao recebêla, tomei-lhe também a mão, que ela retirou, mas sem cólera, e com mais embaraço do que vivacidade. "Está mais calor do que eu supunha", disse ela; "tenho de voltar para casa.” E retomou o caminho do castelo. Foram vãos os meus esforços para persuadi-la a continuar o seu passeio, e foi-me preciso recordarme de que podíamos ser vistos, para que nesse sentido empregasse apenas a minha eloqüência. Ela voltou sem proferir uma palavra e vi claramente que esse fingido passeio não tivera outro fim além do de me entregar a carta. Ao regressar, ela subiu para o seu quarto e eu retirei-me para o meu, a fim de ler a epístola, que a Marquesa fará bem em ler também, assim como a minha resposta, antes de ir mais longe...
CARTA XLI A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT A vossa conduta para comigo, senhor, faz crer que procuráveis apenas aumentar, dia a dia, as razões de queixa que eu tinha contra vós. Essa obstinação em querer continuar a falar-me, incessantemente, de um sentimento que eu não quero nem devo escutar; o abuso que não temestes fazer da minha boa fé, ou da minha timidez, para me enviardes as vossas cartas; o meio, sobretudo, ouso dizer pouco delicado, de que vos servistes de uma surpresa que podia comprometer-me*; tudo deveria dar lugar da minha parte a censuras tão vivas como justamente merecidas. *Ver Carta XXXV Entretanto, em vez de voltar a falar desses agravos, limito-me a fazer-vos um pedido simples como justo; e se o obtiver de vós, consinto em que tudo seja esquecido. Vós mesmo me dissestes, senhor, que eu não devia recear uma recusa; e ainda que, por uma inconseqüência que vos é peculiar, essa mesma frase fosse seguida da única recusa que podíeis fazer-me, desejo crer que por isso não deixareis de manter essa palavra formalmente dada há poucos dias.
Desejo pois que tenhais a bondade de vos afastardes de mim; de deixar este castelo, onde uma permanência mais longa por vossa parte não poderia deixar de me expor ainda mais ao julgamento de um público sempre pronto a pensar mal dos outros, e que vós não tendes senão acostumado demais a fixar os olhos sobre as mulheres que vos admitem na sua sociedade. Informada já, há muito tempo, desse perigo pelos meus amigos, negligenciei, combati mesmo a opinião deles enquanto a vossa conduta a meu respeito me levou a crer que não me tínheis querido confundir com a multidão de mulheres que, todas elas, têm motivo de queixa de vós. Hoje que me tratais como a elas, e que eu não posso ignorá-lo, devo ao público, aos meus amigos, a mim própria, a necessidade de seguir esta resolução. Poderia acrescentar aqui que nada ganharíeis se recusásseis aceder ao meu pedido, pois estou decidida a partir eu própria, se vos obstinardes em ficar: mas não procuro diminuir o obséquio que vos ficarei devendo por essa bondade, e é meu desejo que saibais que, tornando necessária a minha partida, contrariaríeis as minhas combinações. Provai-me pois, senhor, que, como me dissestes tantas vezes, as mulheres honestas não terão nunca de queixar-se de vós; provai-me, pelo menos, que quando lhes dais motivos de agravo, sabeis repará-los. Se eu julgasse ter necessidade de justificar o meu pedido a vossos olhos, bastar-me-ia dizer-vos que tendes passado a vossa vida a torná-lo necessário, e que, todavia, não foi nunca minha intenção vir a formulá-lo. Mas não recordemos acontecimentos que quero esquecer, e que me obrigariam a julgar-vos com rigor, num momento em que vos ofereço a ocasião de merecerdes todo o meu reconhecimento. Adeus, senhor; a vossa conduta me dirá quais os sentimentos com que devo ser, toda a minha vida, a vossa humilde, etc. 25 de Agosto de 17 * *.
CARTA XLII O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Por muito duras que sejam, senhora, as condições que me impusestes, não recuso cumpri-las. Sinto que me seria impossível contrariar qualquer dos vossos desejos. Uma vez de acordo sobre este ponto, ouso supor que me permitireis, por meu lado, que vos faça alguns pedidos, bem mais fáceis de conceder que os vossos, e que todavia não desejo obter senão pela minha perfeita submissão à vossa vontade.
Um, que espero será feito pela vossa justiça, é o de me nomeardes os meus acusadores junto de vós; fizeram-me, ao que julgo, bastante mal para que eu tenha o direito de os conhecer. O outro, que espero da vossa indulgência, é o de permitirdes que renove algumas vezes a homenagem de um amor que mais do que nunca vai merecer a vossa piedade. Pensai, senhora, que me apresso á obedecer-vos, ainda mesmo quando não posso fazê-lo senão à custa da minha felicidade; direi mais, apesar de estar persuadido de que não desejais a minha partida senão para vos furtardes ao espetáculo, sempre penoso, do objeto da vossa injustiça. Deveis convir, senhora: é menor o vosso temor de um público demasiado acostumado a respeitar-vos para ousar formular sobre vós um juízo desfavorável, do que o vosso aborrecimento pela presença de um homem que vos é mais fácil punir que censurar. Afastais-me de vós como quem desvia os seus olhares de um desgraçado que não se quer socorrer. Mas, enquanto que a ausência vai redobrar os meus tormentos, a que outra pessoa além de vós posso eu dirigir as minhas queixas? De quem poderei esperar consolações que me vão ser tão necessárias? Recusar-mas-eis, quando sois a causa única das minhas penas? Não vos admirareis, sem dúvida, que antes de partir eu me tenha imposto justificar-me junto de vós dos sentimentos que me inspirastes; como também que eu não encontre a coragem para me afastar senão recebendo a ordem da vossa boca. Esta dupla razão faz que vos peça um encontro de um momento. Inutilmente quereríamos substituí-lo por cartas: escrevem-se volumes e ficam mal explicadas as coisas que um quarto de hora de conversação basta para esclarecer. Encontrareis facilmente o tempo de mo concederdes: pois por muito empenho que eu tenha em obedecer-vos, sabeis que Madame de Rosemonde é conhecedora do meu projeto de passar junto dela uma parte do Outono, e será pelo menos necessário que eu espere uma carta para poder pretextar um assunto que me força a partir. Adeus, senhora; jamais esta palavra me custou a escrever como neste momento, que me traz à idéia a nossa separação. Se pudésseis imaginar o que tal palavra me faz sofrer, ouso crer que vos sentiríeis um pouco grata pela minha docilidade. Recebei, ao menos, com mais indulgência a certeza e a homenagem do amor mais terno e mais respeitoso. 26 de Agosto de 17 * *.
CONTINUAÇÃO DA CARTA XL
O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Raciocinemos agora, minha bela amiga. Sentis como eu que ao primeiro dos meus pedidos, e trair a confiança das suas amigas, nomeando os meus acusadores; assim, prometendo tudo sob esta condição, não chego a comprometer-me. Mas, como a minha amiga compreenderá também, essa recusa tornar-se-á um título para obter tudo o que resta; e nesse caso, afastando-me, fica-me a vantagem de iniciar com ela, e com o seu consentimento, uma correspondência em regra: pois a entrevista que lhe peço pouco conta, e quase não tem outro objetivo que o de a acostumar de antemão a não recusar outras, quando me forem verdadeiramente necessárias. A única coisa que me resta fazer antes da minha partida é saber quais são as pessoas que se ocupam em me prejudicar junto dela. Presumo que seja o pedante do marido; gostaria que assim fosse: além de uma ofensa conjugal ser um aguilhão ao, desejo, eu estaria certo que, desde o momento em que a minha bela consentisse em escreverme, nada mais teria a temer do marido, visto ela encontrar-se já na necessidade de o enganar. Mas, se ela tem uma amiga com a intimidade bastante para lhe fazer as suas confidências, e se essa amiga é contra mim, parece-me necessário fazer com que se zanguem, e conto ser bem sucedido na tentativa. Mas antes de tudo preciso ser informado. Cheguei ontem a pensar que o ia ser; mas essa mulher não faz nada como qualquer outra. Encontrávamo-nos nos seus aposentos, quando vieram dizer-nos que o jantar estava servido. Ela acabava de se arranjar, e ao mesmo tempo que se apressava e nos pedia desculpa, notei que deixava ficar a chave na secretária; e eu sei que ela não costuma tirar a do quarto. Pensava nisso enquanto jantávamos, quando ouvi descer a criada: tomei imediatamente o meu partido; fingi que sangrava do nariz e saí. Dirigi-me em seguida à secretária, mas encontrei todas as gavetas abertas, e nem um papel escrito. Contudo, não há ocasião para os queimar nesta estação. Que faz ela das cartas que recebe? E o certo é que recebe muitas. Não tive o mínimo descuido tudo estava aberto, e procurei por toda a parte: mas nada ganhei com isso, salvo o convencer-me de que esse depósito precioso está nos seus bolsos. Como conseguir tirar-lhe as cartas? Desde ontem que me ocupo inutilmente a encontrar um meio: entretanto não posso vencer o desejo de o fazer. Lamento não possuir o talento dos larápios. Não é certo que tal talento devia entrar na educação de um homem que não desdenha as intrigas? Não seria agradável furtar a carta ou o retrato dum rival, ou tirar dos bolsos de uma hipócrita o que bastasse para a desmascarar? Mas os nossos pais não pensam em nada; e eu, por muito que pense em
tudo, não posso deixar de me convencer de que sou um desajeitado sem remédio. De qualquer forma, acabei por voltar à mesa, muito descontente. A minha bela acalmou, contudo, um pouco o meu mau humor com o interesse que tomou pela minha fingida indisposição, e eu não deixei de lhe afirmar que, já há algum tempo, sentia perturbações violentas que alteravam a minha saúde. Persuadida como está de ser ela a causa dessas perturbações, não é verdade que devia, de acordo com a sua consciência, fazer por acalmá-las? Mas, com toda a sua devoção, é pouco caridosa; recusa toda a esmola de amor, e essa recusa chega bem, ao que parece, para autorizar que lha roubem. Mas adeus; pois embora conversando com a minha amiga, não penso senão nessas malditas cartas. 27 de Agosto de 17 * *.
CARTA XLIII A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT Por que procurais, senhor, diminuir o meu reconhecimento? Por que desejais obedecer-me pela metade e de algum modo regateais um procedimento honesto? Não somente pedis muito, como pedis coisas impossíveis. É certo que amigos meus me falaram de vós e se o fizeram foi apenas por interesse por mim; e ainda que se tivessem enganado, nem por isso deixariam de o fazer com boa intenção. E, segundo a vossa proposta, eu reconheceria essa prova de dedicação da sua parte, denunciando-vos o seu segredo! Eu não devia ter-vos falado em tal, fazeis-me sentir neste momento! O que com qualquer outra pessoa seria uma ingenuidade, torna-se perante vós leviandade, que me levaria a cometer uma feia ação se acedesse ao vosso pedido. Apelo para vós mesmo, para a vossa honestidade: julgais-me capaz de semelhante procedimento? Achais em verdade que me deveríeis ter feito tal proposta? Não, sem dúvida; e estou certa de que, se refletirdes melhor, não voltareis a fazer esse pedido. O outro pedido que me fazeis (o de escrever) não é mais fácil de conceder; e se quiserdes ser justo, não é de mim que podereis queixarvos. Não desejo ofender-vos; mas com a reputação que adquiristes, e que, segundo a vossa própria confissão, merecereis pelo menos em parte, que mulher poderia confessar que mantinha correspondência convosco? E que mulher honesta pode determinar-se a fazer aquilo que seria obrigada a esconder?
Ainda se as vossas cartas fossem de tal modo que nunca eu tivesse de lamentar-me delas, que pudesse sempre justificar-me a meus olhos de as ter recebido! Talvez então o desejo de vos provar que é a razão e não o ódio que me guia os passos me levasse a esquecer esses poderosos motivos, e a fazer mais do que devia permitindo-vos que me escrevêsseis algumas vezes. Se na verdade o desejais tanto como o dizeis, de bom grado vos sujeitareis à única condição que me poderia levar a consentir-vos tal; e se sentis algum reconhecimento pelo que neste momento faço por vós, não adiareis mais a vossa partida. Permiti-me que a este respeito vos observe que recebestes esta manhã uma carta e que não a aproveitastes para anunciar a vossa partida a Madame de Rosemonde, como me havíeis prometido. Espero que presentemente nada poderá impedir-vos de cumprir a vossa palavra. Conto principalmente que não esperareis, para isso, o encontro que me pedis, ao qual não quero absolutamente prestar-me; e que, em vez da ordem que pretendeis ser-vos necessária, vos contentareis com a súplica que vos renovo. Adeus, senhor. 27 de Agosto de 17 * *.
CARTA XLIV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Podeis partilhar a minha alegria, minha boa amiga: sou amado; triunfei daquele coração rebelde. É em vão que ele dissimula ainda; a minha bem sucedida astúcia surpreendeu o seu segredo. Graças à atividade que empreguei, sei tudo o que me interessa: desde a noite, a feliz noite de ontem, encontro-me no meu elemento. Retomei o fio de toda a minha existência; descobri um duplo mistério de amor e de iniqüidade; gozarei dum e vingar-me-ei do outro; voarei de prazer em prazer. Só de o pensar sinto-me entusiasmado a tal ponto que é com algum custo que me lembro de quanta prudência me é necessária; a custo também conseguirei talvez pôr alguma ordem na narração que passo a fazer. Entretanto, experimentemos. Ontem mesmo, depois de lhe ter escrito a minha carta, recebi uma da celestial devota. Aqui a junto: a minha amiga verá que ela me dá, o menos desajeitadamente que pode, a permissão de lhe escrever. No entanto apressa a minha partida e eu senti que não podia adiá-la por mais tempo sem desvantagem para mim. Entretanto, atormentado pelo desejo de saber quem poderia ter-lhe escrito coisas desagradáveis a meu respeito, estava ainda incerto quanto ao partido que tomaria. Tentei subornar a criada de quarto e pretendi obter dela que me facultasse os bolsos da sua ama,
de que ela poderia apoderar-se facilmente de noite, e que lhe seria fácil tornar a colocar no mesmo lugar de manhã, sem despertar a menor suspeita. Ofereci dez luízes por esse trabalho ligeiro. Mas vi-me diante de uma hipócrita, escrupulosa ou tímida, que nem a minha eloqüência nem o meu dinheiro conseguiram vencer. Continuava a pregar-lhe, quando chegou a hora da ceia. Tive de a deixar, dando-me ainda por feliz por ela me prometer guardar segredo, com o qual, como decerto imagina, eu não podia contar. Nunca tive tamanho aborrecimento. Sentia-me comprometido; e a mim próprio censurei, durante toda a noite, a minha imprudente tentativa. Retirei-me para o meu quarto, não sem inquietação, e falei com o meu criado, que, na sua qualidade de amante feliz, devia, ter algum crédito. Pretendia eu, ou que ele obtivesse dessa rapariga aquilo que eu lhe tinha pedido, ou pelo menos que se assegurasse da sua reserva: mas ele, que de ordinário não duvida de nada, pareceu duvidar do êxito dessa negociação, e a tal respeito teve uma reflexão que me espantou pela sua profundeza. Disse-me ele: "O senhor sabe com certeza melhor do que eu que dormir com uma rapariga é só a gente conseguir que ela faça aquilo que lhe agrada; de aí a conseguirmos que ela faça aquilo que nós queremos vai uma grande distância." Le bon sens du Maraud quelquefois m'épouvante.* "Eu não me responsabilizo por esta", acrescentou ele, "tanto mais que tenho razões para supor que ela tem um amante, e o que consegui junto dela foi por não haver mais nada que fazer, aqui no campo. Se não fosse o meu apego ao serviço do senhor, só o teria conseguido uma vez". (É um verdadeiro tesouro este rapaz!) "Quanto ao segredo", acrescentou ele ainda, "de que serve fazer que ela o prometa, se não arrisca nada em nos enganar? Tornar a falar-lhe nisso é o mesmo que dar-lhe conta da importância da coisa, e daí dar-lhe mais vontade de meter tudo no bico à senhora". Quanto mais eram justas estas reflexões, mais o meu embaraço *O bom senso de Maraud algumas vezes me apavorava.
aumentava; felizmente o maroto estava disposto para a conversa; e como eu tinha precisão dele, deixei-o tagarelar. Ao mesmo tempo que me contava a sua história com a rapariga, lá fui sabendo que o quarto que ela ocupa é separado do da senhora só por um tabique, que podia deixar ouvir qualquer ruído suspeito e que era no dele que se encontravam todas as noites. Desde logo formei o meu plano, comuniquei-lho, e executámolo com êxito. Esperei as duas da manhã; e então dirigi-me, como tínhamos combinado, ao quarto do encontro, levando luz comigo e com o pretexto de ter tocado várias vezes inutilmente. O meu confidente, que desempenha os seus papéis à maravilha, simulou uma pequena cena de surpresa, de desespero e de desculpa, a que pus termo mandando-
o aquecer água, de que fingi ter precisão; isto enquanto a escrupulosa camareira estava tanto mais envergonhada, quanto é certo que o patife, indo muito além dos meus projetos, a obrigara a uma toalete que a estação comportava, mas que de modo algum desculpava. Sentindo que quanto mais a rapariga fosse humilhada mais facilmente eu disporia dela, não lhe permiti mudar de situação nem de vestimenta; e depois de ter ordenado ao meu criado que me esperasse no meu quarto, sentei-me ao lado dela sobre a cama, que estava muito em desordem, e comecei a minha conversa. Eu tinha necessidade de manter o domínio que as circunstâncias me davam sobre ela; por isso conservei um sangue-frio que teria feito honra à castidade de Cipião; e sem tomar a menor liberdade com ela, o que, todavia, a sua frescura e a ocasião pareciam dar-lhe o direito de esperar, falei-lhe de negócios tão tranquilamente como o poderia fazer com um procurador. As minhas condições foram que eu guardaria fielmente segredo, contanto que no dia seguinte, à mesma hora pouco mais ou menos, ela me confiasse os bolsos da sua senhora. "Além disso", acrescentei, "eu ontem tinha-lhe oferecido dez luíses; hoje mantenho a oferta. Não quero abusar da sua situação". Tudo ficou combinado, como pode imaginar; retirei-me então e permiti ao par feliz que recuperasse o tempo perdido. O meu tempo, empreguei-o a dormir; e ao despertar, querendo ter um pretexto para não responder à carta da minha bela antes de ter revistado os seus papéis, o que só podia fazer na noite seguinte, decidime a ir à caça, no que ocupei quase todo o dia. Na volta, fui recebido com bastante frieza. Tive razão para supor que houvesse um pouco de melindre por eu mostrar tão pouco empenho em aproveitar o escasso tempo que me restava; principalmente depois da carta mais branda que me tinha sido escrita. Supu-lo assim, porque, tendo-me Madame de Rosemonde feito algumas censuras pela longa ausência, a minha, bela retrucou com um pouco de azedume: "Ah! Não censuremos ao senhor de Valmont que se entregue ao único prazer que pode encontrar." Lamentei-me da injustiça e aproveitei para assegurar às duas senhoras que me agradava tanto a sua companhia que por ela ia sacrificar uma carta de muito interesse que tinha a escrever. Acrescentei que, não podendo conciliar o sono desde algumas noites, quisera experimentar se a fadiga faria que eu o recuperasse; e os meus olhares explicavam com suficiente clareza o assunto da minha carta e a causa da minha insônia. Tive o cuidado de aparentar durante o serão uma doçura melancólica que me pareceu cair bem, e sob a qual eu mascarava a impaciência de ver chegar a hora que deveria revelarme o segredo que se obstinavam em esconder-me. Separamo-nos por fim, e algum tempo depois a fiel criada de quarto veio trazer-me o preço combinado do meu segredo.
Uma vez de posse deste tesouro, procedi ao inventário com a prudência que a minha amiga me conhece; pois era importante que tudo voltasse aos seus lugares. Primeiro deparei com duas cartas do marido, mistura indigesta de pormenores de processos e de tiradas de amor conjugal, que tive a paciência de ler até ao fim e não encontrei uma palavra que me dissesse respeito. Pu-las no seu lugar, de mau humor; mas este abrandou quando me vieram às mãos os pedaços da minha famosa carta de Dijon, cuidadosamente reunidos. Felizmente tive a fantasia de a reler. Imagine a minha alegria, distinguindo nela os sinais, bem visíveis, das lágrimas da minha adorável devota. Confesso, cedi a um movimento de rapaz e beijei essa carta com um transporte de que já não me julgava suscetível. Continuei o feliz exame; encontrei todas as minhas cartas seguidas e por ordem de datas. E o que me surpreendeu mais agradavelmente ainda foi ter encontrado a primeira de todas, aquela que eu supunha ter-me sido devolvida por uma ingrata, fielmente copiada pela sua mão, e com uma ortografia alterada e trêmula, que testemunhava com suficiente clareza os doces debates do seu coração enquanto disso se ocupara. Até ali todo eu estava entregue ao amor; depressa este deu lugar à cólera. Quem imagina a minha amiga que queira perder-me aos olhos dessa mulher que eu adoro? Qual é a Fúria que supõe com maldade bastante para maquinar semelhante perfídia? A Marquesa conhece-a; é a sua amiga, a sua parenta; é Madame de Volanges. Não imagina que tecido de horrores a infernal megera lhe escreveu a meu respeito. Foi ela, ela unicamente quem perturbou a tranqüilidade dessa mulher angélica, é pelos seus conselhos, pelas suas opiniões perniciosas, que eu me vejo forçado a afastar-me; é a ela enfim, que eu sou sacrificado. Ah! Não duvide que é preciso seduzir-lhe a filha. Mas isso não é o bastante, é preciso perdê-la; e já que a idade dessa maldita mulher a põe ao abrigo dos meus golpes, é preciso feri-la no objeto das suas afeições. Quer ela então que eu regresse a Paris! É ela quem me obriga a isso! Seja, voltarei, mas há de gemer pelo meu regresso. Aborrece-me que seja Danceny o herói desta aventura. Tem um fundo de honestidade que será para nós um obstáculo. É certo que está apaixonado, e eu vejo-o muitas vezes; talvez se possa tirar partido dessas circunstâncias. A minha cólera fez-me esquecer que lhe devo ainda a narração do que se passou hoje. Reatemos. Esta manhã voltei a ver a minha sensível devota. Nunca a tinha achado tão bela. Tinha de ser assim; o mais belo momento duma mulher, o único em que ela pode produzir embriaguez de alma de que se fala sempre e que tão raras vezes se experimenta, é aquele em que, seguros do seu amor, não o estamos dos seus favores; e era precisamente o caso em que me encontrava. Talvez também a idéia de que ia ser privado do prazer de a ver servisse para a embelezar.
Enfim, à chegada do correio entregaram-me a sua carta de 27; e, enquanto a lia, hesitava ainda em saber se manteria a minha palavra; mas encontrei os olhos da minha bela, e ter-me-ia sido impossível recusar-lhe fosse o que fosse. Anunciei pois a minha partida. Um momento depois, Madame de Rosemonde deixou-nos sós; mas, estava eu ainda a quatro passos da feroz criatura, já ela se levantava com um aspecto horrorizado, dizendome: "Deixe-me, deixe-me, senhor; em nome de Deus, deixe-me." Esta súplica fervorosa, que denunciava a sua emoção, teve apenas o efeito de mais me encorajar. Já eu estava perto dela e lhe segurava as mãos, que ela juntara com uma expressão absolutamente comovente; já eu balbuciava ternas queixas, quando um demônio inimigo fez regressar Madame de Rosemonde. A tímida devota, que na verdade tem alguns motivos para receio, aproveitou o momento para se retirar. Ofereci-lhe todavia a mão, que ela aceitou; e, augurando bem esta benevolência, de que ela não usava havia muito tempo, ao mesmo tempo que recomeçava as minhas queixas procurava apertarlhe a sua. Primeiro ela quis retirá-la; mas, após uma instância mais viva, entregou-se sem grande resistência, ainda que sem responder nem a este gesto nem às minhas palavras. Chegado à porta dos seus aposentos, quis beijar-lhe a mão antes de a deixar. A defesa começou por ser franca; mas um pense que vou partir, pronunciado com muita ternura, tornou-a indecisa e frouxa. Mal eu tinha dado o beijo, a mão encontrou força para se escapar, e a bela entrou nos seus aposentos onde a esperava a criada de quarto. Aqui finda a minha história. Como presumo que a minha amiga esteja amanhã em casa da Marechala de..., onde com certeza não poderei encontrá-la; como suponho também que no nosso primeiro encontro teremos mais de um assunto a tratar, e principalmente o da pequena Volanges, que não perco de vista, tomei o partido de me fazer preceder por esta carta; e por muito longa que seja, não a fecharei senão no momento de a enviar ao correio, pois nas circunstâncias em que me encontro tudo pode depender de uma ocasião; e deixo-a agora para espiar o momento. P. S. - Às oito horas da noite. Nada de novo; nem o mais pequeno momento de liberdade; houve até a preocupação de o evitar. No entanto, tanta tristeza como a cedência permitia, pelo menos. Outro acontecimento que não pode ser indiferente é que estou encarregado dum convite de Madame de Rosemonde a Madame de Volanges para vir passar algum tempo ao castelo. Adeus, minha bela amiga; até amanhã ou depois de amanhã o mais tardar.
28 de Agosto de 17 * *.
CARTA XLV A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES O senhor de Valmont partiu esta manhã, senhora; pareceu-me que desejáveis tanto esse afastamento, que julguei do meu dever darvos conhecimento dele. Madame de Rosemonde lamenta muito seu sobrinho, cuja convivência, devemos convir, é agradável; passou toda a manhã a falar-me dele com a sensibilidade que lhe conheceis; não se cansava de o elogiar. Julguei dever-lhe a complacência de a ouvir sem a contradizer, tanto mais que é preciso confessar que ela tinha razão sobre muitos pontos. Demais, eu sentia que tinha a censurar-me ser a causa desta separação, e não espero poder compensá-la do prazer de que a privei. Sabeis que de meu natural tenho pouca alegria, e o gênero de vida que vamos levar aqui não é de molde a aumentá-la. Se eu não me tivesse conduzido em concordância com as vossas advertências, recearia ter procedido com um pouco de ligeireza, pois me sinto verdadeiramente penalizada com a dor da minha respeitável amiga; comoveu-me a um ponto que de bom grado teria juntado as minhas lágrimas às suas. No presente momento vivemos na esperança de que aceiteis o convite que o senhor de Valmont deve fazer-vos, da parte da Madame de Rosemonde, de virdes passar algum tempo em casa dela. Espero que não duvidareis do prazer que teria em ver-vos aqui; deveis-me na verdade essa recompensa. Ficaria muito contente de aproveitar essa ocasião para tomar conhecimento mais amplo com Mademoiselle de Volanges, e para de mais perto vos poder convencer dos sentimentos respeitosos, etc. 29 de Agosto de 17 * *.
CARTA XLVI O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES Que foi que lhe aconteceu, minha adorável Cecília? Que circunstância pôde causar em si uma mudança tão rápida e tão cruel? Que fez dos seus juramentos de nunca mudar? Ontem ainda, repetia-os com tanto prazer! Quem teria podido hoje fazê-los esquecer? Debalde faço exame de consciência; não posso achar em mim a causa, e tenho horror em a procurar em si. Ah! não suspeito que a Cecília seja leviana
ou goste de enganar; e mesmo neste momento de desespero, nenhuma suspeita ultrajante conspurcará a minha alma. No entanto, por que fatalidade não é já a mesma? Não, cruel, já não é a mesma! A terna Cecília, a Cecília que eu adoro, e de quem recebi as juras, não teria evitado os meus olhares, não teria contrariado o acaso feliz que me colocou junto dela; ou, se qualquer razão que eu não posso conceber a tivesse obrigado a tratar-me com tamanho rigor, não teria ao menos desdenhado dizer-me o motivo. Ah! minha Cecília, não sabe, não saberá nunca o que me fez sofrer hoje, o que sofro ainda neste momento. Julga pois que eu possa viver e não ser amado por si? No entanto, quando lhe pedi uma palavra, uma única palavra, para dissipar os meus receios, em lugar de me responder, fingiu que tinha receio de ser ouvida; e esse obstáculo que então não existia, fê-lo a Cecília aparecer nesse momento, pelo lugar que escolheu entre os convidados. Quando, forçado a deixá-la, lhe perguntei a hora a que poderia voltar a vê-la amanhã, fingiu ignorá-la, e foi preciso que Madame de Volanges ma indicasse. Assim esse momento sempre tão desejado que deve aproximar-nos, amanhã só fará nascer em mim inquietação; e o prazer de a ver, até agora tão caro ao meu coração, será substituído pelo receio de lhe ser importuno. Sinto que já esse receio me detém, e não ouso falar-lhe do meu amor. Aquele amo-o, que eu gostava tanto de repetir quando o ouvia, essa palavra tão doce, que bastava para a minha felicidade, não oferece para mim agora, se a Cecília está mudada, mais do que a imagem do desespero eterno. Não posso crer todavia que esse talismã do amor tenha perdido todo o seu poderio, e experimento servir-me dele ainda,. Sim, minha Cecília amo-a. Repita pois comigo esta expressão da minha felicidade. Pense que me habituou a ouvi-la, e que privar-me dela é condenar-me a um tormento que, tal como o meu amor, só acabará com a minha vida. 29 de Agosto de 17 * *.
CARTA XLVII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Não a verei ainda hoje, minha bela amiga, e aqui estão as minhas razões, que lhe peço receba com indulgência. Ontem em vez de fazer diretamente a viagem de regresso, parei em casa da Condessa de..., cujo castelo se encontrava quase no meu caminho, e a quem pedi de jantar. Só cheguei a Paris por volta das sete horas, e desci na Ópera, onde pensei que a Marquesa poderia estar.
Finda a ópera, fui ao salão para voltar a ver as minhas amigas; lá encontrei a minha velha Emília, rodeada de uma corte numerosa, tanto de mulheres como de homens, a quem ela dava de cear nessa mesma noite em P... Mal eu me tinha reunido à sociedade, fui rogado para assistir à ceia, por aclamação. Aos rogos de todos juntaram-se os de uma figurinha gorda e baixa que me algaraviou um convite em francês da Holanda, e que reconheci como verdadeiro herói da festa. Aceitei. Pelo caminho, soube que a casa a que nos dirigíamos era o preço convencionado das bondades de Emília para aquela figura grotesca, e que a ceia era um verdadeiro banquete de núpcias. O homenzinho não cabia em si de contente, na expectativa da felicidade que ia gozar. Pareceu-me tão satisfeito, que me deu vontade de perturbar a sua alegria; o que de fato fiz. A única dificuldade que tive foi decidir Emília, a quem a riqueza do burgomestre tornava um pouco escrupulosa. Acabou por se prestar, contudo, depois de algumas combinações, ao projeto, que lhe comuniquei, de encher de vinho aquele pequeno tonel de cerveja, e de o pôr assim fora de combate por toda a noite. A idéia sublime que tínhamos formado de um bebedor holandês fez que empregássemos todos os meios conhecidos. O êxito foi tão grande, que à sobremesa já ele não tinha força para segurar o copo; mas a caridosa Emília e eu engorgitávamo-lo o mais que podíamos. Por fim caiu para debaixo da mesa, numa bebedeira tal que deve pelo menos durar oito dias. Decidimo-nos então a recambiá-lo para Paris; e como ele não tinha levado a sua carruagem, mandei-o pôr na minha, e fiquei em seu lugar. Recebi em seguida os cumprimentos da assembléia, que se retirou pouco depois, e me deixou senhor do campo de batalha. Toda aquela alegria, e talvez o meu longo retiro, fizeram-me achar Emília tão desejável que lhe prometi ficar com ela até à ressurreição do holandês. Esta complacência da minha parte é o preço da que ela acaba de ter, servindo-me de secretária para escrever à minha bela devota, a quem achei divertido enviar uma carta escrita na cama e quase entre os braços de uma prostituta, interrompida mesmo por uma infidelidade completa, e na qual lhe fiz uma narração exata da minha situação e do meu procedimento. Emília, que leu a epístola, riu como uma louca, e espero que a Marquesa rirá também. Como é necessário que a minha carta leve o carimbo de Paris, envio-lha; deixo-a aberta. A minha amiga fará o favor de a ler, lacrar e mandar pôr no correio. Sobretudo não esqueça que não deve servir-se do seu sinete, nem mesmo de qualquer emblema amoroso; um cunho qualquer serve. Adeus, minha bela amiga. P. S. - Torno a abrir a minha carta; convenci Emília a ir ao Teatro dos Italianos... Aproveitarei esse intervalo para ir ver a minha amiga. Estarei
em sua casa às seis horas o mais tardar; e, se isso lhe convier, iremos juntos por volta das sete horas a casa de Madame de Volanges. Será decente que eu não demore o convite que tenho a fazer-lhe da parte de Madame de Rosemonde; além disso, serei feliz de voltar a ver a pequena Volanges. Adeus, ó belíssima dama. Desejo ter tanto prazer em abraçá-la, que o Cavaleiro possa sentir ciúmes. De P..., 30 de Agosto de 17 * *.
CARTA XLVIII O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL (Correio de Paris) É depois de uma noite tempestuosa, e durante a qual não pude conciliar o sono; é depois de ter estado sem cessar ou na agitação de um ardor febricitante, ou no total aniquilamento de todas as faculdades da minha alma, que venho procurar junto de vós senhora, uma calma de que tenho necessidade, e da qual todavia não espero poder gozar ainda. Na verdade, a situação em que me encontro ao escrever-vos dá-me a conhecer mais do que nunca o poder irresistível do amor. A custo consigo manter domínio suficiente sobre mim para pôr alguma ordem nas minhas idéias; e desde já prevejo que não terminarei esta carta sem ser obrigado a interrompê-la. Pois quê! Não poderei esperar que partilheis algum dia a perturbação que experimento neste instante? Ouso crer entretanto que, se pudésseis fazer uma idéia do que sinto, não ficaríeis inteiramente insensível. Podeis crer, senhora; a fria tranqüilidade, o sono da alma, imagem da morte, não levam à felicidade; só as paixões vivas podem conduzir lá. E apesar dos tormentos que me fazeis suportar, posso assegurarvos sem receio que, neste momento, sou mais feliz do que vós. Em vão sobre mim pesam os vossos rigores implacáveis: não impedirão que eu me abandone inteiramente ao amor e que esqueça, no delírio que em mim causa, o desespero a que me entregais. É assim que eu me quero vingar do exílio a que me condenastes. Nunca tive tanto prazer em escrever-vos. Nunca senti, nesta ocupação, uma emoção tão doce e todavia tão viva. Tudo parece aumentar a minha exaltação: o ar que respiro é pleno de volúpia; até a mesa sobre que vos escrevo, consagrada pela primeira vez a este uso, se torna para mim o altar sagrado do amor.
Como vai embelezar-se a meus olhos, por ter traçado sobre ela o juramento de vos amar sempre! Perdoai, suplico-vos, a desordem dos meus sentidos! Eu deveria talvez abandonar-me menos a transportes que não partilhais. Preciso deixar-vos por um momento para dissipar uma embriaguez que aumenta a cada instante, e que se torna mais forte do que eu. Volto a vós, senhora, e volto sem dúvida com o mesmo fervor. Entretanto o sentimento da felicidade fugiu para longe de mim, dando lugar ao das privações cruéis. De que me serve falar-vos dos meus sentimentos, se procuro em vão os meios de vos convencer? Após tantos e tão repetidos esforços, a confiança e a força abandonam-me ao mesmo tempo. Se imagina ainda os prazeres do amor, é para sentir mais vivamente o pesar de ser deles privado. Não vejo outro recurso que o da vossa indulgência, e sinto demasiado, neste momento, quanto dela tenho necessidade para esperar obtê-la. Entretanto, nunca o meu amor foi mais respeitoso, nunca ele deveu ofender-vos menos. É de tal maneira, ouso dizê-lo, que a virtude mais severa não poderia ter qualquer receio dele; mas eu próprio temo falar-vos por mais tempo do sofrimento que sinto. Certo de que o ente que o causa não o partilha, não devo ao menos abusar das suas bondades; e seria fazê-lo se empregasse mais tempo a descrever esta dolorosa imagem. Não tomo mais do que o de suplicar-vos uma resposta, e que não duvideis nunca da verdade dos meus sentimentos. Escrita de P..., datada de Paris, 30 de Agosto de 17* *.
CARTA XLIX CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Sem ser leviana nem gostar de enganar, basta-me, senhor, ser esclarecida sobre o meu procedimento para sentir a necessidade de o mudar; prometi esse sacrifício a Deus, até poder oferecer-lhe também o dos meus sentimentos por vós, que o estado religioso em que vos encontrais torna mais criminosos ainda. Sinto bem que isso me fará sofrer, e não vos esconderei mesmo que desde anteontem tenho chorado todas as vezes que penso em vós. Mas espero que Deus me fará a graça de me dar a força necessária para vos esquecer, como lhe peço de manhã à noite. Espero mesmo da vossa amizade, e da vossa honestidade, que não tentareis perturbar-me na boa resolução que me inspirou, e na qual procuro manter-me. Peço, por conseqüência, que tenhais a bondade de não voltar a escrever-me, tanto mais que vos previno de que não responderei, e que me forçaríeis a avisar a Mamã de tudo o que se passa: o que me privaria absolutamente do prazer de vos ver.
Não deixarei de conservar por vós toda a dedicação que se possa ter sem que nisso haja algum mal; e é de toda a minha alma que vos desejo toda a espécie de felicidade. Sinto bem que deixareis de amar-me tanto, e que em breve amareis talvez outra melhor do que eu. Mas isso será mais uma penitência da falta que eu cometi ao dar-vos o meu coração, que eu devia dar só a Deus, e a meu marido quando o tiver. Espero que a misericórdia divina tenha piedade da minha fraqueza, e que não me dê sofrimentos que eu não possa suportar. Adeus, senhor; posso assegurar-vos que, se me fosse permitido amar alguém, não amaria outro além de vós. Mas eis tudo o que eu posso dizer, e talvez seja mais do que deveria. 31 de Agosto de 17 * *.
CARTA L A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT É então desta maneira, senhor, que correspondeis às condições que vos pus para receber algumas vezes cartas vossas? E posso eu não ter de que me queixar, quando nelas não me falais senão de um sentimento ao qual eu recearia ainda entregar-me, mesmo que o pudesse fazer sem ferir todos os meus deveres ? Aliás, se eu necessitasse de novas razões para conservar esse receio salutar, parece-me que as poderia encontrar na vossa última carta. De fato, no próprio momento em que julgais fazer a apologia do amor, que fazeis, pelo contrário, senão mostrar-me as temíveis tempestades a que ele dá lugar? Quem poderá desejar uma felicidade adquirida à custa da razão, e cujos prazeres pouco duráveis são pelo menos seguidos pelos pesares, quando o não são pelos remorsos? Vós próprio, em quem o hábito desse delírio perigoso deve diminuir-lhe o efeito, não sois obrigado a confessar que ele se torna mais forte que vós, e não sois o primeiro a queixar-vos da perturbação involuntária que ele em vós causa? Que horrível devastação não produziria ele num coração jovem e sensível, que aumentaria o seu poder pela grandeza dos sacrifícios que seria obrigado a fazer-lhe? Julgais, senhor, ou fingis julgar, que o amor conduz à felicidade; e eu persuado-me a tal ponto de que ele me tornaria desgraçada, que desejaria não ouvir nunca pronunciar o seu nome. Afigura-se-me que só o falar dele altera a tranqüilidade; e é tanto por gosto como por dever que vos peço que guardeis silêncio a tal respeito. No fim de contas, deve ser-vos fácil presentemente concederme o que vos peço. De regresso a Paris, encontrareis aí bastas ocasiões de esquecer um sentimento que deve o seu nascimento talvez apenas
ao hábito de vos ocupardes de tais assuntos, e a sua força à ociosidade do campo. Nesse mesmo lugar onde estais, não me vistes tantas vezes com indiferença? Podereis dar aí um passo sem encontrardes um exemplo da vossa facilidade em mudar, e não estais aí rodeado de mulheres, que, todas mais amáveis do que eu, têm talvez mais direito às vossas homenagens? Não tenho a vaidade que é censurada ao meu sexo; tenho ainda menos essa falsa modéstia que é apenas um refinamento do orgulho; e é de muito boa fé que vos digo aqui que reconheço em mim muito poucos meios de agradar: mas ainda que dispusesse de todos, não os julgaria suficientes para vos chamar a atenção. Pedir-vos que não vos ocupeis de mim é apenas rogar-vos que façais hoje o que já fizestes o que com toda a certeza faríeis dentro de pouco tempo, ainda que eu vos pedisse o contrário. Esta verdade, que eu não perco de vista, seria, por si só, uma razão bastante forte para não querer ouvir-vos. Tenho mil outras razões ainda: mas sem entrar nessa longa discussão, limito-me a suplicar-vos, como já fiz, que não volteis a falar-me num sentimento que eu não devo atender, e ao qual devo ainda menos responder. 1 de Setembro de 17* *.
SEGUNDA PARTE
CARTA LI A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Na verdade, Visconde, é insuportável. Trata-me com tanta ligeireza como se eu fosse sua amante. Sabe que acabei por me zangar, e que estou neste momento com um humor horrível? Como! O Visconde precisa ver Danceny amanhã de manhã; sabe como é importante que eu lhe fale antes dessa entrevista; e sem se inquietar muito, deixa que eu o espere todo o dia, para correr atrás sei lá de quê! É o senhor o causador de que eu tenha chegado indecentemente tarde a casa de Madame de Volanges e de que todas as senhoras de certa idade me tenham achado maravilhosa. Foime necessário estragá-las com mimos toda a noite para as apaziguar: pois ninguém se deve zangar com as mulheres de certa idade; são elas que fazem a reputação das novas. Deu já uma hora da manhã, e em lugar de me deitar, e morro de vontade de o fazer, é preciso que lhe escreva uma longa carta, que vai redobrar o meu sono pelo aborrecimento que ela me vai causar. Pode dar-se por feliz de eu não ter tempo para lhe ralhar mais. Não vá
julgar por isso que lhe perdôo; é só porque estou com muita pressa. Escute, pois, que vou despachar-me. Por pouco que o Visconde seja hábil, tem de ouvir amanhã as confidências de Danceny. O momento é favorável para a confiança: é o momento da desgraça. A pequena foi à confissão; disse tudo, como uma criança; e depois ficou atormentada a tal ponto com medo do diabo, que quer romper absolutamente. Contou-me todos os seus pequenos escrúpulos, com uma vivacidade que me deu a perceber quanto o medo lhe tinha subido à cabeça. Mostrou-me a carta de rompimento, que é um verdadeiro sermão. Tagarelou uma hora comigo, sem me dizer uma palavra que tivesse senso comum. Mas nem por isso me deixou menos confusa; pois o Visconde imagina que eu não podia falar abertamente a uma cabecinha a tal ponto transtornada. Pude entretanto entender, no meio de toda aquela tagarelice, que ela não gosta menos do seu Danceny; notei mesmo que ela lança mão de um daqueles recursos que ao amor nunca faltam, e a que a rapariguinha se presta de boa vontade, enganando-se a si mesma. Atormentada pelo desejo de se ocupar do seu namorado, e pelo receio de ser condenada ocupando-se dele, imaginou rogar a Deus que lho faça esquecer e, como renova esse rogo a cada instante do dia, encontra o meio de pensar nele constantemente. Com qualquer que estivesse mais usado que Danceny, este pequeno acontecimento seria talvez mais favorável que contrário, mas o rapaz é tão lamecha que, se não o ajudarmos, ser-lhe-á necessário tanto tempo para vencer os mais ligeiros obstáculos que não nos deixará o de efetuarmos o nosso projeto. O Visconde tem razão; é pena, e estou tão aborrecida com isso como o senhor, que seja ele o herói desta aventura. Mas que quer? O que está feito está feito; e a culpa é sua. Pedi que me mostrasse a resposta dele; fez-me pena. Danceny apresenta-lhe razões até perder o fôlego, para lhe provar que um sentimento involuntário não pode ser um crime; como se não deixasse de ser involuntário, no momento em que se deixa de o combater! Esta idéia é tão simples, que até à pequena ocorreu. Ele queixase da sua infelicidade de uma forma bastante comovente, mas a sua dor é tão doce e parece tão forte e tão sincera, que julgo possível que uma mulher que encontra ocasião de desesperar um homem a tal ponto, e com tão pouco perigo, não seja tentada a divertir-se com semelhante fantasia. Por fim explica-lhe que não é monge, como a pequena supõe; e não há dúvida que é o que ele faz de melhor: pois, se chegassem tão longe na perfeição que se dessem inteiros ao amor monástico, seguramente os senhores Cavaleiros de Malta nos mereceriam a preferência. De qualquer forma, em vez de perder o meu tempo em raciocínios que poderiam comprometer-me, e talvez sem conseguir persuadi-la, aprovei o projeto de rompimento; mas disse-lhe que era
mais honesto, em semelhante caso, dizer as suas razões do que escrevêlas; que era também de uso entregar as cartas e as outras bagatelas que possam ter-se recebido. E simulando assim partilhar os pareceres da pequena, decidi-a a marcar um encontro com Danceny. Combinamos imediatamente a maneira, e encarreguei-a de resolver a mãe a sair sem a filha; é para amanhã à tarde o instante decisivo. Danceny já está instruído; mas, por Deus, se o Visconde achar ocasião, decida esse belo pastor a ser menos lânguido; e ensine-lhe tudo, que a verdadeira maneira de vencer os escrúpulos é não deixar nada a perder a quem os tem. Depois, para que essa ridícula cena não se renovasse, não deixei de levantar algumas dúvidas no espírito da pequena sobre o segredo de confissão; e garanto-lhe que neste momento ela paga o medo que me meteu com o que ela tem de que o confessor vá dizer tudo à mãe. Espero que depois de eu ter podido falar com ela mais uma vez ou duas, já não irá contar assim as suas tolices ao primeiro que aparecer.* * O leitor deve ter adivinhado há muito tempo, pelos costumes de Madame de Merteuil, como ela respeitava pouco a religião. Poderia ter-se suprimido todo este parágrafo, mas julgou-se que, mostrando os efeitos, não se devia deixar de dar a conhecer as causas.
Adeus Visconde; tome posse de Danceny, e seja o seu guia. Seria vergonhoso que não fizéssemos o que nos apetece de duas crianças. Se isso nos for mais difícil do que ao princípio supusemos, lembremo-nos, para animar o nosso zelo, o Visconde, que se trata da filha de Madame de Volanges, e eu, que ela virá a ser a mulher de Gercourt. Adeus. 2 de Setembro de 17* *.
CARTA LII O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Proibis-me, senhora, que vos fale do meu amor; mas onde encontrar a coragem necessária para vos obedecer? Ocupado unicamente por um sentimento que deveria ser tão, doce, e que tornais tão cruel; entristecendo no exílio a que me condenastes; vivendo apenas de privações e de saudades; entregue a sofrimentos tanto mais dolorosos quanto me recordam sem cessar a vossa indiferença; ser-meá necessário ainda perder a consolação única que me resta? E posso eu ter outra que não seja a de vos abrir algumas vezes uma alma que encheis de perturbação e de amargura? Desviareis os vossos olhos para não ver as lágrimas que me obrigais a derramar? Recusareis até a homenagem dos sacrifícios que exigis? Não seria, no entanto, mais digno de vós, da vossa alma honesta e meiga, lamentar um infeliz, que o é apenas por vossa causa, em vez
de pretenderes agravar as suas penas, por uma defesa ao mesmo tempo injusta e rigorosa? Fingis recear o amor, e não quereis ver que sois vós unicamente a causadora dos males que lhe censurais. Ah! este sentimento é penoso, por certo, quanto o objeto que o inspira não lhe corresponde; mas onde encontrar a felicidade, se um amor recíproco não for bastante para a conseguir? A amizade terna, a confiança tranqüila e sem reserva, as penas suavizadas, os prazeres aumentados, a esperança exultante, as recordações deliciosas, onde encontrar tudo isso senão no amor? Caluniais esse sentimento, vós que, para gozar de todos os bens que ele vos oferece, não tendes mais que cessar de vos furtardes a ele; quanto a mim, esqueço as penas que sofro, para me ocupar em defendê-lo. Obrigais-me também a defender-me a mim próprio; pois ao passo que eu consagro a minha vida a adorar-vos, vós passais a vossa a procurar em mim motivos de agravo; supúnheis-me já leviano e falso; e abusando, contra mim, de alguns erros que eu próprio vos confessei, deleitais-vos a confundir o que eu era então como o que eu sou agora. Não contente de me haverdes entregue ao tormento de viver longe de vós, acrescentais a isso uma zombaria cruel sobre prazeres aos quais sabereis bem a que ponto me tornastes insensível. Não acreditais nem nas minhas promessas, nem nos meus juramentos. Pois bem! Resta-me uma garantia a oferecer-vos, que ao menos não se vos tornará suspeita: sois vós mesma. Não vos peço senão que vos interrogueis de boa fé; se não acreditais no meu amor, se duvidais por um momento de ser a única a reinar na minha alma, se não estais segura de terdes conquistado este coração, até aqui demasiado volúvel, consinto em expiar a pena que cabe a este erro; soltarei gemidos, mas não farei qualquer súplica. Mas se, ao contrário, fazendo justiça a nós dois, fordes obrigada a convir no vosso foro íntimo que não tendes, que não tereis nunca uma rival, não volteis a obrigar-me, suplico-vos, a combater quimeras, e deixai-me a consolação de saber que não duvidais dum sentimento que, na verdade, não acabará, não pode acabar senão com a minha vida. Permiti-me, senhora, que vos rogue uma resposta positiva a este ponto da minha carta. Se eu abandono entretanto aquela época da minha vida que parece prejudicar-me tão cruelmente a vossos olhos, não é porque, em caso de necessidade, me faltassem razões para a defender. Que fiz eu, no fim de contas, além de não oferecer resistência ao turbilhão que me envolvia? Entrei no mundo, jovem e sem experiência; passei, por assim dizer, de mão em mão, por uma multidão de mulheres, que se apressaram todas a antecipar pela sua facilidade uma opinião que elas sentiam dever ser-lhes desfavorável. Deveria ser eu pois a dar o exemplo de uma resistência que me não era oposta? Ou deveria castigar-me a mim próprio por um momento de irreflexão, e que em muitos casos fora provocado, por uma constância deveras inútil, e na qual todos veriam um motivo de ridículo? Pois qual é o meio
para justificar a vergonha de uma escolha senão um pronto rompimento? Mas, posso dizê-lo, essa embriaguez dos sentidos, talvez mesmo esse delírio da vaidade, não penetrou o meu coração. Nascido para o amor, a intriga poderia distraí-lo; não bastava para tomar inteira posse dele; rodeado de seres sedutores, mas desprezíveis, nenhum deles ia até à minha alma. Ofereciam-me prazeres, eu buscava virtudes. E, porque era delicado e sensível, eu próprio por fim me julguei inconstante. Foi ao ver-vos que me senti iluminado; depressa compreendi que o encanto do amor se enraizava nas qualidades da alma; que só elas podiam causar-lhe o excesso e justificá-lo. Senti enfim que me era igualmente impossível deixar de vos amar e amar outra que não fôsseis vós. Eis, senhora, como é este coração ao qual temeis entregar-vos e sobre a sorte do qual tendes de pronunciar-vos. Mas qualquer que seja o destino que lhe reserveis, não mudareis nada aos sentimentos que o prendem a vós; são inalteráveis como as virtudes que os fizeram nascer. 3 de Setembro de 17* *.
CARTA LIII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Estive com Danceny, mas apenas obtive dele meia confidência; teimou, sobretudo, em calar-me o nome da pequena Volanges, de quem me falou como de uma mulher muito atilada, e até um pouco devota; a propósito, contou-me com bastante verdade a sua aventura, e sobretudo o último acontecimento. Excitei-o o mais que pude e gracejei bastante acerca da sua delicadeza e dos seus escrúpulos; mas ele pareceu manter-se firme, não posso responder por ele. A este respeito poderei dizer alguma coisa mais depois de amanhã. Levo-o amanhã a Versailles e durante o caminho ocupar-me-ei em o sondar. O encontro marcado para hoje dá-me também alguma esperança; pode dar-se o caso de tudo se passar como desejamos; e talvez no presente momento nos reste apenas arrancar-lhe a confissão e recolher as respectivas provas. Esta tarefa será mais fácil à Marquesa do que a mim, pois a pequena é mais confiante, ou, o que vem a dar no mesmo, mais tagarela do que o seu discreto apaixonado. Entretanto farei o que me for possível. Adeus, minha bela amiga, estou com muita pressa; não a verei nem esta noite, nem amanhã. Se por seu lado souber alguma coisa, escreva-me uma palavra no meu regresso. Virei com certeza dormir a Paris.
3 de Setembro de 17* *, à noite.
CARTA LIV A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Oh! sim! é de fato junto de Danceny que há alguma coisa a saber! Se ele lha disser, gabou-se. Não conheço ninguém tão tolo em coisas de amor e cada vez me censuro mais pelas bondades que temos para ele. Saiba o Visconde que cheguei a julgar-me comprometida por culpa dele. E pensar que tudo resultou em pura perda! Oh! Hei-de vingar-me, prometo-lho. Quando cheguei ontem a casa de Madame de Volanges para a levar comigo, ela não queria sair; sentia-se incomodada. Foi-me necessária toda a minha eloqüência para a persuadir, e via chegar o momento de Danceny aparecer sem que tivéssemos saído, o que seria tanto mais aborrecido quanto Madame de Volanges lhe dissera na véspera que não estaria em casa. Eu e a filha estávamos sobre brasas. Saímos por fim; e a pequena apertou-me a mão tão afetuosamente ao despedirmo-nos que apesar do seu projeto de rompimento, de que ela julgava de boa fé ocupar-se ainda, augurei maravilhas para essa noite. Não tinha chegado ao fim das minhas inquietações. Havia apenas meia hora que estávamos em casa de Madame de..., quando Madame de Volanges se sentiu de fato mal, mas seriamente mal; e, como era razoável, quis voltar para casa. Eu desejava-o tanto menos quanto receava, se surpreendêssemos os dois jovens, como tudo indicava, que as minhas instâncias junto da mãe para que saísse se lhe tornassem suspeitas. Tomei o partido de a assustar sobre o seu estado de saúde, o que felizmente não é difícil; e consegui retê-la durante hora e meia, sem consentir em levá-la a casa, fingindo ter medo do movimento perigoso da carruagem. Regressamos por fim à hora combinada. Pelo ar envergonhado que notei ao chegar, confesso que esperei que ao menos as minhas canseiras não tivessem sido baldadas. O desejo que eu tinha de ser informada fez que ficasse ao pé de Madame de Volanges, que se deitou logo, e depois de termos ceado junto do seu leito, deixámo-la muito cedo, com o pretexto de que ela necessitava repousar; e passamos aos aposentos da filha. Esta fez tudo o que eu esperava dela; escrúpulos desvanecidos, novas juras de amor eterno, etc., de boa vontade executou o programa; mas o parvo do Danceny não avançou de uma linha o ponto em que antes se encontrava. Oh! com aquele pode haver amuos; as reconciliações não são perigosas.
A pequena assegura todavia que ele queria mais, mas que ela soube defender-se. Ia jurar que ela se gaba, ou que o desculpa; tenho mesmo quase a certeza. De fato, tive a fantasia de querer saber por experiência própria de que defesa é ela capaz; e, simples mulher, de conversa em conversa, dei-lhe volta à cabeça a um ponto... Enfim, o Visconde pode crer, não conheço ninguém mais suscetível de uma surpresa dos sentidos. É na verdade digna de ser amada, esta querida pequena! Merecia outro amante; terá pelo menos uma boa amiga, pois estou-lhe sinceramente dedicada. Prometi-lhe instruí-la e creio que cumprirei a minha palavra. Muitas vezes sinto a necessidade de ter uma mulher por confidente, e gostaria mais que fosse esta que qualquer outra; mas nada posso fazer, enquanto ela não for... aquilo que é preciso que seja; e esta é mais uma razão para estar aborrecida com Danceny. Adeus, Visconde; não venha a minha casa amanhã, a menos que seja de manhã. Cedi às instâncias do Cavaleiro para uma noitada no nosso ninho. 4 de Setembro de 17 * *.
CARTA LV CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Tinhas razão, minha querida Sofia; as tuas profecias são mais certas do que os teus conselhos. Danceny, como tinhas previsto, foi mais forte que o confessor, que tu e do que eu própria; e eis-nos voltados exatamente ao ponto em que estávamos. Ora! Não me arrependo disso; e se tu me censurares, será por não saberes o prazer que se sente em amar Danceny. A ti é muito fácil dizeres o que se deve fazer, nada to impede; mas se tivesses experimentado como nos faz mal a tristeza de alguém que se ama, como a sua alegria se torna nossa e como é difícil dizer não quando é sim que se deseja dizer, não te admiravas de nada; eu mesma, que o senti, e que o senti vivamente, não compreendo ainda. Julgas tu, por exemplo, que eu possa ver chorar Danceny sem chorar eu também? Afirmo-te que isso me é impossível; e quando ele está contente, sou feliz com ele. Podes dizer o que entenderes; o que se diz não altera o que é, e eu estou certa de que é assim. Queria ver-te no meu lugar... Não, não é isso que eu quero dizer, pois com certeza não desejaria ceder o meu lugar a ninguém; mas queria que tu amasses assim alguém; não seria só para que me entendesses melhor, e me ralhasses menos; mas porque assim tu serias mais feliz, ou, para melhor dizer, só então começarias a ser feliz.
Os nossos divertimentos, os nossos risos, tudo isso, bem vês, são brincadeiras de crianças; delas nada fica depois de passarem. Mas o amor, ah! o amor!. . uma palavra, um olhar, somente o sabermos que ele está ali, crê: isso é a felicidade. Quando vejo Danceny, não desejo mais nada; quando não o vejo, só o desejo a ele. Não sei porque isto é assim; mas dir-se-ia que tudo de que eu gosto se lhe assemelha. Quando ele não está comigo, penso nele; e quando estou sozinha, por exemplo, sou ainda feliz; fecho os olhos, e logo julgo que o estou vendo; lembro-me das suas palavras, e creio ouvi-lo; isto faz-me suspirar; e depois sinto um fogo, uma agitação... Não posso estar no mesmo lugar. É como um tormento, e esse tormento dá um prazer inexprimível. Julgo até que quando uma vez se sente amor, esse sentimento se espalha até sobre a amizade. No entanto, a que eu tenho por ti não mudou; é sempre como no convento: mas isto que eu digo, sinto-o com Madame de Merteuil. Parece-me que a minha amizade por ela se parece mais com o amor que sinto por Danceny do que com a minha amizade por ti, e algumas vezes desejaria que ela fosse ele. Isto vem talvez de não ser uma amizade de infância como a nossa; ou talvez de os ver tantas vezes juntos, o que faz com que me engane. Enfim, o que é certo é que os dois me tornam muito feliz; e no fim de contas, não creio que haja grande mal no que eu faço. Por isso só peço que me deixem ficar como estou; e só a idéia do meu casamento me faz sofrer; pois se o senhor de Gercourt é como me disseram, e não duvido de que o seja, não sei o que será de mim. Adeus, minha Sofia; sou sempre a tua amiga muito terna. 4 de Setembro de 17 * *.
CARTA LVI A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT De que vos serviria, senhor, a resposta que me pedistes? Crer nos vossos sentimentos não será uma razão mais para os temer? E sem atacar nem defender a sinceridade deles, não me basta, não deve bastar-vos a vós mesmo, saber que não devo nem quero corresponderlhes? Suponho que me tendes amor verdadeiro (e é apenas para não voltar a falar neste assunto que eu consinto nesta suposição); seriam por isso menos insuperáveis os obstáculos que nos separam? E teria eu outra coisa a fazer que desejar-vos uma rápida vitória sobre esse amor, e principalmente ajudar-vos com todo o meu poder, apressando-me a tirar-vos toda a esperança?
Vós mesmo concordais que esse sentimento é penoso quando o objeto que o inspira não lhe corresponde. Ora, sabeis suficientemente que me é impossível corresponder-lhe e, ainda que essa infelicidade me acontecesse, eu seria mais digna de lástima, sem que fôsseis por isso mais feliz. Espero que me estimareis o bastante para que não duvideis disso por um momento. Deixai pois, rogo-vos, deixai de pretender perturbar um coração ao qual a tranqüilidade é tão necessária; não me obrigueis a lamentar ter-vos conhecido. Querida e estimada por um marido que amo e respeito, os meus deveres e os meus prazeres reúnem-se numa só pessoa. Sou feliz e tenho obrigação de o ser. Se existem prazeres mais vivos, não os desejo; não quero conhecê-los. Haverá alguma coisa mais doce que estar em paz consigo mesma, ver decorrer dias serenos, adormecer tranqüila e despertar sem remorsos? Aquilo a que chamais felicidade é apenas um tumulto dos sentidos, uma tempestade das paixões, cujo espetáculo horroriza, mesmo quando o contemplamos da margem. Pois bem! Como afrontar tais tempestades? Como haverá quem possa aventurar-se a um mar coberto dos despojos de mil e mil naufrágios? E com quem? Não, senhor Visconde, eu fico na terra firme; são-me caros os laços que a ela me prendem. Poderia cortá-los, e não o faria; se eles não existissem, apressar-me-ia a forjá-los para que me prendessem. Por que seguis os meus passos? Por que vos obstinais nesse caminho? As vossas cartas, que deviam ser raras, sucedem-se com rapidez. Deviam ser prudentes, e nelas só falais do vosso louco amor. Envolveis-me na vossa idéia, mais do que o fazeis da vossa pessoa. Afastado sob uma forma, reproduzis-vos sob outra. As coisas que se vos pede que não digais, voltais a dizê-las de outra maneira. Tendes prazer em me confundir com raciocínios capciosos; mas furtais-vos às minhas razões. Não quero voltar a responder-vos, não vos responderei... De que maneira tratais as mulheres que seduzistes! Com que desprezo falais delas! Desejo acreditar que algumas o merecem: mas serão todas elas a tal ponto desprezíveis? Ah! sem dúvida, pois traíram os seus deveres para se entregarem a um amor criminoso. Desde esse momento, perderam tudo, até a estima daquele a quem tudo sacrificaram. É justo esse suplício, mas só a sua idéia faz tremer. Que me importa, afinal? Por que me ocuparei delas ou de vós? Com que direito perturbais a minha tranqüilidade? Deixai-me, não volteis a ver-me; deixai de me escrever, peçovos; exijo-o. Esta carta é a última que recebereis de mim. 5 de Setembro de 17 * *.
CARTA LVII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Encontrei a sua carta ontem à minha chegada. A sua cólera deu-me um prazer absoluto. A minha amiga não sentiria mais vivamente os desastres de Danceny, se estivesse diretamente interessada neles. É sem dúvida por vingança que habituais a enamorada Cecília a fazer-lhe pequenas infidelidades. A Marquesa é uma terrível pessoa! Sim, encanta-me esse modo de ver, e não me admira que se lhe resista menos que a Danceny. Enfim, sei tudo o que diz respeito a esse belo herói de romance! Deixou de ter segredos para mim. Tantas vezes lhe disse que o amor honesto era o bem supremo, que um sentimento valia mais que dez intrigas, que eu próprio, nesse momento, era um apaixonado tímido; mostrei-lhe, enfim, uma forma de pensar tão conforme à dele, que, encantado com a minha candura, disse-me tudo, e jurou-me uma amizade sem reservas. No entanto, não estamos mais avançados por isso com o nosso projeto. Primeiro, pareceu-me que, segundo o seu sistema, uma menina merece mais que a poupem do que uma mulher, porque tem mais a perder. Acha, sobretudo, que nada pode justificar um homem de pôr uma rapariga na necessidade de casar com ele ou de viver desonrada, quando a rapariga é infinitamente mais rica do que o homem, como no caso em que ele se encontra. A severidade da mãe, a candura da filha, tudo o intimida e o detém. A dificuldade não está em combater os seus raciocínios, por muito verdadeiros que sejam. Com um pouco de habilidade e ajudado pela paixão, depressa se conseguirá destruí-los; tanto mais que se prestam ao ridículo, e que se tem a seu favor a autoridade da experiência. Mas o que impede que se consiga com ele alguma coisa, é que ele se considera feliz como está. De fato, se os primeiros amores parecem, em geral, mais honestos, e, como é costume dizer-se, mais puros; se pelo menos são mais lentos na sua marcha, não é, como se pensa, por delicadeza ou timidez, é porque o coração, surpreso ante um sentimento desconhecido, se suspende por assim dizer a cada passo, para gozar do encanto que experimenta, e porque esse encanto tem tanto poder sobre um coração jovem, que o preenche a ponto de lhe fazer esquecer todo o prazer diferente. Isto é tão verdadeiro, que um libertino apaixonado, se um libertino o pode ser, desde o momento em que se apaixona, torna-se menos ávido de gozar; e que, enfim, entre o comportamento de Danceny com a pequena Volanges, e o meu com a severa Madame de Tourvel, há apenas a diferença do mais ou menos.
Seria necessário, para excitar o nosso jovem, maior número de obstáculos do que os que ele tem encontrado; sobretudo que lhe tivesse sido preciso rodear-se de mais mistério, pois o mistério conduz à audácia. Não ando muito longe de crer que a Marquesa nos prejudicou ao servi-lo tão bem; a sua manobra teria sido excelente com um homem usado, que tivesse apenas desejos; mas a minha amiga deveria ter previsto que para um homem novo, honesto e apaixonado o maior favor que lhe concedem é fazer dele a prova do amor; e que, por conseqüência, quanto mais ele está certo de ser amado, menos ativo será. Que fazer agora? Não sei; mas não creio que a pequena seja conquistada antes do casamento, e trabalhamos em pura perda. Isto aborrece-me, mas não lhe vejo remédio. Enquanto eu uso aqui a minha eloqüência, a Marquesa emprega melhor o seu tempo com o Cavaleiro. Isso faz-me pensar que me prometeu uma infidelidade em meu favor, tendo a sua promessa por escrito, e não quero servir-me dela como de um bilhete de La Châtrel. Concordo que o vencimento ainda não tenha chegado: mas seria generoso da sua parte não esperar por ele e por meu lado, pedirlhe-ei juros. Que diz a isto, minha bela amiga? Não está fatigada da sua constância? Esse Cavaleiro é assim tão maravilhoso? Oh! deixe-me entrar em funções; desejo forçá-la a concordar que, se lhe encontra algum mérito, é porque me esqueceu. Adeus, minha bela amiga; beijo-a tal como a desejo; desafio todos os desejos do Cavaleiro a terem tamanho ardor. 5 de Setembro de 17 * *.
CARTA LVIII O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL Que fiz eu para merecer, senhora, as censuras que me dirigis e a cólera que me testemunhais? A dedicação mais viva e todavia mais respeitosa, a submissão mais completa às vossas menores vontades; eis em duas palavras a história dos meus sentimentos e da minha conduta. Acabrunhado pelos sofrimentos dum amor infeliz, não tinha eu outro consolo além de poder ver-vos; haveis-me ordenado que me privasse dele: obedeci sem me permitir um murmúrio. Como preço desse sacrifício, haveis-me permitido que vos escrevesse, e hoje pretendeis tirar-me esse único prazer. Deverei deixá-lo arrebatar-me, sem tentar defendê-lo? Não, sem dúvida; pois não será caro ao meu coração sendo o único que me resta, e tendo-o recebido de vós? As minhas cartas, dizeis, são demasiado freqüentes! Pensai, peço-vos, que há dez dias que dura o meu exílio, que durante esse
tempo não passei um momento sem me ocupar de vós, e que entretanto recebestes apenas duas cartas minhas. Nelas só vos falo do meu amor! Pois que posso eu dizer, senão o que penso? Tudo o que pude fazer foi moderar-lhe a expressão; e, podeis crer, não vos deixei ver senão o que me foi impossível esconder-vos. Ameaçais-me por fim de não voltar a responder-me. Deste modo, ao homem que vos prefere a tudo, e que vos respeita mais ainda do que vos ama, não satisfeita de o tratardes com rigor, quereis ainda juntar a isso o desprezo! Porquê tais ameaças e tal cólera? Por que necessitais de tais sentimentos? Não estais segura de ser obedecida, mesmo nas vossas ordens injustas? Porventura me é possível contrariar qualquer dos vossos desejos, e não o provei já? Abusareis do domínio que tendes sobre mim? Depois de me terdes feito desgraçado, e de vos terdes tornado injusta, ser-vos-á assim tão fácil gozar dessa tranqüilidade que declarais ser-vos tão necessária? Não vireis a dizer um dia: "deixou-me senhora do seu destino, e fiz a sua desgraça; implorava os meus socorros, e olhei-o sem piedade"? Sabeis até onde pode chegar o meu desespero? Não. Para calcular a extensão dos meus males, seria preciso saber a que ponto vos amo, e não conheceis o meu coração. Sacrificais-me a quê? A quiméricos receios. E quem vo-los inspira? Um homem que vos adora; um homem sobre quem não deixareis nunca de exercer domínio absoluto. Que receais, que podeis recear dum sentimento que sereis sempre senhora de dirigir como vos aprouver? Mas a vossa imaginação cria monstros, e atribuís ao amor o horror que eles vos causam. Um pouco de confiança, e esses fantasmas desaparecerão. Um sábio disse que quem queira dissipar os seus receios não tem mais que aprofundar-lhes a causa. É principalmente no amor que esta verdade encontra a sua aplicação. Amai, e os vossos receios desvanecer-se-ão. No lugar dos objetos que vos horrorizam, encontrareis um sentimento delicioso, um amante terno e submisso; e todos os vossos dias, marcados pela felicidade, não vos deixarão outro pesar além de terdes perdido alguns na indiferença. Eu próprio, depois que, distanciado dos meus erros, existo apenas para o amor, lamento um tempo que supunha ter passado no meio de prazeres; e sinto que só a vós pertence tornar-me feliz. Mas, suplico-vos, que o prazer que encontro em escrever-vos não seja perturbado pelo receio e vos desagradar. Não quero desobedecer-vos: mas ajoelho-me perante vós, e reclamo a felicidade que quereis tirar-me, a única que me haveis deixado; e grito-vos: escutai as minhas súplicas, concedei um olhar às minhas lágrimas. Ah! senhora, recusar-me-eis tão pouco? 7 de Setembro de 17 * *.
CARTA LIX O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL Diga-me, se sabe, o que significa este desatino de Danceny. Que foi que aconteceu, e que perdeu ele? A sua bela aborreceu-se talvez do seu eterno respeito? É preciso ser justo, por menos qualquer pessoa acabaria por se aborrecer. Que vou eu dizerlhe esta noite, no encontro que ele me pediu, e que eu lhe concedi para ver o que daí resultaria? Seguramente não perderei o meu tempo a ouvir os seus lamentos, se isso não nos conduzir a nada. As queixas de amor não são boas de ouvir senão em recitativos obrigatórios, ou em árias de grande estilo. Diga-me pois de que se trata e que devo fazer; ou acabo por desertar, a fim de evitar o aborrecimento que prevejo. Poderei falar com a minha amiga esta manhã? Se estiver ocupada, pelo menos escreva-me uma palavra, e forneça-me as deixas do meu papel. Onde esteve a Marquesa ontem? Não consigo voltar a vê-la. Na verdade, não me valia a pena ter ficado em Paris no mês de Setembro. Decida-se, contudo, pois acabo de receber um convite muito insistente da Condessa de B... para a visitar no campo; e, como ela me manda dizer de modo bastante agradável, "seu marido possui o mais belo bosque do mundo, que conserva cuidadosamente para os prazeres dos seus amigos". Ora, a minha amiga sabe que eu tenho alguns direitos adquiridos sobre esse bosque; e irei vê-lo de novo se não lhe posso ser útil. Adeus; pense que Danceny estará em minha casa pelas quatro horas. 8 de Setembro de 17* *.
CARTA LX O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE VALMONT (Inclusa na precedente) Ah! senhor, estou desesperado, perdi tudo. Não ouso confiar ao papel o segredo das minhas mágoas: mas tenho necessidade de as expandir no seio de um amigo fiel e seguro. A que horas poderei vê-lo, e procurar junto do Visconde consolações e conselhos? Eu era tão feliz no dia em que lhe abri a minha alma!
Agora, que diferença! Tudo mudou para mim. O que eu sofro por mim próprio é ainda a menor parte dos meus tormentos; a minha inquietação sobre um objeto bem mais querido, eis o que não posso suportar. Mais feliz do que eu, o Visconde pode vê-la, e espero da sua amizade que não me recusará este favor: mas é preciso que eu lhe fale, que lhe diga de que se trata. Há de lamentar-me, socorrer-me; só tenho esperança no meu amigo. Sei que é sensível, que conhece o amor; e é o único a quem eu posso confiar-me; não me recuse o seu auxílio. Adeus, senhor; o único alívio que experimento na minha dor é o de pensar que me resta um amigo como o Visconde. Mande-me dizer, peço-lhe, a que horas poderei encontrá-lo. Se não for esta manhã, desejaria que fosse às primeiras horas da tarde. 8 de Setembro de 17* *.
CARTA LXI CECíLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Minha querida Sofia, lamenta a tua Cecília, a tua pobre Cecília, que é muito infeliz. A Mamã sabe tudo. Não percebo como pôde ela desconfiar de alguma coisa, mas a verdade é que descobriu tudo. Ontem à noite, a Mamã pareceu-me estar de mau humor; mas não dei ao caso grande atenção; e até, enquanto esperava que ela acabasse a sua paciência, conversei muito alegremente com Madame de Merteuil, que tinha ceado conosco, e falamos muito de Danceny. Mas parece-me que ninguém nos ouviu. Logo que ela se foi embora, retireime para o meu quarto. Estava a despir-me, quando a Mamã entrou e mandou sair a minha criada de quarto, pedindo-me em seguida a chave da minha secretária. O tom com que ela me fez esse pedido causou-me um tremor tão forte que apenas me podia ter em pé. Fingi que não a encontrava, mas por fim tive de obedecer. A primeira gaveta que ela abriu foi precisamente aquela onde estavam as cartas do Cavaleiro Danceny. Eu estava tão perturbada, que quando ela me perguntou o que aquilo era, não soube responder-lhe outra coisa senão que não era nada; mas quando a vi começar a ler a que estava ao de cima, só tive tempo para ir até uma poltrona, e sentime tão mal que perdi o conhecimento. Logo que voltei a mim, minha mãe, que tinha chamado a criada de quarto, retirou-se, dizendo-me que me deitasse. Tinha levado todas as cartas de Danceny. Tremo todas as vezes que penso que é preciso aparecer diante dela. Toda a noite não fiz outra coisa senão chorar.
Escrevo-te ao romper do dia, na esperança de que Josefina venha.
Se eu puder falar-lhe sozinha, pedir-lhe-ei que leve a casa de Madame de Merteuil um bilhetinho que lhe vou escrever; se o não conseguir, metê-lo-ei na tua carta e tu farás o favor de lho enviar como sendo teu. É só dela que eu posso receber alguma consolação. Ao menos, falaremos dele, pois não espero voltar a vê-lo. Sou muito infeliz! Ela terá talvez a bondade de se encarregar de uma carta para Danceny. Não ouso confiar-me a Josefina para esse fim, e ainda menos à minha criada de quarto; pois talvez tenha sido ela quem disse a minha mãe que eu tinha cartas na minha secretária. Hei-de escrever-te mais longamente, pois quero ter tempo para escrever a Madame de Merteuil, e também a Danceny, para ter a minha carta pronta, se ela quiser encarregar-se de a fazer seguir. Depois disso, voltarei a deitar-me, para que me encontrem na cama quando entrarem no meu quarto. Direi que estou doente, para me dispensar de ir ao pé da Mamã. Não será grande a mentira; com certeza sofro mais do que se tivesse febre. Os olhos ardem-me por ter chorado tanto; e tenho um peso no estômago que me impede de respirar. Quando penso que não voltarei a ver Danceny, desejaria estar morta. Adeus, minha querida Sofia. Não posso dizer-te mais nada; as lágrimas sufocam-me. 7 de Setembro de 17* *.
Nota - Suprimiu-se a carta de Cecília Volanges à Marquesa, porque continha apenas os mesmos fatos da carta precedente, e com menos pormenores. A carta para o Cavaleiro Danceny não foi encontrada; ver-se-á qual a razão na Carta LXIII, de Madame de Merteuil ao Visconde.
CARTA LXII MADAME DE VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Depois de terdes abusado, senhor, da confiança de uma mãe e da inocência de uma criança, não ficareis surpreendido, por certo, de não voltar a ser recebido numa casa onde não correspondestes às provas da amizade mais sincera, senão esquecendo todos os preceitos. Prefiro pedir-vos que não volteis a minha casa, a dar ordens que nos comprometeriam a todos igualmente, pelos reparos que os criados não deixariam de fazer. Tenho o direito de esperar que não me obrigareis a recorrer a esse meio. Previno-vos também de que, se no futuro fizerdes a menor tentativa para manter a minha filha no desvairamento em que a lançastes, um recolhimento austero e eterno a subtrairá às vossas perseguições. A vós compete, senhor, saber se receais tão pouco causar o seu infortúnio como receastes pouco tentar a sua desonra. Quanto a mim, a minha escolha está feita, e disso lhe dei participação. Encontrareis junto o maço das vossas cartas. Conto que me devolvereis em troca todas as de minha filha; e que vos prestareis a apagar qualquer vestígio de um acontecimento de que não poderemos lembrar-nos, eu sem indignação, ela sem vergonha, e vós sem remorso. Tenho a honra de ser, etc. 7 de Setembro de 17**.
CARTA LXIII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Claro que sim, que lhe explicarei o bilhete de Danceny. O acontecimento que o levou a escrevê-lo é obra minha, e é, creio, a minha obra-prima. Não perdi o meu tempo depois da sua última carta, e disse como o arquiteto ateniense: "O que ele disse, eu o farei."
São pois necessários obstáculos a esse belo herói de romance; que se deixa dormir na felicidade! Oh! que venha ter comigo, eu lhe darei que fazer; e, ou eu me engano, ou o seu sono tempo, e gabo-me de que no presente ele lamente o que perdeu. Era preciso, dizia o Visconde, que ele sentisse a necessidade de mais mistério; pois bem! Essa necessidade não lhe vai faltar. Eu tenho isto de bom: é que basta apenas chamarem-me a atenção para os meus erros; não descanso enquanto não tiver posto tudo certo. Saiba pois o que eu fiz. Ao entrar em casa anteontem de manhã, li a sua carta; achei-a luminosa. Convencida de que o Visconde indicara muito bem a causa da doença, não me ocupei senão de encontrar maneira de a curar. Comecei todavia por me deitar; pois o infatigável Cavaleiro não me tinha deixado dormir um momento e eu julgava ter sono. Mas enganava-me; toda entregue a Danceny, o desejo de o tirar da sua indolência, ou de lha castigar, não me permitiu fechar os olhos, e só depois de ter concertado o meu plano é que pude achar duas horas de repouso. Nessa mesma noite fui a casa de Madame de Volanges, e, conforme o meu projeto, confidenciei-lhe que julgava estar certa de existir entre a sua filha e Danceny uma ligação perigosa. Esta mulher, tão clarividente no caso do Visconde, estava cega a ponto de me ter respondido primeiro que com certeza eu estava enganada; que sua filha era uma criança, etc. Eu não podia dizer-lhe tudo quanto sabia a tal respeito; mas citei os olhares, os ditos, que tinham alarmado a minha virtude e a minha amizade. Enfim, falei quase tão bem como o poderia fazer uma devota, e, para vibrar o golpe de misericórdia, cheguei a dizer que supunha ter visto entregar e receber uma carta. "Isto faz-me recordar", acrescentei "que um dia ela abriu diante de mim uma gaveta da secretária, na qual vi muitos papéis, que com certeza ela conserva. Conheceis-lhe alguma correspondência freqüente?". Aqui o rosto de Madame de Volanges mudou, e vi algumas lágrimas nos seus olhos. "Agradeço-vos, minha digna amiga", disse ela, apertando-me a mão;" eu porei tudo isso a limpo". Depois desta conversa, demasiado curta para se tornar suspeita, aproximei-me da pequena. Deixei-a pouco depois, para pedir à mãe que não me comprometesse junto da filha, o que ela me prometeu de bom grado, tanto mais que lhe observei quanta vantagem haveria em que essa criança tivesse bastante confiança em mim para me abrir o seu coração e me pôr ao alcance de lhe dar os meus prudentes conselhos. O que me dá a certeza de que ela cumprirá a sua promessa é que não tenho dúvidas de que ela considere um ponto de honra exercer a sua penetração junto da filha. Encontrava-me, por esse lado, autorizada a conservar o meu tom de amizade com a pequena, sem parecer falsa aos olhos de Madame de Volanges, o que desejava evitar. Tive ainda a vantagem de continuar por muito tempo e tão
secretamente como eu desejava junto da rapariguinha, sem que a mãe tivesse qualquer suspeita. Aproveitei aquele mesmo serão; e depois de terminar a minha paciência, arrastei a petiza para um canto, e levei-a a falar de Danceny, assunto em que ela é inesgotável. Diverti-me a dar-lhe volta à cabeça sobre o prazer que ela teria em vê-lo no dia seguinte; não houve loucura que eu não a obrigasse a dizer. Era preciso dar-lhe em esperanças o que lhe tirava em realidade; além disso, tudo isso a tornaria mais sensível ao golpe, e estou convencida de que quanto mais ela sofrer, mais ansiosa ficará de na primeira ocasião tirar a desforra. É bom, aliás, habituar aos grandes acontecimentos as pessoas que se destinam às grandes aventuras. No fim de contas, não é justo que ela pague com algumas lágrimas o prazer de possuir o seu Danceny? Está doida por ele! Pois bem, prometo-lhe que o há de ter, e até mais cedo do que o conseguiria sem este contratempo. É um sonho mau cujo despertar será delicioso; e, bem feitas as contas, parece-me que ela me deve estar reconhecida. De fato, mesmo que eu tenha posto no caso um pouco de malícia, é preciso divertirmo-nos. Retirei-me por fim, muito satisfeita de mim própria. "Ou Danceny", dizia eu comigo, excitado pelos obstáculos, vai redobrar de amor, e então servi-lo-ei em tudo o que possa; ou, se não passa de um tolo, como algumas vezes sou tentada a crer, ficará desesperado e considerar-se-á vencido; ora, neste caso, pelo menos ter-me-ei vingado dele, na medida em que o posso fazer; ao mesmo tempo terei aumentado para mim a estima da mãe, a amizade da filha e a confiança de ambas. Quanto a Gercourt, primeiro objeto dos meus cuidados, muito infeliz seria eu, ou muito inábil, se, dominando o espírito de sua mulher, o que acontece já, e nesse sentido mais conseguirei ainda, eu não encontrar mil maneiras de fazer dela o que eu quiser que ela seja". Deitei-me acalentando estas doces idéias; o que me permitiu dormir, e despertar muito tarde. Ao acordar, encontrei dois bilhetes, um da mãe, outro da filha; e não pude impedir-me de rir, encontrando em ambos literalmente a mesma frase: É apenas de vós que espero alguma consolação. Não é engraçado, de fato, consolar contra e a favor, e ser o único agente de dois interesses diretamente contrários? Eis-me como a divindade: recebendo os votos opostos dos cegos mortais e não mudando nada aos meus decretos imutáveis. Abandonei todavia esse augusto papel, para tomar o de anjo consolador; e, segundo os preceitos, fui visitar os meus amigos na sua aflição. Comecei pela mãe; encontrei-a numa tristeza que já em parte vinga o Visconde das contrariedades que ela lhe fez sofrer por parte da sua bela hipócrita. Tudo correu à maravilha. A minha única inquietação era que Madame de Volanges não aproveitasse esse momento para
conseguir a confiança de sua filha; o que teria sido muito fácil, desde que empregasse junto dela a linguagem da doçura e da amizade, e dando conselhos cheios de razão, com o ar e o tom da ternura indulgente. Por felicidade, armou-se de severidade; enfim, portou-se tão mal, que só tive ocasião de aplaudir. É certo que esteve para deitar por terra todos os nossos projetos, pensando em fazer voltar a filha para o convento; mas eu aparei o golpe; e consegui que apenas fizesse a ameaça, no caso em que Danceny continuasse a importuná-las, a fim de obrigar as duas a uma moderação que julgo necessária para o êxito. Em seguida estive com a filha. O Visconde não pode imaginar como a dor a embeleza! Mesmo que venha a usar pouco de coqueteria, garanto-lhe que há de chorar muitas vezes; por esta vez, chorava sem malícia... Surpreendida por aquele motivo de agrado que eu não lhe conhecia, e que me sentia feliz de observar, só lhe dei a princípio consolações ineptas, que aumentam mais as mágoas do que as aliviam; e, por este meio, levei-a a ponto de estar verdadeiramente sufocada. Deixou de chorar, e por um momento temi as convulsões. Aconselhei-a a deitar-se, o que ela fez; servi-lhe de criada de quarto. Não se tinha vestido, e em breve os cabelos esparsos lhe caíam sobre os ombros e o pescoço inteiramente descobertos. Abracei-a; ela deixou-se embalar nos meus braços, e as lágrimas recomeçaram a cair-lhe sem esforço. Deus! como ela estava bela! Ah! se Madalena era assim, deve ter sido bem mais perigosa penitente que pecadora. Quando a bela desolada se deitou, pus-me a consolá-la de boa fé. Tranquilizei-a primeiro sobre os receios do convento. Fiz nascer nela a esperança de ver Danceny secretamente. "Se ele estivesse aqui...", disse-lhe eu, sentando-me na cama; depois, fantasiando sobre esse tema, levei-a, de distração em distração, a esquecer-se de que estava aflita. Ter-nos-íamos separado perfeitamente satisfeitas uma com a outra se ela não tivesse querido encarregar-me de uma carta para Danceny, o que eu recusei firmemente. Aprovará com certeza os motivos, que passo a expor. Primeiro, seria comprometer-me junto de Danceny; e, se foi esta a única razão de que pude servir-me junto da pequena, havia muitas outras que nos dizem respeito. Não seria arriscar o fruto do meu trabalho dar tão depressa aos nossos jovens um meio tão fácil de suavizar as suas mágoas? E depois, não me descontenta obrigá-los a meterem alguns criados nesta aventura; porque, enfim, se ela for levada a bom fim, como espero, é preciso que seja conhecida imediatamente depois do casamento; e poucos meios mais seguros do que esses existem para que todos o venham a saber. Mas se, por milagre, os criados não falassem, falaríamos nós, e sempre é mais cômodo que as inconfidências fiquem a cargo deles.
É necessário pois que o Visconde dê hoje essa idéia a Danceny; e como não estou segura da criada de quarto da pequena Volanges, de quem ela própria parece desconfiar, indique-lhe a minha fiel Vitória. Tomarei precauções para que esta diligência seja coroada de bom êxito. Esta idéia agrada-me tanto mais, quanto a confidência só nos será útil a nós, e nunca a eles; não cheguei ainda ao fim da minha narração. Enquanto eu me furtava a encarregar-me da carta da pequena, temia a todo o momento que ela me propusesse pô-la no correio, o que eu não poderia recusar. Felizmente, ou por estar muito perturbada, ou por ignorância da sua parte, ou ainda porque desse menos importância à carta que à resposta, a qual ela não poderia ter por esse meio, o certo é que não me falou em tal; mas para evitar que lhe viesse semelhante idéia, ou pelo menos que pudesse servir-se dela, tomei imediatamente o meu partido; e voltando a falar à mãe, decidi-a a afastar a filha por algum tempo, a mandá-la para o campo... E para onde? Não lhe bate de alegria o coração, Visconde?... Para casa de sua tia, a velha Rosemonde. Hoje mesmo Madame de Volanges escreverá nesse sentido: assim, eis o Visconde autorizado a voltar a ver a sua devota, que já não terá a objetar o escândalo do convívio a sós, e, graças aos meus cuidados, Madame de Volanges terá ocasião de reparar o agravo que lhe fez. Mas ouça-me, e não se ocupe tão vivamente dos seus assuntos que acabe por perder este de vista; pense que ele me interessa. Desejo que o Visconde se torne o correspondente e o conselheiro dos dois jovens. Comunique pois a Danceny esta viagem, e ofereça-lhe os seus serviços. Que a sua única dificuldade seja a de fazer chegar às mãos da bela a sua credencial; e suprima esse obstáculo imediatamente, indicando-lhe a minha criada de quarto como intermediária. Não tenho qualquer dúvida de que ele aceite; e como prémio das suas canseiras, terá o Visconde as confidências de um coração jovem, o que é sempre interessante. Pobre pequena! Como ela há de corar ao entregar-lhe a sua primeira carta! Na verdade, este papel de confidente, contra o qual se erguem preconceitos, parece-me um lindo passatempo quando se tem outras ocupações; e será este o seu caso. Depende agora dos seus cuidados o desfecho desta intriga. O campo oferece mil ocasiões; e Danceny, com toda a certeza, estará pronto a seguir logo que o Visconde lhe faça o primeiro sinal. Uma noite, um disfarce, uma janela..., que sei eu? Mas, enfim, se a rapariguinha continuar na mesma, ao Visconde pedirei contas. Se achar que ela precisa que eu a encoraje, mande-mo dizer. Creio ter-lhe dado uma boa lição sobre o perigo de guardar cartas, para ousar escrever-lhe agora; e continuo com a intenção de fazer dela minha discípula.
Parece-me ter esquecido dizer-lhe que as suspeitas da pequena no que respeita à denúncia da correspondência caíram primeiro sobre a criada de quarto, e eu desviei-as para o confessor. Chama-se a isto matar dois coelhos de uma cajadada. Adeus, Visconde; estou há muito tempo a escrever-lhe e atraseime para o jantar; mas o amor-próprio e a amizade ditaram esta carta, e ambos são tagarelas. O que é preciso é que a carta esteja em sua casa às três horas. Agora queixe-se de mim, se se atrever, e volte a ver, se lhe apetece, o bosque do Conde de B... Diz o Visconde que ele o guarda para prazer dos seus amigos! Esse homem é então amigo de toda a gente? Mas adeus, tenho fome. 9 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXIV O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE VOLANGES (minuta junta à Carta LXVI, do Visconde à Marquesa) Sem procurar justificar a minha conduta, senhora, e sem me queixar da vossa, só me resta afligir-me por um acontecimento que faz a infelicidade de três pessoas, todas dignas de um destino mais feliz. Mais sensível ainda à tristeza de lhe ter sido a causa do que à de ter sido a vítima, tentei muitas vezes, desde ontem, ter a honra de vos responder, sem poder encontrar forças para tal. Tenho, no entanto, tantas coisas a dizer-vos, que me é necessário fazer um grande esforço sobre mim próprio; e se esta carta for um tanto desordenada, devereis sentir quanto a minha situação é dolorosa, para me concederdes alguma indulgência. Permiti-me primeiro que proteste contra a primeira frase da vossa carta. Eu não abusei; ouso dizê-lo, nem da vossa confiança nem da inocência de Mademoiselle de Volanges; respeitei uma e outra nas minhas ações. Só elas dependem de mim; e quando me tornásseis responsável por um sentimento involuntário, não recearia acrescentar que o que me foi inspirado por vossa filha pode desagradar-vos, mas nunca ofender-vos. Sobre este assunto, que me interessa mais do que eu posso dizervos, só a vós, senhora, desejo por juiz, e às minhas cartas por testemunhas. Proibis-me de me apresentar de futuro em vossa casa, e sem dúvida terei de sujeitar-me a tudo o que vos aprouver ordenar a este respeito: mas esta ausência súbita e total não dará lugar aos murmúrios que quereis evitar, tanto como a ordem que, pelo mesmo motivo, não
quiseste dar aos vossos criados? Insistirei tanto mais sobre este ponto, quanto é certo que ele é mais importante para Mademoiselle de Volanges do que para mim. Suplico-vos pois que peseis atentamente todas as razões, de modo a não permitir que a vossa severidade altere a vossa prudência. Persuadido de que só o interesse de vossa filha ditará as vossas resoluções, aguardarei novas ordens da vossa parte. Entretanto, no caso em que me permitísseis freqüentar a vossa casa algumas vezes, comprometo-me (e podeis contar com o cumprimento da minha promessa) a não abusar dessas ocasiões para tentar falar em particular com Mademoiselle de Volanges, ou entregarlhe qualquer carta. O receio de pôr em perigo a sua reputação leva-me a este sacrifício; e a felicidade de a ver algumas vezes me compensará. É esta a única resposta que posso dar ao que me dizeis sobre a sorte que destinais a Mademoiselle de Volanges, e que quereis tornar dependente da minha conduta. Prometer-vos mais seria enganar-vos. Um vil sedutor pode adaptar os seus projetos às circunstâncias e calcular segundo os acontecimentos; mas o amor que me anima permite-me apenas dois sentimentos: a coragem e a constância. Eu, consentir em ser esquecido por Mademoiselle de Volanges, ou esquecê-la eu mesmo? Não, nunca! Ser-lhe-ei fiel; ela recebeu o juramento, e eu renovo-o agora. Perdão, minha senhora, eu desvairo, tentarei reagir. Resta-me outro assunto a tratar convosco: o das cartas que me pedistes. Fico verdadeiramente penalizado por ter de acrescentar uma recusa aos agravos que tendes de mim; mas suplico-vos, atendei as minhas razões, e dignai-vos lembrar-vos, para as apreciardes, que a única consolação para a desgraça de ter perdido a vossa amizade é a esperança de conservar a vossa estima. As cartas de Mademoiselle de Volanges, sempre tão preciosas para mim, muito mais preciosas se tornaram neste momento. São o único bem que me resta; só essas cartas me recordam ainda um sentimento que constitui todo o encanto da minha vida. Entretanto, podeis crer-me, não hesitaria um instante em fazer-vos esse sacrifício; e o pesar de ser privado delas cederia ao desejo de vos provar a minha deferência respeitosa; mas considerações poderosas me tolhem o impulso, e estou certo de que vós mesma não podereis censurá-las. É certo que entrastes na posse do segredo de Mademoiselle de Volanges; mas, permiti que vos diga, estou autorizado a crer que foi o efeito da surpresa e não da confiança. Não pretendo censurar-vos um ato que a solicitude materna talvez autorize. Respeito os vossos direitos, mas não ao ponto de me dispensar dos meus deveres. O mais sagrado de todos é o de nunca trair a confiança que alguém nos concede. Seria faltar a ela expor aos olhos de outrem os segredos de um coração que desejou confiá-los só aos
meus. Se vossa filha consente em vo-los confiar, a ela compete falar; as suas cartas ser-vos-iam inúteis. Se, pelo contrário, ela quer encerrar o seu segredo em si própria, não esperareis, por certo, que seja eu quem vos instrua a tal respeito. Quanto ao mistério no qual desejais que este acontecimento fique sepulto, podeis ficar tranqüila, minha senhora; sobre tudo o que interessa Mademoiselle de Volanges, posso desafiar mesmo o coração de uma mãe. Para vos tirar todo o motivo de inquietação, previ tudo. O precioso depósito, que até aqui tinha inscrito: papéis para queimar, tem agora: papéis pertencentes a Madame de Volanges. Esta resolução que tomei deve provar-vos assim que a minha recusa não se baseia no receio de que encontreis nessas cartas um único sentimento de que pessoalmente tenhais de queixar-vos. Eis, minha senhora, uma bem longa carta. Não o seria ainda bastante se vos deixasse a menor dúvida sobre a honestidade dos meus sentimentos, do pesar muito sincero de vos ter desagradado, e do profundo respeito com que tenha a honra de ser, etc. 9 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXV O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES (Enviada aberta à Marquesa de Merteuil na Carta LXVI do Visconde) Ó minha Cecília, que vai ser de nós? Que Deus nos salvará das desgraças que nos ameaçam? Ao menos, que o amor nos dê coragem para as suportar! Como descrever-lhe o meu espanto, o meu desespero à vista das minhas cartas, ante a leitura do bilhete de Madame de Volanges? Quem nos terá traído? Sobre quem recaem as suas suspeitas? Teria a Cecília cometido alguma imprudência? Que faz agora? Que lhe têm dito? Tanto eu desejava saber tudo, e tudo ignoro. Talvez mesmo a Cecília não saiba mais do que eu. Envio-lhe o bilhete da sua Mamã, e a cópia da minha resposta. Espero que aprovará o que eu lhe disse. Preciso muito que aprove também as diligências que fiz desde aquele fatal acontecimento, pois que todas têm por fim conseguir notícias suas e dar-lhe as minhas; e, quem sabe?, talvez voltar a vê-la, e com maior liberdade do que nunca. Põe na sua idéia, minha Cecília, que prazer seria voltarmos a encontrar-nos, podermos jurar-nos de novo um amor eterno, e ver nos nossos olhos, sentir nas nossas almas que esse
juramento não será desmentido? Um momento tão doce, que mágoas não fará esquecer? Pois bem! Tenho esperança de que tal momento surja, e devo-a a essas mesmas diligências para que suplico a sua aprovação. Que digo; eu? Devo essa esperança aos consoladores cuidados do mais; terno dos amigos; e o único pedido que lhe faço é que permita; que esse amigo seja também o seu. Talvez eu não devesse confiar tanto sem o seu consentimento; mas tenho por desculpa a má sorte e a necessidade. Foi o amor que me conduziu*; é ele que reclama a sua indulgência, que lhe pede que perdoe uma confidência necessária, e sem a qual ficaríamos talvez separados para sempre. Conhece o amigo de que lhe falo; é-o também da mulher de quem a Cecília tanto gosta. É o Visconde de Valmont. O meu projeto, ao dirigir-me a ele, era primeiro o de lhe pedir que conseguisse de Madame de Merteuil encarregar-se de uma carta para a Cecília. Não julgou ele que esse meio fosse bem sucedido mas, na falta da Marquesa, responde pela sua criada de quarto, que lhe deve obrigações. Será ela quem lhe entregará esta carta e a Cecília poderá dar-lhe a resposta. Este auxílio não nos será de qualquer utilidade, se, como supõe o Visconde, a Cecília partir em breve para o campo. Mas nesse caso ele próprio deseja servir-nos. A dona da casa é parente dele, que aproveitará esse pretexto para a visitar ao mesmo tempo. E será por seu intermédio que poderemos trocar a nossa correspondência. Deu-me mesmo a certeza de que, se a Cecília o consentir, ele conseguirá arranjar maneira de nos vermos sem o perigo de se comprometer. Agora, minha Cecília; se tem amor por mim, se lamenta a minha má sorte, se, como espero, toma parte nas minhas mágoas, recusará a sua confiança a um homem que será o nosso anjo tutelar? Sem ele, ficarei reduzido ao desespero de nem mesmo poder suavizar as tristezas que lhe causei. Elas terão fim, espero-o; mas, minha terna amiga, prometa-me que não se entregará demasiado a tais tristezas, que não se deixará vencer por elas. A idéia da sua dor é para mim um tormento insuportável. Daria a minha vida para a fazer feliz! Bem o sabe. Possa a certeza de ser adorada levar alguma consolação à sua alma! A minha tem necessidade da certeza de que perdoa ao meu amor os males que a obriga a sofrer. Adeus, minha Cecília, adeus minha terna amiga. 9 de Setembro de 17 * *.
*O Cavaleiro Danceny não fala verdade. Tinha já feito essa confidência ao senhor de Valmont antes desse acontecimento. Ver Carta LVII.
CARTA LXVI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Lendo as duas cartas que junto, a minha bela amiga verá se me desempenhei bem ou mal da missão de que me encarregou. Embora ambas sejam datadas de hoje, foram escritas ontem, em minha casa, e debaixo dos meus olhos. A carta para a pequena diz tudo o que nós desejávamos. Perante a profundeza dos planos da minha boa amiga, e a julgar pelo êxito dos seus empreendimentos, não posso senão humilhar-me. Danceny está em brasa; e, seguramente, na primeira ocasião deixará de ser digno das censuras que lhe tem dirigido. Se a bela ingênua quiser ser dócil; tudo estará terminado pouco tempo depois da sua chegada; tenho cem maneiras preparadas. Graças aos cuidados da Marquesa, eis-me decididamente o amigo de Danceny; a ele, não lhe falta mais senão ser Príncipe. É ainda muito novo, esse Danceny! Acredite, minha amiga, que não consegui obter dele que prometesse à mãe a renúncia ao amor pela filha; como se fosse muito difícil prometer, quando se está decidido a não cumprir! Seria enganar - repetia-me ele continuamente. Não é verdade que é um escrúpulo edificante, principalmente quando se trata de seduzir a pequena? E são assim os homens! Todos igualmente celerados nos seus projetos, quando fraquejam na execução, chamam a isso probidade. Pertence à minha amiga impedir que Madame de Volanges se enfureça pelas pequenas liberdades que o nosso jovem se permite na sua carta; livre-nos do convento; e consiga também que a senhora desista do pedido das cartas da pequena. Em primeiro lugar, ele não as entregará, e nisso sou da mesma opinião; neste ponto o amor e a razão estão de acordo. Li todas essas cartas, devorei o tédio que elas destilam. Podem vir a ser úteis. Eu me explico. Apesar da prudência de que usaremos, pode acontecer o imprevisto; isso faria que o casamento falhasse, e todos os nossos projetos concernentes a Gercourt cairiam por terra, não é assim? Mas como, por meu lado, tenho de me vingar da mãe, reservo-me o direito de desonrar a filha. Fazendo uma escolha habilidosa nessa correspondência e dando a público apenas uma parte, a pequena Volanges ficaria suspeita de ter dado os primeiros passos e ter-se absolutamente atirado de cabeça. Algumas dessas cartas poderiam
mesmo comprometer a mãe e deixá-la-iam maculada pelo menos de uma imperdoável negligência. Sei bem que o escrupuloso Danceny se sentiria revoltado às primeiras impressões; mas como seria atacado pessoalmente, creio que acabaria por se recuperar. Existem mil probabilidades contra uma de que as coisas não sigam este caminho; mas é preciso prever tudo. Adeus, minha bela amiga; seria muito amável se aceitasse o convite da Marechala de... para cear amanhã em sua casa; por mim, não pude recusar. Julgo não ser necessário recomendar-lhe segredo, em relação a Madame de Volanges, no que respeita ao meu projeto de férias no campo; ela teria o cuidado de ficar na cidade. Assim, uma vez que nos encontraremos, com certeza não partirá no dia seguinte. E se ela nos der somente oito dias, respondo por tudo. 9 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXVII A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT Não desejaria responder-vos, senhor, e talvez o embaraço que sinto neste momento seja uma prova de que não o deveria fazer. Entretanto, não quero deixar-vos um único motivo de queixa contra mim. Desejo convencer-vos de que fiz por vós tudo quanto poderia fazer. Dizeis que vos permiti que me escrevêsseis? Convenho; mas quando me lembrais essa permissão, julgais que me esqueci das condições em que ela foi dada? Se eu tivesse sido tão fiel a tal concessão quando vos afastastes dela, teríeis recebido uma única resposta minha? No entanto, esta já é a terceira; e enquanto fazeis tudo o que é preciso para me obrigardes a terminar esta correspondência, sou eu que me ocupo dos meios de a continuar. Existe um, mas é o único; e se recusais aceitá-lo, seja o que for que digais, será provar-me o pouco apreço que lhe dais. Deixai pois uma linguagem que não posso nem quero ouvir; renunciai a um sentimento que me ofende e me horroriza, e ao qual talvez vos sentísseis menos ligado se pensásseis no obstáculo que nos separa. Será esse o único sentimento que possais conhecer, e o amor terá a meus olhos mais esse defeito de excluir a amizade? Tereis, vós próprio, a maldade de não querer por amiga aquela em quem desejais sentimentos mais ternos? Não quero acreditá-lo; essa idéia humilhante revoltar-me-ia, e afastar-me-ia de vós sem remédio.
Oferecendo-vos a minha amizade, senhor, dou-vos tudo o que me pertence, tudo aquilo de que posso dispor. Que podereis querer mais? Para me entregar a esse sentimento tão doce, tão à medida do meu coração, espero apenas o vosso acordo, e a palavra que de vós exijo, de que essa amizade bastará para vos fazer feliz. Esquecerei tudo o que pudestes dizer-me; deixar-vos-ei o cuidado de justificar a minha escolha. Vedes a minha fraqueza; ela deve provar-vos a minha confiança. Depende de vós aumentá-la; mas previno-vos de que a primeira palavra de amor a destruirá para sempre, ressuscitando todos os meus receios; que marcará para mim o início de um silêncio eterno para convosco. Se, como dizeis, estais distanciado dos vossos erros, não achais preferível ser objeto da amizade de uma mulher honesta, que causador dos remorsos de uma mulher culpada? Adeus, senhor; deveis sentir que, depois de ter falado assim, nada posso dizer-vos a que não me tenhais já respondido. 9 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXVIII O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Como responder, senhora, à vossa última carta? Como ousarei ser verdadeiro, quando a minha sinceridade pode perder-me a vossos olhos? Não importa, é necessário; terei essa coragem. A mim próprio digo e repito que vale mais merecer-vos do que obter-vos; e, embora me recuseis uma felicidade que desejarei incessantemente, é preciso ao menos provar-vos que o meu coração é digno dela. Que pena que, como dizeis, eu esteja distanciado dos meus erros! Com que transportes de alegria eu teria lido essa mesma carta à qual tremo hoje de responder! Falais-me nela com franqueza, testemunhais-me confiança, ofereceis-me por fim a vossa amizade: tantas ofertas, senhora, e que pesar eu tenho de não poder aproveitar delas! Por que não continuo eu a ser o mesmo? Se de fato o fosse, se sentisse por vós apenas uma afeição vulgar, aquela afeição ligeira, filha da sedução e do prazer, à qual, no entanto, se dá hoje o nome de amor, apressar-me-ia a tirar vantagem de tudo o que pudesse obter. Pouco delicado sobre os meios, contanto que eles me garantissem o êxito, daria ânimo à vossa franqueza pela
necessidade de vos adivinhar; desejaria a vossa confiança com o fim de a trair; aceitaria a vossa amizade, na esperança de a desencaminhar... Pois quê, senhora! horroriza-vos este quadro?... No entanto, seria essa a minha obra se vos dissesse que consinto em ser apenas vosso amigo... Pois consentiria eu partilhar com alguém um sentimento emanado da vossa alma? Se alguma vez eu o disser, não o acrediteis. Desde esse momento procuraria enganar-vos; poderia desejarvos ainda, mas seguramente já não vos amaria. Não é o caso que a amável franqueza, a doce confiança, a sensível amizade não tenham a meus olhos certo valor... Mas o amor! o amor verdadeiro, e tal como vós o inspirais, reunindo todos esses sentimentos, dando-lhes maior energia, não poderia prestar-se, como eles, a essa tranqüilidade, a essa frieza da alma, que permite comparações, que suporta mesmo preferências. Não, minha senhora, não serei vosso amigo; amar-vos-ei com o amor mais terno, e mesmo o mais ardente, embora o mais respeitoso. Podereis tirar-lhe toda a esperança, mas não aniquilá-lo. Com que direito pretendeis dispor de um coração de que recusais as homenagens? Por que requinte de crueldade me disputais até a felicidade de vos amar? Essa felicidade pertence-me, é independente de vós; saberei defendê-la. Se é ela a fonte dos meus males, é-lhes também o remédio. Não, ainda uma vez, não. Podeis persistir nas vossas cruéis recusas; mas deixai-me o meu amor. Comprazeis-vos em tornar-me infeliz! Está bem; seja! Experimentai cansar a minha coragem; saberei forçar-vos ao menos a decidir a minha sorte. E talvez um dia me façais maior justiça. Não é que eu espere tornar-vos alguma vez sensível; mas sem serdes persuadida, ficareis convencida, e direis a vós mesma: "Tinha-o julgado mal." Dizendo melhor, a vossa injustiça recai sobre vós. Conhecer-vos sem vos amar, amar-vos sem ser constante, eis duas coisas igualmente impossíveis; e apesar da modéstia que é vosso timbre, deve ser-vos mais fácil queixar-vos do que admirar-vos dos sentimentos que fazeis nascer. Por mim, cujo único mérito é o ter sabido apreciar-vos, esse não quero perdê-lo; e longe de consentir nas vossas traiçoeiras ofertas renovo a vossos pés o juramento de vos amar sempre. 10 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXIX CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY (Bilhete escrito a lápis e copiado por Danceny)
Pergunta-me o que faço; amo-o e choro. Minha mãe não me fala; tirou-me papel, penas e tinta; sirvo-me dum lápis, que por felicidade me ficou, e escrevo-lhe num bocado de papel da sua carta. É-me forçoso aprovar tudo o que fez; amo-o demasiado para não aproveitar todos os meios de receber as suas notícias e dar-lhe as minhas. Eu não gostava do senhor Valmont, e não supunha que ele fosse tão seu amigo; tentarei habituar-me a ele, e a gostar dele por sua causa. Não sei quem foi que nos traiu. Não pode ter sido senão a minha criada de quarto ou o meu confessor. Sou muito infeliz. Partimos amanhã para o campo; não sei por quanto tempo. Meu Deus! Não mais o ver! Não haverá meio de o conseguir. Adeus; tente ler este bilhete. Estas palavras escritas a lápis virão talvez a apagar-se, mas nunca os sentimentos agravados no meu coração. 10 de Setembro de 17* *.
CARTA LXX O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Tenho uma revelação importante a fazer-lhe, minha querida amiga. Ontem, ceava eu, como sabe, em casa da Marechala de..., quando se falou da minha amiga, e aproveitei para dizer a seu respeito não todo o bem que penso, mas todo aquele que não penso. Toda a gente parecia ser da minha opinião, e a conversa ia afrouxando, como acontece sempre que se diz apenas bem do próximo, quando se ergueu a voz de um contraditor: era Prévan. "Deus me defenda", disse ele levantando-se, "de duvidar da seriedade de Madame de Merteuil! Mas ousaria crer que ela a deve mais à sua ligeireza do que aos seus princípios. É talvez mais difícil seguila que agradar-lhe; e como, quando se corre atrás de uma mulher, acontece sempre aparecerem outras no caminho, como, em suma, as outras podem valer tanto ou mais do que ela; uns são distraídos por um gesto novo, outros desistem por cansaço; por isso ela é talvez a mulher de Paris que menos tenha tido de se defender. Por mim", acrescentou ele (encorajado pelo sorriso de algumas mulheres), "não acreditarei na virtude de Madame de Merteuil senão depois de ter rebentado seis cavalos a fazer-lhe a minha corte". Este mau gracejo caiu bem, como todos os que se baseiam na maledicência; e, enquanto duravam os risos que ele excitou, Prévan retomou o seu lugar e a conversação geral mudou de rumo. Mas as
duas Condessas de B..., junto das quais estava o nosso incrédulo, tiveram com ele uma conversa particular, que felizmente estava ao alcance do meu ouvido. Prévan garantiu que despertaria a sua sensibilidade, minha boa amiga, e o desafio foi aceito, com a sua palavra de contar tudo; e de todas as palavras que viriam a dar-se nessa aventura, essa seria seguramente a mais religiosamente guardada. Mas agora está prevenida, e conhece o provérbio. Resta-me dizer-lhe que esse Prévan, que a Marquesa não conhece, é infinitamente amável, e ainda mais habilidoso. Se alguma vez me ouvir dizer o contrário, foi simplesmente porque não gosto dele, porque me apraz diminuir os seus êxitos e por que não ignoro o peso da minha opinião junto de trinta, pelo menos, das mulheres da moda. De fato, manifestando-me de tal modo, impedi-o por muito tempo de fazer figura no que chamamos os grandes meios; podia fazer prodígios: nem por isso aumentava a sua reputação. Mas o ruído da sua tríplice aventura, chamando as atenções sobre ele, deu-lhe aquela confiança que até então lhe faltava e tornouo verdadeiramente temível. Enfim, é hoje, talvez, o único homem que eu recearia encontrar no meu caminho; à parte o interesse que a minha amiga nisso possa ter, prestar-me-ia um verdadeiro serviço se o expusesse, de passagem, a qualquer ridículo. Deixo-o em boas mãos; e tenho a esperança de que no meu regresso será um homem liquidado. Prometo-lhe, em troca, levar a bom fim a aventura da sua pupila e ocupar-me dela tanto como da minha bela e virtuosa Presidente. Esta acaba de me enviar um projeto de capitulação. Toda a sua carta anuncia o desejo de ser enganada. É impossível oferecer um meio mais cômodo e também mais usado. Quer que eu seja seu amigo. Mas eu, que gosto dos processos novos e difíceis, não quero possuí-la por tão baixo preço; e seguramente não me obrigaria a tanto trabalho com ela para terminar por uma vulgar sedução. O meu projeto, pelo contrário, é que ela sinta bem profundamente o valor e a extensão de cada um dos sacrifícios que virá a fazer por mim; não a conduzirei tão rapidamente que não possa ser seguida pelo remorso; fazer expirar a sua virtude numa lenta agonia; obrigá-la a ter sempre presente esse desolador espetáculo; e não lhe conceder a felicidade de me apertar nos seus braços senão depois de a ter forçado a não dissimular o desejo. Na verdade, valho muito pouco se não valho o esforço de ser solicitado. E poderei desejar menor vingança de uma mulher altiva, que parece envergonhar-se de confessar a sua adoração? Recusei pois a preciosa amizade e fixei-me firmemente no meu título de amante. Como não me iludo sobre esse título que, parecendo à primeira vista uma disputa de palavras, é todavia de uma importância real a obter, pus todos os cuidados na minha carta, e tratei de introduzir nela aquela desordem que constitui o único meio de
descrever os sentimentos. Fui, enfim, tão pouco razoável quanto me foi possível; pois sem ausência de raciocínio não há ternura; e creio que é por esta razão que as mulheres nos são a tal ponto superiores nas cartas de amor. Terminei a minha carta por um galanteio, e fi-lo ainda em resultado das minhas profundas observações. Quando o coração de uma mulher é posto à prova durante algum tempo, tem necessidade de repouso; e tenho observado que um galanteio constitui, para todas, o travesseiro mais macio que lhes podemos oferecer. Adeus, minha bela amiga. Parto amanhã. Se tiver ordens a darme pela Condessa de..., farei paragem em casa dela, pelo menos para jantar. Aborrece-me ter de partir sem a ver. Dê-me parte das suas sublimes instruções e ajude-me com os seus sábios conselhos, neste momento decisivo. Sobretudo, defenda-se de Prévan; e possa eu um dia recompensá-la por esse sacrifício! Adeus. 11 de Setembro de 17* *.
CARTA LXXI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL O pateta do meu criado deixou a minha pasta em Paris! As cartas da minha bela, as de Danceny para a pequena Volanges, tudo lá ficou, e tenho precisão de tudo. Tive de o mandar regressar, para reparar a sua tolice; e enquanto ele sela o cavalo, vou contar-lhe a minha história desta noite: pois decerto não vai supor que perco o meu tempo. A aventura, em si mesma, é pouca coisa; trata-se apenas de um caldo requentado com a Viscondessa de M... Mas interessa pelos pormenores. Por outro lado sinto-me feliz por lhe mostrar que, se possuo o talento de perder as mulheres, não possuo menos, quando quero, o de as salvar. O partido mais difícil, ou o mais alegre, é sempre o que eu tomo; e nunca tenho de me censurar por uma boa ação, contanto que ela me ponha à prova ou me divirta. Deu-se pois o caso de encontrar aqui a Viscondessa, e como ela juntava as suas instâncias às que me faziam para passar a noite no castelo, disse-lhe: "Está bem! Consinto, com a condição de a passar a seu lado." "Isso é impossível", respondeu-me ela. "Vressac está aqui." Até ali eu pensava que lhe fazia uma proposta honesta; mas aquela palavra "impossível" revoltou-me, como de costume. Senti-me humilhado por ser sacrificado a Vressac e resolvi não o suportar. Tive pois de insistir.
As circunstâncias não me eram favoráveis. Esse Vressac cometeu a tolice de despertar suspeitas no Visconde, de modo que a Viscondessa não pode recebê-lo em sua casa; e a visita de ambos à boa Condessa tinha sido combinada entre eles, de maneira a aproveitarem algumas noites. O Visconde chegou até a mostrar-se aborrecido por ali encontrar Vressac; mas como é ainda mais caçador do que ciumento, nem por isso deixou de ficar. E a Condessa, sempre igual a si mesma (a minha amiga conhece-a!), depois de ter instalado a mulher num quarto do corredor principal, pôs o marido de um lado e o amante do outro, e deixou-os arranjarem as coisas entre si. A má sorte dos dois homens quis que eu ficasse instalado em frente. Nesse mesmo dia, quer dizer, ontem, Vressac, que, como pode imaginar, estraga o Visconde com mimos, foi à caça com ele, apesar de pouco gostar de caçar, e esperava consolar-se à noite, entre os braços da mulher, do aborrecimento que o marido lhe causara todo o dia. Eu, porém, achei que ele teria necessidade de repouso, e procurei maneira de decidir a amante a deixar-lhe tempo para tal. Obtive o que pretendia e consegui que ela arranjasse uma zanga com motivo naquela mesma caçada, à qual ele, evidentemente, se sujeitara por ela. Não poderia haver pior pretexto; mas nenhuma mulher tem, como a Viscondessa, o talento, comum a todas, de pôr no lugar da razão o mau humor, e de ser tanto mais difícil de apaziguar quanto menos motivos tem de agravo. O momento aliás não era cômodo para explicações; e como eu só pretendia uma noite, consenti que eles fizessem as pazes no dia seguinte. Vressac teve pois de aturar à volta os arrufos da Viscondessa. Quis saber o motivo, obteve ralhos. Tentou justificar-se; o marido, que estava presente, serviu de pretexto para acabar a conversa. Procurou ainda aproveitar um momento em que o Visconde se ausentara para pedir audiência noturna: foi então que a Viscondessa atingiu o sublime. Indignou-se contra a audácia dos homens, que, só porque põem à prova a bondade de uma mulher, julgam ter o direito de continuarem a abusar, mesmo quando ela tem motivos de queixa; e tendo mudado de tese com esta habilidade, falou tão bem de delicadeza e de sentimentos, que Vressac ficou confuso e mudo. Eu próprio estive tentado a crer que ela tinha razão; pois deve supor que, como amigo de ambos, eu era testemunha do diálogo. Por fim, a Viscondessa declarou que não acrescentaria as fadigas do amor às da caça, para não ter de se censurar por perturbar tão doces prazeres. O marido voltou. O desolado Vressac, que já não tinha liberdade de responder, dirigiu-se a mim; e depois de por muito tempo me ter contado as suas razões, que eu conhecia tão bem como ele, pediu-me que falasse à Viscondessa, e eu prometi-lho. De fato, falei-lhe; mas foi para lhe agradecer, e combinar com ela a hora e a maneira de nos encontrarmos. Disse-me ela que, instalada entre o marido e o amante, achara mais prudente ir ao encontro de Vressac do que recebê-lo no seu
quarto; e, já que eu estava instalado em frente dela, julgava mais seguro também vir ao meu encontro. Viria assim que a criada de quarto a deixasse só; eu só tinha de deixar a porta entreaberta e esperá-la. Tudo se executou como tínhamos combinado; pela uma hora da madrugada chegou ela ao meu quarto. D'une beauté qu'on vient d'arracher au sommeil.* Como não sou vaidoso, não lhe descreverei os pormenores da noite; mas a Marquesa conhece-me, e eu fiquei satisfeito comigo. Ao raiar do dia, foi necessário separarmo-nos. Aqui começa a coisa a ser interessante. A estouvada julgou que tinha deixado entreaberta a porta do seu quarto; encontrámo-la fechada, e a chave tinha ficado do lado de dentro. Não faz idéia da expressão de desespero com que a Viscondessa me disse então: "Ah! Estou perdida!" É preciso convir que teria sido divertido deixá-la naquela situação; mas podia eu suportar que uma mulher ficasse perdida para mim, sem o ser por mim? E devia eu, como o comum dos homens, deixar-me dominar pelas circunstâncias? Era preciso pois encontrar um meio. Que teria feito a minha bela amiga? Eis o partido que tomei, e que resultou com êxito. Depressa verifiquei que a porta em questão podia ser arrombada, desde que se pudesse fazer muito barulho. Consegui pois da Viscondessa, não sem custo, que ela soltasse gritos agudos de terror, como Acudam! um ladrão! um assassino! etc. E combinamos que, ao primeiro grito, eu arrombaria a porta, e ela correria a meter-se na cama. Não pode imaginar o tempo que foi preciso para a decidir, mesmo depois de ela ter consentido. No entanto, acabou-se por cumprir o combinado, e ao primeiro pontapé a porta cedeu. A Viscondessa fez bem em não perder tempo, pois no mesmo instante o Visconde e Vressac apareceram no corredor, e a criada de quarto acorreu também ao quarto da senhora. Só eu mantinha o sangue-frio, e aproveitei a circunstância para ir apagar uma lamparina que estava ainda acesa e derrubá-la por terra; pois faz bem idéia quanto seria ridículo fingir aquele terror pânico, tendo luz no quarto. Em seguida repreendi o marido e o amante pelo seu sono letárgico e dei-lhes a certeza de que os gritos a que eu tinha acudido e os meus esforços para arrombar a porta tinham durado pelo menos cinco minutos. A Viscondessa, que recuperara a coragem logo que se meteu na cama, jurava com a máxima sinceridade que nunca tivera tanto medo na sua vida. Procurávamos por toda a parte sem nada encontrar, quando fiz notar a lamparina derrubada, e concluí que, sem dúvida, um rato tinha causado o dano e o terror; a minha opinião foi *Com uma beleza dos que acabam de despertar. (N. do R.)
aprovada por unanimidade e, depois de alguns gracejos à custa dos ratos, o Visconde foi o primeiro a ir-se deitar, pedindo à esposa que de futuro tivesse ratos mais sossegados. Vressac, ficando só conosco, aproximou-se da Viscondessa para lhe dizer ternamente que era uma vingança do amor, ao que ela
respondeu olhando-me: "Nesse caso o amor devia estar muito zangado, pois se vingou cruelmente; mas", acrescentou ela, "estou cheia de fadiga e quero dormir." Eu estava num momento de bondade; em conseqüência, antes de nos separarmos, advoguei a causa de Vressac e preparei a reconciliação. Os dois amantes beijaram-se e, por minha vez, fui beijado por ambos. Os beijos da Viscondessa deixaram-me indiferente; mas confesso que o de Vressac me deu prazer. Saímos juntos; e depois de ter recebido os seus prolongados agradecimentos, cada um de nós foi-se meter na cama. Se achar que esta história é engraçada, não lhe peço que guarde segredo. Agora que já me diverti, é justo que o público tenha a sua vez. Neste momento falo-lhe só da história; talvez dentro em pouco tenhamos de. falar da sua heroína. Adeus; há uma hora que o meu criado está à minha espera. Tomo apenas o tempo para lhe mandar um abraço, e lhe recomendar sobretudo que tenha cuidado com Prévan. Do Castelo de...,13 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXXII O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES (Entregue somente em 14) Ó minha Cecília! como invejo a sorte de Valmont! Amanhã ele vê-la-á. É ele quem lhe entregará esta carta; e eu, longe de si, entregue às minhas mágoas, arrastarei a minha penosa existência entre as saudades e a dor. Minha amiga, minha terna amiga, lastime-me pelos meus males; lastimo-me sobretudo pelos seus; é contra estes que a coragem me abandona. Quanto me é penoso causar a sua infelicidade! Sem mim seria feliz e tranqüila. Perdoa-me? Diga! Ah! Diga que me perdoa; diga-me também que me tem amor, que há de amar-me sempre. Sinto necessidade que mo repita. Não é que eu duvide; mas parece-me que quanto mais se tem essa certeza mais doce é ouvi-lo dizer. Ama-me, não é verdade? Sim, ama-me com toda a sua alma. Não esqueço que foi a última palavra que lhe ouvi pronunciar. Como a recolhi no meu coração! Como ela se gravou ali profundamente! E com que transportes o meu lhe corresponde! Ai! Nesse momento de felicidade, estava eu longe de prever a sorte horrorosa que nos esperava. Ocupemo-nos, minha Cecília, dos
meios para a suavizar. A crer no meu amigo, bastará, para que o consigamos, que a Cecília deposite nele a confiança que merece. Fiquei contristado, confesso-o, com a idéia pouco vantajosa que parece ter a seu respeito. Reconheço aí as prevenções da sua Mamã: foi para me submeter a elas que descuidei, durante algum tempo, a sociedade desse homem verdadeiramente amável, que hoje tudo fará por mim; que, enfim, trabalha para nos reunir, quando a sua Mamã nos separou. Peço-lhe, querida amiga, veja-o com olhos mais favoráveis. Pense que ele é meu amigo, que o quer ser seu, que pode proporcionar-me a felicidade de voltar a vê-la. Se estas razões a não convencem, minha Cecília, é porque me não ama tanto como eu a amo, é porque me não ama tanto quanto amou já. Ah! Se alguma vez vier a ter-me menos amor... Mas não, o coração da minha Cecília pertence-me; é meu por toda a vida; e se eu tenho a temer as penas dum amor infeliz, a sua constância pelo menos me salvará dos tormentos dum amor traído. Adeus, minha encantadora amiga; não esqueça que eu sofro, e que só a si cabe tornar-me feliz, perfeitamente feliz. Escute os votos do meu coração, e receba os mais ternos beijos de amor. Paris, 11 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXXIII O VISCONDE DE VALMONT A CECÍLIA VOLANGES (Junta à precedente) O amigo que a serve soube que lhe faltava tudo que é necessário para escrever e remediou essa falta. Encontrará na antecâmara do aposento que ocupa, debaixo do grande armário à esquerda, uma provisão de papel, de penas e de tinta, que ele renovará quando quiser e que lhe parece poder ficar no mesmo lugar se não encontrar outro mais seguro. Esse amigo pede-lhe que não se ofenda, se simular que não lhe dá nenhuma atenção nas reuniões e que a olha como uma criança. Tal procedimento parece-lhe necessário para inspirar a segurança de que ele precisa e poder trabalhar mais eficazmente na felicidade do seu amigo e na sua. Procurará suscitar as ocasiões de lhe falar, quando tiver alguma coisa a comunicar-lhe ou a entregar-lhe; e espera consegui-lo, se a menina tiver o cuidado de o secundar. Aconselha-a também a entregar-lhe as cartas à medida que as for recebendo, a fim de a arriscar menos a comprometer-se. Termina por lhe dar a certeza de que, se quiser depositar nele confiança, porá os seus cuidados em suavizar a perseguição que uma
mãe demasiado cruel faz sofrer a duas pessoas, das quais uma é já o seu melhor amigo, e a outra lhe parece merecer o mais terno interesse. Do Castelo de..., 14 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXXIV A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Desde quando, meu amigo, se assusta tão facilmente? Esse Prévan é assim tão temível? Veja como eu sou simples e modesta! Tenho-o encontrado muitas vezes, a esse soberbo vencedor; e mal o tenho olhado! Faltava só a sua carta para que eu lhe desse atenção. Reparei ontem a minha injustiça. Ele estava na Ópera, quase na minha frente, e entretive-me com ele. É bonito ao menos, mesmo muito bonito; que traços finos e delicados! Deve ganhar em ser visto de perto. E diz o Visconde que ele me quer possuir! Seguramente far-me-á honra e prazer. Falando sério, tenho essa fantasia, e confio-lhe aqui que dei para isso os primeiros passos. Não sei se terão êxito. Passo a narrar-lhe o caso. Ele estava a dois passos de mim, à saída da Ópera, e eu marquei encontro, em voz alta, à Marquesa de... para cear sexta-feira em casa da Marechala. É, segundo creio, o único lugar onde posso encontrá-lo. Não duvido de que ele me tenha ouvido... E se esse ingrato lá não fosse? Diga-me: acha que ele irá? Saiba que, se não for, ficarei aborrecida toda a noite. Bem vê que ele não terá assim tanta dificuldade em seguir-me; e o Visconde vai admirar-se mais quando souber que terá ainda menos dificuldade em agradar-me. Ele quer, segundo diz, rebentar seis cavalos a fazer-me a sua corte! Oh! eu salvarei a vida a esses cavalos. Nunca eu teria a paciência de esperar tanto tempo. O Visconde sabe que não está nos meus princípios fazer sofrer quando me decido por alguém, e a verdade é que me decidi por ele. Oh! convenha, Visconde, que sentiu prazer em me pregar um sermão! A sua revelação importante não teve um grande êxito? Que quer o Visconde! Há tanto tempo que eu vegeto! Há mais de seis semanas que não me permito uma aventura. Apresenta-se-me esta; posso recusá-la? A pessoa não vale a pena? Haverá alguém mais agradável, em qualquer sentido que tome a palavra. O próprio Visconde é obrigado a fazer-lhe justiça; faz mais que elogiá-lo, tem ciúmes dele. Pois bem! serei eu o juiz entre ambos. Mas primeiro é preciso tomar conhecimento da causa, e é o que desejo fazer. Serei juiz íntegro, e ambos serão pesados na mesma balança.
Quanto ao Visconde, tenho já as suas memórias, e a sua causa está perfeitamente instruída. Não será justo que me ocupe agora do seu adversário? Vamos, preste-se de bom grado à justiça; e, para começar, conte-me, peço-lhe, essa tríplice aventura de que ele foi herói. Fala-me disso como se eu não conhecesse outra coisa, e não sei uma palavra a tal respeito. O caso deve ter-se passado durante a minha viagem a Genebra, e o seu ciúme tê-lo-á impedido de mo contar. Repare esta falta o mais cedo possível; pense que nada do que lhe diz respeito me é indiferente. Creio bem que se falava ainda no assunto quando regressei; mas eu tinha outros motivos de preocupação, e raramente dou ouvidos a coisas desse gênero quando não são do próprio dia ou da véspera. Mesmo que o contrarie um pouco o que lhe peço, não será esse o menor preço que o Visconde deve aos cuidados que por sua causa tenho tido? Não foram esses cuidados que o aproximaram da sua Presidente, quando as suas tolices o tinham afastado dela? Não fui ainda eu que pus nas suas mãos o meio de se vingar do amargo zelo de Madame de Volanges? Tantas vezes o Visconde lamentou o tempo que perdia a procurar aventuras! Presentemente, tem-nas à mão. O amor, o ódio, só tem o trabalho de escolher, tudo está debaixo do mesmo teto. E pode até, fazendo existência dupla, afagar com uma das mãos e ferir com a outra. A sua aventura com a Viscondessa é ainda a mim que a deve. Deu-me muita satisfação; mas, como o Visconde diz, é preciso que se fale no caso; pois se a ocasião foi de molde a que preferisse o mistério ao ruído, e compreendo que assim fosse, devemos no entanto convir que essa mulher não merecia um procedimento tão honesto. Além do mais, tenho motivos de queixa de tal criatura. O Cavaleiro de Belleroche acha-a mais bonita do que eu desejaria; e, por muitas razões, ficaria bem contente se tivesse um pretexto para romper com ela. Ora não há nada mais cômodo do que poder dizer: "Já ninguém recebe essa mulher." Adeus Visconde; pense que, no lugar onde está, o tempo é precioso; vou empregar o meu a ocupar-me da felicidade de Prévan. Paris, 15 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXXV CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Está aqui uma boa amiga da Mamã, que eu não conhecia, que parece também não gostar muito do senhor de Valmont, embora ele
tenha muitas atenções para ela. Tenho receio que ele se aborreça depressa da vida que levamos aqui e que regresse a Paris; isso seria lamentável. Deve ter muito bom coração para ter vindo expressamente a fim de prestar um serviço ao seu amigo e a mim! Bem desejaria testemunhar-lhe o meu reconhecimento, mas não sei como fazer para falar; e mesmo que achasse ocasião para isso, ficaria tão envergonhada que não saberia que dizer-lhe. É só com Madame de Merteuil que eu falo livremente, quando falo do meu amor. Talvez mesmo contigo, a quem digo tudo, eu ficasse envergonhada, se fosse a conversarmos. Com o próprio Danceny tenho muitas vezes sentido, contra minha vontade, certo receio que me impedia de dizer tudo o que pensava. Estou bem arrependida agora, e daria tudo para encontrar o momento de lhe dizer uma vez, uma única vez, quanto o amo... O senhor de Valmont prometeu-lhe que, se eu me deixasse conduzir, arranjaria maneira de nos tornarmos a ver. Eu farei tudo o que ele quiser; mas não posso conceber que tal seja possível. Adeus, minha boa amiga, não posso escrever mais.* Do castelo de...,14 de Setembro de 17* *. Nota - Nesta carta, Cecília Volanges narra com muitos pormenores tudo o que lhe diz respeito nos acontecimentos que o leitor conhece do fim da Primeira Parte, Carta LXI e seguintes. Julgou-se oportuno suprimir essa repetição. Por fim, fala do Visconde de Valmont, e exprime-se do seguinte modo: Afirmo-te que é um homem extraordinário. A Mamã diz muito mal dele; mas o Cavaleiro Danceny diz muito bem, e creio que é ele quem tem razão. Nunca vi homem mais expedito. Quando me entregou a carta de Danceny, estava muita gente e ninguém viu nada. certo que tive bastante medo porque não tinha sido prevenida; mas agora estou sempre à espera. Já compreendi muito bem o que ele quer que eu faça para lhe entregar a resposta. É muito fácil entendermo-nos com ele, pois tem um olhar que diz tudo o que ele quer. Não sei o que ele faz para isso: diziame no bilhete de que te falei que diante da Mamã fingira sempre não me ligar importância. Na verdade, dir-se-ia que não pensa nisso; mas todas as vezes que procuro os seus olhos, estou certa de encontrá-los imediatamente. *Tendo Mademoiselle de Volanges, pouco tempo depois, mudado de confidente, como se verá pela continuação destas cartas, não virá a encontrar-se nesta coleção nenhuma das que continuou a escrever à sua amiga do convento, pois nada revelariam ao leitor.
CARTA LXXVI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Ou a sua carta é um gracejo, que não cheguei a compreender, ou estava, quando ma escreveu, num delírio muito perigoso.
Se eu a conhecesse menos, minha bela amiga, ficaria verdadeiramente horrorizado; e seja o que for que possa dizer, não me horrorizo facilmente. Debalde li e reli a sua carta, não fiquei mais adiantado; pois não há maneira de a tomar no sentido natural que ela apresenta. Que quis a minha amiga dizer? Apenas que era inútil ter tantos cuidados contra um inimigo tão pouco temível? Mas, nesse caso, pode não ter razão. Prévan é realmente amável; é-o mais ainda do que supõe. Tem sobretudo o talento deveras útil de interessar muita gente nas suas relações amorosas, pela habilidade que desenvolve ao falar sobre tal assunto em sociedade, diante de toda a gente, servindo-se da primeira conversação que topa a jeito. Poucas mulheres há que se salvem da armadilha de lhe dar réplica, visto que, tendo todas pretensões de inteligência, nenhuma quer perder ocasião de a mostrar. Ora, sabe muito bem a minha amiga que toda a mulher que consente em falar de amor, cedo acaba por tomar parte nele, ou pelo menos por se conduzir como se o sentisse. Prévan tira ainda vantagens do processo, que ele realmente aperfeiçoou, de chamar frequentemente as próprias mulheres em testemunho das derrotas que lhes inflige. E falolhe disto porque o presenciei. O segredo veio até mim em segunda mão, pois nunca estive ligado a Prévan; éramos por fim seis a escutá-lo: a Condessa de P..., julgando-se muito inteligente, tomou os ares de quem sustenta uma conversação geral e foi contando aos que nada sabiam, até aos mínimos pormenores, de como se tinha entregado a Prévan e tudo o que se passara entre ambos. Fazia a narração com tal segurança, que nem se sentiu perturbada por um riso louco que nos tomou os seis ao mesmo tempo; e hei-de recordar-me sempre de que, a um de nós que, para se desculpar, quis fingir que não acreditava no que ela dizia, ou antes, no que ela parecia querer dizer, respondeu ela gravemente que com certeza nenhum de nós estava tão bem informado como ela; e não receou mesmo dirigir-se a Prévan, para lhe perguntar se tinha enganado numa só palavra. Pude então considerar aquele homem perigoso para toda a gente; mas para si, Marquesa, não bastava que ele fosse bonito, muito bonito, conforme as suas próprias palavras? Ou que ele lhe fizesse um desses ataques que lhe agrada algumas vezes recompensar, sem outro motivo do que achá-los bem feitos? Ou que achasse agradável entregar-se por uma razão qualquer? Ou... que sei eu? Posso porventura adivinhar os mil e um caprichos que governam a cabeça de uma mulher, que só por si a ligam ao seu sexo? Agora que está prevenida do perigo, não duvido que se livrará dele facilmente: todavia era necessário preveni-la. Volto ao meu assunto: que quis dizer na sua carta? Se é apenas um gracejo sobre Prévan, além de ser demasiado longo, não era a mim que devia dirigi-lo, por inútil; é à sociedade que se
deve oferecer um bom motivo de ridículo para esse homem, e renovolhe o meu pedido a tal respeito. Ah! Julgo ter encontrado a chave do enigma! A sua carta é uma profecia, não do que virá a fazer, mas do que ele a julgará pronta a fazer no momento da queda que lhe prepara. Aprovo esse projeto; no entanto, ele exige grandes preparativos. A minha amiga sabe tão bem como eu que, para a opinião pública, ceder a um homem ou aceitarlhe a corte é absolutamente a mesma coisa, a menos que esse homem seja um tolo; e Prévan está muito longe de o ser. Se ele tiver as aparências a seu favor, irá gabar-se, e está tudo dito. Os tolos acreditarão nele, os maus fingirão que acreditam; quais serão então, Marquesa, os seus recursos? Creia, tenho medo. Não é que eu duvide da sua habilidade; mas são os bons nadadores que se afogam. Eu não me julgo mais estúpido que qualquer outro! Quanto a meios de desonrar uma mulher, tenho encontrado cem, tenho encontrado mil: mas quando procuro a maneira de ela se salvar, nunca vejo tal possibilidade. Mesmo na minha bela amiga, cuja conduta é uma obra-prima, cem vezes tenho eu julgado ver mais sorte do que simulação perfeita. Mas no fim de tudo, estou talvez a procurar uma razão ao que não existe. Admiro como, há uma boa hora, eu trato com seriedade o que não passa, com certeza, de uma brincadeira da sua parte. Vai troçar de mim! Pois seja! Seja; mas apresse-se, e falemos de outra coisa. De outra coisa! Engano-me, é sempre a mesma; sempre mulheres a possuir ou a perder, e muitas vezes ambas as coisas. Como a minha amiga muito bem notou, tenho aqui com que me entreter nos dois gêneros, mas não com a mesma facilidade. Prevejo que a vingança irá mais depressa do que o amor. A pequena Volanges está rendida, respondo por ela; depende apenas da ocasião, e encarrego-me de fazer que ela apareça. Mas com Madame de Tourvel não é a mesma coisa: esta mulher é desoladora, não chego a compreendê-la. Tenho cem provas do seu amor, mas tenho mil da sua resistência; e, na verdade, receio que ela me escape. O primeiro efeito produzido pelo meu regresso animou-me a esperar maiores vantagens. Imagina decerto que era meu intuito julgar por mim próprio; e para ter a certeza de apreciar os primeiros movimentos, não mandei ninguém à minha frente e calculei o tempo de viagem de modo a chegar quando estivessem à mesa. De fato, caí do céu, como uma divindade de ópera que prepara o desenlace. Fazendo ao entrar bastante ruído, para fixar os olhares sobre mim, pude ver num só golpe de vista a alegria da minha velha tia, o despeito de Madame de Volanges e o prazer desmedido de sua filha. A minha bela, pelo lugar que tinha à mesa, estava de costas para a porta. Ocupada nesse momento a servir-se de qualquer coisa, nem sequer voltou a cabeça. Mas eu dirigi a palavra a Madame de Rosemonde; e, tendo
reconhecido a minha voz às primeiras palavras, um grito escapou à sensível devota, no qual julguei reconhecer mais amor do que surpresa ou susto. Eu avançara já o bastante para poder ver o seu rosto: nele se espelharam, de vinte maneiras diferentes, o tumulto da sua alma, a luta das suas idéias e dos seus sentimentos. Sentei-me à mesa ao lado dela; ficou sem saber positivamente o que havia de fazer ou de dizer. Tentou continuar a comer; não houve maneira. Por fim, não tinha ainda passado um quarto de hora, tornandose mais fortes do que ela o seu embaraço e o seu prazer, não imaginou nada melhor do que pedir licença para se levantar, e saiu para o parque, sob o pretexto de ter necessidade de tomar ar. Madame de Volanges quis acompanhá-la; a terna hipócrita não lho permitiu; demasiado feliz, sem dúvida, por encontrar um pretexto para estar só e se entregar livremente às doces emoções que experimentara. Abreviei o jantar o melhor que me foi possível. Mal tinham servido a sobremesa, a infernal Volanges, apressando-se sem dúvida a tirar-me qualquer vantagem, levantou-se do seu lugar para ir ao encontro da encantadora doente; mas eu tinha previsto esse projeto e prejudiquei-o. Fingi pois tomar esse movimento isolado pelo movimento geral, e, tendo-me levantado ao mesmo tempo, a pequena Volanges e o cura deixaram-se levar por esse duplo exemplo; de maneira que Madame de Rosemonde se encontrou só à mesa com o velho comentador de T..., e ambos tomaram também o partido de se levantar. Fomos pois todos juntar-nos à minha bela, que encontramos no pequeno bosque perto do castelo; e como ela necessitava de solidão e não de passeio, tanto valeu para ela regressar conosco como fazer-nos ficar junto dela. Quando tive a certeza de que Madame de Volanges não teria ocasião de lhe falar a sós, pensei em executar as suas ordens e ocupeime dos interesses da sua pupila. Logo após o café, subi ao meu quarto, e entrei também nos dos outros, para reconhecer o terreno; tomei as minhas disposições para assegurar a correspondência da pequena; depois desse primeiro ato de benemerência, escrevi uma palavra para lhe dar instruções e lhe pedir a sua confiança e juntei o meu bilhete à carta de Danceny. Voltei ao salão. Aí encontrei a minha bela instalada numa cadeira de encosto num abandono delicioso. Este espetáculo, à medida que despertava os meus desejos, animava os meus olhares; senti que estes deviam ser ternos e insistentes, e coloquei-me de maneira a fazer uso deles. O primeiro efeito conseguido foi o de obrigar os grandes olhos modestos da celeste criatura a baixarem-se. Contemplei por algum tempo essa figura angélica; depois, percorrendo toda a sua pessoa, diverti-me a adivinhar os contornos e as formas através de um vestuário ligeiro, mas sempre importuno. Depois de ter descido da cabeça aos pés, tornei a subir dos pés à cabeça... Minha bela amiga, o doce olhar estava fixo em mim; de repente baixou
de novo, e eu desviei os olhos, a fim de favorecer o regresso dos seus. Então estabeleceu-se entre nós aquela conversação tácita, primeiro tratado do amor tímido, que, para satisfazer o desejo mútuo da vista, permite aos olhares sucederem-se esperando que se confundam. Persuadido de que a minha bela se entregara inteiramente a esse novo prazer, encarreguei-me de velar pela nossa comum segurança; mas, convencendo-me de que um diálogo vivo nos salvaria de sermos notados pelos que nos rodeavam, tratei de obter dos seus olhos que falassem uma linguagem franca. Para esse efeito tomei primeiro alguns olhares de surpresa, mas com tanta reserva que a modéstia não poderia ficar alarmada; e para pôr mais à vontade a tímida pessoa, eu próprio afetei tácita confusão como ela. Pouco a pouco os nossos olhos, acostumados a encontrarem-se, fixaram-se mais longamente; por fim não se deixaram mais; e surpreendi nos seus olhos aquela doce languidez, sinal feliz do amor e do desejo. Mas foi apenas por um momento; depressa voltando a si, mudou, não sem alguma vergonha, a posição e o olhar. Não querendo que ela tivesse alguma dúvida de que eu houvesse notado os seus diversos movimentos, levantei-me com vivacidade e perguntei-lhe, fingindo-me assustado, se se sentia mal. Nesse momento toda a gente veio rodeá-la. Deixei que todos passassem à minha frente; e como a pequena Volanges, que tecia um tapete perto da janela, levasse algum tempo a desembaraçar-se do trabalho, aproveitei a ocasião para lhe entregar a carta de Danceny. Eu estava um pouco afastado dela, lancei-lhe a epístola sobre os joelhos. Ela ficou sem saber que fazer. A minha amiga teria rido do seu ar de surpresa e embaraço; todavia eu não ri, temendo que tanta falta de jeito acabasse por nos trair. Mas um olhar e um gesto imperiosos fizeram-lhe enfim compreender que era preciso guardar a carta no bolso. O resto do dia não teve nada de interessante. O que depois se passou dará talvez lugar a acontecimentos de que a minha amiga ficará satisfeita, pelo menos no que diz respeito à sua pupila; mas vale mais empregar o tempo a executar projetos do que a contá-los. Além disso, é esta a oitava página que escrevo, e sinto-me fatigado. Por isso lhe digo adeus. Adivinha decerto, sem que eu lho diga, que a pequena respondeu a Danceny. Eu tive também resposta da minha bela, a quem escrevera no dia seguinte ao da minha chegada. Envio-lhe as duas cartas. Leia-as ou não as leia; pois essa perpétua maçada, que já não me diverte muito, deve ser muito insípida para qualquer pessoa desinteressada. Ainda uma vez, adeus. Continuo a amá-la sempre; mas, peçolhe, se voltar a falar-me de Prévan, faça-o de maneira que eu entenda. Do Castelo de...,17 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXXVII O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL De onde poderá vir, senhora, o empenho cruel que mostrais em fugir-me? Como pode dar-se que a mais terna dedicação da minha parte obtenha da vossa um procedimento que apenas seria permitido para o homem de quem tivésseis os maiores motivos de queixa? Pois quê? O amor conduz-me a vossos pés; e, quando um feliz acaso me coloca a vosso lado, apraz-vos fingir uma indisposição, alarmar os vossos amigos, em vez de consentirdes em ficar ao pé de mim ! Quantas vezes desviastes ontem os olhos para me privar do favor de um olhar? E se pude ver neles menos severidade por um único instante, esse momento foi tão curto que parece ter sido menos vosso intuito dar-me algum prazer do que fazer-me sentir o que eu perdia em ser dele privado. Não é esse, ouso dizê-lo, nem o tratamento que merece o amor, nem o que pode permitir-se a amizade; e todavia, desses dois sentimentos, bem sabeis se um deles me anima, e eu estava, pareceme, autorizado a supor que não vos recusaríeis ao outro. Essa amizade preciosa, da qual sem dúvida me julgastes digno, visto que ma quisestes oferecer, que fiz eu para a ter perdido depois? Ter-me-ei prejudicado pela minha confiança, e ter-me-eis punido pela minha franqueza? Não receais ao menos abusar de uma e de outra? Não foi, verdadeiramente, no seio da minha amiga que eu depus o segredo do meu coração? Não foi perante ela só que eu pude julgarme obrigado a recusar condições que me bastaria aceitar, para me dar a facilidade de não as manter, e talvez para delas abusar com vantagem? Querereis, enfim, por um rigor tão pouco merecido, obrigarme a supor que teria sido suficiente enganar-vos para obter mais indulgência? Não me arrependo de um procedimento que vos devia, que devia a mim próprio; mas por que fatalidade cada ação louvável se torna para mim o sinal de uma nova infelicidade? Foi depois de ter dado lugar ao único elogio que vos dignastes ainda fazer ao meu procedimento que tive, pela primeira vez, de gemer pela desgraça de vos ter desagradado. Foi depois de vos ter provado a minha submissão perfeita, privando-me da felicidade de vos ver, unicamente para tranqüilizar a vossa delicadeza, que quisestes romper toda a correspondência comigo, tirar-me essa frágil compensação de um sacrifício que havíeis exigido, e arrebatar-me até o amor que unicamente vos poderia dar tal direito. É enfim por vos ter falado com uma sinceridade que o próprio interesse desse amor não pôde enfraquecer, que hoje me fugis como a um sedutor perigoso, de que tivésseis reconhecido a perfídia.
Não vos cansareis nunca de ser injusta? Dizei-me ao menos que novos motivos de agravo puderam levar-vos a tanta severidade e não recuseis ditar-me as ordens que quereis que eu siga; pois que me comprometo a executá-las, não é pretender demasiado procurar conhecê-las. 15 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXXVIII A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT Pareceis, senhor, surpreendido pela minha conduta, e pouco falta mesmo para me pedirdes contas, como se tivésseis o direito de censurá-la. Confesso que me julgaria mais autorizada do que vós a admirarme e a queixar-me; mas, depois da recusa contida na vossa última carta, tomei o partido de me fechar numa indiferença que não deixa lugar às observações nem às censuras. Entretanto, como me pedis esclarecimentos, e como, graças ao Céu, não sinto nada em mim que possa impedir-me de os dar, desejo entrar ainda uma vez em explicações convosco. Quem lesse as vossas cartas julgar-me-ia injusta ou caprichosa. Julgo merecer que ninguém forme essa idéia de mim; pareceme sobretudo que, menos do que ninguém, estejais no caso de a formar. Sentistes, sem dúvida, que necessitando justificar-me me forçaríeis a recordar tudo o que se passou entre nós. Aparentemente supusestes que teríeis tudo a ganhar com esse exame; como, pelo meu lado, julgo não ter nada a perder, pelo menos aos vossos olhos, não receio sujeitar-me a ele. Talvez seja esse, na verdade, o único meio de conhecer qual de nós dois tem o direito de se queixar do outro. A contar do dia da vossa chegada a este castelo, devereis confessar, senhor, segundo creio, que pelo menos a vossa reputação me autoriza a usar de alguma reserva convosco, e que eu teria podido, sem recear ser acusada de um excesso de pudor, manter-me nas expressões da mais fria delicadeza. Vós próprio me teríeis tratado com indulgência, e teríeis achado natural que, uma mulher tão pouco formada não tivesse mesmo o mérito necessário para apreciar o vosso. Era esse precisamente o partido da prudência; e ter-me-ia custado tanto menos segui-lo, que não vos esconderei que, quando Madame de Rosemonde me veio dar parte da vossa chegada, tive necessidade de recordar a minha amizade por ela, e a que ela tem por vós, para não lhe deixar ver quanto essa notícia me contrariava.
Convenho de vontade que vos mostrastes primeiramente sob um aspecto mais favorável do que eu tinha imaginado; mas convireis por vosso lado que esse aspecto durou bem pouco e que depressa vos cansastes de uma obrigação, de que aparentemente vos não julgastes compensado pela idéia vantajosa que por ela formei a vosso respeito. Foi então que, abusando da minha boa fé, da minha tranqüilidade, não receastes comunicar-me um sentimento do qual não poderíeis duvidar que eu me sentisse ofendida; e, enquanto não vos ocupáveis senão de aumentar os vossos agravos, eu procurava um motivo para os esquecer, oferecendo-vos a ocasião para os reparardes, pelo menos em parte. O meu pedido era arvorando a minha indulgência como um direito, aproveitastes dela para um pedido ao qual, sem dúvida, eu não deveria aceder, e cuja permissão todavia obtivestes. Das condições que foram impostas, não cumpristes nenhuma; e a vossa correspondência era tal que cada uma das vossas cartas me punha no dever de não lhe responder. Foi no próprio momento em que a vossa obstinação me forçava a afastar-vos de mim que, por uma condescendência talvez censurável, tentei o único meio que podia permitir-me a vossa aproximação; mas que valor tem aos vossos olhos um sentimento honesto? Desprezais a amizade; e, na vossa louca embriaguez, desdenhando por completo a desgraça e a vergonha, procurais apenas prazeres e vítimas. Tão ligeiro no vosso procedimento como inconseqüente nas vossas censuras, esqueceis as promessas, ou antes, comprazeis-vos em violá-las, e, depois de terdes consentido em afastar-vos de mim, voltais aqui sem que fôsseis chamado; sem respeito pelas minhas súplicas, pelas minhas razões, sem terdes mesmo a atenção de me prevenir, não tivestes receio de me expor a uma surpresa cujo efeito, embora decerto bem natural, teria podido ser interpretado desfavoravelmente para mim, pelas pessoas que me rodeiam. Esse momento de confusão que fizestes nascer, longe de procurar distraí-lo ou dissimulá-lo, parecestes pôr todos os vossos cuidados em aumentá-lo. À mesa, escolhestes precisamente o vosso lugar ao lado do meu; uma ligeira indisposição obrigou-me a sair antes dos outros: em lugar de respeitardes a minha solidão, arrastastes toda a gente a vir perturbá-la. Voltando ao salão, se dou um passo; encontro-vos a meu lado; se digo uma palavra, sois sempre vós quem me responde. O dito mais indiferente serve-vos de pretexto para conduzir uma conversação que eu não desejaria ouvir, que pode mesmo comprometer-me; pois, enfim, senhor, por muita inteligência que haja nos vossos propósitos, creio que os outros podem também compreender aquilo que eu compreendo. Forçada assim por vós à imobilidade e ao silêncio, nem por isso deixais de perseguir-me; não posso levantar os olhos nem encontrar os vossos. Sou constantemente obrigada a desviar os meus olhares; e, por uma inconseqüência bem incompreensível, fazeis que todos os olhos se fixem em mim, num momento em que até aos meus próprios olhos eu desejaria furtar-me.
E queixais-vos do meu procedimento! E admirais-vos do meu empenho em vos fugir! Censurai-me antes a minha indulgência, admirai-vos de que eu não tenha partido no momento da vossa chegada. Talvez eu devesse tê-lo feito, e obrigar-me-eis a essa solução violenta mas necessária se não cessardes a vossa ofensiva perseguição. Não, não esqueço, não esquecerei nunca o que devo a mim própria, aos laços que formei, que respeito e amo; e peço-vos que acrediteis: se alguma vez me encontrar reduzida à escolha infeliz de os sacrificar ou me sacrificar a mim mesma, não hesitarei por um instante. Adeus, senhor. 16 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXXIX O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Contava ir à caça esta manhã, mas está um tempo detestável. Como leitura, tenho apenas um romance novo que aborreceria até um colegial. O almoço será daqui a duas horas, nunca menos. Assim, apesar da minha longa carta de ontem, vou de novo conversar com a minha amiga. Estou certo de não a aborrecer, pois vou falar-lhe do lindo Prévan. Como é possível que não conheça a sua famosa aventura, a que separou as inseparáveis? Aposto que se recordará dela às primeiras palavras. Sempre vou contá-la, visto que o deseja. Há de lembrar-se de que todo Paris se admirava que três mulheres, todas três bonitas, tendo todas três os mesmos talentos, e podendo ter as mesmas pretensões, continuassem intimamente ligadas entre si após o momento da sua entrada na sociedade. Julgou-se primeiro encontrar a razão na sua extrema timidez; mas logo, rodeadas por uma corte numerosa de que elas partilhavam as homenagens, e conhecendo o seu próprio valor pelo calor e pelas atenções de que eram objeto, a sua união tornou-se ainda mais forte. Dir-se-ia que o triunfo para uma era sempre o das duas outras. Esperava-se pelo menos que o momento do amor trouxesse também o de alguma rivalidade. Os nossos jovens namoradores disputavam-se a honra de ser o ponto de discórdia; e eu próprio me teria posto nas suas fileiras se os grandes favores que a Condessa de... me concedia por esse tempo me tivessem permitido ser-lhe infiel antes de obter a liberdade que solicitava. Entretanto as nossas três belezas, no mesmo Carnaval, fizeram a sua escolha como por combinação prévia; e essa escolha, longe de proporcionar a tempestade que se esperava, teve apenas como
resultado tornar a amizade delas mais interessante pelo encanto das confidências. A multidão dos pretendentes infelizes juntou-se então à das mulheres ciumentas e a escandalosa constância foi submetida à censura pública. Uns pretendiam que, na sociedade das inseparáveis (assim lhe chamavam então), a lei fundamental era a comunidade de bens e que até o amor lhe estava submetido; outros asseguravam que os três amantes, livres de rivais masculinos, não o eram de rivais femininos; chegou mesmo a dizer-se que só por decência eles tinham sido admitidos, e haviam obtido apenas um título sem funções. Estes rumores, verdadeiros ou falsos, não tiveram o efeito que se esperava. Os três pares, pelo contrário, sentiram-se que estavam perdidos se se separassem naquele momento, e tomaram o partido de enfrentarem a tempestade. O público, que se cansa de tudo, depressa se cansou de uma sátira infrutuosa. Levado pela sua ligeireza natural, ocupou-se de outros assuntos; depois, voltando a este com a sua inconseqüência habitual, transformou a notícia em elogio. Como tudo se passa consoante as modas, o entusiasmo venceu; tornou-se um verdadeiro delírio, quando Prévan tomou a peito verificar aqueles prodígios e fixar sobre eles a opinião pública e a sua. Procurou pois tais modelos de perfeição. Admitido facilmente na sua sociedade, daí tirou um augúrio favorável. Ele sabia bem que as pessoas felizes não são de fácil acesso. Depressa viu, de fato, que uma tão louvada felicidade era, como a dos reis, mais invejada que desejada. Notou que, entre os pretendidos inseparáveis, se começava a procurar os prazeres do exterior, que já se ocupavam de distrações; e concluiu que os laços de amor e de amizade começavam a afrouxar ou a romper-se e que só os do amor-próprio e do hábito conservavam a sua força. Entretanto as mulheres, que a necessidade reunia, conservavam entre elas a aparência da mesma intimidade; mas os homens, mais livres no seu comportamento, reencontravam deveres a cumprir ou negócios a seguir. Soltavam ainda alguns queixumes, mas já não se dispensavam deles, e raramente os serões eram completos. Este procedimento foi proveitoso ao assíduo Prévan, que, colocado naturalmente junto da abandonada do dia, ia oferecendo alternadamente, e segundo as circunstâncias, a mesma homenagem às três amigas. Facilmente compreendeu que fazer uma escolha entre elas seria perder-se; que a falsa vergonha de se considerar a primeira infiel encheria de susto a preferida; que a vaidade ferida das duas outras as tornaria inimigas do novo amante e que não deixariam de brandir contra ele a severidade dos grandes princípios; enfim, que o ciúme por certo chamaria as atenções dum rival que podia ser ainda para temer. Tudo se tornaria obstáculo; tudo ficava fácil no seu tríplice projeto: cada
mulher seria indulgente porque estava interessada, cada homem, porque julgava não o estar. Prévan, que então tinha apenas uma mulher a sacrificar, teve a felicidade de ver a sua amante célebre de um momento para o outro. A sua qualidade de estrangeira e a homenagem de um grande príncipe recusada com bastante desenvoltura tinham fixado sobre ela as atenções da corte e da cidade; o seu amante partilhava essas honras, e delas aproveitou junto das suas novas amantes. A única dificuldade estava em levar avante as três intrigas, cujo desenvolvimento tinha forçosamente de regular-se pela mais tardia; de fato, vim a saber por um dos seus confidentes que a sua maior pena foi a de ter de suspender uma, que esteve prestes a atingir o êxito cerca de quinze dias antes das outras. Enfim, o grande dia chegou. Prévan, que tinha obtido as três confissões, achava-se já senhor dos acontecimentos, e ordenou-os como vai ver. Dos três maridos, um estava ausente, o outro partia no dia seguinte muito cedo, o terceiro estava na cidade. As inseparáveis amigas deviam cear em casa da futura viúva; mas o novo senhor não tinha permitido que os antigos servidores fossem convidados. Na manhã desse mesmo dia, fez três coleções das cartas da sua bela, juntou a uma delas um retrato que dela tinha recebido, à segunda juntou uma cifra amorosa que ela própria pintara, à terceira um anel dos seus cabelos; cada uma recebeu por completo esta terça parte de sacrifício, e consentiu, em troca, em enviar ao amante caído em desgraça uma retumbante carta de rompimento. Era muito; não o era bastante. Aquela cujo marido estava na cidade só podia dispor daquele dia; combinaram que uma fingida indisposição a dispensaria de ir cear a casa da amiga e que o serão seria reservado a Prévan; a noite foi destinada para aquela cujo marido estava ausente; e o romper do dia, momento da partida do terceiro esposo, foi marcado para a última, para os gozos do amor. Prévan, que não descuida nada, corre em seguida a casa da bela estrangeira, inventa um estado de espírito que suscita o mau humor de que ele necessitava, e sai depois de conseguir uma discussão que lhe assegura vinte e quatro horas de liberdade. Assim tomadas as suas disposições, entra em casa, contando repousar um pouco; outros assuntos o esperavam. As cartas de rompimento tinham sido um súbito clarão para cada um dos amantes caídos em desgraça; nenhum deles podia duvidar de que o seu sacrifício aproveitava a Prévan. E o despeito de ter sido joguete, junto à imitação que traz quase sempre a pequena humilhação de se ser abandonado, deu aos três, sem se comunicarem, mas como se estivessem combinados, a resolução de pedirem uma satisfação ao seu afortunado rival. Este encontrou em casa os três desafios; aceitou-os lealmente; mas, não querendo perder nem os prazos nem o brilho desta aventura, fixou os encontros para o dia seguinte de manhã, e indicou aos três o
mesmo lugar e a mesma hora. Foi a uma das portas do Bosque de Bolonha. Chegada a noite correu a sua tríplice aventura com um êxito igual; pelo menos gabou-se depois de que cada uma das suas novas amantes recebera três vezes o penhor e o juramento do seu amor. Aqui, como está vendo, faltam provas à história; tudo o que o historiador imparcial pode fazer é observar ao leitor incrédulo que a vaidade e a imaginação exaltadas podem obrar prodígios, tanto mais que a manhã que devia seguir-se a uma brilhante noite parecia dever dispensar reservas para o futuro. De qualquer modo, os fatos que se seguem inspiram maior certeza. Prévan dirigiu-se à hora exata ao encontro que marcara; no local viu-se em presença dos seus três rivais, um tanto surpreendidos do mútuo encontro, e cada um deles talvez já consolado em parte, vendose no meio de companheiros de infortúnio. Abordou-os com ar afável e cavalheiresco, e dirigiu-lhes esta fala, que me foi reproduzida fielmente: "Senhores", disse-lhes ele, "uma vez que vos encontro reunidos aqui, adivinhantes sem dúvida que tendes os três o mesmo motivo de queixa contra mim. Estou pronto a dar-vos razão. Que a sorte decida, entre vós, qual dos três tentará primeiro uma vingança à qual tendes um direito igual. Não trouxe padrinho nem testemunhas. Não os instituí para a ofensa; não os exijo para a reparação". Depois, cedendo ao seu caráter de jogador, acrescentou: "Eu sei que raramente se ganha em jogos de azar; mas, seja qual for a sorte que me espera, já se viveu sempre bastante quando se teve tempo de adquirir o amor das mulheres e a estima dos homens." Enquanto os seus adversários estupefatos se olhavam em silêncio, e na sua delicadeza calculavam talvez que o triplo amante impedia que a partida fosse igual, Prévan retomou a palavra: "Não vos escondo", continuou ele, "que a noite que acabo de passar me fatigou cruelmente. Seria generoso da vossa parte que me permitísseis reparar as minhas forças. Dei as minhas ordens para que tivessem aqui pronto um almoço; dai-me a honra de o aceitar. Almocemos juntos e, sobretudo, almocemos alegremente. Podemos bater-nos por semelhantes bagatelas; no entanto elas não devem, creio eu, alterar o nosso humor". O almoço foi aceito. Segundo se disse, nunca Prévan foi mais amável. Teve a habilidade de não humilhar nenhum dos seus rivais, de os persuadir e que todos teriam conseguido facilmente os mesmos êxitos, e sobretudo de os pôr de acordo em que nenhum deles deixaria escapar as ocasiões, tal como ele, Prévan. Uma vez confessados estes fatos, tudo se arranjou por si mesmo. Ainda o almoço não tinha terminado, já haviam repetido dez vezes que semelhantes mulheres não mereciam que homens honestos se batessem por elas. Esta idéia trouxe a cordialidade; o vinho fortificou-a; tão bem que, poucos momentos
depois, já não era bastante não haver entre eles rancor, juraram-se amizade sem reserva. Prévan, que sem dúvida gostava tanto deste desenlace como do outro, não desejava todavia perder ali a sua celebridade. Em conseqüência, submetendo habilmente os seus projetos às circunstâncias, disse aos três ofendidos: "De fato, não é de mim, mas das vossas infiéis amantes que deveis vingar-vos. Ofereço-vos a ocasião. Como vós próprios, sinto já uma injúria que dentro em breve partilharei: pois se cada um de vós não conseguiu conservar a fidelidade de uma só, posso porventura esperar á fidelidade das três? A vossa ofensa tornou-se minha. Aceitai para esta noite uma ceia em minha casa, e espero que a vossa vingança não ficará adiada por muito tempo.” Quiseram que ele se explicasse; porém ele, com o tom de superioridade que as circunstâncias o autorizavam a tomar: "Senhores" respondeu, "creio ter-vos provado que sei como conduzir-me; tende confiança em mim". Todos consentiram; e, depois de terem abraçado o seu novo amigo, separaram-se até à noite, esperando o efeito das promessas. Sem perda de tempo, Prévan regressa a Paris, e vai, consoante o uso, visitar as suas novas conquistas. Obtém das três que viriam naquela mesma noite cear a sós com ele em sua casa. Duas delas opuseram algumas dificuldades; mas que fica para recusar no dia seguinte? Marcou os encontros com uma hora de distância, tempo necessário aos seus projetos. Depois desses preparativos, retirou-se, mandou avisar os outros três conjurados, e todos quatro foram alegremente esperar as suas vítimas. Ouviu-se chegar a primeira. Prévan apresenta-se só, recebe-a com ar de solicitude, conduz-la até ao santuário de que ela se julgava a divindade; depois, desaparecendo sob um ligeiro pretexto, faz-se substituir imediatamente pelo amante ultrajado. Como decerto imagina, a confusão de uma mulher que não tem ainda a experiência das aventuras tornava, em tal momento, o triunfo muito fácil. Toda a censura que não foi feita foi contada por uma graça; e a escrava fugitiva, entregue de novo ao seu antigo senhor, sentiu-se muito feliz por poder esperar o seu perdão, retomando as suas primeiras algemas. O tratado de paz ratificou-se num lugar mais solitário, e a cena, ficando vazia, foi alternadamente ocupada pelos outros atores, mais ou menos da mesma maneira, e sobretudo com o mesmo desfecho. Todavia, cada uma das mulheres julgava-se ainda só em campo. O seu espanto e o seu embaraço aumentaram quando, no momento da ceia, os três pares se reuniram; mas a confusão chegou ao cúmulo quando Prévan, que reapareceu no meio de todos, teve a crueldade de apresentar às três infiéis umas desculpas que, divulgando o seu segredo, lhes revelaram inteiramente até que ponto elas tinham sido burladas. Entretanto puseram-se à mesa e pouco depois a moderação voltou: os homens entregaram-se, as mulheres submeteram-se.
Todos tinham o ódio no coração; mas as palavras trocadas não eram por isso menos ternas. A alegria despertou o desejo, que, por seu turno, lhe emprestou novos encantos. Esta espantosa orgia durou até de manhã; e, quando se separaram, as mulheres julgaram-se perdoadas. Mas os homens, que tinham conservado o seu ressentimento, procederam no dia seguinte a um rompimento que não teve apelo; e, não contentes de deixar as suas levianas amantes, terminaram a sua vingança dando a público a aventura. Desde então, uma delas está num convento, e as outras duas definham exiladas nas suas terras. Aqui está a história de Prévan; cumpre-lhe, Marquesa, julgar se deseja aumentar a sua glória e atrelar-se ao seu carro de triunfo. A sua carta causou-me verdadeira inquietação e espero com impaciência uma resposta mais ajuizada e mais clara à última que lhe escrevi. Adeus, minha bela amiga; desconfie das idéias divertidas ou excêntricas que tão facilmente a têm seduzido sempre. Pense que, na trajetória que a minha amiga segue, a inteligência não basta, e que uma única imprudência pode tornar-se um mal sem remédio. Suporte enfim que a prudente amizade seja algumas vezes o guia dos seus prazeres. Adeus. Apesar de tudo, continuo a gostar de si como se fosse razoável. 18 de Setembro de 17* *.
CARTA LXXX O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES Cecília, minha querida Cecília, quando virá o tempo de voltarmos a ver-nos? Quem me ensinará a viver longe de si? Quem me dará para isso força e coragem? Nunca, sinto que nunca poderei suportar esta fatal ausência. Cada dia aumenta o meu sofrimento, e não posso ver-lhe um termo! Valmont, que me tinha prometido socorros, consolações, Valmont descuida-se, e esquece-me talvez. Está junto daquela que ele ama; não sabe quanto sofre aquele que está afastado. Ao enviar-me a sua última carta, não me escreveu. No entanto é ele quem deve dizer-me quando poderei vê-la e por que meio. Nada terá pois a dizer-me? A Cecília mesmo não me fala em tal; será por não partilhar esse desejo? Ah! Cecília, sou muito infeliz. Amo-a mais do que nunca: mas esse amor, que faz o encanto da minha vida, torna-se o tormento dela. Não, não posso mais viver assim, é preciso que eu a veja, é preciso, nem que seja por um momento. Quando me levanto, digo a
mim mesmo: "Não a verei." Deito-me dizendo: "Não a vi." Os dias tão longos não têm um momento para a felicidade. Tudo é privação, tudo é saudade, tudo é desespero; e todos estes males me vêm de onde eu esperava todos os meus prazeres! Acrescente a estas penas mortais a minha inquietação sobre as suas, e fará uma idéia da minha situação. Penso em si a todo o momento, e nunca penso sem perturbação. Se a vejo aflita, infeliz, sofro por todas as suas tristezas; e se a vejo tranqüila e consolada, são as minhas que redobram. Por toda a parte encontro o sofrimento. Ah! não era assim, quando habitava os mesmos lugares do que eu! Tudo então era prazer. A certeza de a ver embelezava mesmo os momentos da ausência; o tempo que era preciso passar longe de si aproximava-me da Cecília enquanto ia passando. O emprego que eu fazia dele nunca era estranho à Cecília. Se cumpria deveres, estes tornavam-me mais digno de si; se cultivava algum talento, esperava agradar-lhe cada vez mais. Mesmo quando as distrações da sociedade me levavam para longe de si, nunca estávamos separados. Nos espetáculos, procurava adivinhar o que lhe teria agradado; um concerto recordava-me os seus talentos e as nossas tão doces ocupações. Na sociedade, como nos passeios, aprendia a mais ligeira semelhança. Comparava-a a tudo; por toda a parte era a Cecília quem levava a palma. Cada momento do dia era marcado por uma homenagem nova, e cada noite eu lhe levava o tributo a seus pés. Agora, que me resta? Dolorosas saudades, privações eternas, e uma ligeira esperança de que o silêncio de Valmont diminua, que o seu se mude em inquietação. Dez léguas somente nos separam, e este espaço, tão fácil de transpor, só para mim se torna num obstáculo invencível! E quando, para me ajudar a vencê-lo, imploro o meu amigo, a minha amada, ambos ficam frios e tranqüilos! Longe de me socorrerem, nem mesmo me respondem. Que é feito da amizade ativa de Valmont? Que é feito, sobretudo, minha Cecília, dos seus sentimentos tão ternos, que a tornavam tão engenhosa para encontrar maneira de nos vermos todos os dias? Algumas vezes, recordo-me, sem deixar de o desejar, via-me obrigado a sacrificar esse desejo a considerações, a deveres. O que não me dizia então a Cecília? Por quantos pretextos não combatia as minhas razões? E lembre-se de que as minhas razões cediam sempre aos seus desejos. Não pretendo extrair daí um mérito! Nem mesmo tinha o do sacrifício! O que a Cecília desejava obter, ardia eu em desejos de concedê-lo! Mas, enfim, cabe-me agora a vez de pedir; e que peço eu? Vêla por um momento, renovar e receber o juramento dum amor eterno. Pois já não está aí a sua felicidade, como está a minha?
Repito essa idéia desesperadora, que poria o cúmulo aos meus males.
A Cecília ama-me, amar-me-á sempre; creio-o, estou certa disso, não quero duvidar jamais. Mas a minha situação é horrorosa e não posso suportá-la por mais tempo. Adeus, Cecília. Paris, 18 de Setembro de 17* *.
CARTA LXXXI A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Como os seus temores me causam piedade! Como me provam a minha superioridade sobre o Visconde! E quer ensinar-me, conduzirme! Ah! meu pobre Valmont, que distância vai ainda de si a mim! Não, todo o orgulho do seu sexo não seria suficiente para preencher o intervalo que nos separa. Porque não poderia executar os meus projetos, julga-os impossíveis! Ente orgulhoso e fraco, fica-te bem quereres calcular os meus meios e julgar dos meus recursos! Na verdade, Visconde, os seus conselhos conseguiram irritar-me, e não posso esconder-lho. Que para mascarar a sua inacreditável falta de jeito em relação à sua Presidente o Visconde ostente como um triunfo o fato de ter confundido por um momento essa mulher tímida e que o ama, consinto; ter obtido dela um olhar, um único olhar, sorrio e passo adiante. Que sentindo, a seu pesar, o pouco valor das suas diligências, espere furtálas à minha atenção, lisonjeando-me pelo esforço sublime de aproximar duas crianças que ardem no desejo de se ver, e que, diga-se de passagem, devem a mim somente o ardor desse desejo; admito-o ainda. Que, enfim, a si mesmo autorize essas ações brilhantes, para me dizer num tom doutoral que vale mais empregar o tempo a executar projetos do que a contá-los; essa vaidade não me prejudica, e perdoolha. Mas que possa supor que eu tenho necessidade da sua prudência, que eu poderia perder-me se não escutasse as suas opiniões, que devo sacrificar-lhes um prazer, uma fantasia; na verdade, Visconde, é exorbitar da confiança que desejo ter em si! Que tem o Visconde feito que eu não tenha ultrapassado mil vezes? Seduziu, perdeu mesmo muitas mulheres: mas que dificuldade teve a vencer? que obstáculos a ultrapassar? Onde está o mérito que verdadeiramente lhe caiba? Uma bela figura, puro efeito do acaso; maneiras graciosas, que o hábito dá quase sempre; espírito, na verdade, mas o qual uma certa gíria de salão substitui em caso de
necessidade; um impudor muito louvável, mas talvez devido unicamente à facilidade dos seus primeiros êxitos. Se me não engano, eis todos os seus dotes; pois, para a celebridade que pôde adquirir, não exigirá, creio, que conte por muito a arte de suscitar ou aproveitar a ocasião dum escândalo. Quanto à prudência, à finura, não falo de mim: mas que; mulher não as possui de melhor qualidade que o Visconde? Oh! a sua Presidente leva-o como uma criança. Creia-me, Visconde, raramente se adquirem as qualidades sem as quais se pode passar. Combatendo sem risco, deve-se; agir sem precaução. Para vós, os homens, as derrotas são apenas êxitos a menos. Neste combate tão desigual, a nossa sorte está em não perder e a vossa infelicidade em não ganhar. Ainda que eu concedesse aos homens tantos talentos como a nós, mulheres, em quantos teríamos nós ainda de ultrapassá-los, pela necessidade em que estamos de fazer deles um uso contínuo! Suponhamos, admito, que vocês põem tanta habilidade em vencer-nos como nós a defender-nos ou a ceder; convirá ao menos que ela se lhes torne útil após a vitória. Unicamente ocupados do sabor que achais na nova ligação, entregais-vos a ela sem receio, sem reserva; o tempo que ela poderá durar não vos interessa. De fato, esses laços reciprocamente dados e recebidos, para falar na gíria do amor, só vós podeis, à vossa escolha, estreitá-los ou rompê-los; felizes ainda se na vossa ligeireza, preferindo o mistério ao ruído, vos contentais com um abandono humilhante e não fazeis do ídolo da véspera a vítima de manhã. Mas que uma mulher infortunada sinta primeiro o peso da sua cadeia que riscos não terá a correr se tentar subtrair-se a ela, se ousar somente soerguê-la? Se experimenta afastar de si o ! homem que o seu coração repele com esforço, é tremendo que o faz. Se ele se obstina em ficar, é forçoso entregar ao medo o que antes era concedido ao amor. A sua prudência deve desatar com destreza aqueles mesmos laços que vós teríeis desfeito. À mercê do seu inimigo, ela fica sem recursos, se ele não tiver generosidade; e como esperar tal sentimento, quando, se algumas vezes o louvam quando o tem, nunca todavia o censuram por ele lhe faltar? Os seus braços abrem-se ainda, quando o seu coração está fechado. O Visconde não negará, sem dúvida, estas verdades, cuja evidência as tornou triviais. Se, entretanto, alguma vez me viu, dispondo dos acontecimentos e das opiniões, fazer desses homens tão temíveis o joguete dos meus caprichos ou das minhas fantasias; tirar a uns a vontade, a outros o poder de me serem nocivos; se eu soube, pouco a pouco, e consoante a variedade dos meus gostos, juntar ao meu séqüito ou expulsar da minha beira; se, em meio dessas revoluções
freqüentes, a minha reputação apesar de tudo se conservou pura; não deverá o Visconde concluir que, nascida para vingar o meu sexo e dominar o seu, eu soube inventar para o meu uso meios desconhecidos até de mim própria? Ora! guarde os seus conselhos e os seus receios para certas mulheres delirantes, das quais se diz serem sentimentais; cuja imaginação exagerada levaria a supor que a Natureza lhes pôs os sentidos na cabeça; que, não tendo nunca refletido, confundem sem cessar o amor e o amante; que, na sua louca ilusão, acreditam que só o homem com quem procuraram o prazer é o seu único depositário; e que, verdadeiramente supersticiosas, têm pelo sacerdote o respeito e a fé que se deve apenas à divindade. Pode ainda ter receio por aquelas que, mais superficiais do que prudentes, não sabem consentir, se for necessário, em serem abandonadas. Deverá tremer principalmente pelas mulheres ativas na sua ociosidade, a quem o Visconde chama sensíveis, e das quais o amor se apodera tão facilmente e com tamanha força; que sentem a necessidade de se ocuparem ainda do amor, mesmo quando dele não podem já extrair prazer algum; e que, abandonando-se à fermentação das suas idéias, inventam para si próprias cartas tão doces, mas tão perigosas de escrever, e que não receiam confiar essas provas da sua fraqueza ao próprio objeto que lhes deu causa. Imprudentes que, no seu atual amante, não sabem ver o seu futuro inimigo! Mas que tenho eu de comum com essas mulheres irrefletidas? Quando me viu o Visconde afastar-me das regras que a mim própria determinei, e faltar aos meus princípios? Os meus princípios, repito-o, e digo-o deliberadamente, pois eles não são, como os das outras mulheres, colhidos ao acaso, aceites sem análise e seguidos por hábito; são o fruto das minhas profundas reflexões. Criei-os, e posso dizer que são a minha obra. Entrando na sociedade num tempo em que, criança ainda, as circunstâncias me condenavam ao silêncio e à inação, delas soube tirar proveito para observar e refletir. Enquanto me julgavam estouvada ou distraída, não dando ouvidos à verdade dos ensinamentos que me dispensavam, eu recolhia cuidadosamente tudo o que procuravam esconder-me. Essa curiosidade útil, ao mesmo tempo em que servia para me instruir, ensinava-me a dissimular. Obrigada muitas vezes a esconder dos olhos dos que me rodeavam os motivos que me chamavam a atenção, experimentei pousar os meus no que me agradasse; o resultado desde logo foi ter adotado aquele olhar sem constrangimento que o Visconde tantas vezes me gabou. Animada por este primeiro êxito, tratei de regular, pelo mesmo processo, os diversos movimentos do meu rosto. Se sentia qualquer apreensão, estudava-me até assumir um ar de serenidade ou mesmo de alegria; levei o meu zelo ao ponto de a mim própria causar dores
voluntárias, para durante esse tempo procurar a expressão do prazer. Com o mesmo cuidado e maior custo, exercitei-me a reprimir os sintomas de uma alegria inesperada. Foi assim que consegui tomar sobre a minha fisionomia aquele domínio que algumas vezes admirou em mim. Eu era ainda muito nova e quase sem interesse; mas só tinha de meu os próprios pensamentos, e indignava-me à idéia de que mos pudessem roubar ou surpreender contra minha vontade. Munida dessas primeiras armas, experimentei servir-me delas. Não me satisfazia o não me deixar penetrar: divertia-me mostrarme sob formas diferentes. Dominando os meus gestos, observava as minhas falas. Uns e outras eram regulados segundo as circunstâncias, ou mesmo segundo as minhas fantasias. Desde então, a minha maneira de pensar pertenceu-me a mim só, e não mostrei nunca senão o que me era útil deixar ver. Este trabalho sobre mim própria fixou a minha atenção sobre a expressão dos rostos e o caráter das fisionomias; e adquiri esta mirada penetrante, na qual a experiência todavia me ensinou a não me fiar inteiramente, mas que, em todos os casos, raramente me enganou. Ainda não tinha quinze anos, possuía já os talentos a que a maior parte dos nossos políticos devem a sua reputação, e encontravame ainda nos rudimentos da ciência que pretendia adquirir. Como pode calcular, procurava, como todas as raparigas, adivinhar o amor e os seus prazeres; mas, não tendo passado pelo convento, não possuindo uma amiga segura, e guardada por uma mãe vigilante, tinha apenas idéias vagas e que não podia fixar. A própria natureza, da qual mais tarde, seguramente, só tive de me louvar, não me dava ainda qualquer indício. Dir-se-ia que trabalhava em silêncio para aperfeiçoar a sua obra. Só a minha cabeça fermentava; o meu desejo não era gozar, era saber. O desejo de me instruir sugeriu-me os meios. Senti que o único homem com quem podia falar sobre esse assunto, sem me comprometer, era o meu professor. E logo tomei o meu partido. Passei por cima dessa pequena vergonha; e, gabando-me duma falta que não tinha cometido, acusei-me de ter feito tudo o que fazem as mulheres. Tal foi a expressão de que usei; mas, falando assim, eu não sabia na verdade que idéia exprimia. A minha esperança não foi de todo iludida, nem inteiramente realizada; o receio de me trair impedia-me de me esclarecer. Mas o bom do padre pintou-me o mal tão grande que eu concluí que o prazer devia ser extremo; e ao desejo de o conhecer sucedeu o de o saborear. Não sei onde esse desejo me teria conduzido; e, faltando-me por completo a experiência, uma única oportunidade ter-me-ia talvez perdido.
Felizmente para mim, minha mãe anunciou-me alguns dias depois que eu ia casar-me. A certeza de que ia saber extinguiu imediatamente a minha curiosidade, e cheguei virgem aos braços do senhor de Merteuil. Era com tranqüilidade que esperava o momento que tudo devia ensinar-me e foi-me preciso refletir para mostrar confusão e receio. A primeira noite, de que geralmente se tem uma idéia tão cruel ou tão doce, apresentava-me apenas uma ocasião de experiência: dor e prazer, tudo eu observava com exatidão, e nessas diversas sensações via apenas fatos para recolher e meditar. Este gênero de estudo depressa começou a agradar-me; mas, fiel aos meus princípios, e sentindo, talvez por instinto, que ninguém devia estar mais longe da minha confiança do que o meu marido, resolvi, pelo simples fato de que era sensível, mostrar-me impassível a seus olhos. Esta frieza aparente foi, ao longo do tempo, o fundamento inabalável da sua cega confiança. Juntei-lhe, após uma segunda reflexão, o aspecto estouvado que a minha idade autorizava; e nunca ele me julgou mais criança do que nos momentos em que com mais audácia eu o iludia. Entretanto, devo confessá-lo, deixei-me primeiro arrastar pelo turbilhão do mundo, e entreguei-me inteiramente às suas distrações fúteis. Mas ao fim de alguns meses, tendo-me o senhor de Merteuil levado a partilhar as suas tristes férias no campo, o medo do aborrecimento fez com que me voltasse o gosto do estudo; e encontrando-me rodeada apenas de pessoas cuja distância de mim me punha ao abrigo de toda a suspeita, aproveitei a ocasião para dar um campo mais vasto às minhas experiências. Foi ali, principalmente, que obtive a certeza de que o amor que nos louvam como a causa dos nossos prazeres é apenas, quando muito, o seu pretexto. A doença do senhor de Merteuil veio interromper tão doces ocupações; foi necessário segui-lo à cidade, onde ele ia procurar socorros. Morreu, como sabe, pouco tempo depois; e embora, no fim de contas, eu não tivesse de me queixar dele, nem por isso senti menos vivamente o preço da liberdade que a minha viuvez ia proporcionarme, e a mim própria prometi aproveitar bem essa liberdade. Minha mãe contava que eu entrasse num convento, ou voltasse a viver com ela. Recusei uma e outra solução; e tudo o que concedi à decência foi voltar ao mesmo lugar no campo, onde me restavam ainda algumas observações a fazer. Essas observações ganharam força com o auxílio da leitura; mas não julgue que foram todas do gênero que supõe. Estudei os nossos costumes nos romances; as nossas opiniões nos filósofos; procurei mesmo nos mais severos moralistas o que eles exigiam de nós, e soube assim o que se podia fazer, o que se devia pensar e o que era preciso parecer. uma vez fixada sobre esses três pontos, só último apresentava
algumas dificuldades na sua execução; esperei vencê-las e medirei nos meios. Começava a aborrecer-me dos meus prazeres rústicos, demasiado monótonos para a minha imaginação; sentia uma necessidade de coquetismo que me reconciliasse com o amor; não para verdadeiramente o sentir, mas para o inspirar e o fingir. Em vão me haviam dito e eu tinha lido que não se podia fingir esse sentimento; eu via, no entanto, que para o conseguir bastava juntar à inteligência de um autor o talento de um comediante. Experimentei os dois gêneros, e talvez com algum êxito; mas em lugar de procurar os vãos aplausos do teatro, resolvi empregar na minha felicidade o que tantos outros sacrificavam à vaidade. Um ano se passou nessas diversas ocupações. Como o meu luto já me permitia voltar a aparecer, regressei à cidade com os meus grandes projetos; não esperava o primeiro obstáculo que aí encontrei. Aquela longa solidão, aquele retiro austero tinham lançado sobre mim uma aparência de virtude que amedrontava os nossos galãs; mantinham-se afastados e deixavam-me entregue a uma multidão de aborrecidos senhores, que pretendiam todos a minha mão. O embaraço não estava em recusá-los; mas várias dessas recusas desagradavam à minha família, e eu perdia nessas questões internas o tempo que prometera a mim mesma gastar tão agradavelmente. Fui pois obrigada, para atrair uns e afastar os outros, a pôr em relevo algumas inconseqüências e a empregar em prejudicar a minha reputação, o cuidado que pensava aplicar em conservá-la. Consegui-o facilmente, como pode imaginar. Mas não me sentindo arrebatada por nenhuma paixão, fiz só o que julguei necessário, e medi com prudência as doses da minha leviandade. Logo que atingi o fim que me propusera voltei ao ponto de partida e fiz promessas de emenda a algumas daquelas mulheres que, não podendo ter pretensões a agradar, se pavoneiam com as do mérito e da virtude. Foi um lance de dados que me valeu mais do que eu esperava. Aquelas reconhecidas donas arvoraram-se em minhas apologistas; e o zelo cego que empregaram para louvar o que elas chamavam a sua obra chegou ao ponto de, à menor frase que alguém se permitisse a meu respeito, todo o partido da virtude gritar contra o escândalo e a injúria. Pelo mesmo processo consegui ainda a aprovação das mulheres que pretendiam agradar, as quais, persuadidas de que eu renunciava a seguir carreira idêntica à sua, me escolheram para alvo dos seus elogios, todas as vezes que queriam provar que não diziam mal de toda a gente. Entretanto, a minha anterior conduta tinha atraído os apaixonados; e, para me equilibrar entre eles e as minhas infiéis protetoras, mostrei-me como uma mulher sensível, mas difícil, a quem o excesso de delicadeza fornece armas contra o amor. Então comecei a desenvolver no grande teatro os talentos que dera a mim própria. O meu primeiro cuidado foi o de adquirir o renome
de invencível. Para chegar a isso, os homens que não me agradavam foram sempre os únicos de quem simulei aceitar as homenagens. Empreguei-os utilmente em alcançar por meio deles as honras da resistência, enquanto me entregava sem receio ao amante preferido. Mas a esse a minha fingida timidez não permitiu nunca que me seguisse na sociedade; e os olhares do mundo fixaram-se, desse modo, no amante recusado. Sabe, meu amigo, que levo pouco tempo a decidir-me; é por ter observado que são quase sempre os cuidados anteriores que revelam o segredo das mulheres. Por muito que se faça, o tom nunca é o mesmo, antes e depois do acontecimento. Esta diferença não escapa ao observador atento, e achei menos perigoso enganar-me na escolha do que deixar-me penetrar. Ganho ainda com esse procedimento afastar as evidências, que fornecem os únicos elementos para nos julgarem. Estas precauções, e ainda a de nunca escrever, não entregar nunca uma prova da minha derrota, poderiam parecer excessivas; a mim nunca me pareceram suficientes. Desci ao fundo do meu coração, e nele estudei o dos outros. Soube assim que não há ninguém que não conserve aí um segredo que não deve ser revelado; eis uma verdade que a Antiguidade parece ter conhecido melhor do que nós, e da qual a história de Sansão poderia ser apenas uma engenhosa alegoria. Nova Dalila, empreguei sempre, como ela, o meu poder em surpreender esse importante segredo. Quantos Sansões modernos não tive eu já com a cabeleira sob a minha tesoura! E a esses, deixei eu de temer; são os únicos que me tenho permitido humilhar algumas vezes. Mais subtil com os outros, a arte de os tornar infiéis para evitar parecer-lhes volúvel, uma fingida amizade, uma aparente confiança, alguns rasgos generosos, a idéia lisonjeira que cada um conserva de ter sido o meu único amante, tudo serviu para obter o seu silêncio. Por fim, quando esses meios me faltaram, soube, antes de romper, abafar de antemão, sob o ridículo ou a calúnia, a confiança que esses homens perigosos pudessem obter. O que lhe estou dizendo, tem-me o Visconde visto praticar constantemente; e duvida da minha prudência! Pois bem: evoque o tempo em que me dispensou as suas primeiras atenções. Nunca uma homenagem me lisonjeou tanto; desejava-o antes de o ter visto. Seduzida pela sua reputação, parecia-me que fazia falta à minha glória. Ardia no desejo de o combater corpo a corpo. Foi o único dos meus prazeres que teve algum império sobre mim. Entretanto, se o Visconde tivesse querido perder-me, que meios teria encontrado? Palavras vãs que não deixam sulco atrás de si, que a sua própria reputação teria ajudado a tornar suspeitas, e uma sucessão de fatos sem verossimilhança, cuja narração sincera teria o ar de um romance mal urdido.
É certo que, mais tarde, vim a entregar-lhe todos os meus segredos; mas o Visconde sabe os interesses que nos unem, e se, de nós dois, sou eu quem deve culpar-se de imprudência.* Já que estou em maré de lhe prestar contas, desejo fazê-lo com exatidão. Daqui ouço-o dizer-me que estou, pelo menos, à mercê da minha criada de quarto; de fato, se ela não possui o segredo dos meus sentimentos, possui o dos meus atos. Quando o Visconde em tempos me falou a esse respeito, respondi-lhe apenas que estava segura dela; e a prova de que esta resposta bastou então para a sua tranqüilidade é que depois disso lhe confiou, por sua conta, segredos bastante perigosos. Mas agora que Prévan lhe faz sombra, e que a cabeça lhe anda à roda, tenho dúvidas de que me acredite sob palavra. Vou pois edificá-lo. Em primeiro lugar, essa rapariga é minha irmã de leite, e esse *Virá a saber-se na continuação, Carta CLII, não o segredo do senhor de Valmont, mas aproximadamente de que gênero ele era; e o leitor sentirá que não foi possível esclarecê-lo melhor sobre este assunto.
laço que aparentemente nada vale não deixa de ter importância para pessoas dessa categoria. Além disso, conheço o segredo dela, e mais ainda: vítima duma loucura de amor, estaria perdida se eu não a tivesse salvo. Os pais dela, todos eriçados de honra, queriam nada menos do que interná-la. Dirigiram-se a mim. Vi, num relance, quanto a sua cólera me poderia ser útil. Secundei essa cólera, e solicitei a ordem de internamento, que obtive. Depois, passando subitamente ao partido da clemência, para o qual atraí os pais, e aproveitando do meu crédito junto do velho ministro, levei-os a consentir que me deixassem depositária dessa ordem, e senhora de pedir ou deter a sua execução, consoante o mérito do procedimento dessa rapariga. Ela sabe que tenho a sua sorte nas minhas mãos e ainda que, por absurdo, esse poderoso meio não a detivesse, não é evidente que a sua conduta desregrada e a sua punição autêntica tirariam todo o crédito às suas palavras? A essas precauções que chamo fundamentais, juntam-se muitas outras, locais ou ocasionais, que a reflexão e o hábito farão encontrar, caso seja necessário, e que seria fastidioso pormenorizar, mas cuja prática é importante. Se quer chegar a conhecê-las, Visconde, dê-se ao trabalho de considerar o meu comportamento no seu conjunto. Mas pretender que eu me tenha entregue a tantos cuidados para não retirar deles o fruto; que depois de tanto me ter elevado sobre outras mulheres pelos meus penosos trabalhos eu consinta em rastejar como elas, entre a imprudência e a timidez; que sobretudo eu possa temer um homem a ponto de não ver salvação a não ser na fuga? Não, Visconde; nunca. É preciso vencer ou morrer. Quanto a Prévan, quero tê-lo e hei-de tê-lo; ele quererá divulgá-lo, e não o divulgará. Em duas palavras, eis o nosso romance. Adeus.
20 de Setembro de 17* *.
CARTA LXXXII CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Meu Deus, como a sua carta me fez pena! E tinha eu tanta impaciência de a receber! Esperava encontrar nela consolação e afinal fiquei muito mais aflita do que antes de a ter recebido. Chorei muito enquanto a lia. Mas não é isso que eu lhe censuro; já tenho corado muitas vezes por sua causa, sem que isso me faça pena. Mas, desta vez, não é a mesma coisa. Que é que quer dizer quando escreve que o seu amor se torna um tormento, que não pode viver assim; nem suportar por mais tempo a sua situação? Será o caso que vai deixar de amar-me, só porque isso não é tão agradável como noutro tempo? Parece-me que eu não sou mais feliz, bem pelo contrário; e no entanto,amo-o cada vez mais. Se o senhor de Valmont não lhe escreveu, a culpa não é minha; não lhe pude pedir, porque nunca estive só com ele, e combinamos que não nos falaríamos diante das outras pessoas; e isso é ainda por si, para que ele possa fazer o mais cedo possível aquilo que deseja. Não digo que o não deseje também, e disso pode estar certo; mas que quer que eu faça? Se julga que é fácil, encontre o meio, que eu não peço melhor. Julga que me é agradável ser repreendida pela Mamã, que antes não me ralhava nunca, bem pelo contrário? Agora é pior do que se eu estivesse no convento. Ainda me consolava pensando que era por si; havia até ocasiões em que eu me dava por feliz. Mas quando vejo que também está zangado sem que haja da minha parte culpa nenhuma, fico mais triste do que estava por tudo quanto aconteceu até aqui. Só para receber as suas cartas são uns trabalhos, que se o senhor de Valmont não fosse tão bom e tão expedito como é, eu não sabia o que havia de fazer. E para lhe escrever é ainda mais difícil. De manhã não me atrevo, porque a Mamã está muito perto de mim, e a cada momento entra no meu quarto. Algumas vezes posso fazê-lo de tarde, com o pretexto de cantar ou tocar harpa; e mesmo assim é preciso interromper-me a cada linha para que ouçam que estou a estudar. Felizmente a minha criada de quarto adormece algumas vezes ao serão, e eu digo-lhe que me deito muito bem sozinha, para que ela se vá embora e me deixe luz. Depois, tenho de me pôr debaixo dos cortinados, para que não se possa ver a claridade, e para que ao menor ruído eu possa esconder tudo na cama, se vier alguém. Sempre queria que estivesse no meu
lugar, para ver o que fazia! Bem vê que é preciso amar muito para fazer isto. Enfim, o certo é que faço tudo o que posso; e eu desejava poder fazer ainda mais. É claro que não recuso dizer-lhe que o amo e que o amarei sempre; nunca lho disse tão do fundo do coração; e ainda está zangado! No entanto, tinha-me dado a certeza, antes que eu lho dissesse, que isso bastava para o tornar feliz. Não pode negar o que disse: está nas suas cartas. Embora eu já as não tenha, lembro-me disso como quando as lia todos os dias. E só porque estamos longe um do outro já pensa de maneira diferente! Mas esta ausência não há de durar sempre. Meu Deus, como eu sou infeliz! E por sua causa, só por sua causa! A propósito das suas cartas, espero que tenha guardado as que a Mamã me tirou, para lhas entregar; há de vir um tempo em que não esteja tão vigiada como agora, e então tornar-me-á a dar todas. Como serei feliz, quando puder guardá-las sempre, sem que ninguém tenha nada a ver com isso! Agora é ao senhor de Valmont que as entrego, porque seria muito arriscado proceder de outra maneira; apesar disso nunca lhe dou nenhuma que não me faça pena. Adeus, meu querido amigo. Amo-o de todo o meu coração. Amá-lo-ei toda a minha vida. Espero que já não esteja zangado; e se estivesse certa disso, também já o não estaria. Escreva-me o mais depressa que puder, pois sinto que até lá estarei sempre triste. Castelo de. . ., 21 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXXXIII O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Suplico-vos, senhora, reatemos o nosso diálogo tão desgraçadamente interrompido! Que eu possa acabar de vos provar quanto sou diferente do odioso retrato que vos tinham feito a meu respeito; que eu possa, principalmente, gozar ainda dessa amável confiança que começáveis a testemunhar-me! Que de encantos sabeis dar à virtude! De que maneira embelezais e tornais queridos todos os sentimentos honestos! É essa a vossa sedução; é a mais forte, a única, ao mesmo tempo poderosa e respeitável. Sem dúvida basta ver-vos para que se deseja agradar-vos; ouvirvos em meio dos indiferentes, para que esse desejo aumente. Mas aquele que teve a felicidade de vos conhecer melhor, que pôde algumas vezes ler na vossa alma, depressa cede a um entusiasmo mais nobre, e, penetrado de admiração e de amor, adora em vós a imagem de todas as virtudes. Talvez mais predestinado que outros para as amar e as seguir, mas alheado delas por alguns erros que me haviam
arrastado, fostes vós que me aproximastes, que de novo me fizestes sentir todo o seu encanto. Achais que é um crime esse novo amor? Condenareis a vossa obra? Censurareis a vós própria o interesse que por ela podereis sentir? Que mal se pode recear dum sentimento tão puro, e que delícias não poderá ele proporcionar? Assusta-vos o meu amor porque o achais violento, arrebatado? Podereis temperá-lo por um amor mais doce; não recuseis o domínio que vos ofereço, ao qual, juro, jamais deixarei de submeter-me, e que, ouso crê-lo, não será inteiramente perdido para a virtude. Que sacrifício poderia parecer-me penoso, com a certeza de que o vosso coração saberia dar-lhe o preço? Onde está o homem tão desgraçado que não saiba extrair prazer das privações que se impõe; que não prefira uma palavra, um olhar concedidos, a todos os gozos que poderia roubar ou surpreender! E pudestes supor que era eu esse homem! E tivestes receio de mim! Ah! Por que não depende de mim a vossa felicidade? Como eu me vingaria de vós, tornando-vos feliz! Mas esse suave jugo não é a estéril amizade que o impõe; para produzi-lo, só o amor. Esta palavra intimida-vos! E porquê? Uma dedicação mais terna, uma união mais forte, um único pensamento, a própria felicidade, os próprios sofrimentos, que há em tudo isso de estranho à vossa alma? Todavia, é isso o amor! Pelo menos esse que inspirais e que eu sinto! É ele principalmente que, calculando sem interesse, sabe apreciar as ações pelo seu mérito e não pelos seus resultados; tesouro inesgotável das almas sensíveis, tudo que é feito por ele ou através dele se torna precioso. Estas verdades tão fáceis de compreender, tão doces de praticar, que têm de assustador? Que apreensões pode causar-vos um homem sensível, a quem o amor já não permite outra felicidade que não seja a vossa? É esse hoje o meu único desejo: sacrificarei tudo para o realizar, exceto o sentimento que o inspira; e se consentirdes em partilhar esse sentimento, dirigi-lo-eis como vos aprouver. Mas não suportemos que ele nos divida, quando nos deveria reunir. Se a amizade que me oferecestes não é uma palavra vã, se, como ontem me dissestes, é o sentimento mais doce que a vossa alma pôde conhecer, seja ela que regule as condições entre nós, não me furtarei aos seus mandatos. Mas, chamada a julgar o amor, que ela consinta em ouvi-lo; uma recusa tornar-se-ia uma injustiça, e amizade não é injusta. Um segundo encontro não terá mais inconvenientes do que o primeiro: o acaso pode ainda fornecer-nos a ocasião. Podereis mesmo ainda indicar o momento próprio. Admito que eu não tenha razão; não gostaríeis mais de convencer-me do que de combater-me? E duvidais da minha docilidade? Se um importuno não tivesse vindo interromper-
nos, talvez eu já me tivesse rendido inteiramente à vossa opinião; quem sabe até onde pode chegar o vosso poder? Deverei dizê-lo? Esse poder invencível, ao qual me entrego sem ousar calcular a sua extensão, esse encanto irresistível, que vos torna soberana dos meus pensamentos como das minhas ações, aconteceme algumas vezes receá-los. Pobre de mim! Talvez eu deva antes temer esse encontro que vos peço! Talvez depois, cativo das minhas promessas, eu me veja reduzido a abrasarme num amor que eu sinto bem que não poderá extinguir-se, sem ousar mesmo implorar o vosso socorro! Ah! senhora, suplico-vos, não abuseis do vosso domínio! Mas quê! Se assim vos sentirdes mais feliz, se por isso eu vos dever parecer mais digno de vós, que mágoas não serão suavizadas por essas consoladoras idéias? Sim, bem o sinto; falar-vos ainda é dar-vos armas mais fortes contra mim; é submeter-me mais inteiramente à vossa vontade. É mais fácil a defesa contra as vossas cartas; as palavras são as mesmas, mas falta a vossa presença para lhes dar força. Entretanto, o prazer de vos ouvir faz que eu arroste o perigo: terei ao menos a felicidade de tudo tentar por vós, mesmo contra mim; e os meus sacrifícios tornar-se-ão uma homenagem. Considero-me feliz por vos provar de mil maneiras, como de mil modos o sinto, que sois vós e sereis sempre o objeto mais caro ao meu coração. Castelo de..., 23 de Setembro de 17* *.
CARTA LXXXIV O VISCONDE DE VALMONT A CECÍLIA VOLANGES Viu bem como ontem fomos contrariados. Durante todo o dia não pude entregar-lhe a carta que tinha para si; não sei se hoje será mais fácil. Receio comprometê-la, pondo nisso mais zelo do que habilidade; e não perdoaria a mim próprio uma imprudência que lhe seria fatal e causaria o desespero do meu amigo, tornando-a a si eternamente infeliz. No entanto, conheço as impaciências do amor; sei quanto deve ser penoso, na sua situação, suportar qualquer demora na única consolação que possa experimentar neste momento. À força de me ocupar do processo de afastar os obstáculos, encontrei uma cuja execução será fácil, se nisso puser algum empenho. Julgo ter reparado que a chave da porta de seu quarto, que dá para o corredor, está sempre sobre a chaminé da sua Mamã. Tudo se tornaria fácil com essa chave, como está vendo; mas, à falta dela, procurarei arranjar-lhe uma parecida e que a substitua.
Bastar-me-á, para isso, ter a outra uma hora ou duas à minha disposição. Devo achar facilmente ocasião de a tirar, e para que ninguém dê pela falta, junto aqui uma, muito parecida, e ninguém notará a diferença, a menos que a experimentem, o que é pouco provável. Será preciso apenas que tenha o cuidado de lhe pôr uma fita azul igual à que tem a outra. Deve ter essa chave em seu poder amanhã ou depois de amanhã, à hora do almoço, porque lhe será mais fácil dar-ma nessa altura, e poderá voltar a pô-la no seu lugar à noite, que é quando sua Mamã poderá dar-lhe mais atenção. Posso entregar-lha na altura do jantar, se concordar com isto. Como sabe, quando vamos do salão para a sala de jantar, é sempre Madame de Rosemonde que vem em último lugar. Eu dar-lhe-ei a mão. Terá apenas de deixar o seu tear vagarosamente, ou então deixar cair qualquer coisa, de maneira a ficar atrás de todos; nesse momento agarrará a chave, que eu lhe estenderei. Não se esquecerá, logo que tenha a chave, de vir junto da minha velha tia, fazendo-lhe algumas carícias. Se por acaso deixar cair a chave, não lhe cause isso embaraço; eu fingirei que é minha e respondo pelo resto. A falta de confiança da sua Mamã e a maneira dura como a trata autorizam-na a esta pequena fraude. Além do mais, é a única maneira de continuar a receber as cartas de Danceny, e de fazer que ele receba as suas; qualquer outro meio é realmente demasiado perigoso, poderia perder-vos aos dois sem recurso; e a minha prudente amizade não se consolaria de o ter empregado. Uma vez de posse da chave, restar-nos-ão algumas precauções a tomar para evitar o ruído da porta e da fechadura; mas será coisa fácil. Por baixo do mesmo armário onde pus o papel, encontrará óleo e uma pena. Como vai ao seu quarto algumas vezes a horas em que está sozinha, aproveite para olear a fechadura e os gonzos. Só deve ter cuidado em não deixar nódoas, que fariam desconfiar. Por isso será melhor fazer esse trabalho à noite, porque, se o fizer com a atenção de que a julgo capaz, no dia seguinte de manhã não se notará nada. Se apesar de tudo alguém notar alguma coisa, não hesite em dizer que foi o serralheiro do castelo. Nesse caso, será preciso especificar o tempo e até as conversas que ele teve consigo; como, por exemplo, que ele toma esse cuidado, para evitar a ferrugem, com todas as fechaduras de que se não faz uso; pois está vendo que não seria verossímil ouvir esse barulho todo sem perguntar a causa. São estes pequenos pormenores que dão verossimilhança, e a verossimilhança faz que as mentiras não tenham conseqüências, tirando o desejo de as verificar. Depois de ter lido esta carta, peço-lhe que volte a lê-la, e, mesmo, que a estude em pormenor: primeiro, porque é preciso saber
bem o que se quer fazer bem; em seguida, para ter a certeza de que não omiti nada. Pouco habituado a usar por minha conta destas habilidades, não tenho feito delas grande uso. Foi preciso até a minha viva amizade por Danceny, e o interesse que me inspira, para me resolver a servir-me destes processos, aliás bem inocentes. Tenho ódio a tudo que se pareça com enganar o próximo; é este o meu caráter. Mas as vossas infelicidades tocaram-me a tal ponto, que tentarei tudo para suavizálas. Como deve imaginar, depois desta combinação entre nós serme-á mais fácil conseguir, com Danceny, o encontro que ele deseja. Mas por agora não lhe fale nisto; não faria senão aumentar a sua impaciência, e não chegou ainda o momento de a satisfazer. Deve antes, segundo creio, empregar os seus cuidados em acalmá-la, de preferência a agravá-la. A este respeito, confio na sua delicadeza. Adeus, minha bela pupila. Ame um pouco o seu tutor, e sobretudo empregue com ele docilidade; será bem recompensada por isso. Ocupo-me da sua felicidade e pode crer que nela encontrei também a minha. 24 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXXXV A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Vai enfim tranquilizar-se, e, sobretudo, fazer-me justiça. Escute, e não me confunda com as outras mulheres. Cheguei ao fim da minha ventura com Prévan; ao fim! Compreende bem o que isto quer dizer? Agora o Visconde vai julgar qual de nós, eu ou ele, se poderá gabar. A narração não é tão agradável como a ação; por outro lado, não seria justo que, enquanto o Visconde nada mais fez que raciocinar bem ou mal sobre este assunto, extraísse dele tanto prazer como eu, que empreguei tempo e trabalho. Entretanto, se tem algum grande golpe de audácia a executar, se pretende tentar qualquer empreendimento em que esse rival perigoso lhe faça sombra, pode vir. Ele deixou-lhe o campo livre, pelo menos por algum tempo; talvez mesmo não torne a erguer-se da prostração em que o lancei. Como o Visconde é feliz em ter-me por amiga! Sou para si uma fada benfazeja! Enquanto vai definhando longe da beleza que o atrai, eu digo uma palavra, e de novo se encontra junto dela. Deseja vingarse de uma mulher que lhe furta; eu marco o lugar onde deve feri-la, e entrego-a à sua mercê. Por fim, para afastar do combate um concorrente temível, sou ainda eu que o inspiro e o ponho no mais alto
lugar. Na verdade, se não passa a vida a agradecer-me, é porque é um ingrato. Mas volto à minha aventura, desde o início. O encontro, marcado em voz alta, à saída da Ópera, foi ouvido, como eu tinha esperado*. Prévan compareceu; e quando a Marechala lhe disse delicadamente que se sentia feliz por o ver duas vezes seguidas nas suas recepções, ele teve o cuidado de responder que desde a tarde de terça-feira tinha desfeito mil compromissos para poder assim dispor daquela noite. A bom entendedor... No entanto, como eu desejava ter a certeza se era ou não o *Ver Carta LXXIV*Ver Carta LXXIV
verdadeiro objetivo daquela lisonjeira solicitude, quis obrigar o novo apaixonado a escolher entre mim e o seu gosto dominante. Declarei que não jogava; de fato, ele encontrou, por seu lado, mil pretextos para não jogar. E o meu primeiro triunfo foi sobre o lansquené. Tomei a meu cargo o bispo de... para ter com quem conversar; escolhi-o em virtude da sua ligação com o herói do dia, a quem eu queria dar toda a facilidade de me abordar. Ao mesmo tempo, sentiame à vontade por ter uma testemunha respeitável que, em caso de necessidade, poderia depor sobre o meu comportamento e os meus propósitos. Esta combinação deu resultado. Depois das conversas vagas do costume, Prévan, tendo-se tornado o guia da conversação, foi tomando diversos tons, para experimentar o que me poderia agradar. Recusei o do sentimento, como não acreditando nele; com o meu aspecto sério, fiz deter a sua jovialidade, que me pareceu demasiado ligeira para um início; baixou de tom, tomando o da amizade discreta; e foi sob esta bandeira vulgar que começamos o nosso recíproco ataque. Na altura da ceia, o bispo não descia; Prévan ofereceu-me o braço e à mesa tomou naturalmente o lugar a meu lado. É preciso ser justo: soube sustentar com habilidade a nossa conversa particular, parecendo no entanto ocupar-se da conversa geral, da qual aparentemente ocupava o posto central. À sobremesa, falou-se de uma peça nova que na segunda-feira seguinte devia ir à cena no Teatro Francês. Afetei algum pesar por não ter marcado o meu camarote; ele ofereceu-me o seu, que recusei, como é da praxe; ao que ele respondeu muito agradavelmente que eu não tinha ouvido bem; que com certeza não faria o sacrifício do seu camarote a alguém que ele não conhecia, mas que somente me avisava de que a senhora Marechala disporia dele. Ela prestou-se a este gracejo e eu aceitei. Quando subimos ao salão, ele pediu, como pode imaginar, um lugar nesse camarote; e como a Marechala, que o trata com muita bondade, lho prometeu se ele tivesse juízo, aproveitou a ocasião para uma daquelas conversações de duplo sentido, para as quais tem um talento que o Visconde já me gabou. De fato, tendo-se posto de joelhos diante da Marechala, como uma criança submissa, dizia ele, sob o pretexto de lhe pedir a opinião e de implorar o seu auxílio, disse ainda
muitas coisas lisonjeiras e ternas, as quais me era fácil supor que se dirigiam a mim. Como havia ainda várias pessoas que não tomavam parte no jogo depois da ceia, a conversa foi mais geral e menos interessante; mas os nossos olhos falaram muito. Os nossos olhos, disse eu; mas deveria dizer os dele, pois os meus tiveram só uma linguagem, que foi a da surpresa. Ele teve ocasião para pensar que eu o admirava e me ocupava excessivamente do efeito prodigioso que causava sobre mim. Julgo que o deixei muito satisfeito; pelo meu lado, eu não estava menos contente. Na segunda-feira seguinte, fui ao Teatro Francês, como tínhamos combinado. Apesar da sua curiosidade literária, caro Visconde, nada posso dizer-lhe do espetáculo, a não ser que Prévan tem um talento maravilhoso para o galanteio, e que a peça caiu; eis tudo o que lhe posso dizer. Era com pena que eu via findar o serão, que realmente me agradava muito. E para o prolongar, convidei a Marechala a vir cear comigo; o que me forneceu pretexto para propor o mesmo ao amável galanteador, que pediu apenas o tempo para ir, correndo, a casa das Condessas de B..., a fim de se libertar de um compromisso. Este nome reavivou toda a minha cólera; vi claramente que ele ia começar as confidências. Recordei-me dos seus prudentes conselhos e prometi a mim própria... continuar a aventura. Estava certa de que o emendaria de tão perigosa tendência. Estranho ao meu grupo, que naquela noite era pouco numeroso, ele devia-me as atenções que são de uso neste caso. Por isso, quando fomos cear, ofereceu-me a mão. Eu tive a malícia, ao aceitá-la, de pôr na minha um ligeiro frêmito, e de conservar, enquanto andávamos, os olhos baixos e a respiração alta. Tinha o aspecto de pressentir a minha derrota e de temer o meu vencedor. Ele notou-o à maravilha; e logo o traidor mudou de tom e de maneira. De galanteador, tornou-se meigo. Os propósitos que me dirigia eram mais ou menos os mesmos: as circunstâncias forçavam-no a isso. Mas o seu olhar, que se tornara menos vivo, era mais acariciador; as inflexões da sua voz, mais doces; o seu sorriso já não era o da finura, mas o da satisfação. Enfim, nas palavras, em que pouco a pouco se extinguia o fogo de início, o espírito deu lugar à delicadeza. E agora quero perguntarlhe: faria melhor do que isto? Pelo meu lado, dei-me ares de pensativa, a tal ponto que, sendo forçado a notá-lo, mo censurou. Tive então a habilidade de me defender desastradamente e de lançar sobre Prévan um olhar rápido, mas tímido e confundido, de propósito para o levar a crer que todo o meu receio era que ele adivinhasse a causa da minha preocupação. Depois da ceia, aproveitei a ocasião em que a boa Marechala contava uma das histórias que conta sempre, para me recostar na otomana, naquela atitude de abandono que se presta aos sonhos ternos. Não me desagradava que Prévan me visse assim; de fato, ele
honrou-me com uma atenção particular. O Visconde imagina decerto que os meus tímidos olhares não ousavam buscar os do meu vencedor; mas, dirigidos para ele da maneira mais humilde, logo me deram a certeza de que eu obtinha o efeito que pretendia produzir. Faltava ainda persuadi-lo de que o mesmo encantamento me penetrava; por isso, quando a Marechala anunciou que ia retirar-se, exclamei numa voz terna e indolente: "Oh! Meu Deus! E eu estava aqui tão bem!" Todavia levantei-me; mas, antes de me separar dela, perguntei-lhe quais os seus projetos para ter um pretexto de lhe dizer os meus e de dar a saber que estaria em minha casa no dia posterior ao seguinte. Separámo-nos por fim. Então, pus-me a refletir. Não duvidava que Prévan aproveitasse a espécie de entrevista que eu acabava de lhe marcar; que viesse bastante cedo para me encontrar só, e que me atacasse com vivacidade. Mas estava certa também de que, dada a minha reputação, ele me não trataria com aquela ligeireza que, por pouco hábito que se tenha, se emprega apenas com as mulheres dadas à aventura ou com as que não têm experiência; e tinha a vitória certa se ele pronunciasse a palavra amor, ou sobretudo se tivesse a pretensão de a obter de mim. É tão cômodo ter de lidar com as pessoas de princípios! Algumas vezes é um pobre diabo apaixonado que nos desconcerta pela sua timidez, ou nos atordoa com os seus fogosos transportes; é uma febre que, como a outra, dá ardor e calafrios, e algumas vezes varia nos sintomas. Mas adivinha-se tão facilmente quando o plano é traçado de antemão! A chegada, a atitude, o tom, as palavras, tudo isso eu conhecia desde a véspera. Não lhe descreverei por isso a nossa conversação, que o Visconde adivinha facilmente. Note apenas que, na minha fingida defesa, eu ajudava-o tanto quanto podia; embaraço, para lhe dar tempo a que falasse; razões más, para que pudessem ser combatidas; receio e desconfiança, para provocar os protestos; e da sua parte o perpétuo estribilho; peço-lhe apenas uma palavra; e da minha um silêncio, comunicando-lhe uma expectativa que fazia crescer o seu desejo; e, através de tudo isso, a mão que se toma cem vezes, que se retira sempre e nunca se recusa. Poderia passar-se assim um dia: passamos uma hora mortal. Estaríamos talvez ainda nisso se não ouvíssemos o ruído de uma carruagem entrando no pátio. Esse feliz contratempo tornou, como é natural, as suas instâncias mais vivas; e eu, vendo chegado o momento em que já nada me podia surpreender, depois de me ter preparado para um longo suspiro, concedi a preciosa palavra. Começaram a ser anunciadas as visitas e pouco depois rodeava-nos numerosa sociedade. Prévan pediu-me para vir no dia seguinte de manhã e eu consenti; mas, cuidando da minha defesa, ordenei à criada de quarto que durante a visita ficasse no meu quarto de dormir, donde, como
sabe, se vê tudo o que se passa no quarto de vestir, e foi neste que o recebi. O diálogo correu livremente, e como ambos tínhamos o mesmo desejo, breve nos pusemos de acordo; mas era preciso desfazer-nos daquele espectador importuno; era aí que eu queria chegar. Então, pintando-lhe a meu belo prazer o quadro da minha vida interior, persuadi-o facilmente de que não chegaríamos a encontrar um momento de liberdade, que devíamos olhar como uma espécie de milagre aquele de que tínhamos gozado na véspera, e que ainda assim tivera perigos excessivos para que eu me expusesse a eles, pois a todo o instante alguém poderia entrar no salão. Não me esqueci de acrescentar que os hábitos da minha casa estavam assim estabelecidos porque, até ao presente, nunca me tinham contrariado; e insisti ao mesmo tempo na impossibilidade de os mudar, porque seria comprometer-me aos olhos dos meus servidores. Ele simulou entristecer, ficar amuado, dizer-me que era bem frágil o meu amor; e o Visconde adivinha quanto tudo aquilo me comovia! Mas, querendo vibrar o golpe decisivo, chamei as lágrimas em meu socorro. Foi exatamente o Zaire, vous pleurezl. Julgando dominar-se, e na esperança, afetou estar possuído de todo o amor de Orosmane. Passado o lance teatral, voltamos às combinações. Não podendo ser durante o dia, pensamos escolher uma noite. Mas o meu porteiro tornava-se um obstáculo intransponível e eu fui de opinião que não se podia pensar em suborná-lo. Ele propôs-me a pequena porta do jardim: mas eu tinha-o previsto e inventei um cão que, manso e silencioso de dia, era um verdadeiro demônio durante a noite. A facilidade com que eu entrava em todos aqueles pormenores era de molde a excitá-lo, o que deu em resultado propor-me o expediente mais ridículo, e foi esse que eu aceitei. Primeiro falou-me dum criado dele, que era tão discreto como ele próprio: nisto não me enganava Prévan, pois, em tal matéria, patrão e criado valiam o mesmo. Eu daria uma grande ceia em minha casa, à qual ele seria convidado. Chegado o momento, despedir-se-ia, simulando sair só. O hábil confidente chamaria a carruagem, abriria a porta; e ele, Prévan, em vez de subir, esquivar-se-ia com destreza. O cocheiro não chegaria a dar por nada; deste modo todos julgariam que ele tinha saído, e entretanto, reentrando em minha casa, tratar-se-ia apenas de conhecer o caminho mais curto para o meu quarto. Confesso que a minha primeira dificuldade foi de encontrar, contra tal projeto, razões suficientemente más para que ele tivesse a pretensão de as destruir. Ele respondeu dando-me exemplos; segundo ele, não havia processo mais vulgar. Já várias vezes se servira dele. Era mesmo o de que fazia mais uso, como o menos perigoso. Subjugada por estas razões irrespondíveis, revelei-lhe, cheia de candura, que havia uma escada secreta que conduzia perto do meu quarto de vestir; eu deixaria ficar a chave na porta e ser-lhe-ia possível
entrar e esperar, sem grandes riscos, que as criadas se recolhessem; e, para dar maior verossimilhança ao meu consentimento, exigia que o momento do encontro fosse, sem discussão, de uma submissão perfeita. Era preciso ter juízo, oh! muito juízo! Enfim, eu queria apenas provar-lhe o meu amor, mas não satisfazer o seu. A saída, esquecia-me dizer-lhe, seria pela pequena porta do jardim; bastava esperar o romper do dia, o cão não daria sinal. Àquela hora não passava vivalma, os criados estariam no sono mais profundo. Não se admire de tanto raciocínio disparatado; pense na nossa situação recíproca. Que necessidade tínhamos de uma melhor combinação? Ele queria apenas que tudo viesse a saber-se, eu estava certa de que ninguém o saberia. Combinamos para o dia posterior ao seguinte. Repare o Visconde que era um assunto combinado, e que ninguém tinha ainda visto Prévan na minha companhia. Encontro-o a cear em casa de uma das minhas amigas, ele oferece-me o seu camarote para uma peça nova, eu aceito nele um lugar. Convido a minha amiga a cear, durante o espetáculo e diante de Prévan; quase não posso dispensar-me de o convidar. Ele aceita e, dois dias depois, faz-me a visita exigida pelas boas normas. É certo que volta a visitar-me no dia seguinte de manhã; mas, além de que as visitas de manhã não contam, só eu podia julgar esta demasiado apressada. De fato, coloco-o no número das pessoas que me estão menos ligadas, com um convite escrito para uma ceia de cerimônia. Posso bem dizer como Annette e, todavia, eis tudo! Chegado o dia fatal, o dia em que eu devia perder a minha virtude e a minha reputação, dei as minhas instruções à fiel Vitória e ela pô-las em execução como vai ver. Entretanto, chegou a noite. Tinham já entrado muitos convidados, quando anunciaram Prévan. Recebi-o fazendo notar a polidez que havia entre nós. Coloquei-o ao lado da Marechala, como acentuando que era por intermédio dela que nos tínhamos conhecido. A ceia não produziu mais do que um bilhetinho, que o discreto apaixonado encontrou meio de me entregar, e que queimei conforme o meu costume. Anunciava-me que podia contar com ele; e esta palavra essencial era rodeada de todas as palavras parasitas, como amor, felicidade, etc., que nunca faltam a festas desta natureza. À meia-noite, terminados os jogos, propus uma curta macedônia*. O meu duplo projeto era favorecer a evasão de Prévan e ao mesmo tempo torná-la notada, o que não podia deixar de acontecer, dada a sua reputação de jogador. Por outro lado, todos viriam a lembrar-se de que eu não tivera pressa de ficar só. O jogo durou mais do que eu pensara. O diabo tentava-me e eu sucumbia ao desejo de ir consolar o impaciente prisioneiro. Encaminhava-me para a minha perda, quando refleti que, logo que inteiramente me rendesse, deixaria de ter sobre ele o domínio bastante para o manter vestido com a decência necessária aos meus
projetos. Tive a força de resistir. Retrocedi e voltei, bastante aborrecida; *Algumas pessoas ignoram talvez que uma macedônia é um conjunto de vários jogos de azar, entre os quais cada jogador tem o direito de escolher quando lhe pertence dar cartas. É uma das invenções do século.
a retomar o meu lugar naquele jogo que não findava mais. Por fim lá acabou, e todos se foram embora. Ficando só, chamei as criadas, despi-me muito depressa, e despedi-as. Está a ver-me, Visconde, vestida ligeiramente, caminhando com passo tímido e circunspeto, e com a mão mal segura abrir a porta ao meu vencedor? Mal que me viu, o relâmpago não seria mais rápido. Que digo eu? Fui vencida, absolutamente vencida, antes de ter podido dizer uma palavra para o deter ou me defender. Ele quis em seguida tomar uma situação mais cômoda e mais adequada às circunstâncias. Amaldiçoava o vestuário que, dizia ele, o afastava de mim, e queria combater-me com armas iguais. Mas a minha extrema timidez opôs-se ao projeto, e as minhas ternas carícias não lhe deram tempo. Ocupouse de outra coisa. Os seus direitos eram a dobrar e as suas pretensões voltaram. Então eu disse-lhe: "Escute: até aqui teve assunto para uma agradável narrativa a fazer às duas Condessas de B... , e a muitas outras; mas eu gostaria de saber como lhes vai contar o fim desta aventura." Ao falar assim, puxei o cordão da campainha com toda a força. Chegara a minha vez e o gesto foi mais rápido do que a sua resposta. Mal tinha ainda balbuciado, quando ouvi Vitória acudir, e chamar os criados que escondera no seu quarto, como eu lhe ordenara. Então, tomando o meu tom de rainha, continuei, elevando a voz: "Saia, senhor, e não torne a aparecer diante de mim." Neste momento, o grupo dos criados entrou. O pobre Prévan perdeu a cabeça e, julgando ver uma cilada no que era no fundo apenas um gracejo, levou a mão à espada. Foi o mal que fez, pois um dos meus criados, vigoroso e valente, agarrou-o pelo meio do corpo e derrubou-o. Confesso que senti um terror mortal. Gritei-lhes que parassem e ordenei que lhe deixassem livre a retirada, certificando-se apenas se ele saía da minha casa. Os criados obedeceram, mas entre eles era grande o rumor. Indignavam-se que alguém tivesse faltado ao respeito à sua virtuosa senhora. Todos acompanharam o infeliz cavaleiro, com algazarra e escândalo, como eu desejava. Só Vitória ficou e ocupamo-nos durante esse tempo a reparar a desordem do meu leito. Os criados tornaram a subir sempre em tumulto; e eu, ainda muito emocionada, perguntei-lhes por que felicidade estavam ainda todos levantados; respondeu-me Vitória, contando que tinha dado de cear a suas das suas amigas, que tinham feito festa no quarto delas, enfim, tudo o que tínhamos combinado. Agradeci a todos e mandei-os retirar, ordenando a um deles que fosse imediatamente chamar o meu médico. Pareceu-me que estava
autorizada a temer o efeito do meu susto mortal; além disso, era um meio seguro de dar curso e celebridade à aventura. O médico veio de fato, lamentou-me, e ordenou-me repouso. Depois, ordenei a Vitória que logo de manhã fosse tagarelar com a vizinhança. Tudo decorreu tão bem que, antes do meio-dia e assim que consenti que abrissem as janelas do meu quarto, já tinha à cabeceira uma das minhas vizinhas, muito devota, para saber a verdade e os pormenores daquela horrível aventura. Fui obrigada a desolar-me com ela, durante uma hora, sobre a corrupção destes tempos. Um momento depois recebi da Marechala o bilhete que junto aqui. Por fim, antes das cinco horas, vi chegar, com grande espanto meu, o senhor*... Vinha, segundo me disse, apresentar-me as suas desculpas, por um oficial do seu regimento ter podido faltar-me ao respeito a tal ponto. Soubera-o quando estava jantando em casa da Marechala e tinha imediatamente mandado ordem a Prévan para que se entregasse à prisão. Pedi que lhe perdoasse e ele recusou. Pensei então que, para lhe dar a minha cumplicidade, era preciso resignar-me pelo meu lado e afetar uma atitude rígida. Mandei fechar a minha porta e dizer que estava incomodada. É à minha solidão que o Visconde deve esta longa carta. Escreverei uma a Madame de Volanges, que com certeza há de fazer leitura pública, e onde verá esta história tal como deve ser contada. Esquecia-me de dizer que Belleroche está indignado, e quer absolutamente bater-se com Prévan. Pobre rapaz! Felizmente terei tempo de lhe acalmar os nervos. Enquanto espero, vou repousar os meus, que estão fatigados de escrever. Adeus, Visconde. 25 de Setembro de 17* *, à noite.
*O comandante do regimento no qual servia o senhor Prévan.
CARTA LXXXVI A MARECHALA DE... À MARQUESA DE MERTEUIL (Bilhete junto à precedente) Meu Deus! Que me contais, minha querida amiga? É possível que Prévan seja capaz de semelhantes abominações! E logo com a minha amiga! Ao que uma pessoa se expõe! Mas então nem em sua casa uma pessoa está em segurança? Na verdade, tais acontecimentos consolam-me de ser velha. Mas do que nunca me poderei consolar, é de ter sido em parte causadora de terdes recebido semelhante monstro em vossa casa. Prometo-vos que, se o que me disseram é verdade, ele não tornará a pôr os pés em minha casa. Todas as pessoas honestas procederão assim com ele, se fizerem o que é devido. Disseram-me que estáveis muito doente, e estou inquieta pela vossa saúde. Peço-vos que me deis as vossas desejadas notícias; ou que mas mandeis dar por uma das vossas criadas, se vós mesma o não puderdes fazer. Não vos peço mais do que uma palavra para minha tranqüilidade. Se não fossem os meus banhos, que o médico não me permite interromper, teria ido esta manhã a vossa casa; e esta tarde tenho de ir a Versailles, sempre por causa do assunto do meu sobrinho. Adeus, minha querida amiga; conte com a minha sincera amizade por toda a vida. Paris, 25 de Setembro de 17* *.
CARTA LXXXVII A MARQUESA DE MERTEUIL A MADAME DE VOLANGES Escrevo-vos do meu leito, querida e boa amiga. O mais desagradável dos acontecimentos, e o mais impossível de prever, pôsme doente de susto e de tristeza. Não é que eu tenha de me censurar por algum motivo; mas é sempre tão penoso para uma mulher honesta, e que conserva a modéstia que convém ao seu sexo, fixar sobre si as atenções públicas, que eu daria tudo no mundo para ter podido evitar esta infeliz aventura, e não sei ainda se decidirei ir para o campo, esperar que tudo tenha esquecido.
Vou contar-vos de que se trata. Encontrei em casa da Marechala de... um tal senhor de Prévan, que decerto conheceis de nome, e que eu não conhecia de outro modo. Mas, encontrando-o nessa casa, estava bem autorizada, parece-me, a julgá-lo boa companhia. Tem certa elegância de figura e pareceu-me inteligente. O acaso e o aborrecimento do jogo deixaramme só entre ele e o bispo de..., enquanto todos os outros convidados jogavam o lansquené. Conversamos os três até à hora da ceia. À mesa falou-se de uma novidade teatral, o que lhe deu ensejo a oferecer o seu camarote à Marechala, que aceitou; e ficou combinado que eu teria lá um lugar. Era para segunda-feira passada, no Teatro Francês. Como a Marechala vinha cear comigo à saída do espetáculo, propus àquele senhor que a acompanhasse, o que ele fez. Dois dias passados fez-me uma visita que se passou nas conversas do costume, sem que houvesse absolutamente nada a notar. No dia seguinte veio ver-me de manhã, o que me pareceu um pouco apressado; mas julguei que, em vez de lho fazer sentir pela minha maneira de o receber, valia mais adverti-lo pela minha delicadeza de que não estávamos ainda tão intimamente ligados como ele parecia supor. Para isso enviei-lhe, nesse mesmo dia, um convite muito seco e muito cerimonioso para uma ceia que dei anteontem. Não lhe dirigi a palavra quatro vezes em toda a noite; e ele pelo seu lado retirou-se logo que acabou de jogar. Haveis de convir que até ali nada havia que parecesse conduzir a uma aventura. Depois do jogo, houve ainda uma macedônia que durou até perto das duas horas; e finalmente fui para a cama. Havia pelo menos uma mortal meia hora que as minhas criadas estavam recolhidas, quando ouvi ruído no meu quarto. Abri o cortinado cheia de susto e vi um homem entrar pela porta que conduz ao quarto de vestir. Soltei um grito agudo; e reconheci, à luz da minha lamparina, esse senhor de Prévan, que, com uma ousadia inconcebível, me disse que não me alarmasse; que ia esclarecer-me o mistério da sua conduta e me suplicava que não fizesse ruído algum. Ao falar assim, acendia uma vela. Eu estava a tal ponto assustada que nem podia falar. O seu desembaraço e tranqüilidade petrificavam-me ainda mais, se é possível. Mas não tinha ainda dito duas palavras, já eu vira qual era o pretendido mistério; e a minha única resposta foi; como podeis crer, puxar o cordão da campainha. Por uma incrível felicidade, todos os criados se tinham reunido no quarto de uma das minhas criadas, e não estavam ainda deitados. A minha criada de quarto, que, dirigindo-se aos meus aposentos, me ouviu falar com exaltação, ficou horrorizada, e chamou toda aquela gente. Podeis imaginar o escândalo! Os criados estavam furiosos; houve um momento em que um deles queria matar Prévan. Confesso que, nesse momento, me senti feliz por ter quem me auxiliasse. Refletindo agora, gostaria mais que só a minha criada de quarto tivesse acudido;
teria sido suficiente, e talvez se pudesse ter evitado o ruído, que me aflige. Em vez disso, o tumulto despertou os vizinhos, os criados falaram, e desde ontem a novidade corre todo Paris. O senhor de Prévan está preso por ordem do comandante do seu regimento, que teve a honestidade de passar por minha casa para me apresentar desculpas. Esta prisão vai ainda aumentar o ruído; mas não pude conseguir que fosse de outra maneira. A cidade e a corte inscreveram-se à minha porta, que está fechada para toda a gente. As poucas pessoas que vi disseram-me que me faziam justiça e que a indignação contra o senhor de Prévan tinha chegado ao cúmulo. É certo que ele o merece, mas nem por isso a aventura deixa de ser muito desagradável. Além do mais, esse homem tem com certeza alguns amigos, e esses amigos devem ser maus; quem sabe, quem poderá saber o que irão inventar para meu prejuízo? Meu Deus, como uma mulher jovem é infeliz! Sem ter feito nada, tem de se pôr ao abrigo da maledicência; e é preciso ainda sobrepor-se à calúnia. Dizei-me, peço-vos, o que teríeis feito se estivésseis no meu lugar; enfim, tudo o que pensais. É sempre de vós que recebo as mais doces consolações e os mais prudentes conselhos; por isso é de vós que mais gosto de os receber. Adeus, minha querida e boa amiga; conheceis os sentimentos que para sempre me prendem a vós. Beijo a vossa adorável filha. Paris, 26 de Setembro de 17* *.
TERCEIRA PARTE
CARTA LXXXVIII CECÍLIA VOLANGES AO VISCONDE DE VALMONT Apesar de todo o prazer que tenho, senhor, em receber as cartas do Cavaleiro Danceny, e se bem que não deseje menos do que ele que nos possamos voltar a ver, sem que nos perturbem, não ousei no entanto fazer que me haveis prometido. Em primeiro lugar, é demasiado perigoso: a chave que quereis que ponha no lugar da outra assemelha-se-lhe bastante na verdade: contudo, não deixa de haver certa diferença, e a Mamã repara em tudo, dá por tudo. Para mais, se bem que ainda não tenha sido utilizada desde que aqui estamos, bastava uma falta de sorte; e se dessem por isso, estaria perdida para sempre. Depois, isso parece-me muito mal; mandar fazer uma chave dupla é demasiada ousadia! É certo que teríeis a bondade de vos encarregardes disso; mas, mesmo assim, se o viessem a saber, a censura e a falta recairiam sobre mim, visto que seria por mim que o teríeis feito. Enfim, tentei duas vezes apoderar-me dela, e certamente teria sido bastante fácil se se tratasse de outra coisa; mas não sei porquê de ambas as vezes me pus a tremer e nunca tive coragem. Por isso creio que é melhor ficar como estamos. Se tiverdes a bondade de continuar tão prestável como até aqui, sempre encontrareis processo de me entregar uma carta. Mesmo quando da última, sem o azar que num certo momento vos obrigou a afastar-vos de repente, ter-nos-ia sido muito fácil. Sinto bem que não podeis, como eu, ocupar-vos disso apenas; mas prefiro ter paciência e não arriscar tanto. Estou certa de que o senhor Danceny pensaria como eu: porque sempre que ele desejava qualquer coisa que me custasse demasiado, acabava por ceder. Entregar-vos-ei, ao mesmo tempo que esta carta, a vossa, a do senhor Danceny e a vossa chave. Não vos estou menos reconhecida por todas as atenções para comigo e suplico-vos que continueis a dispensá-las. É bem verdade que sou muito infeliz, e sem vós sê-lo-ia ainda muito mais: mas, apesar de tudo, trata-se de minha mãe; é preciso ter paciência. E desde que o senhor Danceny continue a amarme, e vós não me abandoneis, talvez venham tempos mais felizes. Entretanto, tenho a honra de ser, senhor, cheia de reconhecimento, a vossa muito humilde e obediente serva. 26 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXXXIX O VISCONDE DE VALMONT AO CAVALEIRO DANCENY Se o seu caso não progride tão depressa como deseja, meu amigo, não é comigo que se deve zangar. Tenho mais de um obstáculo a vencer. A vigilância e a severidade de Madame de Volanges não são os únicos; a sua jovem amiga também me cria alguns. Seja frieza ou timidez, nem sempre faz o que lhe aconselho; e creio no entanto saber melhor do que ela o que se deve fazer. Tinha encontrado um meio simples, cômodo e seguro, de lhe entregar as cartas e até de facilitar, mais tarde, as entrevistas que o meu amigo deseja; mas não pude decidi-la a utilizá-lo. Estou tanto mais aflito, quanto é certo que não vejo outro para o aproximar dela; e que, até por causa da vossa correspondência, receio incessantemente que nos comprometamos os três. Ora, deve imaginar que não quero correr esse risco, nem que ambos a ele se exponham. Contudo ficaria verdadeiramente penalizado se a falta de confiança da sua amiguinha me impedisse de vos ser útil: talvez o meu amigo fizesse bem em lhe escrever nesse sentido. Vejo o que deseja fazer, é a si que cabe decidir; porque não basta ser prestável aos amigos, é também preciso sê-lo da maneira que lhes agrada. Poderia ser também um processo de se assegurar dos sentimentos que ela lhe dedica; porque a mulher que teima numa opinião não ama tanto como diz. Não que suspeite da inconstância a sua eleita; mas é muito nova; tem muito medo da Mamã que, como sabe, procura apenas prejudicá-lo; e seria talvez perigoso deixar passar muito tempo sem a ocupar a seu respeito. No entanto, não se inquiete muito com o que lhe digo. No fundo, não tenho nenhum motivo de desconfiança; é apenas a solicitude da amizade. Não me alongo mais porque tenho alguns assuntos meus a cuidar. Não estou tão adiantado como o meu amigo; mas amo com a mesma força, e isso consola; e mesmo que não tenha êxito pela minha parte, se conseguir ser-lhe útil, darei sempre por bem empregado o meu tempo. Adeus, meu amigo. Castelo de..., 26 de Setembro de 17 * *.
CARTA XC A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT
Desejo muito, senhor, que esta carta não vos faça sofrer; mas, se assim não for, que ao menos a vossa dor seja suavizada pela que experimento ao escrevê-la. Deveis conhecer-me o bastante, presentemente, para estardes bem certo de que o meu desejo é não vos magoar; mas vós, sem dúvida, não quereríeis também mergulharme num desespero eterno. Suplico-vos pois, em nome da terna amizade que vos prometi; em nome até dos sentimentos porventura mais vivos, mas certamente não mais sinceros, que tendes por mim, que não voltemos a ver-nos; deveis partir. E até lá, evitemos sobretudo essas conversas particulares e demasiado perigosas, durante as quais, por qualquer força inconcebível, sem nunca conseguir dizer-vos o que quero, passo o tempo a escutar o que não deveria ouvir. Ainda ontem, quando viestes juntar-vos a mim no parque, eu tinha como único projeto dizer o que hoje vos escrevo; e que fiz, afinal, senão ocupar-me do vosso amor?... do vosso amor, ao qual nunca poderei corresponder! Ah! por piedade, afastai-vos de mim! Não receeis que a ausência altere os meus sentimentos por vós: como conseguiria vencê-los, quando já nem tenho coragem para os combater? Como vedes, digo-vos tudo; temo menos confessar a minha fraqueza do que sucumbir a ela. Perdi o domínio dos sentimentos, mas conservarei o das ações; sim, conservá-lo-ei, estou resolvida a isso; mesmo à custa da vida. Ai! Não vai longe o tempo em que julgava que nunca teria tais combates a sustentar! Felicitava-me talvez demasiado. O céu puniu cruelmente este orgulho; mas, cheio de misericórdia, no próprio momento em que fere, adverte-me ainda antes da queda; e eu seria duplamente culpada se continuasse a ser imprudente, prevenida já da minha pouca força. Haveis-me dito cem vezes que não queríeis uma felicidade comprada com as minhas lágrimas. Ah! não falemos já de felicidade; deixai-me recuperar um pouco de sossego. Se atenderdes ao meu pedido, que novos direitos não tereis sobre o meu coração? Mas desses, assentes na virtude, não precisarei defender-me. Como serei feliz no meu reconhecimento! Ficarei a dever-vos a doçura de gozar sem remorsos um sentimento delicioso. Neste momento, assustada com os meus sentimentos e pensamentos, receio igualmente ocupar-me de vós e de mim; só de pensar em vós me assusto: quando não posso fugir à vossa imagem, combato-a; não a afasto, expulso-a. Não será melhor para ambos cessar este estado de perturbação e de ansiedade? Vós, cuja alma sempre sensível, mesmo no meio dos erros, se conservou amiga da virtude, tereis certamente piedade da minha dolorosa situação; sei que não rejeitareis a minha súplica! Um interesse mais doce, e não menos terno, sucederá a estas agitações violentas; então, devendo-vos a vida, a existência ser-me-á cara, e na
alegria do meu coração direi: esta tranqüilidade, devo-a ao meu amigo. Parece-vos que este pequeno sacrifício, que vos não imponho, mas peço, é um preço demasiado caro para dar termo aos meus tormentos? Ah! se para vos tornar feliz bastasse aceitar a infelicidade, podeis crer, não hesitaria um momento... Mas cometer uma falta!... Não, meu amigo, não, antes morrer mil vezes. Assaltada pela vergonha, à beira dos remorsos, temo os outros e a mim própria; coro quando estou acompanhada, e tremo na solidão; a minha vida é apenas dor; só por vossa vontade terei paz. As minhas resoluções mais louváveis não bastam para me tranqüilizar; formulei esta ordem e no entanto passei a noite banhada em lágrimas. Eis a vossa amiga, aquela que amais, a pedir-vos confusa e suplicante o repouso e a inocência. Ah! meu Deus! sem vós, nunca ela teria sido obrigada a pedido tão humilhante. Nada vos censuro; sinto demasiado por mim própria como é difícil resistir, a um sentimento imperioso. Uma queixa não é um murmúrio. Fazei por generosidade o que faço por dever; e a todos os sentimentos que me haveis inspirado acrescentarei uma eterna gratidão. Adeus, adeus, senhor. 27 de Setembro de 17 * *.
CARTA XCI O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Consternado pela vossa carta, ignoro ainda, senhora, como lhe poderei responder. Sem dúvida, se for preciso escolher entre a vossa infelicidade e a minha, sacrifico-me e não hesito; mas assuntos tão importantes merecem, se bem me parece, ser antes de mais nada discutidos e esclarecidos; mas como consegui-lo, se não nos devemos falar, nem ver? Pois quê! Apesar de nos unirem os sentimentos mais doces, um vão terror bastará para nos separar, talvez irremediavelmente! Debalde a terna amizade, o ardente amor, reclamarão os seus direitos; essas vozes não serão escutadas; e porquê? Que perigo tão premente vos ameaça então? Ah! acreditai, tais receios, tão ligeiramente concebidos, são, só por si, fortes motivos de segurança. Permiti que vo-lo diga, reencontro aqui o vestígio das impressões desfavoráveis que a meu respeito vos deram. Não se treme junto do homem que se estima; não afastamos, principalmente, quem julgamos digno de alguma amizade; tememos e evitamos apenas o homem perigoso.
No entanto, existiu jamais alguém tão respeitador e submisso como eu? Como notais, tomo já cautelas com as palavras, já não me permito aqueles nomes tão doces, tão caros ao- meu coração, que em segredo não cessa de vo-los dirigir. Já não sou o amante fiel e infeliz, recebendo consolações e conselhos duma amiga terna e sensível; sou o réu perante o juiz; o escravo perante o senhor. Estes novos títulos impõem sem dúvida novos deveres; assumo o compromisso de os cumprir a todos. Escutai-me, e, se depois me condenardes, submeto-me e parto. Prometo ainda mais; preferis o despotismo que julga sem ouvir? Tendes a coragem de ser injusta? Ordenai e obedecerei sempre. Mas, ao menos, que essa sentença ou essa ordem a ouça da vossa boca. "E porquê?", perguntais. Ah! se fazeis tal pergunta, conheceis pouco o amor e o meu coração! Então o ver-nos ainda uma vez não significaria nada? E quando finalmente a vossa boca lançar o desespero sobre a minha alma, talvez um olhar consolador a impeça de sucumbir. E se for obrigado a renunciar ao amor e à amizade para que vivo, ao menos podereis ver a vossa obra, e ficar-me-á a vossa piedade; mesmo que não mereça este pequeno favor, arrisco-me, parece-me, a pagá-lo bem caro, na esperança de o obter. Será possível que me afasteis de vós? Permitis então que nos tornemos dois estranhos? Que digo? Assim o desejais; e enquanto me afirmais que a minha ausência não alterará os vossos sentimentos, apressais-me a partida para mais facilmente os destruir. Pois se já dizeis que a gratidão os substituirá! Assim, o sentimento que obteria de vós um desconhecido pelo mais leve serviço, ou até o vosso inimigo desde que já vos não afrontasse, eis o que me ofereceis! E quereis que o coração se me alegre. Interrogai o vosso: se o vosso amante, se o vosso amigo, um dia vos falassem em gratidão, não diríeis indignada: "Retirai-vos, ingratos?" Aqui me detenho e suplico a vossa indulgência. Perdoai a expressão duma dor de que sois autora; não será obstáculo à minha submissão total. Mas peço-vos em nome desses sentimentos tão doces, que vós própria vos atribuís, aceitai ouvir-me; e por piedade ao menos pelo tormento mortal em que me haveis lançado, não retardeis o momento. Adeus, senhora. 27 de Setembro de 17 * *, à noite.
CARTA XCII O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT
Oh! meu amigo! a sua carta gelou-me de receio. Cecília... Meu Deus, será possível! Cecília já me não ama. Sim, vejo esta verdade terrível através do véu com que a sua amizade a cerca. Quis-me preparar para receber esse golpe mortal; agradeço-lhe as cautelas, mas podemos impô-las ao amor? Ele antecipa-se em tudo o que o interessa, não precisa que lhe digam a sua sorte, adivinha-a. Da minha já não duvido; fale-me sem rodeios, pode fazê-lo, suplico-lhe. Conte-me tudo: o que fez nascer as suas suspeitas, o que as confirmou. Os mínimos pormenores são preciosos. Esforce-se, principalmente, por se recordar das palavras dela. Uma palavra em vez de outra pode transformar toda uma frase; a mesma tem às vezes dois sentidos... O meu amigo pode ter-se enganado: ai! procuro iludir-me ainda. Que lhe disse ela? Fez-me alguma censura? Não se defende ao menos dos seus erros? Eu devia ter previsto esta mudança pelas dificuldades que, de há um tempo para cá, ela encontra em tudo. Ora o amor não conhece tantos obstáculos. Que devo fazer? Que me aconselhais? Se eu tentasse vê-la? Será impossível? A ausência é tão cruel, tão funesta!... E ela recusou um meio de me ver!... O Visconde não me explica do que se tratava; se o perigo era demasiado grande, ela bem sabe que não quero que se arrisque muito. Mas como conheço também a sua prudência, nem posso para minha infelicidade acreditar em tal. Que vou eu fazer agora? Como hei-de escrever-lhe? Deixá-la suspeitar dos meus receios? Talvez a desgostem, e, se são injustos, nunca me perdoaria o tê-la afligido. Escondê-los? É enganá-la, e não sei dissimular perante ela. Oh! se ela soubesse o que sofro, o meu mal comovê-la-ia. Sei que é sensível, tem um coração excelente e possuo mil provas do seu amor. É demasiado tímida, algumas vezes indecisa, e tão jovem! A mãe trata-a com tanta severidade! Vou escrever-lhe; saberei conter-me; pedir-lhe-ei somente que confie plenamente no meu amigo. Mesmo que recuse mais uma vez, não poderá zangar-se com o meu pedido; e talvez consinta. A si, meu amigo, peço-lhe mil perdões, por ela e por mim. Asseguro-lhe que ela aprecia o valor dos seus cuidados, pelos quais lhe está grata. Não é por desconfiança, é por timidez. Seja indulgente; é a mais bela face da amizade. A sua é-me preciosa e nem sei como agradecer tudo o que tem feito por mim. Adeus, vou escrever-lhe já... Sinto que todos os meus receios voltam; quem me diria que alguma vez me custaria escrever-lhe! Ai! ainda ontem era o meu mais doce prazer. Adeus, meu amigo; continue a proteger-nos e tenha piedade de mim.
Paris, 27 de Setembro de 17 * *.
CARTA XCIII O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES (Junta à precedente) Não lhe posso esconder como fiquei aflito ao saber por Valmont a escassa confiança que continua a ter nele. Não ignora que é meu amigo, a única pessoa que nos pode aproximar: julguei que estes títulos bastariam; vejo com mágoa que me enganei. Poderei ao menos esperar que me diga as suas razões? Não haverá ainda outras dificuldades que a impeçam de ter confiança nele? Não posso no entanto, sem que mo diga, perceber o mistério da sua conduta. Não ouso pôr em dúvida o seu amor, sei também que não ousaria trair o meu. Ah ! Cecília !... É então verdade que recusou um meio* de me ver? Um meio simples, cômodo e seguro? E é assim que me tem amor! Uma tão curta ausência pôde alterar a tal ponto os seus sentimentos! Mas para quê enganar-me? Para quê repetir que continua a amar-me, e cada vez mais? A sua Mamã, ao destruir o seu amor, destruiu-lhe também a candura? Se ela lhe deixou ao menos alguma piedade, não será sem dor que a Cecília saberá os tormentos horríveis que me causa. Ah ! sofreria menos ao morrer. Diga-me pois: o seu coração fechou-se definitivamente para mim? É certo que me esqueceu inteiramente? Graças à sua recusa, não sei quando ouvirá as minhas queixas, nem quando lhes responderá. A amizade de Valmont tinha assegurado a nossa correspondência: mas a Cecília não quis; achava-a difícil, preferiu que ela fosse mais rara. Não, não acreditarei mais no amor, na boa fé. Em quem acreditar, se a Cecília me enganou? Responda-me pois: é certo que já não me tem amor? Não, isso não é possível; a Cecília ilude-se a si própria; calunia o seu próprio coração. Um receio passageiro, um momento de desânimo, que o amor depressa fez desaparecer: não é verdade, minha Cecília? Ah! Sem dúvida, e faço mal em a acusar. Como eu seria feliz se me tivesse enganado! Como gostaria de pedir ternas desculpas, de compensar este momento de injustiça com uma eternidade de amor! Cecília, Cecília, tenha piedade de mim! Consinta em me ver; aceite todos os meios! Veja o que produz a ausência: receios, suspeitas, talvez frieza! Um só olhar, uma só palavra, e seremos felizes. Mas quê! Posso eu ainda falar de felicidade? Talvez esteja perdida para mim, perdida para sempre. Torturado pelo receio, cruelmente apertado entre a suspeita
injusta e a mais cruel das verdades, não me posso agarrar a nenhum pensamento; o pouco que conservo de vida é para sofrer e amar. Ah! Cecília! É a única pessoa que tem o direito de me embelezar a existência, de ma tornar cara; e espero das suas palavras o regresso à felicidade ou a certeza dum desespero eterno. Paris, 27 de Setembro de 17* *.
* Danceny não sabe de que meio se trata; repete apenas a expressão de Valmont.
CARTA XCIV CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Nada percebo da sua carta, a não ser a dor que me causa. O que lhe contou então o senhor de Valmont e o que é que lhe pôde fazer crer que já não o amava? Talvez isso fosse bem melhor para mim,
porque certamente estaria menos atormentada; e é muito duro, amando-o de tal maneira, ver como julga sempre que não tenho razão, e que, em vez de me consolar, seja de si que me vêm sempre as dores que mais magoam. Julga que o engano e minto! Faz uma linda idéia de mim, não haja dúvida! Mas mesmo que mentisse como me censura, que interesse teria nisso? Certamente, se já o não amasse, bastava-me dizê-lo, e todos me elogiariam; mas, por infelicidade, este amor é mais forte do que eu; e ainda por cima por alguém que não tem qualquer obrigação para comigo! Que fiz eu para tanto se zangar? Não ousei roubar uma chave, porque receei que a Mamã desse por tal e isso me trouxesse mais dissabores, e a si também por minha causa; e, além disso, parece-me uma coisa muito feia. Mas fora apenas o senhor de Valmont quem me falara nisso; não podia adivinhar se estava de acordo ou não, pois supus que de nada sabia. Agora sabendo o que deseja, recuso por acaso roubá-la? Fá-lo-ei amanhã mesmo; e veremos então se ainda tem alguma coisa a dizer. O senhor de Valmont pode muito bem ser seu amigo; mas julgo que o meu amor vale bem a amizade dele; e no entanto é sempre ele quem tem razão e nunca a minha pessoa. Afirmo-lhe que estou muito zangada. Tanto lhe faz, é claro, pois sabe que me acalmo logo de seguida: mas desde que tenha chave, posso vê-lo quando bem me apetecer; e garanto-lhe que não hei de querer quando me tratar assim. Prefiro sofrer por minha culpa do que pela sua: veja bem o que faz. Podíamo-nos amar tanto, se quisesse! E ao menos as únicas penas que teríamos, seriam as provocadas pelos outros! Asseguro-lhe que, se fosse dona do meu destino, nunca lhe daria motivo de queixa: mas se não acredita em mim, seremos para sempre infelizes e a culpa não será minha. Espero que nos poderemos ver em breve e que então não teremos ocasião de nos irritarmos como agora. Se pudesse prever tudo isto, teria logo roubado a chave: mas na verdade julgava proceder bem. Não se zangue pois comigo, peço. Não esteja triste e ame-me tanto quanto eu o amo: dessa forma ficarei muito contente. Adeus, querido amigo. Castelo de. .., 28 de Setembro de 17 * *.
CARTA XCV CECÍLIA VOLANGES AO VISCONDE DE VALMONT
Peço-vos, senhor, a bondade de me entregardes de novo a chave que me tínheis dado para pôr no lugar da outra; visto que todos o querem, sou obrigada a consentir. Não sei por que haveis contado ao senhor Danceny que eu já o não amava; creio que nunca vos dei lugar a pensar tal coisa; tudo isso o fez sofrer e a mim também. Sei bem que sois amigo dele; mas isso não é razão para o fazer infeliz, nem a mim tão pouco: Dar-me-íeis prazer se lhe mandásseis dizer o contrário, da próxima vez que lhe escreverdes, e que tendes bem a certeza: por que é em vós que ele tem confiança; e eu, quando digo uma coisa e não me acreditam, não sei já o que faça. Acerca da chave, podeis estar tranqüilo; lembro-me bem do que me recomendáveis na vossa carta. No entanto, se ainda a tendes e ma quiserdes dar de novo, prometo relê-la com atenção. Se pudesse ser amanhã à hora do jantar, dar-vos-ia a outra chave depois de amanhã ao almoço, e devolver-ma-íeis da mesma maneira que a primeira. Desejava que tudo isto não demorasse muito, porque nos arriscaríamos menos a que a Mamã desse por qualquer coisa. E depois, assim que tiverdes a chave, tereis a bondade de a utilizar para receber as minhas cartas; dessa forma, o senhor Danceny terá mais frequentemente notícias minhas. Na verdade será mais cômodo que no presente; mas a princípio tive muito medo. Peço-vos que me desculpeis e espero que não deixeis de ser tão atencioso como dantes. Ficar-vos-ei sempre muito grata. Tenho a honra de ser, senhor, vossa muito humilde e obediente serva. P. S. - Assim que tiverdes a chave, peço-vos que tenhais cuidado e que ninguém a veja, porque seria muito perigoso. 28 de Setembro de 17 * *.
CARTA XCVI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Aposto que, depois da sua aventura, espera todos os dias os meus cumprimentos e elogios; nem sequer duvido que esteja um pouco aborrecida com o meu longo silêncio; mas que quer? Sempre pensei que, quando já não há senão elogios a dar a uma mulher, podemos estar descansados a seu respeito e ocuparmonos sossegadamente de outra coisa. No entanto agradeço-lhe pela minha parte e felicito-a pela sua. Para a tornar verdadeiramente feliz, concordo até que, desta vez, ultrapassou a minha expectativa. Depois disto, vejamos se pela minha parte terei ao menos correspondido à sua.
Não é de Madame de Tourvel que lhe quero falar; o seu passo lento desagrada-lhe. A minha amiga só gosta dos casos arrumados. Aborrecem-na as cenas que se vão lentamente desenrolando; e eu nunca tinha apreciado o prazer que sinto nestas pretensas lentidões. Sim, gosto de ver, de apreciar, esta mulher prudente, lançada, sem disso se aperceber, num caminho que não permite regresso e cuja ladeira rápida e perigosa a leva a seguir-me, mesmo contra vontade e à força. Assustada com o perigo que corre, gostaria de parar, mas não pode. As cautelas e a habilidade podem tornar-lhe os passos mais curtos; mas eles suceder-se-ão inevitavelmente. Às vezes, não ousando fitar o perigo, fecha os olhos e, deixando-se guiar, entrega-se aos meus cuidados. Muitas vezes um novo terror fá-la redobrar de esforços. Num pavor mortal, quer ainda voltar atrás; gasta as forças para subir penosamente um curto espaço; e em breve um mágico poder a coloca de novo mais perto daquele mesmo perigo de que em vão pretendera fugir. Então, tendo em mim o único guia e apoio, sem pensar em me censurar pela queda inevitável, implora-me que a retarde. As preces fervorosas, as humildes súplicas, tudo o que os mortais, no seu medo, oferecem à Divindade, recebo-o eu dela; e quer a minha amiga que, surdo aos seus pedidos e destruindo eu próprio o culto que ela me presta, me sirva, para a aniquilar, do poder que ela invoca para a amparar! Ah! deixe-me ao menos o tempo de observar estes tocantes combates entre o amor e a virtude! Pois quê! Esse mesmo espetáculo que a faz correr ao teatro com ardor, e que aí aplaude com entusiasmo, julga-o menos fascinante na vida real? Os sentimentos duma alma pura e terna, que teme a felicidade que deseja e não para de se defender, mesmo quando deixa de resistir, escuta-os com exaltação; não serão eles sem preço para aquele que os fez nascer? Eis no entanto os prazeres deliciosos que esta mulher celestial me oferece todos os dias! E censura-me que lhes saboreie as delícias! Ah! Cedo virá o momento em que, degradada pela queda, ela não será para mim mais do que uma mulher vulgar. Mas esqueço, ao falar dela, que o não queria fazer. Não sei que força me prende e sem cessar me atrai a ela, mesmo quando a ultrajo. Afastemos essa imagem perigosa; recuperemos a calma para tratar dum assunto mais alegre. Trata-se da sua discípula, presentemente minha, e espero que agora me reconheça em ação. Desde há alguns dias, mais bem tratado pela terna devota, por conseguinte menos ocupado com ela, notara eu já que a pequena Volanges é com efeito muito bonita; e que, se era parvoíce estar apaixonado por ela como Danceny, talvez não o fosse menos da minha parte não procurar junto dela a distração que a solidão me tornava necessária. De resto pareceu-me justo pagar-me dos trabalhos que
tinha tido por ela; lembrava-me além disso que a minha amiga ma tinha oferecido, antes que Danceny tivesse qualquer pretensão; e considerava-me autorizado a reclamar alguns direitos sobre um bem que ele possuía apenas devido à minha recusa e abandono. A cara gentil da rapariguinha, a boca tão fresca, o ar infantil, o próprio embaraço, fortificavam estas sábias reflexões; resolvi portanto agir, e a empresa foi coroada de êxito. Tenta já adivinhar o meio pelo qual suplantei tão depressa o ente querido; qual a sedução conveniente para esta idade e inexperiência. Evite tanto trabalho; não me servi de nenhuma. Enquanto que, manejando com habilidade as armas do seu sexo, a minha cara amiga triunfava pela sutileza; eu, devolvendo ao homem os seus direitos imprescritíveis, subjugava pela autoridade. Seguro da presa se pudesse estar a sós com ela, necessitava de astúcia apenas para me aproximar, e a de que me servi quase nem merece esse nome. Aproveitando-me da primeira carta que Danceny enviara à sua bela e depois de a ter prevenido por um sinal combinado entre nós, em vez de a minha habilidade servir para lha entregar, serviu-me apenas para não encontrar um meio de o fazer: a impaciência que fiz nascer, fingi compartilhá-la, e depois de ter provocado o mal, indiquei o remédio. A donzela dorme num quarto que tem uma das portas para o corredor; mas, como mandam as regras, a Mamã guardara a chave. Queria apenas apoderar-me dela. Nada mais fácil; bastava-me dispor dela por duas horas e trataria de obter outra igual. Então, correspondência, entrevistas, encontros noturnos, tudo se tornava cômodo e seguro: no entanto, será capaz de acreditar? A virgem tímida teve medo e recusou. Outro qualquer ficaria desolado; eu vi apenas a oportunidade para um prazer mais picante. Escrevi a Danceny queixando-me da recusa, e fiz tanto e tão bem que o nosso tonto não descansou enquanto não conseguiu, exigindo até, que a receosa apaixonada acedesse ao meu pedido e se entregasse totalmente aos meus cuidados. Agradava-me, confesso, ter assim mudado de papel e que o jovem fizesse por mim aquilo que esperava que eu fizesse por ele. Esta idéia duplicava, a meus olhos, o valor da aventura, assim, logo que possuí a preciosa chave, apressei-me a utilizá-la. Foi a noite passada. Depois de me ter certificado de que tudo estava tranqüilo no castelo, armado de lanterna de furta-fogo e com o vestuário que a hora permitia e a circunstância exigia, fiz a primeira visita à sua pupila. Tinha mandado preparar tudo (e até por ela própria), para poder entrar sem ruído. Estava no primeiro sono, aquele que é próprio da idade dela, de forma que pude chegar até ao leito sem a acordar. A princípio estive tentado a ir mais longe e a fazer-me passar por um sonho; mas
temendo o efeito da surpresa e o barulho que se lhe seguiria, preferi acordar com precaução a bela adormecida, e consegui com efeito evitar o grito que receava. Depois de lhe ter acalmado os primeiros receios, e como afinal não estava ali para conversar, arrisquei algumas liberdades. Sem dúvida não lhe ensinaram bem no convento a quantos perigos está exposta a tímida inocência e tudo o que ela deve resguardar para não ser surpreendida; porque, juntando toda a atenção e todas as forças para se defender dum beijo, que era apenas um falso ataque, todo o resto era abandonado sem defesa; como não me aproveitar! Alterei então a táctica e num ápice ocupei o meu posto. Aqui pensamos ambos estarmos perdidos; a pequena, toda assustada, quis gritar de verdade; felizmente as lágrimas tinham-lhe roubado a voz. Procurara também o cordão da campainha, mas a minha habilidade segurou-lhe o braço a tempo. "Que queres fazer", disse-lhe então, "perderes-te para sempre?” Que me importa se vier alguém. A quem convencerás que não estou aqui com o teu consentimento? Quem me teria fornecido o meio de entrar senão tu? E como explicarás a existência desta chave que só pude arranjar por teu intermédio, que não arranjaria sem a tua ajuda?" Este curto discurso não acalmou nem a dor, nem a cólera; mas trouxe a submissão. Não sei se o tom lhe dava eloqüência; na verdade, não seria com certeza embelezado pela postura em que me encontrava. Uma das mãos empregada na força, a outra no amor, que orador em semelhante posição pretenderia ser gracioso? Se está a ver bem, concordará que em troca era propícia ao ataque; mas sou um pateta, como diz, e a mulher mais simples, uma colegial, me leva como a uma criança. Esta, se bem que desolada, percebia que era preciso tomar uma decisão, e negociar. Encontrando-me inexorável aos pedidos, foi preciso passar às ofertas. Julga se calhar que vendi bem caro um posto avançado tão importante: não, prometi ceder tudo por um beijo. É verdade que depois dele, não cumpri a promessa; mas tinha boas razões. Porventura tínhamos combinado se o beijo seria passivo ou ativo? À força de negociar, acabamos por concordar num segundo; e este, assim foi combinado, seria passivo. Então, tendo-lhe guiado os tímidos braços em torno do meu corpo, e apertando-a amorosamente com um dos meus, o doce beijo foi com efeito dado; mas perfeita e belamente dado; de tal forma enfim que o próprio amor não poderia ter feito melhor. Tanta boa fé merecia recompensa, por isso acedi imediatamente ao pedido. A mão retirou-se; mas não sei por que acaso, encontrei-me eu próprio no lugar dela. Supõe-me já apressado e ativo, não é verdade? De forma nenhuma. Tomei o gosto da lentidão, digo-lhe. Certo de chegar, para quê apressar a viagem? A sério, tinha todo o vagar para observar por uma vez o poder da ocasião, e encontrava-a aqui despida de toda a ajuda alheia. Ela
tinha no entanto de combater o amor; e o amor apoiado pelo pudor ou pela vergonha; e fortificado sobretudo pela ira que eu provocara. Tudo o que havia entre nós era a ocasião; mas estava ali, oferecida, presente, e o amor estava longe. Para certificar as minhas observações, tive a malícia de empregar apenas a dose de força que a donzela podia combater. Somente, se a encantadora inimiga, abusando da minha bondade, se encontrava pronta a escapar-se-me, continha-a pelo mesmo temor, que já antes tão felizes resultados dera. Pois bem! Sem mais trabalho, a terna amorosa, esquecendo os juramentos, começou por ceder e acabou consentindo; não sem que após o primeiro momento as censuras e as lágrimas não tivessem voltado simultaneamente; ignoro se eram verdadeiras ou fingidas; mas, como sucede sempre, cessaram logo que me conduzi de maneira a justificálas de novo. Finalmente, de concessão em censura, e de censura em concessão, só nos separamos depois de satisfeitos e de acordo quanto ao encontro desta noite. Só me retirei para os meus aposentos ao raiar do dia, e estava exausto de fadiga e sono, no entanto sacrifiquei ambos ao desejo de assistir de manhã ao pequeno almoço; adoro loucamente o aspecto delas no dia seguinte. Não faz idéia do ar desta. Era um embaraço na maneira de estar! Uma dificuldade no andar! Olhos sempre baixos, tão inchados e batidos! O rosto redondo tão comprido! Nada de mais agradável. E, pela primeira vez, a mãe, alarmada com tão grande transformação, lhe testemunhava um interesse assaz terno! E a Presidente também se desvelava em volta dela! Oh! Estes cuidados são por agora dispensáveis; um dia virá em que ela os merecerá de verdade, e esse dia não está longe. Adeus, minha bela amiga. Castelo de..., 2 de Outubro de 17**.
CARTA XCVII CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL Ah! Meu Deus, senhora, como estou aflita! Como sou infeliz! Quem me consolará na minha dor? Quem me aconselhará na dificuldade em que me encontro? Este senhor de Valmont!... E Danceny! Não, a lembrança de Danceny lança-me no desespero...
Como contar? Como ousar dizer-vos?... Não sei como o fazer. No entanto o meu coração transborda... Preciso de desabafar com alguém e vós sois a única a quem posso escrever. Tem sido tão boa para mim! Mas não espero que o sejais agora; não sou digna disso; como dizer-vos? Já não o desejo. Hoje foram todos aqui muito carinhosos para comigo, mas só contribuíram para aumentar o meu sofrimento. Senti profundamente que não merecia tanta atenção! Vós, pelo contrário, ralhai-me; severamente, porque tenho imensa culpa, mas depois salvai-me; se não tiverdes a bondade de me aconselhar, morrerei de desgosto. Vergonha. Pois bem! Suportá-la-ei; será o primeiro castigo da minha falta. Sim, dir-vos-ei tudo. Sabei pois que o senhor de Valmont, que me entregara até agora as cartas de Danceny, descobriu de repente que era demasiado difícil; quis ter uma chave do meu quarto. Garanto-vos que não queria, mas ele escreveu a Danceny e este concordou; e a mim custa-me tanto recusar-lhe qualquer coisa, sobretudo desde que a minha ausência o torna tão infeliz, que acabei por consentir. Não previa a desgraça que daí resultaria. Ontem, o senhor de Valmont serviu-se dessa chave para entrar no meu quarto, enquanto eu dormia; estava tão longe de esperar semelhante coisa que me assustei ao acordar; mas como falou imediatamente, reconheci-o e não gritei; e além disso veio-me logo a idéia de que talvez trouxesse uma carta de Danceny. Nada disso. Passado um momento quis beijar-me; e enquanto eu me defendia, como era natural, insinuou-se de tal forma junto de mim, que não quereria por coisa alguma deste mundo que ele continuasse naquela posição. Mas exigiu um beijo primeiro. Forçoso foi; que fazer?, tanto mais que tentara tocar, mas além de não ter podido, ameaçoume que, se viesse alguém, lançaria toda a culpa sobre mim; e com efeito seria muito fácil, por causa da chave. Mas depois nem por isso se retirou. Quis um segundo; e desta vez, não sei porquê, perturbou-me de tal forma... e em seguida foi ainda pior. Oh! Não se faz uma coisa destas. Enfim, depois..., dispensar-me-eis de dizer o resto; sou tão infeliz quanto é possível sê-lo. Aquilo de que mais me acuso, forçoso é que vo-lo diga, é o receio de não me ter defendido quanto podia. Não sei como foi, não amo o senhor de Valmont, bem pelo contrário; mas houve no entanto momentos em que foi como se o amasse. Bem sabeis que isso não me impedia de ir repetindo que não; mas senti que não estava agindo como dizia; e tudo isto independentemente da minha vontade; e depois também, ora, estava tão perturbada! Se é assim tão difícil a gente defender-se, grande prática é preciso! Também é verdade que este senhor de Valmont tem umas maneiras de falar que não se sabe como responder-lhe, enfim, quer
acreditar que quando partiu eu estava de certo modo zangada, e que apesar disso tive a fraqueza de consentir que voltasse esta noite; o que me desola ainda mais que tudo o resto. Oh! Apesar disso, prometo-vos que o impedirei de entrar. Mal ele saíra, já sentia como tinha errado ao consentir. O resto do tempo não fiz senão chorar. Sobretudo a recordação de Danceny fazia-me sofrer! Cada vez que pensava nele, as lágrimas aumentavam ao ponto de sufocar, e não podia deixar de pensar nele... E ainda agora, vede o efeito; eis o papel todo molhado. Não, nunca mais me consolarei, quanto mais não seja por causa dele... Estava exausta, e no entanto não dormi um minuto. Esta manhã ao levantar-me, perante o espelho, metia medo, de transtornada que estava. A Mamã reparou assim que me viu, e perguntou-me o que tinha. Desatei logo a chorar. Julguei que me ia ralhar, o que talvez me tivesse custado menos, mas não. Falou-me com doçura! Não o merecia, de forma nenhuma. Disse que não me afligisse! Ignorava o motivo do meu desespero. Como me sentia mal! Há momentos em que desejo a morte. Não resisti. Lancei-me nos braços dela aos soluços, e dizendo: "Ah! Mamã, a vossa filha é tão infeliz!" A Mamã não pôde deixar de chorar um pouco; o que só teve como conseqüência aumentar a minha dor, felizmente não perguntou por que razão eu era tão infeliz, pois não saberia que responder. Suplico-vos, senhora, escrevei o mais cedo que puderdes, e dizei-me o que devo fazer, porque não tenho coragem de pensar em nada, não faço outra coisa senão afligir-me. Enviai a carta pelo senhor de Valmont; mas, peço-vos, se lhe escreverdes ao mesmo tempo, não lhe faleis no que vos contei. Tenho a honra de ser, minha senhora, com imensa amizade, a vossa muito humilde e obediente escrava... Não ouso assinar esta carta. Castelo de..., 1 de Outubro de 17 * *, à noite.
CARTA XCVIII MADAME DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL Ainda há bem poucos dias, minha encantadora amiga, fostes vós a pedir-me consolações e conselhos; hoje, é a minha vez; faço-vos o mesmo pedido que então me fizestes. Estou muito preocupada e receio não ter sabido evitar o desgosto que me aflige. Cecília é a causa da minha inquietação. Desde a nossa vinda que a vejo sempre triste e desgostosa; mas já o esperava e tinha escudado o coração com a severidade que julgara necessária.
Esperava que a ausência e as distrações destruiriam depressa um amor que me parecia mais uma fantasia infantil do que uma verdadeira paixão. No entanto, em vez de se ter restabelecido com a estada aqui, apercebo-me de que a minha filha se entrega cada vez mais a uma perigosa melancolia; e temo, até, que a sua saúde se ressinta. Particularmente nos últimos dias ela muda a olhos vistos. Ontem, sobretudo, comoveu-me, e todos aqui ficaram sinceramente alarmados. O que me revela até que ponto ela está profundamente ferida é o vê-la pronta a deixar a timidez que sempre mostrou para comigo. Ontem de manhã, ao perguntar-lhe apenas se estava doente, precipitou-se nos meus braços dizendo-me que era muito infeliz; e chorou abundantemente. Não posso exprimir quanto isto me tocou; vieram-me logo as lágrimas aos olhos; e só tive tempo para me voltar, para impedir que ela o visse. Mas felizmente tive a prudência de não lhe fazer nenhuma pergunta, e ela não ousou dizer mais nada: mas vejo claramente que é a sua paixão infeliz que a atormenta. Que fazer se isto continua? Serei a causadora da infelicidade da minha filha? Estarei a voltar contra ela as qualidades mais preciosas da alma, a sensibilidade e a constância? É assim que cumpro o meu papel de mãe? E se abafar em mim este sentimento tão natural de desejar a felicidade da minha filha; se considerar como uma fraqueza o que creio, pelo contrário, o primeiro e mais sagrado dos nossos deveres; se forço a sua escolha, não serei a responsável pelas conseqüências funestas que possam seguir-se? Que mau emprego de autoridade materna, colocar a própria filha entre o crime e a infelicidade! Não, minha amiga, não imitarei o que tantas vezes tenho censurado. Ao tentar escolher em vez da minha filha, pretendia ajudá-la com a minha experiência; não exercia um direito cumpria um dever. Mas faltarei a um se, pelo contrário, dispuser dela desprezando uma afeição que eu não soube impedir de nascer e de que nem eu nem ela podemos conhecer a duração e a força. Não, não posso admitir que case com este para amar aquele, prefiro comprometer a minha autoridade a pôr em perigo a sua virtude. Acho que vou tomar a decisão mais ajuizada, retomar a palavra que dei ao senhor de Gercourt. Expus-vos as razões parecem-me mais importantes do que a minha promessa. Digo mais: no estado em que as coisas estão, cumpri-la seria, na verdade, violá-la. Porque enfim, se devo à minha filha o não revelar o seu segredo ao senhor de Gercourt, devo também não abusar da ignorância em que o deixo e fazer em vez dele o que creio que ele faria se soubesse. Irei, pelo contrário, traí-lo indignamente, e, enquanto ele confia em mim e me honra escolhendome para segunda mãe, enganá-lo na escolha da mãe dos seus filhos? Estas reflexões, tão verdadeiras e às quais me não posso furtar, alarmam-me mais do que deixo transparecer.
Às desgraças que receio, comparo a minha filha, feliz com o esposo que o seu coração escolheu, presa aos deveres só pela doçura que encontra em cumpri-los; o meu genro também satisfeito e felicitando-se sempre pela sua escolha; cada um deles encontrando a felicidade na felicidade do outro, e a de ambos conjugando-se para aumentar a minha. A esperança dum futuro tão doce deve ser sacrificada a vãs considerações? E quais são elas? Unicamente as ditadas pelo interesse. Para que terá servido à minha filha ter nascido rica, se tem de ser do mesmo modo escrava do dinheiro? Concordo que o senhor de Gercourt é um partido melhor do que eu poderia esperar para a minha filha; confesso até que fiquei extremamente lisonjeada com a escolha dele. Mas enfim Danceny é dum nome igualmente ilustre; não lhe é em nada inferior em qualidades pessoais; tem sobre o senhor de Gercourt a vantagem de amar e ser amado. Não é rico, na verdade; mas não o é minha filha o suficiente para ambos? Ah! Porquê tirar-lhe a satisfação tão doce de enriquecer aquele que ela ama! Estes casamentos arranjados, em vez de entregues ao livre arbítrio do coração, e a que chamamos de conveniência, nos quais tudo se ajusta de fato, menos os gostos e os caracteres, não serão eles a nascente mais fecunda dessas rupturas escandalosas hoje em dia tão freqüentes? Prefiro adiar; pelo menos terei tempo para estudar melhor a minha filha, que não conheço. Sinto-me com coragem de lhe causar um desgosto passageiro, se ele puder contribuir para uma felicidade mais sólida, mas arriscar-me a arrastá-la para um desespero eterno, isso não me está no coração. Eis, querida amiga, as idéias que me atormentam e acerca das quais vos peço a opinião. Estas preocupações sérias contrastam muito com a vossa alegria gentil e nem são para a vossa idade; mas vós estais muito acima dela! A amizade juntar-se-á de resto à vossa prudência; e sei que uma e outra se não recusarão à solicitude maternal que as implora. Adeus, encantadora amiga; não duvideis nunca da sinceridade dos meus sentimentos. Castelo de..., 2 de Outubro de 17* *.
CARTA XCIX O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Apenas pequenos incidentes, minha bela amiga; mas só cenas, nada de ações. Deste modo, arme-se de paciência; mesmo muita, porque enquanto a minha Presidente avança com lentidão, a sua pupila recua, o que é muito pior. Pois bem! Tenho bom humor para me
divertir com estas catástrofes. Na verdade acostumei-me muito bem à minha estada aqui e posso afirmar que no triste castelo da minha velha tia não experimentei um momento de tédio. Pois não tenho aqui prazeres, privações, esperança, incerteza? Que se tem a mais num teatro maior? Espectadores? Ah! Esperemos, eles não faltarão. Se não me vêem entregue ao trabalho, mostrar-lhes-ei a tarefa pronta; só terão de admirar e aplaudir. Sim, aplaudirão; porque posso finalmente prever, com exatidão, o momento da queda da minha austera devota. Assisti esta tarde à agonia da virtude. A doce fraqueza reinará agora. Prevejo esse momento para a nossa primeira entrevista, mas já a ouço acusarme de orgulho. Anuncia a vitória, gaba-se antecipadamente! Bom, acalme-se! Para lhe provar como sou modesto, vou começar pela história da minha derrota. A sua pupila é de fato uma criaturinha ridícula! É uma criança que deveria ser tratada como tal e a quem não faríamos mais que perdoar se nos limitássemos a pô-la de castigo ! Acredita que, depois do que se passou anteontem entre ela e mim, depois do modo amigável como nos despedimos ontem de manhã, quando eu quis voltar à noite, como combináramos encontrei a porta fechada por dentro? Que diz a isto? Aturam-se às vezes infantilidades destas na véspera; mas no dia seguinte! Não acha cômico? Mas não ri logo, nunca sentiria de tal forma o peso do meu mau gênio. Asseguro-lhe que ia àquela entrevista sem prazer, apenas por deliberação. O meu leito, de que muito necessitava, parecia-me, nesse momento, preferível ao de outrem, e afastara-me dele com pena. No entanto, logo que encontrei um obstáculo ardi por o vencer; e acima de tudo senti-me humilhado por uma criança me ter ludibriado. Retireime então de muito mau humor e com o projeto de nunca mais me ocupar daquela criança estúpida, nem dos seus problemas, escrevi-lhe imediatamente um bilhete que pensava entregar hoje, em que a apreciava no seu justo valor. Mas, como costuma dizer-se, a noite é boa conselheira; pensei esta manhã que, não tendo aqui a possibilidade de escolher distrações, não devia perder aquela: destruí pois o severo bilhete. Depois refleti, espantei-me de ter tido a idéia de acabar uma aventura sem ter na minha mão com que perder a heroína. Onde nos pode conduzir um primeiro movimento! Felizes aqueles que desde sempre se acostumaram como a minha boa amiga a nunca lhe ceder! Enfim, adiei a minha vingança; fiz esse sacrifício às suas intenções em relação a Gercourt. Agora que já não estou zangado, vejo só o ridículo na conduta da sua pupila. Gostaria na verdade de descobrir o que espera ela ganhar deste modo! Confesso-me incapaz; se é só para se defender, concordemos que se acautela demasiado tarde. Um, dia ela explicarme-á este enigma! Anseio por conhecê-la. Seria somente por se
encontrar fatigada? Francamente acho possível, porque, sem dúvida, ela ignora ainda que as flechas do amor, como a lança de Aquiles, trazem consigo remédio para os golpes que fazem. Mas não, pela expressão dela durante todo o dia, iria apostar que há ali remorsos... uns resquícios de virtude... Virtude! Bem precisa dela. Ah! Que a deixe mas é para a mulher nascida na realidade para ela, a única que a sabe embelezar e seria capaz de no-la fazer amar... Perdão, minha bela amiga, mas foi esta tarde que se passou entre mim e Madame de Tourvel a cena que quero narrar-lhe e de que ainda conservo a emoção. Preciso fazer um esforço para sacudir a impressão que me causou; é para me livrar disso que me pus a escrever-lhe. Deve-se desculpar este momento de fraqueza. Há já alguns dias que nós, Madame de Tourvel e eu, estamos de acordo sobre os nossos sentimentos; discutíamos apenas acerca de palavras. Era sempre a sua amizade que respondia ao meu amor, mas essa linguagem de convenção não modificava o fundo das coisas; e mesmo que assim nos tivéssemos mantido, eu teria certamente avançado mais devagar, mas não menos seguramente. Já não se tratava de me afastar, como ela queria primeiro; e, quanto às conversas que temos tido diariamente, se ponho os meus esforços em lhe oferecer a ocasião, ela põe os dela em a agarrar. Como é habitualmente nos passeios que se dão as nossas conversas, o tempo terrível que fez hoje todo o dia não me permitia ter esperança, estava muito contrariado; não previa quanto lucraria com este contratempo. Não se podendo passear, pusemo-nos a jogar quando deixamos a mesa; como não jogo bem, e não era necessária a minha presença, aproveitei para subir ao meu quarto, com o projeto de esperar pouco mais ou menos o fim da partida. Voltava para me juntar ao grupo, quando encontrei a encantadora dama que entrava nos seus aposentos e que, por imprudência ou fraqueza, me disse com voz doce: "Aonde ides? Não há ninguém no salão." Não foi preciso mais para eu, como deve calcular, experimentar entrar com ela; encontrei menos resistência do que esperava. É certo que eu tivera a precaução de começar a conversa à porta, e de a começar com um tom indiferente, mas assim que nos sentamos, voltei ao que me interessava e falei do meu amor à minha amiga. A primeira resposta dela, embora simples, pareceu-me expressiva: "Oh!, não", disse-me, "não falemos disso aqui"; e tremia. Pobre mulher! Julga morrer. No entanto não havia motivo para temer. Já há algum tempo que, certo do sucesso mais cedo ou mais tarde, e vendo-a gastar as forças em combates inúteis, tinha resolvido economizar as minhas e esperar sem esforço que ela se entregasse por cansaço. Vê bem como exijo um triunfo completo e nada quero dever às circunstâncias. Foi
mesmo de acordo com o plano assim elaborado, e para poder insistir sem me empenhar muito, que voltei à palavra amor, tão obstinadamente recusada, certo de que ela me julgava demasiado ardoroso, tentei um tom mais terno. A recusa já não me fazia zangar, afligia-me apenas; não me devia a minha sensível amiga algumas consolações? Enquanto me consolava, deixara uma das mãos na minha; o lindo corpo apoiava-se no meu braço, e estávamos estreitamente unidos. Já reparou como nesta situação, à medida que a defesa enfraquece, os pedidos e as recusas são feitos de mais perto; a cabeça afasta-se, os olhares baixam-se, enquanto que as palavras ditas em murmúrio se tornam raras e entrecortadas? Estes sintomas preciosos anunciam de modo inequívoco o consentimento da alma, mas raramente este chega aos sentidos; creio mesmo que é sempre perigoso ousar demasiado, visto que este estado de abandono é acompanhado por um doce prazer e não é possível arrancar alguém a ele, sem causar um estado de espírito que se torna infalivelmente favorável à defesa. Mas, no caso presente, a prudência era-me tanto mais necessária quanto eu tinha sobretudo a recear o susto que este esquecimento de si própria não deixaria de causar à terna sonhadora. Não exigia que a confissão que suplicava fosse pronunciada; um olhar bastava; um só olhar e seria feliz. Minha amiga, aqueles belos olhos ergueram-se de fato para mim; aquela boca celeste pronunciou até: "Bom! Sim eu..." Mas de súbito extinguiu-se-lhe o olhar, faltou-lhe a voz e esta mulher adorável caiu nos meus braços. Mal tivera tempo de; a segurar e já ela, libertando-se com uma força convulsiva, o olhar perdido, as mãos elevadas para o céu... "Deus, ó Deus, salvai-me!", gritou; e, no mesmo instante, mais rápida do que um relâmpago, caiu de joelhos a dez passos de mim. Sentia-a prestes a sufocar. Avancei para a socorrer, mas, tomando-me as mãos que banhava de lágrimas e abraçando-me por vezes pelos joelhos, disse: "Sim, sereis vós que me salvareis! Se não quereis a minha morte, deixai-me; salvai-me, deixai-me por amor de Deus, deixai-me!" E outras palavras entrecortadas mal se ouviam através de soluços redobrados. Entretanto prendia-se-me com uma força que me não permitia afastar-me; então, juntando as minhas, elevei-a nos meus braços. No mesmo momento cessaram as lágrimas, deixou de falar, os membros inteiriçaram-se-lhe, e violentas convulsões sucederam a esta tempestade. Eu estava, confesso, violentamente comovido, e creio que teria acedido aos seus rogos, mesmo que as circunstâncias não me forçassem a tal. Depois de lhe ter dado algum amparo, deixei-a conforme me pedia, e felicito-me por isso. Em breve receberei o prêmio. Esperava que, tal como no dia da minha primeira declaração, ela não aparecesse à noite. Mas, cerca das oito horas, desceu ao salão e limitou-se a declarar que estivera muito incomodada.
Tinha o rosto abatido, a voz sumida, e os modos eram afetados; mas o olhar era doce e muitas vezes me fixou. Como se recusou a jogar fui obrigado a substituí-la e veio sentar-se a meu lado. Durante a ceia ficou sozinha no salão. Quando voltamos, reparei que chorara; para me certificar, disse-lhe que me parecia que ela ainda se ressentia do seu mal-estar; ao que respondeu delicadamente: "Este mal não se vai tão depressa como vem!" Quando finalmente nos retiramos, dei-lhe a mão; e à porta dos seus aposentos apertou a minha com força. É certo que este movimento pareceu-me ter qualquer coisa de involuntário, mas tanto melhor; é mais uma prova do meu poder. Apostaria que neste momento ela está encantada com o ponto a que chegamos, acabou-se o trabalho! Gozemos agora. Talvez, no momento em que lhe escrevo, ela se ocupe já desta doce idéia! E mesmo que pelo contrário ela se ocupasse dum novo projeto de defesa, não sabemos já no que resultariam todos esses projetos? Acha que isto pode ir além da nossa próxima entrevista? Sei bem que se fará rogada para a conceder, mas enfim! Saberão estas beatas austeras conter-se uma vez franqueado o primeiro passo? O amor delas é uma verdadeira explosão; a resistência dá-lhes mais força. A minha fanática devota correria atrás de mim, se eu deixasse de a perseguir. Enfim, minha bela amiga, em breve irei junto de si, para lhe exigir o cumprimento da sua palavra. Não esqueceu sem dúvida que prometeu, após o sucesso, uma infidelidade ao seu Cavaleiro? Está preparada? Pelo meu lado, desejo-a como se nunca a tivesse conhecido. Ou antes, conhecê-la é talvez uma razão para a desejar ainda mais. ...je suis juste, et ne suis point galant... * Será a primeira infidelidade que farei a esta severa conquista; e prometo-lhe aproveitar o primeiro pretexto para me afastar dela por vinte e quatro horas. Será o castigo por me ter mantido tanto tempo longe de si. Sabe que há mais de dois meses que esta aventura me prende? Sim, dois meses e três dias; já incluo na verdade o dia de amanhã, pois ela só então se consumará. Isto faz-me lembrar que Mademoiselle de B... resistiu três meses inteiros. Estimo verificar que a coqueteria pura e simples tem mais defesa que a austera virtude. Adeus, minha bela amiga; tenho de a deixar porque é muito tarde. Esta carta levou-me mais longe do que esperava; mas como a envio amanhã de manhã a Paris, quis aproveitar, para a fazer partilhar um dia mais cedo da alegria deste seu amigo. Castelo de..., 2 de Outubro de 17**, à noite.
*..Sou justo, e não sou galanteador... Voltaire. Comédie de Nanrne.(N. do A.)
CARTA C O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Minha amiga, fui ludibriado, traído, abandonado; estou desesperado; Madame de Tourvel partiu. Partiu e eu não o soube! E não estava lá para me opor à sua partida, para lhe censurar tão indigna traição! Ah! Não julgue que a deixaria fugir; ela teria ficado; teria ficado nem que fosse forçado a recorrer à violência. Mas quê! Na minha crédula tranqüilidade, dormia sossegadamente: dormia e o raio fulminou-me. Não, não compreendo este abandono; devemos renunciar a compreender as mulheres. Quando me lembro do dia de ontem! Que digo! Da noite até! Aquele olhar doce! Aquela voz tão terna! E a mão que apertou a minha! E durante todo esse tempo projetava fugir de mim! Oh! Mulheres, mulheres! Queixais-vos depois se alguém vos engana! Sim, toda a perfídia que empregamos é um roubo que vos fazemos. Que prazer terei em vingar-me! Tornarei a encontrar essa pérfida mulher e retomarei o meu domínio sobre ela. Se o amor me bastou para descobrir o caminho, que não farei guiado pela vingança. Ainda a heide ver a meus pés, tremendo e banhada em lágrimas, pedindo-me perdão com aquela voz enganadora; serei sem piedade. Que faz agora, que pensa? Talvez se regozije por me ter enganado e, fiel aos gostos do seu sexo, este prazer lhe pareça o mais
doce. O que não pôde a tão louvada virtude, conseguiu-o a manha sem esforço. Insensato! Eu temia a sensatez dela; devia antes temer a má fé. E ser obrigado a engolir o meu ressentimento! Ousar apenas mostrar uma terna dor, quando tenho o coração cheio de raiva! Ver-me reduzido a suplicar outra vez a uma mulher rebelde, que se furtou ao meu poder! Merecia eu ser humilhado a este ponto? E por quem? Por uma mulher tímida, sem prática destas lutas. De que me vale ter-lhe conquistado o coração, tê-la abrasado pelo fogo do amor, ter elevado até ao delírio a perturbação dos sentidos, se, tranqüila no seu refúgio, ela pode hoje orgulhar-se mais da sua fuga do que eu das minhas vitórias? Suportarei isto? A minha amiga não pode acreditar em tal; não tem de mim idéia tão humilhante! Mas que fatalidade me liga a esta mulher? Não há centenas que desejam as minhas atenções? Que se apressariam a corresponderme? E mesmo que não se comparem a esta, a atração da variedade, o encanto de novas conquistas, o prestígio do seu número, não oferecerão também doces prazeres? Por que correr atrás de quem nos foge e desprezar os que nos procuram? Ah! Porquê?. .. Ignoro-o mas não posso sentir de maneira diferente. Não existe para mim felicidade ou repouso se não possuir esta mulher que odeio e amo com fúria igual. Só poderei suportar a minha vida a partir do momento em que disponha da sua. Então, tranqüilo e satisfeito, vê-la-ei, por sua vez, entregue aos tormentos que me sacodem nesta hora; e criarei ainda mil outros. Quero que a esperança e o temor, a desconfiança e a tranqüilidade, todos os males inventados pelo ódio, e todos os bens concedidos pelo amor, possuam o seu coração, e aí se alternem segundo o meu desejo. Há de chegar esse momento... Mas quantos trabalhos ainda! Como ontem estive perto e hoje me sinto afastado! Como aproximar-me? Não ouso tentar qualquer movimento; para tomar uma decisão seria preciso estar mais calmo, e o sangue ferve-me nas veias. O que aumenta o meu tormento é o sangue-frio com que todos respondem às minhas perguntas sobre este acontecimento e sobre a causa, e tudo o que me parece tão extraordinário. Ninguém sabe nada nem procura saber, nem teriam falado nisso, se eu consentisse que se falasse doutra coisa. Madame de Rosemonde, que visitei no seu quarto logo de manhã quando soube a notícia, respondeu-me, com a calma da sua idade, que se tratava da continuação natural da indisposição que Madame de Tourvel tivera ontem; que ela receara uma doença e preferira ir para casa. Achava muito natural e teria feito o mesmo, afirmou-me.
Como se pudesse haver qualquer coisa de comum entre ambas!, entre esta, a quem não resta senão a morte, e a outra, encanto e tormento da minha vida! Madame de Volanges, que julguei primeiro cúmplice, parece afinal ofendida por não ter sido consultada sobre esta partida. Estou satisfeito, confesso, por ela não ter tido o prazer de me dar um desgosto. Isto prova que ela não possui inteiramente, tal como eu temia, a confiança da amiga; sempre é uma inimiga a menos. Como se felicitaria se soubesse que era de mim que fugiam! Como estaria inchada de orgulho se isso tivesse acontecido devido aos seus conselhos! Como se sentiria importante! Meu Deus, como a odeio! Oh, recomeçarei com a filha; quero moldá-la segundo a minha fantasia; e creio que ficarei aqui algum tempo. Pelo menos, as poucas reflexões que fiz levam-me a esta conclusão. Não acha que; depois desta decisão tão viva, a ingrata deve recear a minha presença? Se pensou que podia segui-la, certamente me proibiu a entrada; e não quero nem acostumá-la a isso, nem sofrer a humilhação. Prefiro dizer-lhe que fico aqui; rogar-lhe-ei que volte; e quando estiver persuadida da minha ausência, apresentar-me-ei; veremos como reage a esta entrevista. Mas é preciso adiá-la para lhe aumentar o efeito, e não sei se terei paciência para isso. Abri umas vinte vezes a boca durante o dia para pedir os meus cavalos. Mas conseguirei dominar-me; comprometo-me a receber a sua resposta aqui; peço-lhe só, minha bela amiga, que ma não faça esperar. O que me poderia contrariar mais seria não saber o que se passa; mas o meu criado, que está em Paris, tem possibilidade de acesso junto da criada de quarto e portanto poder-me-á ser útil. Vou-lhe enviar instruções e dinheiro. Não se importará que eu junte ambos a esta carta e que lhe peça o cuidado de lhos enviar por um dos seus, com a ordem de lhos entregar pessoalmente. Tomo esta precaução porque o tolo tem o hábito de nunca receber as cartas que lhe escrevo, quando elas lhe ordenam qualquer coisa que o mace; e, neste momento, não me parece tão apaixonado pela sua conquista como eu o desejaria. Adeus, bela amiga; se tiver idéia feliz, qualquer meio de apressar a marcha, diga-me. Já mais de uma vez senti quanto a sua amizade me pode ser útil, sinto-o ainda neste momento, porque fiquei mais calmo enquanto lhe escrevia; pelo menos, falo a alguém que me compreende, e não aos autômatos junto de quem vegeto desde manhã. Na verdade, quanto mais penso mais acredito que só existimos você e eu no mundo, que tenhamos qualquer valia. Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *.
CARTA CI O VISCONDE DE VALMONT A AZOLAN, SEU CRIADO (Junta à precedente) Deves ser muito imbecil para, tendo partido daqui esta manhã, não teres descoberto que Madame de Tourvel também partia; ou, se o soubeste, para me não teres prevenido. De que serve gastares o meu dinheiro a beber com os criados, e que em vez de empregares o tempo a servir-me o desperdices a fazer a corte às criadas de quarto, se apesar disso não fico mais bem informado acerca do que se passa? Tanta negligência! Mas previno-te de que, se te acontecer uma que seja neste caso, será a última que terás ao meu serviço. Informar-me-ás de tudo o que se passar em casa de Madame de Tourvel, da saúde dela; se dorme; se está triste ou alegre; se sai muitas vezes e aonde vai; se recebe visitas, e quem; em que passa o tempo, se se zanga com as criadas, especialmente com a que veio com ela; o que faz quando está só; se quando lê, lê seguidamente ou se interrompe a leitura para meditar; e o mesmo quando escreve. Procura tornar-te amigo do criado que leva as cartas para o correio. Oferece-te até para fazer esse recado em vez dele; e quando aceitar não mandes senão as que te parecerem indiferentes, e envia-me as outras, sobretudo as endereçadas a Madame de Volanges, se alguma houver. Procura ser ainda por algum tempo o amante feliz da tua Júlia. Se ela tem outro, como julgaste, que consinta em se dividir; e não te aflijas com escrúpulos ridículos, estarás no caso de muitos outros, que valem mais do que tu. Se no entanto o teu rival se tornar importuno, se, por exemplo, vires que ele ocupa demasiado a Júlia durante o dia, e que por isso ela está menos tempo junto da senhora, afasta-o de qualquer modo; ou procura uma questão com ele; não temas as conseqüências, responderei por ti. Não deixes essa casa. É pela assiduidade que se nota e percebe tudo. Se por um acaso algum dos criados for despedido, apresenta-te para o substituir como se já me não pertencesses. Podes dizer nesse caso que me deixaste para procurar uma casa mais tranqüila e regrada. Faz o possível para que te aceitem. Ficarás do mesmo modo ao meu serviço durante esse tempo; será como em casa da Duquesa de...: e, ainda por cima, Madame de Tourvel te virá a recompensar. Se tivesses jeito e zelo estas instruções deviam bastar, mas para suprir a ambos envio-te dinheiro. O bilhete junto autoriza-te como verás a levantar vinte e cinco luíses do meu administrador; porque tenho a certeza de que estás sem dinheiro. Empregarás desta quantia o que for
necessário para decidir Júlia a estabelecer correspondência comigo. O resto será para beberes com os criados. Quando o fizeres, não esqueças que não são os teus prazeres que eu quero pagar, mas os teus serviços. Acostuma Júlia a observar e a contar-te tudo, mesmo o que lhe pareça demasiado minucioso. Vale mais que ela escreva dez frases inúteis do que omita uma com interesse; e muitas vezes o que parece indiferente não o é. Como é necessário que possa ser informado imediatamente, se acontecer qualquer coisa que te pareça importante, assim que tenhas recebido esta carta mandarás Filipe fixarse em...* com um cavalo; aí ficará até nova ordem; haverá uma muda em caso de necessidade. Para a correspondência corrente, bastará o correio. Tem cuidado em não perder esta carta. Relê-a todos os dias, não só para te certificares de que não te esqueceste de nada, mas também para teres a certeza de ainda a possuíres. Faz enfim tudo o que é preciso, quando se tem a honra da minha confiança. *Aldeia a meio caminho de Paris ao castelo de Madame de Rosemonde.(N. do A.)
Não terás de que te arrepender se eu ficar satisfeito contigo. Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *.
CARTA CII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Ficareis muito admirada, senhora, ao saberdes que parto de vossa casa assim tão precipitadamente. Parecer-vos-á extraordinária esta atitude, mas a vossa surpresa aumentará ainda, quando souberdes quais os motivos! Achareis talvez que, ao confiar-vo-los, não respeitei como devia a tranqüilidade tão necessária à vossa idade; que me afasto até dos sentimentos de veneração que a tantos títulos vos são devidos. Ah! senhora, perdão, mas o meu coração está oprimido, e precisa de expandir a sua dor no seio duma amiga simultaneamente doce e prudente: quem poderia ele escolher senão vós? Considerai-me como vossa filha. Tende para comigo toda a bondade maternal; imploro-vos. Os meus sentimentos por vós talvez possam justificar as minhas súplicas. Onde está o tempo em que, inteiramente devotada a sentimentos louváveis, não conhecia ainda aqueles que, lançando a alma na perturbação que sinto agora, nos roubam a força de os combater no momento exato em que impõem esse dever? Ah!Esta viagem fatal perdeu-me...
Que vos posso dizer? Amo, sim, amo loucamente. Ai! Esta palavra que escrevo pela primeira vez, esta palavra tanta vez desejada sem ser obtida, pagaria com a vida a doçura de a poder dizer uma só vez àquele que ma inspira; e contudo devo sem cessar abster-me de tal! Ele vai ainda duvidar dos meus sentimentos; julgar-se-á com direito a queixar-se. Sou tão infeliz! Por que não lê ele no meu coração com a mesma facilidade com que aí reina? Sim, seria menos infeliz, se ele soubesse como sofro; mas mesmo vós, a quem o revelo, não fazeis senão ainda uma leve idéia da minha dor. Dentro de poucos momentos vou fugir e afligi-lo. Julgar-se-á ainda perto de mim, e já eu estarei longe, à hora a que nos costumávamos ver todos os dias, estarei num local aonde nunca veio, aonde não devo permitir que venha. Os preparativos estão todos feitos; tenho tudo em frente dos meus olhos; não os posso repousar sobre nada que não me anuncie a cruel partida. Está tudo pronto, exceto eu. E quando mais o coração se recusa, mais me prova a necessidade de me submeter a esta decisão. Submeter-me-ei sem dúvida; antes morrer do que viver culpada. De resto, sinto que já o sou; salvei apenas a sensatez, a virtude já desapareceu. Não é preciso confessar-vos; o que ainda me resta, devoo apenas à generosidade dele. Entontecida com o prazer de o ver, de o ouvir, com a doçura de o sentir junto de mim e com a felicidade de poder fazer a dele, encontrava-me sem recursos e sem forças; mal podia ainda lutar, já não resistia; estremecia com o perigo sem conseguir fugir-lhe. Pois bem! Viu a minha dor e teve piedade de mim. Como não o adorar? Devo-lhe mais do que a vida. Ah! Se ao ficar junto dele eu tivesse apenas que temer por ela, podeis crer que nunca me afastaria. De que me serve a vida sem ele? Não seria para mim uma felicidade perdê-la? Condenada a provocar eternamente a infelicidade de ambos; a não ousar queixar-me, nem consolá-lo; a defender-me todos os dias dele e de mim própria; a pôr todos os meus cuidados em fazer-lhe mal, quando afinal desejaria consagrá-los à sua felicidade. Viver assim, não serão mil mortes? Eis todavia o meu destino. Suportá-lo-ei no entanto, não me faltará a coragem. Recebei vós, a quem escolho por mãe, este juramento. Recebei igualmente aquele que faço de nunca vos ocultar nenhuma das minhas ações; recebei-o, suplico-vos; peço-vo-lo como um auxílio precioso: obrigada assim a dizer-vos tudo, sentirei como se estivesse sempre na vossa presença. A vossa virtude substituirá a minha. Nunca consentirei, sem dúvida, em corar diante de vós, e retida por esse freio poderoso, ao mesmo tempo que adorei em vós a amiga tolerante e confidente da minha fraqueza, venerarei ainda o anjo tutelar que me há de salvar da vergonha.
É já sentir muita o ter de fazer este pedido. Fatal efeito duma presunçosa confiança! Por que não temi mais cedo esta inclinação que senti nascer? Por que me lisonjeei de a poder dominar ou vencer à minha vontade? Insensata! Muito mal conhecia eu o amor! Ah! Se a tivesse combatido com mais cuidado, talvez tivesse adquirido menos poder! E então talvez esta fuga não fosse necessária; ou, submetendome embora a tão dolorosa decisão, poderia não romper inteiramente uma ligação que bastaria tornar menos freqüente! Mas perder tudo duma só vez, e para sempre! Ó minha amiga...! Mas quê? Mesmo ao escrever-vos, desvairo ainda em desejos criminosos? Ah! Partamos, partamos, e que ao menos estes erros involuntários sejam expiados pelos meus sacrifícios. Adeus, respeitável amiga; amai-me como filha, adotai-me como tal; e podes estar certa de que, apesar da minha fraqueza, preferiria morrer a tornar-me indigna da vossa escolha. 3 de Outubro de 17* *, à uma hora da manhã.
CARTA CIII MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL Fiquei, minha querida amiga, mais aflita com a vossa partida do que surpreendida pela causa; uma longa experiência e o interesse que me inspirais bastaram para me esclarecer quanto ao estado do vosso coração; e, para dizer tudo, nada me dissestes na carta que eu não soubesse já. Se só por ela tivesse tomado conhecimento, ignoraria ainda quem é aquele que amais; porque, embora me faleis dele todo o tempo, não lhe escrevestes o nome uma só vez. Mas não era preciso, sei bem de quem se trata. Noto-o apenas, porque me lembrei que é sempre esse o estilo do amor. Vejo que é ainda tal como no passado. Pensei que nunca mais voltaria a recordações tão longínquas e tão estranhas à minha idade. No entanto, desde ontem, tenho pensado muito nelas, pelo desejo que sentia de encontrar algo que vos pudesse ser útil. Mas que posso fazer além de vos admirar e lamentar? Acho louvável a sensata decisão que tomastes, mas assusta-me, porque concluo que a julgastes necessária; e quando se está nesse ponto é difícil mantermo-nos afastadas daqueles que o nosso coração chama sem cessar. No entanto não deveis perder a coragem. Nada sei impossível à vossa bela alma; e mesmo que um dia tivésseis a infelicidade de sucumbir (que Deus não o permita!), acreditai-me, minha querida amiga, ficar-vos-á ao menos a consolação de ter lutado com todas as
forças. E depois, o que a sensatez humana não consegue, opera-o a graça divina quando quer. Talvez em breve sejais socorrida; e a vossa virtude, experimentada nestes penosos combates, sairá mais pura e brilhante. A força que não tendes hoje, podeis recebê-la amanhã. Não deveis ter esperança nela para vos repousardes, mas antes para vos encorajar a usar todas as de que já podeis dispor. Deixando à Providência o encargo de vos socorrer dum perigo contra o qual nada posso, reservo-me o de vos ajudar e consolar tanto quanto me for possível. Não aliviarei as vossas penas, mas compartilhálas-ei. É com esse fim que receberei de boa vontade as vossas confidências. Sinto que o vosso coração deve ter necessidade de se expandir. Abro-vos o meu; a idade ainda não o gelou a ponto de ser insensível à amizade. Encontrá-lo-eis sempre pronto para vos receber. Podeis vir com confiança repousar-vos de cruéis agitações. Será fraco alívio para as vossas dores, mas pelo menos não chorareis sozinha; e quando esse amor infeliz, dominando-vos demasiado, vos obrigar a falar, mais vale que seja comigo do que com ele. Eis que falo como vós e creio que ambas não chegaremos a nomeá-lo; de resto compreendemo-nos. Não sei se faço bem em dizer-vos que ele me pareceu muito atingido pela vossa partida; talvez fosse mais sensato não vos falar nisso, mas não gosto dessa sensatez que faz afligir os amigos. Sou forçada a não vos falar mais longamente. A vista débil, a mão vacilante não me consentem longas cartas, quando é preciso que eu própria as escreva. Adeus, então, minha querida amiga; adeus, minha filha adorável; sim, adoto-vos de boa vontade como minha filha; tendes tudo o que é preciso para fazer o orgulho e o prazer duma mãe. Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *.
CARTA CIV A MARQUESA DE MERTEUIL A MADAME DE VOLANGES Em verdade, minha querida e boa amiga, custou-me a evitar um movimento de orgulho, ao ler a vossa carta. Quê! Pois honrais-me com a vossa inteira confiança! E ides mesmo ao ponto de me pedir conselhos! Ah! Sentir-me-ia muito feliz, se soubesse merecer uma opinião tão favorável da vossa parte, e não devê-la apenas à indulgência da amizade. De resto, qualquer que seja o motivo, esta não é menos
preciosa para o meu coração; e tê-la obtido, é em minha opinião mais uma razão para procurar merecê-la. Vou deste modo (mas sem pretender dar-vos um conselho), dizer-vos livremente a minha maneira de pensar. Desconfio dela porque é diferente da vossa, mas depois de vos expor as minhas razões vós as julgareis; e se as condenardes submeto-me antecipadamente ao vosso juízo. Terei pelo menos a sensatez de me não julgar mais ponderada do que vós. Se no entanto, e por uma só vez, a minha opinião fosse preferível, a causa disso seriam as ilusões do amor maternal. E este sentimento, visto que é louvável, encontrar-se-á por certo no vosso coração. Foi ele com certeza que vos ditou a decisão que estais a tomar! Se alguma vez vos acontecer errar é apenas na escolha das virtude. A prudência é, ao que me parece, a que se deve preferir, quando temos nas nossas mãos o destino dos outros; e sobretudo quando se trata de o fixar por um laço indissolúvel e sagrado como o casamento. É então que uma mãe, simultaneamente sensata e terna, deve, como tão bem dizeis, ajudar a filha com a sua experiência. Ora, pergunto-vos, que deve fazer para o conseguir, se não distinguir, para ela, entre o que agrada e o que convém? Não será rebaixar a autoridade materna, não será reduzi-la a nada, subordiná-la a um gosto frívolo, filho do capricho e pai do delírio, cujo poder ilusório domina só os que o temem, e desaparece logo que o desprezam? Por mim, confesso, nunca acreditei nessas paixões arrebatadoras e irresistíveis com que, segundo me parece, se convencionou desculpar de modo geral os nossos desregramentos. Não concebo como um gosto, que nasce num momento e logo morre, pode ter mais força que os princípios inalteráveis do pudor, da honestidade e da modéstia; e não compreendo que uma mulher que os trai possa ser mais justificada pela sua pseudopaixão, que um ladrão pela paixão do dinheiro, ou um assassino pela da vingança. Oh! Quem se pode gabar de nunca ter tido que resistir? Mas sempre tentei persuadir-me que para resistir basta querê-lo; e até aqui, pelo menos, a minha experiência confirmou esta opinião. Que seria a virtude sem os deveres que impõe? O seu culto está nos nossos sacrifícios e a recompensa nos corações. Estas verdades só podem ser negadas pelos que têm interesse em as desconhecer; e que, já depravados, esperam iludir-se um momento, tentando justificar a sua má conduta com más razões. Mas podê-lo-emos recear quando se trata duma criança simples e tímida, duma criança que é vossa filha, e cuja educação modesta e pura fortificou as já felizes tendências naturais? É no entanto a este temor, ouso dizer humilhante para vossa filha, que quereis sacrificar o vantajoso casamento que a vossa prudência preparara para ela! Gosto muito de Danceny; e há muito tempo, como sabe, que pouco vejo o
senhor de Gercourt, mas a amizade por um e a indiferença que sinto pelo outro não me impedem de sentir a enorme diferença que existe entre esses dois partidos. O nascimento é igual, concedo; mas um não tem fortuna, e a do outro é tal que, mesmo sem o nascimento, teria bastado para lhe abrir todas as portas. Confesso que o dinheiro não faz a felicidade; mas devemos confessar também que ajuda muito. Mademoiselle de Volanges é, como dizeis, rica por dois, no entanto, as sessenta mil libras de renda de que ela gozará não são já tanto quando se traz o nome de Danceny e quando se tem de pôr e manter uma casa que lhe corresponda. Já não estamos no tempo de Madame de Sévigné. O luxo absorve tudo; censuramo-lo, mas é preciso imitá-lo; e o supérfluo acaba por nos privar do necessário. Quanto às qualidades pessoais que tendes, com razão, em tão grande conta, nada há com certeza a censurar ao senhor de Gercourt; e, quanto a ele, as provas estão feitas. É-me agradável crer, e creio de fato, que Danceny em nada lhe é inferior; mas poderemos ter absoluta certeza? É certo que até aqui me pareceu isento dos defeitos próprios da sua idade e, apesar das tendências da época, mostra um gosto pelas boas companhias que parece ser de bom augúrio; mas quem sabe se não deve esta aparente sensatez à mediocridade da fortuna? Mesmo que se não tema ser corrupto ou devasso, é preciso dinheiro para se ser jogador ou libertino, e até se podem amar os defeitos de que tememos os excessos. Enfim, não seria o único que procuraria as boas companhias unicamente por não poder ocupar-se mais a seu gosto. Não digo (Deus me livre!) que creia tudo isto a seu respeito, mas sempre seria correr um risco; e que censuras não faríeis a vós mesma, se o acontecimento não fosse feliz! Que responderíeis à vossa filha quando ela vos dissesse: " Mãe, eu era jovem e sem experiência, era arrastada por um erro perdoável na minha idade; mas o céu, prevendo a minha fraqueza, dera-me uma mãe sensata, para tudo remediar e me acautelar desse mal. Por que foi então que, esquecendo a vossa prudência, consentistes na minha infelicidade? Seria eu que deveria escolher marido, quando nada sabia do estado de casada? Mesmo que eu o quisesse não tínheis o dever de mo impedir? Mas nunca tive esse louco desejo. Decidida a obedecer-vos, esperei a vossa escolha com respeitosa resignação; nunca me afastei da submissão que vos devia, e hoje suporto os males que só caem sobre os filhos rebeldes. A vossa fraqueza perdeu-me." Talvez o respeito lhe sufocasse estas queixas, mas o amor materno adivinhá-las-ia e as lágrimas da vossa filha; apesar de disfarçadas, correriam do mesmo modo sobre o vosso coração. Ser-vos-ia possível então encontrar consolações? Seria possível encontrá-las nesse amor louco, contra o qual vos deveríeis ter armado e pelo qual ao contrário vos deixastes afinal seduzir?
Talvez, querida amiga, eu tenha contra a paixão uma prevenção demasiado grande, mas julgo-a temível, mesmo no casamento. Claro que não desaprovo que um sentimento honesto e doce venha embelezar o laço conjugal e suavizar de algum modo os deveres que impõem; mas não é a ele que compete criar este último; não é à ilusão dum momento que cabe fazer a escolha de toda a nossa vida. Com efeito, para escolher, é preciso comparar; e como é isso possível quando um só objeto nos ocupa; quando nem esse podemos conhecer, mergulhados como estamos na embriaguez e na cegueira? Encontrei, como podeis supor, várias mulheres atingidas por esse perigoso mal; ouvi as confidências de algumas. De ouvi-las, convencernos-emos que não há nenhuma que não tenha como amante um ser perfeito, mas essas perfeições quiméricas existem só na imaginação delas. A sua cabeça exaltada só vê atrativos e virtudes; adornam à sua vontade aqueles que amam; é o vestuário dum Deus, envergado muitas vezes por um modelo abjeto, mas não importa o que ele é, depois de o terem ornado, enganadas pela sua própria obra prostramse para o adorar. Ou a vossa filha não ama Danceny, ou é vítima desta ilusão; que é comum a ambos, se o seu amor é recíproco. O vosso motivo para os unir para sempre reduz-se afinal à certeza de que eles se não conhecem, se não podem conhecer. Mas, responder-me-eis, o senhor de Gercourt e minha filha conhecem-se melhor? Não, sem dúvida; mas pelo menos não se enganam a si próprios, ignoram-se apenas. O que acontece neste caso entre dois esposos, que julgo honestos? Cada um estuda o outro, observa-se em relação a ele, procura e depressa encontra em que deve ceder nos seus gostos e vontades para a tranqüilidade comum. Esses ligeiros sacrifícios fazem-se sem esforço, porque são recíprocos e já previstos; em breve fazem nascer uma mútua benevolência; e o hábito que fortifica todas as tendências que não destrói, conduz pouco a pouco a essa doce amizade, a essa terna confiança, que, juntas à estima, formam, ao que me parece, a verdadeira e sólida felicidade. As ilusões do amor podem ser mais doces, mas não sabemos bem que são também menos duráveis? E que perigos não traz consigo o momento que as destrói! É então que os mínimos defeitos parecem chocantes e insuportáveis, pelo contraste que formam com a idéia de perfeição que nos seduzira. Cada um dos esposos pensa que só o outro mudou, e que ele é ainda o mesmo que o outro apreciara afinal num momento de desvario. Espanta-se de já não fazer nascer o encanto que ele próprio já não sente; isto humilha-o, a vaidade ferida azeda os espíritos, aumenta os agravos, produz o mal-estar, faz nascer o ódio; e os frívolos prazeres são pagos por longos infortúnios.
Eis, minha querida amiga, a minha opinião sobre o assunto que nos ocupa; não a defendo, exponho-a apenas; é a vós que cabe decidir. Mas se persistis no vosso parecer, peço-vos que me comuniqueis as razões que venceram as minhas; ficarei radiante por me esclarecer junto de vós, e sobretudo por ficar descansada quanto à sorte da vossa adorável filha, para quem desejo ardentemente a felicidade, não só pela amizade que tenho por ela, mas também pela que me une para sempre a vós. Paris, 4 de Outubro de 17 * *.
CARTA CV A MARQUESA DE MERTEUIL A CECÍLIA DE VOLANGES Ora bem, minha pequena, eis-te muito zangada e cheia de vergonha! E o senhor de Valmont é um homem mau, não é? Pois então! Ousa tratar-te como à mulher que mais amasse! Ensina-te aquilo que morrias de desejo por saber! De fato, essas coisas não se fazem. E tu, pelo teu lado, querias guardar a tua pureza para o teu amado (que não abusa dela); do amor só apreciavas os males e não os prazeres! Nada de melhor para dar uma bela figura de romance. Paixão, infortúnio, virtude ainda por cima, que belas coisas! Por vezes no meio desse cortejo aborrecemo-nos deveras, mas representa-se bem a nossa parte. Vejam como a pobre pequena é de lamentar! Tinha os olhos pisados no dia seguinte! E que dirás quando forem os do teu amante? Consola-te, belo anjo, não os terás sempre assim; nem todos os homens são Valmonts. E depois, não ousar levantar esses olhos! Oh! Tiveste razão, toda a gente leria neles a tua aventura. Mas crê-me, se assim fosse, as nossas mulheres e raparigas teriam o olhar mais modesto. Apesar dos louvores que sou forçada a fazer-te, como vês, concordemos no entanto que falhaste a tua obra-prima; devias contar tudo à tua Mamã! Tinhas começado tão bem! Eis-te já lançada, soluçando, nos seus braços; ela choraria também, que cena patética! E que pena não a teres levado até ao fim! A tua terna Mamã, arrebatada de contentamento, para reforçar a tua atitude, ter-te-ia enclausurado para toda a vida num convento; e aí amarias Danceny enquanto te agradasse, sem rivais nem pecado, poder-te-ias desolar à tua vontade, e Valmont não iria, seguramente, perturbar a tua dor com prazeres importunos. Seriamente, admiro-me que, já feitos os quinze anos, se possa ser tão criança! Tens razão em dizer que não mereces a minha atenção. Gostaria no entanto de ser para ti uma amiga, terás necessidade talvez duma amizade com a mãe que tens, e o marido que ela te quer dar!
Mas se não progrides, que queres que façam de ti? Que se pode esperar, se o que costuma despertar o espírito às raparigas parece, pelo contrário, tirar-to? Se fores capaz de raciocinar um momento, depressa verás que te deves felicitar em vez de te queixares. Mas és uma envergonhada e isso inibe-te! Bem! Tranquiliza-te; a vergonha que o amor causa é como a dor que ele desperta, experimentamo-la uma só vez. Podemos ainda fingi-la, mas nunca mais a sentimos. No entanto fica o prazer e já é alguma coisa. Julgo ter depreendido, através da tua tagarelice, que para ti valerá mesmo muito. Vamos, um pouco de boa fé. Então essa perturbação que te impedia de agir, como dizias, que te fazia achar tão difícil defender-te, que te fez ficar de certo modo zangada quando Valmont partiu, era a vergonha que a causava, ou era o prazer? E as suas maneiras de falar às quais não se sabe como responder, não provinha tudo isso da maneira de ele agir? Ah, menina, mentes e mentes à tua amiga! Isso não está bem. Mas deixemo-lo. O que para toda a gente seria um prazer, e poderia ser apenas isso, torna-se na tua situação uma verdadeira felicidade. Com efeito, colocada entre uma mãe por quem te convém fazeres-te amada, e um apaixonado pelo qual desejas sê-lo sempre, como não vês que o único meio de obter estes propósitos tão contrários é ocupar-te duma terceira pessoa? Distraída por uma nova aventura, enquanto diante de tua mãe tens o ar de sacrificar à submissão por ela um gosto que lhe desagrada, adquires perante o teu amado a honra duma bela defesa. Assegurando-lhe sem cessar o teu amor, nunca lhe concederás as últimas provas. Estas recusas, tão pouco difíceis na situação em que te encontras, não deixará ele de as tomar à conta de virtude; talvez se queixe, mas amar-te-á ainda mais; e para ter o duplo mérito, aos olhos de um de sacrificar o amor, aos do outro de lhe resistir, terás apenas de fazer o sacrifício de lhe saborear os prazeres. Oh, quantas mulheres perderam a reputação, quando com cuidado a poderiam ter conservado se se tivessem podido servir de semelhantes processos! Esta solução que proponho não te parece a mais razoável, a mais doce? Sabes o que ganhaste com a que tomaste? A tua mãe atribuiu a redobrada tristeza a um redobrado amor, está indignada e espera apenas ter a certeza para te castigar. Acaba de me escrever; tentará tudo para obter de ti mesma a confissão. Talvez vá até, segundo me disse, propor-te Danceny como esposo, e isso só para te fazer falar. E se te deixasses seduzir por essa enganadora ternura, respondendo segundo o teu coração, em breve enclausurada por muito tempo, talvez para sempre, chorarias com vagar a tua cega credulidade. É preciso opor um outro a este ardil que ela quer empregar contra ti.
Deves começar por mostrar menos tristeza e fazer-lhe crer que pensas menos em Danceny. Ela persuadir-se-á tanto mais facilmente, quanto é esse efeito habitual da ausência; e ficar-te-á muito grata porque encontrará uma ocasião para aplaudir a sua prudência, que lhe sugeriu este processo. Mas se, conservando ainda dúvidas, ela persistisse no entanto em experimentar-te, se viesse a falar-te de casamento, deverias encerrar-te, como filha bem educada, numa inteira submissão. Afinal que arriscas? Para aquilo de que nos serve um marido, tanto faz um como outro; e o mais incômodo é ainda menos importuno do que uma mãe. Uma vez contente contigo, a tua mãe casar-te-á enfim; e então, mais livre nas tuas ações, poderás, a teu gosto, deixar Valmont para tomar Danceny, ou mesmo conservar os dois. Porque, toma atenção, o teu Danceny é gentil, mas é um homem que se tem quando se quer e enquanto se quer; podemos deste modo estar à vontade com ele. Não acontece o mesmo com Valmont: é difícil guardá-lo; perigoso deixá-lo. Deve-se usar com ele de muita habilidade, ou, quando a não temos, de muita docilidade. Mas se conseguisses prendê-lo como amigo, seria uma sorte. Colocar-te-ia na primeira fila das mulheres da moda. É assim que se adquire uma posição no mundo, e não a corar e a chorar, como quando as religiosas te obrigavam a jantar de joelhos. Procura, se és sensata, reconciliar-te com Valmont, que deve estar muito zangado contigo; e como é preciso saber emendar os nossos erros, não receeis tomar a iniciativa; e aprenderás logo que, se são os homens que ousam primeiro, somos quase sempre nós as obrigadas a atraí-los em seguida. Tens um pretexto, não deves guardar esta carta; peço-te e exijo-te que a entregues a Valmont assim que a tiveres lido. Não te esqueças de a tornar a lacrar antes. Primeiro, é preciso deixar-te o mérito do gesto que vais fazer, e que não deve parecer ter-te sido aconselhado; e depois, porque és tu a única pessoa no mundo de quem sou suficientemente amiga para te falar como o faço. Adeus, meu anjo; segue os meus conselhos, e dir-me-ás se foram úteis. P. S. - A propósito, esquecia-me... uma palavra ainda. Cuida mais do teu estilo. Escreves ainda como uma criança. Vejo bem qual a causa; dizes tudo o que pensas e nada do que não pensas. Isso não tem importância entre nós, que nada devemos esconder uma à outra, mas com os outros, e sobretudo com o teu amado, parecerás sempre uma tontinha. Pensa que quando escreves a alguém, é para essa pessoa e não para ti, deves antes procurar dizer aquilo que lhe agradará, de preferência àquilo que pensas. Adeus, meu coração; beijo-te em vez de te ralhar, na esperança de que te tornarás mais razoável.
Paris, 4 de Outubro de 17* *.
CARTA CVI A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Maravilhoso, Visconde, e, pelo seu êxito, adoro-o perdidamente! De resto, após a sua primeira carta, a continuação era de esperar; por isso, não me espantou; e enquanto que, já orgulhoso dos futuros sucessos, solicitava a devida recompensa, e me perguntava "se eu estava pronta", percebi bem que não havia necessidade de me apressar. Sim, por minha honra; lendo a bela descrição dessa terna cena, que o tinha tão "violentamente emocionado"; vendo o seu comedimento, digno dos mais belos tempos da nossa cavalaria, repeti vinte vezes: "Eis um caso falhado!" Mas é que não podia ser doutra forma! Que quer que faça uma pobre mulher que se lhe entrega, e de quem não se apoderou? Por minha fé, num caso desses, é preciso ao menos salvar a honra; foi o que fez a Presidente. Proponho-me, vendo o efeito do procedimento dela, utilizá-lo por minha conta, na primeira ocasião que se me apresente, mas prometo que se, tal como o meu amigo, aquele por quem eu fizer toda a cena não souber aproveitar-se dela, pode renunciar a mim para sempre. Ei-lo pois reduzido a nada, e isto entre duas mulheres uma já vencida, e outra que não pedia senão a mesma sorte! Pois bem! Vai crer que me gabo, e dizer que é fácil profetizar depois do acontecimento, mas juro-lhe que já o esperava. É que realmente não tem o gênio próprio da condição de libertino; sabe apenas o que aprendeu e não é capaz de inventar. Assim, desde que as circunstâncias não se adaptam às manhas usuais e é preciso seguir caminho novo, fica desarmado como um rapazinho. Enfim, criancice dum lado, regresso ao pudor do outro em virtude de não acontecerem todos os dias, bastam para o desconcertar; e nem sequer os sabe evitar ou remediar. Ah! Visconde, Visconde, ensina-me a não julgar os homens pelos seus êxitos; e em breve se dirá a seu respeito: outrora teve mérito." E depois de ter feito asneira sobre asneira, recorre a mim! Parece que eu não tenho outra coisa a fazer senão dar-lhe remédio. Seria na verdade trabalho de sobra. Dessas duas aventuras, uma foi iniciada contra a minha vontade, e por isso não me intrometo nela; quanto à outra, como a aceitou por amabilidade para comigo, encarrego-me eu dela. A carta que envio junto, e que entregará à pequena Volanges depois de a ter lido, é mais do que suficiente para a fazer regressar aos seus braços; mas, peço-lhe, dê alguma atenção a esta criança, e façamos dela, de
comum acordo, o desespero da mãe e de Gercourt. Não receemos forçar as doses. Vejo claramente que a garota não se assustará; uma vez realizados os nossos desígnios, que se arranje como puder. Desinteresso-me inteiramente dela. Tive desejo de a tornar ao menos uma intrigante inferior, que representaria os segundos papéis sob a minha direção, mas não tem estofo; sofre duma ingenuidade estúpida que não cedeu sequer ao específico que o Visconde empregou, e contudo costuma dar resultado, é na minha opinião, a doença mais perigosa que uma mulher possa ter. Ela indica, sobretudo uma fraqueza de caráter quase sempre incurável e que se opõe a tudo; de maneira que, se procurássemos formar a rapariguinha para a intriga, criaríamos apenas mais uma mulher fácil. Ora, não conheço nada mais vulgar do que a facilidade da estupidez, que se entrega sem saber nem como nem porquê, unicamente porque a atacam e não sabe resistir. Mulheres desta espécie são puras máquinas de prazer. Dir-me-á que não há outra coisa a fazer dela e que isso basta para os nossos projetos. Seja assim! Mas não esqueçamos que cedo toda a gente descobre as molas e os motores dessas máquinas; assim, para nos servirmos desta sem perigo, é preciso apressarmo-nos, parar oportunamente e destruí-la em seguida. Na verdade, não nos faltarão os meios para nos desfazermos dela, e Gercourt fá-la-á enclausurar quando quisermos. De fato, quando ele já não puder duvidar do seu infortúnio, quando este for bem público e notório, que nos importa que se vingue, contanto que não se console? O que digo do marido, pensa-o sem dúvida da mãe; por isso mãos à obra. Esta posição, que julgo a melhor, decidiu-me a conduzir a jovem um pouco mais depressa, como verá pela minha carta; importa nada deixar nas suas mãos que nos possa comprometer. Atente nisto, peço-lhe. Tomada esta precaução, encarrego-me eu do moral; o resto é consigo. Contudo, se virmos que a ingenuidade se corrige, estaremos sempre a tempo de mudar de projeto. De qualquer forma seria preciso, mais dia menos dia, ocuparmo-nos do que vamos fazer, em qualquer dos casos, as canseiras não serão inúteis. Sabe que as minhas quase o foram, e que a boa estrela de Gercourt ia levando a melhor sobre a minha ciência? Madame de Volanges teve um momento de fraqueza maternal! Queria dar a filha a Danceny! Eis o que anunciava esse interesse mais terno que o meu amigo notara "no dia seguinte". Seria ainda o Visconde o causador de semelhante obra-prima! Felizmente a mãe carinhosa escreveu-me e espero tê-la dissuadido. Na minha carta falo tanto de virtude, e sobretudo lisonjeei-a tanto, que ela deve achar que tenho razão. Tenho pena de não ter tempo para copiar a carta a fim de o edificar quanto à austeridade moral. Veria como desprezo as depravadas capazes de terem um amante! É tão cômodo ser-se
rigorista nas palavras! Só pode ser prejudicial aos outros e não nos estorva de forma alguma... E depois, não ignoro que essa "virtuosa" mulher teve as suas fraquezas como qualquer outra, nos seus tempos, e não me desagradou humilhá-la ao menos na sua consciência; isso consolou-me um pouco dos elogios que lhe fiz à custa da minha. Foi isso que, na mesma carta, a idéia de fazer mal a Gercourt me deu coragem para dizer bem dele. Adeus Visconde; aprovo a decisão de permanecer aí. Não tenho meios para apressar a sua marcha; mas convido-o a distrair-se com a nossa comum aluna. Quanto a mim, apesar da delicada citação que usou, bem vê que ainda é preciso esperar; e concorda, sem dúvida, que não é minha a culpa. Paris, 4 de Outubro de 17 * *.
CARTA CVII AZOLAN AO VISCONDE DE VALMONT Senhor: Obedecendo às vossas ordens, fui, logo que recebi a vossa carta, a casa do senhor Bertrand, que me entregou os vinte e cinco luíses, como vós lhe havíeis ordenado. Ainda lhe pedi mais dois para Filipe, a quem mandara partir imediatamente, como o senhor tinha ordenado, e que estava sem dinheiro; mas o vosso administrador não quis, afirmando que não recebera tal ordem da vossa parte. Fui obrigado a dar-lhos do meu bolso, e espero que o senhor terá a bondade de levar isso em conta. Filipe partiu ontem à tarde. Recomendei-lhe muito que não deixasse a estalagem, para o podermos encontrar se for preciso. Fui logo a seguir a casa da senhora Presidente para ver a Júlia, mas ela tinha saído e só falei ao La Fleur, por quem nada consegui saber, porque desde a chegada que não vai ali senão à hora das refeições. E o segundo criado que faz todo o serviço, e o senhor sabe bem que a este eu não o conhecia. Mas comecei hoje. Voltei esta manhã a estar com a Júlia e ela ficou muito satisfeita por me ver. Interroguei-a sobre a causa do regresso da patroa; mas respondeu-me que nada sabia, e julgo que falava verdade. Censurei-a por me não ter avisado da partida e ela afirmou-me que só soubera naquela noite, quando fora deitar a senhora; tanto assim que passara toda a noite a arranjar as coisas e a pobre rapariga não chegou a dormir duas horas. Saíra nessa noite do quarto da patroa depois da uma hora, e quando a deixou punha-se esta a escrever.
De manhã, Madame de Tourvel, ao partir, entregou uma carta ao porteiro do castelo. Júlia não sabia para quem: disse que talvez fosse para o senhor, mas o senhor não me fala nisso. Durante toda a viagem a senhora tinha um grande capuz na cabeça, o que impedia que se lhe visse o rosto, mas Júlia julga que ela chorou muito. Não disse uma palavra durante o caminho, e não quis parar em...*, como fizera à ida; o que desagradou a Júlia, que não tinha almoçado. Mas, tal como eu lhe disse, manda quem pode. *Ainda a mesma aldeia a meio do caminho.
À chegada, a senhora deitou-se; mas só ficou duas horas na cama. Quando se levantou, mandou chamar o porteiro e deu-lhe ordem de não deixar entrar ninguém. Nem sequer se arranjou. Sentou-se à mesa para jantar, mas só comeu um pouco de sopa e levantou-se logo. Levaram-lhe o café ao quarto, Júlia entrou ao mesmo tempo. Viu que a patroa arrumava os papéis da secretária e reparou que eram cartas. Apostaria que são as do senhor; e das três que recebeu durante a tarde, houve uma que conservou diante dela até à noite. Tenho a certeza de que se trata ainda de alguma vossa. Mas por que regressou ela deste modo? Espanta-me! Mas, enfim, com certeza que o senhor o sabe, e não tenho nada com isso. A senhora Presidente foi à tarde à biblioteca e escolheu dois livros para o tocador, mas Júlia afirma que ela não leu nem um quarto de hora em todo o dia e que não fez outra coisa senão ler a tal carta, e pensar apoiada a uma mão. Como julguei que o senhor ficaria contente por saber de que livros se trata, e Júlia não sabia, consegui ir hoje à biblioteca, com o pretexto de a ver. Só estava vazio o lugar de dois livros: um é o segundo volume dos Pensées Chrétiennes; e o outro o primeiro dum livro que tem por título Clarisse. Escrevo tal como lá estava: o senhor saberá talvez do que se trata. Ontem à noite, a senhora não jantou: só tomou chá. Chamou cedo esta manhã; pediu logo os cavalos e foi antes das nove a Feuillants, onde ouviu missa. Quis confessar-se mas o seu confessor estava ausente e só voltará dentro de oito a dez dias. Pensei que o senhor gostaria de saber isto. A senhora voltou logo, almoçou, e pôs-se a escrever, e assim esteve quase até à uma hora. Aproveitei a ocasião para fazer o que o senhor tanto desejava: fui eu que levei as cartas ao correio. Não havia nenhuma para Madame de Volanges; mas envio-lhe uma que era para o senhor Presidente: pensei que seria a mais interessante. Havia também uma para Madame de Rosemonde, mas achei que o senhor a conseguiria ler quando quisesse, e deixei-a seguir. De resto, o senhor saberá tudo porque a senhora Presidente também lhe escreve. Verei de futuro todas as cartas que eu quiser; porque é a Júlia que as entrega aos criados, e ela prometeu-lhe que por amizade por mim, e pelo senhor, fará de boa vontade o que eu lhe pedir.
Ela nem sequer quis o dinheiro que lhe ofereci, mas acho que o senhor deverá querer recompensá-la com algum presente; se o desejar e se for da sua vontade que eu me encarregue disso, saberei achar facilmente algo que lhe agradará. Espero que o senhor não ache deste vez que mostrei negligência em servi-lo e desejo lavar-me das censuras que me fez. Se não soube da partida da senhora Presidente, foi por causa do meu zelo em servir-vos, pois foi devido a ele que parti às três da manhã; desse modo não vi Júlia na véspera à noite, como de costume, visto que fui dormir a Tournebride, para não acordar no castelo. Quanto ao que o senhor me censura de estar muitas vezes sem dinheiro, em primeiro lugar é porque gosto de me vestir convenientemente, como o senhor pode ver, depois porque preciso corresponder ao fato que se traz, bem sei que devia economizar um pouco para o futuro, mas confio inteiramente na generosidade do senhor, que é tão bom patrão. Quando entrar para o serviço de Madame de Tourvel, ficando na mesma no do senhor, espero que não o exigirá de mim. Era muito diferente em casa da senhora duquesa; eu não poderia usar uma libré, e para mais uma libré de nobreza de toga, depois de ter tido a honra de ser vosso criado. Para tudo o resto, o senhor pode dispor daquele que tem a honra de ser, com muito respeito e consideração, vosso humilde servidor. Roux Azolan, criado. Paris, 5 de Outubro de 17* * às onze horas da noite.
CARTA CVIII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Oh, minha indulgente mãe! Como vos agradeço e como me era necessário a vossa carta! Li-a e reli-a sem cessar; não podia arrancarme dela. Devo-lhe os únicos momentos menos penosos que passei desde a minha partida. Como sois boa! A sensatez e a virtude sabem pois condoer-se da fraqueza! Tendes piedade dos meus males! Ah, se os conhecêsseis!... São terríveis. Julgava ter experimentado os males do amor; mas o tormento inexprimível, que é preciso ter sentido para o poder avaliar, é separarmo-nos daquele que amamos, separarmo-nos para sempre!... Sim, a dor que hoje sinto voltará amanhã, depois de amanhã, toda a minha vida! Meu Deus, como sou jovem ainda, e que longo tempo me resta para sofrer! Sermos nós próprios os autores da nossa infelicidade; rasgar o coração com as próprias mãos; e enquanto sofro dores insuportáveis,
sentir a cada instante que as posso fazer cessar com uma palavra, e que essa palavra é um crime! Ah, minha amiga!... Quando tomei esta decisão tão penosa de me afastar dele, esperava que a ausência me aumentaria a coragem e as forças, como me enganei! Parece-me que pelo contrário acabei por destruí-las. Precisava de combater mais, é verdade, mas mesmo resistindo, nem tudo era privação; ao menos via-o algumas vezes; muitas vezes, mesmo sem ousar olhá-lo, sentia os olhos dele fixos em mim; sim, minha amiga, sentia-os, parecia que me aqueciam a alma; e mesmo sem me atravessarem os olhos, chegavam-me ao coração. Agora, na minha triste solidão, isolada de tudo o que me é caro, frente ao meu infortúnio, todos os momentos da minha triste existência são regados de lágrimas, e nada me suaviza a amargura; nenhuma consolação se junta aos meus sacrifícios; e os que até hoje fiz só serviram para tornar mais dolorosos os que me resta fazer. Ontem ainda, senti-o vivamente. Nas cartas que me trouxeram, havia uma dele; estavam ainda a dois passos de mim e já eu a reconhecera entre as outras. Levantei-me involuntariamente; tremia, a custo escondia a minha emoção; e este estado não deixava de me ser agradável. Quando fiquei só no momento seguinte, essa enganadora doçura depressa se desvaneceu, e ficou-me apenas mais um sacrifício a fazer. Com efeito, poderia eu abrir essa carta que tanto ansiava por ler? Pela fatalidade que me persegue, mesmo as consolações que parecem apresentar-se-me impõem-me pelo contrário novas privações; e estas tornam-se mais cruéis ainda pela idéia de que o senhor de Valmont as compartilha. Ei-lo enfim, esse nome que me ocupa sem cessar e que tanto me custou a escrever; a quase censura que me fazeis a este propósito, alarmou-me deveras. Suplico-vos que acrediteis que uma falsa vergonha não alterou a minha confiança em vós; e por que temeria nomeá-lo? Coro dos meus sentimentos e não do objeto que os causa. Ah! Quem é mais digno do que ele de os inspirar! E contudo não sei por que me é tão difícil escrever esse nome; e mesmo desta vez, foi deliberadamente que o escrevi. Volto a ele. Contais-me que vos pareceu vivamente afetado com a minha partida. Que fez ele? Que disse? Falou em voltar a Paris? Peço-vos que o afasteis dessa idéia tanto quanto puderdes. Se ele me interpretou bem, não deve ter levado a mal a minha partida, mas deve sentir também que é uma decisão sem apelo. Um dos meus maiores tormentos é não saber o que ele pensa. Ainda conservo a carta...; mas sois seguramente da minha opinião, não a devo abrir. É a vós, minha indulgente amiga, que devo não estar inteiramente separada dele. Não quero abusar da vossa bondade; vejo bem que as vossas cartas não podem ser longas, mas não negareis duas palavras à vossa filha; uma para lhe manter a coragem, a outra para a consolar. Adeus, minha respeitável amiga.
Paris, 5 de Outubro de 17* *.
CARTA CIX CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL Foi só hoje, senhora, que entreguei ao senhor de Valmont a carta que me destes a honra de escrever. Guardei-a durante quatro dias, apesar do terror de que fosse encontrada, guardei-a com muito cuidado; e quando a tristeza me assaltava, fechava-me para a reler. Vejo que o que julgava uma tão grande infelicidade não o é; e devo confessar até que me dá muito prazer; de modo que isso já quase me não aflige. Somente a idéia de Danceny ainda me atormenta às vezes. Mas há muitos momentos em que nem sequer penso nisso e o senhor de Valmont é tão amável! Fiz as pazes com ele há dois dias; foi-me muito fácil; porque ainda mal eu pronunciara duas palavras, já ele me dizia que se eu tinha qualquer coisa a dizer-lhe iria nessa noite ao meu quarto, e só tive de responder-lhe que me agradaria muito. E depois, logo que entrou, pareceu-me tão contente comigo como se eu nada lhe tivesse feito. Só depois é que me ralhou, mas muito docemente; e duma maneira... Tal como vós; isso provou-me que ele também tem muita amizade por mim. Não seria capaz de dizer-vos quantas coisas engraçadas ele me contou, coisas que nunca teria acreditado; especialmente sobre a Mamã. Agradecer-vos-ia muito se me dissésseis se tudo aquilo é verdade. O que é certo, é que eu não podia impedir-me de rir; duma vez mesmo às gargalhadas, o que nos causou grande medo, porque a Mamã podia ter ouvido; e se tivesse vindo, que me teria acontecido? Desta vez é que me mandaria para o convento! Como devemos ser prudentes e o senhor de Valmont me disse que por nada deste mundo queria correr o risco de me comprometer, combinamos que de ora avante ele viria só abrir a porta e iríamos para o seu quarto. Aí nada há a recear; já lá estive ontem, e no momento em que vos escrevo aguardo que me venha buscar. Agora, minha senhora, espero que me não ralheis mais. Há no entanto uma coisa que me surpreendeu muito na vossa carta; é o que me mandais dizer acerca de Danceny e do senhor de Valmont quando eu estiver casada. Parece-me que um dia, na Ópera, me dissestes, pelo contrário, que, uma vez casada, não poderia amar senão o meu marido, e que devia mesmo esquecer Danceny; de resto, talvez não tenha percebido bem, e prefiro que não seja assim, porque
então, já não terei tanto receio de me casar. Desejo-o até visto que terei mais liberdade; e espero então arranjar maneira de pensar só em Danceny. Sinto bem que só com ele serei verdadeiramente feliz, porque a sua lembrança agora atormenta-me sempre, e só tenho felicidade quando consigo não pensar nele, o que é muito difícil; e logo que penso, volto a ficar desgostosa. O que me consola um pouco é a certeza que me dais de que Danceny me ficará amando mais devido a isto, mas tendes bem a certeza... Oh, sim, seríeis incapaz de me enganar. É engraçado que seja Danceny que eu ame, e que seja o senhor de Valmont... Mas, pelo que me dizeis, é talvez uma sorte ! Enfim, veremos. Não compreendi bem o que me dizeis a respeito da minha maneira de escrever. Parece-me que Danceny acha as minhas cartas bem tal como são. No entanto, sinto que nada lhe devo dizer acerca do que se passa com o senhor de Valmont; nada tendes a temer. A Mamã ainda me não falou do meu casamento, mas não nos preocupemos; quando me falar, visto que é para me apanhar, prometo-vos que saberei mentir. Adeus, minha boa amiga, agradeço-vos, e prometo-vos que nunca esquecerei todas as bondades que tendes para comigo. Devo acabar, é quase uma hora e o senhor de Valmont não tarda. Castelo de..., 10 de Outubro de 17 * *.
CARTA CX O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL "Poderes do céu, eu tinha uma alma para a dor; dai-me outra para a felicidade." Creio que é assim que se exprime o terno Saintpreux. Mais bem dotado do que ele, possuo simultaneamente as duas existências. Sim, minha amiga, sou ao mesmo tempo muito feliz e muito desgraçado; e visto que lhe dou inteira confiança, devo-lhe a dupla história das minhas dores e dos meus prazeres. Saiba pois que a ingrata devota continua a ser severa para comigo. Já estou na quarta carta devolvida. Quarta, digo mal; porque, tendo adivinhado desde a primeira devolução que outras se lhe seguiriam, e não querendo desperdiçar tempo, tomei a decisão de escrever os meus queixumes em lugares-comuns, e de não datar, desde o segundo correio, é sempre a mesma carta que vai e vem; mudo apenas o sobrescrito. Se a minha bela acabar como acabam geralmente as belas, e se se enternecer um dia, pelo menos de cansaço, guardará enfim a missiva, e então será a altura de me pôr em
dia. Bem vê que, com este novo gênero de correspondência, não posso estar nem mais avançado, nem mais informado do que no primeiro dia. Descobri contudo que a volúvel criatura mudou de confidente, tenho a certeza de que, desde a partida daqui, não veio nenhuma carta dela para Madame de Volanges, ao passo que já vieram duas para a velha Rosemonde; e como esta nada nos diz, como já não abre a boca sobre "a sua querida filha", de quem antes falava sem cessar, concluí que fora ela quem recebera a confidência. Presumo que por um lado a necessidade de falar de mim; e por outro lado a vergonha de expor, perante Madame de Volanges, um sentimento há tanto tempo renegado, produziram esta grande revolução. Receio ter perdido com a troca, porque as mulheres quanto mais velhas, mais ríspidas e severas se tornam. A primeira dir-lhe-ia mal de mim, mas esta dir-lhe-á ainda pior do amor; e a sensível e pudibunda dama tem mais terror do sentimento do que de mim. A única maneira de saber o que se passa é, como vê, interceptar a correspondência clandestina. Já dei ordem ao meu criado; e aguardo a execução de dia para dia. Até lá, só posso agir ao acaso, assim, há oito dias, revejo inutilmente todos os processos conhecidos, os dos romances e os das minhas memórias secretas; não encontro nenhum que convenha às circunstâncias da aventura ou ao caráter da heroína. O difícil não seria introduzir-me em casa dela, mesmo de noite, adormecê-la e transformá-la numa nova Clarisse, mas depois de mais de dois meses de cuidados e de trabalhos, recorrer a meios que me são estranhos, arrastar-me servilmente pelo caminho dos outros, e triunfar sem glória!... Não, ela não terá "os prazeres do vício e as honras da virtude". Não me basta possuí-la, quero que ela se entregue. Ora, para tal não basta penetrar até junto dela, mas sim fazê-lo com o seu consentimento; encontrá-la só e na disposição de me escutar; sobretudo fechar-lhe os olhos quanto ao perigo, porque, se o vê, saberá vencê-lo ou morrer. Mas quanto melhor sei o que é preciso fazer, mais reconheço as dificuldades, e ainda que a minha amiga faça outra vez troça de mim, confesso-lhe que o meu embaraço aumenta à medida que me ocupo cada vez mais do caso. A cabeça ficar-me-ia tonta, creio, sem as felizes distrações que me dá a nossa comum aluna; é a ela que devo o ter ainda alguma coisa a fazer que não elegias. Acredita que a rapariguinha estava de tal modo furiosa, que se passaram três longos dias antes que a sua carta produzisse efeito completo? Eis como uma só idéia falsa pode estragar o mais agradável dos temperamentos! Enfim; só no sábado é que veio andar à roda de mim, e balbuciar-me algumas palavras; pronunciadas no entanto tão baixo e
abafadas de tal maneira pela vergonha, que era impossível ouvi-las. Mas o rubor que causaram fez-me adivinhar o sentido. Até aqui tinha-me mantido sobranceiro, mas amaciado por um tão agradável arrependimento, consenti em encontrar-me nessa mesma noite com a linda penitente; e esta graça da minha parte foi recebida com todo o reconhecimento devido a uma tão grande mercê. Como nunca perco de vista os seus projetos e os meus, resolvi aproveitar a ocasião para conhecer ao certo o valor desta criança e também para lhe apressar a educação. Mas, para continuar este trabalho com mais liberdade, tive necessidade de mudar o local dos nossos encontros; porque um pequeno gabinete, que separa o quarto da sua aluna do da mãe, não lhe inspirava suficiente segurança para a deixar manifestar-se à vontade. Prometera a mim mesmo provocar "inocentemente" algum ruído suscetível de lhe causar o receio bastante para a decidir a escolher, de futuro, um asilo mais tranqüilizador; ela poupou-me o trabalho. A pequena gosta de rir; e, para lhe agradar, decidi-me, nos intervalos, a contar-lhe todas as aventuras escandalosas que me passavam pela cabeça; para as tornar mais picantes e prender-lhe a atenção, atribuí-as todas à Mamã dela, que me deliciei desta forma a galardoar de vícios e de ridículos. Não era sem motivo que tinha tomado esta decisão, de fato não havia melhor maneira de encorajar a tímida aluna e de lhe inspirar ao mesmo tempo o mais profundo desprezo pela mãe. Já há muito tinha notado que, se este meio nem sempre é necessário para seduzir uma rapariga, é indispensável, e muitas vezes até o mais eficaz, quando a queremos depravar; porque aquela que não respeita a mãe não se respeitará a si própria; verdade moral que acho tão útil, que me foi bem fácil fornecer um exemplo em apoio do preceito. No entanto, a sua aluna, que não pensava na moral, sufocava de riso a cada instante; e enfim, uma vez, ia quase rebentando às gargalhadas. Não tive dificuldade em lhe fazer crer que tinha sido "um barulho horrível". Fingi um grande medo que ela facilmente compartilhou. Para que ela se lembrasse bem, não permiti que o prazer nascesse de novo, e deixei-a três horas mais cedo que de costume; combinamos também, ao despedir-nos, que a partir do dia seguinte seria no meu quarto que nos encontraríamos. Já aqui a recebi duas vezes; e neste curto intervalo a aprendiza tornou-se quase tão sabida como o mestre. Sim, na verdade, ensinei-lhe tudo, até mesmo as complacências! Omiti apenas as precauções. Ocupado toda a noite, ganho desta forma o benefício de dormir uma grande parte do dia; e como não há neste momento no castelo companhia que me atraia, limito-me a aparecer no salão durante uma hora.
Tomei mesmo, a partir de hoje, a decisão de comer no meu quarto, e não tenciono deixá-lo a não ser para pequenos passeios. Estas excentricidades são levadas à conta do meu estado de saúde. Declarei que estava ligeiramente indisposto; anunciei também um pouco de febre. Tenho apenas de falar com uma voz lenta e apagada. Quanto à alteração do meu rosto, confie na sua aluna. "O amor providenciará." * Ocupo o ócio pensando nos meios de reconquistar à minha ingrata as vantagens que perdi, e também a escrever uma espécie de catecismo da depravação para uso da minha pupila. Divirto-me a designar tudo pelo termo técnico, e rio antecipadamente da interessante conversa que daqui resultará entre ela e Gercourt, na noite de núpcias. Nada mais agradável do que a ingenuidade com que ela se serve já do pouco que sabe desta língua! Ela não imagina que se possa falar doutra forma. Esta criança é realmente sedutora! O contraste entre a ingênua candura e a linguagem descarada não deixa de fazer efeito, e, não sei porquê, agora só me agradam as coisas extravagantes. Talvez me abandone demasiado a esta, visto que comprometo o tempo e a saúde, mas espero que a minha fingida doença, além de me salvar do tédio do salão, ainda me possa ser de qualquer utilidade junto da austera devota, cuja virtude de tigre se alia contudo à doce sensibilidade! Não duvido que já esteja instruída deste grande acontecimento, e gostava imenso de saber o que ela pensa; tanto mais que apostaria de bom grado que não deixará de se atribuir as honras. Regularei o meu estado de saúde pela impressão que produzir sobre ela. Ei-la, minha bela amiga, ao corrente dos meus problemas como se fora eu próprio. Desejo ter em breve notícias mais interessantes para lhe transmitir, e, peço-lhe que o creia, no prazer que prometo a mim mesmo, conto muito com a recompensa que espero de si. Castelo de..., 11 de Outubro de 17* *.
*Regnard, Folies Amoureuses.
CARTA CXI O CONDE DE GERCOURT A MADAME DE VOLANGES Parece que tudo está tranqüilo nesta região, minha senhora; e esperamos, dum dia para o outro, a licença de voltar a França. Espero que não duvidareis que desejo sempre com o mesmo ardor regressar e atar os laços que me deverão unir a vós e a Mademoiselle de Volanges. No entanto o duque de..., meu primo, a quem sabeis bem que devo obrigações, acaba de me participar a sua chamada a Nápoles. Manda-me dizer que tenciona visitar Roma e ver, no caminho, a parte da Itália que lhe falta conhecer. Exorta-me a acompanhá-lo nessa viagem que durará aproximadamente seis semanas ou dois meses. Não devo ocultar-vos que me seria agradável aproveitar esta ocasião, pois bem vejo que uma vez casado não terei tempo para mais ausências do que as exigidas pelo serviço. Talvez seja, aliás, mais conveniente adiar o casamento para o Inverno; pois só então todos os meus parentes estarão reunidos em Paris, e principalmente o marquês de..., a quem devo a esperança de vir a pertencer à vossa família. Apesar destas considerações, os meus projetos a este respeito subordinar-se-ão inteiramente aos vossos; e se preferirdes o que combinamos em primeiro lugar, renunciarei a estes meus planos. Peçovos somente que me façais saber o mais depressa possível as vossas intenções a este respeito. Esperarei a vossa resposta aqui e só por ela regularei o meu procedimento. Sou com todo o respeito, minha senhora, e com todos os sentimentos que convêm a um filho, o vosso muito humilde, etc. Conde de Gercourt Bastia, 10 de Outubro de 17* *.
CARTA CXII MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL (Ditada)
Só agora recebi, minha querida filha, a vossa carta de 1/11, e as doces censuras que contém. Confessai que tivestes vontade de me fazer ainda mais; e que se vos não tivésseis lembrado de que éreis minha filha, ter-me-íeis ralhado a valer. Teríeis sido no entanto bem injusta! Era o desejo e a esperança de vos poder responder eu própria que me faziam adiar todos os dias; e vedes que ainda hoje sou obrigada a servir-me da mão da minha criada de quarto. O maldito reumatismo voltou-me; anichou-se desta vez no braço direito e estou mesmo maneta. Eis de que vos serve, jovem e fresca como sois, ter uma amiga tão velha! Pagais pelos meus incômodos. Logo que as dores me dêem um pouco de descanso, prometo conversar longamente convosco. Entretanto dir-vos-ei apenas que recebi as vossas duas cartas, que teriam duplicado, se tal fosse possível, a minha terna amizade por vós; e que nunca deixarei de compartilhar intensamente tudo o que vos diz respeito. O meu sobrinho também está um pouco indisposto, mas sem gravidade, nada de inquietante; um ligeiro incômodo, que, ao que me parece, lhe afeta mais o espírito do que a saúde. Quase não o vemos. O afastamento dele e a vossa partida tiraram a alegria ao nosso grupo. A pequena Volanges sobretudo não diz uma palavra e boceja desalmadamente durante todo o dia. Especialmente de há alguns dias para cá, dá-nos a honra de adormecer profundamente logo após o jantar. Adeus, minha querida filha; serei sempre para vós a amiga, a mãe, e até a irmã, se a avançada idade me permitisse tal título. Enfim, estou-vos ligada pelos mais ternos sentimentos. Assinada: Adelaide, em nome de Madame de Rosemonde. Castelo de..., 14 de Outubro de 17* *.
CARTA CXIII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Creio que devo preveni-lo, Visconde, que começam a falar de si em Paris; reparam na sua ausência e já se começa a adivinhar a causa. Assisti ontem a um jantar muito concorrido, onde se disse positivamente que estava preso na aldeia por um amor romanesco e infeliz; logo a alegria se pintou no rosto de todos os invejosos dos seus êxitos e de todas as mulheres que desprezou. Se me acreditar, não deixará aumentar estes murmúrios perigosos e virá destruí-los imediatamente com a sua presença. Pense que, se uma vez deixar perder a idéia de que se lhe não resiste, em breve sentirá que lhe resistem com efeito mais facilmente; e
que os seus rivais lhe perdem o respeito e ousam combatê-lo: qual de entre eles se não julga mais forte que a virtude? Sobretudo pense que, na multidão de mulheres de que se vangloriou, todas as que não possuiu vão tentar elucidar o público, enquanto as outras procurarão enganá-lo. Enfim, conte com ser julgado tão abaixo do seu valor, como até agora o foi acima. Volte, Visconde, não sacrifique a reputação a um capricho pueril. Cumpriu todos os nossos planos em relação à pequena Volanges; quanto à sua Presidente, não será, parece-me, permanecendo a dez léguas dela que se libertará dessa fantasia. Julga que ela o irá procurar? Talvez já se se não se lembre de si, ou só se recorde para se felicitar de o ter humilhado. Ao menos aqui, poderá achar ocasião para reaparecer com brilho, e bem precisa disso; e mesmo que se obstine na sua ridícula aventura, não vejo em que o seu regresso o possa prejudicar; antes pelo contrário. Com efeito, se a sua Presidente o "adora" como tantas vezes me disse, e tão poucas provou, a sua única consolação e prazer deve ser agora falar de si, saber o que faz, o que diz, o que pensa, tudo enfim que lhe diga respeito. Estas misérias tornam-se importantes em relação às privações que se sofrem. São as migalhas de pão que caem da mesa do rico: este desdenha-as; mas o pobre recolhe-as avidamente e alimenta-se delas. Ora, a pobre Presidente recebe agora todas essas migalhas, e quantas mais tiver, menos pressa terá em ceder ao apetite do resto. Para mais, visto que lhe conhece a confidente, não duvidará que cada carta contenha um pequeno sermão, e tudo o que ela julga próprio para corroborar a sensatez e fortificar a virtude. Para quê, pois, deixar a uma recursos para se defender e à outra para o prejudicar? Não que eu seja da sua opinião quanto à perda que julga ter sofrido com a mudança de confidente. Em primeiro lugar, Madame de Volanges odeia-o, e o ódio é sempre mais engenhoso e clarividente do que a amizade. A virtude da sua velha tia não se empregará nem um só instante a denegrir o querido sobrinho; porque a virtude também tem fraquezas. Para mais os seus receios partem duma observação absolutamente falsa. Não é verdade que as mulheres quanto mais velhas, mais ríspidas e severas se tornam. É dos quarenta aos cinqüenta anos que o desespero de ver no rosto fanar-se, a raiva de se sentirem obrigadas a abandonar as pretensões e prazeres a que estão ainda presas, tornam quase todas as mulheres azedas e hipócritas. Precisam desse longo intervalo para fazer por inteiro esse grande sacrifício, mas uma vez consumado, dividem-se todas em duas classes. A mais numerosa é a das mulheres que, nunca tendo tido mais do que beleza e juventude, caem numa apatia imbecil de que só
acordam por causa do jogo ou de algumas práticas de devoção; estas são sempre ameaçadoras, muitas vezes impertinentes, às vezes um pouco intriguistas, mas raramente más. Nem se pode dizer se essas mulheres são ou não severas, sem idéias e sem consistência, repetem, sem compreender e indiferentemente, tudo o que ouvem dizer e conservam-se por si próprias absolutamente nulas. A outra classe, muito mais rara, mas verdadeiramente preciosa, é a das mulheres que, tendo tido um caráter e não desprezando alimentar a razão, sabem criar-se uma existência quando a da natureza lhes falta; e tomam o partido de enfeitar o espírito com os ornatos que dantes empregavam para o corpo. Estas têm geralmente uma sã maneira de julgar, o espírito ao mesmo tempo sólido, alegre e gracioso. Substituem as graças sedutoras por uma bondade que prende, e ainda por uma alegria cujo encanto aumenta em proporção com a idade, é assim que conseguem aproximar-se de juventude e fazer-se amar por ela. Mas então, em vez de serem, como o seu amigo diz, ríspidas e severas, o hábito da indulgência, as longas reflexões sobre a natureza humana, e enfim, as recordações da juventude, os únicos laços que ainda as prendem à vida, colocá-las-iam talvez demasiado perto da facilidade. O que lhe posso dizer é que tendo sempre procurado as senhoras idosas, de quem cedo achei útil a aprovação, encontrei muitas para quem me atraía tanto a inclinação como o interesse. Fico por aqui; porque como o meu amigo agora se inflama tão depressa e de forma tão moralona, tenho medo que se apaixone subitamente pela sua velha tia e que vá com ela a sepultar no túmulo onde afinal o Visconde já vive de há uns tempos a esta parte. Volto pois ao que me interessa. Apesar do encantamento em que está com a colegialzinha, não creio que ela pese qualquer coisa nos seus projetos. Achou-a à mão de semear, apossou-se dela: ainda bem! Mas não se trata verdadeiramente duma inclinação. Nem sequer é, vendo bem, um verdadeiro prazer: o meu amigo possui-lhe apenas o corpo! Já não falo do coração, pois duvido que se preocupe com isso, mas nem sequer lhe ocupa o espírito. Não sei se deu conta disso, mas tenho a prova na última carta que ela me escreveu; envio-lha para que veja com os seus próprios olhos. Repare que, quando fala de si, é sempre o senhor de Valmont; que todas as idéias, mesmo as que lhe faz nascer, conduzemna sempre a Danceny e a este não chama senhor, mas simplesmente Danceny *. É assim que ela o distingue de todos os outros; e mesmo quando se entrega a si, é apenas dele que se torna íntima. Se tal conquista lhe parece sedutora, se os prazeres que ela oferece o prendem, é certamente modesto e pouco exigente! Admito que a guarde para si; entra até nos nossos projetos. Mas acho que isso não vale qualquer *Ver Carta CIX.
espécie de incômodo; deveríamos ter também algum domínio sobre ela e não permitir, por exemplo, que se aproxime de Danceny senão depois de lho termos feito esquecer um pouco. Antes de deixar de me ocupar de si, para chegar à minha vez, quero ainda dizer-lhe que esse processo de se desculpar com uma doença me parece demasiado conhecido e usado. De fato, Visconde, que falta de imaginação! Também me repito às vezes, como irá ter ocasião de ver; mas procuro variar os pormenores, e, o que é mais importante, o êxito dá-me razão. Vou tentar obter mais um e correr uma nova aventura. Concordo que esta não será uma distração, e morro de tédio. Não sei porquê, mas desde a aventura de Prévan que Belleroche se me tornou insuportável. Está de tal forma atencioso, terno e cheio de veneração, que já não posso mais. A cólera dele, no primeiro momento, agradou-me; no entanto tive de o acalmar, porque deixá-lo agir seria comprometer-me, não haveria maneira de o chamar à razão. Decidi pois mostrar-lhe mais amor para pôr ponto final no assunto, mas ele tomou-me a sério, e desde essa altura exaspera-me com o seu encantamento eterno. Noto principalmente a insultante confiança que vai depositando em mim e a segurança com que me considera sua para sempre. Sintome verdadeiramente humilhada. Deve apreciar-me bem pouco, para se julgar com bastante valor para me prender! Pois não me dizia ultimamente que eu nunca amara ninguém além dele? Oh, naquele momento foi preciso apelar para toda a minha prudência para o não desiludir, contando-lhe a verdade. Eis mais um cavalheiro que pretende direito exclusivo! Concordo que é elegante e tem um belo rosto, mas no fundo é apenas um recruta nestas coisas do amor. Chegou finalmente o momento, é preciso que nos separemos. Há já quinze dias que experimento, e tentei sucessivamente a frieza, o mau humor, as discussões; mas o sujeito é tenaz e não larga a presa facilmente, é preciso portanto tomar uma decisão mais violenta; por isso levo-o para a minha casa de campo. Partimos depois de amanhã. Irão conosco apenas algumas pessoas desinteressadas e pouco perspicazes, e teremos quase tanta liberdade como se estivéssemos sós. Então, sobrecarregá-lo-ei a tal ponto de amor e carícias, viveremos de tal modo unicamente um para o outro, que aposto que ele desejará ainda mais do que eu o fim desta estada, que agora considera uma tão grande felicidade; se não regressar mais farto de mim do que eu já estou dele, poderá dizer, caro Visconde, que não percebo mais disto que o meu amigo. O pretexto para esta retirada é ter de me ocupar seriamente com o meu processo, que irá finalmente a tribunal no começo do Inverno. O que sem dúvida me convém, porque é muito desagradável ter assim toda a fortuna em perigo. Não chego a estar inquieta: primeiro porque a razão está do meu lado; todos os meus advogados mo
asseguram. E mesmo que assim não fosse, era preciso ser bem inábil se não soubesse ganhar um processo em que tenho por adversários apenas menores e o velho tutor! Mas como é preciso não descurar nada num assunto tão importante, terei efetivamente comigo dois advogados. Parece-lhe triste esta viagem? No entanto, se ela me fizer ganhar o processo e perder Belleroche, não lamentarei o meu tempo. E agora, Visconde, adivinhe-lhe o sucessor; aposto cem contra um. Ora! Como se eu não soubesse já que nunca acerta em nada... Pois bem, é Danceny. Admirado? Porque, enfim, ainda não estou reduzida à educação de crianças! Mas este merece que se lhe faça exceção; tem todas as graças da juventude e de forma nenhuma a frivolidade. A sua grande reserva é de molde a afastar todas as suspeitas, e não se pode imaginar nada de mais agradável na intimidade. Não que tenhamos chegado já a vias de fato, por enquanto sou apenas a confidente; mas sob o véu da amizade, creio ver-lhe uma grande simpatia por mim, e sinto que vou retribuir. Seria na verdade grande lástima que tanto espírito e delicadeza se fossem sacrificar e embotar junto dessa imbecil da Volanges! Espero que ele se engane quando julga amá-la, ela está tão longe de o merecer! Não que tenha ciúmes dela; mas seria um crime e quero salvar Danceny. Peço-lhe pois, Visconde, evite que durante a minha viagem ele se possa encontrar com a sua Cecília, como tem ainda o mau hábito de a chamar. Um primeiro amor tem sempre maior poder do que julgamos, e não respondo por nada se ele a tornasse a ver agora; sobretudo durante a minha ausência. Depois do meu regresso, tratarei de tudo e responsabilizo-me pelo êxito. Ainda pensei levá-lo comigo, mas sacrifiquei este plano à minha habitual prudência; e depois tive medo que percebesse qualquer coisa entre mim e Belleroche; ficaria desesperada se ele tivesse a menor idéia do que se passa. Quero pelo menos que me imagine pura e sem mácula; enfim, tal como seria preciso ser para o merecer. Paris, 15 de Outubro de 17* *.
CARTA CXIV A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Minha querida amiga, cedo a uma viva inquietação; e sem saber se estareis em estado de me responder, não posso impedir-me de vos interrogar. O estado do senhor de Valmont, que vós considerais "sem perigo", não me deixou tão tranqüila como pareceis estar. Não é raro que a melancolia e o desejo de solidão sejam sintomas precursores
de alguma grave doença; os sofrimentos do corpo, como os do espírito, fazem desejar o isolamento; e muitas vezes censuramos o mau humor de quem deveríamos antes lamentar os males. Parece-me que ele devia pelo menos consultar alguém. Como é que estando também tão doente, não tendes um médico ao pé de vós? O meu, que já hoje vi, e não vos esconderei que o consultei indiretamente, é de opinião que nas pessoas ativas essa espécie de apatia súbita não deve ser deixada sem vigilância; e acentuou que as doenças só cedem quando tratadas a tempo. Por que deixar correr esse risco a alguém que vos é tão caro? O que faz aumentar a minha inquietação é que há quatro dias não recebo notícias dele. Meu Deus! Não me estareis a enganar quanto ao seu estado? Porque teria deixado de me escrever tão de repente? Se fosse somente o efeito da minha teimosia em lhe devolver as cartas, creio que ele teria tomado mais cedo essa decisão. Enfim, mesmo sem crer em pressentimentos, desde há uns dias pesa sobre mim uma tristeza que me assusta. Ah, talvez eu esteja na véspera da maior das infelicidades! Não podeis calcular, e tenho vergonha de vo-lo contar, quanto me custa não receber essas mesmas cartas, que afinal me recusaria a ler. Tinha ao menos a certeza de que ainda pensava em mim, e tocava qualquer coisa vinda dele. Não abri essas cartas, mas chorava olhandoas, as minhas lágrimas eram mais doces e mais fáceis; e só elas dissipavam um pouco a constante opressão que sinto desde o meu regresso. Suplico-vos, minha indulgente amiga,escrevei-me assim que puderdes; e entretanto enviai-me todos os dias notícias vossas e dele. Apercebo-me de que mal escrevi uma palavra em especial para vós, mas conheceis os meus sentimentos, a dedicação sem reservas, o terno reconhecimento que dedico à vossa amizade; perdoareis a perturbação em que estou, devida às penas mortais, ao terrível tormento de recear males de que sou talvez a causadora. Meu Deus! Esta idéia desesperante persegue-me e dilacera-me o coração; faltava-me esta infelicidade, e sinto que estou destinada a sofrê-las todas. Adeus, minha querida amiga: não me falteis com a vossa amizade, e lamentai-me. Receberei hoje carta vossa? Paris, 16 de Outubro de 1 7* *.
CARTA CXV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL É inconcebível, minha bela amiga, como as pessoas deixam de se compreender assim que se afastam. Enquanto estive ao pé de si,
tivemos sempre as mesmas reações, a mesma maneira de ver; e porque já não vos vemos há três meses, não chegamos a acordo sobre nada. Quem tem a culpa? Certamente a Marquesa não hesitaria em responder, mas eu, mais prudente, ou mais delicado, prefiro calar-me. Responderei apenas à sua carta, e continuarei a contar-lhe o que faço. Em primeiro lugar, quero agradecer-lhe o conselho que me dá acerca dos boatos que correm a meu respeito; mas não me inquieto por enquanto; tenha a certeza de os fazer cessar em breve. Esteja tranqüila; reaparecerei mais célebre do que nunca e cada vez mais digno de si. Espero até que venham a atribuir qualquer mérito à aventura da pequena Volanges, que despreza tão facilmente, como se não fosse nada roubar, numa noite, uma rapariga ao bem-amado, em seguida servir-se dela como de coisa sua, e sem qualquer embaraço; obter dela aquilo que nem sequer se ousa exigir a todas as profissionais, e isto, sem a perturbar no seu terno amor, sem a tornar inconstante, nem mesmo infiel - porque, com efeito, não lhe ocupo apenas a cabeça -, de maneira que, depois de me passar a fantasia, a colocarei de novo nos braços do bem-amado, sem que ela tenha dado por nada. Será isto um feito vulgar? E, além disto, creia-me, uma vez saída das minhas mãos, os princípios que lhe revelei continuarão a desenvolver-se; e profetizo que a tímida aluna se lançará em breve em largos vôos, capazes de honrarem o mestre. No entanto, se alguém preferir o gênero heróico, mostrarei a Presidente, esse modelo de todas as virtudes, respeitada mesmo pelos mais libertinos, a tal ponto que se tinha perdido até a idéia de a atacar! Mostrá-la-ei, digo, esquecida dos deveres e da virtude, sacrificando reputação e dois anos de prudência, para correr atrás da felicidade de me agradar, para se embriagar com a de me querer bem; julgando-se paga de tantos sacrifícios, com uma palavra, um olhar, que nem sequer obterá sempre. Farei ainda mais, abandoná-la-ei; e ou não conheço esta mulher ou não terei sucessor. Ela resistirá à necessidade de consolação, ao hábito do prazer, ao desejo de vingança. Enfim, terá vivido apenas para mim; e quer a sua vida seja longa ou não, terei sido o único a abrir e a fechar a barreira. Realizado este triunfo, direi aos meus rivais: "Eis a minha obra, e procurem um segundo exemplo em todo o século!" Vai-me perguntar donde me vem hoje este excesso de confiança? É que desde há oito dias sou confidente da minha bela; ela não me diz os seus segredos, mas eu surpreendo-lhos. Duas cartas dela para Madame de Rosemonde bastaram para me instruir, e só lerei as outras por curiosidade. Aproximar-me dela será mais do que suficiente para alcançar o êxito, e os meios para tal já os encontrei. Vou imediatamente pô-los em ação. Está curiosa, suponho? Mas não, para a castigar de não acreditar nas minhas invenções, não as saberá. Merecia que lhe
retirasse radicalmente a minha confiança, pelo menos nesta aventura; e, com efeito, sem o doce prémio atribuído por si ao meu bom sucesso, não lhe voltaria a falar nela. Bem vê que estou zangado. No entanto, na esperança de que se venha a corrigir, limitar-me-ei a esta ligeira punição; e, regressando à indulgência, esqueço por uns momentos os meus grandes projetos, para conversar consigo acerca dos seus. Ei-la portanto no campo, enfadonho como o sentimento e triste como a fidelidade! E esse pobre Belleroche! Não se contenta em o obrigar a beber a água do esquecimento, necessita ainda de o atormentar! Como está ele? Suporta bem as náuseas do amor? Divertirme-ia se ele ainda por cima se prendesse mais a si; teria curiosidade de ver que remédio mais eficaz conseguireis empregar. Lamento-a de fato por ter sido obrigada a recorrer a esse. Só uma vez, na minha vida, utilizei o amor como processo. Tinha certamente um forte motivo, visto que se tratava da Condessa de...; e vinte vezes, nos braços dela, tentei dizer-lhe: "Minha senhora, renuncio ao lugar, que solicito, e permita-me que abandone aquele que ocupo." E também, de todas as mulheres que possuí, a única de quem tenho verdadeiramente prazer em dizer mal. Quanto ao seu motivo, acho-o, para dizer a verdade, dum ridículo raro; e tinha razão em crer que não conseguiria adivinhar o sucessor. Pois quê? É por Danceny que está com esse trabalho todo? Ah! Cara amiga, deixe-o lá adorar a sua virtuosa Cecília e não se meta nessas brincadeiras de crianças. Deixe-as educarem-se junto das criadas, ou entregarem-se a pequenos jogos inocentes umas com as outras. Para que se vai ocupar dum noviço que não saberá nem possuíla nem deixá-la, e a quem será preciso ensinar tudo? Digo-lhe muito a sério, desaprovo a escolha, e por muito secreta que venha a ficar, humilhá-la-á pelo menos a meus olhos e perante a sua consciência. Diz que começa a tomar interesse por ele, ora vamos, vamos, engana-se certamente, e creio até que já descobri a causa do seu erro. O seu fastio por Belleroche veio num tempo de escassez e, não lhe oferecendo Paris por onde escolher, as suas idéias, sempre demasiado vivas, concentraram-se sobre o primeiro objeto que lhe apareceu. Mas pense que, no regresso, poderá escolher entre mil; e se enfim receia cair na inação adiando, ofereço-me para a distrair. Daqui até ao seu regresso, os meus grandes afazeres terão terminado duma maneira ou doutra; e, certamente, nem a pequena Volanges, nem a própria Presidente me ocuparão de tal modo que não possa estar ao pé de si sempre que a minha amiga o desejar. Talvez mesmo que, daqui até lá, já eu tenha reposto a rapariguinha nas mãos do seu discreto apaixonado. Sem concordar, por mais que a Marquesa diga, que não seja um gozo atraente como tenho em projeto que ela guarde de mim toda a vida uma idéia superior à de todos os outros homens, lancei-me com ela num ritmo que não poderei manter por
muito tempo sem prejudicar a saúde; e já apenas me prende a ela o interesse devido aos assuntos de família... Compreende-me, não é verdade?... É que espero uma segunda época para confirmar a minha esperança, e assegurar-me de que realizei plenamente os meus projetos. Sim, bela amiga, já possuo um indício de que o marido da minha aluna não correrá o risco de morrer sem posteridade; e que o futuro chefe da casa de Gercourt será apenas um rebento da de Valmont. Mas deixe-me terminar segundo a minha fantasia esta aventura que encetei a seu pedido. Pense que, se fizer de Danceny um inconstante, tirará todo o picante à história. Considere finalmente que, oferecendo-me para o representar junto de si, tenho, parece-me, alguns direitos à preferência. Como estou certo dela, não receei contrariar os seus objetivos, concorrendo eu próprio para aumentar a terna paixão do discreto apaixonado pelo primeiro e digno objeto da sua escolha. Tendo ontem encontrado a sua aluna ocupada em lhe escrever, e tendo-a primeiro arrancado desta doce ocupação para outra mais doce ainda depois para ler a carta; e como a achei fria e constrangida, fiz-lhe sentir que não era assim que ela consolaria o seu namorado, e decidia-a a escrever outra ditada por mim; na qual, imitando o melhor que pude o seu tom disparatado, tratei de alimentar o amor do jovem com uma esperança mais certa. A pequena estava toda encantada, disse-me, por se ver a escrever tão bem, e daqui em diante serei eu o encarregado da correspondência. Que não terei eu sido para Danceny? Fui, sucessivamente, amigo, confiante, rival e amante! Ainda neste momento, presto-lhe o serviço de o salvar dos perigosos tentáculos da minha amiga. Sim, sem dúvida, perigosos; porque possuíla e perdê-la, é comprar um momento de felicidade por uma eternidade de saudades. Adeus, bela amiga; tenha a coragem de liquidar Belleroche o mais depressa que puder. Deixe Danceny sossegado, e prepare-se para me reencontrar e me dar de novo os deliciosos prazeres da nossa primeira ligação. P. S. Felicito-a pela próxima decisão do grande processo, e agradarme-ia imenso que esse feliz acontecimento se desse sob o meu reinado. Castelo de..., 19 de Outubro de 17* *.
CARTA CXVI O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES
Madame de Merteuil partiu esta manhã para o campo; assim, minha encantadora Cecília, eis-me privado do único prazer que me restava na sua ausência, o de falar de si à nossa amiga. Permitiu-me há pouco tempo que lhe desse este título; apresseime a servi-me dele, pois parecia-me que assim me aproximava mais de si. Meu Deus, como essa mulher é amável! E que encanto lisonjeiro ela sabe dar à amizade! Na Marquesa parece que este belo sentimento se embeleza e se fortifica com tudo o que ela recusa ao amor. Se soubesse como ela gosta de si e como gosta de me ouvir falar a seu respeito!... É sem dúvida isso o que me prende a ela. Que felicidade poder viver unicamente para ambas, passar incessantemente das delícias do amor à doçura da amizade, consagrar-lhes toda a minha existência, ser de qualquer forma o ponto de encontro da vossa recíproca afeição; e sentir sempre que, ocupando-me com a felicidade duma, trabalho igualmente para a da outra! Tem o dever de gostar muito, muito, encantadora amiga, desta mulher adorável. A afeição que tenho por ela, deve a Cecília dar-lhe ainda mais valor, compartilhando-a comigo. Depois de ter experimentado o encanto da amizade, desejo que o conheça também. Os prazeres que não compartilhamos juntos, parece-me que os gozo apenas por metade. Sim, minha Cecília, gostaria de cercar o seu coração dos mais doces sentimentos; que cada uma das suas palpitações a fizesse experimentar uma sensação de felicidade; e julgaria ainda retribuir-lhe apenas uma parte da felicidade que receberia de si. Por que é que estes encantadores projetos são apenas uma quimera da minha imaginação, e a realidade não me oferece senão privações dolorosas e indefinidas? A esperança que me tinha dado de nos vermos nesse castelo, compreendo que é preciso renunciar a ela. Só me resta a consolação de me persuadir de que na realidade tal lhe não é possível. E esquece-se de mo dizer, de chorar comigo! Já por duas vezes as minhas queixas a este respeito ficaram sem resposta. Ah! Cecília! Cecília! Creio que me tem amor com todas as forças da sua alma, mas a sua alma não é ardente como a minha! Por que não me cabe a mim afastar os obstáculos? Por que não são os meus interesses que devo proteger, em vez dos seus? Em breve lhe provaria que nada é impossível ao amor. Também não me informa quando deve terminar esta cruel ausência. Ao menos aqui, ver-nos-íamos algumas vezes. Os seus olhos maravilhosos reanimariam a minha alma abatida; a enternecedora expressão deles tranqüilizaria o meu coração, que algumas vezes bem o precisa. Perdão, minha Cecília; este receio não é uma suspeita. Acredito no seu amor, na sua constância. Ah, muito infeliz seria se duvidasse. Mas tantos obstáculos, e sempre renovados! Minha amiga, estou triste, muito triste. Parece que a partida de Madame de Merteuil avivou em mim o sentimento de todas as minhas dores.
Adeus, Cecília; adeus, minha bem-amada. Pense que o seu amado se aflige, e que está na sua mão fazê-lo feliz. Paris, 17 de Outubro de 17* *.
CARTA CXVII CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY (Ditada por Valmont) Acredita pois, meu bom amigo, que é preciso censurar-me para eu estar triste, quando sei que se aflige? E duvida que sofra também por todas as suas dores? Compartilho consigo mesmo as que lhe causo voluntariamente; e ainda por cima me entristeço por ver que não me faz justiça. Oh! Isso não está certo. Bem vejo o que o aborrece; é que nas duas últimas vezes em que me pediu para vir aqui, nada lhe respondi a esse respeito; mas será essa resposta tão fácil de dar? Julga que não sei que o que deseja não me fica bem? E no entanto, se me é tão penoso recusar de longe, que seria se estivesse presente? E depois, por o ter querido consolar um momento, ficaria infeliz toda a minha vida. Repare, nada lhe escondo por minha parte, eis as minhas razões; julgue agora por si. Teria talvez feito o que quer se não fosse o que lhe contei, que o senhor de Gercourt, causador de todas as nossas dores, não chegará tão cedo; e que, como, de há um tempo para cá, a Mamã me testemunha muito mais amizade e eu, pelo lado, a acarinho quanto posso, nem sei o que não será possível obtermos dela. E se pudermos ser felizes sem que eu nada tenha a censurar-me, não será muito melhor? A acreditar no que me dizem, os homens gostam menos das suas mulheres quando elas os amaram muito antes de o serem. É esse temor que me contém ainda mais que tudo o resto. Meu amigo, não está seguro do meu coração, e não será sempre tempo? Escute, prometo-lhe que, se não puder evitar a infelicidade de casar com esse senhor de Gercourt, que já tanto odeio mesmo antes de o conhecer, nada me impedirá depois de me dedicar a si tanto quanto puder e de o amar acima de tudo. Como só me interessa ser amada por si, e saberá bem que se procedo mal não é por minha culpa, nada mais me importará; contanto que me prometa amar-me sempre tanto como agora. Mas, meu amigo, até lá, deixe-me continuar a proceder assim; e não insista mais numa coisa que tenho razões para não fazer, e no entanto me penaliza recusar-lhe.
Gostaria também que o senhor de Valmont não fosse tão solícito por si; isso torna-me ainda mais triste Oh! Tem ali um grande amigo, asseguro-lhe! Tudo o que faria se aqui estivesse, ele o faz. Mas adeus, querido amigo; comecei a escrever-lhe demasiado tarde e passei nesta tarefa uma parte da noite. Vou-me deitar e recuperar o tempo perdido. Beijo-o, mas não me ralhe mais. Castelo de..., 18 de Outubro de 17* *.
CARTA CXVIII O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL Se acreditar no calendário, adorável amiga, há apenas dois dias que estais ausente; mas, se acreditar no meu coração, há dois séculos. Ora, sei-o por vós, é sempre no coração que devemos acreditar; é pois já tempo que regresseis, todos os vossos assuntos devem estar mais que tratados. Como quereis que me interesse pelo vosso processo, se, perdido ou ganho, devo do mesmo modo pagar-lhe as custas pelo tédio da vossa ausência? Oh! Que vontade eu tenho de ralhar! E como é triste, com um tão belo pretexto para estar zangado, não ter o direito de o mostrar! Não vos parece que é uma verdadeira infidelidade, uma negra traição, deixar este amigo longe de vós, depois de o ter habituado à vossa presença? Por mais que consulteis os advogados, nunca encontrarão justificação para este mau procedimento; e, de resto, essa gente só dá razões, e não bastam razões para responder aos sentimentos. Por mim, tanto me assegurastes que era a razão que vos ordenava essa viagem, que me indispusestes com ela. Já não a quero ouvir; mesmo que me ordene que vos esqueça. E no entanto essa razão é bem razoável; e na verdade não seria tão difícil como pensais. Bastaria apenas desabituar-me de pensar em vós: e nada aqui, asseguro-vos, me faria recordar de vós. As nossas mais belas mulheres, as que são consideradas mais desejáveis, estão tão longe de vós que só dariam uma pálida idéia da vossa beleza. Creio mesmo que com olhos mais experimentados, quanto mais parecidas convosco as julgamos a princípio, maiores diferenças se acham depois; por mais que façam, por mais que empreguem tudo o que sabem, falta-lhes sempre o serem vós, e é aí que reside positivamente o encanto. Infelizmente, quando os dias são longos, e se está desocupado, sonha-se, constroem-se castelos de areia, inventam-se quimeras; pouco a pouco a imaginação exalta-se, quer-se embelezar a obra, junta-se tudo o que pode agradar, atinge-se por fim a perfeição; e quando aqui
se chega, o retrato conduz-nos de novo ao modelo, e fica-se espantado por ver que afinal não se fazia outra coisa senão pensar em vós. Neste mesmo momento, sou ainda vítima dum erro idêntico. Pensais talvez que foi para me ocupar de vós que me pus a escrever-vos? Nada disso: foi pelo contrário, para vos esquecer. Tinha cem coisas a dizer-vos, de que não éreis o objeto, e que, como o sabeis, me interessam vivamente; foi contudo destas que acabei por me desviar. Desde quando o encanto da amizade suplanta o do amor? Ah! Se eu observasse melhor, talvez tivesse uma pequena censura a fazerlhe! Mas chiu! Esqueçamos esta ligeira falta com medo de nela recair; e que a minha própria amiga o ignore. Também, porque não estais aqui presente para me responder, para me conduzir ao bom caminho se me perco, para me falar da minha Cecília, para aumentar, se é possível, a felicidade que experimento ao amá-la, com a idéia tão doce ao meu coração de que é a vossa amiga que amo? Sim, confesso, o amor que ela me inspira tornou-se-me ainda mais precioso, desde que tivestes a bondade de ser minha confidente. Gosto tanto de vos abrir o coração, de ocupar o vosso com os meus sentimentos, de os depositar nele sem reserva! Parece-me que os acarinho melhor desde que vos dignastes acolhê-los; e depois, olhando-vos, digo para comigo: "É nela que está guardada toda a minha felicidade. Nada tenho de novo a comunicar-vos sobre a minha situação. A última carta que recebi dela aumenta e confirma a minha esperança, mas retarda-a ainda. No entanto as razões dela são tão ternas e tão honestas, que não posso nem censurá-la nem queixar-me. Talvez não vos seja possível compreender muito bem o que vos digo; mas porque não estais aqui? Conquanto se diga tudo à amiga, nem tudo se ousa escrever. Os segredos do amor, sobretudo, são tão delicados que não é possível confidenciá-los de qualquer maneira. Se algumas vezes permitimos que se nos escapem, é preciso não os perder de vista e, de certo modo, vê-los entrar no seu novo asilo. Ah, regressai pois, adorável amiga; bem vedes que o vosso regresso é necessário. Esquecei finalmente as mil razões que vos retêm onde vos encontrais ou então dai-me uma que me ensine a viver onde não estais. Tenho a honra de ser, etc. Paris, 19 de Outubro de 17* *.
CARTA CXIX MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL
Se bem que ainda sofra muito, querida amiga, tento no entanto escrever-vos eu própria, a fim de poder falar do que vos interessa. O meu sobrinho continua na sua misantropia. Manda regularmente saber notícias minhas todos os dias; mas nem uma única vez veio ele próprio informar-se, se bem que lho tivesse pedido, de forma que não o vejo mais do que se ele estivesse em Paris. Encontrei-o no entanto esta manhã, onde menos o esperava. Foi na capela, aonde desci pela primeira vez depois da minha dolorosa doença. Soube hoje que há quatro dias ele vai regularmente ouvir missa. Deus queira que isto dure! Quando entrei, dirigiu-se-me e felicitou-me afetuosamente pelas minhas melhoras. Como a missa começasse, abreviei a conversa que tencionava retomar depois, mas desapareceu antes que o pudesse encontrar. Não vos esconderei que o achei um pouco mudado. Mas, querida filha, não me façais arrepender da confiança na vossa sensatez com inquietações demasiado vivas; e sobretudo podeis estar certa de que preferiria afligir-vos a enganar-vos. Se o meu sobrinho continuar a evitar-me, tomarei a decisão, assim que estiver melhor, de o visitar no seu quarto e tratarei de adivinhar a causa desta singular mania, que creio bem tenha algo a ver convosco. Informar-vos-ei do que tiver sabido. Deixo-vos, já não posso mexer os dedos, e além disso, se a Adelaide soubesse que escrevi, ralhar-me-ia toda a noite. Adeus, querida amiga. Castelo de..., 20 de Outubro de 17* *.
CARTA CXX O VISCONDE DE VALMONT AO PADRE ANSELMO (Bernardo do convento da Rua Saint-Honoré) Não tenho a honra de ser conhecido por vós, senhor, mas sei da inteira confiança que em vós tem a senhora de Tourvel e sei, além disso, quanto essa confiança é dignamente merecida. Creio portanto poder, sem ser indiscreto, dirigir-me a vós, para obter um favor essencial, verdadeiramente digno do vosso santo mister, e no qual o interesse da senhora de Tourvel se encontra aliado ao meu. Tenho em meu poder papéis importantes que lhe dizem respeito, que não podem ser confiados a ninguém e que não quero nem devo entregar senão nas próprias mãos dela. Não tenho maneira de a informar disto, porque certas razões, que talvez conheçais por ela, mas que não me julgo autorizado a comunicar-vos, a levaram a tomar a decisão de recusar toda a correspondência comigo: decisão que hoje
voluntariamente confesso não poder censurar, visto que ela não podia prever acontecimentos que eu próprio estava bem longe de esperar e que apenas foram possíveis pela força sobre-humana que é forçoso reconhecer neles. Peço-vos, pois, senhor, vos digneis informá-la das minhas novas resoluções, e pedir-lhe da minha parte uma entrevista particular, durante a qual possa, pelo menos em parte, reparar os erros com as desculpas; e, com este último sacrifício, destruir a seus olhos os únicos vestígios ainda existentes dum erro ou duma falta que me tornou culpado para com ela. Só após esta expiação preliminar ousarei depor a vossos pés a humilhante confissão das minhas imensas loucuras; e implorar a vossa mediação para uma reconciliação bem mais importante ainda, e infelizmente mais difícil. Posso contar, senhor, que não me recusareis as vossas atenções, tão necessárias e tão preciosas? E que vos dignareis encorajar a minha fraqueza e guiar os meus passos num caminho novo que desejo sinceramente seguir, mas que confesso, corando, não conhecer ainda? Espero a vossa resposta com a impaciência do arrependido que deseja reparar o mal feito, e peço-vos que me acrediteis tão reconhecido quão venerador, Vosso muito humilde, etc. P. S. - Autorizo-vos, senhor, caso o julgueis conveniente, a comunicar esta carta por inteiro a Madame de Tourvel, a quem me considerarei toda a vida no dever de respeitar e em quem não deixarei jamais de venerar aquela de quem o Céu se serviu para reconduzir a minha alma à virtude, por meio da tocante visão da sua. Castelo de..., 22 de Outubro de 17* *.
CARTA CXXI A MARQUESA DE MARTEUIL AO CAVALEIRO DANCENY Recebi a vossa carta, meu jovem amigo; mas antes de vos agradecer é preciso que vos ralhe e vos previna de que, se não vos corrigirdes, não obtereis resposta para a próxima vez. Se quereis ter a minha confiança, abandonai pois esse tom galanteador, que é apenas gíria do amor, desde que não seja a expressão dele. É esse o estilo da amizade? Não, meu amigo, cada sentimento tem a linguagem que lhe é peculiar; servir-se de outra, é disfarçar o pensamento que se exprime. Bem sei que as mulheres vulgares nada entendem do que se lhes diz se não for traduzido, de qualquer maneira, na gíria do costume; mas julgava merecer, confesso-o, que me distinguísseis delas. Estou
verdadeiramente zangada, talvez mais do que deveria, por me terdes avaliado mal. Encontrareis pois na minha carta tudo o que falta na vossa, franqueza e simplicidade. Dir-vos-ei de boa vontade, por exemplo, que teria um grande prazer em vos ver, e que estou contrariada por só ter à minha volta pessoas que me aborrecem, em vez de outras que me agradam; mas vós, a esta mesma frase, traduzi-la-eis assim: ensinai-me a viver onde não estais; de maneira que quando estiverdes, suponho, junto da vossa amada, não vos sentiríeis bem se eu não estivesse presente como terceiro elemento. Que pena! E essas mulheres, a quem falta sempre serem eu, achais por acaso que isso também falta à vossa Cecília? Eis no entanto aonde conduz uma linguagem que, pelo abuso que dela se faz hoje em dia, está ainda a baixo da gíria dos cumprimentos, e se transforma cada vez mais num simples protocolo em que se acredita tanto como no "muito humilde servidor" ! Meu amigo, quando me escreverdes, que seja para me dizer a vossa maneira de pensar e sentir, e não para me enviar frases que encontrarei, sem precisar de vós, mais ou menos bem ditas no romance em moda. Espero que não vos zangareis com o que vos digo, mesmo que verifiqueis um pouco de mau humor; porque não nego que o tenha, mas para evitar até a suspeita do defeito que vos censuro, não vos direi que este mau humor seja talvez um pouco aumentado pelo afastamento em que me encontro de vós. Parece-me afinal de contas que valeis mais que um processo e dois advogados, e talvez até do que o atencioso Belleroche. Vede como em vez de vos desolardes com a minha ausência, vos deveríeis felicitar; porque nunca vos tinha feito um tão belo elogio. Creio que o exemplo me contagia e que desejo também dizer-vos galanteios, mas não, prefiro continuar na minha franqueza; é pois apenas ela que vos assegura da terna amizade que tenho por vós, e do interesse que ela me inspira. É maravilhoso ter um jovem amigo cujo coração está ocupado junto de outra. Não é o sistema de todas as mulheres; mas é o meu. Parece-me que nos entregamos com mais prazer a um sentimento do qual nada se pode ter a recear, foi por isso que desde muito cedo passei convosco ao papel de confidente. Mas escolhei as vossas amadas tão jovens, que pela primeira vez me apercebi de que começo a envelhecer, preparaivos assim para uma longa carreira de constâncias, e sinceramente desejo que seja recíproca. Tendes razão em vos submeterdes às razões ternas e honestas que, segundo dizeis, retardam a vossa felicidade. Uma defesa prolongada é o único mérito que resta às que não resistem sempre; e aquilo que eu acharia imperdoável em qualquer outra, exceto numa criança como a pequena Volanges, seria o não saber evitar um perigo, de que já foi suficientemente advertida pela confissão que ela própria fez do seu amor. Vós, os homens, não avaliais o que é a virtude, e quanto custa sacrificá-la! Mas por pouco que uma mulher raciocine, ela
deve saber que independentemente da falta que comete, um momento de fraqueza é para ela a maior das infelicidades; e não percebo como pode haver alguma que se deixe conquistar, desde que tenha um momento para refletir. Não deveis combater esta idéia, porque ela é que me prende principalmente a vós. Salvar-me-eis dos perigos do amor; e se bem que até aqui tenha sabido defender-me sem vós, consinto em estar-vos reconhecida por tal, e amar-vos-ei mais e melhor. E após isto, caro Cavaleiro, peço que Deus vos tenha na Sua santa e digna guarda. Castelo de. . ., 22 de Outubro de 17* *.
CARTA CXXII MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL Esperava, querida filha, poder finalmente acalmar as vossas inquietações; e vejo com pesar que vou pelo contrário aumentá-las de novo. Sossegai, no entanto; o meu sobrinho não está em perigo; não se pode mesmo dizer que esteja verdadeiramente doente. Mas passa-se certamente qualquer coisa de extraordinário nele. Não compreendo absolutamente nada; mas saí do quarto dele com um sentimento de tristeza, talvez até de medo, que me censuro de vos fazer compartilhar, e acerca do qual não posso no entanto impedir-me de conversar convosco. Eis o que se passou: podeis estar certa que sou fiel, porque mesmo que eu viva ainda outros oitenta anos, não esquecerei a impressão que me fez essa cena tão triste. Fui pois esta manhã aos aposentos do meu sobrinho, encontrei-o a escrever, e cercado por uma multidão de montes de papéis, que pareciam ser o objeto do seu trabalho. Estava de tal forma entretido, que já eu estava no meio do quarto, ainda ele não tinha voltado a cabeça para saber quem entrara. Assim que me viu, notei que enquanto se levantava se esforçava por dar uma certa compostura ao rosto, e talvez tenha sido isso mesmo que me fez reparar com mais atenção. Para dizer a verdade, não se tinha arranjado nem empoado; mas achei-o pálido e magro, e sobretudo com a fisionomia transtornada. O olhar, que vimos já tão vivo e tão alegre, estava triste e abatido; enfim, aqui entre nós, não gostaria que o tivésseis visto assim, porque tinha um aspecto comovente, e muito próprio, segundo creio, a inspirar essa terna piedade, que é uma das mais perigosas armadilhas do amor. Se bem que abalada pelo que observava, comecei no entanto a conversa como se não me tivesse apercebido de nada. Inquiri primeiro da sua saúde, e sem me dizer que era boa, não se lamentou no
entanto que fosse má. Então queixei-me da sua ausência, que tinha um pouco o aspecto de mania, e procurei juntar um pouco de bom humor ao meu "sermão"; mas respondeu-me apenas, e num tom compenetrado, ah mais um erro, confesso... mas será reparado conjuntamente com os outros. A expressão do rosto, ainda mais do que as palavras, desconcertou-me, e apressei-me a dizer-lhe que estava a dar demasiada importância a uma simples censura ditada pela amizade. Começamos então a conversar tranquilamente. Declarou-me, pouco depois, que talvez um assunto, "o caso mais importante da sua vida", o chamasse em breve a Paris, mas como tive medo de adivinhar o que era, querida, e que este intróito levasse a uma confidência que não queria ouvir, não lhe fiz perguntas, e contentei-me em dizer que esperava que as distrações lhe fossem úteis à saúde. Acrescentei que desta vez não lhe faria nenhum pedido, visto amar os meus amigos por eles próprios; a esta simples frase, cerrando-me as mãos e falando com uma veemência que não consigo reproduzir: "Sim, minha tia", disse-me, "amai, amai muito um sobrinho que vos respeita e vos adora; e, como dizeis, amai-o por ele próprio. Não vos preocupeis com a sua felicidade, e não perturbeis com nenhum remorso a eterna tranqüilidade que espera fruir em breve. Repeti que me perdoais e amais; sim, haveis de perdoar-me; conheço a vossa bondade; mas como esperar a mesma indulgência daqueles que ofendi tantas vezes?". Então curvou-se um pouco, para me esconder, creio, os traços de dor que o timbre da voz traía contra a vontade dele. Mais comovida do que posso dizer-vos, levantei-me precipitadamente; e sem dúvida notou o meu susto, porque imediatamente, retomando a compostura, disse: "Perdão, perdão, senhora; sinto que me perturbo contra minha vontade. Peço-vos que esqueçais as minhas palavras e recordeis apenas o meu profundo respeito. Não deixarei", acrescentou, "de ir junto de vós renovar as minhas homenagens antes de partir". Pareceu-me que esta última frase me convidava a terminar a visita; e de fato retirei-me. Mas quanto mais reflito, menos percebo o que ele quis dizer. Que assunto é este, que considera "o mais importante da sua vida" ? Por que me pedia perdão? Donde lhe veio este enternecimento involuntário com que me falava? Já formulei mil vezes estas interrogações, sem conseguir responder-lhes. Nada vejo nelas que se relacione convosco, no entanto, como os olhos do amor são mais clarividentes que os da amizade, quis que nada ignorásseis do que se passou entre mim e meu sobrinho. Tive de me interromper quatro vezes para escrever esta longa carta, que seria ainda mais longa se me não sentisse tão fatigada. Adeus, minha querida filha. Castelo de..., 25 de Outubro de 17* *.
CARTA CXXIII O PADRE ANSELMO AO VISCONDE DE VALMONT Recebi, senhor Visconde, a carta com que me honrastes; e ontem dirigi-me, conforme os vossos desejos, a casa da pessoa em questão. Expus-lhe o objeto e os motivos da diligência que me havíeis pedido para desempenhar junto dela. Apesar de achar demasiado presa à sensata decisão que tomara, depois de lhe ter demonstrado que se arriscava com a sua recusa a pôr um obstáculo ao vosso feliz regresso e a opor-se assim aos projetos misericordiosos da Divina Providência, acabou por consentir na vossa visita, com a condição de que seria a última, e encarregou-me de vos anunciar que estaria em casa na próxima quinta-feira, 28. Pede-vos que se esse dia vos não convier, a informeis e lhe indiqueis um outro. A vossa carta será recebida. No entanto, senhor Visconde, permiti-me que vos peça que não adieis sem fortes razões, para que mais cedo vos possais consagrar inteiramente às louváveis disposições que me afirmastes. Pensai que o que se não apressa a aproveitar o momento da graça se arrisca a que ela lhe seja retirada; que embora a bondade divina seja infinita, a sua aplicação é regulada pela justiça; e pode haver um momento em que o Deus de misericórdia se transforme em Deus de vingança. Se continuardes a honrar-me com a vossa confiança, peço-vos que acrediteis que estarei às vossas ordens sempre que o desejardes, e por maiores que sejam os meus afazeres, a minha importante tarefa será sempre cumprir os deveres do santo ministério a que me dediquei inteiramente; e o momento mais belo da minha vida seria aquele em que visse os meus esforços serem realçados pela bênção do TodoPoderoso. Somos fracos e pecadores e nada podemos por nós próprios! Mas o Deus que vos chama tudo pode; e devemos também à sua bondade, vós, o desejo constante de vos unirdes a Ele, e eu, os meios de aí vos conduzir. E com o Seu socorro, espero convencer-vos de que só a santa religião pode dar, mesmo neste mundo, a felicidade sólida e durável que vãmente se procura na fogueira das paixões humanas. Tenho a honra de ser, com respeitosa consideração, etc. Paris, 25 de Outubro de 17* *.
CARTA CXXIV
A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Tomada ainda do espanto em que se lançou a nova de que ontem conhecimento, não esqueço, senhora, a satisfação que ela vos deve causar, e apresso-me a dar-vos parte dela. O senhor de Valmont já se não ocupa de mim nem do seu amor; agora pretende apenas emendar, com uma vida mais edificante, as faltas, ou antes, os erros da juventude. Fui informada dessa resolução pelo padre Anselmo, a quem se dirigiu para de futuro o guiar, e também para lhe conseguir um encontro comigo, que segundo julgo terá como principal objetivo devolver-me as minhas cartas que conservara até aqui, apesar do meu pedido em contrário. Só me resta, sem dúvida, aplaudir esta feliz transformação, e felicitar-me se, tal como diz, pude de algum modo concorrer para ela. Mas por que havia de ser eu o instrumento, e por que me custaria isso o repouso da minha vida? Por que motivo seria o meu infortúnio o preço da felicidade do senhor de Valmont? Oh, minha indulgente amiga, desculpai este queixume. Sei que não me cabe perscrutar os desígnios de Deus, mas enquanto eu lhe suplico sem cessar, e sempre em vão, força para vencer este meu desgraçado amor, Ele prodigaliza-a a quem a não pedia, e deixa-me sem socorro, inteiramente entregue à minha fraqueza. Mas abafemos murmúrios tão culpados. Bem sei que o filho pródigo recebe, no regresso, mais graças do pai do que o filho que nunca se ausentara. Como poderemos pedir contas Àquele que nada nos deve? E mesmo que gozássemos perante Ele de alguns direitos, quais poderiam ser os meus? Ousarei vangloriar-me duma sensatez que só devo a Valmont? Salvou-me como poderia queixar-me por sofrer por ele? Não: ser-me-ão caros os meus sofrimentos, se são o preço da sua felicidade. Era necessário que ele regressasse ao Pai. O Deus que o formou ama com certeza a sua obra. Não criou esse ser encantador para fazer dele um réprobo. Devo suportar a dor da minha audaciosa imprudência; pois não devia eu compreender que, se me era interdito amá-lo, nem sequer me devia permitir-me vê-lo? O meu erro ou a minha desdita foi não ter aceitado durante muito tempo esta verdade. Sois testemunha, minha querida e digna amiga, de que me submeti a esse sacrifício, assim que o reconheci necessário; mas para que ele fosse completo, faltava só que o senhor de Valmont o não compartilhasse. Ousarei confessar-vos que esta idéia é agora a que mais me atormenta? Insuportável orgulho, que adoça os males que experimentamos com aqueles que fazemos sofrer! Ah! Hei-de vencer este coração rebelde e acostumá-lo às humilhações. Foi sobretudo para conseguir isso que consenti em receber, na próxima quinta-feira, a penosa visita do senhor de Valmont. Será, então, o próprio a dizer-me que já não represento nada para ele, que a frágil passageira emoção que nele despertara se
extinguiu inteiramente! Verei o seu olhar pousar-se sobre mim, sem comoção, enquanto o medo de denunciar a minha me obrigará a baixar os olhos. E receberei da sua indiferença essas mesmas cartas que recusou durante tanto tempo às minhas insistentes súplicas; devolvê-lasá como objetos inúteis que já lhe não interessam; e as minhas mãos trêmulas, ao receber esse despojo vergonhoso, sentirão que ele lhe é entregue por uma mão firme e tranqüila! Enfim, vê-lo-ei afastar-se, afastar-se para sempre, e os meus olhos segui-lo-ão, sem verem os seus voltarem-se para mim. Era preciso que suportasse tanta humilhação! Ah! Tentarei ao menos torná-la útil, deixando-me penetrar pelo sentimento da minha fraqueza. Sim, conservarei precisamente essas cartas de que ele já não faz caso. Impor-me-ei a vergonha de as ler todos os dias, até que as lágrimas lhes apaguem os últimos traços; e as dele, hei-de queimá-las, porque estão contaminadas com o perigoso veneno que corrompeu a minha alma. Oh! Mas que é o amor, que nos faz até ter saudades dos perigos a que nos expõe; e que sobretudo tememos sentir ainda, quando já o não inspiramos! Deixemos esta paixão funesta, que só permite a escolha entre a vergonha e a desgraça, e que por vezes as reúne; que pelo menos a prudência substitua a virtude. Como quinta-feira ainda está longe! Que pena não poder consumar imediatamente esse doloroso sacrifício e esquecer-lhe em seguida a causa e o desejo! Esta visita importuna-me; arrependo-me de ter acedido. Oh! Para que precisa ainda ver-me? Que representamos agora um para o outro? Se me ofendeu, perdoo-lhe. Felicito-o e louvo-o por querer emendar as suas faltas. Farei mais, imitá-lo-ei; e visto que fui seduzida pelos mesmos erros, o exemplo dele ajudar-me-á. Mas se projeta fugir de mim, por que começa por me procurar? Não está cada um de nós empenhado em esquecer o outro? Ah! Será esse de hoje em diante o meu único cuidado. Se o permitirdes, minha respeitável amiga, será junto de vós que me irei ocupar desse difícil trabalho. Se necessito socorro e até mesmo consolação, só de vós os quero receber. Só vós sabeis ouvir-me e falar ao meu coração. A vossa preciosa amizade preencherá toda a minha existência. Nada me parecerá difícil para secundar os cuidados que me dispensardes. Dever-vos-ei a tranqüilidade, a felicidade, a virtude; e o fruto das vossas bondades será o de me tornardes digna de tudo isto. Julgo que me dispersei muito nesta carta; presumo-o pela perturbação em que estive sempre enquanto vos escrevia. Se nela se encontrar algum sentimento de que eu deva corar, cobri-lo com a vossa indulgente amizade. Confio inteiramente nela. De vós não esconderei nenhum movimento do meu coração. Adeus, minha respeitável amiga. Espero dentro de poucos dias anunciar-vos a minha chegada. Paris, 25 de Outubro de 17* *.
QUARTA PARTE
CARTA CXXV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Eis vencida essa mulher orgulhosa que ousara crer que me podia resistir! Sim, minha amiga, tive-a, possuí-a inteiramente; e desde ontem que nada mais tem a conceder-me. Estou ainda demasiado cheio da minha felicidade para a poder apreciar: espanto-me do encanto desconhecido que experimentei. Será pois verdade que a virtude aumenta o valor duma mulher, até no momento em que deixa de a ter? Mas não, releguemos essa idéia pueril para as almas simplórias. Não se encontra quase por toda a parte uma resistência mais ou menos bem fingida ao primeiro triunfo? E já alguma vez tinha eu encontrado o encanto de que falo? Contudo, não é o do amor; porque, enfim, se junto desta mulher espantosa tive
por vezes momentos de fraqueza que se assemelhavam a essa paixão pusilânime, soube sempre vencê-los e voltar aos meus princípios. Mesmo que a cena de ontem me tenha, segundo suponho, levado um pouco mais longe do que contava; mesmo que tenha partilhado por um momento a perturbação e a embriaguez que inspirava, essa ilusão passageira estaria dissipada presentemente; e, no entanto, o mesmo encanto subsiste. Experimentaria até, confesso-o, um prazer assaz doce em me entregar a ele, se isso não me causasse uma certa inquietação. Seria eu, na minha idade, dominado como um principiante por um sentimento involuntário e desconhecido? Não: é preciso, antes de tudo, combatê-lo e aprofundá-lo. De resto, talvez já tenha entrevisto a causa! Comprazo-me pelo menos com esta idéia, e gostaria que fosse verdadeira. Na multidão de mulheres junto das quais desempenhei até hoje o papel e as funções de amante, não tinha ainda encontrado nenhuma que não tivesse pelo menos tanta vontade de se entregar como eu de a isso a forçar; tinha-me até habituado a chamar pudibundas às que faziam apenas metade do caminho, por oposição a tantas outras, cuja defesa provocante cobria imperfeitamente os primeiros favores que tinham concedido. Aqui, pelo contrário, encontrei a princípio uma prevenção desfavorável, fundamentada depois nos conselhos e nas informações duma mulher odienta, mas sagaz; uma timidez natural e extrema que fortificava um pudor lúcido; um apego à virtude, conduzida pela religião, e que contava já dois anos de triunfo; e, para finalizar, iniciativas súbitas, inspiradas por estes diferentes motivos, tendo por fim furtar-se à minha perseguição. Não se trata, pois, como nas minhas outras aventuras duma simples capitulação mais ou menos vantajosa, da qual é mais fácil tirar proveito do que vaidade; é uma vitória completa, arrancada por uma campanha penosa e resolvida definitivamente por sábias manobras. Nada de espantar pois que este êxito, devido apenas a mim, me seja mais precioso; e o acréscimo de prazer que experimentei no triunfo, e que ainda sinto, é a doce impressão do sentimento da glória. Acarinho esta maneira de ver, que me poupa a humilhação de pensar que possa depender de qualquer maneira da escrava que submeti: que não detenho apenas em mim a plenitude da minha felicidade; e que a faculdade de ma fazer gozar em toda a sua força esteja reservada a tal ou tal mulher, com exclusão de qualquer outra. Estas sensatas reflexões regularão toda a minha conduta nesta importante ocasião; e pode estar certa de que não me deixarei prender de maneira a não poder, a todo o momento, quebrar a meu bel-prazer estes novos laços. Falo-lhe já da ruptura, e ignorais ainda por que meios a ela adquiri direitos; leia, pois, e veja a que se expõe a sabedoria quando tenta socorrer a loucura.
Estudava tão atentamente as minhas palavras e as respostas, que obtinha, que espero reproduzi-las com uma exatidão que, satisfaça. Verá, pelas duas cópias de cartas aqui juntas, qual o medianeiro* que escolhera para me aproximar da minha bela, e com que zelo a santa criatura se empenhou em nos unir. O que é preciso saber também, e que eu tinha descoberto por uma carta, interceptada como de costume, é que o receio e a pequena humilhação de ser abandonada tinham perturbado um pouco a pudicícia da austera devota; e tinham-lhe enchido o coração e a cabeça de idéias que, lá por não terem sentido, nem por isso deixavam de ser interessantes. Foi depois destes preparativos indispensáveis que ontem, quinta-feira, 28, dia marcado e concedido pela ingrata, me apresentei, escravo tímido e arrependido, em casa dela, para sair mais tarde coroado vencedor. Eram seis horas da tarde quando cheguei a casa da bela reclusa; porque, desde o regresso, a sua porta tem estado fechada a toda a gente. Tentou levantar-se quando fui anunciado; mas os joelhos trêmulos não lho permitiram: voltou a sentar-se imediatamente. Como o criado que me tinha introduzido tivesse qualquer serviço a fazer na sala, pareceu impacientar-se e preenchemos este intervalo com os cumprimentos usuais. Mas para não perder tempo numa ocasião em que todos os instantes eram preciosos, examinei cuidadosamente o local; e marquei logo qual seria o teatro da minha vitória. Poderia ter escolhido um mais cômodo: porque neste mesmo quarto havia uma otomana. Mas notei que em face dela estava um retrato do marido; e receei, confesso-o, que, com esta mulher tão singular, um simples olhar *Cartas CXX e CXXIII.
lançado por acaso para aquele lado bastasse para destruir num ápice o resultado de tantos esforços. Ficamos finalmente sós e entrei no assunto. Depois de explicar, em poucas palavras, que o padre Anselmo a devia ter informado do motivo da minha visita, queixei-me do tratamento rigoroso a que fora submetido; e acentuei particularmente o desprezo que me tinha sido testemunhado. Defendeu-se, como esperava; e, como certamente calcula, apresentei como provas a desconfiança e o medo que eu inspirara; a fuga escandalosa que se seguira, a recusa de responder às minhas cartas, de as receber até, etc., etc. Quando começou a justificação, que seria bem fácil, julguei dever interrompê-la; e para me fazer perdoar por esta brusquidão, cobri-a logo de lisonjas. "Se tais encantos", recomecei eu, "produziram uma impressão tão profunda sobre o meu coração, as vossas virtudes não fizeram menos sobre a minha alma. Seduzido, sem dúvida, pelo desejo de me aproximar, atrevi-me a julgar-me digno delas. Não vos censuro por terdes sido de opinião diferente; mas castigo-me pelo meu erro. Como
o embaraço a forçasse ao silêncio, continuei: "Desejei, senhora, ou justificar-me aos vossos olhos, ou obter o vosso perdão pelos erros que me atribuís, a fim de poder ao menos terminar com alguma tranqüilidade uma vida a que já não dou valor, desde que vos recusastes embelezá-la." Aqui tentou responder. "O meu dever não me permitia..." E a dificuldade de terminar a mentira que o dever lhe exigia não a deixou acabar a frase. Recomecei então no tom mais terno: "É então verdade que foi de mim que fugistes?" - "Aquela partida era necessária." - "E também que me afastais de vós?" - "Assim é preciso." - "E para sempre?" - "É o meu dever." Desnecessário se torna dizer-lhe que, durante este curto diálogo, a voz da terna devota estava opressa e que os seus olhos não se erguiam para mim. Julguei dever animar um pouco esta cena esmo recente; assim, levantando-me com ar de despeito, disse então: "A vossa firmeza devolve-me a minha. Pois bem, senhora, ficaremos separados sim; mais separados até do que pensais, e tereis então todo o tempo para vos felicitardes da vossa obra." Um pouco, surpreendida por este tom de censura, quis replicar. "A resolução que haveis tomado", disse ela... "É apenas o efeito do desespero", acrescentei com ímpeto. "Quisestes fazer-me infeliz; provar-vos-ei que o haveis conseguido para além mesmo dos vossos desejos." "Desejo a vossa felicidade", respondeu. E o tom da voz começava a anunciar uma emoção assaz forte. Assim, lançando-me aos seus pés, e com o tom dramático que me, conhece, exclamei: "Ah, cruel! Como pode existir para mim uma felicidade se vós a não compartilhardes? Como encontrá-la longe de vós? Ah, nunca, nunca!" Confesso que, abandonando-me a este ponto, contara imenso com o auxílio das minhas lágrimas; mas, ou por má disposição, ou talvez apenas por efeito da atenção penosa e contínua que prestava a tudo, foi-me impossível chorar. Por felicidade recordei-me que para subjugar uma mulher todos os meios são bons; e que bastava impressioná-la com um forte arrebatamento, para que a impressão permanecesse profunda e favorável. Supri então a falta de sensibilidade pelo terror; e para tal, mudando apenas a inflexão da voz, e mantendo a mesma atitude, continuei: "Sim, faço este juramento a vossos pés: ou vos possuo ou morro." Ao pronunciar estas últimas palavras, os nossos olhares encontraram-se. Não sei o que a tímida criatura viu ou julgou ver nos meus; mas levantou-se com ar assustado e escapou-se dos meus braços que a rodeavam. Verdade seja que nada fiz para a reter, porque já notara várias vezes que as cenas de desespero, conduzidas com demasiada vivacidade, caem no ridículo quando se tornam longas ou quando só deixam saídas verdadeiramente trágicas, coisa que eu estava muito longe de desejar. Entretanto, enquanto ela se esquivava, acrescentei num tom baixo e sinistro, mas de maneira a poder ser ouvido: "Pois bem! A morte!"
Levantei-me então; e, guardando um momento de silêncio, lançava sobre ela, como por acaso, olhares selvagens, que lá por parecerem alucinados nem por isso eram menos clarividentes e observadores. O porte pouco seguro, a respiração apressada, a contração dos músculos, os braços trêmulos e meio levantados, tudo me provava que o efeito fora tal como o desejava mas, como no amor só de perto algo se concretiza, e como estávamos um pouco afastados um do outro, era necessário antes do mais que nos aproximássemos. Para o conseguir, passei o mais rapidamente possível a uma aparente tranqüilidade, propícia para acalmar os efeitos desta situação violenta, mas sem lhe enfraquecer a impressão. A minha transição foi: "Sou um infeliz. Quis viver para a vossa felicidade, e estraguei-a. Consagrei-me à vossa tranqüilidade, e perturbo-a." Em seguida, com um ar calmo mas constrangido: "Perdão, senhora, pouco habituado às tempestades das paixões, não sei reprimirlhes os ímpetos. Se fiz mal em deixar-me levar por eles, pensai ao menos que é a última vez. Ah, acalmai-vos, acalmai-vos, peço-vos.. E durante esta longa frase, aproximei-me insensivelmente. "Se quereis que me acalme, respondeu a bela amedrontada, "estai também mais tranqüilo". "Pois bem! Sim, prometo-vos", disse-lhe eu. E acrescentei com uma voz mais fraca: "Se o esforço é grande, ao menos não será longo. Mas", acrescentei logo com um ar alucinado, "vim, não é verdade, para restituir as vossas cartas? Por piedade, dignai-vos aceitá-las. É mais um sacrifício que me resta fazer; não me deixeis nada que me possa diminuir a coragem. E tirando do bolso a preciosa coleção, disse: "Eis o enganador testemunho das afirmações da vossa amizade! Era o que me prendia à vida; tomai-o. Dai pois vós mesma o sinal que nos deve separar para todo o sempre." Aqui, a amante receosa cedeu inteiramente à sua meiga inquietação. "Mas, senhor de Valmont, que tendes, que quereis dizer? O passo que hoje destes não é voluntário? Não é o fruto das vossas próprias reflexões? E não são elas que vos levaram a aprovar a atitude absolutamente necessária que tomei por dever? "Pois bem!", disse eu, "essa atitude impede-me uma decisão." "Qual!?" - "A única que pode, ao mesmo tempo que me separa de vós, pôr fim aos meus tormentos." - "Mas, respondei-me, que decisão é?" Neste ponto, apertava-a nos meus braços, sem que ela se defendesse; e calculando, por este esquecimento do decoro, quanto a emoção devia ser forte e poderosa: "Mulher adorável", disse eu, ousando o entusiasmo, "não fazeis idéia do amor que inspirais. Nunca sabereis até que ponto fostes adorada, e como este sentimento me era mais caro que a minha existência! Que os vossos dias sejam afortunados e tranqüilos; que se embelezem com toda a felicidade de que me haveis privado! Retribuí ao menos este desejo sincero com um remorso, uma
lágrima; e crede que o último dos meus sacrifícios não será o mais doloroso para o meu coração. Adeus." Enquanto falava assim, sentia o seu coração palpitar com violência; observava-lhe a alteração do rosto; sobretudo via as lágrimas sufocá-la, e no entanto só corriam raras e penosas. Só então tomei a decisão de fingir afastar-me; mas agarrando-me com força: "Não, escutai-me", disse ela vivamente. "Deixai-me", respondi. "Tendes de me escutar, quero que me escuteis." "Devo afastar-me de vós!" - "Não!", gritou ela... Com esta última palavra lançou-se, ou antes, caiu desmaiada nos meus braços. Como duvidava ainda de tão feliz êxito, fingi um grande susto; mas ao mesmo tempo, conduzi-a, ou melhor, levei-a ao colo para o local precedentemente escolhido como terreno da minha glória; e com efeito, quando voltou a si já estava abandonada e submetida ao seu feliz vencedor. Até aqui, minha bela amiga, achar-me-á, creio, duma pureza de método que lhe agradará; e verá que não me afastei em nada dos verdadeiros princípios desta guerra, que já muitas vezes notáramos ser tão parecida com a outra. Compare-me pois com Turenne ou Frederico. Obriguei a combater um inimigo que queria apenas contemporizar; consegui, por meio de sábias manobras, escolher o terreno e a disposição das forças; inspirei confiança ao inimigo para mais facilmente o poder alcançar no seu esconderijo; nada deixei ao acaso, considerando o valor que teria o triunfo e a necessidade de reservar uma saída em caso de derrota; finalmente, só abri as hostilidades quando já tinha uma retirada assegurada, de forma a poder proteger e conservar tudo o que conquistara anteriormente. Eis, creio, tudo o que é possível fazer; mas receio agora ter-me deixado amolecer, como Aníbal pelas delícias de Cápua. Eis o que aconteceu depois. Esperava evidentemente que um tão grande acontecimento não se passaria sem as lágrimas e o desespero do costume; ora notei a princípio sobretudo um estado de confusão e uma espécie de recolhimento; mas atribuí ambos à sua pudicícia, assim, sem me preocupar com estas ligeiras diferenças, que supus meramente locais, enveredei pela grande estrada das consolações, convencido de que, como de costume, as sensações ajudariam o sentimento, e que uma só ação fazia mais do que todas as palavras, que eu, porém, não deixava de lado. Mas encontrei uma resistência verdadeiramente assustadora, menos pela sua força do que pela forma que revestia. Imagine uma mulher sentada, rígida, rosto imóvel; sem aspecto de pensar, ouvir ou compreender; de cujos olhos fitos as lágrimas deslizam continuamente e sem esforço. Assim estava Madame de Tourvel enquanto eu lhe falava; mas se eu tentava chamar-lhe a atenção para mim por meio duma carícia, mesmo pelo gesto mais inocente, a esta aparente apatia sucedia imediatamente o terror, a sufocação, as convulsões, e alguns gritos entrecortados, mas sem articular uma palavra.
Estas crises repetiram-se várias vezes, e cada vez mais fortes; a última foi mesmo tão violenta que fiquei inteiramente desanimado, e receei por momentos ter obtido uma vitória inútil. Recorri então aos lugares-comuns do costume, entre os quais se encontrava este: "Desesperais-vos porque me haveis feito feliz?" A estas palavras, a adorável mulher voltou-se para mim; e o rosto, se bem que ainda um pouco alucinado, já tinha no entanto retomado a sua expressão celestial. "Sois pois feliz?" Afirmei com mais força ainda. "E feliz por minha causa!" Multipliquei as lisonjas e as meiguices. Enquanto eu falava os membros distenderam-se-lhe; tombou com moleza, apoiada contra o sofá; e abandonando-me uma das mãos de que ousara apossar-me, disse: "Sinto que essa idéia me consola e alivia." Calcula certamente que uma vez colocado no bom caminho, não o voltei a abandonar; era realmente o que tinha a fazer. Assim, quando quis tentar um segundo êxito, encontrei a princípio certa resistência, e o que se passara anteriormente tornou-me circunspeto. Mas chamando de novo em meu auxílio aquela mesma idéia da minha felicidade, verifiquei logo o seu efeito benéfico: "Tendes razão", disse-me a meiga criatura; "só posso suportar a minha existência na medida em que ela servir para vos fazer feliz. Vou-me consagrar inteiramente a isso: a partir deste momento entrego-me, e nunca mais encontrareis da minha parte nem recusas, nem remorsos." Foi com esta ingênua e sublime candura que me abandonou a sua pessoa e os seus encantos, e aumentou assim a minha felicidade ao compartilhá-la. A embriaguez foi completa e recíproca; e, pela primeira vez, a minha sobreviveu ao prazer. Ao sair dos braços dela caía-lhe aos pés, jurando-lhe amor eterno; e, é preciso confessá-lo, eu acreditava no que dizia. Enfim, mesmo depois de nos termos separado, a sua lembrança não me deixava, e tive de fazer um esforço para a esquecer. Ah, por que não está aqui para equilibrar o mérito da ação pelo da recompensa? Mas não perderei nada por esperar, não é verdade? E espero poder considerar como assente entre nós o feliz acordo que lhe propus na minha última carta. Bem vê que cumpro a minha parte, e que, como lhe prometi, os meus assuntos estarão suficientemente avançados para lhe poder dedicar uma parte do meu tempo. Apressese a despachar esse estorvo do Belleroche, e deixe em paz o dulçoroso Danceny, para se ocupar apenas de mim. Mas o que faz no campo, que nem sequer me responde? Sabe que tenho vontade de lhe ralhar? Mas a felicidade predispõe à indulgência. E não esqueço, aliás, que ao colocar-me de novo no número dos seus apaixonados, devo submeter-me às suas pequenas fantasias. Lembre-se, porém, de que o novo amante nada quer perder dos antigos direitos do amigo... Adeus, como outrora... Sim, adeus, meu anjo! Envio-te todos os beijos do amor.
P. S. - Sabe que Prévan ao fim do seu mês de prisão foi obrigado a abandonar o regimento? É a novidade do dia em Paris. Na verdade, eilo cruelmente punido por uma patifaria que não cometeu, e a minha amiga obteve um êxito completo! Paris, 29 de Outubro de 17* *.
CARTA CXXVI MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL Ter-vos-ia respondido mais cedo, minha amável filha, se a fadiga da minha última carta me não tivesse provocado dores que me impediram durante estes dias de poder utilizar o braço. Estava desejando agradecer-vos as boas notícias que me destes do meu sobrinho, e de vos dar, a vós, as minhas sinceras felicitações. Temos de ver nisto um golpe da Providência, que, tocando um, salvou o outro. Sim, minha querida filha, Deus que queria apenas experimentar-vos, socorreu-vos no momento em que as vossas forças estavam esgotadas; e apesar do vosso queixume, deveis, creio, prestarLhe ações de graças. Não é que eu não veja muito bem que seria mais agradável para vós que tivésseis sido a primeira a tomar essa resolução, e que a de Valmont fosse apenas a seqüência; parece-me até, falando humanamente, que os direitos do nosso sexo teriam sido assim mais resguardados, e nós não queremos perder nenhum! Mas que interessam essas considerações ligeiras perante os importantes objetivos que se encontram realizados? Vemos alguém que se salva dum naufrágio queixar-se por não ter podido escolher o meio? Sentireis em breve, minha querida filha, que as penas que temeis se hão-de aligeirar por si próprias; e mesmo que subsistissem sempre e com a mesma agudeza, não deixaríeis por isso de sentir que seriam ainda mais fáceis de suportar que os remorsos do crime e o desprezo por si própria. Inutilmente vos teria falado mais cedo com esta aparente severidade: o amor é um sentimento independente, que a prudência pode fazer evitar, mas que não sabe vencer; e que, uma vez nascido, morre apenas ou de morte natural, ou pela ausência absoluta de esperança. É este último caso, no qual vos encontrais, que me dá a ousadia e o direito de vos dizer livremente a minha opinião. É cruel assustar um doente desesperado, a quem só se devem consolações e paliativos, mas é sensato esclarecer um convalescente sobre os perigos que correu, para lhe inspirar a prudência de que necessita e a submissão aos conselhos que lhe podem ser necessários. Visto que me escolhestes como médico, é como tal que vos falo, e que vos digo que os incomodozinhos que sentis agora, e que talvez necessitem ainda alguns remédios, nada são comparados com a
doença alarmante de que está agora assegurada a cura. E em seguida como amiga, amiga duma mulher razoável e virtuosa, permitir-me-ei acrescentar que essa paixão, que vos subjugou, paixão tão infeliz em si própria, era-o ainda mais pelo seu objeto. A acreditar no que se diz, o meu sobrinho, que confesso amar talvez com fraqueza, e que reúne muitas qualidades louváveis e outros tantos atrativos, é perigoso para as mulheres e culpado perante elas, e para ele seduzi-las e desgraçá-las é o mesmo. Creio que o teríeis convertido. Nunca alguém foi mais digno disso, mas já tantas se gabaram do mesmo, vendo depois essa esperança desenganada, que prefiro não vos ver reduzida a esse recurso. Pensai agora, minha querida filha, que em vez de tantos perigos que correríeis, tereis, além do repouso de consciência e da tranqüilidade, a satisfação de ter sido a principal causa da feliz transformação de Valmont. Por mim, não duvido que seja grande parte trabalho da vossa corajosa resistência, e que um momento de fraqueza da vossa parte teria deixado o meu sobrinho numa danação eterna. É-me agradável pensar assim, e desejo ver-vos pensar da mesma maneira; encontrareis assim as primeiras consolações, e eu terei razões para vos amar ainda mais. Espero-vos aqui dentro de poucos dias, minha amável filha, tal como anunciais. Vinde encontrar de novo a calma e a felicidade nos mesmos lugares em que as perdestes, vinde principalmente regozijarvos com a vossa terna mãe, de terdes tão fielmente cumprido a palavra que lhe havíeis dado de nada fazer que não fosse digno dela e de vós! Castelo de..., 30 de Outubro de 17* *.
CARTA CXXVII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Se ainda não respondi, Visconde, à sua carta de 19, não foi por falta de tempo; mas simplesmente porque ela me irritou e a não achei razoável. Tinha pensado que o melhor era deixá-la no esquecimento; mas visto que insiste, que parece empenhado nas idéias que sugere, e que toma o meu silêncio por um consentimento, urge que lhe exponha claramente a minha opinião. Tive por vezes a pretensão de substituir sozinha um serralho inteiro; mas nunca aceitei fazer parte de um. Pensava que o meu amigo sabia isso. Pelo menos, neste momento, já não o ignora e julgará facilmente quanto me pareceu ridícula a sua proposta.
Pois quê! Poderia eu sacrificar uma inclinação, e para mais uma inclinação recente, para me ocupar de si? E ocupar-me como? Esperando a vez, como escrava submissa, dos sublimes favores de Sua Alteza. Quando, por exemplo, se quiser distrair por um momento desse encanto desconhecido que a adorável, a celeste Madame de Tourvel foi a única a fazer-lhe sentir, ou quando temer comprometer perante a atraente Cecília a idéia superior que ela conserve de si; então, descendo até mim, virá procurar prazeres, na verdade menos vivos, mas sem conseqüências; e as suas preciosas bondades, embora um pouco raras, bastarão para a minha felicidade. Vejo que está cheio de si, mas eu também não sou modesta; e por mais que me olhe, não me acho decaída até esse ponto. Talvez seja defeito da minha parte, mas previno-o de que possuo ainda muitos outros. Em primeiro lugar o de acreditar que o colegial, o dulçoroso Danceny, só se ocupando de mim, sacrificando-me, sem se fazer valer, uma primeira paixão, ainda antes de a ter satisfeito, e amando-me enfim como se ama na idade dele, poderia, apesar dos seus vinte anos, contribuir bem mais do que o Visconde para a minha felicidade e os meus prazeres. Permito-me mesmo acrescentar que, se me desse na fantasia a idéia de lhe dar um adjunto, não seria certamente o Visconde, pelo menos por agora. Por que razões?, perguntará. Em primeiro lugar poderia não haver nenhuma, porque o capricho que me faria preferi-lo, pode igualmente excluí-lo. Mas quero, por delicadeza, dar-lhe o motivo da minha decisão. Parece-me que teria de me fazer demasiados sacrifícios, e eu, em vez de mostrar o reconhecimento que esperaria de mim, seria capaz de julgar que ainda merecia mais! Bem vê que, tão afastados um do outro pela nossa maneira de pensar, de nenhum modo nos podemos unir; e temo que me seja necessário muito tempo, mesmo muito, antes de mudar de sentimentos. Prometo avisá-lo quando estiver corrigida. Até lá, creia-me, pode arranjar outras aventuras e guardar os seus beijos; tem muito onde empregá-los melhor!... Adeus, como antigamente, diz? Antigamente, porém, fazia muito mais caso de mim; não me limitava aos terceiros papéis e esperava que eu dissesse sim, para estar certo do meu consentimento. Aceite pois que em vez de lhe dizer também adeus, como antigamente, lhe diga adeus como agora. A sua serva, senhor Visconde. Do castelo de..., 31 de Outubro de 17* *.
CARTA CXXVIII
A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Só ontem recebi, senhora, a vossa resposta tardia. Ter-me-ia causado imediatamente a morte se a minha existência me pertencesse, mas outro a possui; e esse outro é o senhor de Valmont. Vede que nada vos escondo. Considerareis talvez que já não sou digna da vossa amizade, mas prefiro perdê-la a iludi-la. Tudo o que vos posso dizer é que, obrigada pelo senhor de Valmont a escolher entre a sua morte e a sua felicidade me decidi por esta. Não me envaideço, nem me acuso: digo simplesmente o que se passou. Podeis imaginar facilmente, depois disto, como me fez impressão a vossa carta e as severas verdades que contém não julgueis que ela tenha feito nascer em mim o remorso ou que possa transformar os meus sentimentos ou conduta. Não é que eu não passe por momentos cruéis; mas quando sinto o coração despedaçado, quando temo já não poder suportar os tormentos, penso: Valmont é feliz; e tudo desaparece perante essa idéia ou antes, tudo se transforma em prazer. Dediquei-me pois ao vosso sobrinho; foi por ele que me perdi. Tornou-se o centro único dos meus pensamentos, sentimentos e ações. A vida ser-me-á preciosa enquanto for necessária à sua felicidade, e considerá-la-ei sempre venturosa. Se algum dia ele pensar doutro modo.... não terá da minha parte nem queixas nem censuras. Já ousei imaginar esse momento fatal, e a minha decisão está tomada. Já vedes quão pouco me pode afetar o temor, que pareceis ter, de que um dia o senhor de Valmont me desgrace, porque, antes de o querer, terá cessado de amar-me; e que me importarão as vãs censuras que não ouvirei? Só ele será o meu juiz. Como terei vivido só para ele, será ele o detentor da minha memória; e se se vir obrigado a reconhecer que o amava, sentir-me-ei suficientemente justificada. Acabais, senhora, de ler o meu coração. Preferi a desgraça de perder a vossa estima, pela minha franqueza, à de me tornar indigna dela pelo aviltamento da mentira. Pensei que devia esta inteira confiança às vossas antigas bondades para comigo. Se acrescentasse uma palavra poder-vos-ia levar a suspeitar que tenho o orgulho de contar ainda com ela, quando pelo contrário me faço justiça deixando de pretendê-la. Sou com respeito, senhora, a vossa muito humilde e obediente serva. Paris, 1 de Novembro de 17* *.
CARTA CXXIX
O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Diga-me pois, minha bela amiga, donde vem esse tom de azedume e de sarcasmo que predomina na sua última carta? Que crime cometi eu, aparentemente sem dar por isso, e que tanto a irrita? Acusa-me de me ter dado ares de contar com o seu consentimento antes de o ter obtido, mas julguei que o que para os outros poderia parecer presunção, seria sinal da confiança que deposito em si; e desde quando este sentimento prejudica a amizade ou o amor? Unindo a esperança ao desejo, cedi apenas ao impulso natural que nos leva a colocar-nos sempre o mais perto possível da felicidade que buscamos; e tomou como efeito do orgulho o que era apenas o reflexo da minha ansiedade. Bem sei que é costume, nestes casos, aparentar uma dúvida respeitosa, mas sabe perfeitamente que é apenas uma fórmula, um simples protocolo; e achei-me autorizado a supor que essas precauções minuciosas não eram necessárias entre nós. Parece-me até que esta atitude franca e livre, quando fundada sobre uma antiga ligação, é preferível às insípidas meiguices, que tão frequentemente tornam o amor desenxabido. De resto, o valor que vejo nesta atitude talvez resulte apenas daquele que atribuo à felicidade que ela me lembra, mas por isso mesmo, ser-me-ia penoso vê-la discordar de mim. Eis o único erro que suponho ter cometido: porque não imagino que pudesse ter pensado seriamente que existisse uma mulher no mundo que me parecesse preferível a si; e, ainda menos, que tenha podido apreciá-la tão mal como finge crer. Diz-me a este respeito que olhou para si própria e que não se encontrou decadente a esse ponto. Disso estou certo, e prova apenas que o seu espelho é fiel. Mas não poderia ter concluído, com mais facilidade e justiça, que eu não iria pensar isso de si ? Procuro em vão a causa de tão estranha idéia. Parece-me no entanto que ela resulta, mais ou menos, dos elogios que fiz a outras mulheres. Deduzo-o pelo menos da sua afetação em salientar os epítetos de adorável, celeste, atraente, de que me servi ao falar-lhe em Madame de Tourvel e na pequena Volanges. Mas não sabe que estas palavras, mais escolhidas ao acaso que por reflexão, exprimem menos a opinião que se tem da pessoa, do que a situação em que nos encontramos quando dela falamos? E se, no próprio momento em que me sentia tão vivamente afetado, quer por uma quer por outra, eu não a desejava menos; se lhe dava a preferência sobre ambas, visto que enfim não poderia renovar a nossa ligação senão em prejuízo das outras duas, não vejo que isso fosse motivo de grande censura. Não me será mais difícil justificar-me do encanto desconhecido, com que parece ter ficado também um pouco chocada, porque, antes do mais, nem sempre as sensações desconhecidas são as mais
fortes. Oh, quem poderia levar a melhor sobre os deliciosos prazeres que só a minha amiga sabe tornar sempre novos, e cada vez mais vivos? Quis portanto apenas dizer que aquele encanto era dum gênero que ainda não tinha experimentado; mas sem pretender atribuir-lhe qualquer classificação; e acrescentei, o que hoje repito, que o saberei combater e vencer. E nisto aplicarei todo o meu zelo, se vir nesse ligeiro trabalho uma homenagem a oferecer-lhe. Quanto à pequena Cecília creio inútil falar dela. Foi a seu pedido que me encarreguei dessa criança, e só espero a sua ordem de partida para me pôr ao largo. Notei a ingenuidade e a frescura dela; achei-a atraente por momentos porque nos comprazemos sempre na nossa obra, mas não possui consistência suficiente para prender as atenções. Agora, minha bela amiga, apelo para o seu senso de justiça, para as suas primeiras bondades para comigo; para a longa e perfeita amizade, para a inteira confiança que depois estreitaram ainda mais os laços que nos uniam, mereci porventura o tom rigoroso que tomou para comigo? Mas como lhe será fácil compensar-me quando quiser! Uma palavra sua apenas, e verá se existem encantos e afeições que me retenham um só minuto. Voaria para os seus braços, e provar-lhe-ia, mil vezes e de mil maneiras, que é, que será sempre, a verdadeira soberana do meu coração. Adeus, bela amiga; espero a sua resposta com toda a ansiedade. Paris, 3 de Novembro de 17* *.
CARTA CXXX MADAME DE ROSEMONDE À PRESIDENTE DE TOURVEL Por que motivo, minha querida, já não quereis ser minha filha? Por que é que pareceis comunicar-me que vai acabar a correspondência entre nós? É para me castigar de não ter adivinhado o que era tão pouco verossímil? Ou desconfiais que vos afligi voluntariamente? Não, conheço demasiado o vosso coração para crer que assim possa julgar o meu. Desta forma o desgosto em que me mergulhou a vossa carta é muito menos por minha causa do que por vós! Ó minha jovem amiga! Digo-vos com tristeza; mas sois demasiado digna de ser amada, para que alguma vez o amor vos torne feliz.
Ah! Qual foi a mulher verdadeiramente delicada e sensível que não encontrou o infortúnio nesse mesmo sentimento que lhe parecia anunciar tanta felicidade! Saberão os homens apreciar a mulher que possuem? Alguns haverá honestos no procedimento e constantes na afeição, mas, mesmo entre esses, quão poucos se sabem elevar à altura do nosso coração! Não penseis, minha querida filha, que o amor deles seja igual ao nosso. Experimentam a mesma loucura; muitas vezes entregam-se-lhe com mais arrebatamento; mas desconhecem este zelo inquieto, esta delicada solicitude, que nos obriga a cuidados ternos e contínuos, cujo único fim é sempre o objeto amado. O homem goza com a felicidade que sente, e a mulher com a que proporciona. Esta diferença, tão importante e tão pouco notada, influi no entanto, de modo bem palpável, na totalidade das respectivas condutas. O prazer de um consiste em satisfazer os seus desejos, o da outra, principalmente, em os fazer nascer. Agradar é para ele um meio de chegar ao triunfo; enquanto para ela é o próprio triunfo. E a coqueteria, tantas vezes censurada às mulheres, representa apenas o exagero desta forma de sentir e prova a sua verdade. Enfim, o gosto exclusivo, que caracteriza particularmente o amor, é no homem apenas uma preferência, que serve, quando muito, para graduar um prazer, que um outro objeto enfraqueceria talvez mas não destruiria; enquanto nas mulheres é um sentimento profundo, que não só destrói todo o desejo estranho, mas que, mais forte do que a natureza, e independente até do domínio dela, só as deixa experimentar repugnância e desgosto, onde pareceria dever nascer a voluptuosidade. E não deveis pensar que as exceções, mais ou menos numerosas, que seja possível citar, se oponham com êxito a estas verdades comuns! Estão até confirmadas pelo consenso geral, que distinguiu, apenas para os homens, a infidelidade da inconstância, distinção de que se orgulham, em vez de por ela se sentirem humilhados; e que, no nosso sexo, só foi adotado por essas mulheres depravadas que fazem a vergonha dele, e para quem todos os processos são bons, a fim de se salvarem da penosa sensação da sua baixeza. Julguei, minha querida filha, que podia ser-vos útil ter estas reflexões a opor às idéias quiméricas duma felicidade perfeita, com que o amor ilude sempre a nossa imaginação; esperança enganadora, a que nos conservamos presas, mesmo quando nos vemos forçadas a abandoná-la, e cuja perda agrava e multiplica os desgostos já demasiado reais duma viva paixão! Este papel de vos suavizar as dores, de lhes diminuir o número, é o único que quero, que posso desempenhar neste momento. Nos males sem remédio, os conselhos só podem incidir sobre o regime a seguir. Peço-vos somente que vos lembreis que lamentar um doente não é censurá-lo. Oh, quem somos nós para nos censurarmos uns aos outros? Deixemos o direito de julgar Àquele que lê nos corações; e tenho a ousadia de acreditar que, aos
seus olhos paternais, uma multidão de virtudes pode resgatar uma fraqueza. Mas, suplico-vos, minha querida amiga, evitai sobretudo essas resoluções violentas, que não mostram força mas antes um desânimo completo, não esqueçais que, tornando um outro possuidor da vossa existência, para me servir da vossa expressão, não pudestes contudo privar os vossos amigos do que já antes possuíam, e que nunca cessarão de reclamar. Adeus, minha querida filha, lembrai-vos às vezes da vossa terna mãe, e crede que sereis sempre, e acima de tudo, o objeto dos seus mais queridos pensamentos. Castelo de..., 4 de Novembro de 17* *.
CARTA CXXXI A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Até que enfim, Visconde; desta vez estou mais contente consigo do que da outra; e agora, falemos amigavelmente, espero convencê-lo de que, tanto para si como para mim, o acordo que parece desejar seria uma verdadeira loucura. Nunca reparou que o prazer, que é com efeito o único fim de reunião dos dois sexos, não basta no entanto para os unir? E que, se é precedido do desejo que aproxima, é também seguido do alheamento que afasta? Uma lei da natureza, que só o amor pode transformar; e o amor; é possível senti-lo quando se quer? No entanto é sempre necessário; e seria na verdade embaraçoso, se se não tivesse notado que felizmente bastava que existisse dum lado. A dificuldade tornou-se de metade do tamanho, e nem sequer há muito a perder; com efeito um goza a felicidade de amar, o outro a de agradar, um pouco menos viva na verdade, mas a que se junta o prazer de trair, o que provoca o equilíbrio; enfim, tudo se arranja. Mas, diga-me, Visconde, qual de nós dois se encarregará de trair o outro? Conhece a história dos dois batoteiros, que se reconheceram durante o jogo, nada conseguiremos, disseram paguemos as despesas a meias; e abandonaram a partida. Sigamos, creia-me, este exemplo prudente, e não percamos juntos um tempo que podemos empregar tão bem algures. Para lhe provar que penso tanto no seu interesse como no meu, e que não procedo assim nem por irritação nem por capricho, não lhe recuso o prémio combinado entre nós, de resto bem vejo que uma única noite nos bastará; e tenho a certeza de que saberemos tão bem embelezá-la, que a veremos findar com pena. Mas não esqueçamos
que essa mágoa é necessária à felicidade; e por mais doce que seja a nossa ilusão, não vamos acreditar que possa ser durável. Como vê, resigno-me, e isto sem que o Visconde tenha ainda cumprido a obrigação que tinha para comigo, porque enfim, devia terme dado a primeira carta da celeste pudibunda; e no entanto, ou porque ela representa algo para si, ou porque esqueceu as condições do contrato, que talvez o interesse menos do que me pretende fazer crer, não recebi nada, absolutamente nada. No entanto, ou me engano muito, ou a terna devota deve escrever bastante, pois em que se há de ocupar quando está só? Certamente que não tem ânimo para se distrair. Como vê, teria se quisesse algumas censuras a fazer-lhe; mas deixo-as em silêncio, para compensar um pouco da irritação que pus talvez na minha última carta. E agora, Visconde, só me resta fazer-lhe um pedido; e é tanto por si como por mim: é o de adiar o momento que também desejo muito, mas que me parece dever ser retardado até ao meu regresso à cidade. Por um lado, aqui não teríamos a necessária liberdade; e, por outro, eu correria um risco: porque bastaria um pouco de ciúme para prender sem remédio este triste Belleroche, que no entanto agora parece estar por um fio. Vejo bem que ele já se esforça para continuar a amar-me; e eu ponho por vezes tanta malícia como prudência nas carícias com que o sobrecarrego. Ao mesmo tempo, bem vê que não seria um sacrifício digno de si! Uma infidelidade recíproca dará um encanto bem mais picante. Sabe que às vezes lamento que estejamos reduzidos a estes recursos? No tempo em que nos amávamos, porque creio que era amor, eu era feliz; e o Visconde? Mas porque ocupar-me ainda duma felicidade que não volta? Não, por mais que diga, o regresso é impossível. Em primeiro lugar, exigirei sacrifícios que não poderia ou não quereria fazer-me, e que eu talvez não mereça; e depois, como prendê-lo? Oh, não, não, nem quero pensar nisso; e apesar do prazer que acho em escrever-lhe, prefiro deixá-lo bruscamente. Adeus, Visconde. Castelo de..., 6 de Novembro de 17* *.
CARTA CXXXII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Comovida pelas vossas bondades para comigo, senhora, teria repousado inteiramente nelas se me não retivesse de algum modo o receio de as profanar, aceitando-as. Por que motivo é que sou forçada
a considerá-las tão preciosas, no próprio momento em que já não me sinto digna delas? Ah, mas ousarei pelo menos testemunhar-vos o meu reconhecimento; admirarei, sobretudo, essa indulgência da virtude, que só conhece as nossas fraquezas para se apiedar, e cujo poderoso encanto exerce sobre os corações uma influência tão doce e tão forte, mesmo comparada com o encanto do amor. Mas essa amizade, merecê-la-ei ainda quando já não basta para a minha felicidade? Posso dizer o mesmo dos vossos conselhos; aprecio-lhes o valor e não os posso seguir. E como não acreditar numa felicidade perfeita, quando a experimento neste momento? Sim, se os homens são tal como dizeis, é necessário fugir-lhes, são odiosos; mas como Valmont está longe de se lhes assemelhar! Se tem como eles essa violência da paixão, a que chamais arrebatamento, é nele ultrapassada pelo excesso da sua delicadeza! Oh, minha amiga, falaisme de partilhar as minhas penas, regozijai-vos então com a minha felicidade; é ao amor que a devo, e o objeto dele aumenta-lhe o valor. Amais o vosso sobrinho, dizeis, talvez por fraqueza. Ah, se o conhecêsseis como eu! Amo-o idolatradamente, e muito menos do que ele merece. Deixou-se sem dúvida arrastar para alguns erros, ele próprio concorda; mas quem conheceu como ele o verdadeiro amor? Que mais posso dizer? Sente-o com a mesma força com que o inspira. Irei julgar que esta é uma das idéias quiméricas com que o amor ilude sempre a nossa imaginação, mas nesse caso, por que se teria tornado mais terno, mais solícito, agora que nada mais tem a obter? Confesso que antes lhe notava um ar de reflexão de reserva, que raramente abandonava, é que muitas vezes me recordava, mesmo sem querer, as falsas e cruéis impressões que me haviam dado acerca dele. Mas desde que se pode entregar sem constrangimento aos movimentos do seu coração, parece adivinhar todos os desejos do meu. Quem sabe se não nascemos um para o outro? Se me não estava reservada a felicidade de lhe ser necessária? Ah, se é uma ilusão, que eu morra antes que ela acabe. Mas não; quero viver para o amar, para o adorar. Por que deixaria de amar-me? Que outra mulher o poderia tornar mais feliz do que eu? E, sinto-o por mim, a felicidade que damos é a mais forte cadeia, a única que prende verdadeiramente. Sim, é este sentimento delicioso que enobrece o amor, que o purifica e o torna digno de uma alma terna e generosa, como a de Valmont. Adeus, minha querida, respeitável e indulgente amiga. Quereria demorar mais tempo a escrever-vos; mas chegou a hora em que ele me prometeu vir, e qualquer outra idéia me abandona. Perdão! Mas sei que desejais a minha felicidade; e é tão grande neste momento que me abandono totalmente a ela. Paris, 7 de Novembro de 17* *.
CARTA CXXXIII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Quais são pois, minha bela amiga, esses sacrifícios que me julga incapaz de fazer, e cujo prémio seria afinal agradar-lhe? Ah! Dê-mos somente a conhecer, e, se hesitar em lhos oferecer permito-lhe que recuse as minhas homenagens. Que julga de mim desde há algum tempo, se, mesmo quando é indulgente, ainda continua a duvidar dos meus sentimentos ou da minha energia? Sacrifícios que eu não poderia ou não queria fazer! Supõe-me então apaixonado, dominado? E o valor que dei ao triunfo, suspeita que o atribuo à pessoa? Ah, graças ao Céu, não estou ainda reduzido a isso, e guardo-me para lho provar. Sim, prová-lo-ei, mesmo que seja com Madame de Tourvel. Seguramente, depois disso, não lhe ficarão dúvidas. Foi-me possível, julgo que sem me comprometer, conceder algum tempo a uma mulher, que tem pelo menos o mérito de ser dum gênero que raramente se encontra. Talvez também a estação morta em que veio esta aventura me tenha levado a entregar-me com mais entusiasmo; e agora que o grande movimento mal recomeça, não é de admirar que ela me ocupe ainda quase inteiramente. Pense no entanto que ainda não há oito dias que gozo o fruto de três meses de trabalhos. Tantas vezes me demorei mais tempo com o que valia muito menos e não me custara tanto! E nunca a minha amiga me julgou mal por isso. Mais ainda, quer saber a verdadeira causa da solicitude que emprego? Ei-la. Esta mulher é naturalmente tímida; durante os primeiros dias duvidava sem cessar da sua felicidade, e essa dúvida bastava para a perturbar, de forma que só agora começo a poder observar até onde vai o meu poder nesse campo. Eis uma coisa que ardia em curiosidade por saber; e a oportunidade não é tão fácil de encontrar como se julga. Em primeiro lugar, para muitas mulheres, o prazer é apenas o prazer e nada mais do que isso; e para essas, seja qual for o título que nos concedam, somos simples criados, puros moços de recados, cujo mérito reside apenas na atividade, e entre os quais o que mais faz é sempre o que faz melhor. Numa outra classe, talvez hoje a mais numerosa, a celebridade do amante, o prazer de o ter arrebatado a uma rival, o receio de que por sua vez lhe seja roubado, ocupa quase inteiramente as mulheres, nós contribuímos, claro, mais ou menos para esta felicidade de que gozam; mas ela depende mais das circunstâncias do que da pessoa. Vem-lhes por nós, mas não de nós. Precisava por isso de encontrar, para as minhas observações, uma mulher delicada e sensível, que se dedicasse unicamente ao amor, e que, no próprio amor, visse só o amante; cuja emoção, não seguindo o caminho habitual, partisse sempre do coração para os sentidos; já a
vi, por exemplo (e não falo do primeiro dia), sair do prazer toda chorosa, e um instante depois reencontrar a voluptuosidade numa palavra que respondia à sua alma. Enfim, era necessário ainda acrescentar essa natural candura, tornada invencível de tanto se lhe entregar, e que lhe não permite esconder nenhum dos sentimentos do coração. Ora, concordará que tais mulheres são raras; e julgo mesmo que, sem esta, nunca me teria sido dado encontrar nenhuma. Não será pois de estranhar se ela me prender mais tempo do que qualquer outra; e se a observação que quero fazer sobre ela exige que a torne feliz, inteiramente feliz, por que me recusaria eu a tal, tanto mais que isso serve os meus planos, em vez de os contrariar? Mas por que o espírito se encontra ocupado, segue-se-lhe que o coração seja escravo? Não, sem dúvida. Mas o valor que não deixo de atribuir a esta aventura não me impedirá de me entregar a outras, ou mesmo de a sacrificar a algumas mais agradáveis. Sinto-me de tal modo livre que nem sequer descurei a pequena Volanges, a quem afinal dou tão pouca importância. A mãe trá-la para a cidade dentro de três dias; e desde ontem que arranjei maneira de assegurar as minhas comunicações: uma gratificação ao porteiro, e umas bugigangas à mulher, resolveram o assunto. E imaginar que Danceny não soube encontrar um processo tão simples! E ainda dizem que o amor nos torna inventivos! Pelo contrário, embrutece aqueles que domina. E pensa que me não saberei defender? Ah! Esteja tranqüila. Vou já, dentro de poucos dias, enfraquecer, partilhando-a, a impressão talvez demasiado viva que experimentei; e se uma só partilha não bastar, multiplicá-las-ei. Mas estarei pronto a entregar a jovem colegial ao seu discreto amante, logo que a minha amiga o julgue oportuno. Parece-me que já não tem razões para o impedir; e eu consinto em prestar esse insigne serviço ao pobre Danceny. É, na verdade, o mínimo que lhe devo por todos os que me prestou. Está agora numa grande inquietação por saber se será recebido em casa de Madame de Volanges. Vou-o acalmando o melhor que posso, assegurando-lhe que, dum ou doutro modo, o tornarei feliz na primeira oportunidade, e enquanto espero, continuo a ocupar-me da correspondência, que ele quer recomeçar logo após a chegada da sua Cecília. Já tenho seis cartas dele, e ainda receberei mais uma ou duas antes desse dia feliz. É preciso que o rapaz esteja muito desocupado! Mas deixemos esse par infantil, voltemos a nós; que eu possa ocupar-me unicamente da tão doce esperança que me deu a sua carta. Sim, prender-me-á, sem dúvida; nem lhe perdoaria se duvidasse. Alguma vez deixei de lhe ser constante? Os nossos laços foram desfeitos, mas não quebrados; a nossa pretensa ruptura foi um erro da nossa imaginação, os nossos sentimentos e interesses mantiveram-se unidos. Tal como o viajante que regressa desenganado, reconhecerei que
deixara a felicidade para perseguir a esperança; e direi como d'Hancourt: -Plus je vis d'étrangers, plus j'amai ma patrie.* Não fuja mais à idéia, ou antes, ao sentimento que a reconduz até mim; e depois de termos provado todos os prazeres nas nossas diversas incursões, regozijemo-nos com a felicidade de sentir que nenhum deles é comparável ao que experimentáramos e que reencontraremos mais delicioso ainda. Adeus, encantadora amiga. Acedo em esperar pelo seu regresso, mas apresse-o e não esqueça que o desejo muito. Castelo de..., 11 de Novembro de 17* *.
*Quanto mais vi o estrangeiro, mais amei a minha pátria.
CARTA CXXXIV A MARQUESA DE MERTEUiL AO VISCONDE DE VALMONT Na verdade o Visconde é como as crianças, diante de quem não se pode dizer nada e a quem não se pode mostrar nada, que não desejem imediatamente! Bastou passar-me uma simples idéia pela cabeça, à qual, aliás, o preveni de que não queria prestar atenção, e foi o bastante para que tentasse prender-me a ela, quando eu a procurava esquecer, querendo, por assim dizer, obrigar-me a compartilhar os seus estouvados desejos! Acha generoso da sua parte deixar-me carregar sozinha o fardo da prudência? Torno a dizer-lho, e repito-o a mim própria mais frequentemente ainda, o acordo que me propõe é realmente impossível. Ainda que o Visconde pusesse no assunto toda a generosidade que me mostra neste momento, não acredita que eu tenha também as minhas suscetibilidades, e não queira aceitar sacrifícios que prejudiquem a sua felicidade? Ora, não será verdade, Visconde, que se ilude quanto ao sentimento que o prendeu a Madame de Tourvel? É amor, ou esse sentimento nunca existiu: nega-o de cem maneiras mas prova-o de mil. O que é, por exemplo, esse subterfúgio de que se serve para consigo mesmo, porque acredito que seja sincero comigo, e que o leva a atribuir ao prazer de observar, o desejo, que não pode esconder nem combater, de conservar essa mulher? Não parecerá que nunca fez nenhuma outra feliz perfeitamente feliz? Ah! Se duvida, tem a memória bem curta! Mas não, não se trata de nada disto. Muito simplesmente o coração ilude-lhe o espírito, e obriga-o a recorrer a fracas justificações; mas eu, que não tenho
nenhum interesse em enganar-me a mim própria, não sou tão fácil de contentar. É o caso que, notando embora a delicadeza que o levou a suprimir cuidadosamente todas as palavras que imaginou pudessem ter-me desagradado, vi no entanto que, talvez sem dar por isso, conservava as mesmas idéias. Com efeito, já não se trata da adorável, da celeste Madame de Tourvel, mas é ainda uma mulher espantosa, uma mulher delicada e sensível, e isto, com exclusão de todas as outras; uma mulher rara, enfim, e como não se encontra outra igual. O mesmo se passa com o tal encanto desconhecido, que não é o mais forte. Pois bem, seja: mas visto que até aqui nunca o tinha encontrado, é bem de crer que não o volte a encontrar no futuro, e que a sua perda seja irreparável. Ora, ou isto são sintomas infalíveis de amor, ou então temos de renunciar a encontrá-lo em parte alguma. Tenha a certeza que desta vez lhe falo sem mau humor. Prometi a mim mesma nunca mais me deixar assaltar por ele; reconheci que se podia tornar uma armadilha perigosa. Creia-me, sejamos amigos, e fiquemos por aí. Agradeça-me a coragem que mostrei em defender-me: sim, coragem; porque às vezes é bem precisa, até para não se tomar uma decisão que se sabe errada. É pois apenas para o pôr de acordo comigo por persuasão que vou responder à sua pergunta sobre os sacrifícios que eu exigiria e que o Visconde não poderia fazer. Sirvo-me de propósito da palavra exigir, porque tenho a certeza de que, dentro em breve, irá achar-me, com efeito, demasiado exigente: mas tanto melhor! Em vez de me zangar com as suas recusas, agradecer-lhas-ei. Olhe, não é consigo que quero dissimular, embora o devesse talvez fazer. Exigirei pois, veja a crueldade!, que essa rara, essa espantosa Madame de Tourvel não seja para si mais do que uma mulher vulgar, uma mulher como ela é, afinal, porque, não nos deixemos enganar, esse encanto, que supomos achar nos outros, é em nós que existe; é apenas o amor a embelezar o objeto amado. Mesmo que este sacrifício lhe seja impossível, tem no entanto que mo prometer, jurar até; mas, aviso, não acreditarei em falsas promessas. Só me deixarei convencer pelo conjunto do seu procedimento. Mas ainda não é tudo; sou muito caprichosa! O sacrifício da pequena Cecília, que me oferece com tão boa vontade, não me interessa. Pedir-lhe-ei, pelo contrário, que continue esse penoso serviço, até nova ordem da minha parte; talvez porque goste de abusar do meu poder ou talvez porque, mais indulgente ou mais justa, me baste dispor dos seus sentimentos, sem querer prejudicar os seus prazeres. De qualquer forma, quero ser obedecida; e as minhas ordens serão rigorosas!
Considerar-me-ia então obrigada a agradecer-lhe; quem sabe? Talvez até a recompensá-lo. Por exemplo, abreviaria uma ausência que se me tornaria insuportável. Encontrar-nos-íamos finalmente, Visconde, encontrar-nos-íamos... de que maneira?... Mas lembre-se de que isto é apenas uma conversa, o simples relato dum projeto impossível, e não quero ser a única a esquecê-lo... Sabe que o meu processo me inquieta um pouco? Quis finalmente conhecer ao certo quais eram as minhas armas; os advogados citam-me as leis, e sobretudo autoridades, como eles lhes chamam: mas já não me acho tão forte como supunha. Quase lamento não ter aceitado o acordo. No entanto tranquilizo-me, pensando que o procurador é hábil, o advogado eloqüente e a demandista bonita. Se estes três argumentos não bastassem, seria preciso alterar toda a seqüência do assunto, e que viria a acontecer ao respeito pelos antigos costumes? O processo é atualmente a única coisa que me retém aqui. Belleroche, acabou-se: desistiu; trabalho compensado. Chegou ao ponto de se lamentar por não ter ido ao baile desta noite queixume desocupado! Restituí-lo-ei à liberdade quando regressar a Paris. Ao fazer este doloroso sacrifício, consolo-me com a generosidade que ele me atribui. Adeus, Visconde, escreva muitas vezes, os pormenores dos seus prazeres compensam-me em parte dos aborrecimentos que enfrento. Castelo de...11 de Novembro de 17* *.
CARTA CXXXV A PRESiDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Tento escrever-vos, sem saber ainda se serei capaz. Ah! Meu Deus Quando penso que na minha última carta era o excesso de felicidade que me impedia de a continuar! É o de desespero que me pesa agora; só me deixa força para sentir as dores, e rouba-ma quando tento exprimi-las. Valmont... Valmont já me não ama, o seu amor nunca existiu. O amor não desaparece assim. Ele engana-me, trai-me, ultrajame. Suporto todos os infortúnios e humilhações que é possível reunir, e é dele que me vêm! E não julgueis que é uma simples suspeita: estava bem longe de as sentir. Nem tenho a sorte de poder duvidar. Vi-o: que me poderá dizer para se justificar?... Mas que lhe importa! Nem sequer tentará... Infeliz! Que lhe interessarão as tuas censuras e lágrimas? Não é de ti que ele se ocupa!...
É pois verdade que me sacrificou, me abandonou mesmo... E por quem? Por uma vil criatura... Mas que digo? Ah! Já nem tenho o direito de a desprezar. Ela traiu menos deveres, é menos culpada do que eu. Oh! Como é doloroso o desgosto, quando é fruto do remorso! Sinto que os meus tormentos redobram. Adeus minha querida amiga; por muito indigna de piedade que me tenha tornado, senti-la-íeis certamente por mim, se pudésseis fazer uma idéia do que sofro. Acabo de reler a carta e apercebi-me de que em nada vos pode elucidar; vou pois tentar a coragem de vos contar este cruel acontecimento. Foi ontem; eu devia, pela primeira vez desde o meu regresso, cear fora da minha casa. Valmont veio ver-me às cinco horas; nunca me parecera tão terno. Deu-me a entender que o meu projeto de sair o contrariava, e, como imaginais, tive logo a idéia de ficar em casa. No entanto, duas horas depois, e de repente, o seu ar e tom mudaram sensivelmente. Não sei se me escapou qualquer coisa que lhe tenha desagradado; pelo quer que fosse, pouco tempo depois, afirmou lembrar-se de uma ocupação que o obrigava a deixar-me, e foi-se embora, mas não o fez sem manifestar uma muito viva pena, que me pareceu carinhosa, e que então julguei sincera. Entregue a mim própria, achei mais conveniente não faltar aos meus primeiros compromissos, visto que estava livre agora. Acabei por me arranjar e parti na carruagem. Infelizmente o cocheiro fez-me passar diante da Ópera, e vi-me envolvida no tumulto da saída; uns quatro passos à minha frente, e na fila ao lado da minha, vi a carruagem de Valmont. O coração bateu-me logo com mais força, mas não de temor; e a única idéia que me ocupava era o desejo de que a minha carruagem avançasse. Em vez disso, foi a dele que foi obrigada a recuar, e que ficou ao lado da minha. Debrucei-me imediatamente: qual não foi o meu espanto quando vi a seu lado uma prostituta, bem conhecida como tal! Afastei-me, como podereis supor, e era já bastante para me afligir o coração; mas o que vos deve custar a acreditar, é que essa rapariga, aparentemente instruída por alguma odiosa confidência, não deixara a portinhola, nem cessara de me olhar, com gargalhadas capazes de provocarem uma cena. No acamrunhamento em que me encontrava, deixei-me no entanto conduzir à casa onde devia cear; mas foi-me impossível ficar; sentia-me a cada instante prestes a desmaiar, e sobretudo custava-me reter as lágrimas. Assim que regressei escrevi ao senhor Valmont e enviei-lhe logo a carta; não estava em casa. Querendo, por qualquer preço, sair do estado de morte em que me achava, ou confirmá-lo para sempre, reenviei-a com ordem de o esperar; mas antes da meia-noite o meu
criado voltou, com a notícia de que o cocheiro, que recolhera, lhe dissera que o patrão não voltaria nessa noite. Esta manhã julguei nada mais ter a fazer do que tornar a pedir as minhas cartas, e dizer-lhe que não voltasse a minha casa. Dei ordens nesse sentido; mas eram, certamente, inúteis. Passa do meio-dia; ainda não apareceu, nem recebi qualquer recado da parte dele. Agora, querida amiga, nada mais tenho a acrescentar: eis-vos instruída e conheceis o meu coração. A minha única esperança é de que não tenha muito tempo para afligir a vossa delicada amizade. Paris, 15 de Novembro de 17* *.
CARTA CXXXVI A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT Com certeza, senhor, que, depois do que ontem se passou, não esperais voltar a ser recebido em minha casa, e com certeza que nem sequer o desejais! Este bilhete é pois menos para vos pedir que não volteis, do que para vos solicitar essas cartas que nunca deveriam ter existido; e que, se puderam interessar-vos um momento, como provas da cegueira que tínheis procurado fazer nascer, só poderão ser-vos indiferentes agora que ela se dissipou, visto que exprimem um sentimento que destruístes. Reconheço e confesso que errei ao depositar em vós uma confiança de que tantas outras antes de mim tinham sido vítimas; nisto só tenho de me acusar a mim própria: mas julgava que pelo menos não merecia ser abandonada por vós ao desprezo e ao insulto. Julgava que, tendo-vos sacrificado tudo, e renunciando por vós aos direitos, à estima dos outros e à minha própria, podia esperar todavia não ser julgada por vós mais severamente que pelo público, cuja opinião separa ainda, por um imenso intervalo, a mulher fraca da depravada. Estes erros, que são os de toda a gente, são os únicos de que vos falo. Calo os queixumes de amor; o vosso coração não compreenderia o meu. Adeus, senhor. Paris, 15 de Novembro de 17* *.
CARTA CXXXVII O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL
Acabam agora, senhora, de me entregar a vossa carta; tremi ao lê-la, e mal me deixou forças para lhe responder. Que idéia horrível faz de mim! Ah, sem dúvida tenho defeitos; e tais que nunca mos perdoarei em toda a vida, mesmo que os cubrísseis com a vossa indulgência. Mas os de que me acusais estiveram sempre bem longe da minha alma! O quê, eu! humilhar-vos! Aviltar-vos! quando vos respeito tanto como vos amo; quando só conheci o orgulho, no momento em que me julgastes digno de vós. As aparências iludiram-vos; e confesso que eram contra mim, mas não tínheis no coração o que bastava para as combater? E ele não se revoltou só com a idéia de que poderia ter razões para queixar-se do meu? Contudo acreditastes! Assim, não só me julgastes capaz desse delírio atroz, mas haveis até receado ser vítima dele em virtude das vossas bondades para comigo. Ah, se vos julgais degradada a esse ponto pelo vosso amor, é porque eu próprio sou aos vossos olhos bem vil! Oprimido pelo sentimento doloroso que esta idéia me causa, perco a afastá-la o tempo que devia empregar a destruí-la. Confessarei tudo; ainda uma outra consideração me retém. É então preciso recordar fatos que queria aniquilar, e fixar a vossa atenção e a minha sobre um momento de erro que quereria resgatar com o resto da minha vida, de que procuro ainda a causa, e cuja lembrança deve fazer para sempre a minha humilhação e o meu desespero? Ah, se acusando-me excito a vossa cólera, não tereis ao menos que procurar longe a vingança; bastar-vos-á deixar-me entregue aos meus remorsos. E no entanto, quem acreditará? Este acontecimento teve como causa primeira o poderoso encanto que sinto junto de vós. Foi ele que me fez esquecer por tempo excessivo um assunto importante, que não podia ser adiado. Deixei-vos demasiado tarde e não encontrei a pessoa que procurava. Esperava avistá-la na Ópera, mas a minha tentativa foi também baldada. Encontrei aí Emília, com quem me relacionei num tempo em que estava bem longe de vos conhecer ou de conhecer o amor; não tinha levado carruagem e pediu-me que a deixasse em casa, bem perto dali. Não vi nenhum perigo nisso e acedi. Mas foi então que vos encontrei; senti logo que seríeis levada a julgar-me culpado. O temor de vos desagradar ou de vos afligir é tão forte em mim, que deveria ser e foi com efeito logo notado. Confesso mesmo que me levou a tentar evitar que a rapariga se mostrasse; este esforço de delicadeza voltou-se afinal contra o amor. Habituada, como todas as da sua espécie, a só se sentir segura dum prestígio sempre usurpado por meio de abusos a que se atrevem, Emília não quis deixar escapar uma ocasião tão retumbante. Quanto mais via aumentar o meu embaraço, mais fazia por se mostrar; e a sua louca alegria, de que coro que tenhais podido julgarvos objeto, tinha apenas por motivo a dor cruel que eu sentia, dor essa proveniente ainda do meu respeito e do meu amor.
Até aqui sou sem dúvida mais infeliz do que culpado; e estes erros, que são os de toda a gente, e os únicos de que me falais, estes erros, não existindo, não me podem ser censurados. Mas calais em vão os queixumes do amor; não poderei guardar sobre eles o mesmo silêncio; um interesse demasiado vivo obriga-me a rompê-lo. Não é que, na confusão em que fui lançado por este inconcebível equívoco, possa, sem uma dor aguda, dedicar-me a evocar lembranças. Compenetrado dos meus erros, consentirei em suportar o castigo, ou esperarei com o tempo o perdão merecido pela minha constante ternura e pelo meu arrependimento. Mas como me poderei calar, quando o que me falta dizer é tão importante para a sensibilidade de todo o vosso ser? Não penseis que procuro um subterfúgio para desculpar ou aliviar a minha falta; confesso que sou culpado. Mas não confesso, nem confessarei nunca, que este erro humilhante possa ser encarado como um ultraje feito ao amor. Oh, que pode haver de comum entre uma surpresa dos sentidos, entre um momento de esquecimento de nós próprios, logo seguido pela vergonha e pelo remorso, e um sentimento puro, que só pode nascer numa alma delicada, manter-se pela afeição, e ter como fruto a felicidade! Ah, não profaneis assim o amor! Evitai sobretudo profanar-vos, reunindo no mesmo ponto de vista o que nunca se pôde confundir. Deixai as mulheres vis e degradadas recearem uma rivalidade que sentem que contra elas se pode estabelecer, e sofrer os tormentos duma inveja igualmente cruel e humilhante: mas vós! Afastai os olhos desses objetos que maculariam os vossos olhares; e, pura como a Divindade, puni como ela a ofensa sem a sentirdes. Mas que pena me podereis impor que me seja mais dolorosa do que a que sinto? Que possa ser comparada ao remorso de vos ter desagradado, ao desespero de vos ter afligido, à idéia insuportável de me ter tornado menos digno de vós? Procurais castigar-me! E eu peçovos consolações. Não porque as mereça, mas porque me são necessárias, e só me podem vir de vós. Se de repente, esquecendo o nosso amor deixando de dar valor à minha felicidade, quiserdes pelo contrário arrastar-me para uma dor eterna, tendes esse direito: feri; mas se, mais indulgente ou mais sensível, vos lembrais ainda dos sentimentos tão ternos que uniam os nossos corações; dessa voluptuosidade da alma, sempre renascente e de cada vez mais vivamente sentida; desses dias tão doces, tão felizes que cada um de nós deve ao outro; de todos esses bens do amor que só ele pode dar; preferireis talvez fazê-los renascer a destruí-los. Que mais poderei dizer? Perdi tudo, e por minha culpa, mas tudo posso reaver pela vossa bondade. Compete-vos decidir agora. Acrescento só uma palavra. Ainda ontem me juráveis que a minha felicidade estava segura enquanto dependesse de vós! Ah! senhora, abandonar-me-eis hoje a um desespero eterno?
Paris, 15 de Novembro de 17* *.
CARTA CXXXVIII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Insisto, minha bela amiga: não estou apaixonado; e não tenho culpa se as circunstâncias me forçam a representar esse papel. Basta que consinta, e volte; verá com os seus próprios olhos como sou sincero. Prestei ontem as minhas provas, e estas não podem ser anuladas pelo que se passa. Estava eu ontem em casa da meiga e pudica dama, e não tinha mais nenhum assunto a tratar, porque a pequena Volanges, apesar do seu estado prematuro, devia passar toda a noite no baile de Madame V... A desocupação fizera-me desejar prolongar o encontro; e exigira até para isso um pequeno sacrifício, mas apenas me fora concedido, e já todo o prazer que esperava tinha sido perturbado pela idéia desse amor que se obstina em atribuir-me; ou pelo menos em censurar-me; de forma que só sentia o desejo de poder simultaneamente certificar-me e convencê-la de que era da sua parte pura calúnia. Tomei então uma decisão violenta; e, alegando um pretexto bastante inconsistente, abandonei a minha bela, algo surpreendida, e sem dúvida bastante aflita. Eu, porém, fui tranquilamente ter com Emilia à Ópera; e ela poder-lhe-ia contar que, até à manhã de hoje em que nos separamos, nenhum remorso perturbou os nossos prazeres. No entanto eu teria uma grande causa de inquietação, se a minha perfeita indiferença me não tivesse salvo: imagine que estando a uns quatro prédios de distância da Ópera, com Emília na minha carruagem, veio a da austera devota arrumar-se exatamente ao lado da minha, e a dificuldade de circulação deixou-no perto dum quarto de hora ao lado um do outro. Via-se tão bem como se fosse meio-dia e não havia maneira de escapar. Mas não foi tudo; decidi dizer a Emília que se tratava da senhora da carta. (Lembra-se talvez dessa loucura e de que Emília era a mesa.) Ela, que o não tinha esquecido, e que é zombeteira, não descansou enquanto não examinou à vontade esta virtude, como ela dizia, e isso com grandes e irritantes gargalhadas. Mas também ainda não foi tudo; pois a dama ciumenta não mandou logo uma carta a minha casa nessa mesma noite? Eu não estava, mas, na sua obstinação, tornou a mandar com ordem para me esperarem. Eu, como estava decidido a ficar com Emília, mandara embora a carruagem, com ordem ao cocheiro de voltar a buscar-me esta manhã; e quando ao chegar encontrou o mensageiro do amor, achou bem dizer-lhe simplesmente que eu já não regressava naquela
noite. Imaginará o efeito desta notícia; na volta encontrei-me despedido com toda a dignidade que exigia a circunstância! Assim esta aventura, que acha interminável, teria podido, como vê, acabar esta manhã; se não acabou, não foi, como irá talvez pensar, porque dê muito valor à continuação, mas antes porque, por um lado, não achei decente deixar que outrem rompesse; e, por outro, porque quis reservar-lhe a homenagem desse sacrifício. Respondi pois ao severo bilhete com uma longa epístola sentimental. Expus longas razões, e contei com o amor para as fazer passar por boas. Êxito total. Acabo de receber um segundo bilhete, ainda muito severo, que confirma a eterna ruptura, como é das regras; mas já num tom diferente. Insiste em que não quer voltar a ver-me: essa decisão é enunciada quatro vezes repetida da maneira mais irrevogável. Concluí que não tinha um momento a perder para aparecer. Enviei já o meu criado para entreter o porteiro; e dentro dum momento irei eu próprio fazer assinar o meu perdão: porque nas questões desta espécie, só há uma fórmula capaz de obter a absolvição geral, e essa só se executa pessoalmente. Adeus, minha encantadora amiga; parto para tentar este grande golpe. Paris, 15 de Novembro de 17* *.
CARTA CXXXIX A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Como me acuso, minha sensível amiga, por vos ter falado demasiado, e demasiado cedo,de males passageiros! Sou a causa de que vos aflijais neste momento; esses desgostos que vos vêm de mim duram ainda, e eu sou já de novo feliz. Sim, tudo está esquecido, perdoado; digamos antes sanado. Ao estado de dor e angústia sucederam a calma e as delícias. Oh, alegria do meu coração, como posso exprimir-vos! Valmont está inocente; não se é culpado quando se ama tanto. Esses erros graves e ofensivos que eu lhe censurava com tanta amargura, não os cometera; e se, num só ponto, precisei de indulgência, não é certo que também eu tinha injustiças a serem perdoadas? Não vos falarei pormenorizadamente dos fatos ou das razões que os justificam; talvez até o espírito os apreciasse mal, só ao coração é que compete senti-los. Mas se me acusardes de fraqueza, chamarei a vossa opinião para apoiar a minha. Em relação aos homens, vós própria o dissestes, a infidelidade não é inconstância. Não é que eu não sinta que esta distinção, aprovada pelo consenso geral, fere ainda a delicadeza; mas de que se queixaria a
minha, quando a de Valmont sofre mais ainda? Esse erro que esqueço, não penseis que ele o perdoe a si próprio ou se console; e no entanto, já reparou bem essa ligeira falta pelo excesso do seu amor e da minha felicidade! Ou a minha felicidade é maior, ou aprecio-a mais desde que receei tê-la perdido, mas o que vos posso dizer é que, se ainda me sentisse com força para suportar desgostos tão cruéis como os que acabo de sofrer, não julgaria pagar assim demasiado caro o acréscimo de felicidade que depois saboreei. Oh, minha terna mãe! Repreendei a esta vossa filha irrefletida por vos ter afligido com tanta precipitação; ralhai-lhe por ter julgado temerariamente e caluniado aquele que ela não devia cessar de adorar, mas ao mesmo tempo que a reconheceis imprudente, contemplai-a feliz e aumentai-lhe a alegria compartilhando-a. Paris, noite de 16 de Novembro de 17* *.
CARTA CXL O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Que se passa, minha bela amiga, que não recebo resposta sua? A minha última carta parecia-me no entanto merecê-la; já há três dias que a devia ter recebido e espero ainda! O menos que lhe posso dizer é que estou zangado; deste modo nada lhe contarei das minhas aventuras. Acerca do belíssimo efeito da reconciliação; de ter dado lugar a novas ternuras, em vez de censuras e desconfiança; de ser eu agora quem recebe as desculpas e reparações devidas à minha candura caluniada, nada lhe direi; e sem o acontecimento imprevisto da última noite, nem sequer lhe escreveria. Mas como diz respeito à sua pupila, e como naturalmente ela não estará capaz de lhe escrever durante algum tempo, encarrego-me eu disso. Por motivos que facilmente adivinhará ou não, de há uns dias para cá que Madame de Tourvel não me podia ocupar o tempo; e como essas razões não podiam existir na pequena Volanges, tornarame mais assíduo junto dela. Graças ao amável porteiro, não precisava de vencer quaisquer obstáculos; e levávamos, a sua pupila e eu, uma vida cômoda e regrada. Mas o hábito conduz à negligência; nos primeiros dias, achávamos sempre as precauções insuficientes para a nossa segurança; tremíamos ainda detrás dos ferrolhos. Ontem, uma distração inacreditável causou o acidente que lhe quero contar; e se pelo meu lado apanhei um susto, a donzela pagou mais caro. Não dormíamos, mas estávamos no repouso e no abandono que se seguem à voluptuosidade, quando ouvimos a porta do quarto
abrir-se de repente. Agarrei logo a espada, tanto para minha defesa como para da nossa comum pupila: avancei e não vi ninguém, mas com efeito a porta estava aberta. Como tínhamos luz, fiz uma busca, mas não encontrei vivalma. Lembrei-me então que nos esquecêramos das precauções habituais; e que a porta, apenas encostada, ou mal fechada, se abrira por si própria. Voltei para me juntar à minha tímida companheira e tranqüilizála, mas não a encontrei no leito; caíra ou tentara esconder-se na alcova: enfim, estava desmaiada e sem outro movimento a não ser fortes convulsões. Imagine o meu embaraço! Ainda consegui deitá-la na cama, e até fazê-la voltar a si, mas ferira-se na queda, e as conseqüências não tardaram. Dores de rins e cólicas violentas, outros sintomas ainda menos equívocos, depressa me esclareceram quanto ao seu estado, mas, para a elucidar, foi preciso revelar-lhe primeiro que se encontrava grávida; porque não fazia a mínima idéia. Nunca ninguém, antes desta pequena, conservou tanta inocência, fazendo ao mesmo tempo tão bem tudo o que é preciso para se desfazer dela! Oh, esta não perde tempo a refletir! Mas lamentava-se e vi que era preciso tomar uma decisão. Ficou então combinado que eu iria imediatamente ao médico e ao cirurgião da casa, e que os preveniria de que alguém os viria buscar, contando-lhes tudo, sob segredo; que ela, por seu lado, chamaria a criada de quarto logo que eu saísse; que lhe confidenciaria tudo ou não, como quisesse; mas que a mandaria buscar socorro, e proibiria sobretudo que acordassem Madame de Volanges, delicada e natural atenção duma filha que teme inquietar a mãe. Fiz as duas diligências e as duas confissões o mais depressa que pude, e voltei para casa, donde não saí ainda, mas o cirurgião, que eu aliás já conhecia, veio ao meio-dia relatar-me o estado da doente. Não me enganara; mas ele espera que, se não sobrevier qualquer complicação, ninguém lá em casa dará por nada. A criada de quarto está no segredo; o médico deu um nome à doença; e este assunto arrumar-se-á como milhares de outros, a não ser que mais tarde nos possa ser útil que dele se fale. Mas haverá ainda interesses comuns entre a minha amiga e eu? O seu silêncio deixa-me dúvidas; já nem acreditaria nisso, se o meu desejo não procurasse a todo o custo manter-me a esperança. Adeus, minha bela amiga: beijo-a, mal-grado o seu rancor. Paris, 21 de Novembro de 17* *.
CARTA CXLI A MARQUESA DE MARTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT
Meu Deus! Visconde, como me maça com a sua obstinação! Que lhe importa o meu silêncio? Pensa talvez que o mantenho por falta de razões para me defender? Ah! Prouvera a Deus! Mas não, é antes porque me custa dizer-lhas. Fale-me francamente; ilude-se a si próprio ou procura enganarme? A diferença entre as suas palavras e ações deixa-me hesitar apenas entre esses dois sentimentos: qual é o verdadeiro? Que quer que lhe diga, quando eu própria não sei que pensar? Parece que dá grande valor à sua última cena com a Presidente; mas o que é que ela prova a favor da sua opinião e contra a minha? Com certeza que eu lhe não disse que amava essa mulher o bastante para não a enganar, para não aproveitar todas as ocasiões que lhe parecessem agradáveis ou fáceis; nem sequer duvido de que para si seja quase a mesma coisa satisfazer com outra, com a primeira que apareça, os desejos que aquela lhe tem feito nascer; e nem sequer me surpreende que, por uma libertinagem de espírito que é inútil negarlhe, tenha uma vez feito por deliberação o que fez mil outras por acidente. Quem sabe se isso não é moda do tempo, e o que fazem todos, desde o perverso ao mais idiota dos inocentes? Hoje o que se abstém passa por romanesco, e não é esse, parece-me, o defeito de que o acuso. Mas o que disse, o que pensei, o que penso ainda é que nem por isso deixa de amar a Presidente; não, com certeza, com um amor puro e terno, mas com o que lhe é dado sentir; com aquele que faz, por exemplo, ver numa mulher atrativos ou qualidades que ela não tem; que a coloca num lugar à parte, e todas as outras abaixo; que o conserva preso a ela, mesmo quando a ultraja; tal como um sultão pode sentir pela favorita, o que não o impede de preferir muitas vezes uma simples odalisca. Esta comparação parece-me tanto mais certa, quanto é verdade que, tal como ele, o Visconde nunca é nem o amigo, nem o amante duma mulher; mas sempre ou o seu tirano ou o seu escravo. Por isso estou bem certa que se humilhou e aviltou, para voltar a estar nas graças desse belo objeto! E demasiado feliz por tê-lo conseguido, assim que julgou chegado o momento de obter o perdão, deixa-me por virtude desse grande acontecimento. Ainda na sua última carta, se me não fala unicamente dessa mulher, é porque nada me quer dizer das suas grandes aventuras; são para si tão importantes, que julga o silêncio que faz sobre elas uma punição para mim. E é depois de mil provas da sua acentuada preferência por uma outra, que me pergunta tranquilamente se há ainda interesses comuns entre nós! Tome cuidado, Visconde! Quando eu responder, a minha resposta será irrevogável; e recear pronunciá-la neste momento é já talvez esclarecer demasiado. Deste modo, não quero falar nisso.
O mais que posso fazer é contar-lhe uma história. Não terá talvez tempo para a ler, ou para lhe prestar a necessária atenção? Isso é consigo. Será afinal, supondo o pior, apenas uma história deitada ao mar. Um dos meus conhecidos tinha-se deixado prender, tal como o meu amigo, por uma mulher que não estava à sua altura. Mas ao mesmo tempo tinha a lucidez de ver que, mais tarde ou mais cedo, aquela aventura o prejudicaria; e corava de vergonha por não ter coragem para romper. O seu embaraço era tanto maior, quanto se gabara aos amigos de se manter inteiramente livre; e não ignorava que o ridículo aumenta à medida que procuramos fugir-lhe. Passava assim a vida a fazer tolices e a dizer depois: não tenho culpa. Este homem tinha uma amiga que por um momento esteve tentada a revelá-lo a todos nesse estado de embriaguez, e a tornar assim o seu ridículo perpétuo, mas, mais generosa do que maliciosa, ou talvez por qualquer outro motivo, quis tentar um último recurso, para poder, em qualquer caso, dizer como o amigo: não tenho culpa. Remeteu-lhe então, sem mais palavra, a carta que segue, como um remédio cujo uso poderia ser útil para debelar o mal. "De tudo nos aborrecemos, meu anjo, é uma lei da natureza; não tenho culpa. Se agora me aborreço duma aventura que me ocupou inteiramente durante quatro longos meses, não tenho culpa. Se tive tanto amor como tu virtude, e já é afirmar muito, não é para admirar que um tenha acabado ao mesmo tempo que a outra. Não tenho culpa. Resulta disso, que desde há algum tempo te engano: mas também a tua implacável ternura a isso me obrigava! Não tenho culpa. Hoje, uma mulher que amo loucamente exige que te sacrifique. Não tenho culpa. Bem vejo que julgarás chegado o momento de me chamares perjuro, mas se a natureza concedeu aos homens apenas a constância, e legou às mulheres a obstinação, não tenho culpa. Crê-me; tal como eu, escolhe outro amante. Este conselho é bom, muito bom; se o achas mau, não tenho culpa. Adeus, meu amigo, tive-te com prazer, deixo-te sem pena; talvez volte ainda. É assim o mundo. Não tenho culpa. " Não é o momento para lhe dizer, Visconde, o efeito desta última tentativa, e o que se lhe seguiu, mas prometo que lho direi na próxima carta. Nela encontrará também o ultimatum sobre a renovação do tratado que me propõe. Até lá, simplesmente adeus... A propósito, agradeço-lhe todos os pormenores sobre a pequena Volanges; é um artigo que se deve guardar até ao dia seguinte ao casamento, para a gazeta de maledicência. Entretanto, apresento-lhe os meus pêsames pela perda da sua descendência. Boa noite, Visconde.
Castelo de..., 24 de Novembro de 17* *.
CARTA CXLII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Palavra, minha bela amiga, não sei se li mal ou se não compreendi a sua carta, a história que me narra e o modelo epistolar que continha. O que lhe posso dizer, é que este último me pareceu original e próprio para o efeito, por isso copiei-o simplesmente e, mais simplesmente ainda, enviei-o à celestial Presidente. Não perdi um momento, pois enviei ontem à tarde a terna missiva. Preferi assim, em primeiro lugar porque prometera com efeito escrever-lhe ontem; e também porque pensei que toda a noite não seria demais para ela se recolher e meditar sobre esse grande acontecimento, mesmo que pela segunda vez me censure a expressão. Esperava poder enviar-lhe esta manhã a resposta da minha bem-amada, mas é quase meio-dia e ainda nada recebi. Esperarei até às três horas, e se até então não tiver notícias, irei eu próprio procurá-las; porque, quando se trata de decisões, só o primeiro passo é que custa. Agora, como pode imaginar, estou ansioso por saber o fim da história desse seu conhecido, tão cruelmente suspeitado de não saber, em caso de necessidade, sacrificar uma mulher. Ter-se-á corrigido? E a generosa amiga ter-lhe-á perdoado? Anseio também por receber o seu ultimatum: como diz tão politicamente! Tenho curiosidade em saber se, mesmo nesta última diligência, ainda encontrará amor. Oh, sem dúvida, há, e muito! Mas por quem? No entanto, não quero pôr nada em realce, e espero tudo da sua bondade. Adeus, minha encantadora amiga; só fecharei esta carta às duas horas, na esperança de lhe poder juntar a desejada resposta. Duas horas da tarde. Não veio nada, o tempo urge; só posso acrescentar uma palavra: recusar-me-á ainda desta vez os ternos beijos de amor? Paris, 27 de Novembro de 17* *.
CARTA CXLIII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MEDAME DE ROSEMONDE Minha senhora, despedaçou-se o véu em que estava pintada a ilusão da minha felicidade. A funesta verdade alumia-me, e só me
deixa esperar uma morte certa e próxima, cujo caminho está traçado entre a vergonha e o remorso. Segui-la-ei e bendirei os meus tormentos se eles me abreviarem a existência. Envio-vos a carta que ontem recebi; não acrescentarei nenhuma reflexão, não o necessita. Não é já altura para queixas, resta-me sofrer. Não preciso de piedade, mas de força. Recebei pois, minha senhora, o meu único adeus, e atendei o meu último pedido; é que me deixeis entregue à minha sorte, que me esqueçais inteiramente, que não conteis mais comigo. Há um limite na infelicidade, para além do qual até a própria amizade aumenta os sofrimentos e não os pode sarar. Quando as feridas são mortais, todo o socorro se torna desumano. Qualquer sentimento que não seja o desespero me é alheio. Nada me pode convir mais do que a noite profunda em que vou ocultar a minha vergonha. Chorarei as minhas faltas, se é que ainda posso chorar, pois desde ontem que não deito uma lágrima. O meu coração seco já as não consente. Adeus, minha senhora. Não deveis responder-me. Jurei sobre essa carta cruel que não receberia mais nenhuma outra. Paris, 27 de Novembro de 17* *.
CARTA CXLIV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Minha bela amiga, ontem às cinco horas da tarde, impaciente por não ter notícias, apresentei-me em casa da bela abandonada; disseram-me que saíra. Vi, nesta frase, uma recusa de me receber que me não zangou, nem surpreendeu; e retirei-me, na esperança de que esta diligência da minha parte levaria pelo menos uma dama tão educada a honrar-me com uma palavra de resposta. O desejo que tinha de a receber fez-me passar de propósito por minha casa por volta das nove horas, mas nada encontrei. Espantado com este silêncio, que não esperava, encarreguei o meu criado de ir buscar informações, e saber se a sensível criatura estava morta ou moribunda. Enfim, quando voltei informou-me que Madame de Tourvel saíra de fato, às onze horas da manhã, com a criada de quarto; que mandara seguir para o convento de..., e que às sete da tarde reenviara a carruagem e os criados, dizendo que a não esperassem em casa. Evidentemente, tomou a grande decisão. O convento é o refúgio próprio para uma viúva; e se persiste numa tão louvável resolução, acrescentarei, a todas as obrigações que já lhe devo, a da celebridade que vai ter esta aventura.
Bem lhe dizia, há já algum tempo, que, apesar das suas inquietações, eu reapareceria na sociedade brilhando com um novo esplendor. Que se mostrem, pois, esses críticos severos, que me acusavam dum amor romanesco e infeliz; que façam rupturas mais rápidas e mais brilhantes, ou antes, exijo melhor: que se apresentem como consoladores, o caminho está-lhes aberto. Pois bem! Que ousem tentar a carreira que percorri até ao fim; e se um deles obtiver o mínimo êxito, cedo-lhe o primeiro lugar. Mas todos sentirão que, quando me emprego a fundo, a impressão que deixo é inapagável. Ah! Esta sê-lo-á, sem dúvida; e deixarei de me vangloriar de todos os meus outros triunfos, se algum dia tiver junto desta mulher um rival preferido. Concordo que esta decisão que ela tomou lisonjeia o meu amor-próprio; mas custa-me que ela tenha encontrado em si força suficiente para se separar de mim. Não haverá pois, entre nós ambos, outros obstáculos além dos que eu próprio coloquei! O quê! Se eu ansiasse pela reconciliação, ela poderia não a querer; que digo? Não a desejar, não a considerar a suprema felicidade! E então é assim que se ama! Acha, minha bela amiga, que devo permitir isto? Não poderei eu, e não seria preferível tentar conduzir de novo esta mulher a encarar a possibilidade de uma reconciliação, tão desejada quanto esperada? Poderia tentar esta diligência sem lhe atribuir qualquer importância; e, deste modo, sem que representasse qualquer menosprezo em relação a si. Seria, pelo contrário, uma simples experiência que tentaríamos de acordo; e mesmo que obtivesse êxito, seria um processo de renovar, à sua vontade, um sacrifício que lhe deve ter sido agradável. Agora, minha bela amiga, resta-me receber o prémio, e faço votos pelo seu regresso. Volte depressa para reencontrar o seu amante, os seus prazeres, os seus amigos, e a continuação das aventuras. A da pequena Volanges correu maravilhosamente. Ontem como a minha inquietação me não permitia permanecer em lado nenhum, passei, nas minhas diversas saídas, pela casa de Madame de Volanges. Encontrei a sua pupila já no salão, ainda com trajos de doente, mas em plena convalescença, e cada vez mais fresca e interessante. Vós, mulheres, num tal caso, ficaríeis um mês num sofá: palavra, vivam as raparigas! Esta, na verdade, deu-me desejo de me certificar se a cura fora perfeita! Devo ainda dizer-lhe que este acidente da menina quase tornou louco o seu sentimental Danceny. Primeiro de desgosto; hoje de alegria. A sua Cecília estava doente! Como deve imaginar, a cabeça anda à volta com uma tal desgraça. Três vezes por dia mandava saber notícias, e não deixava passar nem um sem se apresentar ele próprio; enfim pediu, numa bela missiva à mãe, licença para a ir felicitar pela convalescença dum ente tão querido; Madame de Volanges consentiu; de modo que encontrei o rapaz instalado como noutro
tempo, apenas com um pouco mais de familiaridade que ele não ousava ainda permitir-se. Foi mesmo por ele que soube pormenores; porque saímos ao mesmo tempo e o fiz tagarelar. Não imagina o efeito que esta visita lhe causou. Uma alegria, desejos e transportes impossíveis de exprimir. Eu, que gosto das grandes iniciativas, acabei de lhe fazer perder a cabeça, garantindo-lhe que dentro de poucos dias lhe arranjaria maneira de ver ainda de mais perto a sua bela. Estou, de fato, decidido a entregar-lha, logo que faça a minha experiência. Quero consagrar-me inteiramente a si; e depois valeria a pena que a sua pupila fosse também minha aluna, se não soubesse enganar senão o marido? A obra-prima é que engane também o amante, e sobretudo o seu primeiro amante; porque eu, por mim, não tenho que me acusar de alguma vez ter pronunciado a palavra amor. Adeus, minha bela amiga; volte logo que possa para gozar do seu poder sobre mim, receber as homenagens e pagar-me o prémio. Paris, 28 de Novembro de 17* *.
CARTA CXLV A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Seriamente, Visconde, abandonou a Presidente? Enviou-lhe a carta que redigi para ela? É na verdade encantador; e ultrapassou as minhas esperanças! Confesso com sinceridade que esse triunfo me lisonjeia mais do que todos os que até agora tenho obtido. Achará talvez que avalio muito alto essa mulher, que antes apreciava tão pouco; nada disso; é que não foi sobre ela que alcancei esta vitória; foi sobre o Visconde. Eis o que me diverte, e que é verdadeiramente delicioso. Sim, Visconde, sei que amava muito Madame de Tourvel e que a ama ainda; ama-a como um louco, mas porque eu me divertia a envergonhá-lo, sacrificou-a corajosamente. Teria sacrificado mil para não ser vítima dum gracejo. Ao que nos conduz a vaidade! Le Sage tem razão quando diz que ela é inimiga da felicidade. Como ficaria agora, se eu tivesse querido apenas pregar-lhe uma partida? Mas sou incapaz de enganar, bem o sabe; e mesmo que, por minha vez, ficasse agora reduzida ao desespero e ao convento, corro todos os riscos, e entrego-me ao vencedor. No entanto, se capitulo é por pura fraqueza; porque, se eu quisesse, quantas brincadeiras não teria ainda para fazer! E talvez o Visconde o merecesse! Admiro, por exemplo, a sutileza ou a falta de jeito com que docemente me propõe que o deixe reconciliar-se com a
Presidente. Convinha-lhe muito, não é assim, vangloriar-se dessa ruptura sem perder os prazeres da posse? E como então esse aparente sacrifício nada significaria para si, oferece-se para o renovar segundo a minha vontade! Por esta infeliz combinação, a celeste devota julgar-se-ia sempre a única eleita do seu coração, enquanto eu me orgulharia de ser a rival preferida; seríamos ambas enganadas, mas o meu amigo estaria contente, e o resto que importa? É pena que com tanto talento para os projetos, tenha tão pouco para a execução; e que por uma só diligência inconsiderada tenha levantado um obstáculo invencível ao que mais deseja. O quê! Tinha a idéia de tentar uma reconciliação e ousou escrevê-lo na minha carta! Supôs-me inábil a esse ponto! Creia-me, Visconde, quando uma mulher quer ferir o coração de outra, raramente deixa de encontrar o ponto mais sensível, e o ferimento é incurável. Enquanto feria esta, ou antes, dirigia os seus golpes, não esqueci que esta mulher era minha rival, que por um momento a preferiu a mim, e que enfim me colocara abaixo dela. Se falhei na vingança, consinto em pagar o erro. Por isso, Visconde, acho que deve tentar todos os meios; insisto mesmo, e prometo não me aborrecer com o seu êxito, se o alcançar. Estou tão descansada a este respeito que nem penso mais nisso. Falemos doutra coisa. Por exemplo, da saúde da pequena Volanges. Dar-me-á notícias seguras no meu regresso, não é verdade? Muito estimarei recebê-las. Depois disso, compete-lhe a si decidir do que mais convirá: entregar a menina ao namorado, ou tentar ser pela segunda vez o fundador dum novo ramo dos Valmont, sob o nome de Gercourt. Esta idéia diverte-me muito; deixo-lhe a escolha, mas peço-lhe que não tome uma decisão definitiva sem que conversemos ambos. Não se trata de adiar uma data longínqua, porque brevemente estarei em Paris. Não lhe posso dizer precisamente o dia; mas tenho a certeza que, logo que eu chegue, será o primeiro a ser informado. Adeus, Visconde; apesar das minhas disputas, partidas e censuras, amo-o sempre muito, e preparo-me para lho provar. Até à vista, meu amigo. Castelo de..., 29 de Novembro de 17* *.
CARTA CXLVI A MARQUESA DE MERTEUIL AO CAVALEIRO DANCENY Parto enfim, meu jovem amigo, e amanhã à tarde estarei de volta a Paris. No meio de toda a confusão que acarreta uma viagem, não receberei ninguém. No entanto, se tiverdes alguma confidência
urgente a fazer-me, abrirei uma exceção à regra geral; mas só para vós; por isso, peço-vos segredo da minha chegada. O próprio Valmont não será informado. Se alguém me tivesse dito, há uns tempos atrás, que dentro em pouco teríeis a minha exclusiva confiança, não o acreditaria. Mas a vossa foi a causa da minha. Quase estou tentada a acreditar que usastes de muita habilidade, direi mesmo sedução. E isso seria muito mal! Todavia não seria perigosa agora; tendes de fato mais com que vos ocupar! Quando a heroína está em cena, esquece-se a confidente. Por isso não tivestes tempo de me contar os vossos últimos triunfos. Quando a vossa Cecília estava ausente, o tempo não chegava para escutar as vossas ternas queixas. Tê-las-íeis feito para o eco, se não existisse eu para as escutar. Quando, depois, ela esteve doente, ainda fui honrada com o relato das vossas inquietações, tínheis necessidade de alguém a quem as contar. Mas agora que ela está em Paris, que recuperou a saúde, e sobretudo que a vedes às vezes, ela basta-vos, e os vossos amigos já não valem nada. Não vos repreendo; a culpa é dos vossos vinte anos. Desde Alcibíades até vós, não sabemos já que os jovens só recorrem à amizade nos desgostos de amor? A felicidade torna-os às vezes indiscretos, mas jamais confidentes. Direi tal como Sócrates: gosto que os meus amigos venham até mim, quando se sentem felizes, mas, na sua qualidade de filósofo, passava bem sem eles quando não apareciam. Nisso, não sou tão sensata como ele, e senti o vosso silêncio com toda a fraqueza duma mulher. Não penseis que sou exigente: estou muito longe de o ser! O mesmo sentimento que me leva a notar estas privações faz com que as suporte com coragem, quando são a causa ou a prova da felicidade dos meus amigos. Conto convosco amanhã à tarde, contanto que o amor vos deixe livre e desocupado: proíbo-vos de me fazerdes o mínimo sacrifício. Adeus, Cavaleiro; terei muito prazer em ver-vos: vireis? Castelo de..., 29 de Novembro de 17* *.
CARTA CXLVII MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Ficareis certamente tão aflita como eu, minha digna amiga, quando souberdes do estado em que se encontra Madame de Tourvel; está doente desde ontem; a doença atacou-a profundamente, e apresenta sintomas tão graves que estou verdadeiramente alarmada.
Uma febre ardente, um delírio violento e quase contínuo, uma sede que se não sacia nunca, eis tudo o que se observa. Os médicos dizem que não podem diagnosticar ainda; e o tratamento será tanto mais difícil quanto é certo que a doente recusa com obstinação toda a espécie de remédios; a ponto que foi preciso agarrá-la para a sangrar; e de duas outras vezes foi necessário usar do mesmo processo para lhe tornar a pôr a ligadura, que ela pretendia arrancar no meio do delírio. Vós que a conhecestes como eu, tão fraca, tão tímida e tão doce, podereis imaginar que quatro pessoas mal a possam conter, e que logo que lhe tentem falar razoavelmente se lance numa ira inexprimível? Por mim, creio que não seja mais do que delírio, e que não se trate duma verdadeira alienação do espírito. O que aumenta os meus receios a esse respeito é o que se passou anteontem. Nesse dia, ela chegou pelas 11 horas da manhã, com a criada de quarto, ao convento de... Como foi educada nessa casa e conservou o hábito de aí voltar às vezes, foi recebida como habitualmente, e pareceu a todos tranqüila e de boa saúde. Aproximadamente duas horas depois, perguntou se o quarto que ocupara quando era pensionista estava vago, e como lhe respondessem que sim, pediu para o ir ver; a superiora e outras religiosas acompanharam-na. Foi então que declarou que voltava a viver nesse quarto, que, afirmava, nunca deveria ter abandonado; e donde só sairia por morte; foram as palavras dela. Primeiro ninguém soube que dizer; mas, passado o primeiro espanto, expuseram-lhe que o seu estado de mulher casada não autorizava a que a recebessem sem permissão especial. Nem essa razão, nem mil outras conseguiriam nada; e a partir desse momento obstinou-se, não só a não sair do convento, mas até a não deixar o quarto. Enfim, impotentes, às sete horas da tarde, consentiram que passasse lá a noite. Mandaram embora as carruagens e os criados, e adiaram para o dia seguinte a decisão. Certificam que durante o serão o seu ar e porte nada tinham de alucinados, ambos eram modestos e refletidos; apenas caiu quatro ou cinco vezes num cismar tão profundo que não conseguiram despertá-la falando-lhe; e que, cada vez que saía dele, levava as mãos à fronte como se a apertasse com força; e por isso, como uma das religiosas presentes lhe perguntasse se lhe doía a cabeça, olhou-a longamente antes de responder, e disse por fim: "Não é aí que está o mal!" Um momento depois pediu que a deixassem só, e que de futuro lhe não fizessem mais perguntas. Toda a gente se retirou, exceto a criada de quarto, que felizmente devia dormir no mesmo quarto que a senhora, por falta de lugar. Conforme a narração da rapariga, a ama esteve muito tranqüila até às onze da noite. Disse então que se queria deitar, mas, antes de estar completamente despida, pôs-se a andar pelo quarto, com muitos
movimentos e gestos. Júlia, que fora testemunha de tudo o que se passara durante o dia, não ousou dizer nada e esperou em silêncio durante perto de uma hora. Por fim, Madame de Tourvel chamou-a duas vezes seguidas; só teve tempo de acudir, e a senhora caiu-lhe nos braços dizendo: "Não posso mais." Deixou-se conduzir até ao leito, mas não quis tomar nada, nem que alguém fosse buscar socorro. Mandou somente pôr água perto dela, e ordenou a Júlia que se deitasse. Esta assegura que esteve sem dormir até às duas da manhã, e que não ouviu, durante esse tempo, nem movimentos nem queixas. Mas afirma que foi acordada às cinco horas pelo delírio da ama, que falava em voz alta e forte; e que tendo-lhe então perguntado se não precisava de nada, e não obtendo resposta, acendeu o castiçal e foi ao leito de Madame de Tourvel, que a não reconheceu; mas que, interrompendo de repente a conversação sem seguimento que ia discorrendo, gritou vivamente: "Deixem-me só, deixem-me nas trevas; são as trevas que me convêm." Eu própria notei ontem que esta frase lhe volta muitas vezes. Enfim, Júlia aproveitou-se desta ordem para sair e ir procurar gente e socorro, mas Madame de Tourvel recusou ambos, com iras e delírios que depois se repetiram frequentemente. A confusão em que isto fez mergulhar o convento decidiu a superiora a mandar procurar-me ontem às sete da manhã... Ainda não era dia. Acudi imediatamente. Quando me anunciaram a Madame de Tourvel, pareceu retomar o conhecimento, e respondeu: "Ah, sim, que entre." E assim que me aproximei do leito, olhou-me fixamente, tomou-me a mão, que apertou, e disse com voz forte, mas triste: "Morro por vos não ter acreditado." Mas logo em seguida, escondendo os olhos, voltou à sua frase mais freqüente: "Deixem-me só, etc."; e perdeu por completo o conhecimento. Estas palavras que me dirigiu, e ainda outras que deixou escapar no seu delírio, fazem-me temer que esta cruel doença tenha uma causa mais cruel ainda. Mas respeitemos os segredos da nossa amiga, e limitemo-nos a lastimar a sua infelicidade. Todo o dia de ontem foi muito agitado, e dividido entre aterradores acessos de delírio e momentos de abatimento letárgico, os únicos em que tem e dá algum repouso. Deixei a sua cabeceira só às nove da noite, e voltarei esta manhã para todo o dia. Claro que não abandonarei a minha amiga tão infeliz; mas o que é desolador é a obstinação dela em recusar todos os cuidados e socorros. Envio-vos o boletim desta noite, que acabo de receber, e que, como vereis, é um pouco consolador. Terei o cuidado de vos trazer inteiramente a par de tudo. Adeus, minha digna amiga, vou para junto da doente. A minha filha, que felizmente está quase inteiramente restabelecida, cumprimenta-vos. Paris, 29 de Novembro de 17* *.
CARTA CXLVIII O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL Ó vós que eu amo! Ó tu que eu adoro! vós que fizestes a minha felicidade! Tu que a cumulaste! Amiga sensível, terna amante, por que é que a lembrança da tua dor vem perturbar o encanto que experimento? Ah! acalmai-vos, é a amizade que vo-lo roga. Oh! minha amiga, sede feliz! É a súplica do amor. Ah! Que censuras tendes a fazer-vos? Crede-me, a vossa delicadeza engana-vos. Os remorsos que vos causa, os erros de que me acusa, são igualmente ilusórios; e sinto no meu coração que houve entre nós um sedutor único: o amor. Não temas entregar-te aos sentimentos que inspiras, deixar-te penetrar pelo fogo que fazes nascer. O quê! Seriam os nossos corações menos puros por só tarde terem sido esclarecidos? Não, com certeza. É só a sedução que, agindo sempre com um fim, pode combinar a marcha e os meios, e prever de longe os acontecimentos. Mas o verdadeiro amor não permite meditar e refletir; afasta-nos dos projetos por meio dos sentimentos; o seu poder é tanto mais forte quanto nos é desconhecido, e é na sombra do silêncio que nos prende por laços que são impossíveis de conhecer ou de romper. Deste modo, ainda ontem, apesar da viva emoção que me causava a idéia do vosso regresso, do prazer intenso que senti ao vervos, julgava no entanto ser chamado e conduzido apenas pela tranqüila amizade, ou antes, inteiramente entregue aos doces sentimentos do meu coração, bem pouco me preocupava em esclarecer-lhes a origem ou a causa. Tal como eu, minha terna amiga, também tu sentias, sem o saber, esse encanto poderoso que entregava as nossas almas às doces impressões da ternura; e ambos só reconhecemos o amor ao sair da embriaguez em que esse deus nos mergulhara. Mas é isso que nos justifica em vez de nos condenar. Não, não traíste a amizade, nem eu abusei da tua confiança. Ambos, é certo, ignorávamos os nossos sentimentos; mas essa ilusão experimentávamola apenas, não a procurávamos fazer nascer. Ah, em vez de a lamentarmos, pensemos na felicidade que nos trouxe; e sem a perturbarmos com injustas censuras, dediquemo-nos antes a aumentá-la ainda com o encanto da confiança é da segurança. Oh, minha amiga! Como esta esperança é cara ao meu coração! Sim, de ora em diante, livre de todo o temor, inteiramente dada ao amor, partilharás os meus desejos, os meus êxtases, o delírio dos meus sentidos, a embriaguez da minha alma; e cada instante dos nossos dias afortunados será assinalado por uma nova voluptuosidade. Adeus, adoro-te! Ver-te-ei esta tarde, mas encontrar-te-ei só?
Não ouso esperá-lo. Ah! Tu não o desejas tanto como eu. Paris, 1 de Dezembro de 17* *.
CARTA CXLIX MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Ontem durante todo o dia tive esperanças, minha digna amiga, de vos poder dar esta manhã notícias mais favoráveis da saúde da nossa querida doente; mas desde ontem à tarde que essa esperança foi destruída, e só me resta a pena de a ter perdido. Um acontecimento, bem indiferente na aparência, mas bem cruel pelas conseqüências que teve, tornou o estado da doente tão lastimável como antes, se é que o não agravou. Nada teria compreendido desta súbita transformação, se ontem não tivesse recebido as confidências da nossa infeliz amiga. Como ela me não deixou ignorar que também estáveis informada de todos os seus infortúnios, posso falar sem reserva sobre a sua triste situação. Ontem de manhã, quando cheguei ao convento, disseram-me que a doente dormia há mais de três horas; e o sono era tão profundo e tranqüilo, que por um momento receei que fosse letárgico. Algum tempo depois acordou, e abriu ela própria as cortinas do leito. Olhou-nos a todos surpreendida; e quando me levantei para ir junto dela, reconheceu-me, chamou-me e pediu-me que me aproximasse. Não me deu tempo para a interrogar, e perguntou-me onde estava, o que fazíamos ali, se estava doente e por que não se encontrava em casa. Primeiro pensei que se tratava dum novo delírio, embora mais tranqüilo que o precedente, mas vi que ela compreendia muito bem as minhas respostas. Tinha com efeito recuperado a razão, mas não a memória. Interrogou-me, com muitos pormenores, sobre tudo o que lhe acontecera desde que chegara ao convento, para onde não se lembrava de ter vindo. Respondi com exatidão, suprimindo apenas o que teria podido assustá-la, e quando pelo meu lado lhe perguntei como estava, respondeu-me que não sofria nesse momento; mas que tinha sido muito atormentada durante o sono, e que ainda se sentia fatigada. Exortei-a a acalmar-se e a falar pouco; depois disto, fechei em parte as cortinas, que deixei somente entreabertas, e sentei-me perto do leito. Ao mesmo tempo, ofereceram-lhe um caldo que tomou e achou bom. Ficou assim cerca de meia hora, durante a qual não falou senão para agradecer os cuidados que eu lhe dispensara; e pôs nos agradecimentos a gentileza e a graça que lhe conheceis. Em seguida
guardou durante algum tempo um absoluto silêncio, que só rompeu para dizer: "Ah, sim, lembro-me de aqui ter vindo"; e um momento depois, gritou dolorosamente: "Minha amiga, minha amiga, lamentaime; reencontro os meus infortúnios." Como nesse momento me aproximei dela, agarrou-me na mão e, apoiando nela a cabeça, continuou: "Grande Deus, não poderei então morrer?" A sua expressão, mais ainda que as palavras, enterneceu-me até às lágrimas; compreendeu-o pela minha voz, e disse-me: "Lamentais-me! Ah, se soubésseis..." E depois interrompendo-se: "Ordenai que nos deixem sós, e dir-vos-ei tudo. " Tal como julgo ter-vos indicado, tinha já suspeitas sobre qual deveria ser o assunto desta confidência; e temendo que esta conversa, que previa dever ser longa e triste, prejudicasse o estado da nossa infeliz amiga, recusei-me a princípio, sob o pretexto de que ela necessitava de repouso, mas insistiu e acedi às suas instâncias. Assim que ficamos sós, contou-me tudo o que já vos narrou, e que por essa razão vos não repetirei. Falou-me enfim da maneira cruel como foi sacrificada e acrescentou: "Estava certa de que morreria por causa disso e tinha coragem; mas sobreviver ao infortúnio e à vergonha, é-me impossível." Tentei combater este desânimo, ou antes, este desespero, com as armas da religião, até então com tanto poder sobre ela; mas senti logo que não tinha força suficiente para essas augustas funções, e propuslhe então que se chamasse o padre Anselmo, que sei ser depositário de toda a sua confiança. Consentiu e pareceu mesmo desejá-lo muito. Mandamos com efeito buscá-lo, e ele veio imediatamente. Permaneceu muito tempo com a doente, e disse ao sair que, se os médicos pensassem como ele, julgava poder adiar a cerimônia dos sacramentos, e que voltaria no dia seguinte. Eram cerca das três horas da tarde, e até às cinco a nossa amiga esteve muito tranqüila, de modo que todos voltáramos a ter esperança. Por desgraça, trouxeram-lhe então uma carta. Quando pretenderam entregar-lha, respondeu não querer receber nenhuma e ninguém insistiu. Mas a partir desse momento, ficou muito agitada. Pouco depois, perguntou donde vinha a carta. Não estava selada. Quem a trouxera? Ninguém sabia. Da parte de quem vinha? Não o tinham dito ao porteiro. Em seguida guardou silêncio durante algum tempo; depois disto, recomeçou a falar, mas as suas frases sem seguimento só nos indicaram que o delírio voltara. Contudo houve ainda um intervalo tranqüilo, até que pediu que lhe entregassem a carta que haviam trazido para ela. Assim que lhe lançou um olhar gritou: "Dele! Meu Deus!", e depois com uma voz forte, mas abafada: "Tomem-na, tomem-na." Mandou imediatamente fechar as cortinas do leito e proibiu todos de se aproximarem, mas pouco depois fomos obrigados a voltar
junto dela. O delírio recomeçara mais violento do que nunca, e era acompanhado de convulsões verdadeiramente assustadoras. Estes acidentes não cessaram em toda a tarde; e o boletim desta manhã informa-me de que a noite não foi menos agitada. Enfim, o seu estado é tal, que me espanto que não tenha já sucumbido; e não vos escondo que me restam poucas esperanças. Suponho que essa funesta carta seria do senhor de Valmont, mas que ousará ele dizer-lhe ainda? Perdão, minha cara amiga; evitarei qualquer reflexão, mas é muito cruel ver perecer tão desgraçadamente uma mulher, até agora tão feliz e tão digna de o ser. Paris, 2 de Dezembro de 17* *.
CARTA CL O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL Enquanto espero a felicidade de te tornar a ver, minha terna amiga, entrego-me ao prazer de te escrever; e é ocupando-me de ti que atenuo a pena de estar afastado. Expor-te os meus sentimentos, recordar-me dos teus, é para o meu coração um verdadeiro prazer; e é através dele que mesmo o momento das privações me oferece ainda mil bens preciosos. No entanto, segundo disseste, não receberei resposta tua, mesmo esta carta será a última; e privar-nos-emos duma correspondência que, quanto a ti, é perigosa, e de que não temos necessidade. Claro que, se insistes, te acreditarei, pois que podes tu querer que por essa mesma razão eu não queira também? Mas antes de dizer a última palavra, não consentirás que falemos sobre isso? Quanto aos perigos, deves tu decidir, nada posso prever, e limito-me a pedir-te que olhes pela tua segurança, porque não posso estar tranqüilo sabendo-te inquieta. No que respeita a este assunto, não somos nós ambos que formamos um, és tu que és nós ambos. Não é o mesmo quanto à necessidade, aqui temos de pensar do mesmo modo, e se temos opiniões diferentes, é com certeza por não nos explicarmos ou compreendermos. Eis pois o que julgo sentir. Sem dúvida que uma carta parece muito pouco necessária quando nos podemos ver livremente. Que poderá ela dizer, que uma palavra, ou olhar, ou mesmo um silêncio, não exprimissem cem vezes melhor? Isto parece-me tão verdadeiro que, no momento em que me falaste de não mais nos escrevermos, essa idéia deslizou facilmente sobre a minha alma; perturbou-a talvez, mas não a afetou. Tal como quando, querendo beijar-te sobre o coração, encontro uma fita ou um véu; afasto-o apenas, sem chegar a ter o sentimento de um obstáculo. Mas depois separámo-nos; e logo que deixaste de estar presente, essa idéia da carta voltou a atormentar-me. Porquê,
murmurei, mais essa privação? Pois quê! Por estarmos afastados nada mais teremos a dizer-nos? Suponhamos que, favorecidos pelas circunstâncias, passamos juntos um dia inteiro; será preciso que o tempo para conversar seja roubado ao do prazer? Sim, ao do prazer, minha terna amiga; porque ao pé de ti, mesmo os momentos de repouso fornecem ainda uma voluptuosidade deliciosa. Enfim, mesmo que tenhamos muito tempo, acabamos por nos separar; e, depois, fica-se tão só! É então que uma carta se torna preciosa! Se a não lemos, pelo menos olhamo-la... Ah! Sem dúvida, pode-se olhar uma carta sem a ler, tal como de noite sinto que teria ainda prazer em tocar o teu retrato... O teu retrato, digo? Mas uma carta é o retrato da alma. Não tem, como a fria imagem, essa fixidez que tão distante é do amor; presta-se a todos os nossos movimentos: alternadamente anima-se, goza, repousa-se... Todos os teus sentimentos me são tão preciosos! Privar-me-ás dum meio de os coligir? Tens a certeza de que a necessidade de me escrever nunca te atormentará? Se na solidão o teu coração se dilata ou se aflige, se um movimento de alegria agita a tua alma, se uma involuntária tristeza a vem perturbar por um momento, não será então no seio do teu amigo que expandirás a tua felicidade ou o teu desgosto? Terás então um sentimento que ele não partilhará? Deixá-lo-ás então, sonhador e solitário, vaguear longe de ti?... Minha amiga!... Minha terna amiga!... Mas é a ti que compete decidir. Quis somente debater o assunto e não seduzir-te; só te apresentei razões, ouso crer que seria mais convincente com súplicas. Procurarei, se persistes, não me afligir; farei esforços para dizer a mim próprio o que me terias escrito, mas escuta, di-lo-ias melhor do que eu; e sobretudo ser-me-ia muito mais agradável de ouvir. Adeus, minha encantadora amiga; aproxima-se a hora em que te poderei ver, abandono-te com pressa, para te reencontrar mais cedo. Paris, 3 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Sem dúvida, Marquesa, me não julga tão inexperiente, a ponto de pensar que me pude deixar iludir quanto ao encontro a sós em que a surpreendi esta tarde, e ao espantoso acaso que conduzira Danceny a sua casa! Não é que a sua fisionomia tão treinada não tenha sabido assumir às mil maravilhas uma expressão calma e serena, nem que se tenha traído por alguma das frases que às vezes escapam à
perturbação ou ao pesar. Concordo até que os seus olhares dóceis a serviram perfeitamente; e se se tivessem feito acreditar tão bem como compreender, eu estaria longe de sentir ou conservar a mínima suspeita, e nem por um momento desconfiaria do desgosto enorme que lhe causava esse estranho importuno. Mas, para não ostentar em vão tão grandes talentos, para obter o êxito que desejava, para conseguir enfim a ilusão que procurava fazer nascer, seria preciso em primeiro lugar instruir o seu cândido amante com mais cuidado. Visto que se começa a dedicar à educação, ensine os seus alunos a não corarem e a não se desconcertarem ao mínimo gracejo; a não negarem tão vivamente, quanto a uma só mulher, as mesmas coisas de que se defendem tão debilmente quanto a outras. Ensine-lhes ainda a saberem escutar o elogio da sua amante, sem se julgarem obrigados a prestar-lhe as homenagens; e se permite que a olhem em sociedade, que ao menos saibam disfarçar esse olhar de posse tão fácil de reconhecer, e que confundem tão inabilmente com o do amor. Então pode mandá-los comparecer aos exames públicos, sem que a sua conduta deixe mal a sábia professora; e eu próprio, muito feliz por concorrer para a sua celebridade, prometo-lhe elaborar e publicar os programas desse novo colégio. Mas até lá espanto-me, confesso, que fosse a mim que experimentasse tratar como um colegial. Oh, com qualquer outra mulher, depressa me vingaria! E teria nisso um tão grande prazer! Como esse prazer ultrapassaria facilmente o que ela me julgara fazer perder! Sim, é só para si que prefiro a reparação à vingança; e não julgue que esteja preso pela mínima dúvida ou pela mais ligeira incerteza; sei tudo. Está em Paris há quatro dias; e todos os dias recebeu Danceny, e só ele. Ainda hoje a sua porta estava fechada; e só faltou ao porteiro, para me impedir de chegar a si, uma segurança igual à sua. No entanto eu podia ter a certeza, como me mandou dizer, de ser o primeiro informado da sua chegada; dessa chegada de que ainda me não podia informar o dia, enquanto me escrevia na véspera da partida. Negará estes fatos ou tentará desculpar-se? Uma e outra coisa são igualmente impossíveis; e no entanto ainda me contenho! Por aqui reconhecerá o seu poder; mas creia-me, satisfeita por o ter experimentado, não deverá abusar dele mais tempo. Conhecemo-nos bem, Marquesa; estas palavras devem bastar-lhe. Disse-me que amanhã estará fora de casa todo o dia? Oxalá que saia de fato; pode ter a certeza de que o saberei. Mas, enfim, voltará ao fim da tarde; e para a nossa difícil reconciliação, não teremos tempo de sobra até ao dia seguinte. Mande-me dizer se será em sua casa, ou na outra, que se farão as nossas numerosas e recíprocas expiações. Sobretudo, acabou-se o Danceny. A sua má cabeça estava cheia dele, não posso ter ciúmes desse delírio da imaginação, mas pense que a partir deste momento, o que era apenas
uma fantasia tornar-se-á uma nítida preferência. Não me julgo feito para essa humilhação, e não quero recebê-la de si. Conto até que esse sacrifício não vos pareça tal. Mas mesmo que lhe custasse um tanto, parece-me que já lhe dei um belo exemplo! Uma mulher simultaneamente sensível e bela, que só vivia para mim, e que neste momento morre talvez de amor e remorso, vale bem um jovem colegial, a quem, poderemos dizer, não falta figura nem espírito, mas que não tem nem prática nem segurança. Adeus, Marquesa; nada lhe digo dos meus sentimentos por si. Prefiro neste momento não sondar o meu coração. Espero a sua resposta. Medite bem nela, pense bem que tanto quanto lhe é fácil ainda fazer-me esquecer ofensa que me infligiu, tanto mais uma recusa da sua parte, um simples adiamento, a gravará no meu coração em traços inapagáveis. Paris, noite de 3 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Tenha cuidado, Visconde, poupe mais a minha extrema timidez! Como quer que eu suporte a idéia deprimente de incorrer na sua indignação; e sobretudo que não sucumba ao terror da sua vingança? Tanto mais que, como sabe, se me fizer uma infâmia ser-meá impossível retribuí-la. Seria escusado que eu falasse, a sua existência não seria nem menos brilhante, nem menos tranqüila. Na verdade, que teria a temer? Ser obrigado a partir, se lhe dessem tempo. Mas não se vive no estrangeiro tão bem como aqui? E afinal de contas, contanto que a Corte de França o deixasse tranqüilo onde se fixasse, para si seria apenas mudar o cenário dos seus triunfos. Após ter tentado chamá-lo à razão por meio destas considerações morais, voltemos ao nosso problema. Sabe, Visconde, por que é que não tornei a casar? Não foi com certeza por não ter encontrado partidos vantajosos; mas unicamente para que ninguém tenha o direito de censurar as minhas ações. Nem sequer foi por medo de não poder fazer o que me apetecesse, pois sempre acabaria por o conseguir, mas porque me teria incomodado a idéia de que alguém se julgasse com direito a queixar-se; e, enfim, porque só gosto de atraiçoar por prazer, e não por necessidade. E eis que o Visconde me escreve a carta mais conjugal que se possa imaginar! Só me fala de erros do meu lado e de benevolência do seu! Mas como se pode faltar àquele a quem nada se deve? Não sou capaz de o saber!
Vejamos: afinal de que se trata? Encontrou Danceny em minha casa, e isso desagradou-lhe? Pois bem: e que concluiu daí? Ou que se tratava dum acaso, como eu lhe disse, ou que fora por minha vontade, ao contrário do que lhe dizia. No primeiro caso a sua carta é injusta; no segundo, ridícula; não valia a pena escrevê-la! Mas está com ciúmes, e os ciúmes não raciocinam. Pois bem! Pensarei eu por si. Ou tem rival, ou não. Se tem, deve agradar para ser preferido; se não tem, deve agradar ainda mais para evitar vir a tê-lo. Em ambos os casos, deve seguir a mesma conduta; assim, para que atormentar-se! Para quê, sobretudo, atormentar-me a mim! Já não sabe ser amável? Já duvida do seu êxito? Vejamos, Visconde, é injusto para si próprio. Mas não é isso; é que, aos seus olhos, eu não mereço tanto trabalho. Deseja muito menos as minhas bondades, do que abusar do seu poder. Vamos, o Visconde é um ingrato. E aqui estou eu a ficar sentimental! E por pouco que eu continuasse neste tom, esta carta podia tornar-se muito terna, mas o senhor não o merece. Também não merece que eu me justifique. Para o castigar das suas suspeitas, deixo-o ficar com elas, deste modo, nada direi sobre a data do meu regresso, nem sobre as visitas de Danceny. Teve muito trabalho para se informar, não é verdade? Pois bem! Já está mais adiantado? Espero que tenha tido muito prazer nessa tarefa; quanto a mim, em nada estragou o meu. O que posso responder à sua ameaçadora carta, é que ela não teve nem o dom de me agradar, nem o poder de me intimidar; e que neste momento não estou nada disposta a aceder aos seus pedidos. Para falar verdade, aceitá-lo tal como hoje se mostra, seria fazerlhe realmente uma infidelidade. Não era recomeçar com o meu antigo amante; mas antes arranjar um novo, e que nem de longe vale o outro. Ainda não esqueci bastante o primeiro para assim me enganar. O Valmont que eu amava era encantador. Concordo mesmo que não encontrei homem mais agradável. Ah, suplico-lhe, Visconde, se o encontrar, traga-mo; esse será sempre bem recebido. Contudo previna-o de que, em qualquer caso, não será nem para hoje nem para amanhã. O seu Menechmel* prejudicou-o; e, apressando-me demasiado, temo enganar-me. Ou talvez já eu tenha dado a palavra a Danceny para esses dois dias? E a sua carta mostroume que se zangava quando faltavam à palavra. Bem vê que é preciso esperar. Mas que lhe importa? Acabará por se vingar bem do seu rival. Ele não fará pior à sua amante do que o Visconde já fez à dele; e afinal, não vale uma mulher o mesmo que outra? São estes os seus princípios. Mesmo aquela que fosse terna e sensível, que existisse só para si, que morresse por fim de amor e remorso, seria do mesmo modo sacrificada
à primeira fantasia, ao terror de ser troçado por um momento; e quer que nos mortifiquemos? Ah, isso não é justo. Adeus, Visconde; volte de novo a ser amável. Escute, só quero achá-lo outra vez encantador; e desde que esteja certa disso, comprometo-me a provar-lho. Sou na verdade demasiado indulgente. Paris, 4 de Dezembro de 17* *.
*Alude à comédia de Plauto Os Menechmes, que trata de dois irmãos gêmeos, inteiramente semelhantes. (N. do T.)
CARTA CLIII O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL Respondo imediatamente à sua carta, e procurei ser claro; o que não é fácil em relação a si, quando por vezes toma a decisão de não compreender. Não eram necessários longos discursos para estabelecer que, tendo cada um de nós na mão tudo o que é preciso para destruir o outro, temos igual interesse em nos pouparmos mutuamente: não é
disso que se trata. Mas, entre a decisão violenta de nos destruirmos, e a outra, sem dúvida melhor, de ficarmos unidos como temos sido, de nos tornarmos ainda mais íntimos reatando a nossa antiga ligação; entre estas duas decisões, dizia eu, há mil outras a tomar. Não é ridículo dizerlhe, repetir-lhe que, a partir de hoje, serei seu amante ou seu inimigo. Bem vejo que a necessidade da escolha a importuna; que lhe agradaria mais tergiversar; e não ignoro que nunca foi do seu agrado ser assim colocada entre o sim e o não, mas deve sentir também que a não posso deixar sair desse círculo estreito sem me arriscar a ser iludido; e devia prever que o não suportaria. Compete-lhe pronunciar-se: deixo-lhe a decisão, mas não posso ficar na incerteza. Já a previno de que me não enganará com os seus raciocínios, bons ou maus; que me não seduzirá com lisonjas a enfeitar recusas; e que enfim chegou o momento da franqueza. Desejo até dar-lhe o exemplo; e declaro com prazer que prefiro paz e união, mas se é preciso quebrar ambas, quero ter o direito e os meios para tal. Acrescento até que o mínimo obstáculo levantado do seu guerra, bem vê que a resposta que lhe peço não exige frases largas e belas. Bastam duas palavras. Paris, 4 de Dezembro de 17* * Resposta da Marquesa de Merteuil escrita no fim da mesma carta. Pois bem: guerra.
CARTA CLIV MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Os boletins informar-vos-ão melhor do que eu poderia fazer, minha cara amiga, acerca do estado grave da nossa doente. Inteiramente entregue aos cuidados que lhe dispenso, só roubo tempo para vos escrever, quando há outros acontecimentos além dos da doença. Eis um, que eu estava bem longe de esperar. Trata-se duma carta do senhor de Valmont, a quem aprouve escolher-me como confidente e mesmo como intermediária junto de Madame de Tourvel, para quem juntara uma carta à minha. Devolvi uma ao mesmo tempo que respondia à outra. Mando-vos esta última e penso que julgareis, como eu, que não podia nem devia fazer o que ele me pede. Mesmo que o tivesse querido, a nossa infeliz amiga não estaria em estado de me compreender. O delírio é contínuo. Mas que dizeis deste desespero do
senhor de Valmont? Em primeiro lugar, devemos acreditá-lo, ou quererá ele somente iludir todos e até ao fim? Se desta vez é sincero, bem pode dizer que construiu ele próprio a sua infelicidade. Creio que terá ficado pouco satisfeito com a minha resposta, mas confesso que tudo o que me faz pensar sobre esta funesta aventura me revolta cada vez mais contra o seu autor. Adeus, minha querida amiga; volto às minhas tristes funções, e pouca esperança tenho de as ver coroadas de êxito. Conheceis os meus sentimentos para convosco. Paris, 5 de Dezembro de 17* *.
N. dos T. - Na edição Classiques Garnier", de 1952, elaborada sobre o manuscrito autógrafo, dá-se em nota a carta referida por Madame de Volanges, que Laclos teria escrito e depois suprimido, e de que damos a tradução:
O VISCONDE DE VALMONT A MADAME DE VOLANGES Sei, minha senhora, que não gostais de mim; também não ignoro que fostes sempre contrária à minha pessoa junto de Madame de Tourvel, e do mesmo modo não tenho dúvidas de que, mais do que nunca, experimenteis os mesmos sentimentos a meu respeito. Convenho até que possais julgar justos esses sentimentos. Entretanto, é a vós que me dirijo, e não receio pedir-vos que entregueis a Madame de Tourvel a carta que junto aqui para ela, e ainda solicitar-vos que consigais que a leia e a disponhais a isso dandolhe a certeza do meu arrependimento, do meu pesar e sobretudo do meu amor. Sinto que esta diligência poderá parecer-vos estranha; a mim próprio ela admira. Mas o desespero apodera-se dos meios sem os calcular, e, por outro lado, um interesse tão grande, tão caro e que nos é comum deve afastar qualquer outra consideração. Madame de Tourvel está à morte; Madame de Tourvel é infeliz; é necessário restituirlhe a vida, a saúde e a felicidade. Eis o objetivo a cumprir. Todos os meios são bons, desde que possam assegurar ou apressar o êxito. Se rejeitardes este que vos ofereço, ficareis responsável pelo acontecimento da sua morte, o vosso pesar e o meu desespero eterno, tudo será obra vossa. Sei que ultrajei indignamente uma mulher digna de toda a minha adoração; sei que só as minhas torpes ofensas são a causa de todos os males que ela suporta. Não pretendo diminuir as minhas faltas nem desculpá-las. Mas vós, senhora, deveis temer tornarvos cúmplice impedindo-me de as reparar. Mergulhei o punhal no coração da vossa amiga, mas só eu posso retirar o ferro da ferida, só eu conheço os meios de a curar. Que importa que eu seja culpado, se posso ser útil? Salvai a vossa amiga, salvai-a! É do vosso socorro que ela necessita, e não da vossa vingança.
Paris, 4 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLV O VISCONDE DE VALMONT AO CAVALEIRO DANCENY Passei duas vezes por sua casa, meu caro Cavaleiro, mas desde que abandonou o papel de apaixonado pelo de aventureiro galante, é impossível encontrá-lo. Todavia o seu criado de quarto assegurou-me que voltaria a casa esta tarde, e que tinha ordem para o esperar; mas eu, que estou ao par dos seus projetos, bem vi que o meu amigo não voltaria senão por um momento, para vestir o trajo apropriado, e que imediatamente recomeçaria as suas corridas vitoriosas. Ainda bem, e só devo aplaudi-lo, mas talvez, para esta noite, seja tentado a mudar de direção. Ignora ainda o caminho que tomaram metade dos assuntos que lhe dizem respeito; devo pô-lo ao corrente daquele que desconhece, e depois decidirá. Dedique algum tempo a ler esta carta. Não será afastá-lo dos seus prazeres, pois, pelo contrário, ela tem como objetivo permitir-lhe a escolha. Se fosse eu o depositário de todas as suas confidências, se tivesse sabido por si a parte dos segredos que fui forçado a adivinhar, a elucidação teria vindo a tempo; e o meu zelo, menos hábil, não entravaria agora os seus movimentos. Mas partamos do ponto em que estamos. Qualquer que seja a decisão que tome, nunca deixará de fazer a felicidade de alguém. Tem um encontro para esta noite, não é verdade? Com uma mulher encantadora e a quem adora? Pois na sua idade, que mulher não adoramos, pelo menos nos oito primeiros dias! O cenário deve contribuir também para o prazer. Uma casinha deliciosa, que existe só para si, deve aumentar a voluptuosidade com os encantos da liberdade e do mistério. Está tudo combinado, esperam-no e o meu amigo arde no desejo de chegar! Eis o que ambos sabemos, se bem que nada me tenha dito. Agora, eis o que não sabe, e de que devo informá-lo. Desde o meu regresso a Paris que me ocupava com os meios de o pôr em contato com Mademoiselle de Volanges, tal como lhe prometera; e ainda da última vez que lhe falei, tive ocasião de julgar pelas suas respostas, direi até pelo seu entusiasmo, que contribuía para a sua felicidade. Sozinho não conseguiria eu resolver esta questão tão difícil, mas, depois de ter preparado os meios, deixei o resto entregue ao zelo da sua jovem apaixonada. Ela encontrou, no seu amor, recursos que faltavam à minha experiência, enfim, para mal do meu amigo, ela conseguiu o que
desejava. Há dois dias, disse-me ela esta tarde, que todos os obstáculos estão vencidos e que a vossa felicidade depende só de si. Há dois dias que anseia por transmitir-vos ela própria a notícia, e, apesar da ausência da mãe, não deixaria por isso de ser recebido, mas nem sequer apareceu! E, para lhe não esconder nada, ou por capricho ou a valer, a criaturinha pareceu-me um tanto zangada por essa falta de ardor da sua parte. Encontrou enfim um meio de me mandar chamar e obrigou-me a prometer que lhe enviaria o mais cedo possível a carta que junto. Pelo zelo que mostrou, iria apostar que se trata dum encontro para esta noite. Seja o que for, prometi, pela honra e pela amizade, que lhe faria chegar às mãos a terna missiva durante o dia, e não posso nem quero faltar à minha palavra. E agora, jovem, que tenciona fazer? Colocado entre a coqueteria e o amor, entre o prazer e a felicidade, qual vai ser a sua escolha? Se eu falasse ainda ao Danceny de há três meses, ou mesmo de há oito dias, conhecedor do coração dele, sê-lo-ia também das suas decisões; mas o Danceny de hoje, arrastado pelas mulheres, entregando-se a aventuras, e tornado, como é costume, um tanto nervoso, preferirá ele uma donzela tímida, que só tem por si a beleza, a inocência e o amor, aos atrativos duma mulher experiente? Por mim, meu caro amigo, parece-me que, mesmo dentro dos seus novos princípios, que confesso serem também um pouco os meus, as circunstâncias far-me-iam decidir pela jovem amante. Primeiro, será mais uma, e depois a novidade, e ainda o temor de perder o fruto dos seus cuidados desprezando colhê-lo; porque, enfim, por esse lado, seria de fato uma oportunidade falhada, que nem sempre volta, sobretudo se se trata duma primeira fraqueza, muitas vezes, neste caso, basta um momento de zanga, uma suspeita de ciúme, menos ainda, para impedir o mais belo triunfo. A virtude que se afoga agarra-se às vezes aos ramos; mas uma vez salva, mantém uma certa reserva e não é já fácil de surpreender. E do outro lado, afinal que se arrisca? Nem sequer uma ruptura; quando muito uma disputa, que, com alguns cuidados, pagará o prazer duma reconciliação. Que mais resta a uma mulher que se entregou, a não ser á indulgência? Que poderá ganhar com a severidade? A perda dos prazeres, sem proveito para a sua reputação. Se, como suponho, seguir o caminho do amor, que me parece ser também o da razão, creio que será prudente não se desculpar pela falta do encontro; deixe simplesmente que o esperem, se se arrisca a dar uma desculpa é muito possível que tentem verificá-la. As mulheres são curiosas e obstinadas; tudo se pode descobrir, acabo, como sabe, de ser vítima de um exemplo disso. Mas se lhe deixar a esperança, como será alimentada pela vaidade, só morrerá muito tempo depois do momento propício para as informações, e então amanhã o meu amigo só terá de escolher o obstáculo intransponível que o reteve; esteve doente, morto até se for
preciso, ou qualquer outra coisa com que estará igualmente desesperado, e tudo se arranjará. De resto, qualquer que seja a decisão que tome, peço-lhe só que me informe; e como não tenho qualquer interesse, acharei sempre que fez bem. Adeus, meu caro amigo. Acrescento ainda que lastimo Madame de Tourvel; estou desesperado por estar separado dela; daria metade da minha vida pela felicidade de lhe consagrar a restante. Ah! Acredite-me, só o amor nos pode fazer felizes. Paris, 5 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLVI CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY (Junta à precedente) Por que é que acontece, meu caro amigo, que deixo de o ver, quando não deixo de lhe querer? Não o deseja tanto como eu? Ah! Agora é que estou triste! Mais triste do que quando estávamos completamente separados. O desgosto que os outros me faziam sofrer é agora de si que me vem, e isso custa-me muito mais. Desde há uns dias que a Mamã nunca está em casa, bem o sabe; e esperava que procurasse aproveitar esse tempo de liberdade, mas já nem sequer pensa em mim; sou muito infeliz! Tanta vez me disse que era eu que amava menos! Eu bem sabia que era o contrário, e eis a prova. Se tivesse vindo ver-me, ter-me-ia visto de fato, porque eu não sou como o Cavaleiro; penso só no que nos pode reunir. Merecia que eu nada lhe dissesse do que fiz para isso, e que me deu tanto trabalho, mas amo-o demasiado e tenho tanta vontade de o ver, que não posso fugir a dizer-lhe tudo. E depois, verei se realmente me tem amor! Trabalhei tão bem que convenci o porteiro, o qual me prometeu que o deixará entrar como se o não visse todas as vezes que venha, e podemos confiar nele, porque é muito boa pessoa. Trata-se apenas de evitar que o vejam em casa; e isso será muito fácil, se só vier à noite, quando já nada há a temer. Por exemplo, desde que a Mamã sai todos os dias, deita-se todas as noites às onze horas; assim teremos tempo de sobra. O porteiro disse-me que quando quiser vir deste modo, em vez de bater à porta, deve bater à janela dele e que ele abrirá imediatamente; e, depois, achará a escada interior; e como não pode usar luz, deixarei a porta do meu quarto entreaberta, o que sempre o
iluminará um pouco. Tomará cuidado em não fazer barulho, principalmente ao passar pela porta da Mamã. Quanto à da minha criada de quarto, não faz mal, porque me prometeu que não acordaria; é também muito boa rapariga! E para se ir embora, será o mesmo. Agora, veremos se vem. Meu Deus, por que é que sinto o coração bater tão forte enquanto lhe escrevo? É porque me vai acontecer alguma infelicidade, ou é a esperança de o ver que assim me perturba? O que sinto é que nunca o amei tanto, e nunca desejei tanto dizer-lho. Venha, meu amigo, meu querido amigo; para que lhe possa repetir cem vezes que o amo, que o adoro, que só o amarei a si. Achei um meio de mandar dizer ao senhor de Valmont que precisava falar-lhe; e ele, como é um bom amigo, virá com certeza amanhã, e vou pedir-lhe que lhe mande logo a minha carta... Esperá-lo-ei pois amanhã à noite, e virá sem falta se não quiser que a sua Cecília seja muito infeliz. Adeus, meu caro amigo; beijo-o com todo o amor. Paris, 4 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLVII O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT Não duvide, meu caro Valmont, nem do meu coração, nem do meu procedimento: como poderia eu resistir a um desejo da minha Cecília? Ah! É certamente ela a única que amo, que sempre amarei! A sua ingenuidade, a sua ternura, têm para mim um encanto de que pude ter a fraqueza de me deixar afastar, mas que nada apagará. Metido noutra aventura, por assim dizer sem dar por isso, muitas vezes a lembrança de Cecília me veio perturbar mesmo nos mais doces prazeres; e talvez nunca o meu coração lhe tenha rendido homenagens mais verdadeiras do que no próprio momento em que lhe era infiel. Contudo, meu amigo, respeitemos a delicadeza dela, e escondamos-lhe os meus erros; não para a iludir, mas para a não afligir. A felicidade de Cecília é o mais ardente voto que formulo; nunca me perdoaria uma falta que lhe tivesse custado uma lágrima. Mereci, bem o sinto, as zombarias que me dirige, sobre o que chama os meus novos princípios, mas pode crer que não é por eles que me guio neste momento; e a partir de amanhã estou decidido a proválo. Ir-me-ei acusar àquela que foi a causa do meu desvario e o partilhou; dir-lhe-ei: "Lede no meu coração; ele tem por vós a mais terna amizade; a amizade unida ao desejo parece-se tanto com o amor!... Enganámo-nos ambos; mas, suscetível de erro, sou incapaz de má fé." Conheço a minha amiga; é tão honesta como indulgente; fará mais do
que perdoar, aprovar-me-á até. Ela própria muitas vezes se censurava por ter traído a amizade; muitas vezes a sua suscetibilidade perturbava o amor. Mais sensata do que eu, fortificará na minha alma esses temores que eu temerariamente procurava sufocar na sua. Ficar-lhe-ei devendo o ter-me tornado melhor e a si o ser mais feliz. Ó meus amigos! Partilhem o meu reconhecimento. A idéia de que lhes devo a felicidade aumenta-lhe o valor. Adeus, meu caro Visconde. O excesso de alegria não me impede de pensar nas suas penas, e de as compartilhar. Se lhe pudesse ser útil! Madame de Tourvel continua então inexorável? Dizem-na doente. Meu Deus, como tenho pena de si! Oxalá que ela recupere simultaneamente a saúde e a indulgência, e o faça eternamente feliz! São os desejos da amizade; espero que o amor os escute. Gostaria de falar mais tempo consigo; mas o tempo urge, e talvez já Cecília me espere. Paris, 5 de Dezembro de 17* *, à noite.
CARTA CLVIII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL (Ao despertar) Então, Marquesa, que tal os prazeres da noite passada? Um pouco fatigada? Concorde que Danceny é encantador! Faz prodígios, esse rapaz! Não esperava isto dele, não é verdade? Vamos, quero ser justo para comigo mesmo; semelhante rival merecia bem que eu lhe fosse sacrificado. A sério, é um rapaz cheio de boas qualidades! Mas sobretudo de amor, constância, delicadeza! Ah! Se conseguir que ele a ame como ama a sua Cecília, nunca mais terá rivais a temer: ele provou-lhe esta noite. Talvez, à força de coqueteria, outra mulher possa roubá-lo por um momento; os jovens não sabem resistir a fosquinhas provocantes; mas esteja tranqüila, uma palavra só do objeto amado basta, como agora vê, para dissipar as ilusões; assim só lhe falta vir a ser esse objeto para ser perfeitamente feliz. Certamente a Marquesa não falhará; possui um tato demasiado seguro para que se possa recear tal. No entanto, a amizade que nos une, tão sincera da minha parte como reconhecida da sua, levou-me a desejar-lhe a experiência desta noite; foi obra do meu zelo, que teve um belo êxito, mas nada de agradecimentos; não vale a pena, nada podia ser mais fácil.
No fundo, que me custou? Um ligeiro sacrifício e um pouco de habilidade. Consenti em partilhar com esse jovem os favores da amada dele; mas enfim, ele sempre tinha tantos direitos como eu; esquecerame disso! A carta que ela lhe escreveu, fui eu que a ditei, mas foi só para ganhar tempo, porque bem sabíamos em que o empregar. A que eu próprio enviei, oh!, não era nada, quase nada; algumas reflexões da amizade para guiar a escolha do novo amante, mas, por minha honra, eram inúteis; a verdade deve dizer-se, ele não hesitou um momento. E depois, com toda aquela candura, irá hoje a sua casa contarlhe tudo; e certamente essa narrativa lhe agradará ! Começará assim: "Lede no meu coração" é o que ele me escreveu, e bem vê que desta forma tudo se remedeia. Espero que, ao fazer essa leitura, compreenda finalmente que os amantes demasiado jovens têm os seus perigos; e ainda que mais vale ter-me como amigo do que como inimigo. Adeus, Marquesa; até à primeira ocasião. Paris, 6 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLIX A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Não gosto que se acrescentem graças de mal gosto a atitudes deselegantes; e isso não está mais nos meus hábitos que no meu gosto. Quando tenho motivos de queixa de alguém, não o escarneço; faço melhor: vingo-me. Por muito contente que esteja neste momento, não se esqueça de que não seria a primeira vez que se aplaudiria antecipadamente, na esperança dum triunfo que lhe escaparia no próprio momento em que se felicitava. Adeus. Paris, 6 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLX MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Escrevo do quarto da nossa infeliz amiga, cujo estado é mais ou menos o mesmo. Hoje à tarde haverá uma conferência de quatro médicos. O que, como sabeis, costuma ser mais uma prova de perigo do que um socorro. Parece no entanto ter recuperado um pouco de lucidez durante a noite passada. A criada de quarto informou-me esta manhã que, por
volta da meia-noite, a sua ama a chamou; quis ficar sozinha com ela, e ditou-lhe uma carta assaz longa. Júlia acrescentou que, quando estava ocupada a preencher o sobrescrito, o delírio se apossou de novo de Madame de Tourvel de forma que a rapariga ficou sem saber a quem o remeter. Admirei-me a princípio de que a própria carta não bastasse para lho revelar, e tendo-me ela respondido que receara enganar-se e que a Presidente lhe recomendara que enviasse a carta imediatamente, tomei a decisão de a abrir. Mando-vos justamente o que encontrei, e que na verdade não se dirige a ninguém, visto que se dirige a toda a gente. Creio no entanto que foi ao senhor de Valmont que a nossa infeliz amiga quis primeiro escrever, mas acabou por ceder, sem dar por isso, à desordem das idéias. Como quer que seja, pensei que esta carta não devia ser remetida a ninguém. É a vós que a envio, pois assim podereis ver melhor os pensamentos que ocupam o cérebro da nossa doente. Enquanto permanecer tão vivamente afetada, não terei esperanças. O corpo dificilmente se restabelece quando o espírito está tão pouco tranqüilo. Adeus, querida e digna amiga. Felicito-vos por estardes afastada do triste espetáculo que tenho diariamente debaixo dos olhos. Paris, 6 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXI A PRESIDENTE DA TOURVEL A... (Ditada por ela e escrita pela criada de quarto) Ente cruel e malfazejo, não deixarás de me perseguir? Não te basta teres-me torturado; degradado, aviltado, queres ainda roubar-me a paz do túmulo? Pois como! Nesta mansão de trevas onde a ignomínia me obrigou a enterrar-me, as dores não dão tréguas e a esperança é desconhecida? Não imploro um perdão que não mereço, para sofrer sem me queixar, bastará que os sofrimentos não excedam as minhas forças. Mas não tornes os tormentos insuportáveis. Deixa-me as dores, apaga-me a cruel memória dos bens que perdi. Depois de mos roubares, não traces de novo diante dos meus olhos a sua desoladora imagem. Eu era inocente e tranqüila; foi por te ter visto que perdi o repouso; foi ao escutar-te que me tornei criminosa. Autor dos meus erros, que direito tens de os punir? Onde estão os amigos que me adoravam, onde estão eles? O meu infortúnio horroriza-os. Nenhum ousa aproximar-se. Sinto-me oprimida, e eles deixam-me sem auxílio! Morro, e ninguém me lamenta. Toda a consolação me é recusada. A piedade detém-se nas margens do abismo onde o criminoso mergulha.
Os remorsos dilaceram-no, e os seus gritos não são ouvidos! E tu, a quem ultrajei; tu, cuja estima aumenta o meu suplício; tu, que serias afinal o único a ter o direito de te vingares, que fazes longe de mim? Vem punir uma mulher infiel. Que eu sofra finalmente tormentos merecidos. Já me teria submetido à tua vingança; mas faltou-me a coragem de te revelar a tua desonra. Não foi por dissimulação, foi por respeito. Que ao menos esta carta te informe do meu arrependimento. O céu assumiu a defesa da tua causa e vinga-te duma injúria que ignoravas. Foi ele que me prendeu a língua e me reteve as palavras; receou que me perdoasses uma falta que ele queria punir. Subtraiu-me à tua indulgência, que teria ferido a sua justiça. Implacável na sua vingança, abandonou-me àquele que me desgraçou. Este último é simultaneamente o causador do meu desvario e o carrasco que me castiga. Em vão lhe quero fugir; persegue-me; está sempre presente, obceca-me sem cessar. Mas como está mudado! Os olhos exprimem apenas ódio e desprezo. A boca só profere insultos e censuras. Os braços, que dantes me abraçavam, querem despedaçar-me. Quem me salvará do seu bárbaro furor? Mas quê? É ele... Não me engano; é ele que volto a ver. Oh, meu adorável amigo! Acolhe-me nos teus braços; esconde-me no teu seio: sim, és tu, és tu mesmo! Por que funesta ilusão não te tinha reconhecido? Como sofri com a tua ausência ! Oh ! Não nos separemos outra vez. Nunca mais nos separemos. Deixa-me respirar. Vê como o meu coração bate! Ah! Já não é de receio, mas sim da doce emoção do amor. Por que te recusas às minhas ternas carícias? Mostra-me o teu olhar tão doce! Que laços procuras desta maneira romper? Para quem preparas esse cadafalso? Que é que te transtorna assim a fisionomia? Que fazes? Deixa-me: tremo! Deus! É outra vez esse monstro! Minhas amigas, não me abandoneis. Vós que me aconselháveis a evitá-lo, ajudai-me a combatê-lo; e vós que, mais indulgente, havíeis prometido diminuir as minhas dores, vinde pois para junto de mim. Onde estais ambas? Se já não é permitido ver-vos, respondei ao menos a esta carta; dizei ao menos que a vossa amizade é ainda a mesma. Larga-me, cruel! Que nova fúria te anima? Receias que um sentimento suave penetre até à minha alma? Duplicas os meus tormentos; obrigas-me a odiar-te. Oh! Como o ódio é doloroso! Como corrói o coração que o destila! Por que me persegues? Que podes ter ainda para me dizer? Não me colocaste na impossibilidade de te escutar e de te responder? Não esperes mais nada de mim. Adeus, senhor. Paris, 5 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXII O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT Estou informado, senhor, do vosso procedimento para comigo. Sei também que, não contente por me terdes indignamente enganado, não receais vangloriar-vos e aplaudir-vos. Vi a prova da traição escrita por vosso punho. Confesso que senti o coração compungido, e que tive vergonha de ter contribuído para o odioso abuso que fizestes da minha cega confiança, contudo não vos invejo este vergonhoso triunfo; tenho apenas curiosidade de saber se o conservareis no campo da honra. Espero ter a resposta amanhã de manhã, entre as oito e nove horas, se quiserdes aparecer na porta do bosque de Vincennes, aldeia de Saint-Mande. Encarregar-me-ei de aí fazer aparecer tudo o que for necessário para os esclarecimentos que me restam obter de vós. Cavaleiro Danceny. Paris, 6 de Dezembro de 17* *, à noite.
CARTA CLXII O SENHOR BERTRAND A MADAME DE ROSEMONDE Minha senhora, É com grande pena que cumpro o doloroso dever de anunciar uma notícia que vos vai causar um tão grande desgosto. Permiti que exorte em primeiro lugar essa piedosa resignação que todos admiram por vós, e que é o único sentimento capaz de nos ajudar a suportar os males de que está semeada a nossa miserável vida. O senhor vosso sobrinho... Meu Deus! Ver-me obrigado a afligir uma tão respeitável dama! O vosso sobrinho teve a infelicidade de sucumbir num combate singular que teve esta manhã com o Cavaleiro Danceny. Ignoro inteiramente a causa da disputa; mas afigura-se-me, pelo bilhete que encontrei ainda na algibeira do senhor Visconde e que tenho a honra de vos enviar, afigura-se-me, dizia, que não era ele o agressor. E foi justamente ele que o céu permitiu que sucumbisse! Estava eu em casa do senhor Visconde, esperando-o, no próprio momento em que o trouxeram. Imaginai a minha perturbação, ao ver o vosso sobrinho conduzido por dois criados e todo banhado em sangue. Recebera dois golpes, e já se encontrava muito fraco. O senhor
Danceny estava também presente, e chorava. Ah! Sem dúvida que deve chorar, mas de que serve derramar lágrimas quando se causou uma desgraça irreparável! Eu por mim não me contive; e apesar do pouco que sou, disselhe o que pensava do caso. Mas foi então que o senhor Visconde se mostrou verdadeiramente grande. Ordenou que me calasse; agarrou na mão do assassino, chamou-lhe amigo, beijou-o diante de todos, e disse-nos: "Ordeno-vos que trateis este senhor com toda a consideração devida a um homem valente e de brio." Mandou ainda que lhe entregassem, diante de mim, uns papéis volumosos que não conheço, mas de que sei terem para ele muita importância. Em seguida, quis que os deixassem sós por um momento. Entretanto eu mandara sem demora buscar todos os socorros, tanto espirituais como temporais, mas, ai!, o mal não tinha remédio. Menos de meia hora depois, o senhor Visconde perdera o conhecimento. Só pôde receber a extrema-unção; e mal a cerimônia acabara, dava ele o último suspiro. Meu Deus! Quando recebi nos braços à nascença este precioso esteio duma ilustre casa, poderia eu prever que seria nos meus braços que ele expiraria e que teria de chorar a sua morte? Uma morte tão precoce e tão infeliz! As lágrimas deslizam-me mesmo sem eu querer. Peço-vos perdão, minha senhora, de ousar misturar a minha dor à vossa, mas em todas as classes se pode ter coração e sensibilidade; e seria muito ingrato se não chorasse toda a vida um senhor que tantas atenções tinha para comigo, e que me honrava com a máxima confiança. Amanhã, depois do funeral, mandarei selar tudo e podeis descansar inteiramente nos meus cuidados. Não ignorais certamente, minha senhora, que este infeliz acontecimento anula o vosso testamento e torna as vossas disposições inteiramente livres. Se vos puder ser de qualquer utilidade, peço-vos que me queirais dar as vossas ordens, porei todo o meu zelo em as executar pontualmente. Sou, com o mais profundo respeito, minha senhora, vosso muito humilde, etc. Bertrand Paris, 7 de Dezembro de 17 * *.
CARTA CLXIV MADAME DE ROSEMONDE AO SENHOR BERTRAND Recebi a vossa carta mesmo agora, meu caro Bertrand, e por ela soube do terrível acontecimento de que o meu sobrinho foi a infeliz
vítima. Sim, sem dúvida que terei ordens a dar-vos; e só elas me farão pensar noutra coisa que não seja a minha mortal aflição. O bilhete do senhor Danceny, que me enviastes, é prova convincente de que foi ele o provocador do duelo, e a minha intenção é que apresenteis queixa imediatamente em meu nome. Perdoando ao seu inimigo, ao seu assassino, o meu sobrinho pôde satisfazer a sua natural generosidade; mas cabe-me a mim vingar ao mesmo tempo a sua morte, a humanidade e a religião. Nunca será demais excitar a severidade das leis contra este resto de selvajaria que ainda infecta os nossos costumes; e não creio que o perdão das injúrias nos possa ser prescrito num caso destes. Espero pois que seguireis esta questão com todo o zelo e toda a atividade de que vos sei capaz, e que deveis à memória do meu sobrinho. Tratareis, antes de tudo, de ir ter da minha parte com o senhor Presidente de..., e de conferenciar com ele. Não lhe escrevo, apressada como estou de me entregar inteiramente à minha dor. Apresentareis as minhas desculpas, e mostrarlhe-eis esta carta. Adeus, meu caro Bertrand; louvo e agradeço os vossos bons sentimentos, e estou para sempre ao vosso dispor. Castelo de..., 8 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXV MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Sei que já estais informada, minha querida e digna amiga, da perda que acabais de sofrer; conhecia a vossa ternura para com o senhor de Valmont, e partilho sinceramente a aflição que deveis sentir. Custa-me imenso na verdade ver-me forçada a acrescentar novas dores às que já sofreis, mas só vos resta também verter lágrimas pela nossa infeliz amiga. Perdemo-la ontem, às onze horas da noite. Por uma fatalidade ligada ao seu destino, e que parecia troçar de toda a prudência humana, o curto intervalo que sobreviveu ao senhor de Valmont foi o bastante para tomar conhecimento da morte dele; e, como ela própria o disse, para sucumbir sob o peso das suas desgraças, só depois da medida estar completamente cheia. Com efeito, já vos informara de que havia dois dias que ela estava absolutamente inconsciente; e ainda ontem de manhã, quando o médico chegou e nos aproximamos do leito, não nos reconheceu e não pudemos obter nem uma palavra, nem o menor sinal. Pois bem! Mal nos tínhamos aproximado da chaminé, e enquanto o médico me informava do triste acontecimento da morte do senhor de Valmont, aquela infeliz mulher recuperou a lucidez, ou porque a natureza sozinha
tivesse produzido essa transformação, ou porque fosse causada pelas repetidas palavras de "senhor de Valmont" e de "morte", que talvez tenham recordado à doente as únicas idéias de que ela se ocupava de há muito tempo a esta parte. Seja como for, abriu precipitadamente as cortinas do leito, gritando: "O quê! Que dizeis? O senhor de Valmont morreu?" Ainda tive esperanças de lhe fazer crer que se enganara, e assegurei-lhe a princípio que tinha ouvido mal, mas, longe de se deixar convencer, exigiu que o médico recomeçasse a cruel narrativa; e vendo que eu procurava ainda dissuadi-la, chamou-me e disse-me em voz baixa: "Para quê querer enganar-me? Ele já tinha morrido para mim!" Foi forçoso ceder. A nossa infeliz amiga escutou primeiro com um ar bastante tranqüilo; mas logo interrompeu a narrativa, dizendo: "Basta, já sei o suficiente." Pediu imediatamente que se fechassem as cortinas; e quando o médico lhe quis prestar os cuidados que o seu estado exigia, não consentiu que ele se aproximasse. Assim que ele saiu, mandou também embora a enfermeira e a criada de quarto; e quando já estávamos sós, pediu-me que a ajudasse a pôr-se de joelhos sobre o leito, e que a segurasse. Permaneceu algum tempo em silêncio, e sem outra expressão que a das lágrimas que corriam abundantemente. Por fim, juntando as mãos e elevando-as ao céu: "Deus Todo-Poderoso", disse ela com voz fraca mas fervorosa, "submeto-me à Tua justiça; mas perdoa a Valmont. Que as minhas desgraças, que reconheço merecidas, não lhe sejam motivo de censura, e bendirei a Tua misericórdia!". Permiti-me, minha querida e digna amiga, entrar em pormenores sobre um tal assunto que bem vejo deve renovar e agravar as vossas dores, apenas porque penso que este rogo de Madame de Tourvel será de grande consolo para a vossa alma. Depois de ter proferido estas poucas palavras a nossa amiga deixou-se cair nos meus braços; e mal voltara a deitá-la, veio-lhe uma prolongada fraqueza, que no entanto cedeu aos tratamentos habituais. Assim que voltou a si, pediu-me que mandasse chamar o padre Anselmo, e acrescentou: "Neste momento é o único médico de que preciso; sinto que os meus males vão em breve terminar." Dizia sentir uma opressão e falava com dificuldade. Pouco depois mandou-me entregar, pela criada de quarto, o cofrezinho* que vos envio; disse-me que continha papéis pessoais, e encarregou-me de vo-lo enviar logo após a sua morte. Em seguida falou-me de vós, e da vossa amizade por ela, tanto quanto o seu estado lho permitia, e com muita ternura. O padre Anselmo chegou por volta das quatro horas, e ficou perto de uma hora sozinho com ela. Quando entramos de novo, o rosto da doente estava calmo e sereno; mas era fácil perceber que o padre Anselmo tinha chorado muito. Ficou para assistir às últimas cerimônias da igreja. Este espetáculo, sempre tão imponente e doloroso, foi-o
ainda mais pelo contraste que formava a tranqüila resignação da doente com a dor profunda do seu venerável confessor, que se desfazia em lágrimas ao lado dela. A comoção tornou-se geral; e aquela que todos choravam foi a única a não chorar. O resto do dia passou-se nas habituais rezas, que só foram interrompidas pelos freqüentes desmaios da doente. Finalmente, por volta das onze da noite, pareceu mais oprimida e aflita. Avancei a mão para procurar o braço dela; ainda teve forças para a agarrar, e colocou-a sobre o coração. Já não o senti bater; e, com efeito, a nossa infeliz amiga expirou nesse mesmo momento. Recordais-vos, minha querida amiga, que quando da vossa última viagem aqui, há menos de um ano, ao falarmos de algumas pessoas cuja felicidade nos parecia mais ou menos assegurada, nos detivemos com prazer sobre o destino desta mesma mulher, de quem hoje choramos simultaneamente as desventuras e a morte? Virtudes, qualidades louváveis, graças; um caráter tão doce e fácil; um marido que ela amava, e por quem era adorada, um círculo de amigos onde ela se sentia bem, e de que fazia as delícias; beleza, juventude, fortuna; tantos dons reunidos e perdidos por uma só imprudência! Oh, Providência! Sem dúvida que devemos adorar os teus decretos; mas como são incompreensíveis! Fico-me por aqui; receio aumentar a vossa tristeza, ao entregar-me à minha. Deixo-vos e vou ver a minha filha que está um pouco indisposta. *Este cofrezinho continha todas as cartas relativas à sua aventura com o senhor de Valmont.
Ao informá-la esta manhã da morte tão rápida de duas pessoas suas conhecidas, sentiu-se mal e mandei-a deitar-se. Espero no entanto que este ligeiro incômodo não terá conseqüências. Naquela idade ainda não se está habituado aos desgostos, e a impressão que causam é por isso mais viva e forte. Esta sensibilidade tão à flor da pele é sem dúvida uma qualidade louvável; mas como aquilo que vemos todos os dias nos ensina a temê-la! Adeus, querida e digna amiga. Paris, 9 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXVI O SENHOR BERTRAND A MADAME DE ROSEMONDE Minha senhora,
Em conseqüência das ordens que me haveis feito a honra de dar, encontrei-me com o senhor Presidente de..., comuniquei-lhe a vossa carta, prevenindo-o de que, segundo os vossos desejos, eu nada faria a não ser pelos seus conselhos. O respeitável magistrado encarregou-me de vos observar que a queixa que tendes a intenção de fazer contra o senhor Cavaleiro Danceny comprometeria igualmente a memória do senhor vosso sobrinho, cuja honra ficaria inevitavelmente manchada pela sentença da corte, o que seria sem dúvida uma grande infelicidade. A sua opinião é, pois, que se deve evitar semelhante diligência; e que, se houvesse alguma coisa a fazer, seria pelo contrário tratar de evitar que o Ministério Público tomasse conhecimento desta infeliz aventura, que já fez demasiado ruído. Estas observações pareceram-me cheias de sabedoria, e tomo a decisão de esperar novas da vossa parte. Peço-vos, minha senhora, que tenhais a amabilidade de, ao enviar-mas, acrescentar algumas linhas sobre o vosso estado de saúde, de que receio extremamente a reação a tantas desgraças. Espero que perdoareis esta liberdade à minha dedicação e zelo. Sou com respeito, minha senhora, vosso, etc. Paris, 10 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXVII ANÔNIMA AO SENHOR CAVALEIRO DANCENY Senhor, Tenho a honra de vos prevenir de que se falou, esta manhã, no tribunal da corte, entre os funcionários de El-Rei, do duelo que travastes nestes últimos dias com o senhor Visconde de Valmont, e é de recear que o Ministério Público apresente queixa. Pensei que este aviso vos podia ser útil, quer para que façais agir os vossos protetores a fim de evitar conseqüências desagradáveis; quer, no caso de isso não ser possível, para estardes em posição de vos defenderdes. Se me permitis um conselho, creio que faríeis bem, durante algum tempo, em aparecerdes menos vezes em público do que o tendes feito ultimamente. Se bem que geralmente se seja indulgente para com casos destes, deve-se ao menos esse respeito para com a lei. Esta precaução torna-se tanto mais necessária quanto me chegou aos ouvidos que uma certa Madame de Rosemonde, que me afirmam ser tia o senhor de Valmont, queria apresentar queixa contra vós, e então o Ministério Público não poderia deixar de tomar o assunto
em mãos. Talvez fosse conveniente que conseguísseis intervir junto dessa dama. Motivos particulares impedem-me de assinar esta carta. Mas espero que, ignorando embora donde ela vos vem, não deixareis ao menos de prestar justiça ao sentimento que a ditou. Tenho a honra de ser, etc. Paris, 10 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXVIII MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Espalham-se por aqui, minha querida e digna amiga, acerca de Madame de Merteuil, boatos bastante estranhos e muito lastimáveis. Evidentemente estou bem longe de os crer, e apostaria até que não passam de horríveis calúnias; mas sei demasiado bem como este gênero de maldades, mesmo as menos verossímeis, adquirem facilmente consistência, e como a impressão que deixam se apaga dificilmente, para não estar alarmada com estas, embora eu julgue fácil destruí-las. Desejaria, sobretudo, que fosse possível sustê-las desde já, e antes que se tivessem espalhado mais. Só ontem soube, demasiado tarde, os horrores que se começam por aí a dizer; e quando mandei esta manhã um criado a casa de Madame de Merteuil, acabara ela de partir para o campo, onde deve passar dois dias. Não me souberam dizer para casa de quem tinha ido. A criada, com quem falei, disse-me que a sua ama lhe ordenara que só a esperasse na próxima quintafeira; e nenhum dos criados que ela aqui deixou sabia mais qualquer coisa. Eu própria não sou capaz de adivinhar onde possa estar; não me recordo de nenhum dos seus conhecimentos que esteja no campo até tão tarde. Como quer que seja, podereis, assim o espero, conseguir-me, daqui até ao seu regresso, os esclarecimentos que lhe podem ser úteis, porque fundamentam estas odiosas histórias sobre as circunstâncias da morte do senhor de Valmont, das quais suponho deverei ter sido informada se são verdadeiras, ou que pelo menos vos será fácil esclarecer, favor que muito vos peço. Eis o que espalham; ou, pelo menos, o que por enquanto se murmura apenas, mas que não tardará certamente a dar mais brado. Diz-se que a querela surgida entre o senhor de Valmont e o Cavaleiro Danceny é obra de Madame de Merteuil, que os enganava igualmente a ambos; que, como quase sempre acontece, os dois rivais começaram por se bater, e só depois é que, entre si, descobriram a verdade, daqui resultou uma reconciliação sincera; e que para acabar de revelar a verdadeira Madame de Merteuil ao Cavaleiro Danceny, e
também para se justificar inteiramente, o senhor de Valmont juntou às suas palavras um grande maço de cartas, constituindo a correspondência que mantinha regularmente com ela, e em que esta conta sobre si própria, e no mais audacioso dos estilos, as anedotas mais escandalosas que se possam imaginar. Acrescenta-se que Danceny, na sua primeira indignação, entregou as cartas a quem as quis ver, e que circulam agora por Paris. Citam-se particularmente duas*: uma onde ela narra a inteira história da sua vida e dos seus princípios, e que dizem ser o cúmulo do horror; a outra, que iliba totalmente o senhor de Prévan, de cuja história certamente vos recordais, pela prova que contém de que ele apenas cedeu a nítidas provocações de Madame de Merteuil, e que o encontro estava combinado com ela. Tenho felizmente fortes razões para crer que estas acusações são tão falsas como odiosas. Primeiro, sabemos ambas que o senhor de Valmont não se ocupava com certeza de Madame de Merteuil, e tenho todo o motivo para crer que Danceny não lhe dava mais atenção, parece-me assim demonstrado que ela não podia ser nem o motivo, nem a autora da desavença. Não compreendo igualmente que interesse teria tido Madame de Merteuil, que supõem de acordo com Prévan, em fazer uma cena que só poderia ser desagradável pelo seu escândalo, e que poderia vir a ser muito perigosa para ela, visto que *Cartas LXXXI e LXXXV desta coleção.(N. do A.) arranjava assim um inimigo irreconciliável que ficava senhor de uma parte do seu segredo, e que possuía então muitos partidários. No entanto, é caso para pensar que, depois desta aventura, não se tenha levantado uma única voz a favor de Prévan, e que, mesmo da sua parte, não tenha havido qualquer reação. Estas reflexões levar-me-iam a suspeitá-lo de ser o autor dos boatos que correm, e a considerar estas infâmias como obra do ódio e da vingança dum homem que, vendo-se perdido, esperava por este meio espalhar pelo menos dúvidas, e desviar as atenções, o que talvez lhe convenha. Mas qualquer que seja a origem destas maldades, o mais urgente é destruí-las. Cairiam por si próprias se se descobrisse, como é verossímil, que os senhores de Valmont e Danceny não se falaram após o infeliz duelo, e que não houve nenhuma entrega de papéis. Na minha impaciência de verificar os fatos, enviei esta manhã um criado a casa do senhor Danceny; mas também não se encontra em Paris. Os seus criados disseram ao meu que ele partira nessa noite, por causa dum aviso que recebera ontem, e que se encontrava em lugar secreto. Aparentemente receia as conseqüências da questão. É pois só por vós, minha querida e digna amiga, que posso obter os pormenores que me interessam, e que tão necessários podem vir a ser a Madame de Merteuil. Renovo os meus pedidos para que mos façais chegar às mãos o mais cedo possível.
P. S. - A indisposição de minha filha não teve conseqüências; ela apresenta-vos os seus respeitos. Paris, 11 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXIX O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE ROSEMONDE Minha senhora, Talvez acheis a decisão que hoje tomo um pouco estranha; mas, suplico-vos, escutai-me antes de me julgar, e não vejais audácia e temeridade onde só existem respeito e confiança. Não ignoro a culpa de que sou réu a vossos olhos; e nunca ma perdoaria a mim próprio, se pudesse pensar por um momento que me teria sido possível evitá-la. Podeis mesmo ter a certeza, minha senhora, de que o fato de me considerar isento de censura não me inibe de desgostos; e posso ainda acrescentar com sinceridade que aqueles que vos causo contam muito entre os que sinto. Para que acrediteis nestes sentimentos que ouso expor diante de vós, deve bastar-vos que vos preste justiça, e que saibais que, sem ter a honra de ser por vós conhecido, tenho no entanto a de vos conhecer. Contudo, quando gemo sob a fatalidade que causou simultaneamente os vossos desgostos e a minha infelicidade, querem fazer-me recear que, inteiramente entregue à vingança, vós procurareis os meios de a satisfazer, recorrendo até à severidade da lei. Permiti que vos observe que a este respeito a vossa dor vos engana, visto que neste ponto o meu interesse está essencialmente ligado ao do senhor de Valmont, que se encontraria envolvido ele próprio na condenação que teríeis provocado contra mim. Julgaria eu, minha senhora, poder pelo contrário contar mais com o vosso auxílio do que com a vossa oposição, nos cuidados que eu poderia vir a ser obrigado a tomar para que este infeliz acontecimento permanecesse envolto em silêncio. Mas este recurso de cumplicidade, que convém igualmente ao culpado e ao inocente, não satisfaz a minha delicadeza; e desejando afastar-vos como parte, reclamo-vos como juiz. A estima das pessoas que respeitamos é demasiado preciosa para que eu me deixe expoliar da vossa sem a defender, e creio que possuo os meios para tal. De fato, se concordais que a vingança nos é permitida, digamos melhor, que temos a obrigação de a exercer, quando se foi traído no seu amor, na sua amizade, e, sobretudo, na sua confiança; se concordais com isto, os meus erros vão desaparecer a vossos olhos. Não acrediteis nas minhas palavras; mas lede, se para tanto tiverdes
coragem, a correspondência* que deposito em vossas mãos. A quantidade de cartas aí incluídas em original parece dar o direito de supor como autênticas as de que só existem cópias. De resto, recebi estes papéis, tais como tenho a honra de vo-los enviar, do próprio senhor de Valmont. Nada acrescentei, e tirei apenas duas cartas que me autorizei a publicar. Uma era necessária à comum vingança do senhor de Valmont e minha, à qual ambos tínhamos direito, e de que ele me encarregara expressamente. Achei, de resto, que era prestar um verdadeiro serviço à sociedade desmascarar uma mulher tão realmente perigosa como é Madame de Merteuil, e que, como podereis ver, é a única, a verdadeira causadora de tudo o que se passou entre mim e o senhor de Valmont. Um sentimento de justiça levou-me também a publicar a segunda, para justificação do senhor de Prévan, que mal conheço, mas que não merecia de forma alguma o tratamento rigoroso que acaba *Foi com esta correspondência, com a entregue igualmente por ocasião da morte de Madame de Tourvel, e com as cartas confiadas também a Madame de Rosemonde por Madame de Volanges, que se formou a presente recolha, cujos originais subsistem nas mãos dos herdeiros de Madame de Rosemonde.
de sofrer, nem a severidade dos juízos do público, mais temível ainda e sob a qual geme desde então, sem nada ter com que se defenda. Encontrareis pois apenas as cópias destas duas cartas, de que me vejo forçado a guardar os originais. Quanto ao resto, não creio poder colocar em mãos mais seguras um depósito que me interessa não seja destruído, mas de que me envergonharia de abusar. Creio, minha senhora, ao confiar-vos estes papéis, servir tão bem as pessoas a quem dizem respeito, como se os tivesse enviado a elas próprias; e poupo-lhes o embaraço de os receberem de mim, e de me saberem informado de aventuras que, sem dúvida, desejam que todos ignorem. Parte duma coleção bem mais volumosa, donde o senhor de Valmont a tirou na minha presença, e que encontrareis quando os selos forem tirados, sob o título, que eu vi, de Conta aberta entre a Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont. Tomareis, a este respeito, a decisão que a prudência vos sugerir. Sou com respeito, minha senhora, o vosso, etc. P. S. - Alguns avisos que recebi e os conselhos dos amigos decidiram-me a ausentar-me de Paris por algum tempo, mas o meu esconderijo, secreto para toda a gente, não o será para vós. Se me honrardes com uma resposta, peço-vos que a envieis para a Comendadoria de..., por intermédio de P..., e ao cuidado do senhor Comendador de... É de casa dele que tenho a honra de vos escrever. Paris, 12 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXX MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Caminho, cara amiga, de surpresa em surpresa, e de desgosto em desgosto. Só uma mãe pode imaginar o que ontem sofri durante toda a manhã; e embora as mais cruéis inquietações se tenham acalmado depois, resta-me ainda uma grande aflição a que não vejo o fim. Ontem, pelas dez da manhã, admirada por a minha filha não ter ainda aparecido, mandei a minha criada de quarto descobrir qual seria a causa do atraso. Veio um momento depois muito assustada, e assustou-me ainda mais, comunicando-me que a minha filha não estava nos seus aposentos; e que desde manhã que a criada dela a não encontrava. Imagine a minha situação! Mandei reunir todos os criados e o porteiro, e todos me juraram não saber nada e nada poder dizer-me sobre o acontecimento. Passei pelo quarto da minha filha. A desordem que aí reinava mostrou-me claramente que só saíra de manhã, mas não encontrei mais nenhum esclarecimento. Examinei os armários e a secretária; encontrei tudo no lugar e todos os trajos, com exceção do vestido com que saíra. Nem sequer levara o pouco dinheiro que tinha com ela. Como só ontem ela tivera conhecimento do que se diz acerca de Madame de Merteuil, e lhe era dedicada, a ponto de ter chorado durante todo o serão, lembrei-me que ela ignorava que Madame de Merteuil estava no campo, e a minha primeira idéia foi que tivesse querido ir ver a amiga, e cometido a loucura de ir sozinha. Mas o tempo, que corria sem que ela voltasse, mergulhou-me de novo em terríveis inquietações. Cada instante aumentava a minha aflição; e, ardendo por saber a verdade, não ousava tentar informar-me, com terror de dar a conhecer uma diligência que, talvez, depois preferisse ter escondido de todos. Não, nunca sofri tanto na minha vida. Enfim, já passava das duas, quando recebi ao mesmo tempo uma carta da minha filha e outra da Superiora do convento de... A carta de Cecília dizia apenas que temia que eu me opusesse à sua vocação religiosa, e que não ousara falar-me em tal; o resto eram só desculpas por ter tomado, sem minha licença, aquela decisão, que eu não desaprovaria decerto, acrescentava, se lhe conhecesse os motivos, que no entanto me pedia que não tentasse descobrir. A Superiora contava-me que, tendo visto chegar uma jovem só, se recusara primeiro a recebê-la; mas que, depois de a interrogar e saber quem ela era, julgara prestar-me um serviço, começando por dar asilo à minha filha, para a não obrigar a novas diligências, a que parecia estar resolvida. A Superiora, oferecendo-se como era razoável para me entregar a minha filha, se eu a reclamar, exorta-me, como
convém à sua posição, a não me opor a uma vocação que considera tão decidida; dizia-me ainda que não me pudera informar mais cedo do sucedido, devido à dificuldade que tivera em conseguir que a minha filha me escrevesse, porque o projeto dela era, segundo me informa, que todos ignorassem para onde se retirara. É bem cruel a obstinação dos jovens! Dirigi-me imediatamente a esse convento; e depois de ter visto a superiora, pedi-lhe que me deixasse ver a minha filha; esta consentiu em vir a muito custo, e toda trêmula. Falei-lhe diante das religiosas, e só, tudo o que consegui arrancar-lhe, entre muitas lágrimas, é que nunca poderia ser feliz senão no convento; tomei a decisão de a deixar ficar, mas ainda sem fazer parte das noviças como me pedia. Receio que a morte de Madame de Tourvel e a do senhor de Valmont tenham afetado de algum modo esta cabeça tão jovem. Por muito respeito que tenha pela vocação religiosa, não veria sem pena, e até sem temor, a minha filha tomar um tal caminho. Parece-me que temos já bastantes deveres a cumprir, mesmo sem procurarmos mais; e ainda que não é naquela idade que sabemos o que nos convém. O que aumenta o meu embaraço é o próximo regresso do senhor de Gercourt; será preciso romper este casamento tão vantajoso? Como dar a felicidade aos filhos, se não basta desejá-la e dispensar-lhe todos os cuidados? Ficar-vos-ia muito agradecida se me dissésseis como precederíeis no meu lugar; não posso tomar nenhuma decisão. Nada me aterroriza tanto como ter de decidir do destino dos outros, e temo igualmente empregar nesta ocasião a severidade do juiz e a fraqueza da mãe. Acuso-me de aumentar os vossos desgostos falando-vos dos meus; mas conheço o vosso coração, a consolação que dais aos outros torna-se para vós na maior que poderíeis receber. Adeus, querida e digna amiga; espero as duas respostas com grande impaciência. Paris, 13 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXXI MADAME DE ROSEMONDE AO CAVALEIRO DANCENY Depois do que me deu a conhecer, senhor, resta-me chorar em silêncio. Lamentamos vivermos ainda, quando sabemos semelhantes horrores; coro de ser mulher quando vejo uma capaz de semelhantes excessos. Concordo, senhor, em pelo meu lado deixar no silêncio e esquecimento tudo o que possa referir-se ou dar seguimento a estes tristes acontecimentos. Desejo até que eles vos não causem mais
nenhuns desgostos além dos resultantes da infeliz vitória que tivestes sobre meu sobrinho. Apesar dos erros que sou forçada a reconhecer nele, sinto que nunca me consolarei da sua perda, mas a minha eterna mágoa será a única vingança que me permitirei sobre vós; cabe ao vosso coração apreciar-lhe a grandeza. Se permitis à minha idade uma reflexão que se não faz na vossa, é que, se estivéssemos esclarecidos quanto à nossa verdadeira felicidade, não a procuraríamos fora dos limites prescritos pelas leis e pela religião. Podeis estar certo de que guardarei fielmente o depósito que me confiastes, mas peço-vos que me autorizeis a não o dar a ninguém, nem a vós, senhor, a não ser que seja necessário para vossa justificação. Ouso crer que vos não recusareis a esta súplica, e que sentis que muitas vezes se sofre por nos termos deixado arrastar, mesmo pela mais justa vingança. Não me atardo mais em pedidos, de tão persuadida que estou da vossa generosidade e delicadeza; seria digno de ambos depositar também nas minhas mãos as cartas de Mademoiselle de Volanges, que parece que conservais e que certamente vos não interessam já. Sei que esta menina cometeu muitas faltas para convosco; mas não julgo que penseis em a castigar, e, pelo menos por respeito por vós próprio, não aviltareis um objeto que tanto amastes. Nem preciso acrescentar que a consideração que a filha não merece é devida à mãe, essa respeitável dama, em relação à qual algo tendes a reparar, porque, enfim, mesmo que procuremos justificar-nos por uma pretensa delicadeza de sentimentos, aquele que primeiro tenta seduzir um coração ainda honesto e simples torna-se o primeiro incitador à sua corrupção, e para sempre responsável dos desvarios e excessos que se lhe seguem. Não vos admireis, senhor, de encontrar tanta severidade do meu lado; é a maior prova que vos posso dar da minha inteira estima. Esta aumentará ainda se aceitardes, como desejo, guardar um segredo, cuja repercussão vos prejudicaria e traria a morte a um coração maternal, que já feristes. Enfim, senhor, desejo prestar este serviço à minha amiga; e se receasse que me recusásseis esta consolação, pedirvos-ia que meditásseis primeiro que é a única que me deixastes. Tenho a honra de ser. etc. Do castelo de..., 15 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXXII MADAME DE ROSEMONDE A MADAME DE VOLANGES Se tivesse sido obrigada, minha querida amiga, a mandar vir e a esperar de Paris os esclarecimentos que me pedis a respeito de
Madame de Merteuil, ainda não me seria possível dar-vos-los; e sem dúvida só teria recebido informações vagas e incertas, mas vieram-me donde as não esperava, donde menos as poderia esperar; e estas são absolutamente certas. Oh, minha amiga! Como essa mulher vos enganou! Repugna-me entrar em pormenores sobre este amontoado de horrores; mas, seja o que for que se diga, podeis ter a certeza que ainda se está longe da verdade. Espero, minha querida amiga, que me conheçais o suficiente para acreditar na minha palavra; que não exigireis de mim nenhuma prova; que vos bastará saber que existem em abundância, e que as tenho neste momento entre mãos. É com uma imensa dor que vos peço que não me obrigueis a justificar o conselho que me pedis, relativamente a Mademoiselle de Volanges. Rogo-vos que não vos oponhais à vocação que ela mostra. Certamente nenhum motivo vos pode autorizar a forçar alguém a tomar semelhante decisão, quando o interessado não se sente chamado, mas às vezes é uma grande felicidade que ele sinta o apelo divino; e bem vedes que a vossa própria filha vos diz que não a desaprovaríeis, se soubésseis os motivos dela. Aquele que inspira os nossos sentimentos sabe melhor que a nossa vã sabedoria o que convém a cada um, e muitas vezes o que parece um ato da sua severidade, é, pelo contrário, uma manifestação de clemência. Enfim, a minha opinião, que bem sei que vos afligirá, e por isso mesmo deveis crer que não vo-la dou sem ter refletido, é de que deixeis Mademoiselle de Volanges ficar no convento, visto ser essa a sua escolha; que encorajeis, em vez de contrariar, o projeto que ela parece ter formado; e que, enquanto se espera pela execução do mesmo, não deveis hesitar em romper o casamento que tínheis combinado. Depois de ter preenchido estes penosos deveres da amizade e na impossibilidade em que me encontro de acrescentar qualquer consolação, resta-me, querida amiga, pedir-vos a graça de nunca mais me interrogardes sobre nada que esteja relacionado com estes tristes acontecimentos,deixemo-los esquecer, como merecem; e sem procurar inúteis e terríveis esclarecimentos submetamo-nos aos decretos da Providência, confiemos na sabedoria das suas decisões, mesmo quando ela não permite que as compreendamos. Adeus, minha querida amiga. Castelo de, 15 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXXIII MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE
Oh, minha amiga! Com que véu assustador envolveis o destino da minha filha! E pareceis temer que eu tente levantá-lo! Que me esconde ele pois, que possa afligir ainda mais o coração de uma mãe do que as horríveis suspeitas a que me abandonais? Quanto mais conheço a vossa amizade, a vossa indulgência, mais os tormentos redobram, vinte vezes, desde ontem, quis sair desta cruel incerteza e pedir-vos que me informásseis sem considerações nem desvios; e de cada vez tremi de medo, pensando no pedido que me haveis feito de não vos interrogar. Enfim, tomo uma decisão que me deixa ainda alguma esperança; e espero que a vossa amizade não se recusará ao meu pedido: é que me informeis se compreendi aproximadamente o que me queríeis dizer; que não receeis revelar-me tudo o que a indulgência materna pode cobrir, e que não seja impossível de emendar. Se as minhas desgraças excedem esta medida então consinto com até onde os meus receios podem ir. Minha filha mostrou ter certa simpatia pelo Cavaleiro Danceny, e fui informada de que chegou a receber cartas dele, e até a responderlhe; mas supunha ter conseguido impedir que este erro de criança tivesse conseqüências perigosas; hoje, que tudo receio, concebo que teria sido possível enganar a minha vigilância, e temo que a minha filha, seduzida, tenha levado os seus desvarios ao cúmulo. Recordo-me ainda de certas circunstâncias que parecem fortificar este receio. Informei-vos de que minha filha se sentiu mal ao receber a notícia da desgraça acontecida ao senhor de Valmont; talvez esta reação tivesse apenas por causa a idéia dos riscos que o senhor Danceny tinha corrido no combate. Depois, quando ela chorou tanto ao saber o que se dizia a respeito de Madame de Merteuil, talvez o que interpretei como sendo a dor da amizade fosse apenas o efeito do ciúme ou da pena de descobrir que o seu amado lhe era infiel. A sua última decisão pode também, parece-me, explicar-se pelo mesmo motivo. Muitas vezes supomo-nos chamadas para Deus, apenas porque nos sentimos revoltadas contra os homens. Enfim, supondo que estes fatos sejam verdadeiros, e que os conheci, será possível, sem dúvida, que os acheis suficientes para justificar o conselho rigoroso que me haveis dado. Contudo, se assim fosse, e embora censurando minha filha, pensaria no entanto dever tentar ainda todos os meios para a salvar dos tormentos e dos perigos inseparáveis duma vocação ilusória e passageira. Se o senhor Danceny não perdeu por completo a noção da honestidade, não se recusará a reparar um erro de que só ele é autor; e creio enfim que o casamento com minha filha seja suficientemente vantajoso para que ele e a família se sintam lisonjeados. Eis, querida e digna amiga, a única esperança que me resta; apressai-vos a confirmá-la, se tal é possível. Adivinhais como anseio pela vossa resposta, e golpe terrível significaria o vosso silêncio.
Ia fechar a carta, quando um cavalheiro meu conhecido me veio visitar e me contou a cena cruel por que Madame de Merteuil passou anteontem. Como não recebi ninguém nestes últimos dias, de nada sabia até este momento; eis a história, tal como ma narrou uma testemunha ocular. Madame de Merteuil, ao chegar do campo, antes de ontem, quinta-feira, dirigiu-se à "Comédia Italiana", onde tinha o seu camarote; estava sozinha, e, o que lhe deve ter parecido estranho, nenhum homem a foi cumprimentar durante todo o espetáculo. À saída, entrou, como era seu costume, no pequeno salão que já estava cheio de gente; imediatamente se levantou um rumor, de que aparentemente não se supôs objeto. Avistou um lugar vago num dos bancos, e sentou-se; mas logo todas as mulheres que aí se encontravam se levantaram como de acordo e deixaram-na absolutamente só. Este nítido movimento de indignação geral foi aplaudido por todos os homens e fez aumentar os murmúrios, que, dizem, foram até às vaias. Para que nada faltasse à sua humilhação, teve o azar de o senhor Prévan, que ainda não tinha aparecido em parte alguma depois da sua aventura, entrar nesse momento no pequeno salão. Assim que o viram, toda a gente, homens e mulheres, o cercou e aplaudiu; achou-se, por assim dizer, transportado para diante de Madame Merteuil, pelo público que fazia círculo em volta deles. Afirmam que Madame de Merteuil conservou o ar de quem não vê nem ouve coisa alguma, e que nem sequer o rosto se lhe alterou, mas creio que é exagero. De qualquer forma, esta situação, verdadeiramente ignominiosa para ela, durou até ao momento em que anunciaram a sua carruagem; à partida, os apupos escandalosos redobraram. É horrível ser-se ainda parente desta mulher. O senhor de Prévan foi, nessa mesma noite, muito bem acolhido por todos os oficiais do seu regimento que aí se encontravam, e ninguém duvida que em breve lhe restituirão o cargo e o posto. A mesma pessoa que me contou tudo isto disse-me que Madame de Merteuil teve, na noite seguinte, um forte ataque de febre, que se supôs a princípio ser o efeito da situação violenta em que se encontrava; mas já se sabe, desde ontem à noite, que se declarou um ataque de varíola, confluente e com grande virulência. Na verdade creio que morrer seria para ela uma felicidade. Diz-se ainda que toda esta aventura a prejudicará muito no seu processo, que está prestes a ser julgado e no qual se pretende que ela tinha necessidade que a favorecessem. Adeus, minha querida e digna amiga. Vejo que os maus foram castigados, mas não encontro nisso nenhum consolo para as infelizes vítimas. Paris, 18 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXXIV O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE ROSEMONDE Tendes razão, minha senhora, e certamente não vos recusarei nada que dependa de mim e a que parecerdes atribuir qualquer valor. O maço que tenho a honra de vos enviar contém todas as cartas de Mademoiselle de Volanges. Se as lerdes, vereis com espanto como se pode reunir tanta ingenuidade e tanta perfídia. É, pelo menos, o que mais me impressionou na última leitura que acabo de fazer. Mas, podemos sobretudo deixar de sentir a mais viva indignação contra Madame de Merteuil, quando nos recordarmos do horroroso prazer com que aplicou todos os cuidados em abusar de tanta inocência e candura? Não, já não amo. Nada conservo dum sentimento tão indignamente traído; e não é ele que me leva a procurar justificar Mademoiselle de Volanges. No entanto, esse coração tão simples, esse caráter tão doce e fácil, não se deixariam levar para o bem, mais facilmente ainda do que o foram para o mal? Que outra jovem, saindo do mesmo convento, sem experiência e quase sem idéias, e trazendo para o mundo, como quase sempre acontece, uma igual ignorância do bem e do mal; que outra, dizia eu, teria podido resistir melhor a tão condenáveis artifícios? Ah, para ser indulgente, basta refletir a quantas circunstâncias independentes de nós se encontra ligada a alternativa assustadora da delicadeza ou da depravação dos nossos sentimentos. Far-me-íeis pois justiça, minha senhora, pensando que os erros de Mademoiselle de Volanges, que sem dúvida senti vivamente, não me inspiram contudo qualquer idéia de vingança. Já basta ser obrigado a renunciar a amá-la! Custar-me-ia demasiado odiá-la. Não precisei de refletir para desejar que tudo o que lhe diz respeito, e que a poderia prejudicar, ficasse para todo o sempre ignorado por toda a gente. Se na aparência adiei durante algum tempo a realização dos vossos desejos a este respeito, creio poder revelar-vos o motivo; quis esperar até ter a certeza de que não seria incomodado pelas conseqüências deste infeliz caso. Na altura em que pedia a vossa indulgência, a que ousava crerme mesmo com alguns direitos, receei ter o aspecto de a comprar por esta condescendência da minha parte; e certo da pureza dos meus motivos, tive, confesso-o, o orgulho de querer que não pudésseis duvidar deles. Espero que me perdoareis este escrúpulo, talvez demasiado suscetível, pela veneração que me inspirais e pela importância que esta me leva a atribuir à vossa estima.
O mesmo sentimento me faz pedir-vos, como última graça, que me informeis se achais que preenchi todos os deveres que me impuseram as infelizes circunstâncias em que me encontrei. Uma vez tranqüilo a este respeito, a minha decisão está tomada; parto para Malta. Irei com prazer, e aí guardarei religiosamente os votos que me separarão dum mundo do qual, tão novo ainda, já tenho tanto a queixar-me; irei enfim procurar esquecer, sob um céu estrangeiro, a lembrança de tantos horrores acumulados, e cuja recordação só poderia entristecer e torturar-me a alma. Sou com respeito, minha senhora, etc. Paris, 26 de Dezembro de 17* *.
CARTA CLXXV MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE O destino de Madame de Merteuil parece cumprir-se finalmente, minha querida e digna amiga; e é de tal sorte que os seus maiores inimigos estão divididos entre a indignação que ela merece, e a piedade que inspira. Tinha razão ao dizer que seria para ela uma felicidade morrer da varíola. Curou-se, é verdade, mas ficou horrivelmente desfigurada; por cúmulo, perdeu um olho. Não a voltei a ver; mas disseram-me que está verdadeiramente hedionda. O Marquês de..., que não perde ocasião para uma maldade, dizia ontem, falando dela, que a doença a virara do avesso, e que tinha agora a alma estampada no rosto. Infelizmente todos acharam que a expressão era justa. Um outro acontecimento vem acrescentar-se às desgraças e aos erros dela. O processo foi julgado anteontem, e perdeu-o por unanimidade. Coube-lhe o pagamento das custas, danos e juros, e foi forçada a restituir os bens aos menores; de forma que o pouco da fortuna dela que não estava comprometido no processo foi absorvido, e até para mais, pelas despesas. Assim que soube esta notícia, embora ainda doente, fez os seus preparativos e partiu de noite, sozinha e pela mala-posta. Os criados dizem hoje que nenhum a quis seguir. Crê-se que tomou o caminho da Holanda. Esta partida ainda fez mais barulho que todo o resto; visto que levou os diamantes, coisa de muito valor, e que deviam ser integrados na herança do marido; as pratas, as jóias; enfim, tudo o que pôde, deixando perto de 50000 libras de dívidas. Uma verdadeira bancarrota. A família deve reunir-se amanhã para chegar a acordo com os credores. Se bem que parente muito afastada, ofereci o meu concurso;
mas não estarei presente à reunião, pois devo assistir a uma cerimônia muito mais triste. A minha filha toma amanhã o hábito de noviça. Espero que não esquecereis, querida amiga, que, neste grande sacrifício que faço, não tenho outro motivo para a tal me julgar obrigada, a não ser o silêncio que guardastes para comigo. O senhor Danceny abandonou Paris há quinze dias. Dizem que vai para Malta e que tem o projeto de lá se fixar. Talvez ainda fosse a tempo de o reter... Minha amiga!... A minha filha é assim tão culpada? Perdoareis sem dúvida que uma mãe só muito dificilmente ceda a esta horrível certeza. Que fatalidade se espalhou pois em volta de mim desde há um tempo, que me feriu nos seres que me eram mais queridos! A minha filha e a minha amiga! Quem poderá deixar de tremer ao pensar nos males que pode causar uma só ligação perigosa! E que desgostos se não poupariam meditando mais nesta verdade! Que mulher não fugiria à primeira proposta de um sedutor? Que mãe poderia sem tremer ver alguém além dela falar à sua filha? Mas estas tardias reflexões vêm só depois dos acontecimentos; e uma das mais importantes verdades, e talvez das mais largamente reconhecidas, permanece sufocada e sem emprego no turbilhão dos nossos inconseqüentes costumes. Adeus, minha querida e digna amiga; sinto neste momento que a nossa razão, já insuficiente para evitar as nossas infelicidades, o é ainda mais para nos consolar. Paris, Janeiro de 17* *.
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