Linomar Bahia
ReflexĂľes
de uma quarentena
Outra experiĂŞncia de vida na covid-19
Linomar Bahia
Reflexões
de uma quarentena Outra experiência de vida na covid-19
bELÉM 2020
Tenho vivido estes dias em função dos meus pais, Linomar e Dilma. Procuro sair o menos possível, estritamente para assuntos de meu escritório de advocacia que não podem ser tratados pelo meio digital, que utilizo mesmo de casa, ou para alguma compra de emergência em supermercado e farmá- Linomar Bahia Junior cia, em todos os casos guardando os cuidados recomendados, principalmente o uso de máscara e higienização dos locais e objetos por onde passo, inclusive no carro. Cuidados idênticos estão sendo adotados em relação ao meu filho, Dante, que aos cinco anos de idade é mantido em casa, à espera do fim dessa pandemia, sendo entretido com atividades recreativas e com as tarefas que vêm sendo realizadas pela sua escolinha por meio de ensino à distância. Assim, cercando de atenção as pessoas que mais amo e exercendo meu trabalho de advogado, com as limitações e os recursos disponíveis, vou transcorrendo essa fase difícil a ser superada.
Estou dedicando atenção ainda maior do que a rotineira, que já é grande, às pessoas que mais amo meu pai, minha mãe e meus filhos Matheus e Letícia. Ainda maior porque transferi praticamente toda a atividade de meu escritório de advocacia para os sistemas digitalizados e posso ficar quase todo Patrícia Bahia o tempo em função deles, o que antes era impossível pelo corre-corre a Tribunais e reuniões presenciais com meus clientes. Quando estou com eles, é uma festa só, parecendo que as horas passam mais rapidamente, em meio a piadas, divagações sobre fatos do momento e as observações e comentários sobre este momento complicado, principalmente quando envolve saúde e as condições de sobrevivência de milhões de pessoas sem trabalho fixo e precisando de auxílios, como os que o governo está proporcionando, mas longe do que os trabalhadores conseguem produzir com seus trabalhos pessoais.
Espero que essa pandemia passe logo e pare de causar tanta tristeza aos familiares dos que se vão e seja superado o estresse do coronavirus. Todavia, se há algo a usufruir nestes dias de isolamento, é a presença do meu marido, ao meu lado, nas 24 horas do dia, eu zelando pela saúde e dedicação Dilma Bahia ao trabalho, que sempre teve e, ele, preocupado em que eu também esteja bem, enquanto ele cumpre os expedientes remotos das suas atividades e, eu, me movimento nos afazeres domésticos. Gosto de estar com ele, como gosto de estar fazendo as coisas para ele, embora seja econômico nos pedidos, tanto pelo seu jeito de ser de homem fino e cordial que é, como pela tranquilidade com que costuma proceder em tudo. Temos tido outras oportunidades de estamos o dia todo juntos. Nada, contudo, comparável a estes dias que estamos vivendo, inclusive nas refeições, aprofundando ainda mais uma relação às vésperas dos 50 anos de vida em comum. Poderia ser melhor, não fossem a dor e o sofrimento de muitos.
Estou distante, na minha casa em Salvador, onde me sinto ainda mais Bahia pelo honrado nome que ganhei do meu pai. Nem por isso estou distante, graças aos zaps que me permitem ver todo dia como ele está pelas imagens trocadas em celular. Sei, também, das preocupações Thelma Bahia do meu pai para comigo, mas os cuidados maiores têm que ser com ele, pela idade avançada e, por conta disso, estar teoricamente mais vulnerável. Peço a Deus que o proteja e o conduza saudável como sempre foi. Deus também haverá de reduzir a expansão e as consequências do coronavirus, poupando mais vidas e restabelecendo a Paz de que o país e os brasileiros tanto precisamos, aqui, com meu marido e demais familiares, e aos que estão, ao mesmo tempo, tão longe e tão perto.
Apresentação
O
que um jornalista pode fazer, em algum momento ou período em que esteja compelido a ficar sem sair de casa? Certamente o mesmo que sempre fez e gostaria de fazer qualquer profissional na mesma situação, desde, claro, que goste do que faz. Confúcio, em sua China milenar, dizia que, se alguém fizer aquilo de que gosta, não trabalhará um dia sequer. Lembro, meu tempo de principiante locutor de rádio, na pioneira Rádio Clube do Pará, então “a voz que fala e canta para a planície”, havia no estúdio uma inscrição que dizia “rádio só é diversão para quem o ouve. Para quem o faz, é um trabalho como outro qualquer”. Profissionais que gostam do que fazem, principalmente porque escolheram a profissão certa, a despeito das vantagens e desvantagens que dela possa advir, praticamente se divertem trabalhando. O jornalismo pode e deve ser exercido assim, mesmo em momentos de tensão de qualquer natureza, inclusive porque o dinamismo dos acontecimentos e as notícias que geram são fugazes, envelhecendo assim que publicadas. Mudam de sentido e de conteúdo rapidamente, desafiando a que o profissional corra sempre atrás, razão de ser um trabalhador em tempo integral. A notícia para o jornalista, como a doença para o médico e o sinistro para o bombeiro, não usa relógio nem ca-
lendário, podendo acontecer a qualquer momento, a qualquer hora, de qualquer dia. Então, nesta quarentena, resolvi passar o tempo fazendo exatamente o que mais gosto de fazer: jornalismo. A única diferença está no fato de ser eu, meu ambiente doméstico e as pessoas que me cercam de perto - minha mulher Dilma, meu filho advogado Junior e nossa secretária Lúcia, com alguns momentos da presença de minha filha, também advogada Patrícia. Em alguns momentos, minha filha Thelma, que mora em Salvador, Bahia, se integra virtualmente ao grupo, desde o seu apartamento, na capital baiana, ou na casa de praia de Guarajuba, no litoral daquele Estado. Em outras ocasiões, quando não estou cumprindo meu trabalho remoto, pensamentos, ideias e lembranças povoam a minha mente. Quantas coisas poderia lembrar desses anos de vida, desde uma infância e adolescência humilde, abrindo os próprios caminhos e escrevendo a própria história. Tenho saudades dos meus pais e de tantas pessoas próximas que se foram. Mas tenho saudades, também, de quantos amigos, muitos que me ajudaram a chegar até aqui e, outros, pela convivência profissional e moralmente positiva. Às vezes, já gostaria de estar com eles, acaso isso possível fosse.
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PENSAMENTO VIAJA E FAZ PENSAR
E
stamos em “lockdown”. Passamos da terra tupiniquim para o glamour do primeiro mundo, ao menos pelos nomes. O brasileiro sempre adorou o americanismo, mesmo que por inveja, despeito ou modismo ideológico, mas reage quando dizem que sofremos do complexo de “vira-latas”. E continuamos americanizando, nomes de prédios, eventos sociais tipo “café society”, no “blazer” e em tantas outras coisas, menos pelo que representam na realidade e mais, principalmente, porque achamos charmoso. Carmen Miranda, portuguesa abrasileirada, mas com sucesso nos Estados Unidos, foi acusada de ter ficado “americanizada”. O instinto de imitação chegou, nesta pandemia, ao “lockdown”, que apresentadores e entrevistados declinam com indisfarçável capricho na pronúncia. Afinal, do que se trata, ao pé da letra, como é conceituado nas traduções e explicações disponíveis. Segundo o dicionário de língua inglesa Oxford, o significado de “lockdown” se refere a “estado de isolamento ou restrição de acesso instituído como uma medida de segurança”. Pode também ser interpretado como “bloqueio total”
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Torçamos para que a determinação seja atendida e atinja o objetivo. Como, no Brasil dos últimos tempos, ninguém obedece a ninguém, tamanha a desmoralização das lideranças política e social, o cumprimento pelas pessoas ao que contém a palavra, certamente a transformará em algo mais retórico do que prático. Fico imaginando uma cidade deserta, sem viva alma pelas ruas, permitindo que se ouça o discreto ruido de alguma folha de mangueira tocando o chão, e me vêm a memória as imagens de Chernobil. Lá, na então Ucrânia soviética, um acidente nuclear, em abril de 1986, matou os habitantes e, desde então, virou cidade fantasma, onde ninguém se arrisca a viver, transcorridos 34 anos do fatídico desastre.
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Como condenados a caminho do fim
Quantas coisas povoam a lembrança nestes dias de isolamento, embora o trabalho funcional remoto possa consumir grande parte do tempo. A propagação vertiginosa do vírus assassino e a ainda mais vertiginosa divulgação das tragédias que produz, em reportagens, declarações e opiniões, pintadas em cores ainda mais sinistras, quase que colocam os pobres mortais numa posição daqueles que já se viram no chamado “corredor da morte”, a caminho do momento final dos condenados à morte. Parecemos todos na expectativa de que corremos esse risco, arrolados nessa espécie de condenados, aguardando a hora neste outro corredor a que nos têm conduzido os noticiários, entrevistas e toda sorte de matérias que as tevês, rádios e jornais fazem jorrar, incessantemente sobre nós, beirando o prazer em dar más notícias, com toques de sinistrose e impressionante capacidade de gerar pânico e angústia generalizados. Chega a relembrar e pouco faltando para atingir o nível catastrófico a que chegou Orson Welles, na ficção sobre o fim do mundo, que assustou milhares de pessoas onde quer que chegaram as ondas da rádio portadoras do cataclisma que se anunciava próximo, com uma invasão da terra por alienígenas. Vale, a propósito, breve pincelada sobre o que aconteceu
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naquele dia, quando o que seria uma simples encenação radiofônica da ficção “Guerra dos Mundos”. Foi transformado num recorde de audiência da rede de rádio norte-americana CBS, implantando o terror entre estimados seis milhões de ouvintes, até que ficasse esclarecido não passar de uma representação, sem nenhum cunho de realidade. Naquela noite de 30 de outubro de 1938, a rede de rádio CBS interrompeu sua programação musical para noticiar uma suposta invasão de marcianos. A “notícia em edição extraordinária” gerou pânico em várias cidades norte-americanas, fazendo com que aquela única hora registrasse um marco no rádio e no emocional das pessoas, felizmente uma ficção, diferente de agora. Aqueles mais vulneráveis aos maus presságios, por isso também mais suscetíveis às expectativas de que o mundo vai acabar, certamente mergulham em profundas meditações, recobrando quantas coisas poderiam ter feito, e não fizeram, e como certos comportamentos poderiam ter sido diferentes, todos nutrindo a esperança de que possam sobreviver à pandemia e, assim, tenham uma nova chance para corrigir o que acharam errado, recompor situações e, até, serem melhores do que têm sido. É como se passasse um replay do filme da vida. Fico refletindo, recuperando na memória o que me é possível recordar, desde o meu nascimento, o que pretendia ser quando crescesse, fases que vivi, pessoas com as quais convivi, os esforços e sacrifícios do meu pai e de minha mãe para que eu e meus seis irmãos tivessemos melhor sorte do que eles, preparando para a vida, também rememorando com quantos participaram de cada etapa até eu chegar onde cheguei.
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Tempo para um balanço de vida
Claro que não tenho, como nenhum ser humano tem, a pureza dos anjos, mas estes dias em que se tem mais tempo para pensar e, mesmo, fazer uma espécie de auto julgamento, consigo fazer um balanço positivo de minha existência. Entre boas e más práticas e ações que devo ter praticado, me vejo mais no lado do bem, amortizando aos meus pais o que fizeram por mim e procurando ajudar os que têm dependido de mim, desde filhos, passando pela profissão, cultivando o princípio de que, se não puder ajudar, ao menos não atrapalho, o que já é uma grande ajuda. Graças a isso, curto a alegria de ser estimado onde tenho passado e onde quer que esteja, me orgulho de boa referência onde sou citado. Um vídeo, em que a minha colega e amiga Vanessa Vieira transformou em trabalho de curso uma história de vida de mim mesmo, há depoimentos de contemporâneos e colegas traduzindo esse bem-querer que, Graças a Deus e à minha Padroeira e Protetora Santa Rita de Cássia, desfruto de todos. Não há como evitar virem à memória as versões sobre o que seria o juízo final que, segundo doutrinas religiosas, de um lado, e correntes filosóficas, de outro lado, consistiria no último julga-
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mento Divino sobre o que fizemos ou deixamos de fazer de bem e de mal na passagem terrena. Prevalece universalmente o relato inserido na bíblia Cristã, segundo o qual tal momento seria a ocasião em que os pecadores pagariam pelos pegados cometidos, enquanto os autores de boas ações seriam recompensados, direcionando, conforme o caso, para o inferno de torturas e sofrimentos, ou para o paraíso, com uma outra vida de felicidades. Há várias obras, refletindo a visão dos seus autores sobre os estágios a que as pessoas estariam sujeitas. Algumas têm ganho maior repercussão, através dos tempos, como a “Divina Comédia”, na qual o florentino Dante Alighieri descreve os vários estágios a que estaríamos submetidos, conforme os nossos feitos durante a vida. O renascentista italiano Michelangelo tem exposto na Capela Sistina, no Vaticano. o afresco que pintou durante quatro anos, sugerindo uma suposta vinda de Jesus Cristo no dia do Juízo Final como consta da versão católica da Bíblia. Objeto de polêmica na época, principalmente por retratar figuras nuas, devidas à admiração que o artista nutria pela estética greco-romana, após a sua morte, entre as imagens mais contestadas, umas foram simplesmente retiradas e, outras, foram redesenhadas, assim superando historicamente o problema da rejeição e preservada a maravilhosa arte nela contida.
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UM MANACIAL DE NOTÍCIAS E OBSERVAÇÕES
Vejamos o que me vem à mente para refletir e dividir com os que venham a ler este trabalho. Estou diante de um manancial de notícias e observações, perceptíveis provavelmente por todos os personagens, envolvidos direta, indiretamente e, mesmo, inconscientemente, nestes tempos de clausura coletiva, a começar pela má aplicação do termo “quarentena” que, como a terminologia sugere, seria melhor aplicável em referências a quarenta dias e não a uma eternidade, com aspectos de perenidade, porquanto ninguém sabe quando vai terminar. A quarentena prenuncia um divisor de águas no dia-a-dia de todos redundando numa total mudança de hábitos pessoais e de consumo das pessoas, os mais esclarecidos buscando formas de se proteger de eventual desabastecimento e da escassez de dinheiro, pela perda de emprego ou redução salarial. Quem sobreviver, que deverá ser a maioria, diante do grande número de curados, infinitamente superior aos vitimados, nunca mais será como dantes, em novo comportamento que influenciará todos os setores da vida, numa espécie de reeducação para adaptação aos novos tempos.
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Destaque especial, nesse particular, ao trabalho em casa. Estamos todos submetidos a um rigoroso teste de resistência física e psicológica. Há notícias de casais aprofundando divergências crescentes ou entrando em choque, em consequência da intolerância pela convivência prolongada, comprometendo a relação conjugal e o ambiente familiar. Em muitos casos , crescem as rusgas e as agressões corporais e mentais, elevando considerável e continuamente os índices de violências registradas pelas Delegacias de Mulheres em todo o país com base na “Lei Maria da Penha”, contribuindo para criar o outro problema sobre como abrigar a agredida e aprisionar o agressor, diante da saturação generalizada dos locais.
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Próxima epidemia de alcoólatras e obesos
Escrevi em recente coluna dominical em “O Liberal”, que após esta pandemia, o sistema de saúde do país poderia ter que atender a outras duas epidemias, talvez ainda mais graves, deixadas quando a coronavirus for embora. Haverá uma profusão de novos alcoolatras, tamanha é a quantidade de bebidas que homens e mulheres, sem ter o que fazer, estão consumindo, refletida no volume crescente de “deliverys” de todas as linhas de produtos alcoólicos, casos que repercutem na fragilização de laços domésticos e familiares e consequências policiais e penais. Também muitos obesos engrossarão a crescente fila dos gordos, pelo come e dorme dos isolamentos, passíveis de se tornarem personagens de outra epidemia, igualmente grave. Difícil, diante do escândalo, em alguns momentos e procedimentos adquirindo ares de terrorismo, não se perguntar porque o Ministério da Saúde e as correspondentes secretarias nos Estados e Municípios não têm manifestado a mesma preocupação com tantas outras doenças, algumas consideradas extintas e retornando, como a malária, sarampo, gripe influenza e os próprios alcoolismo e obesidade. São responsáveis pelas cirroses,
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diabetes, problemas cardio-vasculares e outras ocorrências que também matam e invalidam milhares de pessoas em todo o país mas nunca mereceram as preocupações que deveriam merecer, como as atuais, iguais e permanentes. Como veterano do jornalismo, atuando exclusivamente ou associado à profissão há sete décadas, tenho ficado impressionado com a tendenciosidade com que os colegas de praticamente todas as mídias se comportam no trato de fatos e pessoas relacionadas ao coronavirus. Há informações de uma grande fuga de assinaturas de canais, tanto por questões de queda das condições financeiras de assinantes, mas notável também pela declarada perda de credibilidade de repórteres, comentaristas e apresentadores, com a orientação ou omissão dos superiores, bem exemplificados pelo destaque a mortes, omitindo as curas, em números infinitamente maiores. Merecem pouca credibilidade, também, as pesquisas sobre popularidades, opiniões e personagens arrolados nos episódios, principalmente apresentadas por institutos flagrados em erros monumentais na última eleição presidencial, quando apontavam exclusão, em todas os cenários, de um candidato que, desmentindo todas as aferições, foi o eleito. Fato, aliás, que até os menos observadores consideram ser a raiz das tendenciosidades políticas e ideológicas, percebidas até por quem não é do meio e comenta em “zaps” e encontros casuais, em lamentáveis desinformações e desvirtuamentos intencionais, sem contraditório.
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A esperança, sempre ela
Um mês depois, já assisto a muito pouco nos canais a que tenho acesso, preferindo ler e escrever, como neste trabalho, ou assistir a filmes e documentários. Em entrevista recente a um canal fechado, o filósofo Felipe Condé revelou o mesmo sentimento, acrescentando que sequer tem visto televisão, considerando, como eu, a saturação de um assunto que parece ser o único acontecimento. A exploração mórbida da morte, em proporção desproporcional em relação às vidas salvas, tem assumido caráter de terrorismo, acuando uns e massacrando psicologicamente outros, principalmente os mais velhos, suscetíveis número um a esse tipo de influência nefasta. Fica a impressão de que, passada a pandemia e mudados os governantes, não saberão mais fazer outra coisa. Felizmente, há o consolo de que, apesar das mortes e sofrimentos impingidos pela pandemia, a humanidade alimenta a esperança de que a ciência consiga, como em outras oportunidades, encontrar a nova fórmula de combate e cura do virus atual e produzir novas vacinas e antídotos para doenças que venham a surgir, em desdobramentos nas formas e consequências. Também
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domina a sociedade a expectativa de que os hábitos de higiene e relacionamento humano ganhem novos tipos de manifestação de apreço e respeito, aperfeiçoando as condições de vida, principalmente nas comunidades mais atingidas.
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UMA DURA EXPERIÊNCIA AOS SERES E FAZERES
Certamente, ninguém tinha vivido, até agora, a desagradável experiência do chamado “isolamento social”, imposto às pessoas, a pretexto de evitar ou reduzir a contaminação pelo coronavirus. Até então, regime de reclusão se restringiria a hipóteses e situações excepcionais, a exemplo de cumprimento de penas em sistema carcerário, nos preparativos de ordenações religiosas ou em certos rituais de matriz africana. Por isso, quantos, como eu, tivemos de repente que ser recolhidos a um regime de auto reclusão, reagimos de várias formas. Poucas vezes, tão poucas que sequer recordo se efetivamente ocorreram, tive que ficar recolhido à residência, quase inteiramente proibido de ir a algum lugar, mesmo à calçada ou praça em frente. Compelido, apenas uma vez, quando um prefeito nomeado pelo regime militar, mandou me recolher à Polícia Federal por conta de notícia verdadeira, mas contrária aos interesses do gestor, um militar, publicada em uma coluna que escrevia no antigo jornal “A Província do Pará”, e me recusei a informar a minha fonte, assegurada por dispositivo constitucional. Pensei, então, o que se pode ou se deve fazer durante uma
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quarentena desta natureza, embora atenuada pela obrigação profissional de cumprir expediente em tempo integral, ao menos durante 8 horas diárias, mais eventuais acréscimos necessários à finalização de tarefas. Mas sobram cerca de 6 horas para convivência privada quando, em circunstâncias normais, essa vida doméstica fica em torno de 4 horas. Nos contatos com amigos, brinquei estar na expectativa de quem primeiro enjoaria da cara do outro, entre eu e minha mulher. Por enquanto, estou valorizando o tempo disponível para arrumar objetos, limpar e reorganizar minhas centenas de livros, atualizar alguns documentos e revisar minhas agendas telefônicas, deletando os que se foram. E estou me dedicando à conclusão de um livro de auto-reportagem, contando algumas experiências e lembranças de quase 70 anos dedicados exclusivamente ao jornalismo, outro com uma coletânea dos artigos dominicais que venho publicando desde 2009 em “O Liberal”, também escrevo, sem pressa, “O Olho da Garça”, livro em que procuro imaginar o que essas aves poderiam ver no vai-e-vem nas samaumeiras à frente da minha sacada. E resolvi escrever este, pretendendo registrar impressões, observações e reflexões pessoais. É uma nova experiência de vida, que jamais imaginei algum dia viver, como provavelmente todos quantos estão compelidos à mesma reclusão. Reflete, principalmente, a suprema e imorredoura verdade da vida do quanto ela é imprevisível e sujeita a toda sorte de surpresas. Vale, a propósito, o que conceituou o poeta e orador grego Horácio, ainda antes de Cristo, em uma de suas “Odes”, exortando no latim “Carpe Diem” a que se viva o momento. E o que há 3000 anos o poeta persa Omar Khayyam incorporou em uma de suas obras em “Rubaiyat”, porque “não se
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conhece o amanhã”, poetizando “Busca a felicidade agora, não sabes de amanhã. Apanha um grande copo cheio de vinho, senta-te ao luar, e pensa: Talvez amanhã a lua me procure em vão. Não procures muitos amigos, nem busques prolongar. a simpatia que alguém te inspirou; antes de apertares a mão que te estendem, considera se um dia ela não se erguerá contra ti”.
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COMO SÃO TOMÉ ENTRE VER E CRER
Quando me internei na quarentena, a que todos foram compelidos, mundo afora, o fiz por uma questão de seguir a ordem que se fazia ouvir, sem, contudo, acompanhar essa espécie de “ordem unida viral”, convicto de sua necessidade, por descrença em que seria necessária tamanha violência a um dos mais sagrados direitos do ser humano, conceituado na “liberdade de ir e vir”, consagrada na “Declaração Universal dos Direitos Humanos” e dispositivo obrigatório em todas as constituições e códigos que se dizem democráticos. Veremos a veracidade nos fatos. Tenho me entregue ao isolamento domiciliar, raramente saindo, somente para alguma imperiosa necessidade, mesmo assim retornando o mais rápido possível. Cumpro o regime de “home-office”, o teletrabalho a que eu e meus colegas fomos remetidos, no meu caso após haver recorrido à prerrogativa do isolamento dos seres na tal faixa de risco, ultrapassados nos 60 anos de vida. Mas, a cada dia que passa, menos me convenço da necessidade da segregação coletiva, principalmente quando fico sabendo de vítimas sem qualquer contato externo, no tal plano distanciamento social. Talvez à imagem e semelhança do ceticismo atribuído a São
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Tomé, jornalista também cultiva o cacoete profissional de desconfiar sempre, preferindo correr atrás e “ver para crer”. Nessa busca permanente, sem que possa assegurar a possibilidade de conhecer a verdade, acompanho os jornais, rádios e tevês em tempo praticamente integral à expansão, número de contaminados e, principalmente, mortos, num exercício macabro da opção preferencial pelo negativismo e o infortúnio. Nesses tempos de reflexões, quando o pensamento voa e faz escalas nas mais remotas e nas fases mais marcantes da existência, em profissionais como nós, jornalistas, treinados para duvidar, conferir e, até, polemizar, vêm à lembrança comportamentos e consequências de fatos históricos, dos tempos de guerra e paz da humanidade. Vem à minha memória, por exemplo, a máxima cunhada pelo ministro da propaganda hitlerista, Joseph Goebls, segundo a qual uma mentira repetida mil vezes, com aparente convicção, adquire foros de verdade.
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A VIDA ENTRE OS FORTES E OS FRACOS
O chamado “efeito manada”, a que o povo tem sido levado pela neura gerada por governantes e pretensos defensores do interesse, que nunca dantes protegeram, permite recorrer ao que o filósofo prussiano do século XIX, Friedrich Nietzsche, disse a respeito, à luz do positivismo, considerando o comportamento humano, quando submetido a pressões ambientais. Segundo ele, o mundo se divide em dois grupos de pessoas, em que um, segue suas próprias vontades e desejos, por isso são os mais fortes, não se deixando governar, dominar, nem seguem a vontade dos outros, enquanto, o outro grupo, é dos fracos, que se deixam levar pelo que os outros dizem, pensam e fazem, naquilo que o popular chama de “Maria vai com as outras”. O que Kant resumia, ao dizer que “o ser humano é o único animal que precisa de um líder para viver”. Pelo que dizem e comentam, vivemos um processo de “fim de mundo”, em que todos estão condenados à morte e poucos conseguirão a comutação da pena capital. Foi estabelecida uma psicose coletiva, de fazer inveja aos mais audaciosos filmes, passados e futuros, que a mente catastrófica de Alfred
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Hitchcok jamais poderia produzir. Percebo que as pessoas se comportam como se tocar em algum objeto, abrir a porta para simples entregador ou respirar o ar da rua possam significar risco eminente de coronavirus e, até, de morte. Usar máscara passou a ser adorno impositivo, inclusive em ambientes íntimos, por pouco não chegando a absurdos de ser colocada em meio às relações familiares, particularmente entre casais. Passou a oferecer à história uma imitação paupérrima da “burca”, o véu que a religiosidade mulçumana utiliza para esconder o rosto de suas seguidoras. Imagino as futuras gerações, que desejamos livres das guerras, epidemias, corrupção e outros tantos maus feitos destes tempos, erroneamente rotulados de modernos, diante de tantas impurezas morais e administrativas. O que pensarão os seres que virão, quando verem imagens de pessoas mascaradas, nas ruas e fazendo compras...
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ONDE HÁ DINHEIRO, HÁ LADRÕES
Diz a voz do povo que “onde há dinheiro, há ladrão por perto”. Quando comecei a ouvir falar nas cifras bilionárias que estão sendo distribuídas pelo país, para as ações e procedimentos de combate à pandemia, veio logo à mente a má fama dos brasileiros, particularmente os que exercem funções pelas quais os valores estarão transitando. Formulo imagem de gente nos municípios, estados e no país todo “lambendo os beiços” e esfregando as mãos na perspectiva de subtrair alguns em proveito próprio. Um dos exemplos dessa tendência à corrupção está na antiga LBA Legião Brasileira de Assistência, entidade criada pelo ditador Getulio Vargas e durante décadas atendeu a gestantes, parturientes e seus bebês. A burocracia e a corrupção foram corroendo os recursos orçamentários e, consequentemente, desvirtuando as funções, passando a consumir a maior parcela dos orçamentos em locação de prédios luxuosos, igualmente mobiliados com os requintes e gabinetes dos diretores providos de conforto, tudo quanto distanciava cada vez mais a clientela e tornava a LBA despida de quaisquer das razões determinantes da existência. Levantamento do governo Collor constatou que, de cada real
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que saia dos cofres públicos, nove ficavam na burocracia, nas mordomias de dirigentes e na corrupção, restando apenas míseros um real para o fim a que era destinado. Foi fechada. Acabei de ouvir notícias de que órgãos fiscalizadores e controladores do uso do dinheiro público, já destinados aos eventos da coronavirus, começavam a correr atrás de denúncias de superfaturamentos no Ministério da Saúde, em Secretarias de Saúde e em tantos outros. Um prefeito paraense teve barrada a pretensão de locar centenas de caçambas que nem existiam, ao custo de 90 milhões. No Amazonas e no Ceará, dois dos Estados mais atingidos pela doença, estariam envolvidos em acréscimos de 200 a 300 por cento em compras que, em alguns casos, sequer tiveram a contrapartida no fornecimento do que foi comprado. No Pará e no Rio, milhões foram entregues em troca de aparelhos inúteis, já em processo de devolução do dinheiro. A propósito e por conta dessa ameaça e de práticas, comuns no “bolsa família”, defeso da pesca e outros benefícios aos realmente necessitados, o governo procurou se vacinar contra possíveis falcatruas que poderiam ser perpetradas na complementação de folhas de pagamentos e evitar demissões, bem como na concessão do auxílio de emergência de 600 reais para aqueles que, sem emprego fixo nem fonte de renda regular, ficariam sem ter com que se alimentar e manter familiares. Mas já denunciaram milhares de furões. Quanto à complementação salarial, recorreu ao cadastro CAGED, depositando os valores diretamente na conta do respectivo CPF, evitando, ou dificultando, enxertos nas listagens das empresas empregadoras. No caso do auxílio de emergência, os cadastros existentes e os que passaram a ser criados com o acesso dos
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beneficiários têm exigido exaustivos trabalhos da Caixa Econômica e do DATAPREV, para que o dinheiro chegue, efetivamente, às mãos dos que deveria chegar. Nada tem impedido, todavia, que a internet continuasse a ser o caminho ideal para que fraudadores de contas e cadastros movimentassem todo o conhecimento e o arsenal tecnológico para tentar sacar os valores à revelia dos titulares das contas. Como não tem impedido que assaltantes procurem furtar os mais vulneráveis à saída de casas bancárias. Nem mesmo os alertas e os policiamentos nas redondezas de bancos e lotéricas têm evitado que muitos necessitados sofram, também, essa outra tragédia da bandidagem de sempre.
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“DESCONFIE DE QUEM NEM DEMOCRATA É”
Volto a minha atenção para um canal fechado de televisão, onde comentaristas, há muito entrados na ladeira abaixo do descrédito, fazem as críticas repetitivas à moda da máxima do revolucionário, para quem, ”se há governo, sou contra”. Um deles, numa linguagem que tem sido comum a todos, a qualquer hora e sobre todos os assuntos, clamava pelo respeito à democracia, tendo ao fundo, numa estante da sala de onde falava remotamente, uma foto de Rasputim. Para quem não sabe quem foi esse personagem, a história da origem humilde e dos métodos de embustes e dissimulações, conta que, como todos que adotam e desenvolvem as mesmas técnicas de charlatanismo, foi uma controvertida figura da história da Rússia dos Czares, quando se infiltrou e passou a influenciar a família com práticas de misticismo, depois consideradas charlatanismos, rendendo inclusive rumores de relações mais íntimas com a Czarina e prestígio por ser sexualmente superdotado. Falar em democracia no Brasil, por sinal, nem sempre condiz com os fatos, assumindo caráter de figura de retórica em pronunciamentos e práticas em que o uso da palavra afigura usar
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seu nome em vão, nas referências a um suposto “estado democrático de direito”. Em seu livro “Rosas e pedras do meu caminho”, o jornalista e político Carlos Lacerda criticou aqueles que se dizem democratas sem que demonstrem na prática, escrevendo que “desconfie do democrata que não se preparou para governar. Ou é demagogo ou oportunista, mas sequer é democrata”. Ainda mais num país em que a divisão dos Poderes, propugnada por Montesquieu, é constantemente desvirtuada com a invasão recíproca de competências privativas do e pelo Executivo, Legislativo e Judiciário. Ainda há a falsa pregação da democracia exatamente pelos que tanto não a exercem nem defendem, como na adoração a regimes de exceção, entre eles Cuba, Venezuela e Albânia, a despeito das décadas do fim da cortina de ferro da União Soviética e da queda do muro de Berlim. Até o advento do coronavirus já teve a contaminação rotulada de democrática, porque atinge a todos, indiscriminadamente, a despeito de classe social, poder econômico, gênero ou outra qualquer particularidade discriminatória. Quanto a isso, até pode ter algum ranço de democracia, mas a democratização termina aí, principalmente quando se considera a condição empregatícia e salarial. Enquanto ocupantes de cargos e funções estáveis têm, por exemplo, os proventos creditados regularmente nas contas, trabalhem ou não nos órgãos ou estejam em casa, os desempregados, temporários e autônomos têm que esperar pela ajuda dos governos, cestas básicas de humanitários ou sair, arriscando a vida, na busca pelo que possa pagar as despesas da casa e sobreviver. Nada democrático, fugindo a toda avaliação e análise que envolva o conceito bíblico, mas igualmente nem sempre obedecido, de juntos “na alegria, na tristeza, na saúde e
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na doença”, como é o caso. Definitivamente, a democracia, na acepção e realidade do termo, muitas vezes na prática e efeitos, parece nunca ter saído das praças atenienses e nas poucas oportunidades em que a humanidade possa praticar ou sofismar que ela existe.
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Reflexões de uma quarentena
COMO SHERLOCK HOLMES, A QUEM INTERESSA
Tenho feito a mim mesmo a mesma pergunta que quase todos, ou todos, fazem nesta situação e as respostas convergem sempre para algo produzido por pessoas e interesses, objetivando conquistas individuais e vantagens estratégicas, que influenciem em bom posicionamento na geopolítica universal. Há tempos se ouvem falar em armas químicas, pelas quais microorganismos, virus e outros produtos de laboratórios seriam capazes de gerar perdas humanas e desestabilizações econômicas e sociais devastadoras de países e causadoras de mortes aos milhões. Ditadores e seus séquitos têm sido destruídos no mundo todo, sob a suspeita de dominarem técnicas e o controle de elementos capazes de proporcionar aos seus detentores poderes extraordinários de imporem suas vontades e conquistarem o que desejarem no mundo. Seguindo esse raciocínio e analisadas essas suspeitas, sempre houve a desconfiança de que, como nada acontece por acaso, epidemias e guerras são irmãs gêmeas nos propósitos de atenderem às necessidades e conveniências industriais de produzir medicamentos, numa epidemia, e armas e equipamentos
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de guerra, na outra vertente, tornando oportuno perguntar “a quem interessa” uma coisa, outra ou as duas razões juntas. Embora discretamente, pela dificuldade em comprovação, todas as suspeitas do surgimento e expansão do coronavirus apontam numa só direção, agravadas quando exatamente lá, numa estranha coincidência, passaram a ser registrados o controle e o fim da epidemia, com o desmonte das dezenas de hospitais de emergência e pela volta da vida normal na cidade que havia sido o epicentro do coronavirus. Suspeitas continuarão sendo suspeitas até a próxima epidemia e provas em contrário, dizem que ser suspeito é pior do que ser réu...
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A SEMPRE (ONIPRESENTE) FALTA DE EDUCAÇÃO
O transcurso do “Dia da Educação”, a 28 de abril, abriu oportunidade para várias manifestações em defesa dos processos e sistemas educacionais, também nesse particular pelos mesmos que sempre trataram a área educacional como matéria de classe inferior, começando pela falta de reconhecimento de professores, escassez de recursos para pesquisas e funcionamento dos diferentes graus de aprendizado, formação e especialização. Mesmo em tempos de coronavirus, a falta de educação do povo brasileiro tem sido mais uma vez demonstrada em todas as fases e envolvimentos das operações de combate à pandemia. O despreparo da grande maioria da população, para as operações mais simples, dominadas até por crianças, ficou evidente nas dificuldades para acessar aos recursos do auxílio de emergência, resultando em filas imensas que os aplicativos e telefones pretendiam evitar. Essa falta ou deficiência de educação, evidenciada a todo momento e em todos os lugares, aflora, também, quando situações
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de dificuldades, como a que estamos vivendo, classificadas inclusive como um tipo de guerra, recomendam economia de dinheiro e esforços de sobrevivência. Em sociedades mais conscientes, por força da educação, a ordem é economizar, poupar, evitar tudo quanto possa ser dispensável e tudo se restrinja ao absolutamente imprescindível. Foi assim que países devastados pela primeira e segunda guerras mundiais, estabeleceram o que ficou conhecido como “esforço de guerra”. E foi assim que o Japão, a Alemanha, a Inglaterra, a Itália e a França, por exemplo, transformaram os escombros a que tinham sido transformados nas grandes e cada vez maiores potências econômicas e sociais do planeta. No Brasil, mesmo os mais necessitados, beneficiados pelo “bolsa família” e, na atual situação de dificuldades, nem sempre se preocupam com o básico e fundamental para enfrentarem o desemprego, a falta de trabalho nas ruas e as cozinhas vazias. Pesquisas aleatórias, sem qualquer componente técnico de amostragem, têm registrado que mais da metade dos beneficiários estão ou vão utilizar os 600 reais para trocar o celular, comprar novas roupas e outros supérfluos, revelando total falta de educação na relação com o consumismo e as prioridades.
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OPORTUNISTAS & HIPÓCRITAS DE SEMPRE
Oportunistas e hipócritas existem em todas as partes e são presenças assíduas em todas as oportunidades que possam ser utilizadas para se promoverem ou promoverem seus interesses, e onde quer que possam fazer parecer o que não são. Nesta crise, não seria diferente, sem que oportunistas e hipócritas estejam um pouco preocupados com a onda de doença e mortes, desde que exerçam a vocação amoral que faz parte da personalidade e da própria razão de ser. É exatamente isso que sempre se assistiu, em outras oportunidades, na atual e vamos continuar a assistir em quantas próximas oportunidades detetarem. Autoridades, gente da área mais envolvida (no caso atual, a área de saúde) e quem mais fareje chance de aparece, são ativos na poluição que se estabelece nos jornais, rádios e tevês, muitas vezes saindo do anonimato e da obscuridade em que viviam. No caso atual, nunca se imaginou haver tantos especialistas a deitar sabedoria. Oportunismos e hipocrisias se entrelaçam com a má educação, que se estende igualmente pelas áreas da vida pública. Em meio a uma epidemia, que ninguém sabe como vai continuar
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espalhando um rastro de tragédia nem se faz ideia quando vai terminar, parlamentares de todos os matizes ideológicos, vermelhos, verdes e camaleônicos, estão preocupados em politizar e judicializar tudo quanto imaginam poderem ser beneficiados. Desperdiçam energia em ações no Judiciário, batem boca pela imprensa enquanto o coronavirus continua matando. Como se mandassem às favas os fundamentos de um regime verdadeiramente democrático e a divisão de responsabilidades e de competências entre os Poderes da República, esquerdistas, direitistas, centristas e aqueles que não são nem uma coisa nem outra, mas estão sempre empenhados em fazer o circo pegar fogo, se movimentam em tentativas de invalidar nomeações privativas do presidente da República, enquanto, como diria o personagem de Chico Anísio Justo Veríssimo, o “povo que se exploda”. Em tantos anos de vida e acompanhamento da política e administração no país, jamais poderia imaginar tamanho oportunismo e hipocrisias juntos, explorando um período de ansiedade, dor e sofrimento dos brasileiros. Um dirigente parlamentar transformou o salão verde da Câmara dos Deputados em palanque eleitoral, promovendo entrevistas coletivas, passivamente acompanhadas por segmentos da imprensa, com sintomas de alinhamento com o interesse no quanto pior, melhor. Em São Paulo, o governador, como um boneco falante, igualmente acompanhado pelos mesmos atuantes na comunicação, vocifera durante horas em variações sobre o mesmo tema da pandemia, deixando para depois como tratar e resolver o avanço e a mortandade em todos os quadrantes do estado paulista. Seu colega do Rio de Janeiro segue a mesma ladainha,
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levantando a cabeça para olhar os circunstante de cima para baixo no compasso das pregações sem qualquer compromisso com a pandemia. Em Brasília, houve ministro que até ser defenestrado do cargo, foi mais um marqueteiro de si mesmo do que um agente da vida sanitária do país. Ar professoral, transmitindo receitas e diagnósticos sem resultados práticos para os objetivos que deveriam ser perseguidos, mas pessoalmente úteis, na ampla e demorada exposição diária que lhe proporcionou uma pseuda e momentânea popularidade. No lado oposto das câmaras de televisão, as propostas de auxílios de emergência, apoio às empresas em dificuldades e esforços para segurar os empregos caminhavam a passos de cágado. Os equipamentos de proteção pessoal, respiradores e estruturas hospitalares se mantinham numa miragem. Na seara paulista, ao mesmo tempo em que o governante deitava falação, como um robô maquiado, tratores zuniam escavando mais e mais sepulturas para os governados que continuavam morrendo. Revi muitos outros momentos, em todos os tempos e sucessivas gerações políticas, assemelhados à resistência de políticos em abrir mão, em favor da atender a despesas de equipamentos e estruturas de combate ao coronavirus, de um fundo bilionário que tinham aprovado para eles mesmos, a pretexto de atentar custos eleitorais. Financiar campanhas eleitorais já é, por si só, umas incongruência, mais revoltante quando o dinheiro vem dos cofres públicos, isto é, dos bolsos de nós, pagadores de impostos. Imaginem, por exemplo, se qualquer de nós, para ser aprovado a ocupar algum cargo público, tenha que ter financiamento para cursos preparatórios necessários. Transporte esta
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hipótese para a habilitação a exercer um mandato eleitoral. Qual a diferença entre uma coisa e a outra? Nenhuma, a não ser o tal de financiamento a duras penas e somente diante da pressão das redes sociais. Entre oportunismos e hipocrisias, presentes sempre que grandes acontecimentos, sejam festivos ou dolorosos, todos demonstram quererem apenas o próprio bem, como apologistas do venha a nós, ao vosso reino nada. Vendo cada um deles, nas aparições oportunistas, refletia o quanto teve razão quem cunhou a máxima, segundo a qual “quanto mais conheço os homens, mas admiro o meu cachorro”.
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“MORRE CAVALO PRA BEM DO URUBU”
Quem me honra, com a leitura regular dos meus artigos dominicais em “O Liberal”, sabe que recorro frequentemente à citação de pensamentos e frases, produzidas pelos filósofos clássicos e, mesmo, pela insuperável sabedoria popular. Costumam se revelar tão oportunas no sentido como atuais nas situações. Nestes tempos de coronavirus, se assenta a constatação contida na frase “morre cavalo para bem do urubu”, quando se acompanha o aproveitamento de outras oportunidades, estas nobres e saudáveis, na exploração de negócios, comercialização de produtos, prestação de serviços e outras atividades inerentes e compatíveis com o momento e as circunstâncias. Fico pensando quantos órgãos públicos e empresas que descobriram as vantagens físicas, econômicas e produtivas do teletrabalho, aquilo que os norte-americanos já utilizam sob a denominação de “home-office”, ou trabalho em casa. E, passada a pandemia e retornando à normalidade cotidiana, continuem a operar e ampliem o sistema. Além de permitir melhor aferir a produtividade individual, tem a redução de consumo
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de energia elétrica, utensílios de expediente e no uso de insumos operacionais, existe a redução de veículos nas ruas, melhorando a mobilidade urbana e consequente influência na ocorrência de acidentes, complementando com a melhoria da qualidade do ar pela redução da poluição veicular. Ainda a propósito do trabalho em casa, imagino que será uma grande conquista para as mães que exercem atividades conciliáveis com o exercício remoto, permitindo uma convivência mais próxima com os filhos. Muitas empresas já atuam assim em todo o mundo e em suas subsidiárias ou franqueadas no Brasil, em nível profissional que inclui a empresa montar na residência um ambiente de escritório, no qual o funcionário(a) deverá permanecer durante o período do expediente, devidamente composto como se fosse ao trabalho externo. Deve ganhar força. Quanto a serviços na área de alimentação, já existem estimativas de que algo em torno de 40% dos restaurantes e lanchonetes continuarão fechados, enquanto os demais mudarão completamente os respectivos conceitos, passando a atuar pelo sistema “delivery”, potencializando a entrega a domicílio, reduzindo despesas de aluguel, salários e obrigações trabalhistas e outras despesas básicas em funcionamento normal. Essa tendência repercutirá no crescimento das atividades de entregadores, ampliando e profissionalizando um segmento da economia que até agora funcionava de forma improvisada e utilizando mão de obra totalmente amadora de quem possui um veículo com que possa transportar os pedidos. Em vésperas de pleito eleitoral, em razão da eleição municipal, ainda em dúvida, se será realizada em outubro, dezembro ou não acontecer, políticos aproveitam a disponibilidade de ou-
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vidos e olhos recolhidos às quarentenas, atentos aos jornais, às rádios e às tevês, e procuram aparecer, pouco importando como, inclusive em ações e atitudes ridículas e despropositais. Bem na linha maquiavélica de que “os fins justificam os meios”, plantam notícias, se disponibilizam para entrevistas, dão palpites sobre tudo e para nada e, finalmente, lembram que existem os mesmos pobres e necessitados dos quais pedem votos a cada dois anos, destinando algumas cestas básicas. Sem, é claro, deixar de tentar oportunidades de contestar, atacar, sem medo de caluniar e injuriar, os adversários. A propósito, acabo de ouvir o ajuizamento de uma carrada de ações de políticos e partidos da hoje oposição, os mesmos que, quando situação, praticavam atos iguais, muitas vezes até piores. Questionam, principalmente, a nomeação de conhecidos, amigos e próximos para funções públicas, coisas que fizeram no governo, inclusive para cargos vitalícios e, nem por isso, foram contestados na época, respeitados pela prática de atos privativos da competência funcional, sendo, por isso, imune à interferência de terceiros, com ares de intervenção indevida. Fico pensando se existe alguém capaz de nomear, principalmente para funções de confiança, inimigos, desconhecidos e distantes. E os artistas? Ocupam as telas, anunciando “lives” musicais e humorísticos, no tom de quem está fazendo um favor para os coitados retidos nas quarentenas. Mas estão faturando rios de dinheiro, numa espécie de juntar o útil com o agradável, ou a fome com vontade de comer. É uma parceria lucrativa para todos os envolvidos, principalmente os veículos, artistas, patrocinadores e provedores dos sinais de transmissão, valendo relevar, contudo, os trabalhos de técnicos, produtores e outros muitos
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profissionais envolvidos nas programações. Não obstante, como ensina a sabedoria dos amigos, negócios à parte, não existe almoço de graça...
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... E COMO SERÁ O AMANHÃ, QUANDO A PANDEMIA PASSAR?
“Um dia é da caça, o outro do caçador”, “o risco que corre o pau, corre o machado”, “nada como um dia atrás do outro, com uma noite pelo meio”, “eu sou você amanhã”. Escolha qual desses e de outros tantos adágios populares, cabem melhor à posição a que está remetido o ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro. Quem diria que, no breve espaço de dois anos, ele tivesse trocado a ida à justiça como aplicador da lei por alguma forma de ser ele o submetido à mesma lei? Tempos de reflexão também estimulam a curiosidade sobre os bilhões de reais que estão sendo liberados para necessitados, para estados e para atender a quantas outras necessidades estão precisando ser atendidas nessa cruzada de combate ao coronavirus. Onde estava esse volume extraordinário de recursos, que antes pareciam faltar para tudo, inclusive para atender a urgências e emergências, e, agora, surgem de algum lugar aos borbotões, em valores antes somente vistos nas revelações do “mensalão” e ao longo das operações da “lava-jato”. Eis uma pergunta que, ao mesmo tempo, representa uma dúvida atroz, daquelas que desafiam e perturbam futurologistas, astrólogos e os palpiteiros de sempre, na economia e nas pesquisas.
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Palpiteiros que há muito adquiriram a fama de serem frequentes em palpites errados, tantos os equívocos e previsões jamais concretizadas, que passaram a ser irrelevantes em tudo quanto opinam e profetizam, poucos fugindo aos catastrofismos e às opiniões que dizem recolher de entrevistados raramente se confirmando na prática. Há que se convidar a que o estreito campo do bom senso brasileiro reflita. O caos na saúde pública, por exemplo, escancarado nesta pandemia, como já havia sido exposto em outros eventos de menor impacto, deve ser considerado, na realidade, como explosão do descaso governamental de todos os tempos para com o saneamento básico e as atenções básicas, negligências e omissões que têm deixado praticamente escondidos os órgãos de saúde do país, desde o Ministério e suas ramificações, continuando pelas secretarias estaduais e municipais e respectivas especialidades. Consequência, principalmente, do esquartejamento das estruturas e sua distribuição por critérios políticos em detrimento das necessidades técnicas, aparelhamento que se repete nas áreas de segurança e educação, por isso, não por acaso, igualmente em eterna crise, sempre mais aprofundada. Como será o amanhã, no pós-pandemia? Perguntemos a quem se quiser e dificilmente terá uma reposta que supere os palpites e previsões pipocando por todos os lados e na boca de todos. Vale continuar refletindo sobre os fatos, atos, decisões e pensamentos capazes de ocuparem a mente e o corpo nesta quarentena. Afinal, pensar é o livre pensar.
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ASSIM SE VÃO OS PEDAÇOS DE NÓS
É o inevitável quando se vão familiares, amigos e conhecidos próximos. Enquanto estou pensando e refletindo, continuam acontecendo coisas e se revelando fatos que marcam a dinâmica da vida e vão escrevendo a história nossa de cada dia. Coisas e fatos nem sempre agradáveis ou como gostaríamos que acontecessem, embora, no balanço entre perdas e ganhos, o saldo possa ser positivo. Em meio à pandemia, em consequência dela ou por mera coincidência com o momento definitivo, experimento a dor da perda de Gerson Peres, Andrubal Bentes, Aurélio do Carmo e Clóvis Corrêa Pinto. Convivi em muitas oportunidades com eles, seja na fase estudantil, seja nos meus tempos de repórter, depois como amigos e fontes de notícias. Com Gerson e Asdrubal minhas relações ao longo do tempo, foram praticamente uma continuidade dos tempos de ginasianos no “Paes de Carvalho” e das lides universitárias. Com Aurélio, já o conheci emergindo nas então chamadas hostes baratistas, depois governador cassado, excelente chefe de polícia, aplicado magistrado e, finalmente, seu biógrafo e presença em todos os
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eventos de que participava ou em sua homenagem nos últimos 30 anos. Com Clóvis, que já conhecia como vitorioso representante comercial, passei a ter maior proximidade a partir do noivado e casamento do seu filho Bruno com a Isabela, filha do meu amigo-irmão neurologista Fernando Cavalcante. Caberia ao Gerson Peres ser uma espécie de continuador da vocação política cametaense, que teve em Deodoro de Mendonça um dos seus ilustres membros, nos tempos da política mais calorosa, em que o Pará era dividido entre os contra e os a favor de Magalhães Barata. Ingressou no então PTB, Partido Trabalhista Brasileiro, legenda capitaneada por Getúlio Vargas. Teve como patrono político Gabriel Hermes Filho, empresário do ramo de móveis e parlamentar por várias legislaturas e um dos fundadores da FIEPA e suas ramificações no Sistema “S”, entre elas o SENAI, que caberia a Gerson dirigir até pouco antes de sua morte. Minha relação com o Asdrubal foi muito intensa em certa fase, coincidindo com os primeiros passos dele na política, como candidato e prefeito de Salinópolis. Era seu companheiro permanente nos comícios e o ajudando em vários procedimentos das campanhas da época, quando os votos eram buscados praticamente de porta em porta. Fizemos viagens contínuas, hoje impensáveis pelas idas e vindas entre localidades distantes, praticamente sem dormir e comendo quando dava tempo, rodando num “fuscão” que eu tinha. Depois, o exercício de mandatos eletivos e cargos públicos redirecionaram os caminhos dele e passamos a nos ver apenas ocasionalmente, todavia sempre com a mesma demonstração da amizade que compartilhávamos, a despeito de ser ele torcedor do Paysandu, time por onde jogou basquete e foi presidente e, eu, remista de raiz.
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O GOVERNADOR E O MAGISTRADO
Quanto ao dr. Aurélio, há um pouco mais a relembrar. Nosso relacionamento antes profissional e, depois, pessoal, foi aprofundado nos anos 70, passando a nos visitar frequentemente e a conviver nos agradáveis e informais almoços das quartas-feiras no “Clube do Açaí”. Num dos aniversários dele, sugeri que escrevesse suas memórias, para legar à posteridade a experiência que vivera, principalmente quando foi elevado a candidato e eleito governador do Estado, em consequência da doença do então candidato natural do PSD de Barata, Lameira Bittencourt. Após muita relutância, em certo momento concordou em passar a conversar sobre o livro, também estimulado pelos amigos comuns Adenauer Góes, Nelson Chaves e “Jango” Azevedo. Em várias visitas à sua residência à época, na avenida Alcindo Cacela, junto à Unama, gravei cerca de 100 horas, depois degravada e impressa para que analisasse, revisasse e autorizasse a publicação. Quase quatro anos se passaram até que ele concordou em publicar, todavia com cortes e e supressões correspondentes a quase metade. Elegante e cordial como era, pediu desculpas e argumentou que os fatos excluídos pertenciam a um passado, envolvendo inclusive pessoas já falecidas e não queria reabrir
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feridas e provocar polêmicas com os que já não poderiam se defender ou contraditar. Por conta disso, o título do livro, que seria “Lembranças que não quero esquecer” foi alterado para “Lembranças que valem a pena lembrar”, já que continha apenas aquilo que considerava valer publicar. O lançamento fez parte das comemorações dos 80 anos do dr. Aurélio, utilizando como local a mesma sala do Palácio “Lauro Sodré” e autografando os exemplares sobre a mesma mesa onde ele despachava quando governador do Estado. Até hoje, é o recordista em livros vendidos em sessões de autógrafos em Belém, com quase 600 livros autografados, além dos exemplares enviados a dezenas de personalidades e bibliotecas públicas e dos comercializados em bancas de revistas na cidade. Seus últimos aniversários foram comemorados em reuniões mais fechadas, organizados pela sua esposa Mariete no antigo hotel “Crown”, atual “Grand Mercury”, reunindo familiares e os permanentes convidados Adenauer Góes, Nelson Chaves e eu. Na celebração dos 90 anos, conversamos sobre uma reedição do livro na celebração do centenário que, infelizmente, faltaram dois anos para ocorrer. Paz à sua alma.
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Nas próximas páginas, o leitor encontrará reflexões e conceituações, formuladas em artigos dominicais publicados em “O Liberal”, entre os dias que antecederam e estão testemunhando os dramas desta pandemia. Foram selecionados por terem tudo a ver com pessoas, fatos, comportamentos e atitudes dos envolvidos nas ações e decisões a respeito da pandemia do coronavirus.
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(Publicado em 27.07.2014)
A democracia em questão
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democracia costuma ser exaltada particularmente ao atender a conveniências e circunstâncias específicas, quando se constata que sua prática raramente corresponde às origens na Grécia Antiga nos anos 590 antes de Cristo, como símbolo do poder que emana do povo para em seu nome ser exercido. Falta, por exemplo, respeito à formação de consciência política que imponha aos partidos o cumprimento do papel de congregarem seguidores de uma mesma ideia, doutrina ou pessoa para a escolha dos eleitores. Os absurdos valores que candidatos anunciaram pretender gastar nesta campanha eleitoral, objeto do artigo anterior “Acredite, se quiser”, estão contribuindo para discussões sobre a fidelidade às expressões demos (povo) e kratos (poder) cunhadas pelos gregos para designar os sistemas políticos de então. Como no dilema shakespeareano, a democracia estaria sendo, ou não, apenas máscara à prevalência do dinheiro no controle das nações, destoando dos princípios acalentados nos berços atenienses? Eis a questão que emerge de práticas em nome da democracia, em algumas ocasiões de forma discreta e, em outras, escancaradas, como agora, quando pairam as forças ocultas
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invocadas por Jânio Quadros na justificativa da renúncia. Exercem influência decisiva em ações e decisões institucionais, por isso expostas às suposições das ingerências do poder econômico e fragilizando o decantado “estado democrático de direito” como o bastião democrático fundado nos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Quando foi gestada nas praças de Atenas, democracia consubstanciava o “governo do povo”, em que todos os cidadãos participariam em condições de igualdade e oportunidades, diretamente ou por representantes, exercendo livremente a autodeterminação política. Tal conceito evoluiu através dos tempos, marcando fases em 1688, na Inglaterra, pelas discussões no Parlamento, e em Portugal e na Espanha, onde o processo acelerado gerou insegurança, ao contrário da estabilidade promovida na França. No clássico “Espírito das Leis”, Carles-Louis Montesquieu (1689-1755) teorizou sobre a constituição de um sistema regido pela interdependência e harmonia das Instituições, pelo estabelecimento dos parâmetros legais, na execução e quanto à segurança jurídica. Em nações como o Brasil, contudo, práticas pontuais demarcam as diferenças que nos separam das democracias consolidadas, sempre que conveniências e circunstâncias tornam relativos os limites e mandam às favas os escrúpulos princípios e os direitos. Democracia e negócios, posteriormente resumidos na subjetividade da palavra mercado, já conviviam no “século de Péricles”, historicamente difundido como a “Idade de Ouro de Atenas” (439338 antes de Cristo), a despeito das convicções democráticas do governador. Atividades mercadológicas nos logradouros medievais
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prosseguiram no “renascentismo”, nos locais denominados “Praças de Mercados”, espécie de “bolsas de valores”, com os mesmos ingredientes que envolvem cotações e falências de hoje. Questionamentos consideram ser a democracia que se tem um sistema aberto às pressões econômicas, submetendo candidatos aos propósitos de quem lhes financia campanhas cada vez mais caras. Eleitos, são os financiadores que influenciam a composição e funcionamento dos Poderes para atendimento aos respectivos interesses, desigualando ricos e pobres e tornando flexível a independência das Instituições nos termos preconizados por Montesquieu como síntese da verdadeira democracia. Enquanto não decidem sobre financiamentos de campanhas, a liberdade dos interessados para decidirem gastos contraria o princípio de igualdade de oportunidades entre os que conseguem mais dinheiro e os desprovidos de recursos. Permite, ainda, que o poder econômico torne os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais os pobres, inclusive restringindo, pela má distribuição de renda, a evolução social como forma de reserva de mercados à prova de contestações e de competição. Pelo que se percebe, regimes de governo continuarão dependendo de quem pode mais, disposto a fazer o mercado funcionar em favor da mais valia para os propósitos a atender. Segundo o juiz Marlon Reis, um dos autores do projeto que deu origem à Lei da iniciativa de mais de um milhão de brasileiros, nem mesmo a ficha-limpa será suficiente para fortalecer a democracia. Para purificar o regime, o país precisaria agora se concentrar nesse particular, possibilidade que o horizonte político não permite vislumbrar.
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(Publicado em15.03.2020)
A pergunta que falta fazer
“A quem interessa o crime, meu caro Watson”, perguntava Sherlock Holmes ao auxiliar, personagens de ficção da literatura britânica, criados pelo médico e escritor Conan Doyle, nos romances policiais, publicados na transição dos séculos XIX para o século XX. Era um questionamento considerado elementar para elucidar as ocorrências fictícias, como forma de chegar rápida e seguramente aos autores intelectuais e possíveis interessados nas empreitadas criminosas investigadas pelo detetive. Na vida real, uma pergunta tão elementar, poderia ser formulada sempre que epidemias, a exemplo do “novo coronavirus”, surgem a intervalos regulares, sem clareza quanto a origem, nem “porquê” se origina em certos locais, estratégicos para dali se espalhar pelo mundo, causando prejuízos econômicos e financeiros para uns, pela interrupção das atividades e vidas, enquanto outros lucram, produzindo e fornecendo medicamentos e instrumentos utilizados na assistência às vítimas. No Brasil, em particular, as últimas décadas têm sido pontuadas por epidemias e ameaças de surtos maléficos, incluindo algumas há muito imaginadas eliminadas, como a malária. Notícias alarmantes, anunciando campanhas de vacinações
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em massa, levam milhões de pessoas até ao sacrifício de madrugar em postos de saúde de todo o país, consumindo outro tanto de vacinas e somas bilionárias, a pretexto de imunizar brasileiros de todas as idades contra propagadas doenças típicas de cada época. Pensadores de todos os tempos, comungam do mesmo pensamento de que “nada acontece por acaso, absolutamente nada”. Coube ao escritor norte-americano Richard Bach sintetizar as diversas conceituações filosóficas expendidas a respeito, ao escrever que “Nada acontece por acaso. Não existe a sorte. Há um significado por detrás de cada pequeno ato. Talvez não possa ser visto com clareza imediatamente, mas sê-lo-á antes que se passe muito tempo”, tornando a pergunta ainda mais pertinente. Embora parecendo elementar, não se tem notícia de que alguém, em algum momento, tenha despertado, ao menos por curiosidade, para a lógica do ficcionismo de Holmes e dos pensamentos formulados pelas diferentes gerações filosóficas de todos os tempos, apesar das graves consequências das epidemias. Desde a antiguidade, micro-organismos fatais, principalmente bactérias e vírus, já mataram milhões de pessoas, igualando e, em alguns episódios, até superando, guerras, terremotos e vulcões. Chega a ser notável a contradição de que, entre avanços tecnológicos e científicos, que levaram o homem a outras galáxias e propiciaram a cura de várias doenças, outrora fatais, ainda surjam e se universalizem epidemias avassaladoras, algumas consideradas extintas, atribuídas, entre outros, aos alimentos geneticamente modificados, uso de agrotóxicos e degradação ambiental, com a propagação facilitada pelas facilidades de
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transportes e comunicações, que encurtam distâncias e aproximam as pessoas. Três mil anos antes de Cristo, doenças mortais já se alastravam no Egito antigo, entre elas uma epidemia de varíola, no século V a.C., com atenienses e espartanos se digladiando na “Guerra do Peloponeso”, conhecida como a “grande praga de Atenas”. Os males se multiplicaram nos tempos modernos, afetando e matando com a tuberculose, peste negra, gripe espanhola, aids e o vírus influenza, considerada a pandemia mais letal da história, matando 50 a 100 milhões de pessoas no mundo. Embora difícil de responder, ou, apenas, não ter resposta nenhuma e possam ser resultados de mudanças climáticas, mutação de vírus e de bactérias, dificilmente pode ser entendido como, de repente, o mundo é surpreendido com algum tipo de doença, ameaçando repetir as calamidades públicas que se abateram sobre a população mundial. Principalmente quanto, curiosa e extraordinariamente intrigante, o “novo coronavirus” está desaparecendo onde nasceu, enquanto mata por onde grassa.
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(Publicado em 22.03.2020)
Outros lados da moeda
Em meio à síndrome que se abate sobre o universo humano, com a agora considerada pandemia do “coronavirus”, sempre deverá haver espaço para uma avaliação racional, em torno das diversas faces da mesma moeda. Embora ainda a anos luz de distância da mortandade provocada por outras epidemias, as cinco maiores tuberculose, peste negra, varíola, gripe espanhola e aids que, juntas, mataram mais de um bilhão e 400 mil pessoas, o mal da atualidade ameaça assumir caráter de paranóia, principalmente pela globalização midiática sobre vítimas clínicas e fatais, felizmente ainda na casa dos poucos milhares e desejos de ficar longe dos cataclismas humanos e sociais anteriores. Veículos de comunicação, apesar de desempenharem trabalho de relevante utilidade pública, bem intencionados em prevenir e mobilizar a todos, no combate à proliferação do virus, acabam, ao contrário, por contribuir para a neurose que fecha comércio, suspende o funcionamento de órgãos de governo, essenciais à sociedade e produz estranhas e inquietantes visões de cidades quase fantasmas em todo o mundo. Mensagens nas redes sociais já começam a tentar um contraponto às “over doses” de recomendações e notícias desalentadoras, que não curam o mal enquanto, paradoxalmente, estabelecem um
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clima de insegurança e arriscam gerar uma psicose, doença tão grave quanto. Essa preocupação começou a refletir o bom senso de pessoas que, mesmo sem a intenção, remete à fábula de que, quando se tem apenas limões, o jeito é procurar fazer uma boa limonada, acrescentando que o pior virus é aquele que contamina a alma. Recolhi, por exemplo, uma que diz “Desliga o noticiário um pouco. A vida tá fazendo um convite pra você se voltar pra sua casa. Onde ficam as pessoas que você mais ama. Dance na sala com as crianças, cante bem alto, brinque, pinte, borde. Faça um bolo. Monte quebra-cabeças. Leia a Bíblia, ore, converse com Deus, como se conversa com um amigo! Logo logo a gente volta a se abraçar, a trabalhar, a comprar e a correr como antes...” Contudo, qualquer que possa ser a dimensão real e sombrias as perspectivase das consequências, já se manifestam, em diversificados aspectos, as repercussões positivas e negativas nas vidas das pessoas e no funcionamento das nações, tanto quanto nas questões envolvendo emprego, ganhos e perdas coletivos e individuais. A exemplo da máxima, de que, nas crises, enquanto uns choram, outros ganham dinheiro vendendo lenços para enxugar as lágrimas, também nesta crise de grandes proporções existem os que ganham e os que perdem. Já podem começar a ser contabilizados os avanços que essa epidemia, como as anteriores , vai deixar para a o progresso humano de amanhã. Vale, a propósito, como modelo exemplar, a utilização dos recursos da informática pelos órgãos públicos e empresas privadas, até agora presos ao corporativismo e ao comodismo, resistindo ao que os novos tempos propiciam. É o caso do teletrabalho, o “home-office” em expansão nos Estados Unidos e na
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Europa e crescentemente em setores modernizados do Brasil e ao que parece aderir, finalmente, o setor pública brasileiro. O coronavirus está provocando a utilização do mecanismo e a desfrutar dos seus efeitos práticos, setoriais, quando agilizam ações e decisões e, coletivos, influindo inclusive na retirada de centenas de veículos das congestionadas ruas de todas as cidades. Quando passar a onda dessa nova epidemia, que se deseja o mais breve do que tem sido previsto, a contabilidade apontará muitas perdas, principalmente das vidas debitadas ao virus, em meio a tantos milhões de outras vidas que se perdem todos os dias, em todo o mundo, por tantas outras causas, acidentais ou naturais. Mas, certamente, contabilizará muitas coisas que, confirmando o adágio de que “não há mal que não traga um bem...”, se acrescentarão ao futuro dos mesmos povos, sofridos e assustados com a pandemia, principalmente na potencialização de medicamentos existentes e nas descobertas de novas drogas, como registram as faces das moedas nos pós das epidemias de antes.
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Reflexões de uma quarentena
(Publicado em 29.03.2020)
Faltam novos Roosevelt e Churchill
Nestes tempos, em que todos falam e nem todos têm razão, as ausências mais sentidas atendem pelos nomes de “bom senso”, “serenidade” e “equilíbrio”. À margem e por conta da pandemia da atualidade, quando o mundo tateia na escuridão em busca da origem e de remédio, oportunistas de todas as oportunidades transformam entrevistas e debates em palanques eleitorais, em nome dos pobres, só lembrados em situações assim e logo esquecidos. Enquanto isso, a China fica melhor do que antes de exportar a epidemia, faturando mais alto, coincidentemente, com produtos usados na prevenção e no combate ao vírus. Conta a história que os povos sempre extraem ensinamentos e experiências de crises, das guerras e nas epidemias. Vitoriosos aperfeiçoam as formas e instrumentos vencedores e, os vencidos, transformam as razões do fracasso em lições para o futuro. Incontáveis têm sido as conquistas das sociedades, resultantes, principalmente, das duas grandes guerras mundiais, confrontos imperiais e revoluções, entre as quais a emblemática “Revolução Francesa”. Deduzidos eventuais exageros, não é demais considerar que, sem os conflitos, o mundo pouco teria progredido, além dos rudimentos da antiguidade. No combate atual, o que se convencionou denominar de
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“Novo” ao velho coronavirus, denota ser um antigo conhecido em suas infecções gripais, pelo que não deveria ser tão perigoso. Como em todas as excepcionalidades, reclama das autoridades e lideranças públicas e privadas, ao menos o equilíbrio de lideranças passadas nas relações com os liderados. No auge da segunda guerra mundial, enquanto os alemães bombardeavam ingleses, o estadista Winston Churchill fazia ecoar, pelas ondas da BBC de Londres, mensagens de calma e confiança na vitória, que depois ele sinalizaria com os dedos em forma de “V”. Em outra guerra, econômica e profundos danos sociais, o presidente norte-americano Franklin Roosevelt sublinhou com a sensatez o discurso de posse em que anunciou ações, que executou em seguida, para superar os efeitos da Grande Depressão de 1929, o pior desastre mundial do século XX. Ficou célebre, desde então, a frase conclamando o povo de que nada tinha a temer, a não ser a si próprio, resumida na expressão “A única coisa de que devemos ter medo, é do próprio medo”. Segurança e equilíbrio que estão faltando, também contaminando os meios de comunicação e o sistema econômico e social. Enquanto fecham o comércio e desertam as ruas, conselhos e orientações beiram conotações de terrorismo, quase mandando as pessoas se esconderem e a seus velhinhos do vírus, ao mesmo tempo em que há contradição, por exemplo, em aglomerações em postos de vacinação. Ou, como impedir que entregador de comida repasse ao consumidor contaminação de uma embalagem? Em situações assim, passada a pandemia poderá haver o risco da eclosão de outra epidemia, ainda mais grave, individualizada e diversificada nos obesos, alcoólatras, depressivos e neuróticos que a quarentena ociosa está gerando.
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Reflexões de uma quarentena
Estão faltando líderes com os predicados que os tornem os novos Roosevelt e Churchill, pela serenidade na comunicação com seus liderados em situações de igual ou, até, maior gravidade, das guerras e recessões econômicas, pelo que, também, se tornaram referências históricas de lideranças. No Brasil, ao contrário, a situação tem sido usada preferencialmente às pretensões políticas de alguns, enquanto faltam palavras que, embora recomendando os cuidados necessários, não provoquem intranquilidade e até sérios abalos físicos e psicológicos à população, principalmente aos mais sensíveis e vulneráveis.
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(Publicado em 19.04.2020)
Estava escrito
Sempre que acontecem fatos anormais, particularmente de origem natural, logo buscamos justificativas e explicações que, entretanto, implicam em diferentes e, não raro, contraditórias interpretações. Tamanha variação de repercussões, quaisquer sejam as consequências, dificilmente convergem para um pensamento único. Restam muitos desafios e questionamentos, nas tentativas de extrair lições, possíveis de evitarem ou minimizarem perdas humanas e materiais em próximos episódios. Mas se revelam, contudo, pontualmente deficientes, diante das características peculiares a cada momento e nas surpresas de cada ocorrência. Tanto quanto as epidemias, a exemplo da que ora atinge gregos e troianos em todo o mundo, tsunamis, erupções vulcânicas e terremotos suscitam históricos embates, sempre opinativos e nunca conclusivos, no eterno desencontro entre as visões da ciência e os conceitos da religião, divergência incontornável, corespondendo ao que o filósofo austro-húngaro Rodolf Steiner, que viveu entre os anos 1861 e 1925, denominou de “antroposofia”. Enquanto os cientistas pesquisam causas e derramam explicações, mas não encontram formas de impedir os próximos incidentes, religiosos evocam o que estava escrito.nos textos bíblicos.
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Reflexões de uma quarentena
Estudiosos e cultores dos evangelhos recorrem às previsões e interpretações do que editaram, principalmente, os apóstolos Marcos, Mateus, João e Lucas. Previam a chegada do homem a marte, o transplante de coração, a ocorrência do que hoje se chama “novocoronavírus”, e outras doenças, inclusive uma epidemia mais dolorosa do que a “Peste bubônica”, que matou um terço da população da Europa no século XIV, sublinhando “Pois se levantará nação contra nação, e reino contra reino; e haverá fomes, e pestes, e terremotos em vários lugares. Todos estes são o princípio das dores”, referências feitas por Mateus e Lucas. Há uma listagem das pragas que se têm abatido sobre a humanidade nos últimos 20 anos, a começar pela Ebola, nos anos 1970, no meio da década de 1990, e entre 2000 e 2001, na África, contaminando mais de 1800 pessoas e cerca de 1200 mortos; a SARS, igualmente síndrome respiratória aguda grave, os primeiros casos na China, entre novembro de 2002 e setembro de 2003, afetando mais de 8,4 mil pessoas, mais de 900 mortes, vírus similar ao Covid-19; gripe aviária, causada pelo vírus influenza, do tipo H5N1, registrando, entre 2005 e 2011, 555 casos da gripe no mundo, com 324 mortes, e a gripe suína, em 2009, nos cinco continentes. Como todas as previsões e profecias, analisadas e interpretadas segundo Lucas, o coronavírus também foi previsto na Bíblia sua ocorrência em vários lugares, juntamente com grandes terremotos, fomes, e pestes. Também ocorreriam outros fenômenos atemorizantes, em meio a grandes sinais emitidos do céu, profecias que deveriam ser suficientes para não se achar incomum essas situações acontecerem a qualquer tempo. A literatura religiosa enfatiza que não foi prenunciado na Bíblia somente
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o coronavírus, mas outros que talvez ainda venham a surgir, em maior ou menor gravidade, tentando não alarmar as pessoas. Enquanto a ciência segue propiciando a cura de doenças e salvando vidas, o mundo vive a realidade do que estava escrito. Muitas conquistas na melhoria da produção e disponibilidade de alimentos, na elevação das qualidades de vida das pessoas e avanços nas técnicas médico-cirúrgicas, têm propiciado a prevenção e cura de inúmeras doenças, antes fatais, elevando a idade média da humanidade. Mas, persiste a frustração de que, não obstante, o mundo continua sofrendo agressões à saúde, por males antigos e novos revigorados, profetizados nos evangelhos, eternizando a dissintonia entre o que a ciência faz e a religião profetiza.
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(Publicado em12.04.2020)
Há outros vírus, ainda piores
Pode ser chamado hipocrisia, oportunismo, exibicionismo, ambição ou outro adjetivo capaz de designar as pobrezas e baixezas humanas, em procurar tirar proveito de qualquer situação, como nestes tempos. O tempo passa e essa saga brasileira continua justificando frases e charges que retratam a exacerbação de egos e expectativas de poder. Custaram a Carlos Lacerda o apelido de “corvo”, pelas apologias ao pior; a corrupção inspirou Stanislaw Ponte Preta a clamar “restaure-se a moralidade, ou locupletemo-nos todos!”; e justificou Oscar Niemeyer a marcar o último ato da vida, declarando que, soubesse no que Brasília seria transformada, projetaria a capital em forma de “rabecão”, em vez de “avião”. Embora louváveis as intenções e ações para evitar o contágio e a morte de milhares, o oportunismo político e as vaidades pessoais em alta criaram figuras nacional e regionalmente caricatas em autopromoções, fingindo proteger enquanto aterrorizam os 26 estados e o Distrito Federal. Simulando fazer o que não fazem no dia-a-dia, estão incorporadas por personagens travestidos de mestre de cerimônia de entrevistas, chefe parlamentar em coletivas diárias, como intérprete de todas as necessidades populares, que ficam em segundo plano nas decisões congressuais,
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e ministro se dizendo preocupado com a saúde dos brasileiros, embora nunca lhe tendo dedicado tanto tempo, nem tamanha loquacidade. Chega a parecer um certo sadismo, pela divulgação de contaminados e mortos, sem que, ao mesmo tempo, registrem outros milhares recuperados, estimulando especular comportamento hipócrita, ao omitir essa contraposição positiva e, assim, assombrar a Nação por uma sutil desesperança de condenados irreversivelmente à morte. Ao mesmo tempo, em que expõem números aterradores de doentes e falecimentos, milhares de pessoas continuam adoecendo e morrendo pelas causas de sempre, inclusive vítimas de moléstias rotineiras, que governantes e ministros não têm evitado, além dos 90 mil vítimas de homicídios, mais do que guerras recentes, e 40 mil vítimas do trânsito assassino das metrópoles. Hipocrisias, oportunismos, exibicionismos e ambições, são responsáveis pela politização do coronavirus, e constituem as tristes atrações da pandemia em cartaz. Dividem o palco, onde também se exibem notórios pretendentes a presidentes, governadores ou outros objetivos, beneficiados pela exposição nas repetitivas e sonolentas entrevistas, e pelo acolhimento de setores incensadores dessas aspirações, corporificadas na ideologia revolucionária do lema “se há governo, sou contra”. O vulto que assumiram os palanques eleitorais, nas disputas pelo protagonismo nos eventos da crise epidêmica, promovem deplorável competição entre o vírus epidêmico e outros vírus, ainda piores, das mazelas humanas. Resta esperar, principalmente os humildes, que os mais eloquentes prossigam com o mesmo desembaraço, em entrevistas
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e críticas aos alvos disponíveis, desempenhando o papel de paladinos das defesas dos pobres e desvalidos. Os graves problemas do país continuam à espera de soluções, sempre postergadas, como estão sendo postergadas mudanças e reformas necessárias à melhoria das condições de trabalho e da vida dos brasileiros. Enquanto isso, o Brasil continuará mais autêntico nas frases e charges, que melhor retratam as más práticas e costumes de sempre, sintetizadas na ironia francesa, proclamando, em meio à “guerra da lagosta”, que não houve, que o Brasil não é um país sério. Pelos vistos, nem nas epidemias.
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(Publicado em 05.04.2020)
Tempos para a reflexão
“Quando o conhecido passa bem, o invejoso passa mal”. Essa conclusão da sabedoria popular vem a calhar nas situações que se apresentam, como ocorre nesta crise epidêmica, quando os apostadores no “quanto pior, melhor” fazem o que podem, e onde possam, para impedir ou minimizar ações positivas dos demais. Agora mesmo, essa pobreza do espírito humano salta aos olhos dos observadores do cabo de guerra entre, de um lado, os esforços governamentais para se contrapor aos efeitos danosos da pandemia, enquanto, no lado oposto, pretensões políticas e rancores ideológicos se empenham em dificultar. Eventos e situações assistidas a cada momento, principalmente pelos canais de informação, desafiam estudos dos profissionais das ciências sociais, surpreendendo mesmo aqueles habituados às facetas do comportamento humano, nas variações de humor e posições, ao sabor dos interesses e das pretensões. Há uma profusão de “pseudos” democratas que, entretanto, relutam em aceitar o resultado de eleições e reagem conta palavras e atos dos vencedores. Também atuam grupos que desenvolvem formas de confundir e assustar os menos esclarecidos e se dedicam em atrapalhar práticas positivas.
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Em meio ao continuado e já cansativo bombardeio de conselhos, explicações e ameaças sobre avanços do novo coronavírus, sempre serão refrescantes e, até, relaxantes da neura em que estão mergulhados países e seus povos, inclusive no Brasil. Será oportuno, salutar e, provavelmente, reanimador de quantos perguntam, e não têm respostas, quanto “ao que será amanhã”. Uma pausa para reflexão sempre será bem-vinda em situações como a atual, sobre aspectos da crise, especialmente quando envolve manifestações comportamentais e desperta especulações quanto ao futuro nos dias seguintes à epidemia. Após as superdoses cotidianas, as variações sobre o mesmo tema passaram a ser usadas como palanques de oportunistas de qualquer oportunidade. Há ministro já posando de “pop star”, passando mais tempo diante das câmeras do que exercendo a sua função, em vaidosas e repetitivas prelações professorais. Existem governadores em poses imperiais, transvestidos de pregadores pastorais, principalmente em reclamações sobre carências locais, no que demonstram mais a própria incompetência e desvio de funções na busca de uma notoriedade e tirar proveito eleitoral, que o contestado desempenho dificulta oferecer. Tem sido exposto o quadro negro da atualidade, mas com perspectiva de mudar gradativamente de coloração a caminho de um branco saudável. Estimula, então, que se reflita sobre o “pós pandemia”, para o que poderiam ser de utilidade uma pesquisa sobre o que aconteceu, depois de crises epidêmicas recentes, a maioria muito mais devastadoras, em contaminações aos milhões e, igualmente, com milhões de mortos em todo o mundo. Como aconteceu antes, o mundo não será o mesmo, nos próximos tempos com evoluções mais acentuadas, pela presença e
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desenvolvimento tecnológico e científico, agora existentes. Vale refletir em torno das perdas, sempre lamentáveis quanto aos seres humanos que se vão, e nos ganhos, em benefício dos quantos não foram vítimas de contágio ou tiveram a ventura da cura. Nas epidemias, como nas guerras, mesmo eventuais perdedores são contemplados com alguma espécie de conquistas cidadãs e sociais, embutidas nas revelações na solidariedade das doações que pontuam as grandezas humanas de uns, bem como nas lições das pobrezas, contidas nos atos de egoísmo de outros, contido na exploração comercial e no oportunismo de natureza pessoal na política e nos negócios. Pobres humanos. Merecem reflexão especial, na linha trágico-real consagrada pelo povo de que “não há mal que não traga um bem”, as conquistas científicas, em novas vacinas e medicamentos, aprimoramento das estruturas hospitalares e no treinamento dos profissionais da saúde do corpo e da mente. Igualmente, as soluções atuais introduziram novos elementos no exercício profissional e nas relações de trabalho, na adequação dos instrumentos legais e na utilização da tecnologia. Despontam a nova realidade da legislação e no teletrabalho, num efeito cascata, reduzindo espaços físicos e repercutindo na mobilidade urbana.
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(Publicado em 03.05.2020)
“Coronajato”, a próxima atração
A máxima popular “Onde há dinheiro, tem ladrão por perto” cabe, mais uma vez, a estes tempos, quando os valores das diversas ações oficiais ascendem à estratosférica casa dos bilhões de reais e o país está vivendo um misto de ansiedade, psicose e terrorismo coletivo, refletidos, em muitos casos, em manifestações histéricas. Por trás, e a despeito dos dramas e tragédias que se abatem sobre milhares de famílias, diante do acometimento da pandemia e em face do fantasma da perda de pessoas entre os próximos de cada um, enquanto há pessoas formando na corrente do bem, outras estão arquitetando como subtrair proveito nas várias destinações. Momentos de dor e medo como o país está registrando, emprestam uma dinâmica permanente e própria, ao mesmo tempo generalizada e específica, correspondente à diversidade e variedade dos atos, fatos e decisões adotadas, reformadas e renovadas. Provocam situações características de uma crise sanitária de grandes e letais proporções, em sua extraordinária repercussão pública e, pela natureza, gerando um estresse indiscriminado, afetando e desestabilizando as condições psicológicas, físicas e emocionais das pessoas, particularmente aquelas que sofrem a contaminação e a morte nas famílias e
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nos próprias comunidades em que vivem. Um evento que deveria ficar restrito exclusivamente ao campo da saúde pública, acometendo e matando número cada vez maior de pessoas em todas as regiões, passou a ser pretexto para disputas e proselitismos políticos-eleitorais, numa politização da pandemia, mais flagrante em são Paulo, Rio e na Câmara, tumultuando ainda mais o momento nacional. Envolvem até partidos de má reputação, mesmo em fase de muda, inclusive com nomes novos, embora continuando com as caras de sempre e mergulhados no limbo do descrédito e falta de representatividade, pelos envolvimentos e prisões durante o “mensalão” e a “lava jato”. Relembrando os apóstolos Lucas e Marcos, o vulto das mobilizações humanas e a quantidade de dinheiro envolvidos no combate ao coronavirus também remetem ao preceito bíblico de que “não há nada escondido que não venha a ser conhecido e nada oculto que não venha a ser revelado”. Mal começaram as liberações dos montões de dinheiro para equipamentos, estruturas e auxílios, logo começaram a ressurgir as históricas denúncias de superfaturamentos, em alguns casos em astronômicos percentuais de 200 e 300 por cento, provocando as primeiras ações da Polícia Federal que, pelos antecedentes, serão as próximas atrações da pandemia. Mudança de componentes de setores responsáveis pelas ações de combate ao coronavirus também começaram a revelar a face oculta de quantos passaram a ser vistos, na verdade, como muito falantes e pouco atuantes, em cansativas explicações ,professorais que chegaram a encantar a muitos, mas se revelaria por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento, pela promoção pessoal, visando futuro eleitoral. Na prática, sucessores
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confessaram estarem as autoridades sanitárias caminhando às cegas para enfrentar a pandemia, pela falta de informações capazes de orientar as ações, desperdiçadas nas longas horas de exposição aos holofotes da mídia. Como a história mostra, que sempre haverá ladrão por perto de onde houver dinheiro, pronto para surrupiar, já existe a expectativa de que uma sucessão de operações análogas à “lava-jato” será a atração, após a superação da pandemia, apesar do governo haver procurado blindar os auxílios a trabalhadores, com créditos na conta de cada um, “carimbado” os valores destinados especificamente aos respectivos objetivos e implodido as intenções de governadores em manipularem livremente o socorro aos Estados. Grupos específicos ampliaram o acompanhamento da aplicação dos recursos liberados, que podem superar um trilhão de reais. É viver p´ra ver.
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(Publicado em 17.05.2020)
... E a conta está chegando
Há um turbilhão de questionamentos, aumentados a cada dia, sobre como surgiu, quem tem culpa, como se propaga e qual a solução para conter o novo coranovirus com as aflições e milhares de mortes. Nenhum, todavia, indaga as reais causas de epidemias como esta, como das muitas outras anteriores e responsáveis pelas próximas, previstas ainda mais letais, havendo inclusive prenúncios de que uma delas superará até a tristemente lembrada “gripe espanhola”, a qual são atribuídas mais de 100 milhões de vidas ceifadas. Qualquer especialista em proteção aos seres humanos, principalmente os cultores e estudiosos do sanitarismo, certamente terá como pronta resposta a carência de saneamento básico, embora não escapem dos efeitos mortais das epidemias, países e cidades líderes mundiais no quesito de “qualidade de vida”. Mas, em respaldo dos sanitaristas, as maiores incidências e o volume de perdas humanas ocorrem, não por mera coincidência, nas áreas mais humildes, onde casebres de um cômodo só são compartilhados por muitos. Estatísticas dos setores de pronto atendimento à saúde, demonstram a procedência quase total, de pessoas que vivem, ou tentam sobreviver, nessas condições sanitárias extremamente
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carentes. Tal situação tem sido agravada, principalmente, com a vinda dos desempregados das obras da hidrelétrica de Tucurui, esgotamento dos garimpos de Carajás e dos milhares embarcados pelo Maranhão, nos retornos da ferrovia de Carajás, ampliando os bolsões de miséria nas periferias e gerando as diversas formas de doenças e de violência. O saudoso governador Almir Gabriel, antes secretário de Saúde do Estado e prefeito nomeado de Belém, sempre pautou o saneamento básico em suas gestões, enfatizado pelo maior projeto de macrodrenagem já efetivado na América Latina e continuado na administração seguinte do prefeito Coutinho Jorge. Promoveram a drenagem das bacias hidrográficas da cidade e a urbanização das áreas no entorno, estendendo, por baixo das estivas remanescentes, tubulação de água potável, descontinuados pelos sucessores neste 35 anos. Recorro ao blog “EOS”, no que trata de saneamento básico e suas repercussões na saúde pública, destacando a pergunta que continua desafiando respostas nestes tempos de pandemia: “seria a atual situação da saúde pública no Brasil um retrato da falta de saneamento básico na maior parte do país?”. Discorrendo em torno do tema, está a definição dessa necessidade como um conjunto de serviços, abrangendo abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, manejo de resíduos sólidos e drenagem das águas pluviais. Tudo quanto falta em considerável parte da população de Belém, onde sequer sabem o que fazer com o lixo da região metropolitana e se repete no interior, conforme demonstram imagens de milhares dos que sobrevivem sobre lamaçais insalubres e nas dezenas de vias alagáveis a cada chuva mais volumosa. São
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condições propícias à dengue, cólera, disenteria, esquistossomose, leptospirose e tantas outras enfermidades que incidem no meio do lixo, do esgoto e das águas poluídas, a exemplo do covid-19 na atualidade. Onde as condições sanitárias e higiênicas são melhores, as pessoas têm condições para trabalhar, crianças irem à escola e muito mais. Segundo o Instituto Trata Brasil, acaso toda a população brasileira tivesse coleta de esgoto, haveria menos 74,6 mil internações hospitalares. Há a estimação de que o SUS esteja notificando cerca de meio milhão de internações por infecções gastrintestinais, o que, ao custo médio por paciente em torno de 400 reais, permite calcular quanto custam todas as doenças pela falta de saneamento básico. Não tem sido por falta de iniciativas, como o Decreto nº 7.217/2010, pelo qual, a partir de 2018, os municípios só receberiam os recursos da União, para o saneamento básico, se apresentassem o respectivo Plano. Poucos cumpriram a determinação e, passados dez anos, e já com ao menos três prorrogações, está chegando a conta. A maioria dos municípios, inclusive paraenses, ainda não atenderam a obrigatoriedade para solucionarem problema fundamental à vida e minorarem as consequências, como as produzidas pelo covid-19.
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(Publicado em 24.05.2020)
Novos sinais dos tempos
Sempre que surgem crises de qualquer natureza, principalmente quando produzem consideráveis danos pessoais e econômicos, como agora, nesta pandemia, também surgem opiniões dos que se apresentam como especialistas e palpites de meros oportunistas. Enquanto pesquisadores das origens da vida e estudiosos dos sucessivos problemas que se têm abatido sobre o universo, tateiam em busca de soluções para as questões em torno de causas e efeitos, perscrutadores dos mistérios da mente e da alma humanos são desafiados a buscarem explicações para as deformações sociais e suas influências no comportamento humano e seus reflexos em cada situação. Nesta crise epidêmica, em que pontificam as cenas chocantes de criaturas, mendigando socorro médico, e as exibições macabras de mortos e sepultamentos, merece reflexão a importância da civilidade, por vezes comprometida, a pretexto ou justificada por uma tal “modernidade”, ao longo deste século. Provocou um complemento danoso, na falência moral e na consequente decadência da credibilidade nas representações políticas e sociais, evidenciada na rejeição a detentores de mandatos eletivos. Resultado flagrante é retratado na desobediência a decisões das autoridades, também contrariadas pelas carências dos
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trabalhadores informais. As evidências dos desvios de conduta pessoal e nas formas de relações humanas são tão gritantes, que sua abordagem não precisaria recorrer aos conhecimentos acadêmicos ou aos registros antropológicos, nem incursionar pelos fundamentos em que se baseiam as ciências sociológicas e psicológicas. Estão frequentemente presentes, nas agressões físicas e verbais que desarticulam famílias, desfazem lares e perturbam nas ruas, chegando às páginas policiais e aos obituários. Textos bíblicos dissecaram distorções do comportamento humano e definiram compensações aos virtuosos, punições aos desviados e a todo o contexto de pecaminosos em redor. O risco de pagarem os justos pelos pecadores, inspiraram pensadores e cientistas sociais, chegando mesmo à obras literárias. Em “O Primo Basílio”, por exemplo, Eça de Queiroz incumbe o conselheiro Acácio de infernizar um tal George Carlin, enquanto o psicólogo Pierre Weill e o professor Roland Tompakow enquadraram o comportamento à linguagem em “O Corpo Fala”. Conflitos familiares e desvios institucionais agridem normas e pervertem costumes, revelando quanto o ser humano é capaz de práticas e de posturas, ao sabor das conveniências oportunistas, refletindo, principalmente, a capacidade de renunciar a princípios e a reverter conceitos. Há perguntas cujas respostas pontuam as deformações culturais e comportamentais dos últimos tempos. Quantas vezes filhos pedem a bênção dos pais? Quem já assistiu jovens cederem lugares aos mais velhos em locais públicos? Alguém, por acaso, já viu qualquer pessoa ceder a preferência a quem mais necessita? Quantos assistem, frequentemente, caixas e vagas preferenciais
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ocupadas por quem não faz jus, etária ou legalmente, a esses espaços? E as agressões vocais e físicas de alunos a professores, aos quais devem respeito paternal? Responder a questões assim e a menção de outros tantos exemplos, já espelham fielmente uma das razões das desobediências civis. Tantos novos sinais dos tempos estão na raiz da evolução da pandemia do conovid-19, contrariando a controvertida necessidade do chamado “distanciamento social”. Apesar da relevância, pouca ou nenhuma atenção tem sido dada a esse comportamento desrespeitoso à lei e às ordens determinadas pelas autoridades. Uns, porque simplesmente não respeitam a nada, nem a ninguém, tamanha a falta de credibilidade e representatividade popular. Outros, porque sofrem a dúvida “shakespeariana”, ao preferirem ir à rua em busca do que comer, ou morrer de fome. Como, segundo Kant, o “o ser humano é o único animal que precisa de um líder para viver”, eis a questão.
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A MELHOR PROFISSÃO DO MUNDO
Presto homenagem e reverência especial à memória do saudoso escritor colombiano de Arataca Gabriel Garcia Márquez. Embora laureado com o Prêmio Nobel da Literatura em 1082, pelo seu livro “Cem anos de solidão”, fazia questão de se dizer apenas jornalista, razão de considerar como grandes reportagens especiais a sua mais de uma dezena de livros grandes reportagens. Gabriel José García Márquez ficou celebrizado como escritor, editor, ativista e político, tendo sido considerado um dos autores mais importantes do século XX e figurado entre os escritores mais admirados e traduzidos no mundo, com mais de 40 milhões de livros vendidos em 36 idiomas.Mas o jornalismo sempre modelou suas obras, como em “Crônica de uma morte anunciada”. Fez essa profissão de fé especialmente no discurso que proferiu na abertura da 52ª Assembleia da Sociedad Interamericana de Prensa (SIP), realizada em Loas Angeles, EUA, em 7 de outubro de 1996. Intitulou de “A melhor profissão do mundo”, passando a ser objeto de leitura obrigatória de jornalistas e de amantes da
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profissão como espelho da atividade a que nos dedicamos. Eis o texto: “Há uns cinqüenta anos não estavam na moda escolas de jornalismo. Aprendia-se nas redações, nas oficinas, no botequim do outro lado da rua, nas noitadas de sexta-feira. O jornal todo era uma fábrica que formava e informava sem equívocos e gerava opinião. Não haviam as reuniões de pauta. Mais ou menos às cinco da tarde, sem convocação oficial, todo mundo confluía a qualquer lugar da redação para tomar café. Era uma tertúlia aberta em que se discutiam a quente os temas de cada seção e se davam os toques finais na edição do dia seguinte. Os que não aprendiam naquelas cátedras ambulantes e apaixonadas de vinte e quatro horas diárias, ou os que se aborreciam de tanto falar da mesma coisa, era porque queriam ou acreditavam ser jornalistas, mas na realidade não o eram. A prática da profissão, ela própria, impunha a necessidade de se formar uma base cultural, e o ambiente de trabalho se encarregava de incentivar essa formação. A leitura era um vício profissional. Os autodidatas costumam ser ávidos e rápidos, e os daquele tempo o fomos de sobra para seguir abrindo caminho na vida para a melhor profissão do mundo. A criação posterior de escolas de jornalismo foi uma reação escolástica contra o fato consumado de que o ofício carecia de respaldo acadêmico. Em sua expansão varreram até o nome humilde que o ofício teve desde suas origens no século XV, e que agora não é mais jornalismo, mas Ciências da Comunicação ou Comunicação Social.
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O resultado não é, em geral, alentador. Os jovens que saem desiludidos das escolas, com a vida pela frente, parecem desvinculados da realidade e de seus problemas vitais, e um afã de protagonismo prima sobre a vocação e as aptidões naturais, em especial sobre as duas condições mais importantes: a criatividade e a prática. O mais grave reside nos atentados contra a ética, na sacralização do furo a qualquer preço e acima de tudo, alheios à premissa de que a melhor notícia nem sempre é a que se dá primeiro, mas muitas vezes a que se dá melhor. Tais críticas valem para a educação geral, pervertida pela massificação de escolas que seguem a linha viciada do informativo ao invés do formativo. No caso específico do jornalismo, a profissão não conseguiu evoluir com a mesma velocidade que seus instrumentos e os jornalistas se extraviaram no labirinto de uma tecnologia disparada sem controle em direção ao futuro. As redações passaram a ser laboratórios assépticos para navegantes solitários, onde parece mais fácil comunicar-se com os fenômenos siderais do que com o coração dos leitores. A desumanização é galopante. A pressa e a restrição de espaço minimizaram a reportagem, gênero literário que, infelizmente, está desaparecendo. É o gênero mais brilhante, baseado em investigação, reflexão e um domínio certeiro da arte de escrever, capaz de transportar o leitor ao momento e à cena dos acontecimentos. As faculdades de Comunicação Social ensinam muitas coisas úteis para a profissão, porém muito pouco da profissão propriamente dita. Toda a formação deve se sustentar em três vigas mestras: a prioridade das aptidões e das vocações, a certeza de
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que a investigação não é uma especialidade dentro da profissão, mas que todo jornalismo deve ser investigativo por definição, e a consciência de que a ética não é uma condição ocasional, e sim que deve acompanhar sempre o jornalismo, como o zumbido acompanha o besouro. O jornalismo é uma paixão insaciável. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte.”
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Linomar Bahia
PONTO FINAL, MUITO OBRIGADO PELA LEITURA.
Espero que haja apreciado o conteúdo desta obra, escrito ao correr das lembranças e das observações dos acontecimentos e do que é estabelecido como espécie de ordem ao comportamento das pessoas, todavia nem sempre obedecidas, por necessidades insuperáveis de cada um ou, mesmo, porque vivemos tempos de descrença e desconfiança em que, por isso, ninguém respeita a ninguém, nem a nada. É notável, por exemplo, o dilema “shakespeariano” a que têm sido submetidos os trabalhadores informais, vendedores de rua, biscateiros e outros sem profissão definida nem trabalho fixo. Precisando irem à rua, em busca de alguma forma de renda para sustentar, vivem uma espécie de “ser, ou não ser”, isto é, se sair, pode ser preso, se ficar em casa, pode morrer de fome. Lembra as campanhas contra o trabalho infantil, louvável quanto proteção à infância e adolescência, mas cruel quando as campanhas não incluem compensações para manutenção das famílias que os menores ajudam. MUITO OBRIGADO.
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Linomar Bahia é jornalista e radialista profissional há quase 70 anos, o mais antigo entre os remanescentes no Estado, em atuação exclusivamente em segmentos da área jornalística. É, senão o único, um dos poucos a atuarem em todas os setores peculiares da profissão e nos diversos veículos de comunicação. Linomar exerceu as funções de repórter, redator, editor e diretor de jornais e revistas, locutor, apresentador e diretor de emissoras de rádio e televisão no Pará e em outros Estados. Realizou trabalhos “free-lancer” da extinta revista “Manchete”, foi correspondente do “Jornal do Brasil” e da antiga revista “Visão”. Ainda como jornalista, implantou e foi o primeiro coordenador de Comunicação Social da Prefeitura de Belém, Assessor de Imprensa do TCM por 12 anos e Coordenador de Imprensa e Diretor do Departamento de Comunicação do TJPA. Articulista dominical de O Liberal desde 2009, escreve notas e comentários em colunas impressas e blogs, é redator de memoriais descritivos e escritor de textos literários.