Revista "Eu tenho vergonha"

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Maringá - 2008 Distribuição Gratuita

Eu tenho VERGONHA


Eu tenho VERGONHA

EDITORES Brenda Caramashi Renata Mastromauro Victor Cardoso Wilame Prado EDITORIALISTA Brenda Caramashi REDAÇÃO Alana Gazoli Beatriz Kathleen Brenda Caramashi Bruna Dias Bruno Isboli Cauhê Sanches Douglas Oliveira Emanuele Rhoden Jorge Mariano Joyce Camanho Liliane Danas Murilo Battisti Murilo Benites Rafael Andrian Renata Mastromauro Rodrigo Chioderolli Thábata Furtado Victor Cardoso Wilame Prado

CAPA/EDIÇÃO DE IMAGEM Jorge Mariano Liliane Danas DIAGRAMAÇÃO Liliane Danas IMPRESSÃO Gráfica Clichetec Tiragem de 1.000 exemplares A revista Eu Tenho VERGONHA é uma publicação experimental dos alunos do 3º ano de Comunicação Social (Jornalismo), na disciplina de Edição. Centro Universitário de Maringá (Cesumar) Av. Guedner, 1.610, Jardim Aclimação Maringá - Paraná - CEP 87050-2390 Telefone: (44) 3027-6360 - www.cesumar.br Reitor: Wilson de Matos Silva Vice-reitor: Wilson de Matos Silva Filho Coordenador Comunicação Social: Cibele Abdo Rodella Professora responsável e edição final: Rosane Barros (MTb 2123) Endereço eletrônico: revistaeutenho.vergonha@gmail.com Proibida a reprodução deste material sem autorização prévia e escrita do editor. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores.

Bibliografia Verecúndia-indecência-opróbio, em outras palavras: vergonha CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982. Devedor não pode passar vergonha BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. Código Brasileiro de Defesa Consumidor. São Paulo: Forense Universitária, 1991. A ótica do capitalismo é podre, assim como os tomates de Ilha das Flores http://www.casacinepoa.com.br/index.php?arquivo=filmes_ mais&id=276&pagina=45&id_sub=23 Silenciados pelo medo Relatório da ONU sobre violência contra crianças - http://www. andi.org.br/_pdfs/Estudo_PSP_Portugues.pdf Rede de Educação cidadã - http://www.recid.org.br/index. php?option=com_content&task=view&id=285&Itemid=2 UNICEF - http://www.unicef.org/brazil/pt/ ONU - http://www.onu-brasil.org.br/ Prefeitura de Maringá - http://www.maringa.pr.gov.br/ Páginas negras do catolocismo Artigo - A Igreja na Idade Média do Professor de história - Juberto Santos Link - http://www.historianet.com.br/conteudo/default. aspx?codigo=951 Entrevista com Leonardo Boff – Revista Caros Amigos – Setembro de 1998 Link - http://carosamigos.terra.com.br/outras_edicoes/grandes_ entrev/boff.asp Site: http://www.leonardoboff.com/ Livro: BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder : ensaios de eclesiologia militante. São Paulo: Ática, 1994. Libido no divã ARAUJO, U. F. . O sentimento de vergonha como regulador moral.. Vertentes (UNESP), v. 1, p. 68, 2000. BRAGA, E. R. M. Palavras, palavrões: um estudo sobre a repressão sexual com base na linguagem empregada para designar a genitália e práticas sexuais na cultura brasileira.. UNESP, 2008. ABDO, C.H.N. ; OLIVEIRA JR, WM ; SCANAVINO, M. DE T. ; MARTINS, FG . Disfunção erétil - resultados do estudo da vida sexual do brasileiro (Erectile dysfunction: Results of the Brazilian sexual life study). Revista da Associação Médica Brasileira, v. 52, p. 424-429, 2006. LINHARES, Juliana; MAGALHÃES, Naiara. A vida sem muito sexo. Veja, n. 2052, p. 86-89, mar. 2008. Hipnose pode curar a vergonha http://www.camarabrasileira.com/timidez1a.htm Fotografias e pinturas As fotografias e pinturas que aparecem nas páginas 07, 09, 10, 12, 14, 15, 17, 18, 20, 22, 24, 25, 26, 28, 38, 41, 42, 50, 51 da revista são reproduzidas sob as condições de “justo uso” para fins educacionais.


Abra seus olhos. Escancare-os e prepare-os para ver tudo aquilo que a sociedade tentou esconder por séculos, trancafiando nos armários mais profundos e ocultos. Relembre a dor e a sensação de incômodo deixadas pelas atitudes impensadas do homem, ou antes, cuidadosamente calculadas para ferir, matar, contrariar os preceitos morais e éticos já existentes. As guerras, os preconceitos, as chacinas, as manobras políticas baseadas em mentiras, roubalheira e enganação. Questione mais uma vez -“Por quê”? - Arrependa-se de novo. Reveja a vergonha dos outros – já que é mais fácil encará-la do que enxergar nossos próprios pecados. E por falar em pecado... Será que realmente existem? Serão os mesmos para mim e para você? Pode analisar sem pudor, não se acanhe em responder. Ao menos, para si. Passe pelo incômodo pela e inquietude que a busca dessas respostas podem trazer. Perguntas diretas e persuasivas, que mexem com nossas crenças e valores e podem revelar nossos segredos têm o poder de trazer à tona essas sensações. E então, enrubescemos, coramos. Ai, que vergonha! De admitirmos fraquezas, de vermos a imperfeição, até de sentirmos as mais novas e deliciosas impressões, mas que nos deixam tão vulneráveis. O novo pode causar estranhamento e medo, pode gerar vergonha. O diferente atrai olhares, às vezes, repressivos. E se esse olhar nos for dirigido, tendemos a nos encolher, sem coragem de rever no espelho o detalhe que chamou a atenção do outro. A magreza, a gordura, o cabelo roxo, o carro velho, a deficiência, o desejo descoberto. Mas há os fortes, que não se intimidam com a condenação e vencem a vergonha – são os que têm brios, honra, orgulho próprio – vergonha na cara. E se eles conseguem superar o sentimento de humilhação que lhe tentam impor, e até são felizes dessa forma, porque não tentar vencer, ou, pelo menos, encarar as outras “vergonhas” que carregamos: o pudor, a desonra, a timidez. A aura sombria que essas palavras, e tudo o que representam, pode amedrontar no primeiro momento. Mais o assombro maior vem depois, ao descobrir que nada é indestrutível e até o preceito mais firme pode ser revisto, e se não resistir às provas, quebrado. Mas se preferir, mantenha bem escondidas as suas vergonhas e faça como fazemos sempre – aponte e ria da vergonha alheia. É mais fácil, mais prazeroso. Mas não se avexe se, quando olhar para o vizinho, atos indecorosos vierem na sua direção. Talvez ele te devolva a vontade de correr e se esconder, morrendo de vergonha. Para evitar constrangimento, desassossego e póstumo arrependimento, uma receita é certa. Respeito. Com este aliado não há ataque, destruição da dignidade. Quem respeita não induz ao ridículo, não expõe fraqueza, não exclui. E aquele que desrespeita apontando no outro aquilo que tem para si como vergonhoso, este, sim, é quem carrega a vergonha.

E D I T O R I A L

BREVE LIÇÃO (da falta) DE MORAL SOBRE A VERGONHA

Brenda Caramashi


sumário

A palavra vergonha por 13 séculos presente em nos

Racismo e violência enchem as telonas desde os primór Libido no divã: a busca por ajuda para vencer

Vergonha da política brasileira desac

A maioria das pessoas tem medo d

Devedor não po

A vergonha no Brasil: hera

Maria-sem-vergonha dá e

A id A vergonha tratada em alguns livros como pilar

A vergonha d

Jairo Bouer: “Sintomas de um p

Ensa

Entrevista exclusiva com o jornalista

O passado de altos e baixos da Ig

A vergonha pode ter cura por m

O rosto avermelhou? A ciên

O retrato da vergonha no document Respeito é

Violência sexua

A dita O desperdício como

Eu tenho VERGONHA

O menino qu


sso vocabulário [06]

rdios do cinema [07] o acanhamento [12]

credita o cidadão [14]

de falar em público [16]

ode passar vergonha [19]

ança dos portugueses [20]

em qualquer lugar [23]

dade da vergonha [24] na relação social [27]

do último pedaço [28]

problema maior” [29]

aio fotográfico [30]

a Bóris Casoy [34]

greja Católica [38]

meio da hipnose [40]

ncia pode explicar [41]

tário Ilha das flores [42] bom e todos gostam [46]

al e o silêncio do medo [48]

adura do corpo perfeito [50] forma de sobrevivência [52]

ue tinha vergonha de voar [56]


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Verecúndia-indecência-opróbio, em outras palavras: vergonha

Jorge Mariano

A palavra surgiu no século 13, passou por várias formas de escrita e tem vários significados

por Douglas Oliveira Substantivo feminino com apenas três sílabas, a palavra vergonha está em nosso cotidiano e transmite um sentimento capaz de impedir algumas de nossas ações. Uma consulta a vários dicionários mostra que é bem fácil encontrar o significado da palavra. Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira, a palavra vergonha vem do latim verecúndia e significa, de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, um sentimento penoso, causado pela inferioridade, indecência, indignidade ou ainda consciência da própria honra, dignidade e honestidade; opróbrio. Outro significado é apontado pelo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, que remete à vergonha um sentimento de insegurança provocada pelo medo do ridículo, por escrúpulos e timidez, acanhamento. Mostrando alguns exemplos, o Dicionário Didático de Português também exibe o significado da palavra: “sentimento de constrangimento, ou acanhamento diante de alguém ou de uma situação: as malcriações do menino fizeram a mãe passar vergonha diante das visitas”.

Para Edna Castilho Peres, doutora em filologia e professora da Universidade Estadual de Maringá, é difícil estabelecer um significado chave para as palavras. “Por exemplo, um tempo atrás, a palavra ‘legal’ significava somente aquilo que é permitido por lei. Hoje, com a rápida evolução cultural do ser humano, a palavra ‘legal’ se tornou algo banalizado, passando a significar, além de algo permitido por lei, um conceito de comportamento do ser humano, ‘aquele cara é legal’.” A palavra vergonha pode ser expressa no singular, vergonha, e no plural, vergonhas, mas, ao acrescentar apenas um s no final da palavra, o significado muda totalmente. Uma outra explicação encontrada no dicionário Aurélio para a palavra vergonhas, bastante utilizada pela literatura ou escritos do tempo da colonização, remete aos órgãos sexuais humanos. Na língua italiana, vergonha significa vergogna, em latim verecúndia e, em espanhol verguenza. Na Língua Portuguesa, até chegar à escrita que conhecemos hoje, a palavra passou por alguns processos. No século 13 se escrevia vergonça e depois vergonna. Só mais tarde ela passou a ser vergonha como conhecemos hoje.


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O Nascimento de uma nação, D.W. Griffith. Estados Unidos, 1915

O medo devora a alma, Rainer W. Fassbinder. Alemanha, 1974

Um dia de cão, Sidney Lumet. Estados Unidos, 1975

Má educação, Pedro Almodóvar. Espanha, 2004

Racismo e violência enchem as telonas desde os primórdios do cinema De O Nascimento de Uma Nação, produzido em 1915, até o filme A Questão Humana, de 2007, situações incitando o preconceito foram retratadas pela sétima arte e refletem as atitudes vergonhosas do homem na história

Foto montagem/Renata Mastromauro

por Wilame Prado e Renata Mastromauro

O martírio de Joana D’Arc, Carl T. Dreyer. França, 1928

O triunfo da vontade, Leni Riefenstahl. Alemanha, 1935

A luz é para todos, Elia Kazan. Estados Unidos, 1947

A questão humana, Nickolas Klotz. França, 2007


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“O homem não mudou, ele continua o mesmo. A maldade está aí.” Paulo Campagnolo

“Quando um homem estúpido faz alguma coisa de que tem vergonha, ele sempre declara que estava só cumprindo seu dever.” Bernard Shaw

Imagine a cena: pipoca e refrigerante nas mãos, telão de aproximadamente dez metros de largura por quatro de altura, uma boa companhia ao lado, e você conferindo os trailers dos lançamentos, só esperando mais um bom filme começar. Mas, o que seria um bom filme? Muitos gostam de aventuras de dar fim em fôlego, com carros voadores, armas de destruição com alto potencial e, claro, com final feliz em que mocinho finalmente consegue pegar o bandido. Outros gostam de ir ao cinema para quase morrer de susto com mulher que precisa ser exorcizada, com crianças demoníacas ou com algum serial killer que mata jovens saudáveis e bonitos. Outros, ainda, simplesmente preferem ver algum idiota desastrado estragando casamentos, churrascos ou qualquer evento do qual participa. Voltando à cena: os trailers se acabaram, alguns créditos correm na telona e finalmente começa o filme. Passam-se alguns minutos e você percebe que o longa tem como tema principal a vergonha. Isso mesmo: a vergonha retratada nas telonas. Nunca assistiu a algum filme com este tema? Não se preocupe. Realmente é raro em toda a história da sétima arte retratar o sentimento de desgosto que excita a idéia ou o receio da desonra, ou seja, a vergonha. Os especialistas de cinema que o digam. Foi difícil achar alguém que quisesse falar sobre esse tema: a vergonha no cinema. Professores, diretores e roteiristas se esquivaram e admitiram não saber discorrer sobre tal assunto. Resolvemos então conversar com quem, embora não tenha muitos títulos, diplomas e canudos, vive intrinsecamente o cinema desde que, quando criança, sua mãe o levou para assistir ao clássico Era Uma Vez no Oeste, de Sérgio Leone. Trata-se de Paulo Campagnolo, coordenador do projeto Um Outro Olhar, que há oito anos oferece à comunidade de Maringá filmes cultuados, raros de se encontrar em locadoras. No projeto, os participantes não pagam nada e, ao final do filme, podem acompanhar uma explanação acerca da obra fílmica feita pelo próprio Campagnolo. Isso tudo ocorre em salas modernas de cinemas, as mesmas que, costumeiramente, exibem lançamentos de Hollywood que, dificilmente, trazem como

tema a vergonha. Campagnolo explica que nem sempre a vergonha em si (como o receio de um garoto em sair de casa em razão de uma espinha enorme bem na ponta do nariz) foi tema de cinema. Mas situações vergonhosas, geralmente de cunho racista, acompanharam a sétima arte desde os seus primórdios. Ele cita o filme O Nascimento de Uma Nação, dirigido por D.W. Griffith. “Foi feito não sob a égide da vergonha porque fala sobre o racismo, a Ku Klux Klan, que no filme são os heróis. Esse filme foi feito dessa forma porque o Griffith tinha uma ideologia: ele era absolutamente contra os negros, era racista, preconceituoso.” Mesmo apontando como um filme que retratou um tema vergonhoso, Campagnolo não se esquece de destacar os méritos da obra. “O filme inaugura a linguagem do cinema como a gente conhece hoje (os três tempos, essa montagem de atrações, a seqüência, a montagem paralela), mas ao mesmo tempo é um dos filmes mais terríveis”, esclarece o coordenador do projeto Um Outro Olhar. Na entrevista, Campagnolo citou uma série de filmes que trataram de temas vergonhosos para a sociedade e diz achar que o cinema acompanha o homem e os acontecimentos do mundo. “Os grandes filmes vão tratar sempre de assuntos que estão ocorrendo, que estão sendo deflagrados pelo homem, pela sociedade. O homem não mudou, ele continua o mesmo. O que muda são os fatos, os acontecimentos. O homem é o mesmo. A maldade está aí.” O professor de cinema da Unipar (Universidade Paranaense) Rodrigo Oliva, conta que embora a vergonha possa ser um tema muito amplo no sentido cultural, dificilmente seus alunos apresentam idéias sobre esse assunto para a produção de filmes. “Os alunos sempre vêm com as histórias mais comuns: de amor, drogas e medo”, relata. Oliva cita o diretor espanhol Pedro Almodóvar como alguém que focou suas lentes acerca de temas vergonhosos, principalmente na infância. “Se a gente for pegar todos aqueles conflitos que ele [Almodóvar] estabelece de uma forma tão genial, você vai encontrar crianças com problemas, que passaram por situações vexatórias. Estar com vergonha é algo que


09 faz com que você não consiga se estabelecer dentro de um processo.” O diretor de cinema pernambucano Daniel Aragão, com sua fala mansa típica nordestina, diz acreditar que existem sim filmes que têm por tema a vergonha, porém, logo de início, não se lembrou de nenhum. Aos poucos, Aragão, que foi diretor assistente do premiado longa brasileiro Cinema, Aspirinas e Urubus, foi se soltando e finalmente se lembrando de alguns filmes. “Lembrei de um filme agora: Day Dog Afternoon [Um Dia de Cão, 1975], com Al Pacino. Um ladrão vai fazer um assalto para conseguir dinheiro para uma operação de mudança de sexo no parceiro dele. O filme levantou algumas questões da vergonha”, relata o diretor. “Também lembrei de O Medo

Devora a Alma [1974], que é sobre uma mulher idosa, que tem um relacionamento com um imigrante muçulmano, na Alemanha do final dos anos 70, que é muito marcada pelo nazismo. Ele é negro, muçulmano, e ela, uma senhora branca. Tem uma coisa do preconceito muito grande, ela tem vergonha dele no começo do filme, o mostra para os filhos, que ficam irritados com aquilo”, diz Daniel Aragão, recordando-se de mais um título de filme que tratou relações vergonhosas. Para cada época, o cinema, de uma maneira ou de outra, acabou servindo como retrato das mazelas, ou das flores, de cada período histórico. Se Campagnolo cita O Nascimento de uma Nação como um filme que retratou o preconceito eminente do começo do século 20, o

mesmo Campagnolo também lembra de A questão humana, um filme recente, de 2007, do francês Nicholas Klotz, que compara o modus operandi de recrutamento de uma grande corporação com o cruel regime nazista da Alemanha nas décadas de 1930 e 1940. “Não é o governo americano que manda. Quem manda são as grandes corporações, que vão comprando, comprando. Elas é que têm o poder. Os outros são capachos, obedecem. Esse filme [A Questão Humana] fala claramente sobre isso, de como é o mesmo processo, de como é o mesmo horror. E de como o ser humano, nesse caso, fica absolutamente subjugado, à mercê de tudo isso. Ele [o filme] está falando sobre todos nós, sobre tomar uma postura, um partido”, diz Paulo Campagnolo.

Ditadura militar se esconde por trás das pornochanchadas É comum assistir a filmes antigos do Brasil e ver atrizes das novelas de tevê praticamente nuas, abarcadas em roteiros que exalavam erotismo e atitudes profanas. Trata-se da famosa pornochanchada, estilo de cinema brasileiro que marcou época na década de 1970. Mesmo não mostrando cenas de sexo explícito, esses filmes foram intitulados de pornô em razão da censura imposta pela Ditadura Militar. Paulo Campagnolo, coordenador do projeto Um Outro Olhar, enxerga as pornochanchadas como fuga para uma ditadura militar que precisava jogar para debaixo do tapete filmes com conteúdo político. Os famosos materiais subversivos, como atestavam os fardados. “Para a ditadura, a pornochanchada estava ok. Era sacanagem, putaria e pronto. Os filmes com conteúdos políticos, esses, sim, foram para o ‘beleléu’. Então, acho que a vergonha está aí. Pra Frente Brasil, um dos primeiros filmes que foram liberados logo após o fim da ditadura, fala sobre esse momento. O que é isso Companheiro?, de certa forma, também retrata um pouquinho dessa vergonha”, diz Campagnolo. O jornalista e escritor José Fiori também se lembra dos filmes picantes brasileiros, feitos décadas atrás. “A pornochanchada foi uma versão brasileira do cinema de mercado norte-americano, com doses picantes, mas não de sexo explícito. Era o sexo mais velado, menos desbundante”, explica. E sobre a relação entre os filmes eróticos da época e ditadura militar, Fiori é ácido: “a pornochanchada

foi um anestésico para atenuar o pau em riste que tinha como alvo gozar nas coxas da escabrosa ditadura militar”, diz o jornalista, escancarando sobre o papel vergonhoso dos militares na época.

Pôster de “O bem dotado, o homem de Itú”, pornochanchada de 1977


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Os dez filmes que mais retraram a vergonha, segundo Paulo Campagnolo*, por ordem de ano de lançamento 1 - O martírio de Joana D’Arc , Carl Theodor Dreyer - França, 1928. Na França, século XV, Joana de Domrémy é chamada de “a filha do povo” por resistir bravamente à ocupação de seu país. Mas é presa, humilhada, torturada e interrogada de maneira impiedosa por um tribunal eclesiástico, que a levou, involutariamente, a blasfemar. É colocada na fogueira e morre por Deus e pela França.

“Mísero que sou, muito temo, porque muito fiz desavergonhadamente, e vivo torturado pelo medo do meu próprio exemplo.” Ovídio

2 - O triunfo da vontade, Leni Riefenstahl Alemanha, 1935. No início, um bimotor desce dos céus, Adolf Hitler sai sorridente e é ovacionado pela multidão. Tudo é gigantesco: são paradas, desfiles monumentais e discursos para um público em total catarse. Um espetáculo cinematográfico hipnótico e terrificante que retrata, com imagens fortes, todas a pompa (e a barbárie) do regime nazista. 3 - Consciências mortas, William A. Wellman Estados Unidos, 1943. Quando um rancheiro é dado como morto por ladrões de gado, o povo de Ox-Bow decide fazer justiça com as próprias mãos e linchar os supostos assassinos. Henry Fonda interpreta um andarilho que tenta defendê-los. 4 - A luz é para todos, Elia Kazan – Estados Unidos, 1947. Em seu primeiro trabalho na revista “New Yorker”, o escritor Phillip Green finge ser judeu para escrever uma reportagem sobre antisemitismo e descobre na pele o que é ser vítima do preconceito. 5 - Noite e neblina, Alain Resnais – França, 1955. Filmado na cidade de Auschwitz, após a Segunda Guerra Mundial, ressalta por meio de imagens todo o horror espalhado pelos campos de concentração nazistas.

6 - Glória feita de sangue, Stanley Kublick – Estados Unidos, 1956. Nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, soldados franceses recusamse a continuar um ataque suicida contra os alemães. Seus superiores resolvem levá-los à Corte Marcial, onde poderão ser julgados à morte. 7 - Vá e veja, Elem Klimov - Rússia, 1985. Durante a Segunda Guerra Mundial, na Bielorússia, um menino se une a um grupo de resistência anti-nazista. Ele descobre que toda sua família foi morta e, aos poucos, vai perdendo a inocência ao testemunhar os horrores da guerra. 8 - Não matarás, Krzysztof Kieslowski - Polônia, 1988. Jacek é um jovem de 20 anos, completamente perdido, que mata um taxista em cenas fortes de violência. A tensão continua até que uma advogada recém-formada é chamada para defendê-lo em seu julgamento. 9 - O círculo, Jafar Panahi - Irã, 2000. Conta a história de três mulheres que recebem indulto temporário para deixar a prisão. Porém, elas precisam enfrentar a repressão da sociedade islâmica em que vivem, que lhes priva até do direito de comprar uma passagem de ônibus para deixar a região. 10 - A questão humana, Nickolas Klotz - França, 2007. Em Paris, Simon trabalha como psicólogo no departamento de recursos humanos numa empresa pretroquímica. Quando a gerência pede que ele investigue o comportamento de um dos executivos, a percepção de Simon começa a ficar perturbada e nebulosa. Uma experiência que acaba afetando seu corpo e sua mente, com reflexos na vida pessoal.

* Paulo Campagnolo escreve sobre filmes em jornais e revistas de Maringá e coordena o projeto Um Outro Olhar.


Que falta nesta cidade?…………….Verdade Que mais por sua desonra?………..Honra Falta mais que se lhe ponha……….Vergonha. O demo a viver se exponha, Por mais que a fama a exalta, numa cidade, onde falta Verdade, Honra, Vergonha.v

Jorge Mariano

Fragmento de Epílogos, de Gregório de Matos


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Libido no divã Apesar de todo o liberalismo presente nos dias de hoje, muitas pessoas sentem-se intimidadas pela sexualidade e buscam ajuda para vencer o acanhamento por Jorge Mariano Quatro mil anos antes de Cristo até meados do século 5, o sexo e a nudez eram vistos como práticas extremamente naturais. A liberdade sexual era enorme. O ato era ligado a rituais de fecundidade e acontecia deliberadamente. Embora praticálo fosse muito mais comum para os homens – com suas mulheres, amantes, escravas e até jovens do mesmo sexo –, as mulheres também viam o sexo com naturalidade. A partir do início da Idade Média (século 5 ao 15), o ato sexual ganhou novas conotações. A Igreja Católica impunha sua forte moral. O sexo deixou de ser prazer e passou a ser pecado. O corpo tornou-se casto e o caráter pecaminoso continuou até o início do século 20. Durante esse período de repressão, a prática fora do casamento ainda era mal-vista pela sociedade, porém, a literatura e as artes passavam por tempos de libertinagem e erotismo. Marquês de Sade expressava a perversão sexual em seus livros e vários pintores traziam corpos voluptuosos e insinuantes em suas obras. No período correspondente ao fim do século 18 e início (até cerca da metade) do 19, o psicanalista Sigmund Freud publicou pesquisas sobre a libido e a sexualidade humana. Apesar de causarem grande frisson na sociedade da época, as pesquisas de Freud podem ser consideradas o ponto de partida para os estudos sobre o comportamento sexual humano. A figura do terapeuta sexual começa a ganhar terreno na década de 1950, quando a psicoterapia comportamental começou a desenvolver técnicas específicas para a superação de queixas de comportamento sexual. Apesar de as primeiras pesquisas relacionadas à sexualidade terem aparecido antes

dessa data, ainda não existia uma abordagem para tratar de problemas como as dificuldades sexuais. A repressão sexual torna-se menos intensa depois da primeira metade do século 20. A pílula anticoncepcional veio como alternativa para o controle de natalidade e o direito ao prazer e a liberdade de expressão foram altamente propagados entre as pessoas, principalmente durante a década de 1960, com os movimentos hippies. Porém, o caráter “casto” advindo da história deixara suas marcas. Eliane Maio, psicoterapeuta e doutora em educação pela Unesp de Araraquara - SP, busca uma explicação para os tabus da sexualidade na Bíblia. Em sua tese de doutorado, Eliane cita um trecho da escritura sagrada que pode servir de ilustração para a vergonha da sexualidade que existe nos dias de hoje: “No Jardim do Éden, nossos primeiros pais foram criados num estado de perfeita inocência. Eva desobedeceu à ordem de Deus; o fruto agridoce da árvore do conhecimento do bem e do mal foi experimentado; Adão e Eva perceberam que estavam nus e uma nova consciência surgiu: o conhecimento carnal”, e completa, dizendo que o “descobrimento dos corpos foi feito na vergonha”. A citação complementa estudos da psicologia que dizem que todos os sentimentos são aprendidos, inclusive a vergonha. Ou seja, os sentimentos não são genéticos. Cada pessoa desenvolve os seus próprios, com maior ou menor intensidade, dependendo das experiências que vive. “Na nossa cultura, a vergonha é o corpo nu. Na cultura indígena, não há vergonha do corpo nu”, diz Eliane. Ainda de acordo com a doutora, a “repressão corporal resulta que a maior parte de nossos desejos parece incompatível com algumas normas sociais estabelecidas”. A doutora defende o fato de que a sexualidade depende de um conceito sócio-


13 Gettyimages / Dimitri Vervitsiotis

histórico-cultural. O psicólogo Oswaldo Rodrigues, diretor do Instituto Paulista de Sexualidade (Inpasex), afirma que os homens são os que mais sofrem na hora de admitir os problemas. “Os homens têm mais vergonha de procurar tratamento, pois culturalmente, espera-se que já saibam o que fazer no sexo”, diz Rodrigues. Porém, o terapeuta ressalta que o público que mais buscava tratamentos para problemas com inibição da sexualidade eram os homens, realidade que ele diz ser diferente hoje em dia. “Há 20 anos eu atendia mais homens. Atualmente, atendo mais casais que buscam a adequação junto da expressão sexual.” De acordo a psicoterapeuta Eliane Maio, o número de pessoas que busca terapia aumentou nos últimos anos. “Houve um aumento de cerca de 20% no número de pacientes em relação ao ano passado”, diz. Ainda segundo a terapeuta, não são apenas pessoas sozinhas que procuram auxílio. Casais, tanto hetero como homossexuais também aparecem com freqüência nos consultórios. Pesquisa realizada pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), intitulada “Estudo da vida sexual do brasileiro”, traz dados recentes quanto às principais dificuldades que os brasileiros alegam ter na hora do sexo. Segundo os dados da pesquisa, publicados na edição de número 2.052 da revista Veja, 51% das mulheres e 48% dos homens admitem sofrer com disfunções sexuais, porém, esse número diminui drasticamente quando questionados se sofrem alguma dificuldade sexual. Isso demonstra a vergonha que as pessoas têm de assumir tais problemas. Em artigo publicado pela Universidade de Campinas (Unicamp), o professor doutor Ulisses Araújo argumenta que o sentimento da vergonha funciona como um “regulador moral”. O autor diz que “a vergonha é um sentimento básico para a constituição do self (ser).” Para Araújo, a vergonha nasce de reflexões pessoais, tomando como base valores próprios e de outras pessoas. Nesse contexto, ao atingir

o fracasso, um sujeito pode ou não experimentar o sentimento. Porém, citando outros autores, o professor diz que “a vergonha se configura no encontro de dois sentimentos: a inferioridade e a exposição”, o que mostra que a vergonha da sexualidade realmente está no receio que as pessoas têm de expor seus problemas. Como confirma a pesquisa publicada pela revista Veja, é extremamente tênue a linha que separa a “disfunção” da “dificuldade”, e, ainda segundo o artigo de Ulisses Araújo, “para sentir vergonha, a pessoa deve comparar se sua avaliação contraria ou não algum referencial próprio ou de outras pessoas que lhe sejam significativas”. Portanto, retomando a idéia

51% das mulheres e 48% dos homens admitem sofrer com disfunções sexuais defendida na tese da doutora Eliane Maio, grande parte da vergonha, senão toda, que se tem da sexualidade advém da repressão sexual que ocorreu em toda a história do ser humano, até os dias de hoje. A diferença de criação entre homens e mulheres, a diferença de conceitos, como o amor, o prazer, a sensualidade e o erotismo em culturas diferentes, e até a maneira como o discurso sexual foi modificado com a evolução da sociedade. Pode-se dizer que a vergonha da sexualidade sempre vai ser um tabu. Sempre existirá um número de pessoas que simplesmente não vai conseguir aceitar seus corpos e seus possíveis problemas de forma natural. E tais fatos são perfeitamente explicáveis devido ao processo de desenvolvimento histórico, social e cultural dos povos. Mesmo com todas as pesquisas que rodeiam a psicologia com o intuito de ajudar pessoas a lidarem com seus problemas, é impossível prever se um dia a vergonha não será mais um deles. Assim sendo, como cita Eliane Maio em seu estudo sobre a sexualidade humana, “dizia um cartaz mui puído: é proibido usar a libido.”


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Só falar não resolve, é preciso agir Sentir vergonha da política brasileira afasta o cidadão e impede que algo seja feito para mudar por Alana Gazoli

“Vergonha não é não ter dinheiro. Vergonha é não ter vergonha de buscar dinheiro fazendo qualquer tipo de acordo.” Deputado Raul Jungmann (PPS-PE), que

deixou a disputa à Prefeitura de Recife por falta de recursos para levar a campanha adiante.

Divulgação

“Todos os políticos não valem nada, são corruptos”, “na política é tudo questão de interesse”, “eu tenho vergonha da nossa política.” Essas são frases conhecidas e repetidas por muitos brasileiros. Eles estão insatisfeitos com os agentes públicos, têm opinião forte ao julgar, ao condenar os políticos, mas na hora de reivindicar, de ter voz para pedir a prestação de contas, de acompanhar a aprovação dos projetos, as licitações e ter coragem para tirá-los do poder, dizem, simplesmente, que não gostam de conversar sobre esses assuntos ou que odeiam política. O professor de Realidade Socioeconômica e Política Brasileira Antônio Paulino dos Santos disse que as pessoas deveriam adorar a política para evitar que os maus gestores se aproveitassem disso para fazer “politicagem”. “Se não há vigilância de toda a sociedade, somente da imprensa, os políticos se sentem à vontade para fazer o que lhes interessa.” Segundo o professor de filosofia Reginaldo Bordin no momento histórico em que vivemos não é possível que o indivíduo faça uma análise crítica da política, por isso, ele aceita a ordem estabelecida como se fosse natural. Bordin explicou que a política instaurada hoje dá legitimidade ao capital e o capital é bem mais forte que a política. “O homem caminha para um processo oposto ao das questões filosóficas, não levando a ação específica, mas ao sujeito anestésico.” Ainda de acordo com o professor, a vergonha que o homem sente

da política é senso comum na sociedade, porém, individual, o que dificulta uma ação movida pelo grupo contra os abusos políticos. “Somos romantizados, pensamos que o indivíduo faz a diferença e não a coletividade.” É essa individualidade que impede que o homem cumpra com o dever social de acompanhar, fiscalizar, cobrar e fazer os políticos sentirem-se vigiados, segundo o professor Antônio Paulino dos Santos. De acordo com ele, as pessoas são consumistas, procuram pelo status, pelo poder econômico, mesmo que para isso seja preciso deixar de cumprir as regras. “A ética acaba sendo um obstáculo, o reflexo disso são omissão e impunidade, que fazem aumentar as corrupções.” Ainda de acordo com Paulino, em decorrência das mazelas políticas as pessoas se sentem enojadas, esquecem em quem votaram, não vão nem às reuniões de condomínio para participar das decisões, contudo, acham-se no direito de reclamar depois. “É preciso formação política, consciência social, cidadania e pressão coletiva para que a política deixe de ser politicagem.”


15 Foto oficial de Fernando Collor, presidente do Brasil entre 1990 e 1992

“O meu primeiro ato como presidente será mandar para a cadeia um bocado de corruptos.” Fernando Collor de Melo

De Collor aos cartões coorporativos O Brasil já passou por vários escândalos políticos. Um dos mais recentes em âmbito nacional é o caso dos cartões corporativos, usados, incorretamente, pelos ministros em situações que não eram emergenciais nem essenciais, como a compra de bebidas alcoólicas. Segundo o historiador e mestre em história e sociedade Gilson Aguiar, os políticos legitimam a vergonha que o cidadão sente do poder público. Ele citou outros três momentos importantes de escândalos políticos nessas quase duas últimas décadas. Um deles é o caso do “mensalão”, descoberto em 2005, envolvendo parlamentares que recebiam dinheiro em troca de apoio na aprovação de projetos do governo. “O caso ficou conhecido também como “valerioduto”, por ter o publicitário Marcos Valério como o condutor do dinheiro do Estado para benefí-

cios políticos”, afirmou Aguiar. Outro caso são “os anões do orçamento”, de 1993, em que deputados desviavam dinheiro público para investimentos em entidades filantrópicas ligadas a “laranjas” e recebiam propinas de prefeituras e empreiteiras para a inclusão de verbas orçamentárias destinadas a realização de obras. Por último, o historiador apontou o caso de corrupção que envolveu o presidente Fernando Collor de Melo (então PRN), no início dos anos 1990. Collor e seu tesoureiro, Paulo César Farias, envolveram–se no esquema de desvios de recursos públicos, abusos de poder e estelionato. “Ele [Collor] é o símbolo da contradição política. Se autodenominou o ‘caçador de marajás’, fez campanha em cima da vergonha política. Nós elegemos um corrupto.” Alana Gazoli


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Falar em público, nem pensar Enquete mostra que entre 150 maringaenses, maioria tem vergonha de falar em público

“Estou pensando em criar um vergonhódromo para políticos sem-vergonha, que ao verem a chance de chegar ao poder esquecem os compromissos com o povo.” Leonel Brizola

por Rodrigo Pessin Chioderolli, Quando alguém perguntava alguma coisa Thábata Bazotte Furtado, Beatriz eu entrava em desespero.” Apesar de ser Kathleen, Joyce Camilla Camanho alegre e extrovertida, a dona-de-casa diz não conseguir falar em situações mais A revista Eu Tenho Vergonha saiu às formais. ruas de Maringá e perguntou: Do que você A psicóloga Clarice Ravedutti diz que tem vergonha? A enquete foi realizada suar, tremer e esquecer são algumas entre os dias 28 de fevereiro e 5 de março reações corporais comuns que acontecem de 2008. Foram ouvidas 150 pessoas com com pessoas que temem um microfone, idade entre 18 e 80 anos. A consulta uma platéia ou até mesmo falar em mostrou que 40,4% sente vergonha de pequenas reuniões, como a de condomínio. falar em público, desde palco e salas de “A vergonha de falar em público está aula até teatros e reuniões. diretamente ligada à insegurança, à O estudante de direito da UEM falta de conhecimento sobre o assunto e (Universidade Estadual de Maringá) principalmente do medo do julgamento Gilberto de Abreu, conta que durante muito das outras pessoas.” tempo não conseguia fazer perguntas A psicóloga explica que a forma de aos professores quando a sala de aula educar uma criança está ligada diretamente estava cheia. “Eu ficava torcendo para com o tipo de comportamento que ela que um colega tivesse a mesma dúvida terá perante as outras pessoas. “Se foi e tivesse coragem de perguntar também. muito reprimida, repreendida quando Caso contrário eu tinha que esperar o criança, se os pais nunca a deixavam professor ficar sozinho para falar com ele.” falar, alegando ser assunto de adultos, ela Gilberto de Abreu diz que a vergonha foi cresce insegura, incapaz de expor suas passando com o tempo. “Na universidade idéias a outros públicos, e essas pessoas já não tenho vergonha, temos muitos são grandes candidatas a sentir vergonha seminários e eu sou obrigado a falar com de falar em público.” os colegas me olhando. Hoje não sinto Como todo trauma ou medo, Clarice mais vergonha.” Ravedutti explica que a vergonha deve ser A dona-de-cada Maria Izabel Alves tratada pelo enfrentamento. Aos poucos, diz que a vergonha de falar em público nunca bruscamente. Falar em pequenas sempre lhe trouxe problemas. “Quando reuniões familiares e ter segurança total morava em prédio, eu ia às reuniões do assunto ajuda muito para perder de condomínio, mas não falava nada. totalmente a vergonha.

Jorge Mariano


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Ainda durante a consulta aos maringaenses por meio de uma enquete, o segundo lugar, com votação expressiva, ficou com a vergonha da política brasileira. Calvino Camargo, coordenador do curso de Psicologia do Centro Universitário de Maringá (Cesumar), explica que a vergonha existe sim, mas que as pessoas não fazem nada para que a situação política atual mude. “Um bom exemplo para isso é o escândalo do cartão corporativo. Os brasileiros poderiam manifestar sua vergonha de alguma forma, mas não fizeram nada.” Para Camargo a vergonha pode ser gerada por diversos sentimentos. Entre eles estão a falta de pudor, de sensibilidade e de consciência, porém, existe um que predomina nessa descrição. “A vergonha geralmente está associada ao sentimento de culpa, ela vem como forma de reparação dos erros”, completa. Eder Thomazella, professor e especialista em geopolítica diz acreditar que a vergonha do cidadão brasileiro em relação à política atual exista somente no momento em que são divulgados escândalos envolvendo políticos brasileiros, mas que depois cai no esquecimento da população. “O brasileiro é acomodado, com isso, ao ver as notícias ele se choca, mas não faz nada, porque já viu situações semelhantes não serem solucionadas”, conta o professor. Thomazella explica que com a realidade econômica em algumas regiões do País, as pessoas não têm expectativa de vida prolongada, o que as torna alvo fácil para os políticos. “As pessoas mais humildes acabam se vendendo facilmente, fazendo com que a população na mesma situação, não tenha vergonha e até mesmo concorde com o descaramento de determinados políticos”, completa. Calvino Camargo chega à conclusão que no mundo político atual não existe o sentimento de vergonha. “Eu acredito que as classes sociais, inclusive a política no Brasil perderam a vergonha no seu sentido real.” Camargo declara

que o sentimento de vergonha, dos políticos, vem para uma suposta justificativa perante a mídia e o público eleitor, dos erros cometidos pelos respectivos representantes do nosso país. “A vergonha vem em forma de desculpas. Não no sentido de reparar o dano, mas sim de se eximir da culpa”, diz o coordenador do curso de Psicologia do Cesumar. Eder Thomazella diz que os políticos sentem vergonha uns dos outros em ocasiões especificas e que a vergonha sempre está relacionada com o sentimento de culpa. “A culpa geralmente cai em pessoas com menos influência, fazendo com que os políticos com maior poder de persuasão se esquivem da culpa e até declarem vergonha dos companheiros”, sugere o geólogo.

“A vergonha geralmente está associada ao sentimento de culpa, ela vem como forma de reparação dos erros” Gettyimages / James Woodson

Política brasileira é discutida como vergonha

A vergonha da mentira Na consulta à população maringaense, a vergonha de mentir ficou em quarto lugar. Das 150 pessoas que participaram da enquete, dez disseram ter vergonha de mentir. Seis homens e quatro mulheres disseram mentir e depois sentiram vergonha do que fizeram. A vergonha, na maioria das vezes, é um sentimento que surge quando somos pegos em flagrante fora dos padrões aceitos e valorizados pela sociedade. E a presença de outra pessoa como testemunha quando somos pegos em flagrante é o que faz com que sintamos mais vergonha. Segundo a psicologa Cristiane Pina, a vergonha pode estar relacionada às idéias que foram impostas às pessoas durante a infância, tais como valores éticos, religiosos e políticos. “A vergonha pode ser alimentada na criança no momento em que ela impõe a sua idéia contra a idéia de seus cuidadores, pais, familiares, fazendo com que ela se sinta criticada e ridicularizada.” A mentira, diz a psicóloga, pode ser vista como uma máscara. É uma alternativa para esconder o que se é de verdade. “Ela pode ser criada a partir do momento em que você sente vergonha da não aceitação, e você deseja esconder isso.” A psicóloga Cristiane Pina diz que a vergonha de mentir em especial “surge quando são abaladas as construções feitas para ocultar a origem não aceita pela sociedade”. Já a psicóloga Brandali de Fátima Spaki diz que “a mentira pode estar relacionada com o fato de querer atrair atenção, reconhecimento, status, ou pode ser usada também como uma forma de se defender, pela vergonha que a pessoa sente de si, pela sua insatisfação, insegurança ou medo da realidade”. Nesses casos, a vergonha surge quando a mentira é descoberta, pois é onde a verdade aparece e mostra realmente o que certa pessoa é ou fez. Ela está diretamente ligada com a culpa, autocrítica e também a inibição. Para amenizar essa situação o mais adequado seria permitirse errar para aprender, ou seja, reconhecendo seus erros e aprender com os mesmos.


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Estranhos intimidam o público maringaense A vergonha de estranhos é muito comum. Na enquete realizada pela revista Eu Tenho Vergonha, esse tipo de constrangimento ocupou o terceiro lugar, com o voto de dez pessoas entre homens e mulheres de 16 a 40 anos. “Vergonha é uma condição psicológica e uma forma de controle religioso, político, judicial e social, consistindo de idéias, estados emocionais, estados fisiológicos e um conjunto de comportamentos, induzidos pelo conhecimento ou consciência de desonra, desgraça ou condenação.” A definição está na Wikipédia, a enciclopédia livre da internet. A psicóloga Eliane Maio explica que a vergonha é um sentimento apreendido pela cultura e toda a vergonha e timidez que as pessoas têm são conseqüência do medo. Pode estar relacionada a vários sentimentos: da insensibilidade e falta de pudor ao sentimento de culpa. Segundo Eliane, é algo que

vem da criação. “A vergonha não nasce com a gente. Conforme vamos crescendo e adquirindo a cultura que hoje nos é apresentada, pode se desenvolver ou não, dependendo dos fatos que acontecem em nossas vidas”, completa.

“A vergonha não nasce com a gente. Conforme vamos crescendo e adquirindo a cultura que hoje nos é apresentada, pode se desenvolver ou não, dependendo dos fatos que acontecem em nossas vidas.” Para Eliane, o ser humano ainda não está preparado para o novo, para o desconhecido, o que o deixa com medo, e quando se tem medo de concordar ou não com a opinião ou aceitação do estranho, ele acaba não conseguindo reagir. “Tudo depende da auto-estima da pessoa

e da segurança que ela tem sobre si mesma.” Para amenizar o sentimento de vergonha, a psicóloga conta que a pessoa deve, desde criança, ser tratada com maior disponibilidade e atenção, tendo voz ativa e liberdade de ação. “Os pais não devem passar para a criança sentimento de vergonha, pois, assim, elas podem se expressar livremente, construindo uma boa auto-estima”. A psicóloga da 15ª Regional de Saúde de Maringá, Célia Fonçatti, diz que os motivos que podem causar o sentimento de vergonha nas pessoas são os assuntos ou temas que despertam menos–valia, fazendo com que se sintam inferiores. “Os estranhos são os maiores causadores de vergonha porque a pessoa está em situação de julgamento, ou seja, não se conhece, e pode a partir daí gostar ou não de si”, diz Célia. A psicóloga afirma que deixar a pessoa sentir-se à vontade, despirse de pré-conceitos pode ser uma forma de amenizar a vergonha em determinadas situações.


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Devedor não pode passar vergonha O direito do credor de cobrar uma dívida vai até o limite do direito do devedor de não se sentir constrangido por Liliane Danas Quando uma pessoa não cumpre os prazos, deixando de efetuar o pagamento de títulos, o credor tem todo o direito de protestar e buscar meios legais para a cobrança da dívida, cadastrando o nome do devedor em órgãos de restrição de crédito, como Serasa ou SCPC (Serviço Central de Proteção ao Crédito). Mas muitas vezes os credores não respeitam o devedor como cidadão e acabam ultrapassando os limites na hora de fazer a cobrança. Valdir Pignata, ex-coordenador do Procon (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor) de Maringá, diz que expor a pessoa a uma situação constrangedora é crime. “A empresa jamais deve ligar onde o devedor trabalha e falar com colegas de trabalho, cobrando ou deixando recados do tipo ‘nós precisamos falar com ele para ver se vai nos pagar logo’. Isso é constrangedor e gera danos morais.” Os credores muitas vezes contratam empresas de cobrança para irem atrás do devedor, pois é uma alternativa mais barata e que dá resultados rápidos, evitando, assim, longos e caros processos judiciais. Essas empresas chegam a “infernizar” a vida da pessoa, ligando várias vezes durante o dia para telefone residencial,

celular, vizinhos e parentes. Pignata ressalta que existem empresas sérias que fazem esse tipo de serviço. “Existem cobradoras que têm toda a habilidade de fazer o procedimento legal e tranqüilo, onde a questão é resolvida da mesma maneira.” De acordo com artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor, na cobrança de débitos, o inadimplente não pode ser exposto ao ridículo. Isso pode resultar em detenção de três meses a um ano e multa. Segundo o advogado Carlos Ramos, o código existe desde 1990 e é importante que o cidadão saiba dos seus direitos, mesmo na situação onde ele é o devedor. “As pessoas acreditam que quando são elas as devedoras, não possuem nenhum direito perante a lei, pois acham que são as únicas erradas da história.” No caso de abuso, o Código de Defesa do Consumidor prevê a responsabilidade tanto para o credor quanto para a empresa responsável pela cobrança. Ao se sentir lesado, o devedor deve primeiramente, certificar-se que existam testemunhas para depor a seu favor e, logo depois, fazer uma ocorrência policial. Com a ocorrência em mãos, deve procurar um advogado de confiança especializado no direito do consumidor e encaminhar o processo ao poder público.

Liliane Danas

“Meu avô, que foi ministro do Supremo Tribunal, morreu sem um tostão. Inclusive a casa em que a gente morava estava hipotecada. Sempre tive a idéia de que o dinheiro não vale nada. Achei bonito ele morrer assim. Já disse que teria vergonha de ser um homem rico. Considero o dinheiro uma coisa sórdida.” Oscar Niemeyer


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Trecho da Carta de Achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, em que a palavra vergonha ĂŠ citada dez vezes


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A vergonha no Brasil é uma herança portuguesa Índios que antes não tinham pudor em andar nus, hoje sentem vergonha e já não fazem mais seus rituais antigos por Wilame Prado e Renata Mastromauro Imaginem o que sentiram os portugueses quando chegaram em terras desconhecidas, batizadas de Vera Cruz, e encontraram um monte de pessoas sem roupas, andando naturalmente pelas áreas litorâneas. No mínimo, um choque de valores e de costumes muito grande. Situando, o período desse “descobrimento” (colocamos aspas porque alguns historiadores questionam esse fato dizendo que outros desbravadores já haviam pisado em solo brasileiro) se deu no finzinho de tarde de uma quarta-feira, no dia 22 de abril do longínquo ano de 1500. Tempos depois, o achado, que tinha o nome de Vera Cruz, virou Terra de Santa Cruz para, três anos depois aproximadamente, virar Brasil – homenagem ao Pau-Brasil, uma árvore que era encontrada em abundância na época. Graças aos escritos de Pero Vaz de Caminha, escrivão da trupe de portugueses aventureiros comandada pelo chefe da expedição, Pedro Álvares Cabral, tem-se o relato desse dia por meio de uma carta que o escrivão enviou ao rei de Portugal, conhecida por Carta de Achamento do Brasil. Na carta, é possível perceber a sensação dos portugueses ao verem índios nus, com as “vergonhas” de fora. O português utilizou dez vezes a palavra “vergonha”, ora no singular, ora no plural. Mas, a que vergonha estaria se referindo? A professora Maria Regina Pante, doutora em filologia pela Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho e professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM), afirma que o escrivão de Pedro Álvares Cabral se referiu às partes íntimas dos índios ao escrever na carta a palavra vergonha. “Na carta de Pero Vaz de Caminha temos o emprego desse substantivo como partes íntimas [‘escondiam suas vergonhas’], quando relatada a forma como os índios se apresentavam na praia no dia do descobrimento do Brasil.” Concorda com ela o professor de

História do Brasil Sezinando Luiz Menezes, que tem doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e que também leciona na UEM. Ele diz acreditar que, naquela época, o sentido da palavra “vergonha” poderia ser duplo. “Pode ser que vergonha tivesse, em Portugal, um duplo sentido. Um no sentido de que a gente dá hoje ao termo vergonha, que é algo que você deve esconder, e que também tivesse o sentido de órgão sexual, de genitália. O Caminha, quando emprega o termo vergonha na carta, se refere ao órgão sexual.” As “vergonhas” de Caminha “Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.” Este é um trecho retirado da Carta de Achamento, escrita por Pero Vaz de Caminha, que sugere a naturalidade dos índios ao mostrarem suas partes íntimas. O professor Menezes diz achar que o escrivão português não recriminou os índios por andarem pelados, pelo contrário, impressionou-se com tanta naturalidade. “Em nenhum momento, ele [Pero Vaz de Caminha] fala das vergonhas das índias no sentido de censura. A ingenuidade indígena, a forma como eles ficavam nus naturalmente, como se fosse [e era para eles] a coisa mais normal do mundo, fez com que Caminha não se sentisse envergonhado naquela situação”, conta o professor. Envergonhado ou não, o fato é que, assim como os outros portugueses que colonizaram o Brasil naquela época, Pero Vaz de Caminha era reflexo do modo de vida europeu, regado de catolicismo e tradições religiosas vindas dos primórdios do cristianismo. “Talvez ele use o termo vergonha porque o pudor já era tão grande em relação àquilo, que não se poderia nem falar o nome. Para ele, provavelmente seria vergonhoso falar pênis, vagina, ou outro termo equivalente utilizado na época. Não seria vergonhoso somente mostrar, seria vergonhoso até falar o nome”, explica.

Erro de português Quando o português chegou Debaixo de uma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português. Oswald de Andrade


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Cultura indígena dizimada Para o índio, andar nu fazia parte de sua cultura, assim como outros costumes, e não era nenhum tipo de vergonha. Segundo Menezes, os colonizadores vieram para conquistar territórios e enriquecer seus países, mas se esqueceram de (ou não quiseram?) preservar a cultura indígena existente nas terras brasileiras. “Os colonizadores europeus que chegaram ao Novo Mundo (América do Sul, Central e do Norte) não vieram para respeitar a cultura nativa. No Brasil, eles usaram dois caminhos para fazer isso: a catequese e a escravidão. Ou era a cruz ou era a espada.” Aproximadamente 508 anos se

passaram do dia em que o Brasil foi descoberto pelos portugueses, o que acarretou em dizimação cultural indígena. Hoje, em pleno século 21, ainda existem no País aproximadamente 460 mil índios, distribuídos entre 225 sociedades indígenas, o que significa dizer que 0,25% da população brasileira é composta por índios. Esses dados, disponibilizados no sítio da Fundação Nacional do Índio (Funai), dizem respeito a índios que vivem nas aldeias. De acordo com a Funai, a estimativa é de que existam entre 100 e 190 mil índios vivendo fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas. Desses 460 mil índios um se chama Jorge No Kaya Alves, tem 18 anos e cursa História na UEM. Ele

A primeira missa no Brasil.Victor Meirelles, óleo sobre tela, 1861. Acervo do Museu Paulista da USP

mora com amigos, também índios, em uma república perto da universidade, mas foi criado na Reserva Indígena Faxinal, no município de Cândido de Abreu (distante 169 km de Maringá), onde familiares e amigos moram. No Kaya já ouviu falar, e inclusive estudou, sobre os índios no período de colonização do Brasil. Porém, ao comparar os índios daquela época com os de hoje, diz achar a situação totalmente diferente. Segundo ele, a população indígena, há muito tempo, incorporou os costumes ocidentais e esqueceu quase tudo sobre a cultura dos índios. Diferentemente do que viu Pero Vaz de Caminha – índios andando pelados sem esquentar a cabeça – hoje, na maioria das aldeias, os índios usam vestes e sentem muita vergonha de expor suas partes íntimas a outras pessoas, tanto da aldeia como de fora. Para comprovar o quanto o índio não se sente a vontade pelado, No Kaya conta um caso que ocorreu recentemente em sua aldeia. Ele diz que, certo dia, uma equipe de reportagem de Brasília se dirigiu até a Reserva Indígena de Faxinal e ofereceu um prêmio de R$ 87 mil para que os índios fizessem danças e rituais sem as roupas, para resgatar a cultura indígena. “Não” foi a resposta de absolutamente todos os índios, que, embora precisassem do dinheiro, recusaram-se a dançar nus. “Eu não ia ficar pelado porque isso é uma coisa que ninguém pode fazer hoje”, confessa No Kaya. Mais tarde, acessando a internet, ele descobriu que a empresa jornalística oferecia noventa prêmios com aquele valor em dinheiro, mas que apenas 27 tribos toparam ser filmadas e fotografadas sem roupas.

O significado da palavra vergonha ao longo dos séculos Por e-mail, a doutora em filologia Maria Regina Pante, enumerou alguns significados da palavra vergonha em diferentes séculos: - Sentimento de desonra humilhante no século 13, vergonça, do latim verecundia; - As cantigas de amigo, bem como as demais obras pertencentes à fase arcaica da língua (entre séculos 12 e 16, antes de Camões) já registravam a palavra

vergonha com o sentido de desonra; - Na Carta de Pero Vaz de Caminha temos o emprego desse substantivo como partes íntimas (escondiam suas vergonhas), quando relata a forma como os índios se apresentavam na praia quando do descobrimento do Brasil; - O dicionário aponta que, a partir do século 19, vergonha apresenta sentido diferente.


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Maria-sem-vergonha dá em qualquer lugar Mas apesar disso, precisa de cuidados específicos para que seu aspecto fique sempre interessante por Emanuele Rhoden

Emanuele Rhoden

Planta de pequeno porte, da família das balsamináceas, a Mariasem-vergonha é originária na África. Adapta-se bem ao clima quente, mas suas pétalas sensíveis não podem ser expostas ao sol muito forte. O nome científico é Impatiens walleriana, mas é conhecida popularmente como Beijo Turco ou Maria-sem-vergonha, por ser uma planta que se adapta bem em qualquer solo, como a maioria das pessoas diz, ela “dá em qualquer lugar”, desde jardins até matas naturais. A bióloga Patrícia da Costa Zonette explica que muitas espécies são conhecidas como Mariasem-vergonha. “Existem muitas variedades, hoje a gente tem muitos híbridos da espécie original. Mas tem dois gêneros

principais, um de origem na Ásia e um na África. A Maria-sem-vergonha é uma planta ornamental, encontramos em muitos lugares, nos jardins, nas praças.” A arquiteta paisagista Fernanda Marostica diz que na região de Maringá a planta é mais comum de ser encontrada em residências. “Nos jardins residenciais é mais comum porque você tem um cuidado mais especifico, que se faz necessário. Aqui na nossa região, em determinadas épocas do ano, o clima é muito quente e sem chuvas, então é importante que você tenha uma rega constante, suficiente para manter a umidade do solo.” Patrícia da Costa Zonette fala como pode ser feito o cultivo da Maria-sem-vergonha. “Ela tem uma reprodução muito fácil. Se for por semente, basta você dar um toquinho na planta, que ela já se abre e espalha as sementes. Mas sua propagação também pode ser por estacas, basta retirar um pedaço do caule da planta adulta e enterrar, que ele enraíza normalmente.” A paisagista revela detalhes importantes na hora do cultivo. “Na nossa região é importante uma boa adubação, uma terra bem afofada, com bastante nutrientes, matéria orgânica e substratos adequados que favorecem para que ela tenha bastante durabilidade.” Fernanda Marostica explica que apesar de ser uma planta que se reproduz facilmente, a Maria-sem-vergonha precisa de reposição. “Embora muitas literaturas a classifiquem como perene, que é uma planta que tem um ciclo de vida sem necessidade de reposição, aqui na

nossa região essa espécie necessita bastante. Em função do nosso clima e tipo de solo. Não que ela morra por completo, mas o aspecto estético, aquela idéia do volume, folha verdinha, já não fica tão interessante, tão bonita.” A Maria-sem-vergonha é uma planta mais rústica, mas mesmo assim precisa de alguns cuidados. “Se tiver num período muito quente, se for um local onde bata muito sol, é preferível que ela tenha uma certa sombra. Mas depende muito do local e da temperatura ambiente. A Mariasem-vergonha sente muita falta de água e murcha facilmente, mas por ser uma planta que tem bastante água no caule, ela recupera rapidamente a hidratação dos tecidos,” explica a bióloga Patrícia da Costa Zonette. A Maria-sem-vergonha é uma planta de cores variadas. “É bastante procurada, principalmente pelas pessoas que buscam o colorido. É uma das flores mais comuns, em qualquer lugar que você coloca ela vai bem. Ela floresce mais na primavera, então é interessante plantar no final do inverno”, esclarece Fernanda Marostica. Algumas pessoas dizem que a maria-sem-vergonha pode ser usada em tratamentos de doenças, mas a farmacêutica-bioquímica Lúcia Elaine Ranieri Cortez explica que a planta não tem nenhuma comprovação científica para uso medicinal. “Existem algumas informações do uso da maria-sem-vergonha da medicina popular para tratamentos de impulsividade, impaciência, irritação, tensão, nervosismo, agitação, insônia, problemas psicossomáticos e hipertensão. No entanto, a planta não tem nenhuma comprovação científica e não deve ser usada e nem indicada para o tratamentos de doenças.”


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A vergonha também tem idade Supostamente nascida com Adão e Eva, a vergonha está presente de diversas formas e acompanha todas as faixas etárias do homem. Suas mudanças podem ajudar na formação moral e na integração social do indivíduo

Gravuras de Adão e Eva pintadas por Albrecht Dürer entre 1504 e 1507

por Victor Cardoso e Murilo Benites Tudo começou com os dois primeiros habitantes do mundo: “então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais”, Gênesis 3.7. Assim, diz a Bíblia, nasceu a vergonha. Adão e Eva, antes de comerem o fruto proibido da árvore da vida, não se sentiam envergonhados por estarem nus. Mas quando o comeram, esconderam-se entre as arvores do jardim do Éden. Da mesma e de outras formas, crianças, jovens, adultos e velhos, enfrentam esse sentimento ao longo da vida. Muitos conceitos do que é ou não considerado “vergonhoso” perante a sociedade mudaram. Entretanto, são raríssimos os casos de pessoas que não se envergonham de absolutamente nada. Seja vergonha de falar em público, de se relacionar com o sexo oposto ou da aparência. Mesmo que alguns mais, outros menos, quase todos os seres humanos sentem algum tipo de constrangimento. A vergonha é resultado de um processo que começa logo cedo na vida de um indivíduo, de forma natural. A criança se percebe como pessoa e passa a entender que todos ao seu redor mandam mensagens emocionais dos mais diferentes tipos. Neste contexto, a vergonha se faz necessária para estabelecer limites, visto, em primeira instância, que crianças são incapazes de associar causa e efeito por si mesmas. Segundo o psicólogo e doutor em educação Raymundo Lima, a criança vai aprendendo por formação a sentir vergonha. Se ela tem pais mais rigorosos, disciplinadores e religiosos, por exemplo, sentirá vergonha antes de cometer certo ato, ou culpa, após ter cometido. No livro O Desaparecimento da Infância, do sociólogo americano Neil Postman, é descrito o surgimento do conceito de infância, que tem seu prenúncio na Grécia Antiga e que desaparece na Idade Média junto com a capacidade de ler e


25 escrever, a educação e a vergonha. Postman expõe a idéia de que, sem uma noção bem desenvolvida de vergonha, a infância não pode existir. Anna Verônica Mautner, psicanalista e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), defende a idéia de que a vergonha é resultado de uma visão depreciativa que a pessoa tem de si própria e que desde a infância até a velhice prefere-se ocultar. O ato de a criança ficar emburrada quando ninguém está dando atenção a ela, começa a despertar um sentimento de inferioridade e a desenvolver a vergonha também diante do próximo. Antes da adolescência, na chamada puberdade, que se caracteriza pela transformação do corpo da pessoa, o indivíduo tem de enfrentar certos estranhamentos e até uma esquizofrenia “normal”, uma vez que nesse período ocorrem grandes mudanças físicas e psíquicas. Atos de retraimento nas atividades mais íntimas, necessidade de privacidade em simples casos como trocar de roupa na frente de irmãos ou incômodo ao falar sobre sexualidade, se tornam habituais. Para Yara Cristina Romano Silva, psicóloga da Apae de Maringá e professora dos departamentos de psicologia, pedagogia, artes visuais e letras do Cesumar (Centro Universitário de Maringá), “ninguém gosta de ser chamado de ‘baleia’, ‘gordinha’, ‘pau de cutucar estrela’ e outros inúmeros títulos, porque isso tem uma conotação negativa e faz com que a pessoa seja percebida como diferente dos outros”. Raymundo Lima considera a adolescência um período de transformações psicossociais, no qual a constituição da personalidade será influenciada pelo olhar dos outros. O jovem geralmente tende a se envergonhar de defeitos imaginários como cor dos olhos, tonalidade da voz, tipo de cabelo ou altura, por exemplo. “Sartre diz ‘o inferno são os outros’. O outro é que nos instiga a

sentir vergonha. Não falo do olhar do outro presente, mas de certo olhar que introjetamos, que funciona como polícia dentro de nós toda vez que infringirmos um código moral que já adotamos”, ressalta Lima. A psicóloga Yara Cristina Romano Silva, por meio do trabalho que desenvolve com crianças e adolescentes com deficiência, percebe que a criança sem deficiência, desde muito cedo, aprende que não pode ficar nua, por exemplo. Por sua vez, o deficiente, às vezes já mais velho, tira a roupa em qualquer local. Isso porque não discerne naturalmente pudor ou vergonha e somente com uma orientação adequada começa a desenvolver esta percepção.

“Tenho alunos adolescentes que têm vergonha de usar a camiseta da Apae. Têm vergonha porque os outros apontam e classificam a entidade como lugar de louco, bobo ou retardado e eles não se sentem dessa forma”. Saindo dessa fase, carregando ou não algumas das vergonhas criadas, o indivíduo entra na fase adulta. É onde se depara com a situação de provar aos outros para que veio ao mundo e na qual o “não fazer bonito” pode atrapalhar o desempenho de inúmeras funções. Na escola,

universidade e no trabalho quem sabe ou quem tem o poder passa menos vergonha perante a sociedade. Porém, segundo Raymundo de Lima aquele que tem o poder e de alguma forma é desmascarado como ilegítimo, passa por momentos de envergonhamento social, que nem sempre o leva a autocrítica. “O caso do ex-reitor da Universidade de Brasília [Timothy Mulholland]: ele não se sente culpado de ter desviado dinheiro para embelezar o seu apartamento. O problema dele é sustentar o prestígio social adquirido como professor e reitor; ele não consegue fazer autocrítica”. Dessa maneira o homem começa a preferir sentir culpa em vez de sentir vergonha. “A vergonha é um sentimento muito mais pesado do que a culpa. A vergonha não tem saída, a culpa sim. Uma das grandes luminárias da sociedade ocidental foi ter inventado a culpa, que pode ser perdoada, seja da forma jurídica ou até religiosa”, diz a psicanalista Anna Verônica Mautner. Outra área que é trabalhada, mas de forma um pouco mais amena do que na adolescência é quanto à sexualidade do adulto. Mesmo com um controle maior de seus hormônios, situações venéreas e naturais, como impotência ou frigidez, causadas pelas preocupações cotidianas, provocam desconforto e envergonham, até entre marido e mulher. Mas, em contraponto a isso, Raymundo de Lima observa que a mídia mostra todos os dias desde pessoas posando nuas até políticos em atitudes “sem-vergonha”. “Parece que as pessoas estão mais desinibidas, mais expostas. Mas infelizmente não estão sabendo regular a sua conduta à sua atitude social”, completa a psicóloga Yara Cristina Romano Silva. Vergonha x Velhice Para apresentar a velhice, Neiza Teixeira, professora de Filosofia e escritora portuguesa, escreve o seguinte: “Normalmente, evitamos falar da velhice não somente


26 por causa da sua imagem ou do seu cheiro (há, inconfundivelmente, um cheiro que caracteriza a velhice e um cheiro que caracteriza a juventude), mas também porque a seu lado a morte nos sorri, mostrando que no combate que desde sempre travamos ela triunfa”. Nesse contexto, a vergonha aparece primeiramente em quem não soube envelhecer. A questão da idade faz com que as pessoas gradativamente percam o domínio da coordenação motora e da memória. Segundo a psicóloga e psicodramatista Dionéia Moura, a memória recente não fica tão acesa como a memória remota. “A vergonha pode acontecer quando alguém pergunta a um idoso sobre algo que aconteceu ontem, e ele não lembra. Mas se perguntar de algo da infância ou de muito tempo, irá lembrar com clareza e riqueza de detalhes”. As mulheres, no sistema capitalista-consumista onde tudo deve ser espetáculo, são as maiores vítimas. Podem sentir vergonha ao ver seus seios não tão formosos como antigamente, o aparecimento de mais uma ruga, entre outras mudanças. Para o psicólogo Raymundo de Lima, as mulheres também sentem mais vergonha de perder o interesse sexual (libido) e, por exemplo, sentem vergonha em dobro quando são “largadas” pelo marido, que se apaixonou por outra mais jovem. Os homens podem ter vergonha de, na velhice, não ter uma aposentadoria digna e mesmo os que têm essa aposentadoria, sentem vergonha de estarem fora do ambiente de trabalho em que viveram por 20, 30, 35 anos. “Muitos, vão além da vergonha e se deprimem. Muitos vivem envergonhados de estar morando em asilos ou ‘casas de repouso’. Sem ter visitação dos filhos, parentes e amigos, alguns morrem e são esquecidos” finaliza Lima. Por outro lado, em alguns casos, idosos se dão conta de que estão no final de suas vidas e resolvem não mais se importar com os padrões que a sociedade impõe e com o que é ou não vergonhoso perante ela e decidem viver seus últimos anos sem o pudor que sempre tiveram durante a vida. Darwin, em seu livro A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, de 1872, dedica um capítulo às emoções que desencadeariam o rubor. Ele diz que “o enrubescer é a mais especial e a mais humana de todas as emoções humanas”. A preocupação exagerada pelo que os outros pensam sobre nossa aparência ou ações, para o autor, seria exagero. Segundo a psicanalista Anna Verônica Mautner as sociedades regidas pela vergonha são lugares onde se ousa pouco. Raymundo de Lima finaliza dizendo que todos devem considerar que o sentimento de vergonha é um bom sentimento para formar e acompanhar a nossa moral e integridade social. “A falta dela, gera o cinismo, a violência, a corrupção. Penso que é pior não ter vergonha do que ter vergonha em excesso, que faz mal apenas à pessoa. A falta de vergonha faz mal a muitos.”


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A vergonha saída das prateleiras Há varias manifestações da vergonha, sentimento que é tratado em alguns livros como pilar na relação social dos indivíduos por Bruna Dias

com essa emoção. A vergonha é também uma das faces do medo, é o que afirma Simone A. de Mello, psicóloga formada em psicologia clínica. “Quando a pessoa sente medo, esse sentimento pode se manifestar por meio da vergonha. Ler livros sobre o assunto e conhecer seu medo interior, leva as pessoas a criarem estratégias de eliminarem ou diminuírem esse sentimento.”

Renata Mastromauro

Esperar que algum tipo de pedra filosofal das respostas venha até você sem se aprofundar no assunto é praticamente impossível. A vergonha é uma condição psicológica que mexe com o estado emocional das pessoas, de diferentes maneiras. O que muita gente desconhece é a porção de livros que encontramos sobre o assunto. A seguir, você encontra algumas dicas que podem contribuir para o conhecimento e domínio dessa emoção autoconsciente que é a vergonha. Um guia para tímidos e ansiosos é o livro Morrendo de vergonha, da Editora Sumus, escrito pelos filósofos Cheryl N. Carmin, C. Alec Pollard, Bárbara G. Markway e Teresa Flynn. O livro traz a seguinte sinopse: “Pessoas que sofrem de fobia ou ansiedade em situações sociais, não conseguem comer diante de outras pessoas, não utilizam banheiro público, fracassam em expressar opiniões, apavoram-se diante de testes e exames” etc. Nesse livro o grupo estuda o problema e apresenta um programa para vencêlo, oferece meios de auto-avaliação e recursos para dominar as fobias sociais. Já quem quer saber como se manifesta a vergonha e quais são as situações que levam o ser humano a uma emoção intensa, basta ler a obra de Luigi Anolli A vergonha. No livro a um destaque sobre como psicólogos podem ajudar as pessoas a lidarem com a emoção e as diversas estratégias que impedem o ser humano de sucumbir à intensidade da vergonha. Existem livros que se aprofundam mais nas questões históricas. É o caso da obra Curando a vergonha que impede de viver, de Jhon Bradshan. O escritor explica como se origina a vergonha com base teórica na Bíblia. Bradshaw também ensina a identificar e mudar sentimentos que

nos afastam da felicidade, por meio de informações que levam você, leitor, a modificar a auto-imagem e sair do isolamento interior. Mas a biblioteca sobre o tema não pára por ai. Aqui, consta uma lista de livros também interessante sobre o assunto: Vergonha a ferida moral, de La Taille Yves de Vozes, As origens da vergonha, de Vicente de Via Lettera, Sem vergonha, de Paula Taitilbaum, Ai que vergonha – diário secreto de Amarílis Flores, dos autores Caroline Plaisted e Cherry Wh Ytock e Ensaio semiótico sobre a vergonha, escrito por Elizabeth Harkot, entre outros tantos. Apesar de ter esta lista enorme de livros, a mestre em psicologia Gláucia Pinheiro de Brida, afirma que é importante que as pessoas saibam diferenciar os livros chamados “picaretas” dos que realmente tratam o assunto com seriedade. “Existem obras que até trazem conhecimento técnico, mas o que muitas vezes não existe é domínio do assunto. Geralmente quem lê esses tipos de livros são leigos que procuram conhecer o assunto, conseqüentemente, livros que relatam uma história real fundamentada são mais fáceis de identificar o problema do leitor”. A psicóloga ainda diz que quando se atribui uma experiência já vivida no livro, fica mais fácil entender os mecanismos que o autor dispõe para ajudar as pessoas a lidarem


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Ninguém quer o último pedaço Todo mundo prefere ser educado e deixar a “vergonha” para o amigo, mas, no final, acaba sobrando para o garçom por Emanuele Rhoden Os petiscos podem estar uma delícia, todos comem, mas quando chega o último pedaço, normalmente, ninguém quer. Por esse motivo, o último pedaço é chamado de vergonha. Existem vários ditos populares a respeito. Alguns dizem que é falta de educação, outros brincam, dizendo que quem come o último pedaço não casa ou que o último pedaço é o que engorda. O chefe de cozinha Rozbergue Form’goni, dono de um restaurante e um bufê em Maringá, diz nunca ter ouvido a expressão, mas concorda que o último pedaço sempre sobra. “Eu já tinha ouvido falar que é o que engorda. Acho que essa expressão é um dito popular. É engraçado, mas no fundo eu acho que é mais por educação mesmo.” José Mário Faria trabalha como garçom em um bar de Maringá há seis anos. Ele revela que é muito comum ter alguma sobra. E diz que quase sempre ouve piadas quando vai recolher a bandeja e ainda resta um pedaço. “Quando tem alguma sobra, que normalmente é de um pedaço, a gente tem de perguntar antes de recolher. Principalmente nas mesas onde tem muita moçada, sempre surge alguma brincadeira, já ouvi cada uma.”

“A vergonha de confessar o primeiro erro nos leva a muitos outros.”

Gettyimages / Dimitri Vervitsiotis

Jean de La Fontaine

O garçom conta que sempre surge uma piada nova. “Já me falaram: pode levar que esse pedaço tá envenenado”. “Esse fica de presente para o senhor”. “Leva que esse tá cheio de calorias”. “Esse pedaço é uma vergonha, pode tirar”. “O último pedaço é igual criança de orfanato, todo mundo rejeita.” Faria diz que achou muito engraçado quando chamaram o último pedaço de político. “Eu perguntei se podia recolher e o rapaz respondeu: pode tirar o político! Perguntei por que político e ele disse: porque todo mundo tem vergonha.” Rozbergue Form´goni diz acreditar que muitas pessoas não comem o último pedaço para dar oportunidade para alguém que realmente queira. “Não acho que é vergonha você pegar o último pedaço, eu pego. Por educação, pergunto antes se ninguém quer.” Seja por educação ou por qualquer outro motivo, raramente o último pedaço é consumido, mas vale lembrar que ditos populares são mitos e ninguém vai deixar de casar ou engordar por acabar com a ”vergonha”.


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“Sintomas de um problema maior” Psiquiatra Jairo Bouer afirma que o sentimento de vergonha nunca aparece sozinho e que casos graves precisam ser tratados por Jorge Mariano

de um problema maior”, explica Bouer. Mas é importante lembrar que essa barreira pode ser quebrada. Mesmo sendo um problema enorme para muitas pessoas, existem tratamentos que auxiliam no controle do sentimento. Segundo o médico, as terapias são uma alternativa para quem sofre com a vergonha e, em casos mais severos, pode-se recorrer ao uso de medicamentos. Mas, para Jairo Bouer “a melhor receita é dar tempo ao tempo.” .

Arquivo particular/Jairo Bouer

Ficar vermelho, esconder o rosto, mudar de assunto. Essas são algumas maneiras de manifestar e disfarçar a vergonha. Porém, o sentimento está geralmente ligado a outras emoções. Apesar de normalmente estudada por psicólogos, motivo de muitas horas em divãs e de esperas em consultórios, é na psiquiatria que pode se encontrar respostas mais profundas sobre o sentimento. Sigmund Freud, em seus estudos sobre as emoções humanas, não valorizou a vergonha como uma emoção que faz parte dos pilares das relações sociais. Para ele, o sentimento está principalmente, ainda que não exclusivamente, ligado à sexualidade. Porém, estudos recentes mostram que a vergonha pode estar relacionada aos mais diferentes fatores da relação humana, aparecendo desde a prática de esportes até o ato de se consultar um médico. Uma pesquisa publicada em Portugal, no ano passado, mostra que a vergonha de ir ao consultório médico mata cerca de 1.800 homens por ano, vítimas do câncer de próstata. Em entrevista à revista Eu Tenho Vergonha, Jairo Bouer, psiquiatra formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), diz que a vergonha desenvolve fronteiras com a timidez, as fobias, os medos, entre outros sentimentos. “Sempre tem alguma coisa que atrapalha nossa relação com o outro ou com o mundo e é substituída pela vergonha, que é uma emoção mais concreta, mais fácil de ser entendida”, diz o psiquiatra. Segundo o Bouer, existem duas visões na psiquiatria sobre a vergonha na psiquiatria. A primeira, diz respeito ao ponto

de vista psicodinâmico, muito próximo da psicologia, que explica a vergonha como um modus operandi (a maneira como uma pessoa “funciona”) diante de algumas situações. Já no ponto de vista psiquiátrico, propriamente dito, existe a vergonha excessiva, vista como um problema passível de tratamento. Nesse caso, o sentimento pode chegar a limitar a vida de uma pessoa, impossibilitando-a de trabalhar, conviver socialmente e outras ações rotineiras. O médico diz que a emoção não se manifesta exclusivamente em humanos. Animais também apresentam sinais marcantes de vergonha. Porém, em ambos os casos citados a vergonha está sempre relacionada a algum sentimento superior. “Na verdade, ela desloca ou substitui outra emoção. Em todas as situações, a vergonha é sintoma


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“Isso é uma vergonha” Em entrevista exclusiva, Boris Casoy fala sobre a popularização da frase “isto é uma vergonha” e sobre a presença desse sentimento junto ao povo brasileiro e nas relações jornalísticas por Brenda Caramaschi

Imagem cedida pela Rede Bandeirantes

Jornalista renomado, reconhecido por seu talento e opinião marcante. A imagem de Boris Casoy já é vinculada quase que automaticamente à frase popularizada por ele na televisão brasileira - “Isso é uma vergonha”. O menino que, aos 7 anos, deitava-se no chão para ler notícias para o pai e que, por ter contraído poliomielite e só ter passado a andar depois dos 9, quando foi operado, era muito ligado ao rádio, sonhava ser locutor de esportes. E foi exatamente como jornalista de rádio especializado em esportes que ele teve seu contato inicial com esta profissão, numa extinta rádio de São Paulo. Depois disso, Boris já passou por diversas rádios e emissoras de televisão, foi editorchefe e diretor de redação da Folha de S. Paulo e tornou-se um dos mais conhecidos e respeitados jornalistas do Brasil. Em entrevista exclusiva à revista Eu Tenho Vergonha, ele, que atualmente apresenta noticiário na Band News FM (após quase três décadas fora do rádio) e também está de volta à TV, ancorando o Jornal da Noite, na Band, falou sobre as mudanças no jornalismo no Brasil, sua paixão por cada tipo de veículo de comunicação, a falta que sentiu da televisão durante o tempo em que ficou fora do ar depois de sua saída da Rede Record, e sobre a vergonha do povo brasileiro.

Eu Tenho Vergonha - O senhor se lembra da primeira vez que disse a frase “isso é uma vergonha”, na televisão? Boris Casoy - Lembro. Eu estava no SBT apresentando uma das primeiras edições do telejornal Brasil, em 1988. Apareceu uma reportagem que não era habitual, longa, da situação de um pronto-socorro em Recife, Pernambuco. E era terrível! Doentes espalhados pelo chão, falta de médicos, medicamentos. E eu fui me lembrando de uma cena que aconteceu durante o assassinato do presidente Kennedy, quando uma pequena emissora do meiooeste americano suspendeu suas transmissões e colocou um letreiro enorme: “SHAME” – vergonha. Refletia uma indignação com o que tinha acontecido. Quando abriu pra mim eu disse “Isso é uma vergonha! Isso é uma vergonha! Isso é uma vergonha!”. Eu disse três vezes. Foi essa a primeira vez. E depois, como a resposta foi muito grande, achei que tinha chegado num filão precioso. Por que a frase se popularizou tanto? Ela representa o grito contido na garganta das multidões, a indignação, o que as pessoas gostariam de falar. Ela sintetiza isso. Grande número de pessoas gostaria de falar [a frase]. Elas se sentem representadas. Depois de adotar essa frase, muitas foram as vergonhas que o senhor noticiou. Quais foram as maiores? Sempre me perguntam isso, mas não tem – toda vergonha é vergonha, toda indignação é indignação. Eu não tenho esse arquivo, não me preocupei em achar qual era a maior, qual era a pior. Todo mundo me pergunta isso, mas eu realmente não me preocupei com isso.

E o que é uma vergonha, hoje em dia? Essa é uma pergunta da mesma espécie que a outra. Eu não queria catalogar. Fica uma coisa muito tipo “almanaque”. Tem muita coisa. Mas é muito mais coisas que despertam a indignação na hora em que você aborda. Também não tem essa pesquisa na minha cabeça. O brasileiro é um povo que tem vergonha? Muita. O brasileiro é um povo honesto, correto, decente, esperançoso, cordial demais, paciente. Isso é muito diferente da camada política, que não pode ser comparada ao grosso da população. A população brasileira tem uma distância muito grande da sua parente representativa. Acho que o Congresso, as Câmaras Municipais, as Assembléias Legislativas e o próprio Executivo não representam com perfeição o povo brasileiro. Há um problema aí que ainda precisa ser resolvido com uma reforma eleitoral. Se mudarmos essa pergunta, então, para: os políticos brasileiros têm vergonha? Não. Grande parte não. Grande parte nem resvala por essa questão, vergonha ou não. Simplesmente não tem registro. Estão lá totalmente distanciados das necessidades e dos anseios da população. Grande parte, existem exceções como sempre. Como jornalista, às vezes é preciso perguntar alguma coisa desagradável, que causa desconforto ao repórter, ou mesmo ao entrevistado. E outras vezes, o que causa desconforto é a resposta que nós obtemos. O senhor já teve vergonha de perguntar algo ou de dar alguma notícia? Não, não. Nunca. Desde que seja dentro dos padrões da ética do bom jornalismo, nunca. Tem que


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perguntar. Você não pode a partir desse princípio de perguntar tudo, perguntar ofensivamente. O papel aceita tudo. Você tem de fazer as coisas com jeito, dentro de determinadas normas de conduta. Dentro disso eu acho que tudo é perguntável. E quando o senhor acha que a cobertura jornalística é vergonhosa? Quando ela é parcial ou quando ela é incompetente, por imprecisão, por desconhecimento, por falta de cultura. Ou por safadeza mesmo, que é o primeiro caso. O senhor teve uma saída conturbada da rede Record... Não. Me chamaram e me mandaram embora. Não foi conturbada, não. E o senhor afirmou que foi por razões políticas, é isso? Aí você tem de perguntar para eles. Eles dizem que não. Algumas pessoas me dizem que sim. Eu não posso afirmar nada. Essas relações de bastidores do jornalismo, eventualmente, também causam vergonha ao senhor? Não. Você tem de ter uma relação equilibrada. Você tem a relação de bastidor, por exemplo, com o político, sem ter promiscuidade. É um exercício diário. Você anda na corda bamba. Mas se você quiser ter sucesso na profissão, com ética, com uma conduta profissional, tem de buscar esse equilíbrio, sem cair na promiscuidade. Confiança, relação profissional, sem resvalar na promiscuidade. Se fosse preciso substituir o termo vergonha por outro para qualificar atualmente a atuação de determinados políticos brasileiros, que termo o senhor usaria? Vergonha. Insubstituível? Insubstituível, claro.

Boris Casoy, uma aula de jornalismo Como não poderia deixar de ser, pela proposta da revista temática, o assunto da entrevista com Boris Casoy deveria se ater ao tema “vergonha”. Mas não é todo dia que temos a chance de conversar com alguém famoso pela competência, como é o caso dele – e não pela efêmera superexposição na mídia, tão comum em nossos dias. Não vou dizer que ter acesso a um dos maiores nomes do jornalismo brasileiro tenha sido fácil - não foi –, mas foi menos trabalhoso do que imaginei. Depois de algumas ligações interurbanas para a Rede Bandeirantes, em São Paulo, consegui, por insistência, o endereço eletrônico pessoal que o âncora acessa diariamente. Me disponibilizei a ir a São Paulo entrevistá-lo, mas Casoy achou melhor conversarmos por telefone, já que estava terminando de definir os últimos detalhes do telejornal que estrearia (a entrevista foi feita no início de abril, poucos dias antes da estréia de Boris como âncora do Jornal da Noite). O jornalista foi muito solícito ao atender a estudante de jornalismo que propunha entrevistá-lo. Muitos, de muito menos renome, teriam negado a entrevista – a palavra “estudante” pode fazer ligações telefônicas terminarem quase que instantaneamente. Por isso, aproveitei a chance para saber mais sobre o envolvimento dele com o jornalismo e as mudanças no cenário da imprensa que aconteceram do início da carreira de Boris até hoje (veja ao lado).

Brenda Caramaschi


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Os diferentes meios Boris Casoy já atuou em jornais impressos, rádio e televisão e diz se identificar com cada um desses três meios – gosta da instantaneidade do rádio, do contato visual com a notícia que a televisão proporciona, e da profundidade e precisão que, segundo ele, só são possíveis no impresso. “Cada uma delas tem pontos agradáveis, o que me faz gostar igualmente dos três. Acho que é uma benção, uma sorte muito grande ter feito esse percurso em todos os órgãos de imprensa”, afirma.

Profissionalização da imprensa Quando começou no plantão esportivo, na extinta Rádio Piratininga, em São Paulo, Boris tinha apenas 15 anos. Ele conta que no início da carreira, o jornalismo no Brasil “engatinhava”. “Era pouco profissionalizado. As pessoas ganhavam mal. Todo mundo, ou quase todo mundo tinha mais de um emprego um deles era a imprensa.” Ele diz que os cuidados éticos eram menores, bem como a exigência do leitor. Para Boris, no início, o jornalismo era um tanto “colonializado”, já que as primeiras páginas dos principais jornais mostravam apenas noticiário internacional. “Só em 64 o Estadão passou a colocar noticiário nacional na primeira página,” conta. Hoje, o jornalismo é mais profissional, e é mais exigente técnica e industrialmente. “Claro que o jornalismo de hoje no Brasil é muito mais avançado, evoluído, para um público muito mais exigente”, afirma.

Liberdade de imprensa Para Boris, é dividida em dois níveis. Um é oficial, declarado, como no caso do período da ditadura, por exemplo, quando houve um “sufocamento” quase total da liberdade de imprensa. O outro, segundo ele, sempre desprezado, é visto nos casos dos órgãos de imprensa que não têm independência econômica e, conseqüentemente, não têm independência editorial. “Os ‘grandes’, o jornal da grande imprensa, decidem o que se deve fazer. Os jornais menores, dependentes do Estado, têm muito menos liberdade de expor o que pensam ou de fazer um jornalismo mais plural”, diz.

Boris destaca que hoje vivemos uma liberdade de imprensa plena. “A gente teve aí algumas tentativas do governo Lula, com a criação do Conselho Nacional de Jornalismo e com uma tentativa de impor um projeto de lei destinado a regulamentar audiovisuais, que eram idéias destinadas a controlar a imprensa. As duas não vingaram. Então eu posso afirmar tranqüilamente que o Brasil vive um momento de total e completa liberdade de imprensa.”

Imparcialidade x opinião Desde o primeiro ano de faculdade, estudantes de jornalismo ouvem de seus professores que um dos substantivos para resumir o bom jornalismo é a imparcialidade. Também é isso que geralmente ouvem de alguém que elogia um veículo ou profissional de imprensa – “ele é bom, é imparcial”. Quando exponho essa visão a Boris, questionando se realmente existe jornalismo imparcial, ele refuta a afirmação no mesmo instante e ressalta – o que deve ser imparcial é o noticiário. “Você deve noticiar imparcialmente e buscar tanto quanto o possível ser imparcial nas escolhas dos seus temas, das suas notícias, das suas reportagens. Agora, opinião é opinião”, diz ele, cuja marca pessoal é exatamente comentar e opinar sobre os fatos mais polêmicos. “O meu objetivo ao dar opinião é fazer com que as pessoas exercitem a sua capacidade de análise, observação, não precisam concordar comigo.” Ele assume que a questão de dar a própria opinião durante o telejornal começou com ele, e que sofreu críticas no início por conta disso, mas ressalta que hoje quase todas as emissoras tem alguém opinando, seja o âncora ou não. “A opinião faz parte de um jornalismo sadio.” Talvez tenha sido por esse lado passional, que anseia por deixar claro o que pensa, que ele tenha sentido tanta falta da televisão durante o período que passou fora do ar (Boris deixou a Rede Record em dezembro de 2005, onde comandou o Jornal da Record por oito anos, atuou durante três meses na TV JB, que saiu do ar em setembro de 2007). “Deu cócegas na língua. Toda vez que tinha um fato mais agudo, mais explosivo, eu sentia falta de manifestar minha opinião. Manifestei por meio de jornal e tudo, mas aquela instantaneidade com uma resposta imediata faz falta.”

“O meu objetivo ao dar opinião é fazer com que as pessoas exercitem a sua capacidade de análise, observação; Não precisam concordar comigo.” Bóris Casoy


Páginas negras do catolicismo Após 20 séculos de história, a maior institição do mundo ainda expõe máculas que até hoje envergonham o mundo cristão por Murilo Battisti

A história da Igreja Católica Apostólica Romana é marcada por vários episódios de alegrias e glórias para os fiéis, mas boa parte de sua trajetória, muitos preferem esquecer.

Francisco de Goya


39 Em 1199, no pontificado do Papa Inocêncio III, iniciou-se um período de sombras na trajetória da instituição, onde as torturas para os hereges foram criadas. Para conseguir uma confissão da pessoa considerada infiel aos dogmas cristãos, os inquisidores torturavam-na cruelmente nos tribunais da Santa Inquisição, até conseguir a informação desejada. Os acusados não tinham direito de defesa e nem ao menos sabiam quem os tinha denunciado. Alguns eram condenados à morte, mas, na maioria das vezes, as torturas já se encarregavam disso. Para o padre Júlio Antônio da Silva, que é pároco da paróquia Cristo Ressuscitado de Maringá, além de ser marcada pelo espírito de intolerância da época, a Inquisição foi um espaço de abuso e desrespeito aos que pensavam de forma diferente. “Infelizmente, essa instituição transformou-se em instrumento dos mais acirrados de perseguição, de verdadeira “caça as bruxas” até a vergonha da fogueira, no século 13”, diz. Para ele, esta página da história é uma advertência para qualquer tempo, lugar, grupo, cultura ou religião. “Foi um instrumento totalmente antievangélico. Uma página negra do testemunho de alguns cristãos que não pode ser justificada, principalmente pela crueldade desnecessária, prática da tortura, da pressão psicológica e da fogueira”, afirma o padre, que não deixa de lembrar que a igreja é formada por pessoas limitadas e sujeitas ao erro, como todos os seres humanos. Segundo a doutora em História das Religiões Solange Ramos de Andrade, para compreender melhor toda a violência e rigor do período do Santo Ofício, é necessário entender a época em que ele se passou, do início do cristianismo até a Idade Média. “Não se pode julgar ou pensar a Inquisição nos moldes de sociedade atual. Aquele foi um período de muita intolerância, marcado pelos interesses de poder por parte da Igreja e Estado. É difícil fazer um juízo de valor hoje. A Inquisição precisa ser entendida no período em que se passou”, afirma a doutora. No ano de 1908, o chamado Santo Oficio da Inquisição foi transformado

pela Santa Sé em Congregação para a Doutrina da Fé. Mas, desde o ano de 1859, os inquisidores já não julgavam, nem condenavam os hereges por seus pensamentos. Com a criação da Congregação, a Inquisição continua, mas de uma forma diferente, de um jeito mais “leve”. O teólogo brasileiro Leonardo Boff foi frei franciscano e é um dos precursores da Teologia da Libertação no mundo. Em 1984, o então frei Boff, passou por um julgamento em Roma, na Congregação para Doutrina da Fé, por ter publicado o livro Igreja, Carisma e Poder. O livro vai contra vários pensamentos católicos, assim como a Teologia da Libertação. O inquisidor, na época, era o então cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento 16, que condenou Boff ao “Silêncio Obsequioso”. O frei não podia mais falar, celebrar, escrever e nem publicar nada relacionado à igreja. Após o ocorrido, ele resolveu deixar o sacerdócio.

“A igreja é formada por pessoas limitadas e sujeitas ao erro, como todos os seres humanos.” Em entrevista à revista Caros Amigos, de setembro de 1998, Leonardo Boff disse que a igreja mente, é corrupta, infiel e sem piedade. Ele afirmou ter sentado na mesma cadeira onde foram julgados pela Inquisição Galileu Galilei e Giordano Bruno, e disse não haver grandes mudanças no julgamento antigo para o atual. “O tribunal é dramático. Me senti literalmente seqüestrado. Eles vieram com um carro, dois oficiais do Santo Ofício me agarraram, me empurraram carro adentro... Peguei no chofer e disse: ´Olha, posso ser herege, mas é melhor um herege vivo do que um herege morto´. A verdade é que você sente que não tem nenhuma proteção, nem jurídica, nem humana, e que está entregue ao arbítrio. Que na Igreja não funciona nem a lei divina.” Joseph Ratzinger esteve frente à Congregação para Doutrina da Fé

por 24 anos. Ele foi o braço direito do Papa João Paulo 2º e, segundo Boff, é o responsável pela linha dura doutrinária adotada pelo falecido papa. O arcebispo de Maringá, dom Anuar Battisti, afirmou que não se pode trazer para o presente a culpa deixada pelos antepassados. Ele diz que não há porque sentir vergonha, se os cristãos não julgarem a Inquisição pelos critérios atuais. “O Papa João Paulo 2º, em nome da Igreja, consciente dos pecados do passado, já pediu perdão publicamente. Se Deus perdoa por que ainda hoje tem gente remoendo o pecado já perdoado? Qual a família que gostaria que seus netos e bisnetos ficassem cobrando os erros por eles cometidos?” – questiona o arcebispo. Na avaliação da historiadora Solange Ramos de Andrade, a Santa Inquisição deixou uma marca negativa na história da Igreja Católica, mas os católicos de hoje não devem sentir vergonha de seu passado. Ela conta que a Congregação para Doutrina da Fé foi criada na ótica do Concílio Vaticano 2º, quando a igreja pretendeu “modernizar-se”. O caso do teólogo Leonardo Boff ficou amplamente conhecido no Brasil e no mundo, mas a professora lembra que hoje, mesmo existindo o tribunal, os julgamentos são internos e reservados apenas aos membros da instituição. “Os católicos não precisam dizer ‘desculpe-me por ser da igreja que protagonizou a Inquisição’. Deve sempre haver uma análise mais profunda e lembrar que, hoje, a Igreja continua conservadora, mas muita coisa mudou, tanto no pensamento cristão quanto no pensamento da sociedade.” Para o arcebispo de Maringá, o que a igreja sente em relação à sua trajetória é, na verdade, a dor por uma instituição que comete erros e que é, segundo o religioso, santa e pecadora. “Jesus confiou a sua Igreja a homens e não a anjos. Lamentamos, mas não nos culpamos por isso. Lamento que meus pais erraram, mas não me culpo por isso, eu já os perdoei. Diante de Deus, vou responder por meus atos e não pelos pecados dos meus antepassados”, conclui.


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Hipnose pode curar a vergonha Especialista garante: técnica da psicologia que vêm sendo empregada para o combate da timidez é eficaz por Cauhê Sanches É muito comum, na sociedade atual, que indivíduos sofram de bloqueios que os impeçam de realizar muitas coisas. Quem nunca sentiu vergonha de alguma situação ou de alguém? Até aí, tudo normal. O problema é quando a tão popular timidez interfere em situações do dia-dia, fazendo a pessoa abandonar muitos desejos e vontades. Em entrevista publicada no site “www.camarabrasileira. com”, o especialista em timidez, da Universidade de Indiana, Bernardo Carducci, diz que 75% das pessoas apresentam comportamentos tímidos na presença de estranhos. Mas, dentre tantos métodos que afirmam contribuir gradualmente ou totalmente para a superação da timidez (livros de auto-ajuda, cursos de oratória etc), existe um que talvez não é tão conhecido: a hipnose condicionativa. O tratamento feito por meio da hipnose começou a ser estudado no Brasil na década de 1980. Hoje, possui vários adeptos e vem crescendo a cada dia. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Hipnologia, existem mais de 800 profissionais formados no País, que atuam nas mais diversas áreas e segmentos clínico-terapêuticos, no Brasil e na Europa. O hipnoterapeuta brasileiro José Carlos Crozera, conta que os resultados do método empregado contra a timidez têm sido os melhores possíveis, e que o tratamento é realizado em pouco tempo. “Enquanto a Hipnose Condicionativa em prega cinco sessões clínicas, a psicologia leva, no mínimo, dois anos de tratamento”, assegura. Crozera explica que o segredo da técnica é bloquear os fatores emocionais que envolvem a causa da timidez: “uma vez feito isso, conseguimos

estabilizar o centro emocional que tem relação direta com o comportamento”. Mas o que causa a timidez? Para a hipnoterapeuta Lígia Cristina Rocha, que trabalha há quatro anos em Maringá, a timidez é causada principalmente por motivos culturais. “O perfil do tímido deriva de repressão familiar, e até de valores religiosos muito severos”. Lígia conta que se depara com muitos casos em que a pessoa começa a sofrer com a timidez depois de se mudar do interior para a cidade grande. Quem nunca foi chamado ou chamou alguém de Jeca? Assim, a hipnoterapeuta considera o ambiente como fator determinante na formação da personalidade. “A postura da timidez e o recolhimento são defesas contra um ambiente que é totalmente agressivo à pessoa”, esclarece. Segundo Lígia, na sociedade atual a timidez é encarada como um defeito, sendo que as pessoas não podem apresentar nenhum traço dela ou não serão felizes. Porém a hipnoterapeuta ressalta que a timidez não pode ser considerado apenas um defeito, mas também “uma característica que hora vem te defender, colocando-o numa posição de ouvinte”. Mas, se o tratamento realmente for eficaz, uma dúvida restaria: quem perde a timidez fica totalmente “sem-vergonha”? Crozera diz que todo ser humano é dotado de racionalidade. O que ocorre na hipnose é apenas um ajuste de comportamento. “Mesmo com a timidez tratada, o paciente jamais tomaria atitudes que possam prejudicar sua integridade ética, comportamental e moral”, finaliza.

briel Teles Ilustração / Ga


41 Gettyimages / Vladimir Godnik

O rosto avermelhou? A ciência pode explicar A clássica situação de se sentir o rosto queimando de ódio ou de vergonha, ao contrário do que muitos pensam, é comum a qualquer pessoa por Bruno Isboli Quem nunca esteve em uma roda de amigos, em um bar, num churrasco ou na faculdade, conversando e se divertindo, quando, de repente, diz alguma besteira, sem querer, e todos dão risada? Ou então, chega a oportunidade de trocar idéia com aquela garota ou garoto, que se está afim há um tempão, mas na hora de conversar, a pessoa se sente extremamente inibida, fica vermelha, sente o rosto queimar e uma sensação de querer entrar num buraco e se esconder para sempre? Medo, insegurança, desconforto, constrangimento. São alguns dos sentimentos que vêm acompanhados pela vergonha, além, é claro, do característico “vermelhão” que aparece no rosto. O biólogo Josué Endo, 28 anos, professor de Biologia do ensino médio, diz que essa reação se dá por causa da adrenalina. “Quando estamos em alguma situação de grande desconforto emocional, como o medo e o perigo, por exemplo, o corpo libera a adrenalina (hormônio produzido em situações de estresse,

que prepara o corpo para grandes esforços físicos, estimula o coração e eleva a pressão arterial), que comprime os músculos da face, evitando assim a circulação de sangue.” Endo diz que, em fração de segundos, o cérebro percebe que não existia uma situação de perigo real, relaxando os músculos do rosto, que voltam a ter a circulação normal. “Como o rosto estava pálido antes, fica totalmente vermelho”, completa o biólogo. A neurologista Marisa Fonseca, 50 anos, médica na Unidade de Saúde de São José do Rio Preto, explica que isso é uma resposta fisiológica do organismo, a partir de qualquer situação de estresse a que um indivíduo esteja sujeito, seja qual for. “Tanto homens como mulheres estão sujeitos a esse tipo de situação, não há diferença entre os sexos.” Marisa diz ainda que não existe tratamento físico para eliminar esse desconforto peculiar do corpo humano, já que é uma reação natural. “O problema, às vezes, é que a pessoa é muito introvertida e se envergonha por qualquer coisa. A solução seria um tratamento psicológico.”

“Devemos corar por havermos cometido uma falta, e não por repará-la.” Jean Jacques Rousseau


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A ótica do capitalismo é podre, assim como os tomates de Ilha das Flores No curta-documentário de Jorge Furtado, uma situação que remete à vergonha extrema: porcos comem os restos de comida antes que pessoas famintas por Wilame Prado

Assessoria de comunicação da Casa de Cinema de Porto Alegre

A rotina diária está cada vez mais enlouquecida; o engarrafamento caótico nas ruas já não é exclusividade das capitais; em São Paulo, por exemplo, a moda agora é o congestionamento de helicópteros no céu. Tresloucadas, as pessoas “contraem” facilmente um troço chamado estresse, assim como se

pega um resfriado de uma hora para outra. Com esse relógio acelerado do dia, que há tempos parece ter menos de vinte e quatro horas, muitos, em meio a mais um almoço fast-food engolido, sonham em se teletransportar imediatamente para uma ilha, de preferência agraciada pela natureza, rodeada de flores. Seria, então, a ilha das flores. Mas se o objetivo é o desestresse,

a ilha do cineasta porto-alegrense Jorge Furtado não é a melhor indicação. Curta-documentário de 1989, Ilha das Flores (35 mm, 12 minutos, cor) mostra a trajetória de um simples tomate, desde quando é plantado e colhido até quando apodrece e é lançado em um lixão de alimentos, primeiramente, aos porcos e, depois, pessoas famintas. Ao assistir o curta, muitos reparam


43 que na Ilha das Flores, flores quase não há, nem Deus. Os dizeres “este não é um filme de ficção”, “existe um lugar chamado Ilha das Flores” e “Deus não existe”, dão o tom afinado para uma realidade vergonhosa retratada na obra: nesse cenário desigual, caótico e ditado pela ótica capitalista, o ser humano (mamífero, bípede, que se distingue dos outros mamíferos por possuir o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor) vale menos do que porcos. Ilha das Flores ganhou e continua ganhando prêmios por todo o mundo até hoje. Juntamente com sua equipe da Casa de Cinema de Porto Alegre, Jorge Furtado, diretor e roteirista do curta, vem atuando no cinema brasileiro de forma constante. Filmes que tiveram boas bilheterias nas salas de cinema do País, como O Homem que copiava e Meu tio matou um cara são de sua autoria. Furtado não pára. Atolado em roteiros para o cinema e para a televisão, não teve tempo de falar

com a equipe de reportagem da revista Eu Tenho Vergonha, que tinha interesse em saber detalhes da produção do filme. Em contrapartida, o montador e produtor do curta, Giba Assis Brasil, por e-mail, explica como tudo começou: “O Jorge Furtado foi até lá pela primeira vez a convite de um amigo, o professor Nilton Bueno Fischer, que na época estava fazendo um trabalho pela Secretaria Municipal de Educação com a Associação dos Catadores de Lixo da Ilha dos Marinheiros. A idéia do professor era fazer um documentário sobre a importância da reciclagem do lixo. Mas, lá, o Jorge ficou sabendo daquela situação absurda (os restos de comida, vindo de supermercados, que eram usados na alimentação dos porcos e também pelas pessoas mais pobres da região) e achou que aquele é que era um tema interessante para um filme”, conta Giba Assis. Você deve estar se perguntando: “o que isso tem a ver com Ilha das Flores, já que o entrevistado citou a

Ilha dos Marinheiros?” Na realidade, o curta-documentário foi filmado, em sua maioria, na Ilha dos Marinheiros, que fica bem perto da Ilha das Flores, ambas no município de Porto Alegre. Porém, a segunda ilha, nas palavras do cineasta, “tem o nome mais expressivo, mais irônico.” Saindo de Porto Alegre e indo para o noroeste do Paraná, mais precisamente em Maringá, o professor de cinema Paulo Petrini bem que tentou mostrar o curtadocumentário Ilha das Flores no projeto que coordena, o Cineclube da Faculdade Maringá. Problemas técnicos impediram as dezenas de participantes de assisti-lo. Mesmo assim, no site www.portacurtas. com.br, o filme está disponível gratuitamente, e, inclusive, é o segundo mais visto do site. Petrini, que prometeu apresentar Ilha das Flores em outra oportunidade, considera o curta um clássico nacional. Para ele, o filme, que tem um “rico conteúdo”, faz uma crítica social de forma didática e contundente. “O curta mostra a lógica do capital, a circulação da mercadoria da produção ao consumo - e a vida miserável (fruto da exploração) a que submetem as pessoas que estão abaixo da linha de pobreza.” O fato de o curta ganhar prêmios, e ser agraciado pela crítica de cinema de vários lugares do mundo, talvez tenha explicação: o ser humano sempre será desvalorizado quando comparado ao lucro, e a podridão da ótica burra do individualismo e o desdém ao ser humano, vistos em Ilha das Flores, é universalista. Afinal, as “flores” existem em qualquer lugar do mundo. Ao se lembrar de Maringá, que nunca é citada por suas mazelas e que sempre alcança boas colocações em pesquisas de melhores cidades do Brasil, Petrini aponta as “flores” deste município: “tem um número muito grande de pessoas vivendo na pobreza, vivendo do lixo, com sua particularidade própria, talvez vivendo num ‘arquipélago de frutos podres’. Veja quantas pessoas vasculham os lixos da cidade [Maringá], senhores, senhoras, jovens e crianças.” Leia a entrevista com Giba Assis Brasil na próxima página.


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“É concreto dizer que os porcos, muitas vezes, têm prioridade”

Giba Assis Brasil

O curta-documentário Ilha das Flores já teve a honra de ser assistido por muita gente, de diversos países. Em clubes de cinéfilos e em festivais de cinema, é sempre uma boa pedida, já que, embora tenha sido exibido pela primeira vez há 19 anos, a injustiça social e a miséria são assuntos que teimam em perecer, infelizmente. Mas, considerando que, de 1989 até hoje, tantas inovações ocorreram no mundo, bate aquela curiosidade em saber como se encontram atualmente os locais das filmagens do curta. Para matar a curiosidade, o montador e produtor de Ilha das Flores, roteirista e professor de cinema Giba Assis Brasil respondeu a três perguntas. Ele, que já montou mais de 30 curtas, além dos longas O homem que copiava e Meu tio matou cara, conta um pouco da atual situação das ilhas filmadas em Porto Alegre e opina sobre os problemas do País:

Eu tenho Vergonha – Qual é a situação atual da Ilha das Flores? Será que ainda existe aquela disputa entre porcos e crianças para conseguir um tomate podre? Giba Assis Brasil - Na verdade, quando o filme foi rodado, em abril de 1989, aquela situação já tinha, praticamente, deixado de acontecer, pelo menos naquele local, por uma série de motivos. Primeiro, porque a Associação dos Catadores estava organizando e dando trabalho para a população mais pobre daquela região. Segundo, porque a Prefeitura de Porto Alegre, que na época estava começando a implantar a coleta de lixo seletiva na cidade, logo em seguida fez um convênio com a associação, destinando a ela boa parte do lixo seco coletado, o que aumentou a renda do pessoal. E terceiro, porque os criadores

de porcos da ilha já consideravam muito arriscado comprar restos do supermercado para alimentar seus animais, o que é mais barato do que comprar ração, mas é ilegal: se a Secretaria da Saúde descobre que um criador está alimentando seus porcos com restos, a carne não é liberada para venda. São situações vergonhosas que acontecem no Brasil, brilhantemente filmadas. Vocês fizeram o curta querendo denunciar o podre que, muitas vezes, está escondido em lugares desconhecidos? Sem dúvida. Mas o que o filme realmente não quer chamar a atenção é para uma ilha específica em Porto Alegre, e sim para o mundo em que vivemos, em que a disputa entre seres humanos e porcos por alimentos é concreta. É concreto dizer que os porcos, muitas vezes, têm prioridade: basta ver a quantidade de hectares, no Brasil e em outros países, que um dia produziram arroz, feijão, milho, batata (que alimentavam as populações mais pobres), e que foram reaproveitados para plantação de soja - ou seja, para produzir farelo de soja para exportação, para alimentar porcos e, no fim das contas, produzir bacon

para a classe média norte-americana. Felizmente, o Brasil vem melhorando nos últimos anos. Continua sendo um dos países mais injustos do mundo, pela desigualdade na distribuição da renda. Mas, recentemente, a Fundação Getúlio Vargas divulgou um estudo mostrando que entre 2003 e 2008 o percentual de famílias pobres no Brasil caiu de 35% para 24%. Ainda é pouco, mas já é um começo.

Como foi voltar à Ilha dos Marinheiros para fazer o filme Fraternidade (campanha patrocinada pelo Banco do Brasil, com duração de três minutos)? Em abril de 1989 eu estive lá porque, além de montador, fui produtor de Ilha das Flores. Recentemente, em novembro de 2005, quando o Jorge [Furtado] e equipe voltaram às ilhas para filmar Fraternidade, eu estava envolvido em outro trabalho e não pude participar. Só fui meses depois, quando fizemos uma sessão do Houve uma vez dois verões [longa lançado em 2002, dirigido por Jorge Furtado e montado por Giba Assis Brasil] ao ar livre, no centro esportivo, que foi construído com o orçamento do filme. Minha impressão é de que aquela continua uma região pobre, mas sem dúvida as pessoas têm mais Arquivo particular/Giba Assis Brasil dignidade hoje: quase todas têm trabalho e moram em condições quase razoáveis; antes da exibição do filme, um grupo de moradores jovens apresentou números de rap e de samba, o que era impensável 20 anos atrás. Não vou dizer que eu compraria um CD deles, porque não é isso que importa: o que interessa é que hoje aquelas pessoas se dão ao direito de se expressar, de dizer o que elas pensam do mundo, ainda que com voz fraca. Isso significa que alguma coisa mudou naquela região, sem dúvida.


Da Vergonha Ora, o que sentes é puro Receio de seres visto. Não, vergonha não é isto: Vergonha é a que tens no escuro... Mario Quintana

Douglas Oliveira


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Respeito é bom e todos gostam Além de sofrerem com a falta de planejamento e estrutura das cidades, muitos não colaboram e desrespeitam quem precisa de algum auxilio para se locomover por Rafael Andrian Maringá ficou conhecida no cenário nacional por ser uma das cidades mais bem planejadas do País. Com traços modernos e aproveitando a vasta natureza que existe ao seu redor o município ganhou status de “cidade verde”, por possuir um elevado número de árvores e bosques. A qualidade de vida é apontada como uma das melhores do Brasil. Esses são os principais motivos que fazem com que, todos os dias, muitas pessoas queiram se mudar para a cidade. Com pouco mais de 330 mil, o município é o terceiro mais populoso do Estado do Paraná, ficando atrás somente de Curitiba e Londrina. Mas por trás desses avanços ainda existe uma cidade que possui limitações e defeitos. As barreiras arquitetônicas, por exemplo, podem ser

encontradas facilmente em boa parte do município. Segundo a arquiteta Flávia Galli as barreiras arquitetônicas são empecilhos físicos que impedem as pessoas de se locomoverem de um ponto para o outro. Ainda de acordo com a arquiteta, muitos associam os obstáculos apenas às dificuldades apontadas por pessoas com deficiência. “Ocorre esse pensamento que apenas o portador de deficiência seja o único afetado, e acabam se esquecendo que gestantes, idosos e obesos também fazem parte disso.” Flávia Galli diz que Maringá possui problemas básicos de estruturação e que isso prejudica muitas pessoas que necessitam de apoio para se locomover. “Muitos prédios públicos não estão como deveriam. Faltam rampas para cadeirantes, corrimãos na altura correta,

elevadores espaçosos para que a cadeira possa entrar, sanitários com barras de apoio, telefones públicos e bebedouros mais baixos, ou seja, o processo ainda levará algum tempo para chegar a todos os locais.” Há cerca de cinco anos Márcio Aparecido Calheiros, 27, estava em um bar quando aconteceu uma discussão e, posteriormente, um dos envolvidos efetuou vários disparos. Atingido na região da coluna, ele perdeu o movimento das pernas. Desde então sente na pele como é a vida sem poder se locomover para onde quiser. “Às vezes t e n h o vontade de sair


47 sozinho sem rumo, dar uma arejada nas idéias, mas não posso. Não sei o que irei enfrentar pelo caminho. Nem toda calçada possui rampas, as ruas e calçadas vivem esburacadas, então preciso sempre de alguém que vá comigo para me dar uma forcinha”, diz Calheiros. Ele revela também que muitos não respeitam os locais destinados a pessoas com necessidades especiais. “Muitas vezes atravesso na faixa de pedestre e quando vou subir a rampa para a calçada, tem um carro estacionado na frente [a foto abaixo ilustra essa situação]. Além de nos prejudicar está violando o Código de Trânsito. Acho que falta fiscalização.” A arquiteta Flávia Galli diz que muitas coisas estão sendo feitas em Maringá para melhorar a qualidade de vida de quem precisa. “As avenidas do Novo Centro são exemplos de arquitetura e responsabilidade social. Toda pavimentação é um exemplo disso. Bem sinalizada em cores, com rampas de acesso e indicadores de sinalização para os deficientes visuais, a obra é um grande exemplo de arquitetura e cidadania.”

Márcio Aparecido Calheiros diz que fica contente quando sabe que alguma obra está sendo feita dentro dos limites do bom censo e da lógica. “Sempre que algo é construído em Maringá fico curioso para saber se está obedecendo o que é determinado por lei. Quando a obra é feita para todos sem discriminação, esquecemos até que sofremos com algum tipo de deficiência. É como se estivessem lembrando de nós.” A arquiteta diz que tudo o que está sendo feito é importante, mas salienta que o principal é que todos os cidadãos parem para refletir e aprendam a viver com as diferenças. “Ninguém precisa ser igual a ninguém. Basta vivermos em harmonia. Cada um sabendo respeitar a limitação e o espaço alheio. Não basta termos apenas regras e normas para o fim das barreiras arquitetônicas. O mais importante que devemos aprender desde sempre é o respeito.” Calheiros que trabalha com venda de telhas, diz que nunca sentiu vergonha por estar em cima de uma cadeira de rodas. Segundo ele a inclusão social é fundamental para uma pessoa se reabilitar e continuar sua vida normalmente. “Vergonha é roubar, matar, fazer coisas erradas, sou feliz do jeito que sou , e ficaria mais alegre ainda o dia em que essas barreiras físicas deixarem de existir.”

ariano

Jorge M

“É ingênuo creditar a postura brasileira apenas à ausência de educação adequada. Pode-se creditar à poucavergonha do brasileiro.” Roberto DaMatta, antropólogo, ao comparar, no livro “O que faz o Brasil, Brasil?”, a postura dos norteamericanos e a dos brasileiros em relação às leis


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Silenciados pelo medo Índice de violência sexual contra crianças é alto, mas ainda falta que as famílias denunciem e procurem auxílio adequado por Murilo Battisti O Brasil é um dos países que lidera a lista de nações com maior índice de abuso sexual. Um estudo divulgado pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 2004 revela que as cidades latino-americanas possuem as maiores taxas de violência sexual do mundo. Cidades dessa região concentram 5% dos casos, enquanto cidades africanas e asiáticas variam de 1,6% até 2,4%. Quem mais sofre com os crimes sexuais praticados no Brasil são as crianças. Segundo o Ministério da Justiça, 69% das vítimas de abuso sexual têm menos de 12 anos de idade. A maior incidência é observada entre as crianças de 7 a 9 anos, onde se concentram 25,4% dos casos. A pesquisa aponta ainda que 60,4% dos abusadores são pais, irmãos, padrastos, madrastas, tios, primos e parentes próximo.

Liliane Danas


49 Além da idade das vítimas, outra de um abuso que aconteceu dentro de questão que preocupa é a morosidade casa. De pai para a família, de um tio para da Justiça brasileira e a falta de políticas o filho, ou de irmão com o irmãozinho públicas para atendimento das famílias, mais novo. Acaba não acontecendo [a o que dificulta as denúncias. Segundo denúncia] por causa do medo de estar pesquisadores do Ministério da Justiça, sendo avaliado por outros. As pessoas de o número de denúncias de abuso contra baixa renda, que não têm a melhor das crianças no Brasil é insignificante. 95,7% estruturas, acabam passando por cima dos abusadores são homens e 70,9% das dessa questão”, afirma. pessoas que denunciam são mulheres. “De maneira geral, o que a gente Segundo a psicóloga e sexóloga percebe é que eles [classe baixa] Eliane Maio, o medo e a vergonha podem vêm, mas em seguida param por não contribuir para a criança não contar que foi ter uma estrutura para agüentar toda abusada. Para a profissional, a educação aquela situação que mexe muito com o sexual dentro da família é o melhor sentimento. Principalmente em uma área remédio. “A vergonha é decorrente de como a sexualidade que é tão difícil de ser inúmeros fatores. Uma criança que é bem lidada. O grande problema é justamente a educada sexualmente desde pequena, falta de educação”, completa a sexóloga. principalmente pela família, não vai Ela aponta que, ao contrário do que ter vergonha, pois vai saber do que se muitos pensam, nas classes mais altas proteger. Ela vai dizer: No meu corpo não, o número de casos de abuso sexual é eu já sei o que vai acontecer. Por não ter maior, devido à estrutura material, casas essa educação ela acaba ficando com maiores e por cada pessoa possuir seu vergonha, medo e até depressão. O medo próprio espaço. impossibilita a pessoa de se defender”, Dados do Unicef (Fundo das Nações explica Maio. Unidas Para Infância) revelam que em Em Maringá o número de abusos todo o mundo existem cerca de 40 sexuais contra crianças e adolescentes milhões de crianças e adolescentes que é grande, mas a foram abusados cidade também sexualmente. A 69% das vítimas de abuso sofre com a falta psicóloga Eliane sexual têm de denúncias. Em Maio explica que menos de 12 anos maio deste ano é difícil indicar foi inaugurado na fatores que levam a cidade o Creas (Centro de Referência estatísticas tão preocupantes. “É dito que Especializado de Assistência Social). A o abusador foi abusado. Também pode ser, entidade presta assistência às crianças mas não é um fator que explique todos os que são vítimas da violência e recebe casos casos de abuso. É um desejo incontrolável, do Conselho Tutelar, escolas, delegacias e considerado até uma parafilia, uma Ministério Público. perversão sexual. Mas cada caso precisa Em maio deste ano o Creas atendeu ser analisado separadamente”, explica. 176 crianças vítimas de abuso sexual. Segundo Eliany Mariussi, existem Em junho, foram 188. Segundo a várias entidades que prestam assistência coordenadora do programa, Eloaci Maria para as vítimas de abuso, mas ainda Prado Tavares ainda existem muitas não é o suficiente para a demanda de famílias que não denunciam e acabam por Maringá. Para a profissional, uma melhor não ter o tratamento adequado. Segundo estrutura de atendimento é necessária a especialista em políticas públicas, grande para acabar com o preconceito familiar parte dos casos vem dos conselhos e com relação à violência sexual. “O ideal escolas da cidade. seria se nós tivéssemos mais condições Para a sexóloga Eliany Mariussi, a para oferecer às crianças e famílias que vergonha da exposição é o principal fator são abusadas. Casas para as vítimas, que impede as denúncias. De acordo aconselhamento familiar, estruturas que com ela, as classes mais baixas têm pudessem ajudar o contexto geral e não maior facilidade em aceitar que os filhos só a vítima. Porque existe uma vítima, sofreram o abuso sexual. “Existem muitos mas também uma estrutura familiar que casos em Maringá, em todas as camadas acaba superprotegendo-a no sentido de sociais. Normalmente as que chegam até exposição e medo. Ela acaba não tendo o consultório são os casos de classes mais o tratamento e atenção que deveria ter. baixas. As outras acabam se protegendo É preciso estrutura maior para atender o dessa exposição. Existe vergonha de falar abusado e a família do abusado”, afirma.

“Eu sinto muito pelas dores que as vítimas suportaram. Sentimos muita vergonha. Estes atos representam uma grave traição de confiança e merecem condenação inequívoca.” Papa Bento XVI

em sua visita à Austrália sobre os 107 membros da Igreja Católica condenados por abuso sexual no país.


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Corpos perfeitos não saltam das revistas Apesar da idealização do padrão de beleza nas peças publicitárias, a ditadura da perfeição não afeta a todos da mesma forma por Brenda Caramaschi

podem se ater a peças

mais conservadoras. A publicidade não expressa a vontade de o criador fazer uma campanha publicitária pensando no social, eu não acredito nisso”, diz o professor. Ellen ressalta que, apesar de ainda serem exceções, existem campanhas publicitárias que vão contra o estereótipo que se tem do belo ao valorizar a beleza do dia-a-dia. Como exemplo ela cita a campanha da Unilever/Dove, a “campanha pela real beleza”, protagonizada por mulheres diferentes daquelas que costumamos ver nos anúncios, mas muito parecidas com aquelas com quem cruzamos todos os dias - baixinhas, com cicatrizes, “pneuzinhos”, marcas de nascença, cabelos crespos... Outras marcas de cosméticos, como a Nívea, também têm campanhas com esse mesmo perfil. Contudo, apesar de fugir do padrão, Ellen afirma que tais campanhas são estratégias publicitárias. “Hoje se sabe que o consumidor é uma pessoa inteligente, que há quem não aceite aquilo que é imposto e se sente bem do jeito que é .

Campanha Pela Real Beleza - Dove / Unilever

Mulheres altas e magras, de longos cabelos lisos, homens atléticos, de corpo definido. É essa a imagem que vemos em outdoors, catálogos, propagandas de televisão e desfiles de moda. São esses os “corpos perfeitos” que servem de parâmetro para medir a beleza. O fato de não atingir esse padrão pode provocar em alguns a não-aceitação do próprio corpo e levar até mesmo ao desenvolvimento de doenças físicas e psicológicas. A publicitária e professora do curso de publicidade e propaganda do Centro Universitário de Maringá (Cesumar) Ellen Humprheys concorda que existe um padrão de beleza préestabelecido e que a publicidade contribui para que vigore. “A gente vê esse estereótipo de beleza na televisão, em revistas, em outdoors. Mesmo no rádio, que não tem como ver, mas sempre fala ‘imagine aquela mulher maravilhosa... ’. Acho que as próprias peças publicitárias e os modelos que são utilizados acabam ditando esse padrão”, opina Ellen. Para a professora, a existência desse padrão pode, sim, ser um fator causador de vergonha. “A gente vê muitas pessoas, a maior parte mulheres, fazendo verdadeiras loucuras que vão desde dietas até cirurgias plásticas absurdas para atingir esse padrão, porque não estão satisfeitas com o próprio corpo”, ela diz. Mas Ellen reconhece que, apesar de os publicitários terem consciência desse fato, isso não é fator primordial e, muitas vezes, nem é levado em conta ao se criar uma peça publicitária. “Em nome de uma boa campanha, de satisfazer o cliente e vender o produto, isso não é levado em consideração.”

O professor Lúcio Olivo Rosas, da Universidade Paranaense (Unipar) e do Cesumar, que também é publicitário, argumenta que a agência não dita o padrão, mas o segue. “Ela alimenta esse processo sem perceber que pode modificá-lo”, diz Rosas, que completa: “Mas isso não é o que mais interessa; O que interessa é fazer um bom produto, que agrade o cliente”. A professora Ellen Humprheys concorda e complementa: “Mesmo que a agência sugira uma proposta nova, muitas vezes o próprio anunciante não quer sua imagem associada a algo que esteja fora dos padrões de beleza”. Ao comentar sobre como a campanha publicitária é planejada, Rosas explica que o pensamento do criador não está ligado à preocupação social. Para ele, é a construção cultural do profissional da área criativa que influencia na construção da peça publicitária. “Criativos mais jovens criam peças mais inovadoras, e outros mais experientes,


51 mas para os outros”, diz ela, referindo-se aos tratamentos estéticos e ao consumo de produtos voltados a esse mercado. Giordane alerta que no caso de cirurgias plásticas e uso de produtos ditos “milagrosos” (pois prometem solução rápida e eficaz para os principais motivos de vergonha do corpo como gordura localizada, celulite e flacidez por exemplo), se a expectativa for muito grande e a pessoa investiu tudo e não deu certo, o quadro patológico pode ser agravado. “É por isso que a nossa classe luta para que a avaliação psicológica seja obrigatória para toda cirurgia [de cunho estético]”, diz. Atualmente, o acompanhamento e avaliação de psicólogos só é obrigatório para as cirurgias de obesidade, como a de redução de estômago. Giordane diz que “a melhora provocada pelos tratamentos muitas vezes está relacionado à auto-imagem. Se ela se aceita, ela não sente tanta vergonha”.

"As pessoas precisam de três coisas: prudência no ânimo, silêncio na língua e vergonha na cara." Sócrates, filósofo

Mert Alas e Marcus Piggot / Calendário Pirelli 2006

Essas empresas visam atender esse público, fazer com que ele se identifique com a campanha e o produto.” A professora de psicologia Gláucia Valéria de Brida diz acreditar que o modelo ideal utilizado na publicidade não é negativo por saber-se que quem aparece nos anúncios não é uma pessoa do diaa-dia. Para ela, a publicidade não gera vergonha. “O que você pode é mobilizar a vergonha do outro”, explica. Gláucia diz que o padrão de beleza não é o mesmo para todos, nem afeta a todos da mesma maneira. “O padrão de beleza depende de como cada um encara isso.” “A ‘ditadura da beleza’ não afeta a todos da mesma forma porque cada um é aquilo que traz da família, da sociedade”, diz Valéria de Brida. Para Gláucia, a vergonha, não só do corpo, é maior na adolescência, por ser um momento em que é importante participar de um grupo, ser aceito. “Se você faz parte de uma turma que acha que ter um corpo perfeito fundamental, você vai achar isso importante também.” Ela alerta que o problema não é sentir vergonha, que, segundo Gláucia, é algo normal. O perigo é a perda da auto-estima que o constrangimento pode acarretar. “A vergonha do corpo passa a ser um caso patológico quando a pessoa passa a restringir os contatos sociais em função desse constrangimento. Deixa de sair de casa, evita fazer as coisas em função da vergonha, usa roupas muito largas para disfarçar o corpo”, esclarece a professora. A psisicóloga Giordane Andrade concorda e complementa. “Se a pessoa se preocupa mais com o corpo do que com outras coisas, fica muito na frente do espelho e tudo o que ela vê é defeito, se as pessoas falam que ela está bem e ela não aceita, é preciso procurar ajuda”. A psicóloga que diz acreditar que a publicidade e a mídia em geral são fatores causadores da vergonha do corpo, afirma que eles não são os únicos. “Cada pessoa adapta o que recebe da mídia aos seus conteúdos.” Para ela, a forma como os outros nos vêem é também um importante fator que pode levar à vergonha do corpo. “As pessoas levam muito em consideração a visão do outro. A maioria das pessoas não faz para si,


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Salvos do desperdício Frutas e legumes que poderiam parar nos latões de lixo da Ceasa sustentam entidades assistenciais de Maringá e alimentam a solidariedade por Brenda Caramaschi e Renata Mastromauro

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M ge Jor

Uma pesquisa divulgada em 2006 pelo IBGE revelou que aproximadamente 14 milhões de pessoas passam fome no Brasil e quase 40% da população brasileira vive em situação de insegurança alimentar – estes não têm acesso à alimentação em quantidade, qualidade e freqüência suficiente. Esta foi a primeira pesquisa sobre segurança alimentar feita no País. De acordo com o estudo, crianças, negros e moradores das regiões Norte e Nordeste são os grupos mais afetados pela restrição alimentar, mas isso não significa que não existe fome nas outras regiões. Paradoxalmente, o País produz 140 milhões de toneladas de alimentos por ano e é um dos maiores exportadores de produtos agrícolas do mundo. Perdas durante a colheita, o transporte, má conservação e falta de informação sobre como utilizar os alimentos de forma adequada impedem que grande parte dessa comida chegue à mesa de quem precisa e supra a necessidade de alimentação de quase metade dos brasileiros. Acreditando que o combate ao desperdício pode ser uma útil ferramenta na luta pela erradicação da fome, surgiram programas como os bancos de alimentos, criados e mantidos por organizações pertencentes ou não

ao governo e espalhadas por todo o Brasil. Esses programas arrecadam alimentos por meio de doações e repassam a entidades assistenciais ou diretamente às famílias que não têm acesso à alimentação. No Paraná, todas as unidades da Central de Abastecimento (Ceasa) abrigam bancos de alimentos e, recentemente, promoveram uma campanha de conscientização e incentivo às doações de frutas, legumes e verduras denominada O seu desperdício é o meu alimento. Juntas, as cinco unidades da Ceasa-PR comercializam mais de 90 toneladas de hortigranjeiros por mês. Aproximadamente 1,5% desse volume acaba não sendo vendido. Isso quer dizer que 1,3 tonelada de alimentos seriam jogadas no lixo todos os meses. Parte desses produtos é doada pelos agricultores e atacadistas que trabalham nas Ceasas ao banco de alimentos, mas a quantidade de doações ainda é pequena. Na unidade da Central em Maringá, por exemplo, até 26 de junho deste ano, quando a campanha contra o desperdício foi lançada na cidade, 3.500 kg de frutas, verduras e legumes que não eram vendidos pelos produtores iam parar no lixo enquanto apenas 1.400 kg chegavam, por meio de doações, ao programa. De acordo com Antônio Comparsi de Mello, diretor-presidente da Ceasa-PR, “O seu desperdício é o meu alimento veio para reverter esses números”. Segundo a gerente da Ceasa Maringá, Suely Bertolo Rego, além do estímulo às doações, a campanha marca o início de uma nova fase do programa nas Centrais de Abastecimento do Paraná. Cozinhas industriais serão construídas em todas as unidades do Estado e cursos sobre como melhor aproveitar os alimentos vão ser oferecidos às entidades beneficiadas. Suely diz que o objetivo é desperdiçar ainda menos. “Além da instrução que vai


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O Banco de Alimentos Na unidade de Maringá da Ceasa, Valdir Gonçalves de Oliveira é quem coordena o banco de alimentos, junto de mais duas pessoas. Ele recebe as doações dos comerciantes, controla o estoque, atende às entidades que vão buscar os alimentos e, em um caderninho todo escrito à mão, registra todas as entradas de saídas do programa. Nessas anotações, ele tem números animadores, como recordes de doações e toneladas doadas a cada mês, e outros nem tanto, como os índices de desperdício da Ceasa Maringá (o quadro abaixo mostra esses números). De acordo com Oliveira, dos mais de cem comerciantes e produtores que vendem alimentos na Ceasa, apenas duas distribuidoras não contribuem com o banco: Gemma e Sandoni. Silvio Dias de Oliveira, gerente da Sandoni, defendeu-se. “Antes, quando eles [funcionários do programa] vinham buscar as doações e trazer as caixas de volta, a gente doava. Quando eles pararam de fazer isso, a gente teria de ir até lá levar os alimentos e trazer de volta as caixas. Nós não temos tempo nem pessoal para isso.” A dona da Gemma se recusou a conversar com a reportagem. O programa da Central de Abastecimento do Paraná atende 431 entidades assistenciais, 43 delas estão cadastradas junto à Ceasa Maringá. Não existe outro programa de arrecadação e doação de alimentos na cidade. Aqui, o projeto t e m parceria com a Prefeitura. Para se cadastrar no Banco, as entidades têm de apresentar documentação que comprove que já têm registro junto à Secretaria de Assistência Social e Cidadania (Sasc).

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Uma dessas entidades é a Vida Melhor com Futebol, criada pelos voluntários Maria e Moisés Oliveira no Jardim Santa Felicidade, região

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Vidas melhores com futebol

sul de Maringá, um dos bairros mais pobres da cidade. O projeto visa a manter crianças e adolescentes longe das ruas, das drogas e até dos problemas que encontram dentro de suas próprias casas, como o alcoolismo e violência doméstica. Após três anos de existência do projeto, Moisés, mais conhecido por Jacaré, treina hoje cerca de 150 crianças. Os treinos são diários, às cinco da tarde, e cada dia da semana é vez de uma categoria praticar no campinho de futebol do bairro. Ensinar futebol é responsabilidade de Jacaré, que diz sempre ter gostado do esporte, além de ter jogado na categoria de amadores quando mais jovem. Todo o resto fica por conta de Maria. Foi ela quem, depois de batalhar dois anos na prefeitura, conseguiu que o projeto fosse declarado de utilidade pública. Agora, os papéis estão tramitando

M ge Jor

ser oferecida, os alimentos vão ser transformados nessa cozinha. O tomate, por exemplo, carro-chefe das doações, mas que às vezes já chega muito amassado e difícil de ser utilizado pelas entidades, vai virar polpa; as frutas podem virar doces”, explica. A gerente conta que outra novidade que deve ser implantada é o veículo próprio, que vai ser utilizado para buscar o alimento que é desperdiçado na lavoura também. “Aquele pepininho que saiu do padrão, a abobrinha que não cresceu muito, eles perdem. Mas para nós esse alimento é muito importante.” O veículo vai servir também para ajudar a distribuir os alimentos. Atualmente as entidades têm de buscar os produtos diretamente na Ceasa e muitas delas não têm automóvel. Apesar dos esforços pela conscientização dos produtores, ela afirma que ainda não é possível perceber um aumento muito grande no número de doações, porque nos meses de inverno, já é costume haver menos doações, uma vez que o clima ajuda a manter os alimentos mais frescos por mais tempo. “Quando é a época do verão mesmo, o tomate amadurece mais rápido, assim como a banana; a rapidez com que eles se transformam depois de colhidos é muito maior, perde-se mais. Então o volume de doação aumenta.” Dados da administração do banco mostram que nos meses de junho e julho o volume das doações chega a cair 75%. Mas a gerente destaca que uma vantagem que a campanha trouxe foi a maior espontaneidade dos produtores na hora de doar. “Não temos mais que ficar atrás, eles nos procuram.” Segundo ela, aumentar drasticamente o volume de doações ou pedir que os comerciantes ofereçam mais produtos ao banco é inviável. “Nós não podemos obrigar o comerciante a doar mais do que aquilo que ele já nos doa. Ele compra para poder fazer essa venda. Então, quando doa é uma perda para ele, que não encaixou o produto no mercado e deixou de ganhar. Nós gostaríamos que eles doassem mais, mas para isso eles têm de perder mais”, diz.


Jorge Mariano

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Vinte e uma das 150 crianças que participam do projeto Vida Melhor com Futebol, no Jardim Santa Felicidade, em Maringá

na Sasc. “Lá é o ponto final, é onde um projeto ganha vida. Muitos que já estão registrados ainda não recebem verba, mas, pelo menos, têm o direito de pedir.” Segundo Maria, a cooperativa agroindustrial Cocamar, por exemplo, se mostrou interessada em patrocinar o Vida Melhor com Futebol, mas para isso, exige a documentação fornecida pelo município, para ter certeza de que é um projeto de sério. “Agora a gente precisa desse registro para ganharmos mais leite, mais cesta básica, para podermos dar mais às crianças. Estamos na esperança de que o Sasc reconheça nosso trabalho. Só precisamos desse papel.” Por isso, a entidade ainda conta com poucos recursos. Tudo o que eles recebem foi conseguido por meio de doações voluntárias, de pessoas que, muitas vezes, eles dizem nem saber quem são. Mas esse “tudo”, não é muito. Por mês, o projeto recebe três cestas básicas, além da doação do banco de alimentos. O resto, como carnes e leite, Maria e Jacaré compram com o pouco dinheiro que ganham; ela é costureira e o marido, pedreiro. As 150 crianças dividem três bolas, cerca de 25 camisas (que são lavadas diariamente por Maria) e pouco mais de 20 de chuteiras. Tudo isso foi doação de empresas. A sede da entidade é a casa do casal, onde todos os dias, Maria, apesar do pouco espaço, cozinha

para cerca de 40 crianças. É aí que entra a ajuda do banco de alimentos. “Se a gente não pegasse as doações na Ceasa, seria impossível alimentar toda essa gente”, diz Maria. Toda sexta-feira, Jacaré vai até o banco de alimentos buscar a doação. A mulher separa um tanto para ela mesma cozinhar e o restante, distribui para as famílias das crianças que participam do projeto. E é lá também que Maria lava os uniformes todos os dias e guarda as bolas e chuteiras. “Aqui é a sede da bagunça. Tem gente entrando e saindo o dia inteiro”, diz ela.

Mas, Maria e Jacaré não reclamam, e tanta dedicação do casal é retribuída com amor pelas crianças. “A nossa relação com eles é muito boa, eles parecem um pai e uma mãe para nós. A gente forma uma família”, diz Luan Julio Costa Lima, 15, uma das promessas do time. “Ele joga muito, com certeza vai sair daqui para algum time grande”, diz Jacaré, orgulhoso. E é exatamente esse papel que Maria queria exercer. “Vi que tinha feito um bom trabalho como mãe. Meus filhos [que são quatro] já estavam encaminhados na vida, se casando e indo embora de casa. Jorge Mariano

Na ANPR, crianças recebem toda a assistência de que necessitam. Fiosioterapeutas estão entre o grupo de profissionais que atendem os alunos


55 Queria fazer com outras crianças o que fiz com eles”, explica. Além dos quatro filhos biológicos, o casal tem mais três adotados, que também participam do projeto. Uma outra realidade Um exemplo e modelo a ser seguido por Maria e Jacaré é a Associação Norte Paranaense de Reabilitação (ANPR), mantenedora da Escola de Educação Especial Albert Sabin. Há 45 anos, a ANPR começou pequena, sem recursos, assim como a Vida Melhor com Futebol. Hoje, a escola atende 200 alunos de Maringá e região, com deficiência física motora moderada, grave e outras deficiências associadas. A maioria deles vem de família de

baixa renda, e tem entre zero e 21 anos. A associação tem sede própria, carros, materiais escolares, equipe de professores, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, enfim, tudo de que os alunos necessitam. Tudo isso foi conseguido por meio de muito trabalho e, é claro, muitas doações. Mas, apesar de toda essa estrutura, a ANPR tem outro ponto em comum com o projeto idealizado por Maria e Jacaré: a entidade ainda vive de doações. Segundo Ednéia de Oliveira Demitto, diretora pedagógica da escola, a ajuda da Ceasa é fundamental. Direfentemente do montante de alimentos que vai parar nos latões de lixo da Ceasa todos os dias (vide quadro), na escola Albert Sabin não há desperdício de comida.

“Antes de as merendeiras começarem a preparar o almoço, elas já contam quantas crianças estão presentes, para fazer a quantidade certa de evitar o desperdício”, revela Ednéia. Além dos alimentos que recebe, a ANPR reúne verbas municipais, estaduais e federais, mantém parcerias com empresas e com a sociedade e, a cada três meses, todos os envolvidos trabalham em promoções – churrascos, feijoadas e barraca em eventos, por exemplo. Segundo Ednéia, a equipe tem de trabalhar muito para conseguir quitar os cerca de R$ 30 mil de gastos mensais da instituição, entre salários e contas a pagar. “Nós temos quase cem funcionários e 200 alunos, porque são pessoas que precisam de muitos cuidados”, explica a diretora. Jorge Mariano

pedagógica.

“Vi que tinha feito um bom trabalho como mãe. Queria fazer com outras crianças o que fiz com meus filhos”, diz Maria, que idealizou o Vida Melhor com Futebol junto com seu marido, Jacaré, que ensina o esporte às crianças

Números da vergonha

Apesar dos esforços contra o desperdício, muita comida ainda vai para o lixo no banco de alimentos da Ceasa Maringá: Junho - 1.827 kg Julho – 2.829 kg Agosto (até o dia 21) – 2.400 kg No ano passado, a média de desperdício por dia na Ceasa Maringá foi de 3.500 kg.

Total de doações 2006 – 839 toneladas 2007 – 802 toneladas 2008 (até 21 de agosto) – 451 toneladas O recorde de doações foi registrado em dezembro de 2006, com 175 mil quilos de alimentos em um único mês.


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O menino que tinha vergonha de voar por Wilame Prado Então ele descobriu que sabia voar. Perguntou à mãe se era normal sair voando por aí, no que recebeu como resposta um não e a notícia de que somente um membro da família por cada geração é que tinha esse dom. Sua avó voava, seu tio – irmão de sua mãe – também, e agora ele. Porém, todos os voadores da família acabaram tendo de ir a uma ilha isolada do mundo para que não sentissem vergonha de serem diferentes dos demais. Até aprender a fazer pousos rasantes, e flutuar no céu como as outras pessoas flutuam normalmente em piscinas, ele caiu muito. Todo dia chegava à escola com um novo machucado. Isso fez com que a diretora desconfiasse de que sofresse maus tratos no lar. A mãe, por sua vez, ao receber cartinhas ameaçadoras, ria incontidamente por lembrar-se da época em que seu irmão aprendera a voar, e que por chegar em casa sempre esculhambado, ganhara o apelido de “Ralado”. O menino que sabia voar queria porque queria conhecer seu tio, o Ralado. Mas foi proibido pela mãe de se comunicar por correspondências ou e-mails, contando sobre alguma peripécia voadora. Ela não acreditava que existia algum tipo de privacidade nesses serviços, fossem públicos ou privados, e desconfiava de que, ao saberem dos vôos, logo transformariam seu filho em rato de laboratório. Outro motivo que a fez

não deixar o menino se comunicar com os parentes voadores era o medo de acabar sendo abandonada, já que ela não tinha a destreza de passear tranquilamente nos bosques do céu juntamente com ele. Foi complicado para o menino que sabia voar, na infância, conviver normalmente com outros garotos de sua idade. A mãe, protetora igual a

uma gaivota no pós-parto, não dava asas ao garoto, mesmo ele sabendo voar. O menino nunca se esqueceu do dia em que acabou contando para um amigo de sala que sabia voar. Quando a mãe descobriu que o grande segredo da família corria perigo de ser desvendado, utilizou-se de todos seus dotes artísticos para

encenar um grande drama no colégio, simulando que o filho tinha distúrbios mentais e que naquele dia havia se esquecido de tomar o remédio tarja preta. Vendo tudo aquilo acontecer, o garoto chorou de raiva e de vergonha, se desvencilhou dos braços da mãe, saiu correndo em direção à rua, atravessou-a sem olhar para os lados e viu, a pouco mais de dois metros de distância, um caminhão disposto a transformá-lo em pasta de amendoim. Sem nem perceber, por puro reflexo, assim como se fecha os olhos quando alguém finge que vai tacar algo neles, o garoto conseguiu se desviar do automóvel graças ao seu dom de voar. Todos da escola católica presenciaram o milagre. Foi televisão, rádio, padre e até bispo no local, mas como não havia provas concretas, o milagre logo se transformou em notícia esquecida pelo povo, igual a da santa que chorava mel ou a da janela que refletia Nossa Senhora Aparecida. A mãe, ligeira que só, em questão de horas, já estava a pelo menos dois mil quilômetros de distância da escolinha, juntamente com o filho voador, prestes a começar vida nova. E começou mesmo. Pouco tempo depois, talvez pela forte emoção ocorrida na escola, a mãe do menino que sabia voar morreu de ataque fulminante. Com essa perda, o menino voou tão alto que perdeu o ar. Naquele momento, preferia perder tudo, menos a mãe - única pessoa que podia ouvir seus relatos aéreos, recheados de histórias legais, em que havia trânsito


57 de helicópteros, aparição de objetos voadores não identificados e até namoros entre urubus. *** O menino que sabia voar nunca conheceu seu pai, e perdeu a mãe ainda moleque. Por não saber onde moravam os parentes voadores, acabou tendo de escolher entre ir para um orfanato ou ficar com a vizinha que, ao vê-lo, depois de a mãe ter morrido, sem ar, até mesmo para chorar, dispôs-se a ser sua mãe adotiva. Até que foi muito bem tratado pela nova mãe. O único, e enorme problema, era ter de esconder seu segredo aéreo por tantos anos, até mesmo da própria família, que basicamente se resumia em dois membros: ele e a vizinha, ou melhor, a mãe adotiva. Decidiu, então, ocupar seu tempo em pesquisas geográficas para tentar descobrir onde habitavam seus parentes voadores. A mãe adotiva, ingenuamente, pensava que o garoto queria ser geógrafo. Quando não estava viajando em sites de pesquisa, o garoto navegava ao ar livre, descobrindo novos ventos, sentindo cheiros de nuvens, prenunciando chuvas e trovões e tirando onda com os pássaros mais lerdos, que nunca conseguiam alcançar a passarada rumo a lugares mais amenos, onde há comida farta e temperatura adequada de vida. Começou a se interessar pelos costumes e hábitos das aves, pensando que, talvez, pudesse descobrir em que ilha o tio Ralado e outros parentes voadores moravam. As pesquisas foram intensas. Conversou com especialistas sobre ilhas e pássaros, muitas vezes fingindo ser jornalista de revista especializada; rastreou a árvore genealógica da família voadora; quebrou teclado e mouse de tanto acessar páginas pela internet; tinha as mãos amarelas e até uma alergia no olho - fruto de pesquisas alucinantes em livros velhos e cheios de ácaros da biblioteca municipal; sonhava, todos os dias, que estava encontrando seu tio, em pleno ar refrescante devido à brisa do mar, e que comparava as cicatrizes dos tombos da infância, período em que ambos aprenderam a voar. Estava praticamente reprovado na escola. E todos por lá alegavam que ele tinha traumas por ter perdido os pais tão precocemente. E foi com esse sentimento de dó que uma dócil garota paraplégica quis ajudá-lo a não ter de cursar mais uma vez o último ano do ensino médio.

Acostumada a ver pessoas olhando-a com ar de lástima, e muitas vezes de desprezo, achou-se no direito de ajudar o garoto, que estava na mesma situação. Ambos tinham algo em comum: a vergonha. Só que ela nem imaginava que o menino sentia vergonha por voar. Pensava, equivocadamente, que era por ser órfão. No pátio da escola, o garoto empurrava a cadeira de rodas enquanto conversava com ela, sem parar. Finalmente, achou um motivo nobre para voltar a freqüentar as aulas, e quem sabe finalmente revelar sua habilidade aérea para alguém. Abandonou as pesquisas sobre ilhas e pássaros, até mesmo porque já não sentia tanta necessidade assim de voar para bem longe. Em pouco tempo, essa amizade se transformou em paixão, que mais tarde virou amor. A menina paraplégica foi sua primeira amiga, sua primeira namorada e foi a menina que, pela primeira vez, ensinou-lhe o que é o amor – entre quatro paredes. Quando o namoro foi anunciado, todos ficaram perplexos, mas logo disfarçaram e “desejaram” vida longa ao casal. A menina paraplégica superou sua vergonha e finalmente tirou da cabeça a idéia de que morreria virgem. Mas o pior aconteceu. Após uma longa madrugada de amor louco, o menino que sabia voar contou, com todos os pormenores, a história anuviada de sua vida. E a garota, ainda esbofada pelo amor, depois de ouvir o surpreendente relato aéreo, ficou em tons cadavéricos e a única vontade que tinha era de fugir correndo do quarto abafado, para bem longe daquele (abominava ela) mutante do X-Men. Em toda sua vida de cadeirante, nunca desejou tanto poder controlar suas próprias pernas e dar um pinote dali. *** Quando o menino que sabia voar viu pelo olho mágico um policial batendo na porta, câmeras, fotógrafos, jornalistas e ainda uma aglomeração de pessoas em frente à sua casa, não pensou duas vezes em sair voando para bem longe dali. Em poucas palavras, resumiu toda gratidão que sentia pela mãe adotiva, beijou seu rosto e deu um forte abraço nela. Foi ao quintal dos fundos e, já na altura dos fios de tensão, acenou com a mão e disse que voltaria um dia para fazer um passeio aéreo com ela. Nesse momento, a multidão lá fora, perplexa, olhava o

“Prometeu para ele mesmo que nunca mais sentiria vergonha de ser o que é: um garoto voador.” Wilame Prado


58 garoto voando e mostrando o dedo do meio para quem quisesse filmar ou fotografar o gesto obsceno. Mais adiante, a tantos pés de altura do chão, seguiu uma passarada e já não caçoava do pássaro azarão que sempre ficava por último, pois, na verdade, o último do bando, agora, era ele, e com a língua de fora. Enquanto o ar gelado batia em sua cara, sentia-se realmente livre. Prometeu para ele mesmo que nunca mais sentiria vergonha de ser o que é: um garoto voador. Sem nem entender direito como, passou muito tempo voando em seus pensamentos e, quando deu por si, viu que estava em uma ilha chamada Cuba, onde meninos voadores brincavam de pega-pega no céu, senhoras iam voando com

a sacola fazer compras na feira e homens se desentendiam e trocavam xingamentos, pois não havia semáforos nem placas para controlar o tráfego aéreo de pessoas. Já em solo cubano, na casa do tio Ralado, o garoto contou os momentos difíceis que passou num País onde as pessoas têm dificuldades em viver tranquilamente com as diferenças. De sobressalto, ouviu seu nome na televisão, em um noticiário internacional. As imagens mostravam um garoto voando e mostrando o dedo do meio; em entrevista, a mãe adotiva não contribuía em nada com o repórter e só afirmava que estava esperando o filho vir buscála para dar um passeio; filósofos, historiadores, cientistas e escritores de auto-ajuda participavam de

acalorados debates e tentavam entender o fenômeno do menino voador; religiosos prenunciavam o fim dos tempos e diziam que o menino voador era o anjo-negro de Lúcifer; a menina paraplégica, em depoimento exclusivo, dizia que fora namorada do menino voador e que estava arrependida e com saudades. O garoto nem deu muita atenção ao noticiário, pois só queria conhecer melhor seu tio e ver suas cicatrizes ocasionadas por vôos mal sucedidos na infância. Ralado perguntou se ele não se preocupava com toda essa superexposição na mídia. O garoto conhecia bem seu País e respondeu ao tio que logo teria outra pessoa diferente para virar notícia e assim alimentar ainda mais o preconceito das pessoas.




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