Jornalismo & Poder - 2014

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Uma publicação do Jornalismo sem Fronteiras • Idealização e realização Link Consultoria de Assessoria em Comunicação

Os desafios do segundo governo Dilma Brasília planejada: o plano piloto que não funciona mais Disputa entre estados, municípios e União pela administração do dinheiro público Os 80 anos da Voz do Brasil

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Editorial

Aura do poder Por Claudia Rossi

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m sua primeira edição o Jornalismo e Poder faz um mergulho durante uma semana na cidade que é o centro do poder e que geralmente é lembrada quando se fala em política: Brasília. A primeira semana de dezembro de 2015 foi um momento único para a cidade e para o cenário político nacional. Após uma eleição presidencial tensa e com um resultado apertado, como há muito tempo não se via no país, naquele momento havia uma discussão acalorada no Congresso sobre a votação da redução do superávit primário (volume de poupança destinado ao pagamento de juros da dívida pública). Os reflexos da disputa presidencial acirrada ainda eram vistos entre os parlamentares nessa votação. Havia também a especulação sobre como seria formado o novo ministério de Dilma. E ainda os rumos que a economia tomaria em 2015. O que todas as questões supracitadas têm a ver com o Jornalismo e Poder? Tudo. Os participantes do programa estavam em Brasília nesse momento único. E puderam conversar com quem está por dentro do poder todos os dias, seja cobrindo como repórter ou participando dele ativamente.

velhas e novas ideias sobre política … Brasília foi uma cidade construída para ser o centro do poder. Por todos os lugares se respira política. Por ter uma população muito concentrada, repórteres e fontes se cruzam em todos os lugares. Por isso os jornalistas devem tomar cuidado com o fio tênue que separa essa relação. A cidade que geralmente aparece no noticiário quando se fala de política parece inalcançável e com uma aura de “poder”, onde só os “poderosos” podem adentrar. O que os participantes puderam perceber durante uma semana aprendendo sobre cobertura política é que a cidade é mais normal do que aparenta ser na telinha da TV. Conhecer o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional, o Itamaraty, o Palácio da Alvorada, o Supremo Tribunal Federal e conversar com quem

está no poder – como a ministra Izabella Teixeira e o embaixador Tabajara, do Itamaraty – os fez perceber o quão esse lugares são ambientes de trabalho comuns e como os “poderosos” são gestores que tem desafios, problemas que tem que ser rapidamente resolvidos, conflitos de interesses que tem que ser mediados e que são trabalhadores e lidam com questões como em qualquer outra profissão (aqui, claro, guardadas as devidas proporções). Além de estar em todos esses lugares e conversar com quem respira política 24 horas por dia, os repórteres do programa puderam colocar as dicas aprendidas em prática. E é a produção desses sete dias que vemos nessa primeira edição da revista que traz reportagens sobre: o desafio do segundo governo Dilma; a polêmica questão da legalização do aborto; a disputa de Estados, municípios e União pela administração do dinheiro que chega aos cofres públicos; a questão da violência da polícia militar; a juventude como protagonista dos debates humanitários; o Brasil abrindo suas fronteiras para refugiados e deslocados; e os 80 anos da Voz do Brasil. Não é só em Brasília que se vive política o tempo todo. Os participantes aprenderam que a política não é um bicho de sete cabeças e ela está em todos os cantos e lugares. E é exatamente isso que eles mostram nas próximas páginas. Boa leitura!

focas e feras

As conversas com os jornalistas que trabalham em Brasília foram essenciais para enriquecer o conhecimento dos jovens repórteres sobre a cidade, política e cobertura do poder. Por isso agradecemos a atenção e paciência dos jornalistas: Eliane Cantanhêde, Felipe Recondo, Fernando Rodrigues, Josias de Souza, Marta Salomon e Sergio Leo. Agradecemos também à Ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira e ao embaixador Antonio Nelson Tabajara, do Itamaraty, por mostrar como funciona o poder por dentro.

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sumário

Diretora Editorial

Repórteres

Claudia Rossi

Ana Carolina Siedschlag, Daiana Constantino, Deborah Rezaghi, Elisa Espósito, Gabriel Fabri, Glória Branco e Nathalia Ruiz,

Editores Ana Carolina Siedschlag, Deborah Rezaghi, Jacqueline Moraes, Natália Rossi e Pedro Del Picchia

Projeto Gráfico Mariana Moura

Contato

Rua Cubatão, 97 - Paraíso 04001-000, SP – Brasil Telefone: (11) 3181-2239 contato@linkconsultoria.com.br

Idealização e realização

Publicação do programa


16 palácio do planalto • 28 palácio da alvorada • 36 congresso nacional • 46 cidade • 56 bastidores do programa

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Desafios à esquerda Os planos que não fizemos Juventude na dianteira dos debates humanitários Cabo de guerra entre Estados, municípios e União

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Um novo território para a nação dos refugiados e deslocados

80 anos nas ondas do Rádio

Verás que um filho teu não foge à luta

Salvos da Polícia Militar


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Desafios à esquerda Quais dificuldades Dilma deve enfrentar para levar adiante a reforma política e a regulação dos meios de comunicação? Por Gabriel Fabri, de Brasília

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ma conjuntura econômica de “vacas magras”, uma radicalização da sociedade que é fruto do processo eleitoral, uma base aliada ainda mais estreita no Congresso Nacional e um cenário internacional não muito animador, com um baixo patamar do preço das commodities, por exemplo. Essas são as principais características que definem o contexto atual do Brasil, segundo o cientista político Antonio Lassance, pesquisador do IPEA (Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas). Tendo em vista essa conjuntura, são gigantes os desafios que a presidente reeleita terá para governar. Maiores ainda, entretanto, podem ser as dificuldades para fazer reformas profundas, como a regulação dos meios de comunicação e a reforma política. Ao longo de sua campanha pela reeleição, a presidente levantou essas duas bandeiras, que tratam de reformas essenciais para a sociedade brasileira, mas cuja viabilidade vai depender de muitos fatores complexos. A regulação dos meios de comunicação e a reforma política mexem com questões delicadas que envolvem diversos interesses políticos e econômicos, incluindo os dos próprios parlamentares que votariam sobre essas mudanças. Ao mesmo tempo, são bandeiras que dialogam com a militância de esquerda que apoiou em peso a presidente no segundo turno das eleições. Essas duas medidas passam, essencialmente, pelo Congresso Nacional, que em 2015 será o mais conservador desde a redemocratização, segundo dados do DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar). Para o diretor da instituição, o jornalista Antonio Augusto Queiroz, a dificuldade de relacionamento de Dilma com o atual Congresso será muito maior do que no primeiro mandato. “Será difí-

cil regimentar uma base de apoio suficiente para implementar as emendas que ela defendeu no processo eleitoral”, afirma. Entre os motivos para isso, está o aumento do número de partidos, a diminuição das cadeiras dos grandes partidos da base (PT, PMDB, PSD e PP) e um crescimento da oposição, tanto em número, quanto em qualidade, já que ela ganhou nomes de peso no Senado, como José Serra (PSDB-SP) e Antonio Anastasia (PSDB-MG). “A bancada da oposição é muito qualificada para promover o debate em torno de suas causas, mais conservadoras. O governo tem quantidade, mas não tem qualidade à altura para enfrentar esse trabalho”, opina. Ele acredita também que a oposição está mais coesa, em torno de suas ideias, e mais hostil com relação ao Governo Federal. Além disso, Dilma não poderá esquecer das forças que a ajudaram a ser reeleita, mas que tem pouca representação no Congresso. “A conjuntura econômica que força o governo a sinalizar para o mercado indica que haverá dificuldades nos relacionamentos com as forças sociais”, acrescenta Queiroz.

Plebiscito x Referendo Referendo: O Congresso Nacional elabora uma lei, que é submetida à aprovação popular. Trata-se de dizer “sim” ou “não” ao que foi decidido pelos parlamentares. Plebiscito: A consulta popular acontece antes dos parlamentares elaborarem a lei. O resultado serve de base para que o Congresso redija e vote um projeto de acordo com os interesses da população.

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poder Reforma Política

Antonio Lassance acredita que, para ser feita a reforma política, é necessário usar o aprendizado adquirido com as políticas públicas, tratando esse tema também como se fosse uma. FOTO DE LARISSA BALTAZAR

Operação Lava-Jato

Comandada pela Polícia Federal, a operação, ainda em curso, investiga um esquema de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobrás, políticos de diversos partidos e algumas das maiores empreiteiras do Brasil. Já pode ser considerada uma das maiores investigações de corrupção no país, por atingir corruptos e corruptores, chegando à prisão de funcionários de alto escalão de empresas que fizeram doações eleitorais para candidatos de quase todos os grandes partidos.

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Uma das pautas mais delicadas, a reforma política, ficou mais difícil de ser feita com a configuração do Congresso no segundo mandato. “Todo mundo sabe que a reforma é importante para relegitimar o sistema representativo e ampliar a participação direta, mas não há acordo a respeito do conteúdo”, afirma Queiroz. O diretor do DIAP explica que as mudanças no sistema político podem ser desenhadas de muitas maneiras diferentes. O sistema de eleição de deputados, por exemplo, que hoje é proporcional por lista aberta, pode ser modificado para um sistema de lista fechada, de voto distrital, de voto distrital misto ou fazer com que Estados sejam divididos em regiões, para cada uma eleger um determinado número de representantes. “São dezenas de possibilidades e infelizmente não há acordo, nem no governo, nem na sociedade, nem no parlamento”, comenta. O caminho ideal apontado por Lassance seria primeiro o Governo Federal montar um grande projeto de reforma política e enviar para o Congresso, para que fique clara a posição do Executivo. Depois, teria que ser fatiada a proposta, levando alguns temas para plebiscito, outros para referendo, e, por fim, outros para serem votados no Congresso sem consulta popular. “Tem que mandar para o Legislativo e ver quais parlamentares tem projetos coincidentes com aquilo que você propôs para cada tema, e então reunir a base aliada para patrocinar esses projetos, com uma data limite acertada para votar”, explica. Ele completa: “Sem fatiar, a reforma não anda”. Para Lassance, aprovar uma política progressista, em um Congresso de maioria conservadora, é algo que pode ser feito apenas com muita pressão popular. “Teria que aumentar o grau de pressão e de visibilidade sobre os parlamentares”, comenta. Ele afirma que, crescentemente, quem tem feito isso está sendo a direita, com poucas exceções na esquerda, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). “Enquanto o povo não tiver organizações fortes, poderosas e antenadas para acompanhar o debate legislativo, a gente vai perder de goleada e achar que o problema é só do Executivo”, afirma. A jornalista Bia Barbosa, do Intervozes (Coletivo Brasil de Comunicação Social), acredita que se fosse feita uma reforma política hoje, a tendência seria de que a reforma piorasse o sistema político brasileiro, ao invés de democratizá-lo. “A visão de reforma política que os meios de comunicação têm é a que vai acabar chegando para a população em geral. Portanto, os cidadãos vão acabar formando sua opinião em função só de uma parcela da reforma política, e


não do total que pode ser feito e discutido”, explica. Com a falta de pluralidade nas comunicações, a preferência dos grupos que controlam os grandes meios teria uma influência maior na sociedade.

Regulamentação da Mídia Para o cientista político Antonio Lassance, regular a mídia tem que ser uma iniciativa do Governo, que terá dificuldade em contar com uma maioria no Congresso com relação a esse tema. “É um quadro muito difícil, eu diria até que mais difícil que a reforma política, por que grande parte dos deputados e senadores tem relações diretas ou indiretas com os meios de comunicação dominantes ali nos seus estados”, afirma. Senador do Paraná pelo PMDB, Roberto Requião exemplifica como a força dos órgãos de comunicação age no Congresso. Ele conta que protocolou um pedido de informação sobre a suposta sonegação da Rede Globo, mas não conseguiu obter os dados. Ninguém queria assinar o pedido. “O poder dessa gente é muito grande. É um poder de intimidação que eles têm pela impossibilidade da defesa das pessoas ofendidas”, afirma. Requião é autor do projeto de lei 6446, que regulamenta o direito de resposta. Aprovado no Senado, o texto aguarda votação na Câmara dos Deputados. “Esse projeto é prioritário para acabar com a liberdade dos órgãos de comunicação de caluniar, difamar e injuriar sem que as pessoas ofendidas possam fazer a sua defesa”, argumenta o Senador. Ele reforça: não se trata de censura, e sim da garantia do contraditório. “Falam que o governo quer controlar a informação, quando na verdade o que se pretende fazer é tornar a informação incontrolável”. A jornalista Bia Barbosa também considera a pressão dos meios como um entrave para os avanços na pauta de comunicação no Brasil. “Eles vão usar todas as ferramentas possíveis para barrar mudanças, inclusive distorcer a questão falando que é censura”, afirma. Como afirmar que é contra a liberdade de expressão regulamentar os artigos sobre comunicação da Constituição Federal (art. 220 a 224), por exemplo? “Se a gente conseguisse regulamentar esses artigos a gente já ia fazer uma revolução. Não precisaria nem de um novo marco regulatório”, explica. Um outro elemento apontado por Barbosa é o fato de que a maior parte da sociedade brasileira não reconhece a comunicação social como um direito, tal como saúde e educação. “O fato da população não reivindicar o seu direito à comunicação também faz com que a tomada de decisões sobre os rumos desse tema no Brasil seja restrita aos bastidores dos pode-

res e permeada pelo lobby das empresas desse setor”, explica. Entretanto, não dá para culpar a sociedade por não ser bem informada sobre essas questões, já que a mídia não pauta esse tema como deveria. Bia afirma que Dilma ainda precisa dizer com todas as letras o que entende por “regulação econômica”, que pode significar a aprovação de leis contra a concentração dos meios, incentivos à produção de conteúdo local ou o fortalecimento de empresas públicas de comunicação, por exemplo. Mas a jornalista tem uma expectativa positiva para o debate das comunicações nesse segundo mandato. O processo eleitoral, e o comportamento dos meios durante ele, teriam sensibilizado Dilma para a importância da pluralidade de vozes no campo midiático, ao ponto de ela ter reafirmado após a eleição a sua vontade de discutir uma regulação para o setor. “Entretanto, sabemos que não vai ser uma agenda fácil e que ela ter essa abertura não quer dizer que as coisas vão avançar”, afirma. Assumir um compromisso com a regulação dos meios pode significar um desgaste muito grande para o Governo Federal, diante da campanha de desinformação a respeito do tema. Entretanto, Bia Barbosa acredita que o enfrentamento é necessário para a consolidação da democracia. “Ou a gente assume que o debate é importante e entende que a gente precisa dar espaço para mais vozes, ou vamos continuar fingindo que está tudo bem e que as decisões no Brasil são tomadas de forma democrática”, provoca a jornalista.

Para Queiroz, o referendo é o limite de participação popular que o Congresso pode convocar. foto de gabriel Fabri

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URBANISMO

Os planos que não fizemos Estética dez, praticidade zero: o Plano Piloto não foi planejado para abrigar a Brasília de meio século depois. Por Ana Carolina Siedschlag

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MARCEL GAUTHEROT/IMS

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URBANISMO sessão

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ra 4 de abril de 1955 na cidade de Jataí, sudoeste de Goiás, quando o então candidato à presidência pelo PSD, Juscelino Kubitschek, chegou em um bimotor por volta das 10 horas da manhã. O mineiro risonho foi recebido com fogos de artifícios, cumprimentos e a curiosidade de cerca de mil dos doze mil habitantes do pequeno município, que aguardaram na pracinha do centro da cidade o comboio que levava o candidato a um pequeno galpão onde discursaria para cerca de 200 pessoas. Entre elas, Antônio Soares Neto, o Toniquinho da Fármacia, então com 28 anos. Foi ele o responsável por tirar da boca do futuro presidente do Brasil a primeira declaração de que Brasília sairia do papel e seria construída ali perto, a 527 km de distância. A surpresa foi grande por parte da oposição, dos jornalistas e da própria base aliada. Das trinta metas apresentadas no lançamento da candidatura, a 31ª foi revelada naquele comício, ainda que segundo o livro O Essencial de JK, de Ronaldo Costa Couto, a proposta vinha sendo analisada desde de 1946 e passou pelos estudos de engenheiros anos antes do anúncio. Segundo Couto, os oposicionistas só não se manifestaram porque não acreditavam que a construção sairia em menos de quatro anos e não queriam um tumulto político. Para a alegria do

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O monumento Candangos na Praça dos Três Poderes é uma homenagem aos trabalhadores que construíram Brasília e acabaram nas periferias da região administrativa.

jornalista da oposição, Carlos Lacerda, a proposta não só foi anunciada como também moveu esforços para o início do planejamento a partir de 1956. O Tribuna da Imprensa foi o jornal mais crítico à transferência da capital para o Planalto Central. Os motivos giravam em torno da dita afobação do futuro presidente em consolidar o Brasil como país moderno e avançado, atropelando o orçamento necessário para a construção, e diziam ser insensata a ideia de levar a capital para o interior do Brasil. Argumentavam que nos Estados Unidos, Washington estava perto de Nova York e não “nos cafundós de Nevada”, como disse o historiador João Camillo de Oliveira Torres em artigo publicado no jornal em 1956. Eleito presidente, JK anunciou em setembro do mesmo ano a criação da Companhia Urbanizadora da Nova Capital, responsável pelo edital do concurso de março de 1957 que escolheria o projeto do Plano Piloto da cidade de Brasília. O documento de cinco páginas previa os passos a serem seguidos pelos arquitetos e urbanistas interessados em participar do concurso. Teriam que apresentar uma previsão da origem dos recursos de abastecimento de água, energia e demais itens essenciais à população e calcular uma previsão de habitantes que a cidade suportaria. O projeto escolhido pelo júri foi o do arquiteto Lúcio


MARCEL GAUTHEROT/IMS

A prática de esportes náuticos, a pesca e a presença de banhistas passaram a ser incentivados após a despoluição total do lago no final da década de 1990.

Hibridismo O Distrito Federal é estado e município ao mesmo tempo. O Legislativo, por exemplo, leva o nome de Câmara Legislativa, uma mistura dos nomes das duas instâncias presentes nos municípios e estados, respectivamente. É formado por 31 Regiões Administrativas, sendo Brasília a RA I, Gama a RA II, e assim por diante. O Plano Piloto de Lúcio Costa é um pequeno pedaço da RA I e as ditas cidades-satélites são RAs ao redor da capital federal.

Costa, formado pela Faculdade de Belas Artes do Rio de Janeiro. No documento, Costa começava declarando seu desinteresse em participar do concurso, sendo o projeto apresentado uma simples solução bolada por ele: “Não pretendia competir e, na verdade, não concorro – apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta.” Segundo o arquiteto, urbanista e professor da Universidade de Brasília, Frederico Flósculo, esse projeto eleito pela comissão foi o único dos 26 ins-

critos que não cumpriu com todas as exigências do edital. O professor diz que por antecipar unicamente a parte estética da cidade, não pode ser chamado de planejamento. “Está mais para um manual de etiquetas das cidades. Por não prever horizontes de futuro, é muito difícil de mudar.”

O ano em que Brasília fedeu A capital federal está localizada na região onde nascem os rios que compõem as três maiores bacias hidrográficas do Brasil, a Amazônica, a Platina e a do São Francisco, e, ainda assim, a secura do cerrado é vislumbrada a cada intervalo de prédios que permite uma olhada no horizonte. Os pulmões agradecem à ideia de se construir lagos e espelhos d’água artificiais pela cidade e as chuvas de dezembro não permitem sentir o calor prometido por aqueles que passaram antes pela capital federal. Uma das fontes de umidade do ar, o lago Paranoá, foi concebida em 1959 e é paisagem do Palácio da Alvorada, moradia da presidente da República. Uma volta pelo terreno do edifício permite constatar que a calmaria do lago enche os olhos e tenta os visitantes a se refrescarem nas águas geladas. A visão romântica, entretanto, nem sempre foi assim. “Só foram pensar em planejar Brasília quando a ci-

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sessão

5.8 salários mínimos mensais é o Salário médio

R$ 63.020,02 PIB per Capita

2.852.372 População

dade fedeu”, conta o professor Flósculo. Para evitar que o esgoto da cidade fosse lançado bruto no lago, foram construídas na época de JK duas unidades de tratamento de água, uma no sul e outra no norte. Entretanto, um estudo realizado entre os anos de 1976 e 1977 por Marco Aurélio Martins de Almeida, mestre em Ecologia pela UnB, mostrou a ineficiência do sistema, que era ineficiente na reciclagem da água. Por conta do excesso de dejetos humanos lançados pelo sistema de esgoto, o lago sofreu um processo de hipereutrofização, um aumento da carga de nutrientes como nitrogênio e, no caso do lago Paranoá, fósforo, o que gerou a proliferação de algas que causavam mau cheiro ao apodrecer. Em 1978, a situação chegou ao ápice: o cheiro das algas chegou ao Palácio da Alvorada e a situação do lago foi colocada como desastre ambiental. Em novembro do mesmo ano, o Correio Braziliense estampava “Brasília fede” na matéria que detalhava a desvalorização imobiliária em volta do lago e consolidava o fenômeno como tragédia ecológica. A solução veio através de um planejamento da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) que, em parceria com comunidades científicas da Suécia, Japão e África do Sul, iniciou um programa de canalização e tratamento do esgoto da

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capital federal. A ocupação urbana em volta do lago foi regulamentada e a empresa executa um programa contínuo de avaliação da qualidade da água e disponibiliza online com um mapa da balneabilidade do lago atualizado a cada quinze dias.

Estética x praticidade “Brasília é uma cidade estranha”, comenta a correspondente do Estadão, Lisandra Paraguassú. Gaúcha de Porto Alegre, a jornalista levou algum tempo para se acostumar à falta de calçadas na cidade. “Foi construída para carros, principalmente na região do Plano Piloto”. A unidade federativa abriga hoje 2,6 milhões de habitantes e um carro para cada duas pessoas. Estavam registrados no Detran do Distrito Federal em 2013 1,1 milhão de automóveis, quase o triplo do início do século.

O taxista morador da região administrativa de Sobradinho, Flávio Pereira, chegou da cidade mineira de Uberlândia há 18 anos. Reclama que nos últimos anos, o percurso de sua casa a Brasília aumentou em meia hora por conta dos congestionamentos nas periferias do Plano Piloto. Arnaldo Manera, morador da região do Jardim Botânico e aposentado pelo Banco do Brasil também reclama: “Com essa facilidade em com-


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Escolas de Ensino Médio

5.294

Leitos para internação

Para o professor Frederico Flósculo da UnB, Brasília não foi planejada. FOTO DE LARISSA BALTAZAR

prar carros, ninguém incentiva o transporte público”. O sistema viário do Plano Piloto foi fundamentado para que não existissem cruzamentos, as chamadas

1.099.719 Número de automóveis

tesourinhas. Funciona como um trevo de quatro folhas em que duas pistas, ida e volta, cortam o eixo central. Para fazer o retorno, é preciso sair à direita em uma folha do trevo, contorná-la, passar por debaixo da pista em que estava e subir na folha da esquerda. Sendo assim, há uma espécie de viaduto em todas as tesourinhas da cidade. Em dezembro, é aberto o período de temporais no Planalto Central, com tempestades geralmente no final do dia em que chegam a despencar 45 mm em poucas horas, cerca de um quinto do total previsto para os meses anteriores. O resultado disso são a grande maioria das tesourinhas da cidade alagadas e intransponíveis principalmente nos horários de pico. Em palestra no 5º Mandato dos Conselhos das Cidades de 2014, a professora da Universidade Estadual de São Paulo, Renata Cardoso Magagnin, expôs que uma região do porte de Brasília tem como desafio reunir projetos de infraestrutura, habitação e transporte público. “Não adianta uma cidade bonita, bem arborizada, mas que esteja truncada no seu próprio projeto.” A ideia seria reunir os pontos estéticos de Lúcio Costa com um gerenciamento de crise munido de projeção para os próximos 50 anos. “A ideia dele foi boa, mas a execução um pouco falha. Precisamos de planejamento para que Brasília não pare.”

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ENSAIO

FOTOS / Claudia Rossi

palรกcio do planalto


Ana Carolina Siedschlag


Juventude na dianteira dos debates humanitários Jovens de todo o Brasil se reúnem em Brasília para debater temas da agenda de desenvolvimento mundial Por Glória Branco

25% da população mundial é composta por jovens 20

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165 milhões de pessoas na América Latina e Caribe têm de 10 a 24 anos


No Brasil, 1 a cada 5 jovens não trabalha ou estuda 70% são mulheres

“Sou Diego Callisto, tenho 25 anos e sou de Juiz de Fora, Minas Gerais. Sou formado em Relações Internacionais e membro da Rede Jovem Vivendo com HIV/ AIDS, faço parte do Fórum Construtivo Juventude do Naids e atuo com alguns pactos, coalizões, fóruns e movimentos que trabalham especificamente com a agenda Pós2015. Eu vivo com HIV há sete anos, fui diagnosticado com 18 anos e desde então faço terapia retroviral. Meu ativismo começou nessa mesma época e minha luta é pela defesa dos direitos de pessoas vivendo com HIV/ AIDS e também pelos direitos sexuais e reprodutivos da população jovem.” Existe hoje no mundo uma população mundial de 1,8 bilhão de jovens, o maior número já registrado na história segundo dados do relatório Situação da População Mundial 2014, divulgado em novembro pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Para os países em desenvolvimento, os jovens podem representar um grande impulso no crescimento econômico desde que sejam feitos investimentos que promovam a proteção dos direitos dessa população. Assim como Diego que aos 25 anos já tem um reconhecido envolvimento em causas humanitárias, 45 jovens de todo o Brasil se reuniram em Brasília, entre os dias 2 e 4 de dezembro, para o II Seminário Juventude e Política Internacional, evento organizado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), pelo Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE) e Secretaria Nacional de Juventude (SNJ). Jovens de diversos movimentos sociais, alguns inclusive com experiências em fóruns internacionais, se reuniram durante quatro dias para trocar experiências, dúvidas e debaterem temas relevantes às pautas internacionais como a agenda Pós-2015 que dá continuidade as ações iniciadas em 2000 como os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Além disso, o Seminário teve como missão preparar os jovens para participarem de fóruns e reuniões internacio-

nais defendendo os temas relacionados à juventude. Erradicação da pobreza, liberdade de gênero, empoderamento das mulheres, mortalidade infantil, melhores condições para acesso a saúde, combate a AIDS e melhoria no tratamento, entre outros assuntos foram discutidos e serão considerados nas diversas consultas globais realizadas pela ONU para refletir sobre os novos desafios do desenvolvimento a partir da criação do Programa de Jovens Delegados, uma iniciativa que espera garantir poder articulatório da juventude dentro da delegação oficial do Brasil na Assembleia Geral da ONU e em outros processos internacionais. “A nossa ideia é reunir jovens lideranças para abordar a participação da juventude, de forma a propiciar sua articulação, facilitar o intercâmbio de experiências e fortalecer sua incidência em processos e em eventos internacionais”, confirma a Oficial de Programa da UNFPA e antropóloga, Anna Cunha.

Desfazendo preconceitos O seminário ainda contribui para romper com as barreiras do preconceito que impede um maior empoderamento da juventude. Nossa tendência é condicionar os jovens à rebeldia, irresponsabilidade e despreocupação. Para mudar esse cenário, em 2005 foi criada a Política Nacional de Juventude e a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) que formulam, coordenam e articulam políticas públicas para a juventude, além de promover programas de cooperação com organismos nacionais e internacionais. Ambas atuam em espaços da ONU, nos Blocos Regionais como Mercosul e Unasul, entre outros. “Procuramos fazer um trabalho de sensibilização com outros órgãos do governo sobre as especificidades das questões da juventude. Tratamos do diálogo entre gerações para produzir síntese entre adultos e jovens na busca de diminuir preconceitos dentro e fora do governo sobre a participação da juventude”, afirma Bruno Vanhoni, Assessor Internacional da SNJ. Em 2013, o governo brasileiro estabeleceu o Es-

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reportagem

nadas aos jovens favorecem o desenvolvimento integral, garantindo igualdades de acesso e oportunidades. Um exemplo disso é o Plano Juventude Viva que integra diferentes políticas públicas e parcerias com estados e municípios para desconstruir a cultura de violência contra os jovens, especialmente contra a juventude negra. “Segundo o mapa da violência, o Brasil tem hoje cerca 50 mil pessoas que morrem por homicídio e desses, 30 mil são jovens. Estamos vivendo um contexto que pede avanços em políticas que deem oportunidades aos jovens, em especial aos negros e pobres que vivem nas periferias”, explica Amatneeks.

“Sem o diálogo nenhum dos grupos consegue se entender e enxergar o outro”, Ivens Reyner

Em 2012, os jovens entre 15 e 29 anos foram as principais vítimas de homicídios. São cerca de 80 jovens assassinados a cada 24 horas. Entre os mortos, 93% são homens e deste, 77% negros. São números que ultrapassam os de zonas de guerra. Dados da Anistia Internacional do Brasil

tatuto da Juventude (Lei 12.852/13), uma imensa conquista para os jovens e um legado para o país tornando possível a realização de políticas especialmente dirigidas às pessoas entre 15 e 29 anos, além do pleno exercício da cidadania dos jovens. Severine Macedo, da Secretaria Nacional de Juventude, salienta que o Estatuto da Juventude é fruto da luta de muitas gerações e apresenta novos desafios para conquistar um país mais justo. Para Murilo Amatneeks, ex-secretário executivo do Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE) e do Comitê Interministerial da Política de Juventude, ambos ligados a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), pensar no desenvolvimento global é refletir no papel da atual geração de jovens. “O Brasil tem uma preocupação com o papel dos jovens no desenvolvimento global e isso passa por garantir condições equitativas para novas oportunidades”. Murilo reforça que as atuais políticas públicas direcio-

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As circunstâncias mundiais têm mostrado que o momento para empoderar a população jovem é propício para legitimar os direitos sociais da juventude. A cada ano as conquistas de espaços nos fóruns e conferências globais fomentam discussões e debates que os jovens são capazes de solucionar, já que abordam sua própria realidade. “O Brasil está passando por um bônus demográfico e os jovens são os personagens principais desse cenário. É importante aproveitar esse imenso potencial produtivo dessa juventude, bem como promover garantias de direitos”, reforça Anna Cunha. Trabalhar habilidades relacionais e comunitárias, ensejar liberdades de escolha com a promoção da educação integral para sexualidade preparando os jovens à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis ou para evitar uma gravidez não planejada tratando os jovens como sujeitos de suas próprias vidas, investir na inserção de profissionais com qua-


Cerca de 80 jovens são assassinados a cada 24 horas ao redor do mundo 93% são homens 77% são negros

lidade no mercado de trabalho e também repensar a questão de gênero, minimizando as diferenças entre mulheres e homens no ambiente profissional são os desafios que os ativistas das causas da juventude visam combater na agenda de desenvolvimento.

Momento único O seminário realizado em Brasília se configura como uma oportunidade única de amplificar a voz e a participação dos jovens brasileiros no contexto humanitário mundial. Para o país, estimular jovens engajados para debater temas desenvolvimentistas é tornar o Brasil um protagonista nas pautas da juventude. “O Brasil tem ganhado respeito por organizar iniciativas históricas da juventude, hoje somos a vanguarda nesse processo de elaboração de políticas da juventude. Porém, ainda há muito a ser feito”, reforça Murilo Amatneeks. Os jovens compõe um capital humano estratégico, inovador, criativo, empreendedor e com potencial de liderança. Entretanto, para isso é necessário encontrar condições favoráveis para uma vida íntegra em todos os aspectos, com garantia de direitos e plena liberdade para alcançar todo seu potencial. “O Brasil tem a sétima maior população mundial de jovens e inúmeras oportunidades de fortalecer o desenvolvimento econômico e social dos países”, afirma Anna Cunha. Na América Latina e no Caribe, vivem mais de 165 milhões de pessoas entre 10 e 24 anos de idade, de uma população total de 618 milhões. Os países da região estão em diferentes estágios da transição demográfica e os investimentos no desenvolvimento de jovens têm ajudado no crescimento econômico. No entanto, fatores socioculturais são percebidos pela maioria dos países como as barreiras importantes a serem vencidas na construção de políticas em favor dos jovens.

É justamente a garantia de acesso aos recursos e serviços de saúde sexual e reprodutiva, de uma vida sem violência e discriminação, além de uma educação de qualidade, as principais preocupações dos jovens no Brasil e no mundo, segundo o relatório Situação da População Mundial 2014. O relatório destaca uma preocupante estatística: a segunda causa de mortalidade entre jovens de 15 a 19 anos está relacionada à gravidez e ao parto, o que está intrinsecamente relacionada à desinformação e falta de acesso à saúde. Essa também é a opinião de Ivens Reyner, mineiro nascido formado em Ciências Sociais. O jovem atualmente com 24 anos afirma que sem a participação da juventude nos fóruns multilaterais, as questões dessa população sequer seriam analisadas. Sua militância começou com 12 anos, ainda na pré-adolescência se engajando no trabalho de educação sexual. Uniu-se ao grupo Movimento de Adolescentes do Brasil (MAB) e passou a conhecer mais sobre temas como aborto, direitos sexuais e reprodutivos e diversidade sexual. O trabalho de Ivens e de seus colegas do MAB influenciaram os gestores públicos de Lavras na criação da Secretaria Municipal de Juventude. Atualmente, Ivens faz parte do Coletivo Mangueiras – Jovens feministas por direitos sexuais e reprodutivos e da Youth Colalition for Sexual and Reproductive Rights, uma organização liderada por jovens e trabalha no campo da incidência política para que os acordos e tratados internacionais sejam cumpridos pelos países. Ivens foi um dos 45 jovens que participou do II Seminário Juventude e Política Internacional e tem se destacado por ser uma das lideranças jovens mais proeminentes nos debates sociais. “Considero crucial que haja representação de jovens nos fóruns de discussão. Diálogo é fundamental para gerar troca de experiência e conhecimento entre ativistas, ONU, governos e movimentos sociais. Sem o diálogo nenhum dos grupos consegue se entender e enxergar o outro”, conclui Ivens.

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Cabo de gu Estados, munic Especialista critica falta de debate para aplicação do dinheiro público e disputa ambiciosa pelo poder da gestão dos recursos Por DAIANA CONSTANTINO

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uerra entre cípios e União Propostas dos senadores Luiz Henrique da Silveira (PMDB) e Lúcia Vânia (PSDB) têm chances de serem votadas antes de terminar o ano pelo Senado

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antiga a disputa entre Estados, municípios e União pela ampliação de seus poderes para administrar o dinheiro que chega aos cofres públicos. Há anos, milhares de propostas relativas à distribuição de recursos e de competências aguardam apreciação do Congresso Nacional Senado Federal e Câmara dos Deputados - enquanto novas sugestões de leis sobre o tema são constantemente criadas. No centro do debate da agenda federativa brasileira, está posto esse embate que, segundo parlamentares, pretende alcançar o equilíbrio na distribuição das finanças e no direcionamento das responsabilidades entre os três entes do País. Há dois projetos de lei, entre os milhares que tramitam no Congresso, sobre o assunto. Uma das propostas, de autoria do senador Luiz Henrique da Silveira (PMDB -SC), prevê o abatimento de 20% das dívidas dos Estados e dos municípios com o governo federal. De acordo com o texto do projeto, o valor equivalente ao percentual sugerido deve ser investido em programas de investimentos nas áreas da educação, da saúde, da segurança, da infraestrutura, da inovação e da tecnologia. Segundo o propositor da medida, a intenção é propiciar uma folga nas despesas dos entes e oferecer condições reais de investimento em obras e serviços para a população. No projeto, Silveira argumenta que a iniciativa “permite que os envidados voltem a investir, criando empregos e renda para a população.” Similar a iniciativa do peemedebista, a proposta, assinada pela senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO), prevê a consolidação de critérios para o refinanciamento das dívidas dos Estados, solicitando à União a implantação de mecanismo para permitir o abatimento de despesas com alguns investimentos em obras infraestruturais. No projeto, a senadora justifica que os investimentos estaduais dependem da produção de resultados primários (definido pela diferença entre receitas e despesas do governo, excluindo-se da conta as receitas e despesas com juros) suficientes para saldar a dívida estadual com a União. “Essa restrição é perversa, uma vez que a ampliação da infraestrutura certamente permitirá uma aceleração do crescimento, que, por sua vez, ampliará a arrecadação tributária subnacional (captação de impostos nos Estados e nos municípios) e, consequentemente, a capacidade dos Estados para pagar sua dívida”, argumenta a senadora, no texto. Segundo Silveira, projetos como esses fazem parte do forte movimento em busca de uma saída para o agravamento da crise da dívida. O peemedebista ale-

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ga que o abatimento para obras concretas impactam diretamente a vida da população. “Creio que terá um impacto positivo e evidentemente de melhoria de condição de vida do nosso povo.” No entanto, as medidas mencionadas podem ter resistência por parte do governo federal. Silveira recorda que a Secretaria do Tesouro e o Ministério da Fazenda já manifestaram que a medida contraria a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e que não pretendem alterar os contratos de negociação da dívida dos Estados e dos municípios com a União. Essa legislação, instituída em 2000, estabelece condições e exigências aos gestores públicos para controlar os gastos dos Estados e dos municípios na busca do equilíbrio orçamentário e fiscal. Outro contraponto é feito pelo organizador do livro Governos Estaduais no Federalismo Brasileiro - Capacidades e Limitações em Debate, lançado no dia 2 de dezembro, em Brasília, o pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Aristides Monteiro Neto. Ele analisa que, no momento, não há espaço fiscal para as propostas feitas pelos senadores porque duas medidas com finalidade similar acabaram de ser aprovadas pelo Congresso. Mas, Monteiro Neto disse que não descarta a possibilidade delas serem bem recebidas futuramente pelo governo federal. Segundo o pesquisador, a partir de 2015, os governos estaduais e municipais já terão um considerável alívio nas contas financeiras devido à recente aprovação do projeto que aumenta o percentual no repasse ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e da proposta que define um novo indexador da dívida dos Estados e prefeituras. “Com essas duas medidas ganham Estados e municípios”, enfatizou. Quanto ao projeto de Silveira, Monteiro Neto disse que a iniciativa precisa apontar critérios para sua regulamentação. Segundo ele, a medida deve estar em harmonia com a política pública nacional e com as necessidades da população do País. “Acredito que a partir de agora o governo federal não vai permitir mais folga fiscal. Como o governo vai precisar fazer o superávit de 1,2 no próximo ano, uma parte disso vai ter que contar com os governos estaduais e municipais.” Sob o ponto de vista da execução das políticas públicas, o pesquisador admite que há, sim, concentração de recursos no governo federal . Contudo, ainda segundo ele, é possível fazer uma maior redistribuição. “Mas não deveriam ser entregues [arrecadações] de uma só vez. Abrir mão de um determinado valor da carga tributária


As propostas Luís Henrique PMDB-SC

Projeto de Lei Complementar 355/2011

Projeto já tramitou pelas devidas comissões e pode ser enviado para votação em plenário Medida autoriza a União a abater do saldo devedor da dívida pública mobiliária (endividamentos gerados por recursos captados por meio de contratos e convênios para realização de obras e de ações) dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios o valor equivalente a 20% para programas de investimentos.

[por exemplo] para os municípios é uma medida equivocada porque governos municipais e estaduais não têm estratégias [para aplicação da verba pública]. Por mais que reclamem não têm estratégia.” Na visão do senador Silveira, as propostas da agenda federativa do País deveriam ser prioridade para os parlamentares. “Eu sou mais ou menos uma voz clamando no deserto. É preciso mudar também a cultura do Congresso para que o tema descentralização e pacto federativo seja um tema da agenda dos deputados e dos senadores,” enfatizou o peemedebista. O pesquisador também disse acreditar que falta interesse por parte do Congresso em debater o pacto federativo, previsto na Constituição de 1988, e que determina a divisão de competências e de responsabilidades políticas e fiscais entre Estados, municípios e União. Monteiro Neto defende que o assunto não pode ser discutido apenas a partir de disputas de recursos. “As arenas [Congresso] de discussão estão empobrecidas. São arenas, no geral, que estão olhando para disputas de recursos. [...] A União pode transferir e descentralizar mais recursos, mas tem que continuar condicionando resultados. Não se pode entregar recursos para que um prefeito gaste com festas [por exemplo],” disse Monteiro Neto.

Congresso aprova dois avanços

Lúcia Vânia PSDB-GO

Projeto de Lei Complementar 392/2007

Projeto já tramitou pelas devidas comissões e pode ser enviado para votação em plenário Projeto prevê a implantação de mecanismo que permite o abatimento de despesas com alguns investimentos selecionados.

Segundo a assessoria de imprensa do Senado, depois de os dois projetos serem votados em plenário pelos senadores (considerando a aprovação de ambos), o próximo passo será encaminhar as medidas para a Câmara dos Deputados, onde tramitarão pelas comissões antes de chegarem ao plenário.

Uma das medidas aprovadas pelo Congresso e consideradas um avanço no pacto federativo foi promulgada no dia 2 de dezembro, pelo Senado e pela Câmara. A Emenda Constitucional 84 aumenta em um ponto percentual os repasses de impostos federais ao FPM. Em 2015, conforme a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), serão R$ 2,2 bilhões de acréscimo do montante a ser destinado aos 5.568 municípios brasileiros. Para 2016, o repasse deve chegar a R$ 4,5 bilhões. Embora o reforço ao FPM seja ínfimo diante da dificuldade financeira relatada pelas prefeituras, a medida deve impactar a vida da população. “Quando entra dinheiro para prefeituras, ele vai para o cidadão, vai para a consulta, o transporte escolar. É para o cidadão. E dessa forma são diluídos no orçamento,” enfatizou o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski. Ainda, segundo ele, essa medida é “uma gota d’água no oceano”. “Não deixa de ser um gesto do Congresso, com apoio da presidente que passa a ser uma proposta estruturante, mesmo que pequena. O que não pode continuar existindo são os progra-

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mas, que é a causa de todos o desajuste estrutural.” Ziulkoski critica ações criadas pelo governo federal e que demandam contrapartida financeira dos municípios, como Saúde da Família, transporte escolar. “Todo programa tem de estar focado na questão da descentralização e da desconcentração de poder. Os municípios acabaram em uma situação totalmente de insolvência para não dizer de falência. Programas são criados por normas internas sem aprovação no Congresso e isso que tem que ser criado por lei para definir valores, competências e atribuições.” O novo indexador da dívida dos Estados e dos municípios, de iniciativa do Executivo, também concretizou um avanço na agenda federativa do País. Isso porque, atualmente, as dívidas dos entes com a União têm taxas de juros que variam de 6% a 9% ao ano dependendo do contrato. Com a mudança, a taxa passa a ser de 4%. O novo indexador era uma reivindicação antiga, pois havia temeridade quanto a uma elevação da dívida em mais de 20% ao ano. Com mais dinheiro em caixa, mais investimentos podem ser feitos em saúde, educação e outras áreas essenciais ao bem-estar da população. Os Estados e as prefeituras beneficiados passam a pagar parcelas mensais com valores menores das dívidas à União. Com essa medida, parlamentares disseram que o governo federal corrige uma injustiça.

Para Paulo Ziulkoski, aumento no repasse ao FPM é “uma gota d’água no oceano”

Por dentro do pacto federativo De acordo com a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), o País está em desiquilíbrio federativo e isso afetou gravemente os municípios no período dos últimos dez anos. Segundo dados apresentados na revista anual da entidade, entre os anos de 2000 e 2013, a receita das cidades aumentou, mas, ao mesmo tempo, houve crescimento das despesas. O mesmo fenômeno ocorreu com os Estados. Segundo Monteiro Neto, apesar de os governos estaduais terem tido suas receitas ampliadas, “o ciclo de crescimento da economia brasileira que vem desde 2005 não propiciou a expansão do crescimento dos Estados”. Uma das explicações pode ter a ver com a ampliação de responsabilidades por parte dos Estados nas áreas da educação e da saúde, por exemplo. Por outro lado, Monteiro Neto disse que, de 2005 para cá, os governos ganharam mais opções de consórcios e convênios com a União para a execução de serviços e ações destinadas à população. Mas, ain-

da conforme ele, o problema seria que os Estados, assim como os municípios, não estão preparados tecnicamente para captarem recursos disponíveis pelo governo federal. Para entidades municipalistas, o descompasso no pacto federativo é apontado como a raiz do problema da economia. “A União arrecada muito na parte fiscal e acaba retendo dinheiro e acaba não passando para os municípios de forma descentralizada como a Constituição preconiza”, avalia o presidente da CNM. Nesse sentido, o secretário-executivo da FNP, Gilberto Perre, afirma que sempre será preciso rever o pacto federativo para formalização de políticas públicas para atenderem as necessidades atuais da população. O ideal, conforme defende o senador Silveira, é que “o novo pacto federativo reduza de 60% para 50% a concentração da arrecadação de impostos na União, aumentando de 23% para 30% nos Estados, e nos municípios, para 20%”.

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palรกcio da alvorada Fotos / Claudia Rossi

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Um novo território para a nação dos refugiados e deslocados O Brasil abre suas fronteiras e se destaca internacionalmente Por Elisa Espósito e Glória Branco

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les andam de fronteira em fronteira, buscando um lugar seguro para reconstruir suas vidas. Homens, mulheres e crianças que acuados pelo medo, perseguição ou fome saem em travessias pelo deserto, pelo mar e por longas estradas a fim de encontrar um novo território que renove as suas esperanças. Alguns encontram proteção em abrigos de reassentamento, mas isso não restaura a dignidade de quem só tem incertezas sobre o futuro. Dependentes de ajuda humanitária, esses indivíduos sonham em reco-

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meçar em outro lugar onde o ódio, a violência, a guerra e a miséria não determinem seus destinos. Um plano de ação mais amplo para ajudar refugiados, deslocados e apátridas na América Latina e no Caribe foi divulgado nos dias 2 e 3 de dezembro, em Brasília, durante o Cartagena+30, evento da Organização das Nações Unidas (ONU). A discussão visa refletir sobre os progressos realizados, os desafios de proteção que o continente atualmente enfrenta e os vazios que possam existir no regime contemporâneo de proteção internacional, abor-


dando-os de forma pragmática, flexível e inovadora. O nome do evento é uma referência ao 30o aniversário da Declaração de Cartagena sobre Refugiados que, naquela ocasião, reuniu especialistas governamentais e reconhecidos juristas de diferentes países da América Latina na cidade colombiana de Cartagena das Índias para debater os problemas de refúgio da região. A nova discussão agora no Brasil visa criar a Declaração e Plano de Ação que servirá como um documento comum para responder, nos próximos 10 anos, a união dos desafios humanitários na região. “É um apelo para que se incentive, a nível mundial, a questão dos refugiados, já que cada vez mais pessoas precisam de abrigo e refúgio em outros países, nem sempre próximos de sua fronteira”, explica António Guterres, do Alto Comissário da ONU para Refugiados. Já chega a 51,2 milhões o número de refugiados e deslocados internos, o maior número no mundo pós -2ª Guerra Mundial, segundo dados da Agência da ONU para refugiados (ACNUR). Atualmente, os refugiados, apátridas e deslocados internos formam uma nação e se fossem um país seria o 26°maior do mundo. No último ano, a ACNUR registrou 1,1 milhões de pedidos de asilo, o maior em 10 anos. Em todo o mundo, a nação de deslocados vem crescendo. Desde então, os pedidos de asilo no país crescem exponencialmente, e com dados mais expressivos

nos últimos três anos. Até outubro deste ano, já foram contabilizadas outras 8.302 solicitações. O número de refugiados reconhecidos também aumentou significativamente, já foram aceitos 2.032 pedidos, ressaltando uma presença maior do Brasil no cenário internacional. Segundo Paulo Abrão, secretário nacional de justiça, “apesar de fatores históricos, questões fronteiriças e legislação migratória muito restritiva e que muitas vezes impede a concessão de vistos para entrar no país, a simples demonstração da procura de refugiados ao país é uma afirmação que a imagem do Brasil no exterior é de um país forte e capaz de proteger, por meio de suas instituições, os direitos das pessoas”. Há refugiados de 79 nacionalidades vivendo no Brasil, sendo que muitos latino-americanos solicitam asilo ao país. Em 2014, 1.218 colombianos foram contabilizados até outubro, ficando atrás somente dos sírios. Outros grupos são formados por senegaleses, congoleses, nigerianos, angolanos, bolivianos, entre outros. Na questão de gênero e idade, o percentual de mulheres refugiadas diminuiu de 20% entre os anos de 2010 e 2011 para 10% em 2013. Grande parte dos solicitantes é formada por adultos entre 18 e 30 anos (96%) e 4% dos pedidos são de menores de 18 anos, sendo 38% crianças entre 0 e 5 anos. O Brasil é um dos poucos países que participam

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do Programa do Reassentamento da ACNUR, isto é, acolhe estrangeiros que haviam conseguido refúgio em algum país, mas por algumas circunstâncias precisam migrar para um terceiro. Em 2013, dos 1.154 colombianos que estavam refugiados no Brasil, 360 eram reassentados vindos do Equador. O Acordo de Residência do MERCOSUL possibilitou que colombianos, argentinos, peruanos, paraguaios, uruguaios e chilenos solicitem residência permanente no Brasil e, por essa razão, os índices de pedidos de refúgios entre essas nações têm diminuído. Em 2014, foram aceitos no Programa de Reassentamento refugiados do Sri Lanka e da Síria. Nos próximos anos há pretensões de expandir o programa para um maior número de casos extracontinentais, de modo a oferecer acolhida para deslocados de outras regiões. Os conflitos no Oriente Médio como a Primavera Árabe em 2011, além de guerras no Iraque e no Afeganistão aumentou o número de pedidos de refúgios no mundo todo. No Brasil, a maior população de refugiados é composta pelos sírios: são 1.183 indivíduos que buscam um novo recomeço deixando para trás a escalada de violência que vitimou mais de 150 mil pessoas, entre elas crianças e jovens, após conflitos entre os rebeldes e as forças do regime do ex-presidente Bashar al-Assad. Os libaneses também tem buscado refúgio no país

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e já são 358 indivíduos reconhecidos no Brasil. Os angolanos formam o segundo grupo mais expressivo de refugiados no Brasil, totalizando 1.067 pessoas. O motivo do deslocamento foi a longa guerra civil que durou 10 anos e foi encerrada em 2002. A ACNUR solicitou que fosse cessada a condição de refugiados aos habitantes que deixaram o país já que a situação está estabilizada. O processo está em curso e se espera que o número de refugiados angolanos diminua gradativamente. Os congoleses são os terceiros a pedir refúgio no Brasil, sendo que atualmente 784 pessoas vivem com status reconhecido em território nacional. O Congo passa por uma crise humanitária de grandes proporções em consequência dos embates entre governo e opositores do presidente Joseph Kaliba. Enquanto novas perspectivas de paz não surgem, os congoleses deixam o país em busca de um lugar melhor para viver.

Motivos que levam à fuga As condições fixadas pela ONU para o pedido de refúgio são para “qualquer estrangeiro que possua fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, opinião pública, nacionalidade ou por pertencer a grupo social específico e também por aqueles que tenham sido obrigados a deixar seu país de origem


devido a uma grave e generalizada violação de direitos humanos”. Sendo assim, o refugiado passa a desfrutar dos mesmos direitos dos habitantes locais. Apesar disso, alguns pedidos de refúgio são feitos mesmo que os motivos não estejam de acordo com as condições impostas pela Convenção de 1951. Muitos refugiados atravessam oceanos ou cruzam fronteiras por terra para chegar ao território de países. É o caso dos haitianos que acabam vindo ao Brasil por vias terrestres da América Central. Eles não são refugiados por definição, são imigrantes que recebem um visto humanitário do governo. O motivo que leva os haitianos a buscarem refúgio no Brasil são os conflitos políticos, econômicos e sociais que foram agravados pelo terremoto ocorrido em 2010. Guiados por coiotes, pagam um elevado custo, passando de fronteira em fronteira. Ao chegar em território nacional, procuram por instituições ou autoridades que possam abrigá-los. Na região Norte, em Manaus, não há centros de refugiados, mas a Casa do Imigrante de Jacamim acaba realizando esse papel. Jacamim é um pássaro amazônico que gosta de cuidar de filhotes de outros pássaros e simboliza o papel da instituição, onde é dado a primeira assistência com pequenos recursos, visando a regularização de documentos. Os haitianos são bem acolhidos, mas nem todos os povos recebem o mesmo tratamento. “Muitos acabam

se sensibilizando mais pela questão dos haitianos por conta do terremoto e da visibilidade da mídia. Diferentemente dos colombianos, em que há uma certa desconfiança e muitas pessoas não estão por dentro da guerra [narcotráfico] que eles enfrentam em seu território”, conforme afirma a socióloga e professora da Universidade Estadual do Amazonas (UEA) Lúcia Puga. “Cada vez mais estamos vendo um fenômeno do que chamamos de fluxos mistos, as rotas dos imigrantes não são necessariamente diferentes das rotas dos refugiados. São trajetórias feitas conjuntamente, por indivíduos em ambas as condições. Por isso, para a ACNUR é importante que haja leis menos restritivas aos imigrantes porque também será um benefício aos refugiados”, declara Andrés Ramirez, representante da ACNUR no Brasil. Eventos como o Cartagena +30 tem como papel e desafio desmistificar preconceitos. Quando não é feito o tratamento adequado, com a integração social dos refugiados dentro do país destinatário, o que se observa é a formação de grupos excluídos dentro do seio social e do aumento dos casos de xenofobia. Em razão do preconceito, os refugiados não conseguem empregos e tornam-se cada vez mais marginalizados na sociedade. Sem emprego, a segurança econômica e alimentar do refugiado ficam ameaçadas, pois assim ele não terá como sustentar nem a ele nem a

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sua família. Sofrendo um processo de exclusão duplo, primeiramente em seu território de origem e depois no território de acolhimento. Assim, os direitos básicos são violados, o que pode trazer consequências psicológicas catastróficas. “Quando você vê jovens refugiados e solteiros é uma coisa. Mas senhoras, pessoas com 50 anos, que tinham a vida toda estabelecida em um país e tiveram que abandonar tudo, inclusive suas famílias é outra situação. É uma condição muito dura, as vezes elas não têm nem perspectiva de verem seus familiares novamente”, afirma Lúcia Puga. As consequências psicológicas se manifestam na carência, no medo de ficarem sozinhas e até na falta de afeto, como um abraço. “Eu entrevistei uma moça refugiada que disse sentir falta de um abraço. Os refugiados são pessoas muito solitárias, não tem ninguém.”, completa Lúcia. Por conta dessa fragilidade psíquica, muitos são expostos à condição de trabalho escravo e sofrem violência.

O direito dos refugiados O refúgio é um direito dos estrangeiros garantido pela Convenção de 1951 estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) e, no Brasil, após ratificação da lei 9474/ 97 e a criação do Comitê Nacional

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para os Refugiados (CONARE). A lei 9.474, de 1997, foi pactuada com a ONU (ACNUR) e a sociedade civil e ampliou o conceito de refugiado, incluindo também a pessoa vítima de violação grave e generalizada de direitos humanos. Ela indica rumos importantes para o trabalho e a assistência ao refugiado, inclusive em relação a sua saúde mental, além da proteção jurídica e social necessárias à integração. A resolução permite que, após 6 anos do reconhecimento do refúgio, o refugiado pode receber visto permanente, caso tenha se integrado na sociedade brasileira e opte definitivamente pela residência no Brasil. A ACNUR também presta auxílio para subsistência, moradia, transporte, mas foca-se principalmente no aprendizado da língua, na capacitação e orientação profissional e propicia acesso ao microcrédito, através de parcerias. “Todos os subsídios necessários são feitos aos refugiados para que eles consigam se inserir na sociedade brasileira”, explica o advogado e professor de Direito Internacional Luís Renato Vedovato*. No entanto, o auxílio em dinheiro é realizado apenas por um período de no máximo dois anos. “O Estado e as autoridades competentes acreditam que dois anos é tempo necessário de adaptação, porém , há casos em que isso não prevalece como verdade”, contesta Vedovato. Um caso recente que se enquadra no que foi dito


pelo advogado aconteceu em Mogi das Cruzes em 2012. Mahmoud Abu Zamaq, de 66 anos, foi obrigado a sair de Bagdá, a capital iraquiana, sob a mira de armas. Vir para o Brasil não foi uma escolha, mas uma necessidade, que já dura 5 anos. Junto com a mulher e dois filhos em um grupo de 57 palestinos, foram incluídos em programa de reassentamento para despatriados. Depois de dois anos recebendo o subsídio prestado pela CONARE e ACNUR, parou de receber. “Com pessoas jovens isso funciona, porque tem condições de arrumar um emprego. Agora alguém com 66 anos [hoje com 68 anos] dificilmente vai conseguir entrar no mercado de trabalho em um cenário diferente do seu país.” Felizmente para a ACNUR não existe desamparados. Por pressões da ONU, o Ministério Público Federal teve que entrar com uma ação para garantir que essa pessoa continuasse a receber o benefício. Este é um pequeno recorte dentre tantos casos que conseguiram um final feliz. Cada caso é singular e avaliado com cautela. “As leis existentes na América Latina e Caribe são as mais completas para refugiados”, afirma o atual Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, Antonio Guterres. “O Brasil é hoje um país exemplar por ter uma das legislações mais avançadas do mundo em matéria de refugiados e também por ter uma prática de proteção particularmente positiva,

exatamente nesse momento em que tantos países adotam medidas restritivas em relação à proteção”, disse. Ele ainda ressalta que “é bom mostrar ao mundo os exemplos que devem frutificar e são merecidos de admiração de todos, como no caso brasileiro”. Embora a maior preocupação esteja na proteção das pessoas e famílias vítimas da violência, não se pode deixar de lado as possibilidades de integração nos países de destino. A participação dos refugiados nos programas do governo são necessárias para que tenham condições de ter uma integração social e econômica. Para tanto precisam ser adotadas novas estratégias que visem a expansão de redes locais de integração, participação e direitos dos refugiados. A proteção dos refugiados deve ser reconsiderada sob a luz de ideias mais humanistas, solidárias e que coloquem a segurança humana acima da segurança dos Estados. “Temos que deixar um mundo melhor do que encontramos”, sintetiza António Cançado, juiz da Corte Internacional de Justiça.

Confira também a matéria que foi publicada no Portal da Revista Fórum

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congresso nacional Fotos / Natรกlia Rossi



Comunicação

80 anos nas ondas do Rádio Em 2015 o programa de rádio Voz do Brasil completará oito décadas no ar. Com mudanças ocorridas ao longo do tempo, o programa busca ganhar público e ter maior interação com os ouvintes. Por Deborah Rezaghi

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e segunda a sexta, às sete horas da noite, qualquer ouvinte que ligar o seu aparelho de rádio, em qualquer emissora, ouvirá os primeiros acordes da ópera O Guarani. Esse som sinaliza que entrou na rede o programa de rádio que em 1995 entrou no livro dos recordes como o mais antigo do país: A Voz do Brasil.

Voltando no tempo... O programa foi criado durante o Estado Novo, de Getúlio Vargas, e o objetivo era trazer notícias sobre os atos do presidente da República e as realizações do governo. Quando foi ao ar pela primeira vez em 22 de julho de 1935 chamava-se Programa Nacional. Em 1938 o nome mudou para A Hora do Brasil e passou a ter veiculação obrigatória, com horário de transmissão às sete da noite. No início do programa apenas o Poder Executivo divulgava suas atividades. Isso durou até 1962, quando a segunda parte do noticiário passou a ser dividida entre o Lesgislativo e o Judiciário. Por determinação do presidente militar Emílio Garrastazu Médici, em 1971 a Hora do Brasil mudou para Voz do Brasil, nome que leva até hoje.

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Mudanças Ao longo do tempo algumas mudanças no programa foram necessárias. Com o passar dos anos o tom “oficialesco” que o programa tinha no período em que foi criado fez com que muitos ouvintes desligassem o rádio nos primeiros acordes de O Guarani, por isso a linguagem teve que ser reformulada. O formato agora é mais interativo e jornalístico do que antes. Grandes mudanças vieram em 1998: a ópera O Guarani, clássica abertura do programa, ganhou novas versões em forró, samba, choro e capoeira. E no início do governo Lula uma mulher passou a fazer parte da apresentação do programa. Essas mudanças, que visaram modernizar o noticiário, não foram bem aceitas por todos. Sula Sevillis, produtora da Voz do Brasil na Rádio Câmara se considera das “antigas” e não aprova as inovações. “Não gosto muito desses modernismos, achava que a locução de abertura tinha que ser até hoje: Em Brasília 19 horas”, diz em referência à mudança na saudação inicial. Hoje o locutor que inicia o programa começa com: Sete da Noite em Brasília. O presidente da EBC, Nelson Breve, afirma que as mudanças ocorridas foram boas e ajudaram a reformular a linguagem da Voz do Brasil e deixá-la


mais leve. Ele afirma que mudanças maiores seriam desejáveis mas difíceis de serem executadas. A maior dificuldade seria do poder Legislativo, porque há 594 congressistas, e fazer um processo de edição desse material não é uma coisa muito fácil. Não ficaria equilibrado”, diz

Estrutura

O rádio foi um forte instrumento de propaganda de Vargas.

Com uma hora de duração, apesar de ser um programa único, a Voz do Brasil é feita por quatro redações diferentes: EBC, Rádio Justiça, Rádio Senado e Rádio Câmara. Os primeiros 25 minutos do programa informam aos ouvintes as atividades do poder executivo, e é feito pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Às 19h25 começam as notícias do poder Judiciário feitas pela Rádio Justiça e que duram 5 minutos. Os 30 minutos finais são divididos entra as notícias da Rádio Senado e Rádio Câmara, que tem 10 e 20 minutos de transmissão respectivamente.

Poder Judiciário

Voz do Brasil foi criada durante o Estado Novo.

Apresentadores da Voz do Brasil: Kátia Sartorio e Luciano Seixas.

Nada de juridiquês. Esse é o lema da Rádio Justiça. Dos três poderes, esse é o que tem menos tempo na programação da Voz do Brasil. Os editores e apresentadores não sabem explicar o motivo de o programa dar um espaço de tempo tão curto para falar da Justiça. O jeito é aproveitar cada segundo desses cinco minutinhos para passar informações de maneira clara e objetiva, de forma que o ouvinte entenda o papel da justiça em seu cotidiano. A apresentadora e editora da Voz do Brasil na Rádio Justiça, Marina Fauth, explica que a Rádio faz um apanhado das pautas nos Tribunais Superiores, nos Tribunais espalhados pelo país, além de trazer um destaque da Suprema Corte. Na reunião de pauta, o que eles levam em discussão é o que pode ser notícia para o ouvinte. “Às vezes uma decisão tomada em um tribunal no Rio Grande do Sul tem a ver com o mesmo caso que um cidadão está esperando julgamento em Minas”, diz. “O importante é que o ouvinte saiba que a justiça existe e que ela está sendo feita”. Para popularizar a linguagem de quem faz o Judiciário, os editores e apresentadores deixam o texto mais leve e fluído. Exemplo: ao invés de utilizar na narração termos comuns no Direito como “impetrou” uma ação, eles usam apresentou uma ação.

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Comunicação

Você pode conferir a matéria em vídeo que foi ao ar no programa Edição Extra, da TV Gazeta de São Paulo

Curiosidade Uma medida provisória permite que o programa vá ao ar entre 19h e 22h. O final da transmissão nunca pode ultrapassar as 22h. As emissoras que ultrapassarem esse horário estarão sujeitas às sanções da Anatel. Projeto de Lei de autoria do deputado Marinor Brito (PSOL - PA) quer transformar o programa em patrimônio cultural imaterial do Brasil. O músico Sérgio Sá fez o novo rearranjo da ópera O Guarani, abertura da Voz do Brasil. Em 1935 é que o programa passou a se chamar Voz do Brasil. O locutor Luiz Jatobá apresentou a primeira edição com esse nome.

Temas que são discutidos na reunião de pauta da Rádio Justiça.

Interação com o público Na época das redes sociais, interagir com o público é essencial para qualquer meio de comunicação. E as redações que produzem a Voz do Brasil sabem disso. Por isso uma equipe de produtores está sempre online.

No Twitter: Voz do Brasil (EBC): + de 100 mil seguidores Rádio Câmara: + de 30 mil seguidores Rádio Justiça: + de 45 mil seguidores Apresentadora da Voz do Brasil na Rádio Justiça, Marina Fauth

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Poder Legislativo

Sérgio Carmargo, que divide a bancada de apresentação da Voz do Brasil com Paulo Otaran.

O Legislativo entra ao ar na Voz do Brasil às 19h30 com a notícias da Rádio Senado. Dez minutos depois é a vez da Rádio Câmara, que encerra o programa. Márcio Sardi, editor da Rádio Câmara, explica que o trabalho de sua equipe consiste em acompanhar o que acontece no plenário e nas Comissões e fazer um resumo do que foi discutido. Para ele, as rádios comerciais e a mídia em geral focam muito a cobertura em um só local: “Há um foco muito grande no que acontece no plenário, quando nas Comissões são discutidos assuntos extremamente importantes”, diz. Sula Sevillis explica que não é fácil entender exatamente o que os deputados querem dizer e traduzir de maneira clara essa informação para o ouvinte. “Os deputados usam muitos números, e uma das nossas funções antes de passar qualquer informação para o ouvinte é checar se esses dados estão corretos”, diz.

Como é feito? Poder Executivo

Paulo Otaran, apresentador da Voz do Brasil na Rádio Câmara.

Redação da Rádio Justiça, no anexo do STF em Brasília.

Essa parte do noticiário traz reportagens e entrevistas. A equipe é composta por 26 pessoas, sendo 5 editores e o restante redatores, locutores, produtores e repórteres. Todos os dias pela manhã, às 11h, há uma reunião de pauta na EBC entre os produtores da Voz do Brasil e a Secretaria de Comunicação da Presidência da República. Nessa reunião eles discutem as pautas que podem entrar no programa. A pauta gira em torno das ações da presidente e os critérios utilizados para saber o que vai ou não entrar variam de acordo com a relevância e o impacto que tal atividade tem. É feito também um monitoramento nos ministérios para saber o que está sendo discutido e o que pode virar uma pauta. Eventualmente ministros concedem entrevistas ao vivo. Nessas ocasiões há interação com os ouvintes e os produtores pedem que eles mandem perguntas pelo Twitter. Na EBC por volta das 18h30 o programa é fechado. Um hora antes de ir ao ar, o apresentador Luciano Seixas grava uma chamada para a TV NBR (estatal) com as principais notícias que irão ao ar no programa. Minutos antes das sete da noite, a apresentadora Kátia Sartorio, que também é editora, ouve e finaliza as últimas reportagens. Correria. Tensão. Um pra lá e pra cá desenfreado. Parece que não vai dar tempo... Mas sempre dá! Assim que começa a tocar O Guarani os dois apresentadores já estão posicionados na bancada e os ouvintes a espera do: Sete da Noite em Brasília.

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Direitos Humanos

Verás que um filho teu não foge à luta O aumento da bancada evangélica no Congresso e o surgimento de grupos anti-aborto prometem frear os avanços pela descriminalização total da prática no país. Por Ana Carolina Siedschlag

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E

ra dia de polêmica no Congresso. Final da tarde e a segunda sessão para a aprovação do reajuste do superávit primário começava na Câmara de Deputados, mesmo com os gritos dos manifestantes que se prostravam desde às 16 horas diante das escadarias que dão acesso ao plenário. A reunião prosseguia e nem sinal de que os seguranças que bloqueavam a escada fossem sair dali, unindo-se aos que brotavam à paisana. Quando os manifestantes foram perceber, 18 homens engravatados bloqueavam a passagem. No meio da confusão de jornalistas, manifestantes com camisas do PSDB e curiosos, um homem jovem que andava para lá e para cá pelo corredor principal da entrada chamava atenção pela batina marrom e o crucifixo pendurado no pescoço. Seguido por um fiel escudeiro, o padre Pedro Stepien se embrenhava por entre a confusão e parecia conhecer grande parte dos manifestantes. Ezequiel Soares, o homem na casa dos 40 anos, moreno e de camiseta com os dizeres “Vida sim” que seguia o padre, explicou sua vestimenta enquanto o companheiro conversava com os primeiros do grupo que tentavam subir as escadas. “Somos a favor da vida e contra a morte dos inocentes.” Depois de alguns cutucões do companheiro, padre Pedro, religioso da Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, conseguiu se desvencilhar de alguns conhecidos e, testa oleosa, sorriso fácil e português arrastado, contou que mora há 10 anos em Brasília. O sotaque gutural dava a dica da origem polonesa. Padre Pedro é diretor nacional da ONG Pró-Vida, um grupo da região administrativa de Nova Gama cujos militantes protestam contra a prática do aborto mesmo nos termos previstos por lei (anencefalia do feto, risco de morte da mãe ou gravidez por estupro). Três crianças acompanhavam o grupo do padre. Olhavam deslumbradas a confusão na escada e, já que estavam todos gritando, brincavam de correr pelos corredores do Congresso. O padre pediu que parassem e o ajudassem a terminar um provérbio. Como não sabiam, as crianças o olharam com os olhos grandes, deram de ombros e pararam para observar o padre conversar. Cutucavam a senhora de cabelos cacheados e rabo de cavalo que acompanhava o grupo ir embora.. O padre, tendo percebido o movimento, testou seus pupilos mais uma vez. Nada de provérbios. “Basta de tantas mortes, de tanta tortura, de tantos assassinatos contra as nossas criancinhas”, declara o padre. Conta que o que falta na vida da jovem que engravida é orientação sexual nas escolas e em casa. Diz não entender porque as mulheres não são levadas a manter

a castidade até o casamento. Os olhos observavam sob o óculos pendurado na ponta do nariz e o discurso saía forte e rápido, como se caso fosse mais devagar, o português escaparia por entre os verbos mal conjugados. O padre propagandeou o movimento que ocorrerá no dia 1º de janeiro de 2015 na Praça dos Três Poderes em Brasília, batizado de O Grito Nacional dos Excluídos pelo Aborto. “Crianças vivas vão defender a vida dos coleguinhas.” Os gritos dos manifestantes foram sumindo pelos corredores do Congresso e só voltaram a ser ouvidos dentro do plenário. Os brados de simpatizantes dos partidos da oposição, DEM e PSDB, que conseguiram entrar através da distribuição de senhas mesclavam-se ao burburinho típico das sessões parlamentares, em que todos querem ser ouvidos mas ninguém parece escutar. O presidente do Senado, Renan Calheiros, parecia ser o único a olhar para os companheiros que discursavam nos microfones. Acima, pendurado na parede preta logo atrás da mesa da presidência, o pequeno crucifixo contrariava a declaração de um Estado laico. As eleições de 2014 definiram a Câmara dos Deputados nos próximos quatro anos como a mais conservadora desde a redemocratização. Conservadora porque os pertencentes a igrejas evangélicas entraram em maior peso, ocupando no próximo ano 80 das 513 cadeiras. Isso significa um aumento de 14% da representação da Frente Parlamentar Evangélica, bancada dos dois deputados federais mais votados no Rio de Janeiro, Clarissa Garotinho, do PR, e Eduardo Cunha, do PMDB. A primeira é filha de Antony Garotinho e já declarou publicamente ser contra o aborto por pensar gravidez como falta de prevenção. O segundo é o responsável por derrubar a Portaria 415, um projeto que regulamentava o atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nos casos de aborto previsto por lei. A Portaria garantiria às pacientes todos os procedimentos inclusos nas Normas Técnicas descritas pelo Ministério da Saúde, englobando exames, medicamentos, curetagem (limpeza do útero), oferta de anticoncepcionais após o procedimento e consultas de retorno para acompanhamento. Estabelecia um custo de R$ 443,40 e a presença de um médico clínico, um cirurgião e um ginecologista por procedimento. A Portaria foi divulgada no dia 21 de maio de 2014 e durou uma semana, sendo revogada no dia seguinte ao encontro do deputado Eduardo Cunha com o ministro da Saúde, Arthur Chioro, sob a alegação de que o ato administrativo apresentava termos ambíguos que poderiam inferir que o aborto é legal no país sob qualquer circunstância.

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Direitos Humanos

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O Estado é laico. Amém!

São crianças como você

O grande número de parlamentares de direita no Congresso preocupa a socióloga Jolúzia Batista. “Não há diálogo. Eles nunca irão escutar o que temos para falar.” Membro da ONG Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o turbante na cabeça e o jeito manso de falar disfarçam a personalidade forte de quem trabalha na causa do aborto desde que deixou a cidade de Natal há 15 anos. Diz não saber quantas clínicas clandestinas estão espalhadas por Brasília porque a fiscalização bateu forte após o caso de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, moradora de Niterói de 27 anos encontrada morta depois de sair de casa para fazer um aborto. Jolúzia não esconde sua aversão pelos membros da bancada evangélica. O principal motivo, diz, é ser contra a defesa de interesses fundamentados em questões religiosas no Brasil, um Estado laico. Para ela, antes de se começar a discutir a legalidade do aborto, é preciso analisar a atuação dos preceitos cristãos no exercício da política no país. O deputado Marco Feliciano, membro da Frente Parlamentar Evangélica mais votado no estado de São Paulo, apresenta dois tipos de Estado e aconselha aos estudantes, principalmente, que os analisem melhor. O primeiro seria o Estado laico, segundo ele perfeito para a nação e defensor de todas as religiões. O segundo seria o Estado “laiscista”, que não confere o direito às religiões de serem professadas. Diz que o argumento de que a religião é usada como motivo para a manifestação contra o aborto é um escape do real motivo: a libertinagem dos jovens apoiada por um governo de esquerda como o do Brasil. Para o deputado, as pessoas devem ser conscientizadas de que a erotização das crianças é sustentada por políticas como as vacinas preventivas a partir dos 12 anos contra o HPV e a distribuição de preservativos em escolas públicas. “É preciso uma consciência, o resgate da família. Nós somos 40 milhões de evangélicos e no nosso meio o índice de gravidez não consensual é zero vírgula qualquer coisa. O que falta ao nosso país é moralidade.”

A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), elaborada em 2010 pela antropóloga Débora Diniz em parceria com o sociólogo Marcelo Medeiros, mostra que das 2.200 mulheres entrevistadas e que já fizeram aborto, 13% pertenciam a igrejas evangélicas, dois pontos percentuais abaixo das pertencentes a igreja católica. N.*, 21 anos, cresceu dentro de uma igreja Batista. Parou de frequentar os cultos quando a irmã caçula confidenciou ser bissexual e a fez perceber o quanto a menina de 15 anos sofreria por conta da orientação religiosa dos pais, caso descobrissem. Leva longe os olhos castanhos quando fala da infância religiosa e diz não concordar com o que os pais acreditam, mas que não suportaria vê-los magoados por conta de suas opiniões. Por isso, momentos depois de relatar o aborto que realizou há sete meses, espanta-se quando a mulher negra de vestido chega por trás da mesa do café e lhe avisa que vai ao supermercado do shopping center. “Sinto muita falta do colo da minha mãe. Queria contar, mas sei que ela nunca me perdoaria”. N. namorava há três anos quando descobriu que estava grávida. O namorado, F., foi quem propôs que a menina pensasse na possibilidade de fazer um aborto. “Ele disse desde o início que apoiaria qualquer decisão minha sobre o meu corpo.” Foi F. quem peregrinou de farmácia em farmácia a procura do Cytotec, remédio proibido pelo Ministério da Saúde. A aplicação acabou não provocando o aborto e o casal precisou emprestar dinheiro para pagar um médico que realizasse o procedimento. Descendo uma das laterais de uma movimentada avenida da Zona Sul de São Paulo, as árvores que enchem as calçadas quase escondem o prédio amarelo de dois andares que abriga a clínica ginecológica particular. Dentro, três bancos de espera e a secretária simpática ao telefone disfarçam mais um dos espaços para a prática do aborto ilegal na cidade. O médico que realizou o aborto de N. é um senhor baixinho de óculos que sorri enquanto cumprimenta. Pede para o assistente de traje social que feche as portas de uma sala de reunião do segundo andar, junta as mãos e mos-

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tra a coragem de quem realiza abortos há 40 anos. Aprendeu as técnicas do abortamento ainda na faculdade de Medicina e resolveu seguir os passos do professor que o ensinou por perceber que as mulheres continuariam a fazer aborto, fosse legal ou não. Diz ter realizado quase 10 mil abortos durante toda sua carreira, inclusive na filha, na época com 17 anos e estudante de medicina. “Fico tranquilo em saber que ela passou pelo procedimento pelas minhas mãos e não num lugar sujo e sem equipamentos.” Gesticulando, defende a legalização por acreditar ser uma questão de saúde pública: “No Brasil, uma mulher morre a cada dois dias por conta de aborto clandestino. É um absurdo que as autoridades varram o problema para debaixo do tapete por pressão das igrejas”. Os 3.500 reais cobrados de N. são uma garantia de que sua identidade será preservada, ainda que o médico modifique os preços quando percebe a condição financeira da paciente. “Tem mulher que chega de Range Rover aqui e tem menina que nem onde morar tem. Por que uma tem que abortar numa clínica limpa perto de casa, com toda a assistência, e a outra tem que tentar sozinha na periferia?” A pesquisa de Débora Diniz revela que 23% das mulheres entrevistadas, o maior índice, tem escolaridade até a 4ª série do Ensino Fundamental. Mulheres sem escolaridade ou fundamental incompleto recebem até ¼ de salário mínimo, o equivalente a 180 reais. Levaria um ano e oito meses para que uma mulher nessas condições, desconsiderando qualquer tipo de despesa, pudesse recolher dinheiro o suficiente para pagar a clínica da Zona Sul de São Paulo. N., moradora da Cidade Tiradentes, conseguiu recolher o dinheiro contando sua história em um blog. Os interessados em ajudar puderam doar quantias por um site, o que sanou a dívida da menina com a amiga do namorado que emprestou o dinheiro. “Fico pensando o que eu teria feito e acho que seria difícil continuar com a gravidez. Eu daria um jeito, da mesma maneira que outras milhares de mulheres fazem todos os dias.”

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ensaio

Ana Carolina Siedschlag

cidade

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Fotos / Claudia Rossi

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direitos humanos

Agentes da Polícia Militar em mais uma das dezenas de operações que ocorrem todos os dias pelas periferias do Brasil.

Salvos pela da Polícia Militar Com mais de quatro mortes causadas por dia só pela PM em confrontos, é mais fácil temer a Instituição do que confiar nela. Isso, é claro, se você for negro e pobre. Amarildo, Rosa e, agora Davi, poderiam contar melhor essa história, se estivessem aqui para isso. Por Nathalia Ruiz

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U

m jovem; uma vida. Dezesseis anos; Bahia. Uma abordagem; um desaparecimento. Uma declaração; dezenas de ameaças. Essas são as peças-chaves que compõem o caso de Davi Fiuza, visto pela última vez às 7h30 do dia 24 de outubro, no bairro de São Cristovão, periferia da cidade de Salvador conhecida pela frequente atuação de “esquadrões da morte”. Segundo testemunhas, os agentes do PETO (Pelotão de Emprego Tático Operacional) e da RONDESP (Rondas Especiais) abordaram o garoto — que conversava com uma vizinha na porta de casa — após uma operação e, na sequência, deram a ordem para que todos os moradores voltassem para suas devidas residências, o que não impediu que, escondidos, acompanhassem o caso: o menino foi amarrado pelos pés e mãos, encapuzado e jogado no porta -malas de um Gol prata não identificado. Após 54 dias de procura incessante — de hospitais a lugares conhecidos como desova de corpos — e inúmeras cobranças das autoridades, tudo que Rute Silva Santos (mãe de Davi e de mais quatro filhas) conseguiu foram mensagens recebidas nas redes sociais e no celular com fotos de mulheres sendo esfaqueadas e estupradas, acompanhadas da seguinte frase: “É assim que a gente faz com mulheres fortes”.

Liberdade de repressão Forte. Característica, para a Polícia Militar, proibida e passível de morte. O motivo? Só eles podem ser fortes. Com uma formação militar que vem desde a chegada da corte ao Brasil, mecanismos como tortura, execução sumária e desaparecimento foram institucionalizados com a Ditadura Militar e, para o desespero da nossa democracia, a lógica nos assombra até hoje: se antes o inimigo era quem fosse contrário ao Golpe, hoje é o traficante, que faz da comunidade seu governo. “E para os policiais, cumprir o serviço é igual a adentrar no território inimigo. Em um campo de batalha, ou você elimina quem não está ao seu lado, ou você é morto“, completa Adilson Paes de Souza, tenente coronel da reserva, de São Paulo, e autor do livro O guardião da cidade - Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares (Editora Escrituras). Nessa estrutura bélica de que é preciso exterminar quem cause desordem ao país e que eventuais mortes são aceitáveis para alcançar tal objetivo, criou-se a ideia que “bandido bom, é bandido morto”.

Policia Militar pronta para entrar em “combate” e “atacar o inimigo”.


direitos humanos O inimigo tem cor e renda Davi, como a maioria dos adolescentes, gosta de esportes e dança. Rute, como a maioria das mães, quer o paradeiro de seu filho desaparecido, mas recorreu às autoridades baianas e, por isso, causou desordem. A eles restou atuações da PM nitidamente classista, racial e violenta — atuações essas que a maioria da classe média não conhece. “Não existe a possibilidade de a Polícia Militar entrar em um bairro nobre da cidade com fuzil, atirando em algum condomínio fechado para ir ao centro do crime organizado. Entretanto, esse tipo de prática é completamente recorrente nas favelas”, conta Alexandre Ciconello, advogado e assessor de direitos humanos da Anistia Internacional, do Rio de Janeiro. Isso acontece porque “a Polícia não procura pelas classes média e alta sem um mandato judicial. E como é trabalhoso consegui-lo, ela prefere simplesmente não interferir no tráfico de drogas que acontece nos bairros nobres. É mais fácil apelar para as regiões periféricas e invadir domicílios sob a justificativa de um suposto flagrante que, na maioria das vezes, não existe”, explica Rafael Menezes, defensor público e integrante do Fórum Nacional de Segurança Pública de São Paulo.

Embaixo do saco, os corpos de duas pessoas — mortas pela Polícia Militar durante um confronto no Morro da Penitenciária, Florianópolis (SC). 52

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Então talvez Davi só estivesse no lugar errado e na hora errada? Talvez. Talvez ele tenha sido pego por porte de drogas? Exemplo para os que ousam desafiar a Polícia Militar? Queima de arquivo? Vingança? Cor da pele pura e simplesmente? Talvez. A ideia de um negro estar mais propício a ser assassinado do que a pessoa ao lado dele parece infundada, mas não é. De acordo com dados do IPEA, o fato de uma pessoa ser negra faz aumentar em cerca de oito pontos percentuais a probabilidade de ela ser vítima de homicídio. A análise do Instituto de que mais de 60% dos negros não confiam na Polícia e já deixaram de procurá-la por medo ou represália (contra 40% dos não negros) não é mera coincidência com o dado anterior: “A polícia, ao traçar um perfil racial para a abordagem e identificação dos suspeitos, se torna muito mais um motivo de ameaça do que proteção para a população das periferias, que é majoritariamente negra”, diz Ciconello. A história, do porquê Davi foi abordado ao lugar onde foi levado, ainda está repleta de buracos e incertezas, principalmente pelo fato de “a polícia, em vez de investigar, procurar sempre criminalizar a vítima”, reitera o advogado. Mas uma afirmativa, ao menos, nós temos: nenhum dos motivos seriam justificativas plausíveis para um sequestro.


*por 100mil habitantes

Brasil, onde a polícia mais mata África do Sul

fonte. Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2014

Taxa de homicídios: 30,9* Mortos por policiais: 706

México

Brasil Taxa de homicídios: 24,3*

Taxa de homicídios: 23,7* Mortos por policiais: 1.652

Created by Ana María Lora Macias from the Noun Project

Mortos por policiais: 1.890

O crime de criminalizar as drogas

Educados para não pensar

“Se antes o inimigo era quem fosse contrário ao Golpe, hoje é o traficante, que faz da comunidade seu governo”; “Para os policiais, cumprir o serviço é igual a adentrar no território inimigo”; “É mais fácil apelar para as regiões periféricas e invadir domicílios sob a justificativa de um suposto flagrante”. O debate sobre a regulamentação das drogas é emergente: 26% dos nossos presos foram condenados por tráfico de drogas, as prisões estão inchadas, o número de corrupção policial relacionada ao tráfico cresce cada vez mais, a criminalização do território é clara e o comércio no atacado é disponível para quem quiser bancar. Para Souza, um dos grandes erros que estamos cometendo é reprimir desta forma o tráfico de entorpecentes: “Ao tratar o usuário de drogas como um criminoso, estamos contribuindo não só para a violência policial, mas para a prática de outros desvios, inclusive a de corrupção”. Mas, claro, a regulamentação está muito além da resolução dos problemas pela liberalização do consumo. Além da preocupação com a reformulação do sistema público de saúde — que precisaria pensar em como atender esses dependentes —, é necessário a apreensão do fato de que, embora os números de mortes e de encarceramento pudessem ser diminuídos, o cerne do problema ainda estaria presente: “Nosso sistema de segurança pública atual é o mesmo daquele realizado na Ditadura Militar, inclusive de forma jurídica e legal. Qualquer mudança que não enfrente essa questão seriamente não produzirá os resultados esperados”, enfatiza Souza. Afinal, ainda há 74% dos nossos presos que não se encaixariam nessa medida. É preciso, portanto, repensar o papel da Polícia Militar e o modo pelo qual ela opera, ensinado aos agentes na Escola da Polícia e absorvido por eles como algo absolutamente natural.

Você deve conhecer — ou, talvez, até mesmo acreditar — na premissa de que a base de tudo é a educação. Para Souza, é justamente a formação deficitária dos agentes da PM que causam tanto descompasso quanto à função de zelar pela segurança do cidadão — e não ameaça-la: “Muitos jovens, entre 17 e 18 anos, entram na Escola da Polícia e se tornam assassinos. Isso porque ela é realmente deficiente: as aulas de direitos humanos são escassas, o desconhecimento dos estudantes quanto à sociedade é nítida e, assim, a despreparação para os problemas que irão enfrentar torna-se apenas consequência”. A grade curricular defasada faz com que os alunos estejam mais preocupados com a disciplina e a hierarquia — a começar pelas marchas e prestação de continências —, do que com a construção de um pensamento crítico, baseado na reflexão como antecessora da ação. E, a partir do momento em que tais comportamentos e valores passam da Instituição ao aluno, ele age de acordo com ela sem, nem se quer, lembrar-se explicitamente de tais condutas como regras. Como exemplo recente, basta lembrarmos da declaração proferida pelo deputado Bolsonaro, militar da reserva, na sessão plenária do dia 9 de dezembro: “O dia Internacional dos Direitos Humanos no Brasil é o dia Internacional da Vagabundagem. Os Direitos Humanos no Brasil só defendem bandidos, estupradores, marginais, sequestradores e até corruptos”. Se o político em questão tivesse realmente conhecimento desses grupos e quem são suas vítimas, seu discurso nitidamente militar de tentar criminalizar vítimas e estereotipar classes não teria sido declarado. Mas o aprendizado da Escola e a constante preocupação em demonstrar resultados faz com que discursos como esses e tantos casos como o de Davi sejam considerados, para eles, necessários.

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direitos humanos

Uma luz no fim do túnel Uma polícia completamente descontrolada — fazendo uso desmedido da sua força nociva ao matar qualquer um e a qualquer momento — e a impunidade de seus atos apenas escancaram a deficiência do nosso processo de redemocratização. Embora “tenha havido intensas tentativas de reforma em outros setores da sociedade, não houve no âmbito da segurança pública, especialmente no da atividade policial, quanto à busca de adaptações e novas políticas”, explica Menezes. Mas, na véspera dos trinta anos do fim da Ditadura Militar, uma corrida foi largada e a chegada já parece visível: a PEC 51/2013, proposta pelo Senador Lindbergh Farias (PT-RJ). Com intuito de desvincular as práticas da PM com a do exército, a proposta de emenda constitucional, sobretudo, a reforma das polícias, a começar pela desmilitarização. Somos o sétimo país com maior número de homicídios do mundo por arma de fogo, segundo o Mapa da Violência 2014. A necessidade de ruptura com esse modelo organizacional mantido à imagem e semelhança do Regime Militar é urgente. Há, além disso, a ordenação da instituição em carreira, entre praças e oficiais (Polícia Militar) e delegados e não-delegados (Polícia Civil). Ou seja, a hierarquia — vista quase como uma casta dentro das instituições — daria espaço a premissa de que, estando todos no mesmo patamar de igualdade, poderiam alcançar o mais alto cargo, desde que por mérito. Já o ciclo completo determina que todos os estágios do trabalho (preventivo, ostensivo e investigativo) devem ser desempenhados por uma única polícia, o que eliminaria a cisão entre civis e militares e, claro, estimularia a autonomia profissional e o pensamento na ponta, já que elas deixariam de ter conhecimento apenas de parte da situação para considerá-la em sua complexidade. “Existe uma competição e uma desconfiança mútua entre elas, o que faz com que, em vez de existir troca de informações, uma passe a efetuar as competências institucionais da outra”, conta Souza. É por esse motivo que apenas de 5% a 8% dos

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Violência Policial no Brasil: Breve Resumo, Latuff (2013), revela a distinção de tratamento da PM entre ricos e pobres, mesmo quando em suas atuações mais violentas contra a classe média.

homicídios no Brasil são elucidados, segundo a Associação Brasileira de Criminalística, e há tantos policiais civis indo contra o Ordenamento Constitucional e matando em — literalmente — combate. Outra novidade é o modelo federativo e diversificado, baseado nos tipos criminais e/ou espaciais, como uma polícia estadual destinada exclusivamente aos crimes mais graves ou uma municipal voltada aos crimes de pequeno potencial ofensivo. “Hoje a Polícia Militar faz o tratamento ostensivo focado no tráfico de drogas e armas, enquanto você tem uma série de outros crimes que ficam sem nenhum tratamento e prevenção”, critica Ciconello. Assim, além de considerar as realidades regionais, estaduais e até mesmo municipais diferentes, a proposta ainda dá, pela primeira vez, autonomia aos municípios quanto à segurança pública. A PEC ainda propõe a nomeação de um ouvidor geral — responsável por fiscalizar as atuações da PM —, inclusive na apresentação de candidaturas. Assim, estando presentes os representantes dessas classes mais atingidas — e, consequentemente, vulneráveis —, pela Policia Militar, a impunidade tenderia a diminuir. Além de ser um benefício para própria corporação, como sugere Ciconello: “ Para ela seria incrível criar um sistema de controle quanto a atuação de seus agentes, para evitar o desvio da finalidade da Polícia com que nos deparamos hoje”. Em meio a um golpe aplicado, aparentemente, em cima de outro, nossa Constituição é decepcionante: “A Constituição de 1988 deveria ser elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte, cuja única finalidade seria esta. Em vez disso, vieram pessoas que foram eleitas deputados por influência, que trabalhavam tanto nas suas atividades normais no Parlamento quanto na Constituição, o que não permitiu que houvesse uma discussão de um modelo novo”, critica Souza. Mas propostas alternativas começam a ser traçadas, com a esperança que muitos Davis sejam salvos e a soberania popular e a transparência, finalmente, sejam vistas como elementos primordiais para o exercício de uma democracia que, a passos lentos, espera enxergar a luz no fim do túnel.


Pressão, pressão, pressão

Omitir é mentir

Por parte dos servidores públicos, da mídia, da sociedade. Onde estão os resultados? A diminuição da criminalidade? Como uma máquina, a produção é fundamental e, no desespero de atingir seu nível máximo e responder à pressão externa, apela-se para um resultado ilusório de dever cumprido, mas condizente com seus mecanismos — que nós já conhecemos. Souza relata que os policiais estão sempre submetidos ao estresse constante: “Sem um acompanhamento psicológico adequado para a rotina desses agentes e com o imaginário de que são tão poderosos quanto super-heróis — e, como tal, acreditam que podem fazer tudo para proteger a sociedade do mal — sobrepõem suas condições de inconformismo, estresse, impotência e necessidade de se sobressair no grupo por meio da violência, do uso de armas e do homicídio”. Assim, agentes invadem comunidades e, segundo seus próprios termos, “limpam a sujeira da sociedade”. Apesar disso, a legitimação social parece continuar, em que o cidadão não se mobiliza e o poder público também não.

O Ministério Público ainda não deu devida atenção ao caso de Davi, assim como não dá a centenas e centenas de tantos outros parecidos que acontecem, justificados como “desaparecimento” ou “autos de resistência”, e sem a menor averiguação dos fatos. “Ao chegar no Ministério Público, o destino normal desses processos é o arquivamento. Muitas vezes porque não existem perícias que demonstrem a dinâmica dos fatos como eles realmente ocorreram e, acima disso, por causa da própria ideologia que permeia o Ministério Público de que se ali existe uma morte causada por um policial, é porque aquela pessoa mereceu e o agente está com a razão”, conta Menezes. Como consequência, pelo menos seis mortes ocorrem todos os dias no Brasil durante intervenções policiais. 2.212 só no ano passado. 1.567 causadas pela Polícia Militar. 198 pela Polícia Civil. 447 sem registro. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014 são claros. Se essas pessoas eram inocentes ou se a causa pelo suposto crime tinha a ver com a exclusão e a desigualdade impostas, parece não importar para as autoridades brasileiras, incluindo as da Bahia. Depois de mais de duas semanas de espera, a resposta quanto ao pedido de conversar com o Chefe da Polícia Civil da Bahia Helio Jorge Oliveira Paixão e o Secretário de Segurança Pública da Bahia Maurício Teles Barbosa sobre o caso de Davi veio em forma de silêncio.

Jovem negro agredido na Zona Leste de São Paulo durante uma manifestação quanto à prioridade do Brasil em sediar a Copa do Mundo


direitos humanos Pressão, pressão, pressão

Omitir é mentir

Por parte dos servidores públicos, da mídia, da sociedade. Onde estão os resultados? A diminuição da criminalidade? Como uma máquina, a produção é fundamental e, no desespero de atingir seu nível máximo e responder à pressão externa, apela-se para um resultado ilusório de dever cumprido, mas condizente com seus mecanismos — que nós já conhecemos. Souza relata que os policiais estão sempre submetidos ao estresse constante: “Sem um acompanhamento psicológico adequado para a rotina desses agentes e com o imaginário de que são tão poderosos quanto super-heróis — e, como tal, acreditam que podem fazer tudo para proteger a sociedade do mal — sobrepõem suas condições de inconformismo, estresse, impotência e necessidade de se sobressair no grupo por meio da violência, do uso de armas e do homicídio”. Assim, agentes invadem comunidades e, segundo seus próprios termos, “limpam a sujeira da sociedade”. Apesar disso, a legitimação social parece continuar, em que o cidadão não se mobiliza e o poder público também não.

O Ministério Público ainda não deu devida atenção ao caso de Davi, assim como não dá a centenas e centenas de tantos outros parecidos que acontecem, justificados como “desaparecimento” ou “autos de resistência”, e sem a menor averiguação dos fatos. “Ao chegar no Ministério Público, o destino normal desses processos é o arquivamento. Muitas vezes porque não existem perícias que demonstrem a dinâmica dos fatos como eles realmente ocorreram e, acima disso, por causa da própria ideologia que permeia o Ministério Público de que se ali existe uma morte causada por um policial, é porque aquela pessoa mereceu e o agente está com a razão”, conta Menezes. Como consequência, pelo menos seis mortes ocorrem todos os dias no Brasil durante intervenções policiais. 2.212 só no ano passado. 1.567 causadas pela Polícia Militar. 198 pela Polícia Civil. 447 sem registro. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014 são claros. Se essas pessoas eram inocentes ou se a causa pelo suposto crime tinha a ver com a exclusão e a desigualdade impostas, parece não importar para as autoridades brasileiras, incluindo as da Bahia. Depois de mais de duas semanas de espera, a resposta quanto ao pedido de conversar com o Chefe da Polícia Civil da Bahia Helio Jorge Oliveira Paixão e o Secretário de Segurança Pública da Bahia Maurício Teles Barbosa sobre o caso de Davi veio em forma de silêncio.

Na abertura da Copa do Mundo, Policiais Militares cercaram a região próxima ao metrô Tatuapé, Zona Leste de São Paulo, para a proteger população — branca de classe média e alta que assistia ao jogo.

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Polícia Militar: um verdadeiro exército

11M de habitantes 242 mortes por policiais são Paulo

8.2M de habitantes 8 mortes por policiais Nova iorque

6M de habitantes 283 mortes por policiais rio de janeiro

fonte. Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2014

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ensaio

Fotos / Claudia Rossi

bastidores do programa


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