tfg_percursos urbanos: a leitura do espaço público através da vida cotidiana

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“Ter uma vida significa criá-la e recriá-la sem parar. O homem não pode ter a vida se não a criou por si mesmo. Quando a luta pela existência for apenas uma lembrança, ele poderá, pela primeira vez na história, dispor livremente de toda a duração de sua vida. Conseguirá, com plena liberdade, moldar na sua existência a forma de seus desejos. Em vez de ficar passivo diante de um mundo que não o satisfaz, ele vai criar um outro, onde poderá ser livre. Para criar a sua vida, precisa criar esse mundo”. Constant Nieuwenhuis

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PERCURSOS URBANOS

a leitura do espaço público através da vida cotidiana

trabalho final de graduação faculdade de arquitetura e urbanismo universidade de São Paulo

Lígia Santi Lupo

Professor orientador João Sette Whitaker Ferreira

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agradecimentos 7


Acho incrivelmente dificil agradecer as pessoas que de alguma maneira inspiraram esse trabalho, porque este não é apenas um trabalho isolado, ele é a conclusão de um grande ciclo no qual inúmeras pessoas fizeram parte. Tudo que me fez ser quem sou hoje, e fez esse trabalho possível, se deve também as pessoas que conheci e as experiências que tive na vida até agora. Primeiro de tudo queria agradecer a minha família. Principais formadores da minha personalidade, pra quem eu sempre volto, quem sempre me acolhe e da sentido à muitas coisas nessa vida. Mamãe, Papai, Ro e Bru, obrigada por tudo, sempre. Aos amigos que viveram essa jornada toda comigo, desde os cafés da manhã, estudos de PEF e entregas de projeto. Pelas inúmeras conversas, desabafos, conselhos, pelas risadas, pelo companherismo, por me fazerem sentir parte de um grupo, por todas as experiências tão marcantes nesses 6 anos juntos. Chuba, Baby, Gabis, Fernandão, Jubi, Dandan, Rafinha, Juju, Aninha, Mari, Pomba, Vicky, Marcon, Sol, Nathoca, Caca, Fi, queria mesmo agradecer individualmente cada um de vocês, mas esse depoimento acabaria maior que todo o trabalho! A todos os amigos da turma 59 que não tão próximos, mas

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que também fizeram parte de todo esse processo intenso e incrível que é a FAU. Aos amigos de outros anos, mas não menos queridos, Vivi, Tami, Ca Kfouri, Gui, Doug, Heitor, Aran, Ale, Leo, Micareta, Olivia, Thelminha, Rafa, Guga, Ana Teresa pelas conversas nas rampas, cantina e rapiauers.

Ao Lu. A FAU não seria a mesma pra mim sem você. Boa parte da minha formação como pessoa foi compartilhada e inspirada por você. Obrigada por tudo.

À Ká, a Ju e a Taís, que se mostraram verdadeiras mentoras! Obrigada por serem essas pessoas inspiradoras e por me escutarem e aconselharem durante este trabalho! Ao meu orientador, João, que se tornou muito mais que um professor, sendo hoje um grande amigo.

E ao Ro. Surpresa incrível que apareceu na minha vida neste ano. Companheirasso, obrigada por me ouvir, me aconselhar e me apoiar. E por me inspirar a ser uma pessoa inteira e a querer ser sempre uma pessoa melhor. Neste trabalho tem um pedacinho de cada um de vocês.

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introdução 11


Este trabalho, além de ser a conclusão de um ciclo bastante intenso e transformador neste meu início de “vida profissional”, se deu, também, em um período peculiar na minha vida pessoal e, portanto, teve seu processo bastante alterado e marcado por essa situação. Ao voltar de um período de dois meses de uma viagem de reclusão e autoconhecimento, me percebi numa cidade caótica que esmagava cotidianamente meus desejos e sentimentos. Me percebi sem forças, sem fôlego, como se fosse atropelada todos os dia, como se meus sentimentos não tivessem espaço para existir, eu deveria simplesmente continuar andando, e não na maneira a qual eu vinha fazendo naqueles últimos dois meses. Uma sensação de solidão, de angústia, de não estar mais em contato com o que sentia, de não caber mais dentro do meu próprio corpo tomou conta de mim, e me fez começar a questionar como é a relação de uma pessoa, de um indivíduo, dentro de uma cidade como São Paulo.

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A partir desta vontade de entender um pouco mais essa relação, essa “interferência” que a cidade causa em mim e na minha vida, fui moldando o tema deste trabalho. Buscando algumas referências bibliográficas sobre a vida cotidiana, a alienação, a transformação da vida moderna. Tentando ler e entender sobre como a política, como a economia, como a propaganda mexiam diretamente com a minha vida e com as minhas relações, e como isso era absorvido pela cidade, fisicamente, espacialmente, alimentando e reproduzindo essas relações sociais construídas.


Este é um tema bastante complexo, e agora, entendo, mais subjetivo do que o percebi no início deste trabalho. Entender as relações sociais em seus acontecimentos físicos exige um grau altíssimo de intimidade e observação, que este trabalho acabou por apenas esboçar uma intenção.

Mas, apesar de saber que não conseguiria fazer uma análise completa e satisfatória do tema, pude, neste ano de trabalho constante, me aproximar, e compreender muito melhor, de como acontecem às relações de um indivíduo em sua cidade, no contexto atual no que vivemos hoje.

O tema principal deste trabalho sempre foi, portanto, a cidade, e como as relações sociais acontecem neste espaço físico. Partindo deste ponto o trabalho foi se desenvolvendo para chegar a um recorte de leitura específico: observar e compreender o espaço urbano através da relação entre morador e espaço público, compreendendo a produção desse espaço público como processo social na cidade de São Paulo. Este é um recorte que possibilitaria o estudo da vida cotidiana, e de como características físicas e espaciais de diferentes bairros não só são construídas a partir das relações sociais como podem também interferir nessas mesmas relações sociais ali constituídas. Muito do trabalho se desenvolveu através de estudos empíricos, do olhar, do percorrer, inspirado por um trecho do livro Morte e Vida Das Grandes Cidades Americanas, de Jane Jacobs, que diz:

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“nesse livro deveremos começar a aventurar-nos nós mesmos no mundo real, ainda que modestamente. A maneira de decifrar o que ocorre no comportamento aparentemente misterioso e indomável das cidades é, em minha opinião, observar mais de perto, com o mínimo de expectativa possível, as cenas e os acontecimentos mais comuns, tentar entender o que significam e ver se surgem explicações entre eles”. (Jacobs, 1961) O trabalho se desenvolveu, portanto, em torno do conceito de vida cotidiana e espaço público. Durante o desenvolvimento do trabalho percebi que o conceito de espaço público poderia ser compreendido e analisado por duas diferentes esferas, em sua esfera política, como espaço democrático de exercício da cidadania, e em sua esfera do uso, da convivência, da apropriação diária.

Este trabalho não pretende entrar no mérito do direito à cidade, do habitar para além da moradia, como direito a diversos serviços públicos essenciais, ele propõe compreender como este espaço público é produzido por, e produz, relações sociais, compreendendo este espaço nas suas diferentes características e formas físicas.

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Durante as visitas ficou claro para mim que as relações entre indivíduo, sociedade e cidade podem ser bastante interessantes, por diferentes fatores, em locais que não correspondem necessariamente a o que temos como padrão de qualidade de vida urbana. Portanto, as questões neste trabalho levantadas, do se relacionar com o espaço, se apresentaram


para mim, estudante de arquitetura e urbanismo, como mais subjetivas do que simplesmente a garantia de certos direitos na vida urbana.

“A apropriação se revela em atos e situações que podem ser o andar pela rua do bairro, onde aparece a calçada como o trajeto diário (até o ponto do ônibus, onde se toma a condução para o trabalho, por exemplo); pode ser o caminhar que todos os dias leva as pessoas às compras; pode ser o passo dos estudantes que se dirigem à escola. Pode ser o ato de andar de bicicleta ou o uso da rua como lugar para as brincadeiras infantis; pode ser a prosa com o vizinho que passa, ou que está em sua porta, ou olhando pela janela. Essas possibilidades se ligam ao acontecer diário, e são marcadas por um tempo determinado, em espaços circunscritos.”. (Carlos, 2001)

Propus-me, assim, andar pela cidade observando essas relações cotidianas, em quais situações elas aconteciam e quais as diferentes variáveis que poderiam contribuir para a apropriação do espaço público pelos moradores. O viver e o perceber o espaço, tanto para os moradores que o utilizam diariamente, como para mim visitante, realizado através de diferentes sentidos do nosso corpo. “As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem todos os dias nos modos de uso, nas condições mais banais e acidentais, na vida cotidiana. Revela-se como espaço passível de ser sentido,

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pensado, apropriado e vivido pelo indivíduo por meio do corpo, pois é com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaço, cria/percebe os referenciais, sente os odores dos lugares, dando-lhes sentido. Isso significa que o uso do espaço envolve o indivíduo e seus sentidos, seu corpo; é por ele que marca sua presença, é por ele que constrói e se apropria do espaço e do mundo no plano do lugar, no modo como usa o espaço e emprega o tempo da vida cotidiana”. (Carlos, 2001) A pesquisa feita por Ana Fani Alessandri Carlos não só direcionou o olhar nas visitas para essa apropriação do espaço público pelas situações cotidianas dos moradores dentro do seu bairro, como orientou boa parte deste trabalho. Em um trecho ela diz que “mais do que uma forma material, uma morfologia, a problemática sobre a cidade se revela como problemática urbana, isto é, transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana. A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreensão do mundo moderno” (Carlos, 2001), o que discute exatamente as questões inicialmente levantadas por este trabalho, o olhar para a cidade como possibilidade de compreensão do mundo moderno e das relações sociais que alimentam as transformações espaciais das cidades.

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Ao utilizar-se da teoria de Henri Lefèbvre, ela discute em seu trabalho a relação entre o contexto politico-social-econômico em que vivemos e a construção das cidades e das relações sociais nas cidades.


“Como aponta Lefèbvre, as relações sociais possuem existência real como existência espacial concreta na medida em que produzem, efetivamente, um espaço, aí se inscrevendo e se realizando. (...) As relações sociais que constroem o mundo concretamente se realizam como modos de apropriação do espaço para a reprodução da vida em todas as suas dimensões, e estas fogem – apesar de englobá-los – o mundo do trabalho, envolvendo e ultrapassando a produção de objetos, produtos e mercadorias, isto porque a produção da vida não envolve apenas a reprodução de bens para a satisfação das necessidades materiais: é também a produção da humanidade do homem”. (Carlos, 2001) O olhar para a cidade e para o homem para, compreendendo suas relações, compreender como elas são produzidas e reproduzidas é a intenção motivadora deste ano de visitas, pesquisas, leituras e questionamentos. Apesar de este ser um trabalho de conclusão de curso, este é um tema que abriu muitas portas e possibilidades neste novo ciclo que se inicia em minha vida. Ele marca, portanto, um novo começo, não um fim.

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“O mundo em que vivemos parece, sobretudo sob o aspecto material, cada dia mais estreito. Chega a nos abafar. Sofremos profundamente sua influência; Reagimos-lhe de acordo com nossos instintos em vez de reagir de acordo com nossas aspirações. Em suma, esse mundo comanda nosso modo de ser e, por isso, nos esmaga”. Guy-Debord

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Os espaços da cidade para convívio e usufruto Além de estudante de arquitetura e urbanismo e, portanto, alguém interessada na cidade e na sua construção, sou também moradora de São Paulo desde que nasci. Há quase 25 anos moro, estudo, ando, passeio, compro, conheço, descubro, vivo (n)esta cidade. Por conta disso muitas vezes meu olhar é já um olhar viciado, ando pelas ruas como qualquer outra pessoa que segue apressada para o trabalho, que está atrasada pra aula, que precisa pegar o próximo ônibus, que espera ansiosa o metrô.

Porém, estudar a cidade faz com que, algumas vezes, eu pare para olhar para ela como alguém que está de fora. Saio do “modo automático” e vejo pessoas seguindo seus caminhos com muita pressa, sem sequer olhar para os lados. As ruas mais parecem corredores, esteiras rolantes que nos levam de um lugar a outro. As pessoas parecem estar sempre sem tempo, sempre correndo. Os bancos nas praças, quando estas (e estes!) existem, estão vazios, os pontos de ônibus estão cheios.

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A impressão que temos é que as pessoas estão utilizando a rua apenas para se deslocar, para ir de um lugar ao outro, e não como lugar de estar, de ficar, como finalidade em si. Quando pensamos nos dias da semana sabemos que a maioria das pessoas trabalha o dia todo, e boa parte do tempo livre estão ou indo para o trabalho, ou voltando para casa, quase não vemos pessoas aproveitando a cidade, e as ruas, nos dias de semana. Fica a dúvida, será só a falta de tempo?


Como moradora de São Paulo posso observar outras questões relevantes pra essa discussão. Nos finais de semana tudo está sempre lotado, sejam parques, cinemas, shoppings, bares, restaurantes, supermercados, e algumas ruas. Na maior parte do tempo sinto que estamos sempre fazendo alguma coisa na cidade, buscando um motivo pra estar na rua. As ruas com pessoas que estão apenas conversando, vendo o movimento passar são poucas, e a falta de bancos nas calçadas não incentiva nossa permanência nas mesmas. Ou estamos nos deslocando apressados para o trabalho, ou estamos consumindo alguma coisa. Essa é a vida cotidiana de boa maioria das pessoas que vivem nesta cidade. E esta é a cidade construída por esta sociedade. Guy-Debord (1960) utiliza um conceito que ele chama de pobreza da vida cotidiana, a qual, segundo ele:

“não tem nada de acidental: é uma pobreza imposta a todo o momento pela coação e pela violência de uma sociedade dividida em classe; pobreza organizada historicamente de acordo com as necessidades históricas da exploração. O uso da vida cotidiana, no sentido de um consumo do tempo vivido, é comandado pela predominância da raridade: raridade do tempo livre e raridade dos possíveis modos de utilizar esse tempo livre”. (Debord apud Jacques, 2003)

A maneira como as pessoas vivem sua vida cotidiana, e o espaço em que esta vida acontece não são, como ele diz, 21


acidental, elas estão diretamente ligadas à construção da nossa sociedade, política, social e economicamente.

O conceito de raridade do tempo livre, também é abordado por Amélia Luisa Damiani (1993) na introdução de seu doutorado. Em um trecho ela exemplifica algumas práticas sociais que mantém a reprodução da sociedade capitalista em nosso dia-a-dia, e uma delas é a raridade do tempo livre. O trecho diz:

“o esforço de reprodução da sociedade atinge outros níveis da prática social e os atinge de forma mais sutil. A valorização da atividade criadora tende a desaparecer, o “racional” e o organizado tomam seu lugar. O espaço, o tempo, o urbano, o cotidiano são colonizados, atingidos, metamorfoseados. (…) a concepção de tempo linear – o do relógio, o do trabalho abstrato, invadindo o vivido; a concepção dos tempos cooptados – o tempo livre à televisão, à indústria do turismo, etc. As distâncias alongadas entre o trabalho e a moradia, consumindo o tempo restante, além de toda a burocracia aumentada nos pequenos fatos cotidianos, etc.”. (Damiani, 1993)

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Ela cita, então, diferentes transformações que a nossa sociedade viveu com relação ao tempo. O primeiro é sobre a percepção do tempo a partir do tempo do relógio, e não mais do tempo vivido, da experiência, mudança que vem desde a revolução industrial, na qual o trabalho passa a ser organizado pelas horas, e não mais pelo tempo natural de


cada atividade. Isso muda, porém, a percepção do tempo do nosso dia como um todo.

Hoje temos oito horas para trabalhar, oito horas para o lazer e oito horas para dormir, nosso dia e nossas ações foram fragmentadas e comprimidas a um período de tempo determinado, e como se isso não bastasse, boa parte das pessoas não tem nem esse direito garantido, trabalhando mais de oito horas e perdemos muitas horas supostamente “de lazer” em outras atividades nada prazerosas.

Sofremos então, da raridade do tempo livre, e segundo Damiani, este mesmo tempo livre se transformou em tempo cooptado, relacionado, associado à televisão e a indústria do turismo. Nosso tempo livre diário é “gasto” ou no trânsito e nas longas distâncias percorridas todos os dias pelos moradores da cidade, ou dentro de casa, na frente da televisão, esperando pelas férias (quando essas existem). Nossos únicos momentos de lazer são, assim, aqueles que saímos do trabalho e viajamos, uma vez ao ano.

Essa situação é facilmente observada na cidade de São Paulo. Hoje a maioria da população vive para trabalhar, sofre com inúmeros e longos deslocamentos dentro da cidade, e quando, ainda assim sobra algum tempo livre, como já dito, carece de espaços de lazer e entretenimento que sejam públicos e desassociados do consumo. O que nos leva ao outro conceito levantado por Guy-Debord, a raridade dos possíveis modos de utilizar esse tempo

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livre. Essa raridade é expressa, principalmente, através da privatização dos espaços de convívio que vem ocorrendo na cidade de São Paulo. Richard Sennett (1973) diz que a “relação do capitalismo industrial com a cultura pública urbana repousava, em primeiro lugar, nas pressões de privatizações que o capitalismo suscitou na sociedade burguesa do século XIX”. (Sennett, 1988) Em um espaço de convívio privatizado as maneiras que este pode ser utilizado e quem pode utilizá-lo passam a ser controladas e regulamentadas, restringindo as possibilidades de uso e estabelecendo fronteiras de classe, restringindo o acesso a poucos selecionados (Gosling apud Abrahão, 2008). “ao lado dos espaços públicos, há, na metrópole, os espaços semipúblicos, que tendem a substituir o público, como os espaços comerciais, galerias, shopping centers, por exemplo, onde os encontros, organizados e normatizados, são locais de exclusão. Têm horário de funcionamento, abrem e fecham, são vigiados, não são acessíveis a qualquer hora ou dia, nem a ‘qualquer um’, contêm códigos e normas de uso (muitos deles são espaços abertos a encontros organizados em torno de signos, como aquele ritual da mercadoria, onde o habitante se transforma, potencialmente, em consumidor)”. (Carlos, 2001)

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Vemos nessa citação que a privatização dos espaços comuns gera, como já dito, a associação direta do lazer com o consumo e a separação dos espaços de lazer por classes sociais,


o que aumenta a segregação social em nossa sociedade. Com isso, boa parte dos espaços reservados para o nosso tempo livre são espaços fechados, controlados e que restringem as possibilidades de uso. Essas transformações sociais influenciam diretamente na construção da cidade como um todo, pois

“com o desenvolvimento do capitalismo é preciso reconhecer, como já mencionado, que não está aprisionado somente o tempo de trabalho – trabalho que se perde como trabalho qualitativo e realização do ser humano, através de sua atividade-; o tempo de não-trabalho sofre mais e mais interferências, da organização da indústria e das suas estratégias políticas. (...) essa separação-integração tende a se projetar francamente no terreno. Um tratamento analítico da vida social preenche o espaço”. (Damiani, 1993)

Os espaços da cidade sofrem essas transformações sociais, e alimentam a reprodução desse tipo de relação social dentro da nossa sociedade. Os conceitos analisados como a raridade do tempo livre e a raridade dos possíveis modos de utilizar esse tempo livre se projetam na cidade através das longas distâncias que precisam ser percorridas cotidianamente, da insuficiência de transporte público, do alto preço da terra urbana e do espraiamento da cidade de São Paulo, da privatização dos espaços de convívio, da construção de shoppings centers, do esvaziamento da rua. Esses são espaços construídos por essas relações sociais e alimentam a 25


reprodução das mesmas.

“A privatização dos espaços de convívio é uma conseqüência do entendimento capitalista da terra urbana como mercadoria. Este se torna mercadoria quando é fragmentado e vendido em pedaços, entrando assim no circuito da troca a partir de operações econômicas no mercado, uma vez que a ocupação do espaço se realizou sob a égide da propriedade privada do solo urbano” (Damiani, 1993).

Essa situação é uma das características da sociedade moderna, a vitória do valor de troca sobre o valor de uso na terra urbana (Lefèbvre apud Carlos, 2011).

“Os espaços se reproduzem cada vez mais em função das estratégias imobiliárias, e com isso limitam as condições e as possibilidades de uso do espaço pelo habitante; isto é, cada vez mais os espaços urbanos, transformados em mercadoria, são destinados à troca, o que significa que a apropriação e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado. (...) Esse fato pode ser constatado por meio dos limites impostos ao lazer e ao flanar; o corpo e os passos estão cada vez mais restritos a lugares vigiados, normatizados, privatizados ou privados. Esse fato é conseqüência da tendência que se esboça no mundo moderno, que transforma o espaço em mercadoria ou área de circulação, o que, tendencialmente, limitaria seu uso às formas de apropriação privada”. (Carlos, 2001)

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Uma vez que o espaço urbano é balizado e mediado pelo mercado, ele está condicionado à lógica das relações econômicas e seu uso está condicionado à lógica do lucro. Desta forma o mercado é o produtor do conjunto de escolhas e condições de vida, limitando as possibilidades de apropriação e uso do espaço urbano àqueles interessantes economicamente para o mercado.

Como conseqüência desse processo vemos também a super valorização da atividade produtora em todos os campos da vida, não só no trabalho, fazendo com que o uso, em toda sua dimensão, se associe ao tempo reduzido ao quantitativo, um tempo produtivista. Os tempos de apropriação e de uso da cidade quando desassociados da lógica de consumo, não são esse tempo quantitativo, produtivista, são aqueles da criação, não submetidos exclusivamente ao universo da troca. São aqueles em que “a apropriação dos lugares pelos indivíduos (por meio do corpo e dos seus sentidos), movidos pelo desejo, superaria a idéia redutora de uma relação dominada inteiramente pela necessidade satisfeita pela troca de mercadoria”. (Carlos, 2011) Existe aqui uma relação intrínseca entre o jogo de dominação e controle dos espaços urbanos e a maneira como vivemos nosso dia-a-dia nas cidades que estão sendo construídas dentro deste contexto. Citando mais uma vez Guy Debord, “essa sociedade constrói, com as novas cidades, o

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terreno que a representa exatamente, que reúne as condições mais apropriadas a seu bom funcionamento; ao mesmo tempo, ela traduz no espaço, na linguagem clara da organização da vida cotidiana, seu princípio fundamental de alienação e imposição”. (Debord apud Jacques, 2003)

Os espaços da cidade para moradia Essa restrição de escolhas sobre como vivemos nosso cotidiano na cidade atinge não só a maneira como nos apropriamos e usufruímos do espaço urbano em nosso tempo livre, mas também o local onde moramos. O mercado imobiliário controla a produção da terra urbana como mercadoria reprodutível, porém, o que também está em jogo é o controle em torno das condições de consumo da terra urbana (Villaça, 1998). A segregação social se apresenta na cidade não apenas nos locais de convívio comum que são privados e controlados, mas também nos bairros residenciais. O preço da terra e a valorização de certos trechos da cidade, a especulação imobiliária e o controle do mercado imobiliário e o que ele produz na cidade pelas classes de alta renda são os principais fatores dessa segregação.

“O controle da produção e consumo do espaço urbano exercido pela classe dominante se dá em três esferas: na esfera econômica, destaca-se o controle do mercado imobiliário que produz os bairros da classe dominante

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no local onde esta deseja; na esfera política, ocorre o controle do Estado, que, no tocante ao espaço urbano, se manifesta de três maneiras, a saber: controle da localização da infra-estrutura urbana; controle da localização dos aparelhos do Estado; e controle da legislação de uso e ocupação do solo. Finalmente, a classe dominante desenvolve toda uma ideologia a respeito do espaço urbano. Essa ideologia – como toda ideologia – visa auxiliar a dominação e torná-la aceitável pelos dominados”. (Villaça, 1999) Vemos então que o controle sobre o mercado imobiliário possibilita não só a segregação social como a escolha da localização das classes sociais em diferentes bairros, e essa escolha do local na cidade está diretamente relacionada à localização da infra-estrutura urbana e dos aparelhos do Estado, e à localização do centro da cidade, permitindo assim uma diferente apropriação dos espaços e das possibilidades de uso da cidade.

Isso nos confirma que “as diferentes classes sociais têm condições distintas de acessibilidade aos diferentes pontos do espaço urbano, e têm diferentes condições de manipular a acessibilidade ao centro e a localização do centro em relação a elas” (Villaça, 1998). O uso e apropriação de certos espaços da cidade são mais acessíveis para alguns moradores de alguns bairros, enquanto outros não só tem seu acesso dificultado, como são negados da possibilidade de interferência na construção dessas relações. 29


A maneira como a cidade é construída, não apenas na sua disposição residencial, como na composição das suas centralidades permite a dominação e a desigual apropriação dos espaços da cidade. Uma boa localização e a facilidade de mobilidade em uma cidade como São Paulo possibilita uma apropriação e utilização da cidade muito diferente daqueles que moram em locais sem esses dois quesitos respondidos. Vemos então que a vivência dos espaços da cidade é bastante diferente para cada classe social. Segundo Lefèbvre, “cada sociedade segrega ou produz o espaço que lhe é próprio, de que necessita para as suas práticas sociais e que a reflete” (Lefèbvre apud Carlos, 2001).

Vivemos em uma cidade segregada socio-espacialmente, nos espaços urbanos reservados à moradia e ao convívio e ao lazer. Temos uma vida cotidiana empobrecida pela falta de tempo e pela falta de maneiras de utilizar esse tempo, associamos o lazer ao consumo e a troca. O uso e a localização dos espaços urbanos são balizados pelas lógicas econômicas de mercado, deixando de lado relações sociais profundas e subjetivas constituídas na construção dos espaços da cidade.

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“As ruas e suas calçadas, principais locais públicos de uma cidade, são seus órgãos mais vitais. Ao pensar numa cidade, o que lhe vem à cabeça? Suas ruas. Se as ruas de uma cidade parecem interessantes, a cidade parecerá interessante; se elas parecerem monótonas, a cidade parecerá monótona”. Jane Jacobs

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O recorte de leitura e os locais escolhidos Como dito na Introdução, a metodologia adotada neste trabalho foi a de levar as inquietações trabalhadas no estudo teórico para o campo do estudo empírico, para assim, confrontar as questões estudadas com a realidade do dia-a-dia da cidade. Eu queria então observar a vida cotidiana em locais com diferentes composições formais e sociais na cidade de São Paulo, tentando compreender como são as relações entre indivíduo e cidade nesses espaços, e se existe diferenças de apropriações e indícios do porque esta apropriação ocorre de maneira diferente e/ou em graus diversos.

A rua é o espaço da vida cotidiana, das relações do indivíduo com a cidade e palco das relações sociais da sociedade, é o lugar da “escala humana por excelência, em que a cidade se oferece nas suas particularidades” (Carlos, 2001). No panorama das ruas podemos ler a vida cotidiana e foi este o recorte utilizado neste trabalho, observar o dia-a-dia das ruas de diferentes bairros residenciais da cidade. A escolha de bairros residências também foi importante porque, além de ser interessante observar em que grau a vida cotidiana dos moradores acontece dentro do bairro em que estes moram, utilizei neste trabalho o conceito de habitar de Walter Benjamim, em que diz que: “habitar é deixar rastros, o significado mais profundo

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dessas palavras mostra, a nosso ver, nas formas de produção do espaço, na prática social revelada na vida cotidiana, apontando para o fato de que o plano do habitar não se limita apenas aos espaços privados, imersos nas sombras da cidade, preservados dos olhares, relegados ao estritamente privado. O habitar implica um conjunto de ações que articula vários planos e escalas espaciais (o público e o privado; o local e o global) que envolvem a vida, realizada pela mediação do outro, imerso em uma teia de relações que constrói uma história particular, que é também uma história coletiva, em que se insere e ganha significado a história particular de cada um”. (Benjamin apud Carlos, 2001) O morar é também aquilo que acontece no espaço público do bairro, nas suas ruas, as relações que criamos com as pessoas que convivemos e com o espaço que utilizamos. A nossa história é entrelaçada à história dos espaços e das pessoas que nos relacionamos em nosso dia-a-dia.

A partir desse recorte, as perguntas que direcionaram o olhar durante as visitas nos diferentes trechos da cidade foram sobre a apropriação do espaço pelos moradores e a relação das moradias com a rua. Como os moradores e as construções feitas em cada bairro se relacionam com sua rua, com sua calçada? Como as pessoas utilizam esses espaços em sua vida cotidiana? Existe espaço programado para lazer, ou algum espaço atribuído de apropriação espontânea? As pessoas estão nas ruas? As ruas e calçadas são feitas ou cuidadas para que as pessoas a utilizem? Como 35


as casas se abrem, ou se fecham, para as ruas? Existe ainda o uso cotidiano da rua? Estamos apenas usando a rua como espaço de deslocamento? Como a rua funciona realmente no dia-a-dia destes trechos da cidade? Como estas dinâmicas observadas traduzem ou não a sociedade em que vivemos?

Perguntas como estas direcionaram o olhar durante as visitas, porém mantendo sempre espaço para a percepção de novas questões que se apresentassem durante o percurso. É importante dizer que, em cada percurso, procurei observar todas as características que influenciavam diretamente na questão da apropriação do espaço da rua, porém durante as visitas alguns temas acabavam por se destacar. José Garcia Lamas diz que “a leitura, mesmo querendo-se objetiva, passa já por uma operação da cultura que seleciona os elementos, os hierarquiza e lhes atribui valores”, e que “a forma é um todo, são as leituras que a seccionam e dela podem extrair ou evidenciar certos aspectos ou partes de sua estrutura” (Lamas, 1993). A escolha dos locais que seriam observados foi feita a partir da combinação de quatro fatores: a classe social moradora predominante, as diferentes tipologias de habitação, os usos das ocupações dos lotes, e local de inserção na cidade. Esses quatro pontos, combinados em diferentes arranjos, possibilitam um interessante panorama das possibilidades de moradia e apropriação do espaço público dentro da cidade de São Paulo.

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As diferentes tipologias de moradia se relacionam com a rua


de maneira bastante diversa, por exemplo, com relação ao uso. Boa parte das casas e dos prédios com térreo comercial não possuem espaços de convívio condominial, o que incentiva que os moradores busquem na cidade o espaço para relações de convívio, o que não acontece com os prédios que possuem inúmeros espaços de lazer dentro do seu próprio lote.

Outra relação interessante é a visibilidade, primeiro com relação à altura das construções e a proximidade que as janelas ficam das ruas, mantendo um contato próximo e direto ou distante dependendo do caso. Além disso, os espaços privados podem se distinguir do espaço público através de portas, portões pequenos, grades ou muros, o que altera completamente a relação do interior do lote com a rua e com as pessoas que por ali passam. A diversidade de usos da ocupação dos lotes nas ruas se mostrou, como esperado, um importante fator de estimulo à movimentação de pessoas nos espaços públicos da cidade. Ruas que são exclusivamente residências apresentam menos possibilidades à apropriação e ao convívio com outras pessoas do que ruas com comércios e serviços, isso tanto para seus moradores, como para pessoas que venham de outros bairros. Esse é um dos pontos-chaves do debate teórico levantado por Jane Jacobs, em que ela sustenta que a “necessidade principal das grandes cidades reside na mistura de funções” (Jacobs, 1961), as ruas que possuem diversidade de uso são ruas que estão sempre com pessoas circulando, portanto são ruas seguras.

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As classes sociais, em sua maioria, vivem a cidade em seu cotidiano de formas diferentes. No que diz respeito ao tempo livre e ao lazer, as classes de mais alta renda em São Paulo, em sua maioria, são sócias de clubes de lazer, ou como já explicado no capítulo anterior, freqüentam os shopping centers como forma de lazer e de consumo no seu dia-a-dia. Esses espaços são locais privados, com acesso controlado e fechados para a cidade e para a rua, o que nos indica que boa parte da população de alta renda não se apropria ou utiliza dos espaços públicos da cidade. Já as classes mais baixas, não podendo pagar por esses serviços, muitas vezes se apropriam do espaço público para usos de convívio e de lazer, sem muitas vezes terem estrutura física apropriada e projetada para isso.

Outra questão que envolve a classe social predominante da região visitada, combinada do próximo item, local de inserção na cidade, é a proximidade e a acessibilidade ao centro e aos serviços e equipamentos urbanos da cidade. Dependendo da situação do bairro dentro da cidade podemos observar a necessidade de buscar serviços e equipamentos em locais mais próximos ou acessíveis que o centro, ou até, ao contrário, a preferência da apropriação e do uso de espaços centrais às áreas residenciais. Levando esses pontos em conta, foram levantadas as seguintes categorias:

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• Assentamento precário inserido na malha urbana;


• Bairro central sem interesse do mercado imobiliário de classe baixa; • Bairro residencial com atuação do mercado imobiliário de classe média; • Bairro residencial com estrutura física que não tenha sofrido muitas transformações; • Bairro que tenha sofrido uma transformação radical recentemente; • Bairro exclusivamente residencial de classe alta; • Conjunto habitacional na periferia da cidade.

Essas categorias pareceram interessantes para a proposta do trabalho porque combinavam os pontos já mencionados em diferentes arranjos: classe social predominante, tipologia de moradia, os usos das ocupações dos lotes e inserção na malha urbana. Deixando claro que essas categorias levantadas não esgotam todas as possibilidades de análises, mas foram as que mais me despertaram interesse de leitura.

Após essa primeira triagem, busquei os possíveis bairros que se encaixavam nas categorias, e que não fossem, a priori, locais da cidade em que eu tinha contato ou alguma relação, seja de uso ou de afeto no meu cotidiano. Percebi durante as visitas que o olhar não viciado foi muito interessante para as leituras, e achei de extrema valia ter, neste trabalho, conhecido mais a fundo locais da cidade diferentes daqueles que freqüento como moradora de São Paulo. Os bairros escolhidos dentro das categorias propostas, e levando em conta a minha relação com a cidade, foram na

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seqüência dos itens descritos acima: Paraisópolis, baixada do Glicério, Tatuapé e Moema, Mooca, região da Berrini, Morumbi e a região de conjuntos habitacionais próximo à estação Artur Alvim da linha vermelha do metrô. Para a categoria bairro residencial com atuação do mercado imobiliário de classe média foram escolhidos dois bairros, Tatuapé e Moema, por estarem em estágios diferentes na atuação do mercado. Moema já é um bairro transformado pelo mercado imobiliário, mas que continua crescendo e se modificando, enquanto o Tatuapé é um bairro que está agora sofrendo grande transformação da atuação do mercado imobiliário e valorização da terra urbana. Portanto as relações dos moradores com o bairro são diferentes, e analisar esses dois estágios me pareceu bastante rico para a proposta deste trabalho. O interesse e atuação do mercado imobiliário na escolha das categorias e dos bairros mostraram-se importante pela interferência e transformação que as mudanças de tipologia e de moradores trazem à vida dos bairros da cidade.

“Parece não haver dúvida de que a cidade se reproduz, continuamente, como condição geral do processo de valorização gerado no capitalismo no sentido de viabilizar os processos de produção, distribuição, circulação, troca e consumo e, com isso, permitir que o ciclo do capital se desenvolva e possibilite a continuidade da produção, logo, sua reprodução”. (Carlos, 2001)

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Percebemos que a atuação do mercado geralmente não leva em conta a tipologia existente no local, ou a qual os moradores estão habituados, uma vez que o mercado imobiliário constrói de acordo com uma combinação daquilo que garantirá o lucro desejado e a tipologia que é escolhida como a mais vendável no momento. Essa mudança de tipologia afeta a vida cotidiana dos moradores do bairro, transformam as relações de vizinhança já enraizadas, ao mudar os vizinhos, e a quantidade de pessoas que ali vivem. Além disso, muitas vezes vemos prédios subindo em locais que só existiam casas, e os portões e janelas que incentivavam o olhar e a conversa são substituídos por muros e grades que afastam os moradores das ruas. Alteram-se, também, as relações pessoais e profissionais dos comércios locais que muitas vezes não “sobrevivem” à valorização da terra causada pelo interesse do mercado. A vida cotidiana é transformada,

“os aparelhos de televisão, por exemplo, substituem as ‘cadeiras nas calçadas’ de antigos bairros de São Paulo, assim como os videogames substituem ‘o outro’ nas brincadeiras infantis, colocando cada criança sentada diante de uma tela. (...) As mercadorias substituem as relações diretas entre as pessoas por meio de novos objetos; até as relações de troca modificam-se formalmente, distanciando os agentes da relação. As antigas vendas e mercearias, por exemplo, foram substituídas pelos supermercados, onde as cadernetas, que 41


marcavam uma relação próxima e de confiança entre vendedor e comprador, foram substituídas pelo ticket da máquina registradora; as lojas de armarinho desapareceram junto com o pequeno serviço; no plano do bairro, além de permitirem uma relação próxima e personalizada entre comprador e vendedor, serviam como locais possíveis de encontro. Como conseqüência desse processo, da normatização das relações sociais, da rarefação dos lugares de encontro decorrente das mudanças na morfologia da metrópole, estabelece-se o estranhamento do indivíduo na metrópole”. (Carlos, 2001) Tendo escolhido diferentes bairros com diferentes ocupações pude observar diversas maneiras como a vida cotidiana acontece dentro da cidade de São Paulo, tentando assim constatar e compreender a construção dos espaços na cidade e as relações sociais ali vividas.

A metodologia das visitas realizadas

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Após a escolha dos locais que seriam visitados no trabalho, foi necessário decidir de que maneira seriam feitas essas visitas. Por conta dos bairros da cidade de São Paulo serem, em sua maioria, áreas geograficamente grandes e com diferentes processos acontecendo simultaneamente dentro de uma mesma região, cheguei a conclusão de que seria bastante difícil contemplar toda essa diversidade e de que para o que este trabalho se propõem, analisar apenas um percurso pequeno, um trajeto em cada bairro, seria suficiente.


Como um dos pontos que balizaram a escolha dos bairros foi a inserção na cidade, achei importante trazer para a discussão a questão da mobilidade urbana através do transporte público. Em uma cidade como São Paulo “a mobilidade tornou-se uma quarta dimensão que já não pode ser ignorada, quer na leitura, quer na composição espacial” (Lamas, 1993). Villaça (1998) discute a acessibilidade aos locais da cidade, principalmente o centro, como primordial na relação de apropriação da estrutura urbana das diferentes classes sociais. Portanto todas as visitas foram feitas através de deslocamentos por ônibus, metrô, ou trem. A ida a campo surgiu desta inquietação de olhar para a cidade e observar seu cotidiano. Esta intenção se aproxima da teoria da deriva (manifesto dos Internacionais Situacionistas, 1960) e que descreve possíveis maneiras de leitura da cidade a partir do ato de caminhar pelas ruas:“a crítica urbana situacionista teve efetivamente uma base teórica, sobretudo a experiência da cidade existente” (Debord apud Jacques, 2003). A prática da deriva, uma apropriação do espaço urbano pelo pedestre através da ação do andar sem rumo, foi a maneira com que os Internacionais Situacionistas fizeram seus estudos sobre a cidade.

A prática da deriva é utilizada segundo um procedimento chamado psicogeografia, que estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos, através das derivas e tentava mapear os diversos comportamentos afetivos diante dessa ação básica do caminhar pela cidade (Debord apud Jacques, 2003). 43


A metodologia aplicada nas visitas e nos percursos deste trabalho se aproxima da prática da deriva nas questões do andar sem rumo e da tentativa de mapear os diversos comportamentos humanos na interação com o espaço que ocorriam nos locais escolhidos.

As visitas ocorreram de maneira espontânea, os caminhos foram feitos por ruas que me atraiam, ou que me interessavam, sem um percurso anteriormente organizado. Entregarse às solicitações do terreno e das pessoas que nele venham a conhecer (Debord apud Jacques, 2003) é uma das práticas incentivadas na deriva. Cada percurso foi feito apenas uma vez e registrado apenas neste momento, compreendendo o momento como proclamação do absoluto e consciência da passagem (Debord apud Jacques, 2003), os registros e relatos possuem uma abordagem situacional do espaço. Considerando que os “lugares podem ser plurissituacionais em função do momento do dia e do envolvimento dos atores presentes” (Agier, 2011), esse trabalho não pretende compreender todas as relações sociais existentes em cada trecho percorrido, mas constatar e refletir sobre as relações observadas durante a visita.

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Os registros foram feitos a partir de duas ferramentas, a escrita e a fotografia. A escrita foi utilizada como relato das sensações e percepções que tive durante os percursos e a partir delas busquei possíveis indícios que elaborassem teoricamente aquilo que foi observado. Porém, mesmo tendo escolhido uma maneira mais informal de fazer o relato


escrito, a fotografia é uma ferramenta que consegue ampliar e aprofundar a discussão subjetiva das relações e espaços captados por ela, e por isso achei de extrema valia o registro fotográfico dos percursos. Os relatos tentaram abordar todas as questões importantes na discussão proposta por este trabalho, relacionando aquilo que observava com os quatro pontos já mencionados (classe social moradora predominante, diferentes tipologias de habitação, os usos das ocupações dos lotes e local de inserção na cidade) e abrindo espaço para a percepção das situações específicas de cada local.

O registro fotográfico alternou entre mostrar através de imagens aquilo que estava sendo relatado e o “se deixar levar” pelas formas e situações próprias que por alguma razão me chamaram a atenção. Ao revelar e escolher as fotografias que fariam parte do trabalho percebi que elas não apenas mostravam a vida cotidiana, o espaço e suas relações, mas também indicavam a atmosfera do local e das sensações vividas por mim durante o percurso. Através da imagem podemos também ler outras relações que se mostram pelas formas da cidade, uma vez que “as formas não tem apenas a ver com concepções estéticas, ideológicas, culturais ou arquitetônicas, mas encontram-se indissociavelmente ligadas a comportamentos, à apropriação e utilização do espaço, e à vida comunitária dos cidadãos” (Lamas, 1993). Como já dito anteriormente, as tipologias de moradia, a comunicação física que as casas ou edifícios

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mantêm com as ruas, o tipo de comércio ou serviço fornecido no bairro, a manutenção das construções e das calçadas, são questões formais que nos dão indícios das relações sociais e da vida de cada região.

Gordon Cullen diz que “o ambiente provoca uma reação emocional no homem por três vias: a óptica, o lugar e o conteúdo” (Cullen, 1993). Neste trabalho busco apreender o espaço urbano me utilizando do estudo empírico e do estudo teórico, do confronto físico com o espaço e da relação deste confronto com a bagagem teórica estudada. Para desta combinação constatar as relações constituídas na vida cotidiana da cidade e levantar indícios sobre a sua maneira e intensidade de atuação.

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relat贸rios das visitas 49


A primeira visita que realizei foi no bairro da Mooca. Acho interessante dizer que, apesar de localizar os meus percursos em bairros, eles abrangem pedaços pequenos e específicos de cada região, o que não nos propicia uma visão geral, mas apenas daquelas ruas que foram percorridas. Ao descer do ônibus no final da avenida Paes de Barros já fica clara a importância dela para a vida do bairro, e como ela cria uma centralidade na região. Muito comércio e bastante gente circulando por entre os carros e ônibus que correm apressados. Logo que tenho a possibilidade, entro em uma rua um pouco mais residencial, casinhas e pequenos portões tomam conta da paisagem, quando viro uma esquina me deparo com uma barraca, e enquanto o Seu José Simões, o dono, conversava com uma senhora que estava sentada com ele, as pessoas passavam olhando o que estava à mostra. Um pouco mais à frente o dono do cabeleireiro e o dono do comércio da esquina conversavam enquanto não aparecia nenhum cliente, e a sensação que eu tive foi de que a vida aqui corre mais devagar. As casas com panos secando na janela, o casal de namorados que passeia, o rapaz que lava a rua na frente da sua casa, os homens no bar conversando, os rapazes na mecânica que davam risadas altas. Eu estava ali, tirando fotos, envolta nessa vida que acontecia, até que o Seu Aguiar

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me para pra uma conversa, me conta piadas, me perguntar o que estou fazendo ali e me diz, enquanto caminhávamos e ele cumprimentava todos que passavam na rua, que mora na Mooca há quinze anos, e adora aquele lugar. As casinhas viradas pra rua, o comércio de bairro em algumas ruas mais movimentadas. Nas ruas que percorri, a vida se assemelha as histórias contadas pelo meu avô, as relações entre as pessoas e com a rua parecem bastante antigas e enraizadas. O caminhar é agradável, porém um pouco seco, um pouco árido, talvez pela sensação que fica de fundo de que, apesar desse apreço que existe com o espaço, ele está um pouco abandonado. Alguns prédios vazios e a falta de manutenção com a estrutura urbana me fizeram pensar que talvez falte uma apropriação direta dos moradores, um sentido mais do que de pertencimento, mas de responsabilidade por aquele local. Fiquei com o pensamento de que talvez seja um lugar um pouco parado no tempo, sabendo que esta é uma região bem localizada, que o metrô Mooca esta sendo construído e que existe um perímetro de operação urbana próximo a esta área, fica a impressão de que este percurso está iniciando um processo de valorização e atuação do mercado. Enquanto isso não acontece de fato, seus moradores continuam a viver a vida como sempre souberam vivê-la.

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Para chegar ao bairro de Moema peguei um ônibus na avenida Domingos de Morais e desci em um ponto no meio da avenida Ibirapuera. Escrevendo agora me parece um percurso bastante fácil de fazer, mas na hora em que precisava chegar ao bairro e estava buscando as minhas possibilidades, tive a sensação de que essas não eram muitas, e de que tive que me adaptar as linhas de ônibus disponíveis, e não o contrário, como deveria ser. Estava caminhando num sábado de manhã, um dia de calor, ensolarado, muito bonito, e logo cruzei com um casal de velhinhos passeando, o que me deu uma sensação bastante agradável do lugar. Essa sensação foi crescendo a medida que eu percebia como o bairro era arborizado, as ruas bem cuidadas, o comércio e restaurantes movimentados, as pessoas que andavam com seus cachorros, ou que passavam de bicicleta. As tipologias de moradia eram em sua maioria de prédios com térreo privado, porém mais grades do que muros, o que permite certa visibilidade, contemplando certa sensação de fluidez, visuais e perspectivas para quem caminha pelas calçadas. O bairro me pareceu logo uma centralidade, um lugar que oferece tudo para quem ali mora. E nessa frase está também

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a questão que logo me veio à cabeça e me pareceu a mais importante, “para quem ali mora”! Fui percebendo que diferentemente da Mooca, as pessoas que ali trabalhavam não eram as que ali residiam, e unindo isso da sensação de dificuldade de acesso ao bairro tive a percepção de que quem usufrui daquele espaço agradável são exclusivamente os moradores dali, e estamos falando de um bairro altamente elitizado. Quanto mais eu caminhava mais eu percebia essas duas questões, o cuidado e o apreço com o lugar, e a sua exclusividade e segregação. Me percebi como alguém de fora, e percebi que esse lugar não é um local de passagem, por onde as pessoas que são da cidade normalmente cruzam e podem parar para um almoço ou um café, não é um local que atrai outras pessoas que não as que moram ali ou possuem qualquer relação direta com a região. A sensação de que eu nada tinha pra fazer ali e de que eles não precisam sair de lá para nada foi a sensação que ficou até o final do percurso, um lugar fechado em si, que preza pela sua comodidade, segurança e qualidade de vida. Peguei um ônibus na Avenida Hélio Pellegrino com uma frase ecoando na cabeça: “Estamos bem, obrigado!”.

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A visita à região da avenida Berrini foi feita logo após a visita à Moema, e acredito que, de todos os percursos esse era o que eu menos sabia o que esperar. Apesar de ter escolhido regiões que eu não possuía nenhum contato ou relação de afeto, esse foi um percurso completamente novo para mim, eu nunca tinha ido para esse lado da cidade. O ônibus passou por uma região residencial atrás da avenida Berrini antes de me deixar na mesma, e portanto, acabei escolhendo essas ruas para fazer o meu percurso. Ao descer do ônibus precisei de um tempo para tomar uma água, usar o banheiro, e essa foi uma das grandes percepções em todas essa experiência (apesar de ser um problema corriqueiro na vida de quem anda muito pela cidade), como é difícil achar um lugar para dar uma pausa, descansar, e como precisamos acabar consumindo alguma coisa em um bar para usar o banheiro ou sentar um pouco. Em todas as visitas a raridade de espaços públicos com bancos, bebedouros ou uma sombra, é bastante presente. E em muitos locais em que esses espaços existiam, eles estavam abandonados e vazios, o que gera insegurança ao transeunte que por ali passa e deseja sentar.

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A primeira impressão já foi bastante marcante. Como já citado, passei por uma praça vazia com uma banca de jornal fechada, e logo percebi que as minhas impressões seriam marcadas pelo fato de ser final de semana. Ao entrar nas ruas residenciais me deparei com lugares extremamente vazios, nem carros nem pessoas, me senti sozinha e insegura ao fazer o percurso. O único barulho que eu escutava era o da televisão dentro das casas, mas nunca vozes de pessoas, nem mesmo latidos de cachorros. Fiquei muito impressionada com a falta de movimento, onde estavam as pessoas que moravam naquelas casas? Portões fechados com cadeados, correntes, portas pantográficas, placas de “aluga”, se existe vida ali eu simplesmente não consegui vê-la. Tanto as casa como os comércios, quando esses existiam, estavam fechados. O que mais me intrigou foi o fato de eu já saber que a grande movimentação da região é por causa dos escritórios que existem ali, e que crescem a cada dia, mas eu estava caminhando por casinhas de bairro, e absolutamente nada acontecia em um sábado à tarde de um dia de calor! Peguei o ônibus de volta com um enorme ponto de interrogação na cabeça.

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Para realizar o percurso no bairro do Tatuapé, escolhi como destino o metrô Carrão. Logo ao descer do metrô encontrei a primeira barreira, e a primeira tomada de decisão. A estação do metrô fica em cima de uma das maiores avenidas de São Paulo, a Radial Leste, que corta e divide bruscamente a cidade e o bairro. Por conversas com amigos que moram e conhecem melhor a região decidi ir para o lado sul, em direção ao shopping Anália Franco, por esse ser um dos pólos de atuação e interesse do mercado imobiliário em São Paulo. Logo que desci do metrô comecei a caminhar e a fotografar e observar relações ainda genéricas. Um terreno com um gradil interessante que guardava o espaço sem tirar a visibilidade e sem ser agressivo. A vida e a movimentação do bairro, que me pareceu uma centralidade, o comércio de rua, as pessoas que caminhavam. Porém mantive uma sensação de que não percebia claramente a relação de apropriação dos moradores no bairro. Cheguei a cogitar de que aquele local, aquele percurso que eu estava fazendo, talvez não fosse interessante para o trabalho que estou desenvolvendo. Porém, quanto mais eu me afastava do metrô e da Radial Leste, pude perceber melhor os novos edifícios residenciais de classe média que ali estão sendo construídos e comecei a notar a transformação que a região vem sofrendo.

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Ao chegar a uma rua específica, a Serra de Botucatu, tive a percepção de que aquele não era um bairro sem identidade, como havia pensado a princípio, mas sim um bairro que estava perdendo a sua identidade. De um lado casinhas antigas, com muitas placas de “aluga” ou “vende”, e alguns comércios que resistiam, e que se comunicavam com seus clientes por recados deixados nas portas. Do outro lado, prédios novos, altíssimos, com seus atrativos fechados para a rua. Ao continuar o percurso e retornar ao metro, passei por ruas que ainda mantinham o loteamento antigo, as casinhas, pessoas conversando na rua, a feira e as moças que conversam sobre a manutenção da calçada, os trabalhadores sentados no banco da praça pra descansar. Consegui presenciar essa vida de bairro que ali ainda existe, mas as mudanças de tipologia são também mudanças de comportamento na vida cotidiana, das relações pessoais entre os moradores e com o próprio bairro. Esse bairro, em que os comerciantes transmitem recados a seus clientes colados em suas portas e escritos à mão, hoje cresce muros enormes entre as pessoas e a rua, transformando o modo de vida das pessoas que ali residem. A sensação que ficou é de que esta mudança brusca de tipologia de moradia é um processo em andamento, o qual está acontecendo e mudando aquele lugar agora, e me fez ir embora com o pensamento de que este lugar está sofrendo uma mudança de identidade.

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Quando comecei a escolher os locais que gostaria de fazer as visitas e os percursos, o Morumbi era a única região que eu tinha certeza que seria contemplada, por ser um bairro exclusivamente residencial, elitizado, e que é sempre usado com um exemplo ruim de urbanização. Eu já tinha bastante ideia de como seria a visita, mas ter vivido a experiência de andar pelo bairro, de caminhar, percorrer por entre as casas, utilizar suas calçadas, foi muito marcante. Começando pela dificuldade de acesso ao bairro, peguei um ônibus na avenida Faria Lima que seguia pela avenida Oscar Americano, e me deixou no cruzamento desta com a avenida Morumbi. Logo ao descer do ônibus me senti completamente perdida, sem qualquer ponto de referência que me indicasse um possível caminho, uma rua interessante. Nenhum comércio pra fazer uma pausa e pedir informações, apenas carros que cruzavam as ruas apressados e de vidros bem fechados. Essa sensação acabou se perpetuando por toda a visita, me dando a percepção de que esse lugar deseja se proteger e se distinguir da cidade. Depois de muito pensar, acabei pegando uma rua qualquer, e por um longo caminho tudo que eu pude ver foram muros altos, muitas árvores e câmeras! Câmera, câmeras, câmeras, uma atrás da outras, às vezes cinco em um mesmo portão. Cada passo que dava me sentia mais insegura, como se estivesse sendo agredida e mandada embora, , como se eu não

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fosse bem vinda. As calçadas são praticamente inexistentes, ou não possuem nenhum cuidado ou atenção, o que indica que ninguém passeia muito por ali, o que já era bastante claro visto que cruzei com pouquíssimas pessoas, e quando cruzei ou eram trabalhadores das casas atarefados ou estavam estacionando seus carros e indo para algum lugar, ninguém vivia aquelas ruas. A quantidade de carros estacionados foi um assombro também! A única paisagem que encontrava era de ruas vazias com muitos carros estacionados e muros altíssimos forrados de verde. Tive uma percepção interessante de que por minha câmera fotográfica ter uma lente fixa, 50 mm, que não possibilita o zoom, as fotos que tirei são exatamente o que eu, como pedestre, como escala humana dentro da cidade, estava vendo. Para esse percurso, poder mostrar exatamente a minha visão, foi muito importante. Por todo o percurso que fiz por ruas exclusivamente residenciais a sensação que ficou foi a de que simplesmente não existe relação com a rua, e o que reina é uma competição entre os muros para saber quem é o mais alto e o mais camuflado, qual a casa mais escondida. Voltei para a avenida Morumbi e percebi que eu me senti agredida simplesmente porque olhei para esse espaço na cidade, e o que eles esperam é que quem está de fora não veja eles ali.

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Logo que cheguei à avenida Morumbi novamente, ainda um pouco atordoada com a experiência vivida no percurso anterior, peguei um ônibus que chamava Paraisópolis contando que o ponto final da linha fosse próximo a favela com o mesmo nome. Atenta ao percurso, tive a sorte do ônibus não apenas passar próximo ao local, mas sim dentro, por entre suas ruas. Desci em uma rua bastante movimentada e pensei que essa possibilidade de pegar um ônibus que te deixe dentro do bairro deve ser de grande valia para as pessoas que ali vivem, e não é algo que ocorre para a maioria das favelas na cidade de São Paulo, até mesmo outras que estão bem inseridas na malha urbana. Acredito que a experiência de andar pelas ruas da Paraisópolis se intensificou por eu ter acabado de vir da experiência do Morumbi, e delas estarem distantes apenas dez minutos de ônibus e serem realidades completamente opostas. A rua que desci, chamada Ernest Renan, rua bastante comercial, com escolas e com um restaurante novo do Bom Prato, estava completamente cheia de gente, pessoas na fila do restaurante, gente sentada em tudo que era canto, bancos, muretas, cadeiras de plástico, na calçada, na guia da rua! Ao chegar fui pedir informações a um rapaz que conversava com o dono de uma loja, pois estava um pouco receosa de sentir que aquele lugar não me pertencia e que eu poderia ser mal interpretada ao tirar fotos. Achei que seria legal perguntar pra alguém de lá se teria algum problema e aproveitar para me apresentar e explicar o que eu estava fazendo ali. Me senti muito bem vinda e acolhida para andar, tirar fotos e conversar com as pessoas, apesar de ter ficado pensando nessa situação deste ter 60


sido o único lugar que achei que deveria de alguma maneira sentir que estava autorizada à fotografar, por que ali eu me sentia invadindo mais a privacidade do outro do que nos outros lugares que visitei? Continuei caminhando por essa rua e o filme de 36 poses foi tirado muito rapidamente! Inúmeros estímulos visuais, sonoros, os diferentes cheiros, tudo me atraia e me prendia a atenção. As crianças e peruas escolares pra todo o canto foi uma das coisas que mais me surpreendeu, pessoas que se olham e conversam, pessoas que me olham e conversam comigo, tanta vida que fiquei receosa de não estar conseguindo captar essa atmosfera apenas com as fotos. Acho importante colocar que todos esses fatores acabam contribuindo para certa inebriação sobre a vida nesse lugar, porém a precariedade da situação é algo que não pode passar batido. Dificilmente existem calçadas, a maioria das pessoas anda pelas ruas, o que pode ser perigoso. Muitos moradores e comerciantes se apropriam do espaço destinado ao passeio, o que acaba reforçando essa situação informal de caminhar junto aos automóveis. Acabei andando apenas em duas ruas de caráter bastante comercial, mas com muitas moradias também, quase sempre na tipologia de comércio embaixo e casa em cima. Não caminhei pelas pequenas vielas que possuem apenas casas, mas tive a sensação de que pela largura e hierarquia das vias as pessoas saem para essas ruas principais quando buscam o encontro, a conversa. São nessas ruas próximas às suas casas que elas passam maior parte do seu tempo livre, vivendo e criando relações. 61


Quando escolhi a região da baixada do Glicério estava em busca de um bairro central de ocupação de classes de mais baixa renda, algo talvez na tipologia de um cortiço ou casinhas unifamiliares. Pensei no Glicério também por uma vontade antiga de conhecer melhor a região, de visitar, de saber um pouco mais sobre esse bairro que é tema de tantos trabalhos na faculdade de arquitetura. Procurei no mapa e escolhi descer no metrô Liberdade e sair caminhando pela rua dos Estudantes até chegar próximo à avenida do Estado. Por ter passado antes pelo bairro da Liberdade, e esta ser uma região que freqüento bastante e me sinto à vontade, fui descendo a rua com certa leveza, me sentindo bastante confortável. Logo que cruzei a rua Conselheiro Furtado, com a câmera nas mãos, uma moça me chamou a atenção dizendo: “cuidado com essa câmera, menina”. Nesse mesmo momento parei, e percebi que estava numa rua muito vazia, que parecia bastante abandonada, e com algumas pessoas deitadas na rua. A partir desse instante não consegui relaxar completamente e fazer a visita como gostaria.

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Decidi voltar um pouco e descer por outra rua que me parecesse um pouco mais movimentada, me deparando com a rua Conde de Sarzedas, uma rua bastante comercial, na tipologia de sobrados com comércio no térreo, um comércio quase exclusivo de itens de igrejas evangélicas. Senti uma sensação de que aquilo era tudo bastante incomum, uma sensação de estranhamento, de que as coisas não se encaixavam muito bem e de que talvez aquele local fosse muito complexo para eu conseguir entender ou ter alguma opinião em apenas uma visita. Tentei continuar descendo, continuar entrando, mas acabava me sentindo receosa e terminei a visita com a sensação de que não consegui realmente chegar à Baixada do Glicério, no lugar que eu gostaria. As fotos acabaram por transparecer essa sensação, de que fiquei apenas espiando de longe. Subi de volta para o metrô Liberdade com uma sensação esquisita, de ver como as duas regiões são tão próximas, mas sentir que elas estão cada uma vivendo a sua vida, fechadas. Como se essa relação fosse um segredo que todos sabem, mas que ninguém fala à respeito.

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A visita realizada à região do metro Artur Alvim da linha vermelha do metro começou muito antes da minha chegada à estação. Peguei o metro na linha verde, fiz baldeação para a linha amarela, e depois pra linha vermelha, na qual passei ainda um bom tempo até chegar ao local escolhido. A distância é esmagadora, mesmo de metro. Cada estação que passava eu sentia o tempo se arrastando. A escolha do local foi feita analisando a cidade por mapas, a partir da implantação, na qual percebi a quantidade de conjuntos habitacionais repetidos que havia ali, e a partir da localização na cidade. Chegando a estação Artur Alvim já pude avistar os muitos predinhos de 4 ou 5 andares, e fui seguindo as ruas em sua direção. A princípio as ruas eram mais comerciais, com um clima que me fazia pensar que estava mesmo em outra cidade, não mais em São Paulo. Quando vi a região no mapa pensei que a experiência seria muito mais desoladora do que foi. Ao andar pelas ruas buscando os conjuntos habitacionais não me senti insegura, pois as ruas não estavam vazias como imaginei que fossem estar. Existe vida nas ruas, pessoas usando os comércios, os pontos de ônibus, vi crianças brincando nos prédios através das grades, e elas logo vieram me perguntar por que eu estava

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fotografando, quem eu era, de onde eu vinha. Os prédios são baixos, os fechamentos ou são feitos por grades ou muros com aberturas, que permitem visuais, existem janelas voltadas pra rua (e pessoas olhando pela janela), pessoas na rua, comércios. Os prédios são melhores inseridos do que imaginei que seriam, permeados por ruas maiores e mais comerciais. O que ficou mais impactante foi mesmo a monotonia estética, de todos os prédios serem iguais, e da impossibilidade de expressão de cada morador, que acaba se mostrando no pano colocado na janela, no adesivo no vidro. Essa monotonia se mostrou também como falta de referência para o caminhante, pois precisei olhar o nome das ruas que tinha passado e fiz o mesmo caminho na volta, que tinha feito na ida, para voltar ao metro. A visita foi, na maior parte do tempo, tranqüila. Pensei que as fotos provavelmente não captaram essa sensação, de que o estar na periferia me fez sentir em uma cidade pequena do interior, na qual as pessoas falam comigo, me dão informação, em um clima hospitaleiro. Fui andando de volta para a estação me sentindo bem, e quando entrei no metro me abati ao lembrar do tempo que ainda demoraria pra fazer o caminho de volta.

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“...essas questões abrem caminho para a valorização do acidental e do espontâneo na vida cotidiana. Ainda se joga bola na rua, por exemplo, no meio dos carros. Ainda se brinca na calçada. A qualquer momento pode acontecer um encontro, pode ocorrer uma reunião, pode haver troca de informações, pois os lugares, dotados de realidade física e sensível, inscrevem-se como espaço social, permitindo ações, sugerindo ou impedindo-as, e, nesse caminho, criando um prática espacial”. Ana Fani Alessandri Carlos

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Comentários sobre as visitas Em cada local que visitei me mantive atenta aos quatro tópicos que descrevi no segundo capítulo, e a partir da relação entre classe social, localização na cidade, tipologia habitacional e diversidade de uso, tentei compreender no que esses pontos interferem na relação de apropriação do espaço público pelos moradores do bairro. Porém, além dessas características, cada bairro, cada trecho de cidade percorrido, me apresentou outras questões, algumas mais específicas e próprias da lógica de cada lugar. Essas diferentes características que chamaram a minha atenção durante a visita me parecem as mais interessantes de aqui apontar, apesar de serem apenas constatações, as quais eu não conseguiria analisar com a profundidade que merecem, pelo curto espaço de tempo que possuo.

O pequeno percurso que fiz no bairro da Mooca me mostrou como um bairro que é inserido na cidade, mas que mantém boa parte do seu loteamento e construções original, consegue resguardar espaço para a manutenção das relações antigas entre os indivíduos e entre os moradores e o bairro dentro de uma cidade como São Paulo.

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Essas relações se traduzem no uso da calçada como local de estar, como espaço de permanência e não só de passagem, como o uso do comércio de bairro, o cabeleireiro, o mercadinho, o açougue, a banca de jornal, como a ida a pé a lotérica. Aqui percebi como realmente o comércio movimenta a


vida do bairro.

São nesses pequenos atos corriqueiros do dia-a-dia, os quais muitas vezes podem parecer apenas atos automáticos, que criamos laços de identidade bastante profundos entre habitante-habitante e habitante-lugar (Carlos, 2001). Este é um lugar repleto de memórias, nas quais os seus moradores enxergam sua própria identidade, e essa é uma situação bastante peculiar em uma cidade que “os preconceito da funcionalidade demoliram paisagens de uma vida inteira” (Chauí apud Bosi, 1994). Temos aqui um trecho dessa cidade que mantém sua paisagem, e com isso mantém uma relação de afeto e segurança emocional (Lynch, 1997) com seus moradores, que se sentem pertencentes a este bairro, e alimentam essa relação ao se apropriarem constantemente e cotidianamente desse espaço. Sabemos, porém, que o bairro da Mooca pode vir a sofrer uma mudança drástica em seu território. Com a implantação da operação urbana e a construção de uma estação de metro observamos uma intenção de que se “invista” neste lugar, o que pode acarretar na valorização da terra, no interesse do mercado imobiliário e, portanto, na gentrificação de moradores e comerciantes deste bairro. Esse é um processo que pude observar durante a visita ao bairro do Tatuapé, a transformação formal do bairro trouxe uma sensação de perda de identidade, a qual se mostrou

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conseqüência da atuação do mercado imobiliário na região. As mudanças formais mudam a maneira como as pessoas interagem com um lugar, como as pessoas vivem o espaço de um bairro, uma vez que com a mudança da morfologia há também a mudança das formas de apropriação do espaço (Carlos, 2001).

Pude perceber que a tranformação que um bairro sofre pela atuação do mercado imobiliário transforma o espaço de diferentes maneiras. Podemos observar a mudança visual, da destruição das construções antigas, o que pode causar desorientação, perda de identidade e memória, falta de sensação de pertencimento e conexão com o lugar. A mudança de uso, como observei no Tatuapé, no remembramento dos pequenos lotes para a construção de grandes edifícios com térreo privado, saem os comércios antigos e com eles as relações que ali foram criadas. A mudança da relação com a rua, através da mudança de recuos e da maneira como é feita a diferenciação entre o que é privado e o que é público, de pequenas portas a muros altos.

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Essas são mudanças significativas que transformam a relação dos moradores com o espaço, e são feitas, principalmente, em função da realização de interesses imediatos em nome de um presente programado e lucrativo (Carlos, 2001). Sendo o interesse prioritário, das construtoras e das incorporadoras imobiliárias, o lucro, as formas e construções originais do bairro são pouco levadas em conta, e as transformações e mudanças físicas são bastante profundas.


O espaço, que antes possuía uma história e uma identidade, vinculadas à das pessoas que o construíram e que o utilizam cotidianamente se transforma, e transforma junto à maneira como esses moradores se relacionam com o bairro. “Quando o ato de habitar passa a ser destituído de sentido, quando os homens se tornam instrumentos no processo de reprodução espacial, e suas casas se transformam em mera mercadoria, passíveis de serem trocadas ou derrubadas (em função das necessidades do desenvolvimento econômico da cidade), então a atividade humana do habitar, do estar com o outro, do reconhecer-se neste lugar e não no outro, reduz-se a uma finalidade utilitária. (...) Nesse processo, o cidadão se reduz à condição de usuário, como o ato de habitar se reduz ao de morar”. (Carlos, 2001)

Falamos aqui de necessidades humanas complexas, as quais se exprimem na escolha do lugar de moradia, na sensação de pertencimento a este local, nas relações criadas neste e com este espaço, e que são tratadas de maneira funcional e utilitária, e deixadas de lado pela necessidade de lucro e da reprodução do capital no sistema econômico vigente.

No bairro do Tatuapé pude sentir e observar essa transformação, na qual os moradores mais antigos ainda mantêm uma relação de afeto e uso com os espaços públicos e com os comércios que resistem, mas o processo de valorização que a atuação do mercado imobiliário cria no espaço urbano trás a expulsão de muitos moradores e comerciantes. 71


Essa é a situação observada, por exemplo, no bairro de Moema, o qual a atuação do mercado já é bastante antiga e consolidada e já transformou completamente a paisagem urbana do trecho que visitei. Essa foi, porém, uma percepção complexa de enxergar e compreender. Na primeira análise que fiz do percurso em Moema fiquei com a ideia de que aquele era um pedaço da cidade fechado em si por falta de conectividade com o resto da cidade, entretanto quando olhei para o mapa com mais cuidado e compreendi suas vias de acesso, comecei a questionar essa primeira ideia. Apesar da região de Moema não estar muito próxima a nenhuma estação de metro ou trem, importantes avenidas com muitas linhas de ônibus passam por aquela região, permitindo o acesso através do transporte público.

Me pareceu, portanto, mais coerente que esta sensação, de que este espaço é fechado em si, venha da falta de diversidade social da região. Um local em que vivem quase que exclusivamente pessoas de classe alta ou média alta, e que possuem apenas locais de comércio, serviço, lazer, direcionados para essa mesma faixa de renda, não atrai outras pessoas da cidade além daquelas desta renda, para o convívio em suas ruas.

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A questão da segregação socio-espacial, já discutida no primeiro capitulo do trabalho, se mostra aqui como ponto relevante para análise, pois, através da segregação as camadas de alta renda não só produzem suas áreas residenciais nas áreas mais agradáveis e bem localizadas, como também


cerceia as demais classes destes locais (Villaça 1998).

Jane Jacobs fala sobre a diversidade como o componente essencial a todas as cidades. Ao caminhar pelas ruas de Moema percebi que a diversidade de usos é contemplada, existem restaurantes, bares, serviços diversos, comércio de bairro, supermercados. Porém, um bairro pensado como cidade necessita também de diversidade social, pois um espaço segregado se mostra, para alguém que vêm de fora e não pertence a essa classe social, como um espaço fechado em si, um lugar da cidade que não pertence a todos.

Essa foi uma sensação difícil de elaborar no papel, pois quando caminhava e observava as ruas de Moema muitas pessoas se apropriavam daquele espaço, porém apenas pessoas de uma mesma classe social. Já na visita ao bairro do Morumbi, a segregação social unida da falta de diversidade de uso se mostrou como abandono completo do espaço público. A sensação de vazio foi desoladora durante toda a visita, me indicando que aquelas ruas são exclusivas dos automóveis que por ali passam.

Com a afirmação do automóvel em nossa sociedade, Richard Sennett (1973) afirma que junto veio uma ideia de que o indivíduo tem o direito absoluto de se movimentar sem restrição dentro da cidade, e o efeito que isso provoca é a falta de sentido do espaço público, principalmente da rua urbana, que não seja subordinada ao movimento livre, entendendo que “a tecnologia da movimentação moderna substitui o fato 73


de estar na rua por um desejo de eliminar as coerções geográficas” (Sennett, 1988). Vemos, assim, ruas construídas a responder apenas a facilidade da circulação de automóveis, e não ao uso e convívio das pessoas que moram ali. As calçadas estreitas e mal cuidadas e a falta de pessoas circulando nelas me indicou a veracidade dessa citação. Porém, não é só esse fato da rua ser construída para o automóvel que gera o abandono do espaço público que observei. As casas construídas no meio do lote deixam com que o muro alto se relacione com a rua e a falta de comércios e serviços faz com que qualquer pedestre que ande por aquelas calçadas mal cuidadas se sinta completamente inseguro.

Essas constatações são conseqüências de um lugar completamente segregado, tanto socialmente como no uso. A ausência de vida social e perda de sociabilidade são conseqüências direta da segregação levada às últimas conseqüências (Leme apud Abrahão, 2008). O trecho que percorri no bairro do Morumbi pode ser comparado à lógica de um subúrbio norte-americano, porém estamos falando de um bairro completamente inserido na malha urbana da cidade. No subúrbio…

“a rua passa a ser um mero percurso. A praça deixa de ser um espaço reservado ao encontro, à vida social e,

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pela falta de utilização, transforma-se num simples largo. O quarteirão é abandonado, enquanto a baixa densidade e a casa unifamiliar se revelam sem força nem estrutura para constituir verdadeiro ‘espaço urbano’. A arborização e a vegetação substituem as relações do edificado com o espaço urbano. A caracterização cuidada do espaço coletivo é substituída pela qualificação do espaço privado. O edifício vai situar-se no meio do lote. É individualizado e envolvido por jardins e deixa de contatar diretamente com a rua. A membrana de separação do espaço público com o privado deixa de ser a fachada do edifício e passa a ser a vedação do lote, o muro” (Lamas, 1993). Criam-se assim, dentro da cidade de São Paulo, lugares que não buscam se integrar à cidade, que tem como princípio a segregação social e espacial, e que geram ruas vazias e inseguras e moradores que não se apropriam dessas ruas. Esses espaços, a meu ver, alimentam a lógica do medo e da reclusão como resposta a esse medo, gerando apenas mais segregação e insegurança.

Durante toda a visita me senti insegura e desorientada, e foi um enorme alívio sair daquelas ruas, o que, pensando agora, é de uma tristeza sem tamanho. Sentir-se repelida de ruas que deveriam ser espaços feitos para o convívio, para o encontro e para a vida social. Percebi durante este trabalho que são inúmeros os fatores que geram a apropriação do espaço público por seus

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moradores, criando ruas vivas e interessantes, e que muitas vezes as pessoas estão “convencidas de que as ruas elegantes dão um sentimento de satisfação e que as ruas pobres são deprimentes, sem levar em conta nenhum outro fator” (Debord apud Jacques, 2003). A negação gritante deste pensamento se mostrou pra mim durante a visita à Paraisópolis.

Durante o percurso feito na favela da Paraisópolis fiquei quase o tempo todo num embate mental sobre a precariedade da situação e a vida que aquele lugar exalava. A quantidade e diversidade de coisas acontecendo ao mesmo tempo, as inúmeras pessoas na rua, as cores, os cheiros, eram tantos os estímulos que me envolviam enquanto eu caminhava pelas ruas, me afirmando a ideia de beleza como apresentação emocionante de uma soma de possibilidades (Debord apud Jacques, 2003). As pessoas estavam o tempo todo se relacionando entre si e com o espaço físico, se apropriando em muitas formas, seja no sentar na calçada ou nas construções de casas e comércios que avançam no espaço público. Que a vida pulsava naquele lugar era incontestável. Percebo que uma situação de instabilidade, de informalidade e de depósito de tanta esperança, como uma favela, é um lugar muito complexo para uma análise tão rápida, porém consegui perceber alguns fatores que podem contribuir para essa realidade de uma apropriação tão intensa do espaço público. 76


Observamos neste espaço claramente a diversidade de usos, a convivência misturada entre habitação e comércio, a proximidade que as casas têm das ruas, com suas portas muitas vezes abertas te convidando a entrar, as redes de relações sociais muito fortalecidas que existem nas favelas, e que são construídas e alimentadas nas ruas.

Vemos nesse espaço da cidade uma participação emocional das pessoas na sua construção e no uso. Um espaço bastante precário tanto na situação das construções como no espaço público, mas no qual as pessoas espontaneamente se apropriam e utilizam, e que em muitas vezes elas mesmas precisam se mobilizar para construir, fisicamente e emocionalmente. O que me faz pensar na visita feita à região da Berrini, um espaço que possui a escala humana a qual permitiria a criação de relações, um bairro de casas com seus portões virados para ruas largas e tranqüilas, mas que se mostrou durante a visita o oposto completo disso.

Como nos outros bairros visitados que continham comércio e residência, existem algumas ruas mais comerciais e algumas mais residenciais, mas que se relacionavam e se integravam no ambiente urbano. No trecho que percorri na região da Berrini foi a mesma coisa, passei pela avenida Berrini, alguns comércios abertos outros fechados e fui andando por ruas mais comerciais, porém com todos os comércios fechados e por ruas residenciais, sem ninguém nas ruas. 77


Muitas questões me intrigaram, pois eu não estava num lugar que fisicamente queria se separar do espaço público, como as casas do Morumbi e seus muros altos, mas a falta de uso do espaço público era gritante. Me questionei se boa parte do comércio estava fechado por ser um sábado a tarde, apesar de que em uma cidade como São Paulo isso não costuma ser o comum. Ficou a pergunta: as pessoas não estavam na rua porque o comércio estava fechado ou o comércio estava fechado porque não existem pessoas na rua neste horário?

Fiquei muito intrigada com essa visita, principalmente por ser um lugar que possibilitaria o uso das ruas, mas imagino que a sensação de insegurança que eu senti ao fazer a visita seja uma questão relevante também para os moradores da região.

Jane Jacobs afirma que“quando as pessoas dizem que uma cidade, ou parte dela é perigosa ou selvagem, o que querem dizer basicamente é que não se sentem seguras nas calçadas”, e reintera que o não uso das calçadas reforça a sensação de insegurança nela sentida, uma vez que “quando temem as ruas, as pessoas as usam menos, o que torna as ruas ainda mais inseguras” (Jacobs, 1961).

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Além da falta de pessoas circulando nas ruas, não ter nenhum comércio, serviço ou equipamento urbano aberto intensificou a sensação de vazio e de abandono do espaço público. Vemos de novo a importância da diversidade do uso


para a fluidez da vida urbana (Damiani, 1993). Percorri as ruas dessa região e não consegui registrar nenhum tipo de apropriação do espaço público pelos moradores daquelas casas tão silenciosas.

Essa não foi a única visita que me deixou bastante intrigada, tanto a visita à baixada do Glicério, quanto a visita aos conjuntos residenciais próximos à estação de metro Artur Alvim, foram, de certa forma, diferentes do que eu imaginava.

A visita realizada à baixada do Glicério, como a da Paraisópolis, me fez perceber que certas situações na cidade são muito complexas para serem compreendidas num espaço curto de tempo. O que eu pude observar durante o percurso me fez pensar que mesmo fazer constatações pode ser difícil em certas situações da cidade. Porém, uma das coisas que ficou mais marcada dessa experiência foi a diferença de sensação de segurança que eu senti ao atravessar a rua Conselheiro Furtado. Lynch diz que “a distância psicológica entre duas localidades pode ser muito maior, ou mais difícil de superar, do que a mera separação física parece assegurar” (Lynch, 1997), e foi essa a sensação que eu tive ao atravessar do bairro da Liberdade para o Glicério. Enquanto caminhei pelas ruas do Glicério consegui registrar as antigas construções, as casinhas, o comércio de rua, algumas pessoas que compravam, mas não consegui ver a vida de pessoas que moram ali. Não consegui identificar os

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moradores e como esses utilizam o espaço público. Por isso a sensação dita no relatório da visita, de não ter conseguido “chegar lá”.

Já à visita aos conjuntos habitacionais foi surpreendente por eu estar esperando uma falta de vida urbana completa, um quadro de abandono e medo. Porém, o que ali encontrei foi mais parecido com a vida de uma cidade pequena do interior de São Paulo. Um dia tranqüilo, algumas pessoas na rua, umas crianças brincando dentro de um dos prédios, pessoas esperando o ônibus, homens que arrumam o portão da garagem, mulheres com suas sacolas de feira. A junção dessa sensação de uma “vida de interior” com a distância avassaladora que enfrentei para chegar até os conjuntos me fez pensar em uma citação de Villaça, na qual ele diz que “a conurbação metropolitana se apresenta assim como um processo devorador de cidades e produtor de bairros” (Villaça, 1998). A distância física, geográfica, daquele bairro com o centro de São Paulo é tão grande, que outras relações de centralidades se criam na região.

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Apesar de ter observado vida urbana, de perceber que aqueles conjuntos habitacionais são permeados por ruas e por comércios e serviços, a monotonia e a repetição são muito marcantes na paisagem do bairro, sendo, portanto espaços difíceis de deixar rastros (Benjamin apud Damiani, 1993). Durante o percurso é possível observar uma pequena tentativa de apropriação dos moradores nas suas janelas, uma vontade de se mostrar e de se colocar como indivíduo.


A construção de inúmeros conjuntos habitacionais, todos iguais, por uma extensão tão longa do território, é também uma leitura reduzida das necessidades sociais e urbanas dos indivíduos e da sociedade. Com esse trabalho percebi que, apesar de termos necessidades claras e pontuais como a de um lugar para se abrigar, temos também necessidades abstratas as quais construíram boa parte da cidade e das relações sociais existentes e que precisam ser consideradas na reconstrução dos espaços urbanos. O ato de habitar vai muito além daquele de possuir uma casa. Ao morar em um lugar criamos uma rede de relações entre indivíduos e com o espaço em que vivemos. Toda a nossa convivência na (e com a) cidade é permeada por essas relações de afeto e de uso que se criam e se cultivam no nosso dia-a-dia.

“É bem verdade que precisamos de um ambiente que não seja simplesmente bem organizado, mas também poético e simbólico. Ele deve falar dos indivíduos e de sua complexa sociedade, de suas aspirações e suas tradições históricas, do cenário natural, dos complexos movimentos e funções do mundo urbano”. (Lynch, 1997)

Porém, o que observei em boa parte dos trechos percorridos na cidade foi uma falta de atenção e interesse nessas necessidades abstratas e relações criadas no dia-a-dia, em prol do lucro e da reprodução do capital no espaço urbano e na construção da cidade. 81


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• ABRAHÃO, Sérgio Luís. Espaço público: do urbano ao político. – São Paulo, Annablume, FAPESP, 2008. • AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. - São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011. • Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade Iternacional Situacionista; Paula Berenstein, organização. – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. • ARANTES, Otilia Beatriz Fiori. Urbanismo em fim de linha e outros estudos sobre o colapso da modernização arquitetônica. - São Paulo: Edusp, 2001. • BOSI, Ecléia. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. • CARLOS, Ana Fani Alessandri. Espaço-tempo na metrópole. - São Paulo: Contexto, 2001. • CULLEN, Gordon: Paisagem urbana. – Lisboa: Edições 70, 1993. • DAMIANI, Amélia Luisa. A cidade (des)ordenada concepção e cotidiano do conjunto habitacional Itaquera. - São Paulo S.N. 1993. • DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. • FERREIRA, Paulo Emilio Buarque. Apropriação do espaço urbano e as políticas de intervenção habitacionais no centro de São Paulo. – São Paulo, 2007. • JACOBS, Jane. The death and life of great American cities. – New York: Vintage Books, 1961. • LAMAS, José Manuel Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. 84


• LEFÈBVRE, Henri. Vida cotidiana no mundo moderno. – São Paulo, Atica, 1991. • LEFÈBVRE, Henri. The production of space. – Oxford: Blackwell, 2008. • LYNCH, Kevin: A imagem da cidade. – São Paulo: Martins Fontes, 1997. • Metrópole e Globalização: Conhecendo a Cidade de São Paulo/Organizadores Maria Adélia Aparecida de Souza…[et al.]. – São Paulo: Editora CEDESP, 1999. • SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. — São Paulo; Companhia das Letras, 1988. • SILVA, Patricia Cezário. Urbanismo e cotidiano. Aproximando o olhar sobre o Higienópolis e Santa Cecília. – São Paulo, 2001. • VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. – São Paulo, Studio Nobel, 1998.

Catálogos: • Situacionistas: arte, política, urbanismo. Museu D’Art Contemporani de Barcelona. ACTAR, Barcelona, 1996. • Theory of the derive and other situacionist writing on the city. Museu D’Art Contemporani de Barcelona. ACTAR, Barcelona, 1996.

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Acabou nosso carnaval Ninguém ouve cantar canções Ninguém passa mais brincando feliz E nos corações saudades e cinzas foi o que restou Pelas ruas o que se vê É uma gente que nem se vê Que nem se sorri Se beija e se abraça E sai caminhando Dançando e cantando cantigas de amor E no entanto é preciso cantar Mais que nunca é preciso cantar É preciso cantar e alegrar a cidade A tristeza que a gente tem Qualquer dia vai se acabar Todos vão sorrir Voltou a esperança É o povo que dança Contente da vida, feliz a cantar Porque são tantas coisas azuis E há tão grandes promessas de luz Tanto amor para amar de que a gente nem sabe Quem me dera viver pra ver E brincar outros carnavais Com a beleza dos velhos carnavais Que marchas tão lindas E o povo cantando seu canto de paz Carlos Lyra/Vinicius de Moraes Marcha da quarta feira de cinzas

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