Livro a casa

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PREFÁCIO Esta ideia de passar para o papel uma parte daquilo que se passou nas nossas vidas, das quais algumas guardo na memória porque as vivi na primeira pessoa, outras quando ouvia o Pai ou a Mãe a contá-las e outras ainda quando algum de vocês se predispunha a contar algumas das vossas aventuras e peripécias; tudo isso demorou algum tempo a amadurecer e quando finalmente me predispus a escrever esta pequena narrativa em honra e memória do nosso Pai, da nossa Mãe e da nossa família, não sabia como a havia de começar mas de repente, como que num flash, pensei e porque não narrá-la na prespetiva de uma casa...? Nenhuma casa tem coração, alma ou outro qualquer sentido que os seres vivos têm, no entanto esta casa imaginária tem tudo isso e muito mais, não podendo expressar-se oralmente, ela teria de arranjar alguma maneira de perpétuar tudo aquilo que veio a saber por cada um de nós e as aventuras e peripécias vividas e sentidas por ela na “sua casa”. Esta casa acompanhou-nos durante um grande período das nossas vidas e sentiu toda a garra, força e querer de dois seres maravilhosos, que não sendo perfeitos nos deram todo o seu Amor e Carinho, nos guiaram e nos transmitiram os maiores e melhores valores de solidariedade que o ser humano transporta consigo desde o inicio dos tempos. E digo-vos, meus queridos irmãos e irmãs, creio muito sinceramente que o terão conseguido. Vão ter de me perdoar por em alguns episódios das nossas vidas não conseguir ser muito rigoroso nem muito assertivo nas datas e em alguns pormenores, mas compreenderão que nem tudo pode ficar nas nossas memórias, algumas porque queremos esquecer, outras porque para nós podem não ter importância alguma. P.S. - Peço-vos uma vez mais perdão por talvez ter romanceado algumas das histórias por mim aqui narradas através da «nossa casa», mas é assim que as sinto, até porque penso que a da vida seria muito mais triste sem um pouco de aventura e romance.

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I

“O Amor é a poesia dos sentidos; ou é sublime, ou não existe. Quando existe, existe para sempre e vai crescendo”

Honoré de Balzac

Tem o povo, na sua imensa sabedoria, o hábito de dizer que as paredes têm ouvidos; pois penso eu que têm não só essa faculdade, mas quase todas as outras inerentes a um bom funcionamento corporal, que são como bem sabemos o olfato que nos permite tomar conhecimento de todos os odores e aromas que circulam à nossa volta. Temos igualmente o tato, para que possamos sentir o toque suave e aveludado das mãos de uma criança, a rudeza e os calos das mãos de quem trabalha a terra ou ter o prazer de acariciar o corpo de alguém a quem muito amamos. A visão, que é sem duvida alguma a mais importante das nossas faculdades, porque através dela conseguimos ver todas as maravilhas que o nosso mundo nos oferece e essas maravilhas são tantas, tantas que há até quem diga que os olhos são o espelho da alma, porque nunca escondem o que o coração quer dizer e são esses mesmos olhos que muitas vezes nos fazem ver o que está para além do próprio olhar. Sobre o paladar não direi palavra alguma porque nada sei desse sentido, pois estáme vedada a faculdade de sentir a textura aveludada e o sabor de um bom vinho, o prazer de saborear um bom cozinhado ou de degustar um bom doce que quer pelos aromas que vou sentindo, quer pelos comentários que por vezes ouço, deve ser algo de divinal, de outro mundo. Por tudo isto e muito mais sinto uma grande pena mas paciência, não se pode ter tudo na vida. Mas estou para aqui a divagar e ainda não me apresentei, razão pela qual vos peço desde já as minhas mais sinceras desculpas. Não fiquem admirados se vos disser que sou uma casa que como bem devem de saber é um local onde normalmente habitam pessoas. Admirados! Mas admirados porquê...? Se uma casa, como o povo tem o costume de dizer, tem paredes que tudo podem ouvir, porque não ver, sentir ou cheirar? 5


Poderá uma casa ter todas as faculdades que atrás enumerei e mais algumas? Pois eu digo-vos que sim, na medida em que eu sou o testemunho vivo do que atrás foi dito porque alguém como eu que já foi testemunha de muitas alegrias e tristezas, tem de ter vida para as ouvir e contar e sentimentos para as comunicar. Portanto é isso mesmo que eu me proponho fazer neste pequeno manuscrito, que será o de vos dar a conhecer a família que veio viver para a «minha casa». Todos os seus sentimentos, sonhos e anseios, assim como todas as alegrias, todas as tristezas, todos os bons e os maus momentos que foram vividos aqui na «minha casa» e também alguns que se passaram fora dela. Dizem os entendidos, os filósofos e os sonhadores que o Amor é o sentimento mais forte e mais profundo que pode existir em todo o mundo. Digo isto porque foi e é um enorme sentimento de Amor e uma grande paixão que me levou a ter a ideia de passar para o papel a história desta família, à qual estarei para sempre ligada por laços tão fortes de Amor, paixão e carinho, que jámais poderão ser quebrados. Laços esses tão fortes que o Amor ajudou a unir e aos quais nem mesmo a Morte com todas as suas vicissitudes e artimanhas conseguirá alguma vez destruir. Na minha modesta maneira de pensar só poderão existir sentimentos como o Amor se existir aquilo a que qualquer crente chamará de alma, essa mesma alma que nos leva a amar ou a odiar e a não esquecer as pequenas ou grandes coisas que fazem parte do nosso dia a dia e que ficam algumas delas indelevelmente marcadas para sempre na nossa memória. Mas é mesmo para lhes dar a conhecer as minhas memórias e quase tudo o que ouvi que aqui estou, mas antes gostaria de lhes dar a conhecer quem sou, como sou e onde fui construida. Sou uma casa que pelos padrões pelo qual se regem os seres humanos andarei aí pela meia idade, pelo que como devem de calcular nem sou muito velha nem muito nova o que me confere ainda alguma vitalidade e ainda alguma pujança física e que me dá igualmente bastante clarividência de pensamento e consistência nas ideias, embora existam momentos em que a memória me atraiçoa, mas penso que isso será próprio de quem tem alguma idade e muitas recordações. Fui construída numa pequena localidade nas periferias de Lisboa, quase nos límites de um concelho que na altura da minha construção se chamava Oeiras. Esse bairro à época era considerado clandestino, no entanto como quase tudo na vida tem que ter um nome, chamaram-lhe Brandoa. Como mais tarde vim a saber por conversas que ouvi cá por casa, soube que o nome do bairro teve origem numa família, dona de uma grande extensão de terreno e cujo dono e senhor dessas terras se chamava Jerónimo Váz Brandão, que teria uma filha de seu nome Maria Brandõa que como sabem é o feminino do nome do propriétario desses mesmos territórios. Após a morte do patriarca desta família calhou em sorte à filha, pelo direito de herança e de partilha, os terrenos que atrás referi, passando dali em diante a chamar-se Quinta da Brandoa. Por meados dos anos 60 houve um grande fluxo migratória das zonas rurais do nosso país em direcção às grandes cidades como Lisboa e Porto. Essa migração serviu no essencial para que famílias inteiras fugissem de vidas de miséria e de fome das zonas mais pobres de Portugal, vindo a instalarem-se nestas grandes metropoles e noutras mais pequenas em busca de trabalho e melhores condições de vida. Muitas dessas pessoas eram camponeses pobres oriundos das provincias do Alentejo e de Trás-os-Montes, outros eram operários da construção civíl que, devido aos seus conhecimentos nessa área acabaram por fazer algumas construções clandestinas, o que aliada à quase inexistente fiscalizaçao camarária e igualmente devido a alguns subornos a funcionários camarários menos escrupulosos, permitiu que fosse criado na altura o maior bairro clandestino da Europa. Devido à exigência da maioria dos moradores e após muitos anos de luta foi 6


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finalmente oficializada a legalização do bairro da Brandoa. Esta legalização deu-se pelos idos anos 80. Depois de tudo o que sucedeu e após a oficialização do bairro, foi possivel fazer chegar à quase totalidade das casas o saneamento básico e outras infra estruturas necessárias que permitiram, a partir daquele momento, uma vida mais estável e uma habitação mais condigna para todos os seus habitantes. Nasci numa rua a que alguém designou chamar do Colégio, porque precisamente mais ou menos a meio dessa rua, existia um colégio onde alguns pais iam deixar os seus filhos antes de partirem para os seus empregos. Nessa rua onde mais tarde passei tambem a chamar de «minha rua», muito embora toda a gente podesse e possa passar livremente por ela, tem um sentido descendente que termina num largo chamado da Parreirinha, creio que por em tempos ter existido ali uma tasca cujo nome ficou ligado a esse mesmolargo. A «minha rua» é umas das portas de saída do largo da Brandoa, local onde com o passar dos tempos foram crescendo umas árvores de grande porte, que hoje dão uma sombra muito agradavel a quem se quiser sentar em bancos confortáveis que foram colocados por debaixo das suas fartas e ondulantes ramagens, usufruindo não só dessa sombra assim como de um jardim bonito e muito bem cuidado. Todavia só se pode chamar casa a uma habitação quando existam quartos, cozinha sala de estar, sala de jantar, casa de banho, etc etc... Pois bem, eu sou composta por três quartos, uma casa de banho, uma dispensa, uma cozinha que até nem é muito grande mas é bastante funcional, aquilo a que se chama de hall de entrada, que por ter uma dimensão apreciável servia igualmente de sala de jantar e de estar e que mais tarde, depois de um sofá de cama lá colocado, iria servir para alguém dormir. Mas a parte de mim que mais gosto (sim porque toda a gente tem algo em si de que gosta mais e eu lá porque sou uma casa também não fujo a essa regra), é um terraço que existe na parte de trás da «minha casa» que tem a forma geométrica de um retângulo com um muito bom espaço, servindo mais tarde (sem eu ainda o saber) como local de diversão e muita brincadeira. Nesse terraço vivi grandes momentos de muita alegria e também alguns de grande e profunda tristeza, mas de todos esses momentos dar-vos-ei conta mais à frente. Quando termina a construção de uma casa é suposto que ela deseje vir a ser habitada e eu como calculam estava na expetativa que isso me acontecesse mais tarde ou mais cedo e alimentava uma secreta esperança que quem meviesse habitar tivesse o máximo cuidado comigo e que fosse boa gente porque só boa gente faz uma boa casa. Durante alguns dias vieram muitas pessoas vêr-me e eu confesso que gostei mais de umas que de outras; de umas não gostei porque achavam que o local onde eu nasci era horrivel, que eu era muito feia e que havia sido mal construida. Com essas antipatizei de imediato simplesmente por não gostarem de mim, levando-me a ter o mesmo sentimento em relação a elas, pagando-lhes na mesma moeda; outras houve que embora gostando de mim e do meu formato, não podiam ficar comigo devido a dificuldades de diversa ordem, das quais saliento a grande falta de oferta de transportes para aquela zona naquela época e a de algumas ruas periféricas à minha não estarem ainda asfaltadas, não estando portanto em condições de se poder por lá caminhar. Não obstante todo o esforço empreendido por aquele que me havia construido no sentido de os convencer de que muito em breve essa situação estaria resolvida, não quiseram vir morar comigo. Passados alguns meses sem que ninguém me quisesse habitar, confesso que cheguei a pensar que elas teriam razão, porque provávelmente eu seria mesmo feia, que de facto havia sido construida num local horrível, que todas as outras questões eram reais e verdadeiras e olhando a tudo isso cheguei a temer que nunca iria servir para o fim a que me construiram. Mas passado algum tempo e depois de ter sofrido algumas desilusões, eis que certo dia vejo entrar pela «minha porta» um casal que aparentava estar na casa dos quarenta anos. Ela era uma senhora que vestia de forma simples, cabelo arranjado também de forma 7


muito simples e prática. Não era muito bonita, como algumas das mulheres que eu via passar na «minha rua», mas olhando-lhe para o rosto e para os olhos constatei que era daquele género de pessoas que têm uma beleza muito própria e com as quais simpatizamos de imediato. Foi talvez essa simplicidade e essa aura de simpatia que irradiava da sua postura que me levou a pensar e a têr a esperança de que havia finalmente encontrado quem de mim gostasse e me quisesse. Porque o que eu vi no olhar dessa senhora foi uma grande paixão e uma enorme alegria por finalmente poder vir a ter a casa que sempre imaginara para si e para todos os seus e não deixei de pensar que a cabeça dela devia de estar a imaginar em colocarme à sua maneira. Caculei os planos que ela tinha para mim, para melhorar a sua vida e a dos seus e podem ter a certeza que desde aquele dia fiquei a acreditar no Amor à primeira vista. Quando finalmente me fixei no homem, o que eu vi e o que senti naquele momento foi que estava perante alguém com um olhar forte, vivo e franco, que demonstrava nesse olhar grande força de carácter e uma enorme força interior e que embora estando vestido de forma igualmente muito simples era uma daquelas pessoas que não passam despercebidas facilmente em nenhum lugar porque na primeira impressão com que fiquei, e a primeira impressão é quase sempre a que fica, é que era alguém de trato fácil e muito afável, ostentando no rosto um sorriso fácil e generoso de quem se sente bem consigo e com os outros. Tudo nele irradiava simpatia e não obstante ser de estatura mediana e não muito forte, era daquele género de pessoas das quais não nos esquecemos com muita facilidade. Notei na sua postura corporal uma grande vontade de agradar à senhora e de lhe proporcionar a casa que eu supus imediatamente ambos tanto desejavam, tentando dessa forma ajudar a criar melhores condições de vida e de bem estar, que é o que sempre se procura quando se quer mudar de casa, e como o desejo deles ia ao encontro do meu, desejei bastante que ficassem comigo e, caso isso assim acontecesse, senti de imediato que nos iriamos dar muitíssimo bem, porque é vontade de uma casa ter sempre boa gente a entrar pelas suas portas e a viver dentro de si e não me enganei ao constatar mais tarde que eles eram mesmo boa gente. Porém, quando nesse mesmo dia mais tarde lhes foi dito o valor do arrendamento mensal, uma sombra perpassou pelo rosto de ambos, causando grande apreênsão não só neles como também em mim e nesse momento tive receio de que o valor a pagar de renda fosse um grande óbice aos anseios deste casal de quem eu tanto começava a gostar. Mas depois de uma pequena negociação chegaram a acordo, selado com um aperto de mão entre o homem de aspecto simples e aquele que me construiu, cimentando nesse aperto de mão uma forte amizade que durou muitos anos e que só terminou físicamente com o desaparecimento de um deles. Porém quando soube quantas pessoas me vinham habitar, fiquei muito assustada e pior fiquei quando vi entrar um a um os filhos deste casal ajudando a carregar da forma que podiam os parcos haveres desta família. Após os ter contado constatei que eram ao todo oito, todos da mais velha ao mais novo com diferenças de idade muito aproximadas. Fiquei sabendo assim que esta família era composta por dez pessoas que iriam viver comigo até ao fim da minha vida, assim esperava eu. “Pouco ama, aquele que quantifica o quanto ama”

Petrarca

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II

“Algumas pessoas, por mais velhas que sejam, nunca perdem a beleza, apenas a transferem do rosto para o coração” Martim Buxbaum

Certamente compreenderão porque lhes disse que fiquei assustada, pois não é facil ver entrar pela nossa porta uma catrefa de gente e não ficar apreênsiva e igualmente com muito receio do que nos possa vir a acontecer. Pensei que a partir dali a minha vida iria ser um inferno, que me iam partir toda e estragar as minhas paredes, sujar-me o chão e todas as outras coisas que as crianças sem educação e sem regras são capazes de fazer. Mas essa apreênsão e esse receio foram-se esbatendo, ao mesmo tempo que ia conhecendo um a um os filhos e filhas deste casal, ouvindo o palrar e a correria dos mais novos e assistindo ao interesse e à curiosidade dos mais velhos quando me viram pela primeira vez. Fiquei muito feliz quando notei nos sorrisos constantes que cada um deles detinha no rosto e nas palavras que se soltavam das suas bocas ainda imberbes, o prazer que tinham em estarem juntos e até nas pequenas provocações de que eram alvo entre si, que eram de facto gente boa e uma família na qual todos se davam bem e muitofelizes. Os haveres da «minha família» eram muito escassos consistiam tão somente em alguns colchões que iriam ser colocados no chão enquanto não viessem as camas, uma cama de casal onde dormiam o Pai e a Mãe desta gente toda, alguns cobertores, colchas de cama e também alguns lençois, algumas roupas, um fogão a gás, um ou outro pequeno móvel nos quais se incluia um guarda fatos antigo, tachos e panelas e alguns livros que vim a saber posteriormente eram a paixão do chefe desta troupe e de um dos filhos e pouco mais eles tinham. No entanto isso não impedia a que se sentissem todos bem só pelo prazer que lhes dava estarem juntos e o de irem viver numa casa com melhores condições do que aquela em que residiam anteriormente. A alegria de todos era tão esfusiante e genuína que foi muito complicado acalmar todos aqueles corações em polvorosa, porque o que todos eles queriam era sentir o chão forrado a tacos de madeira debaixo dos pés e para tal andavam quase todos descalços 9


pela «minha casa» que iria ser também a deles. Tocavam em mim, nas «minhas paredes», inalavam o cheiro a novo que delas exalava pois tinham sido pintadas de fresco e do aroma que fluia do chão que os inebriava com uma mistura de sentimentos que lhes toldava o pensamento e os punha a cantar e a dançar, com a certeza de que o Amor que tinham uns pelos outros, a paixão pela vida, a alegria de viver e o sentimento de partilha eram coisas muito importantes nas suas vidas, sentimentos esses que lhes davam a certeza de que andariam sempre de mãos dadas até ao fim das suas vidas. Não é difícil de adivinhar o que ia na cabeça dos progenitores destas crianças e adolescentes quando mais tarde se puderam deitar e pensar no primeiro dia na sua nova casa e no que iria ser a partir daquele momento na sua nova vida. Os seus corações estavam muito felizes porque tinham finalmente concretizado um sonho acalentado ao longo de muitos anos e que foi sendo sempre adiado devido às diversas circunstâncias da sua vida, sonho esse que era o de dar aos seus muito amados filhos e filhas um lar condigno com todas as comodidades possíveis que uma casa pudesse oferecer e na qual pudessem viver e crescer sem constrangimentos de espécie alguma. No entanto existia a precupação de o rendimento familiar ser curto, tendo que serem muito bem pensadas todas as despesas a fazer mensalmente mas o pensamento dos dois era o de darem o melhor possível aos seus filhos e, quando se quer muito uma coisa, essa coisa tende invariávelmente a acontecer. O sentimento que os inundava era um misto de esperança e de receio de que não pudessem cumprir com todas as responsabilidades que teriam que arcar dali para a frente, mas a esperança de que tudo iria correr melhor daquele dia em diante foi mais forte, tão forte como o Amor que os unia aos dois e o amor que devotavam a todos os filhos sem excepção. Por isso quando finalmente conseguiram adormecer abraçados um ao outro, um grande sorriso de esperança bailava nos lábios de ambos. Como em traços largos já me apresentei e não querendo tornar-me muito chata e fazer-vos perder o vosso tempo precioso, vou agora falar-lhes mais em pormenor da história de vida destas duas pessoas, de como elas se conheceram, viveram, amaram e partiram e não ficaria bem comigo se não incluisse nesta história os filhos que ambos trouxeram ao mundo, porque era para eles e por eles que todos os dias lutavam, para que do pouco que materialmente lhes podiam oferecer, nunca lhes faltasse o essencial para um crescimento harmonioso e natural, que foram o Amor que os dois nutriam por todos os filhos, a educação que lhes deram e o respeito que lhes foi transmitido pelos dois, por tudo e por todos aqueles que os rodeavam. Alguns episódios da história desta família, que doravante passou a ser a «minha família», tiveram-me a mim como observadora priveligiada, porque muitos deles se passaram dentro da «minha casa», outros tomei conhecimento por conversas que não podia deixar de ouvir, na medida em que muitas delas foram também realizadas dentro das «minhas paredes». Algumas dessas conversas e alguns desses episódios vos contarei em seguida isto é, se estiverem com paciência suficiente para me ouvirem. “O amor é um tesouro que, quando é sincero e verdadeiro, nem a perfidia ou a maldade conseguem destruir” Henrik Hibsen

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III Não há virtude, nem riqueza Nessa casa de madeira; Mas p`ra lhe dar mais beleza, Tem na entrada uma roseira. Vasco da Silva Nunes

E foi através dessas conversas que fiquei a saber que quando este casal se conheceu ela trabalhava numa fábrica de tecidos, malhas e outros produtos e que cujo nome era Grandela. Naqueles tempos essa fábrica situava-se numa localidade de seu nome Benfica. Quanto a ele exercia a profissão de torneiro mecânico numa fábrica sediada na Amadora que naquela época se chamava Cometna, e que produzia essêncialmente componentes para as vias ferrovárias . Após o casamento foram morar para uma casa de madeira, com um pequeno quintal nas trazeiras que tinha naquela época umas figueiras que davam uns figos de várias qualidades e umas gingeiras das quais nasciam uns frutos muito vermelhos e saborosos, casa essa que fora mandada construir num terreno que a Mãe dele havia comprado pagando a transacção desse pequeno espaço de terreno de uma forma que mais à frente vos irei contar. A casa que situada numa pequena terra que ainda hoje se chama Caliça, junto de uma estrada que se chama Estrada dos Salgados que actualmente serve de fronteira entre o concelho de Lisboa e o da Amadora . Essa pequena localidade, segundo o que vim a saber mais uma vez pelo que se dizia cá em casa, ganhou esse nome precisamente, porque naquele tempo era ali que eram despejados grandes quantidades destes excedêntes das obras que se efectuavam por toda a capital . Nessa casa já habitava maritalmente um irmão mais velho a sua esposa, e a Mãe de ambos. Na altura o espaço ocupado para se viver era de dimensões razoaveis, porque 11


ainda não existiam muitas crianças de ambos os casais, situação que se veio a registar mais tarde, foi-hes concedido um pequeno quarto e uma exigua cozinha para viverem os primeiros anos da sua vida em comum, dividindo dessa forma essa casa em duas, ficando num lado o «meu casal» e a Mãe dos dois irmãos, e no outro lado a restante família . Na altura o espaço era suficiente para eles e para a primeira filha que vinha a caminho, mas mais tarde e com a chegada de mais filhos foi-se tornando num local muito limitado para albergar toda a família, porque a parte da casa que lhes foi facultada para viverem consistia w como já vos disse do tal quarto e de uma pequena cozinha que tinha as minimas condições de habitabilidade e trabalho. Uma grande dificuldade que eles e os filhos mais velhos tiveram de enfrentar, consistia no chão dessa cozinha que era de terra batida, que devido à humidade do tempo chuvoso e ao vapor das comidas ali feitas ficasse escorregadio, contribuindo com essa humidade para que aquele piso se transformasse numa armadilha complicada e perigosa. A solução para obstar a esta situação bastante difícil, foi encontrada numa serração que laborava conjuntamente com uma carvoaria, situada na rua do Cinema Portugal que vendia sacos de serradura, que compravam por um preço quase simbólico. Essas pequenas particulas que se despregavam da madeira aquando da sua serração eram depois era profusamente colocadas sobre o chão absorvendo dessa forma toda essa humidade. Somente os filhos mais velhos se recordão desses dias e de tudo aquilo que assistiram e das adversidades porque passaram, até que um dia o Patriarca da «minha família» com a prestimosa contribuição de um grupo de amigos, colocaram um soalho de tábuas rusticas, para que a tarefa diária de alimentar todos os filhos que ao longo dos anos foram nascendo, se tornasse mais facilitada e mais tranquila melhorando dessa forma as condições de vida do seu diminuto lar. Por sobre as tábuas dessa cozinha ficaram impregnadas todas as histórias e momentos vividos ao longo de todos os anos ali passados, e que só foram destruidos aquando da demolição da casa, para dar passagem a uma auto estrada, porque as forças imparáveis do progresso assim o exigiram, reclamando aquele pequeno pedaço de terra destruindo de uma assentada uma humilde casa de madeira cujas paredes e chão guardavam memórias e passagens de vida de gente que ainda hoje, passados todos estes anos recordam com muita saudade os tempos dificeis ali vividos. Mesmo as más recordações, e foram muitas, são hoje lembradas como um tempo de aprendizagem e de saber, que os tornou mais fortes, mais conhecedores das dificuldades que a vida encerra e a cada dia que passa mais solidários e amigos. Nem só de más recordações se fez a vida naquela cozinha e naquela casa, tambem houve muitas coisas boas que ali se passaram que mais para a frente no decorrer desta minha pequena narrativa vos irei dar conta. Como atrás já vos disse a cozinha era muito pequena, visto que dispunha somente de duas bancadas pequenas todas elas fabricadas em madeira que tinham umas gavetas, onde numa das quais eram guardados os pratos, os tachos as panelas e os viveres, e na outra ficava um fogão a petróleo onde a Mãe cozinhava as refeições para toda a família a seu cargo. Era por sobre esse fogão que no inverno as águas para os banhos eram aquecidas em grandes panelas, e colocadas sempre com muito cuidado pois não fosse o mais pequeno descuido provocar um incêndio. Incêndio que ia acontecendo não fosse a rápida intervênção do patriarca da «minha família», e de um dos filhos que numa rápida sucessão de acontecimentos conseguiram com alguma sorte e muita destreza, apagar um fogo que havia começado a consumir as paredes forradas a papel, que estavam ali a servir de resguardo no sentido de evitar que as mesmas se sujassem com o salpicar das comidas feitas no tal fogão . Quis a sorte que após terem todos tomado banho não tivessem retirado ainda a bacia onde o haviam feito e que se encontrava cheia de água, ficando esta entre o quarto onde eles estavam reunidos a conviver como tantas vezes o faziam e a cozinha onde a Mãe estava a fazer o jantar quando ouviram os seus gritos aflitivos pedindo ajuda. Saltaram todos rápidamente como que se lhes tivessem colocado molas nos pés e nos bráços, um 12


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dos filhos agarrou em desespero na bacia e num esforço terrivel descarregou todo o seu conteudo em cima das chamas, apagando-as quase de imediato enquanto o Pai dava um pontapé tremendo no fogão a petroleo que se havia envolvido igualmente nas chamas, indo este aterrar directamente num tanque de lavar a roupa, que pelos designios da sorte e sabe-se lá porque mais coisas que a vida tem, se encontrava com a água com que o tinham enchido, afogando a máquina e por consequência as chamas que dela saiam . Depois deste susto decidiram comprar um fogão a gás que se veio a revelar muito mais eficiente e seguro permitindo à Mãe fazer a comida com mais descanso e segurança . Uma das coisas boas que eles contam que a Mãe fazia muito bem e que eles bebiam prazentosamente, era um cacau quentinho que sempre lhes soube bem, que diversas vezes acompanhado de um pedaço de pão com manteiga subtituia o jantar. Ainda hoje os ouço dizer que não havia melhor bebida que eles saboreassem, dizendo um dos filhos com alguma frequência, que ninguem o fazia com tanto sabor e textura trazendolhes recorrentemente à memória sabores e cheiros das suas infâncias. No unico quarto existente naquela casa de madeira, a cama onde dormia o chefe da «minha família» e a mulher que a força do destino e as amarras inquebráveis do amor escolheram para ser a sua companheira de uma vida, ficava igualmente a cama onde todos os seus filhos dormiam. Uma cortina pesada e escura dividia o quarto ao meio. Essa cortina encontrava-se segura a umas vigas grossas de madeira, que não só serviam para sustentarem o tecto da casa, assim como as suas paredes laterais, contribuindo desse modo para uma maior resistência e sustentabilidade da sua precária habitação. No sentido de evitar constrângimentos às duas filhas, e em particular à filha mais velha que com o avançar da idade se transformou numa bela mulher, o pai construiu mercê da sua imaginação e engenho, uma espécie de tarimba na qual na parte inferior dormiam os rapazes, e, na parte superior dormiam as raparigas. Nessa parte da casa, não existia casa de banho pelo que todos os dias tinham que ir despejar nuns terrenos nas trazeiras da casa, num pequeno talude as necessidades feitas durante a noite, o que era quase sempre motivo para grandes zangas entre eles, porque nenhum gostava ou queria de ter esse trabalho, mas depois de breves discussões sobre quem tinha que o fazer tudo se resolvia a bem, tendo um deles ou não raras vezes dois de realizarem essa tarefa . Durante a época do ano em que fazia mais frio era sempre um problema naquela parte da casa, que por ter sido feita de madeira, e não tendo uma boa calafetagem deixava entrar o frio pelas muitas frestas existentes nas paredes e por alguns buracos que existiam no chão rudemente acimentado, o que era um grande matírio para todos eles e em particular para os pais de toda esta gente que além dos lençois e cobertores tinham que se servir de casacos ou sobretudos para os taparem durante a noite, tentando desta desta forma minorar os efeitos que o frio exercia sobre as suas crianças . O quarto era o unico espaço daquela casa que tinha aquilo a que se podia chamar de soalho, que muito embora fosse de cimento e apresentando aqui e ali algumas fissuras dava-lhes um relativo conforto, especialmente no Verão que como o povo sábiamente diz o Sol com os seus raios e o calor que deles emanam são o aconchego do pobre. Todavia quando o Outono se aproximava transportando com ele as chuvas o frio e as geadas, a vida de todos eles tornava-se um pouco mais difícil e desconfortável, particularmente quando a chuva fazia a sua aparição e caía com grande intensidade e fúria. A barreira de terra, pedras e arvores que se encontravam na parte trazeira da casa, não suportavam os enormes aluviões de água que se infiltravam através da madeira e por baixo do chão de cimento penetrando nas rachas lá existentes, fabricando pequenos charcos no chão do quarto inundando-o. De manhâ quando os mais velhos acordavam para irem trabalhar e os mais novos para irem para a escola tinham de ter algum cuidado, para não colocarem os pés nus no chão, porque senão ficariam com eles molhados. O sapatos e botas de borracha próprias para a chuva, eram colocados encima de bancos e no local mais seco da casa, para quando os fosssem calçar não estivessem encharcados. Mas até esses momentos menos felizes das suas vidas, foi ultrapassado quase 13


sempre com um sorriso nos lábios, que ainda hoje perdura mesmo passados estes anos todos e, quando todos ou alguns deles se juntam, as recordações desses momentos e de outros trilhados em conjunto surgem-lhes sempre nos seus pensamentos as memórias das suas infâncias. Esses episódios fizeram com que as suas consciências de irmãos e o amor e respeito que nutrem uns pelos outros atravessá-se outras gerações, que foram entrando nas suas vidas através do nascimento de novos membros da «minha família» que iam surgindo fruto dos casamentos dos filhos e filhas do Patriarca e da Matriarca da família que me adoptou. O respeito que caracteriza o seu relacionamento enquanto irmãos, foi transmitido a essas novas gerações, que em eventos familiares perpectuam nos seus comportâmentos entre primos o mesmo amor e respeito e o mesmo prazer de estarem reunidos, confraternizando em conversas engraçadas, nas quais invariávelmente surgem as aventuras e as peripécias que cada um dos seus progenitores passou isoladamente ou em conjunto. Por alturas do Natal ou do aniversário de algum deles comiam todos emcima da cama do casal, colocando uma manta ou um cobertor para evitar que caso os pratos se voltassem, as roupas da cama não ficassem sujas. O dinheiro não abundava naquela casa de madeira pelo que os presentes de Natal tinham de ser necessariamente muito simples e baratos, a maioria deles fabricados em folha de aluminio ou em madeira, mas só para poderem assistir à alegria estampada no rosto dos filhos, lá conseguiam arranjar algum dinheiro para poderem comprar as prendas de Natal, e nesse dia ao olharem para a alegria dos filhos ao manusearem aqueles brinquedos comprados com dificuldade mas com muito Amor, sentiam ambos que todos os sacrifícios feitos para verem os filhos felizes, valiam a pena. Na noite de Natal, e após um repasto simples que consistia em bacalhau com batatas e couves que pelo vim a saber é uma tradição muito enraízada no povo português, o Pai desta tribo convidava os mais velhos ou os que o quisessem segui-lo, a ir com ele à igreja de N. Sra do Amparo que ficava em Benfica, pra assistirem um pouco à Missa do Galo. Dizia ele que essa santa era a sua madrinha de baptismo, e que mesmo não sendo um católico devoto, gostava de todos os anos ir prestar-lhe uma simbólica homenagem com a sua presença. Mas de todas as histórias que os ouvia contar sobre «a minha família», há uma de que eu gosto particularmente, que é aquela de todos eles estrearem roupa e calçado novo no dia de Natal. A roupa era oferecida pela Cometna, empresa onde já vos disse trabalhava o chefe da «minha família», empresa essa que todos os anos organizava uma festa de Natal, para os seus funcionários e respectivos filhos, o calçado por sua vez era comprado a crédito num estabelecimento, cujo dono conhecendo muito bem a honra e a honestidade desta família, que muito embora sendo pobre e vivendo com bastantes dificuldades cumpria sempre com as suas obrigações, e sendo ele conhecedor dessa premissa concedia-lhes sempre essa benesse . Quando chegava o dia de Natal era uma azáfama naquela casa, a Mãe punha uma panela grande com água a aquecer para todos tomarem banho no tal fogão a gás que tiveram de comprar depois do susto porque passaram, para mais tarde depois de limpos e bem cheirosos vestirem e estrearem as tais roupas novas . Como os filhos eram muitos e para que não existissem confusões ou trocas na hora de as vestirem, as roupas eram colocadas encima das camas préviamente preparadas por nomes e tamanhos, e com os respectivos sapátos novos ao lado. A filha mais velha que já era uma senhora, ajudava a Mãe a aperaltar os mais novos, porquanto os mais velhos não precisavam de qualquer tipo de ajuda. Depois de todos limpinhos e de estarem vestidos com as novas indumentárias era uma alegria para os Pais vê-los todos contentes e risonhos a mirarem-se e a remirarem-se ao espelho, bem penteados e arranjados, prontinhos a sairem à rua para mostrarem aos amigos a roupa nova 14


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estreada naquele dia. Mas o que eu acho mais engraçado nesta história foi a forma engenhosa como o Pai e a Mãe de todos eles arranjaram para os calçar. Como eram muitos e para que não houvesse erro no numero que cada um calçava, inventaram um sistema muito simples mas bastante engenhoso, que consistia em saber a medida dos pés através de uma corda ou recorrendo a umas canas que cortavam consuante o tamanho necessário. Esses sapatos e até algumas roupas, eram comprados numa loja que existia na rua Marqueza de Alorna no bairro da Venda-Nova, cujo dono sabendo da honra e da honestidade de ambos os progenitores da «minha família», lhes concedia crédito, dandolhes assim a possibilidade de adquirirem todas as restantes roupas e calçado no sentido de complementarem a indumentária natalícia. Esse senhor sabendo das dificuldade que naquela época eles atravessavam, porque o unico dinheiro que entrava naquela casa era proveniente do vencimento de uma só pessoa, permitia que comprassem tudo aquilo que necessitassem, mediante o pagamento mensal de uma quantia por eles estipulada, que todos os mêses aquando do recebimento do ordenado, um dos filhos ia entregar na loja abatendo à despesa efectuada, cumprindo assim religiosamente com o acordado. Esta foi a unica forma que ambos encontraram para vestirem completamente os seus filhos e fazê-los ainda mais felizes no dia de natal. Mas não se pense que todas estas dificuldades lhes retiravam a alegria e o gosto de estarem todos reunidos, quando chegava a noite e se juntavam debaixo daquele mesmo tecto a contarem as aventuras e as peripécias de cada dia, onde cada coisa que se dizia ou cada anedota que se contava dava azo a grandes gargalhadas, chegando ao ponto de alguns deles não conseguirem conter as lágrimas de tanta risada sincera e sentida . Tudo era motivo para estarem juntos, e para que passasem grandes momentos de muita alegria e afecto. “Todas as flores do futuro, estão nas sementes do passado”

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Provérbio popular



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IV “A grande tragédia da vida não é que os seres humanos morram, mas que deixem de amar” Somerset Maugham

Quis o destino nos seus insondáveis designios que estes dois irmãos casassem com duas irmãs que embora partilhando o mesmo sangue eram em tudo o resto muito diferentes. Da Matriarca da «minha família», que era uma das irmãs, já vos dei a conhecer um pouco da sua personalidade e do seu sentido de vida, quanto à outra irmã pouco vos poderei acrescentar porque não a conheci, o que eu sei acerca dela fui tomando conhecimento ao longo dos anos e atraves de algumas conversas que eram efectuadas cá por casa e que eu como boa ouvinte não pude deixar de escutar . Ouvi várias vezes nessas conversas que seria uma pessoa com um feitio muito complicado, era alguem que tinha na sua génese pessoal, uma forma de encarar as coisas quase sempre com um misto de amor e ódio, porque o seu relacionamento com a sua irmã, (a Matriarca da minha família) durante muitos anos foi regida sobre constantes discussões e confrontos verbais, chegando em algumas ocasiões às agressões físicas entre ambas, provocando um desgaste muito grande e uma grande barreira na sua relação afectiva como irmãs, que por via desses confrontos fisicos e verbais ficavam várias vezes sem se falarem durante largos períodos das suas vidas, soube que um desses períodos durou mais de déz anos . Devido a esse comportamento de amor/ódio entre as duas, as suas relações só eram reatadas ciclicamente quando acontecia alguma coisa grave que atingia ora um lado da família ora outro . Mas como diz o povo «não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe», aconteceu que a pouco e pouco e ao fim de alguns anos conseguiram finalmente terminar com a tal barreira que as havia afastado durante tanto tempo. Cada uma delas com o avançar da idade foi ficando mais tolerante e mais compreênsiva, e a aproximação teria de acontecer mais cedo ou mais tarde, porque os laços 17


de sangue são geralmente muito fortes, contudo foi preciso acontecer uma desgraça para que voltassem a encontrar os laços perdidos como irmãs e a se relacionarem como família. Do pouco que sei acerca do irmão do chefe da «minha família», era que seria uma pessoa muito comunicativa e alegre numas ocasiões, mas noutras era um homem que impunha respeito e até algum medo pela sua presênça de estatura elevada e vós forte e grave, a conjugação dessas duas coisas transmitiam às crianças que o viam e ouviam um misto de medo respeitoso e um grande receio de o enfrentar. Quanto às discussões que as duas irmãs tinham constantemente, ele conseguia tanto quanto possivel manter-se afastado delas. Esses momentos de grande tensão podiam causar um mal estar entre os dois e ir minando o seu relacionamento como irmãos, mas o amor e o respeito que nutria pelo irmão mais novo, nunca permitiu que que fossem lançadas quaisquer barreiras entre eles que pudessem afectá-los e fazer perigar aquilo que os dois tinham de melhor, o amor entre ambos e a tolerância perante factos que ciclicamente eram resolvidos e quase encerrados para bem de todos eles. Por tudo isto e muito mais que eu soube, é que nunca se poderá dizer que ele era um mau homem. Os muitos filhos que estes dois casais de irmãos iam colocando no mundo, eram todos mais ou menos das mesmas idades, o que até dava a aparência que competiam entre si, porque quando uma das irmãs engravidava a outra seguia-lhe o exemplo . Todos os primos comportavam-se muito bem entre si, com a condicionante de serem alguns deles muito crianças, e como tal uma vez por outra tinham pequenas desavênças que eram rápidamente sanadas e esquecidas. Alguns desses primos eu conheci aquando das suas visitas cá a casa, coisa que faziam de tempos a tempos; mas há um em particular que eu me recordo muito bem porque era visita constante e assidua na «minha casa », não teria ele ainda vinte anos quando o vi pela primeira vez. Esse sobrinho dos chefes da «minha família» era por todos eles muito querido e estimado, ao ponto de lhe oferecerem dormida e comida bastas vezes, no entanto fiquei a saber pelas tais conversas tidas cá em casa, que quando era mais novo era senhor de alguma maldade que em certas ocasiões ultrapassava o razoável, mas como a idade tudo leva e tudo trás, com o avançar dos anos o seu comportamento foi-se alterando, merçê dos conselhos e da ajuda que o Patriarca da «minha família », e os primos lhe davam. Tinha uma tão grande revolta e mágoa dentro de si motivada por questões familiares, que muito embora eu os conheça não me parece que vos interesse saber o porquê dessa revolta e dessa mágoa, que afogava constantemente em vinho e em fanfarronice, que transparecia quase sempre mais no que dizia e nunca naquilo que era capáz de fazer. Quis o destino que a sua vida fosse curta e triste deixando aquando da sua morte um rasto de saudade e compaixão . Chamava-se António Manuel Sacadura Nunes mas toda a gente o tratava carinhosamente por Tonicha. Desde que por não te ver, Vejo em tudo noite escura, Resta-me só a ventura, De duvidar em dizer. Pedro António Correia Garção

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V Cai o silêncio nos ombros e a luz Impura, até doer. É urgente o amor É urgente permanecer Eugénio de Andrade

Alguem de quem sempre se falou cá em casa com muito carinho e com imensa saudade foi da Avó paterna, que pelos relatos do seu filho e de alguns netos que a conheceram, era uma senhora de uma bondade extrema, e que fiquei a conhecer e a gostar somente pela descrição que faziam dela, da maneira com que ela encarava a vida e pela sua forma de ser e de estar. Pela descrição física que dela faziam, fiquei a saber que seria uma senhora baixinha, e que devido ao muito trabalho que teve para criar quatro filhos sózinha, para o fim da sua vida foi ficando ligeiramente curvada para a frente, precisando de se amparar com alguma dificuldade a uma bengala, que mais parecia um bordão pequeno que dava uma ajuda preciosa às suas pernas já muito cansadas O seu cabelo era branco de uma alvura tal que mais parecia a cor da neve acabada de cair do céu salpicado aqui e ali de um tom prateado, que quando o Sól o vinha beijar, colocando docemente os seus raios por sobre a sua cabeça, faziam com que os seus cabelos brilhassem, com a tonalidade e a beleza da prata. O cabelo era suavemente repuxado todo para trás formando um pequeno carrapito, preso na nuca por um lenço ou por um elástico. No rosto delicado e a descoberto, o seu olhar ostentava num sorriso belo e suave toda a doçura e bondade, que somente as Avós conseguem ter . Da sua boca, as palavras fluiam num manancial de conhecimento e sabedoria, dando a ideia aos netos que a escutavam com o máximo de atenção que da sua vós destilavam potes do mais puro e doce mel, e mesmo quando a sua vós se alterava para dar uma reprimenda a algum deles nunca o fazia sem em seguida dar um concelho ou uma palavra de estimulo e de conforto, transparecêndo em tudo o que lhes havia dito todo o 19


Amor e carinho que por eles sentia . Para aqueles que guardam para sempre na memória a sua imagem, a recordação que perdurará é a de uma Avó muito parecida com aquelas Avózinhas dos contos de fadas. Lembram-se alguns membros da «minha família» que durante aquelas noites de muita chuva e trovoada, em que os trovões traziam à mente a ideia de o ribombar dos tambores a encaminharem os guerreiros para a batalha, ou o ressoar dos cascos dos cavalos a embaterem com dureza na terra seca e dura, nessas noites de invernia e medo, ela juntava os netos em seu redor e acalmava-os com a sua vós suave e doce, dizendo-lhes que todo aquele barulho era Deus zangado com os meninos e meninas que se haviam portado mal e que só se calaria quando eles prometem-se que daí em diante se iriam portar melhor. Todas estas palavras ditas com sabedoria entravam no consciênte de todos eles e por lá ficavam, até descobrirem que não era Deus que estava zangado com eles, mas sim a Natureza em todo o seu esplendor e dureza que enviava para a Terra os seus raios destrutivos, quando as nuvens saturadas de água e electricidade chocavam entre si criando um espectáculo de luz e som que eram ao mesmo tempo belo e aterrorizante. Escusado será de dizer que estes ensinamentos simples atravessaram gerações ao ponto de eu ouvir contar cá em casa esta história sobre Deus e os trovões, aos novos membros da «minha família». Uma das coisa que eu descobri com as conversas entre eles é que a Avó paterna havia sido cozinheira num restaurante que existia em frente da casa onde o Patriarca da «minha família», nasceu e que naquela época era muito conhecido e afamado, recebendo em grandes noites de fados e guitarradas os fidalgos e os burgueses, que iam cantar e ouvir o fado até altas horas da madrugada ali fora de portas, ao ponto de ainda hoje se cantarem muitas melopeias acerca desse restaurante e do bacalhau que era ali cozinhado. Foi motivado por esse ambiente de boémia e fadistice que nasceu dentro do Patriarca da «minha família», uma das grandes paixões da sua vida, o fado. No que diz respeito ao Avô paterno pouco vos posso contar, na medida em que ele faleceu precocemente. Só sei que a sua morte aconteceu quando o Patriarca da «minha família» não teria chegado ainda à meia dezena de anos. Pelo que ouvia dizer, ele era um homem distinto, e de facto constatei ser essa a verdade, por um determinado dia ter visto nas mãos de alguem um retrato antigo com uma pessoa que soube ser o Avô paterno, nessa imagem antiga ele aparecia retratado com uma expressão severa e grave apresentando no rosto um olhar vivo e profundo, no qual ostentava um bigode fino e muito bem cuidado que lhe colocava na fisionomia um aspecto aristocrático e distinto, muito em voga naquela época. Quanto ao Avô materno ouvia-os falar sempre bem dele, porque nos momentos mais dificeis da vida deles, em que a comida escasseava, foi ele quem os apoiou inumeras vezes dando-lhes comida e algum dinheiro ajudando assim a ultrapassar os dias mais complicados. Só sei que era um homem muito alto e forte, amigo do seu amigo e que gostava muito de beber uns copos de vinho, ao ponto de alguns netos se recordarem de o ver em muitos momentos a dormir ao Sol, com a camisa completamente desfraldada e com a sua barriga à mostra, motivo de uns copitos a mais. Esse avô conhecia algumas pessoas que trabalhavam no Jardim Zoológico de Lisboa, e muito em particular um que era seu amigo à largos anos, a quem chamava de Vacas, nunca soube se era o seu nome verdadeiro se alcunha, esse seu amigo tinha a responsabilidade de tratar das flores que ornamentavam os jardins interiores desse espaço de diversão e conhecimento. Nesses belissimos locais ajardinados, as pessoas passeavam livremente admirando as mais variadas espécies florículas e plantas ornamentais. O avô conseguiu através desse amigo de longa data, entradas para que todos eles pudessem ir visitar a família ao Jardim Zoológico, como se dizia e creio que ainda hoje se diz com muita graça. No dia aprazado para essa visita, sairam todos bem cedinho transportando nos 20


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corpos alvoroçados nos olhos e corações, a exitação própria de crianças que vão pela primeira vez nas suas ainda curtas vidas, conhecer algo de diferente e fascinante adivinhando em cada gesto praticado e em cada palavra dita que esse dia iria ficar para sempre marcado no seu album de recordações mental. O dia ia ser longo e havia que dar de comer aquela gente toda,e para que ninguem se queixasse com fome, a Mãe e a filha mais velha prepararam no dia anterior, um sem numero de comidas antevendo um pic-nic fantástico e que com toda a certeza iria ser memorável. As comidas desse repasto eram variádas e pelo que os ouvia dizer todas elas muito saborosas. Dessas iguarias destaco o arroz de tomate e pimentos, que ia ser acompanhado com os inevitáveis pasteis de bacalhau, e uma excelente salada de tomate e alface. Refiro particularmente essa comida por ouvir reiteradas vezes que era um grande petisco, para finalizarem a refeição havia melão saboroso e fresquinho, que devoraram ávida e gulosamente em talhadas generosas, cuspindo as pevides uns aos outros na brincadeira, incentivados pelo avô que adorava vêr os netos nesta disputa alegre e salutar. Dessa visita a «minha família» guarda momentos bem passados, muito divertidos e bastante cómicos mas há um que ultrapassa tudo o que fizeram nesse dia em divertimento e comicidade, que não resisto a vos contar, porque de cada vez que alguem da «minha família» conta o que se passou num dado momento desse dia, todos soltam gargalhadas com a recordação que passados tantos anos ainda se encontra bem viva nas suas mentes. O Avô vinha munido de uma máquina fotográfica que naquela época existia, que era muito parecida com uma pequena caixa de cor escura que se colocava junto da cintura a uma altura média de meio metro, espreitando atavés de um oculo quadrado, que refletia de um modo complexo o que se queria registar em fotografia, essa máquina ou outra igual estará hoje exposta em qualquer museu da especialidade, porque com o evoluir da tecnologia tornou-se uma peça obsoleta e sem valor para as novas gerações. Para se conseguir guardar para a posteridade as expressões de alguem, a cada fotografia tirada tinha que se dar vigorosamente a uma pequena manivela para que o rolo andasse para a frente dando lugar a um novo espaço fotográfico. Ao se preparem para a foto de família da praxe encostaram-se a um gradeamento que separava os visitantes do parque dos veados, que a pouco e pouco se foram chegando perto deles acicatados pela curiosidade, que pelo que dizem cá em casa é normal nestes animais, eis senão quando um dos filhos que creio ter sido o Zé Henrique, lançou um vento intestinal sonoro, fazendo com que os pobres animais ao ouvirem aquele som fugissem em debandada cada um para seu canto, provocando em todos eles uma estrondosa sinfonia de gargalhadas surpreêndendo inclusivamente todas as pessoas que por ali passeavam. Uma das muitas coisas que eu escutei cá em casa, era a de que o avô adorava aquilo a que eles chamavam as maminhas das carcaças, que eram uns páezinhos que existiam naquele tempo e cujas extremidades tinham umas saliências rijas que de facto pareciam maminhas. Apresento-vos esta lacónica explicação, porque durante esse pic-nic os netos guerreavam entre si, tentando cada um deles dar-lhe o maior numero possivel desses pedacinhos de pão, para o ouvirem estalá-los com os poucos dentes que ainda lhe restavam, arrancando grandes gargalhadas e aplausos espontâneos da plateia infantil somente por ouvirem esses pequenos estalidos feitos propositadamente pelo Avô para os divertir. Esta coisa de com os dentes fazer estalar pequenos pedacinhos de pão, para a maioria das pessoas poderá parecer simples e vulgar, contudo para eles era demonstrativo da vontade genuína e da alegria singela com que gostavam de partilhar essas pequenas coisas. E muito sinceramente vos digo meus amigos, é de coisas simples e vulgares que nascem os grandes momentos da vida.

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Quando à noite, cansados se envolveram nos lençois para dormir, foi muito difícil que o sono chegasse, mas quando ele chegou envolto no manto diáfano da páz e do Amor, todos tiveram o mesmo sonho, sonharam em como era bom estarem todos juntos e em partilharem o mesmo amor sincero, puro e inocente que os unia. “Nunca esquecemos quem amamos, o coração tem boa memória.”

Anónimo

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VI “O amor é fogo que arde sem se vêr; é ferida que doi e não se sente, é um contentamento descontente.” Luis Vaz de Camões

São as acções do dia a dia que uma criança testemunha, que mais tarde na adolescência e quando adulto, irão moldar o seu comportamento em sociedade e a sua forma de encarar as coisas da vida. Serve este pequeno intróito para lhes contar uma história que foi contada cá em casa pelo filho mais velho num dia em que já homens e mulheres feitos se juntaram no «meu terraço», a recordarem momentos da sua infância. Num determinado dia, apareceu um velho mendigo esquálido e tremendo compulsivamente, a mendigar na estrada onde moravam, pedindo um pedaço de pão ou algo que lhe pudesse matar a fome. Os seus tremores tinham a vêr com toda a certeza devido a não ter comido uma refeição decente nas últimas horas. Todos aqueles a quem ele pedia alguma coisa viravam-lhe as costas, não querendo vêr a desgraça e a miséria personificada num ser de aspecto triste e indefeso, e foram o Pai e a Mãe da «minha família » que mesmo com as suas fracas posses quem lhe matou a fome, colocando-lhe nas mãos trémulas e inseguras, um prato com sopa acabada de aquecer e um pedaço de pão, que ele devorou ali mesmo, como se fosse o mais extraordinário manjar, sentando-se com dificuldade para comer na pedra dura e fria que servia de escada e que dava acesso à casa de madeira onde moravam. Um facto curioso é o de nunca mais terem visto o tal mendigo nas redondezas a pedir; coisa estranha e incompreensível que levou mais tarde o Pai a dizer aos filhos para terem sempre cuidado com as acções que praticassem nas suas vidas futuras, porque o que se passou no dia em que deram de comer àquele mendigo, podia muito bem ser uma entidade superior a experimentá-los, tentando saber que tipo de pessoas eles eram, e como se comportavam perante um ser humano necessitado. Por isso é que ele em conversas tidas depois deste pequeno mas significativo episódio, aconselhou-os a terem sempre muita atenção em tudo aquilo que faziam, a pensarem muito bem sobre as acções que 23


praticassem e a olharem em redor vendo meticulosamente o que se passava à sua volta. Como atrás vos contei a casa onde a «minha família» teve o seu inicio, foi construida em madeira com um pequeno quintal nas traseiras e um facto curioso e porque não dizê-lo deveras engraçado, foi a forma como a mãe do «chefe da minha família» o adquiriu. As pessoas de antigamente e algumas de hoje,quando assumem um compromisso sobre juramento de honra mantinham e mantêm esse juramento acima de qualquer contingência que se passe nas suas vidas. Vem este pequeno intróito a propósito da forma como a avó comprou o terreno onde mais tarde mandou erigir uma casa, onde nasceu o seu filho mais novo, o «patriarca da minha família», criou todos os seus filhos e onde mais tarde habitaram dois deles com as suas respectivas esposas e seus filhos que foram nascendo com o decorrer dos anos. O facto curioso e engraçado é que ela adquiriu-o em permuta por dois porcos, que mesmo naquele tempo em que o valor do dinheiro era inferior aos tempos actuais, seria um valor irrisório por um pequeno pedaço de terreno já com algumas arvores de fruto e de fácil acesso. Como atrás disse a palavra dada era para se cumprir e o negócio foi efectuado por duas pessoas que se respeitavam e que respeitaram um compromisso. Como todas as casas com quintal que se prezem têm de têr um cão, esta não fugiu à regra. Um dos muitos cães que com eles viveu e do qual melhor se recordam tinha um nome deveras engraçado, chamava-se Vendaval porque mal se pôde equilibrar nas pernas, transformou-se num cão irrequieto e muito brincalhão desatando a partir ou a rasgar tudo o que lhe surgia pela frente, daí terem-no baptizado com esse nome. Nome que nos primeiro anos da sua vida lhe assentou muito bem. Esse cão que com eles vivia era um animal com um porte muito nobre e digno, a sua pele era de um castanho claro muito brilhante,tinha um focinho enorme e assustador, onde ostentava uns olhos profundos e escuros dos quais transparecia uma grande inteligência canina. A prova dessa sua inteligência sagaz e intuitiva, era-lhes dada quando o colocavam fechado dentro de uma casa, ou trancavam propositadamente uma porta, que ele abria com a maior das facilidades. No entanto era só no aspecto que era assustador porque em tudo o resto era de uma dócilidade que impressionava quem perto dele se chegava. A sua personalidade docil, permitia que após ganharem a sua confiança, as crianças fizessem dele cavalo colocando-se em cima do seu lombo forte, fazendo-o trotar alegremente a uma ordem dada por qualquer um deles. No seu instinto animal ele sabia que os laços familiares que uniam os primos, era para serem preservados e resguardados de qualquer agressão exterior e ele no seu impulso natural e com a sua intuição, defendia-os com arreganho caso existisse alguma provocação hostil vinda do exterior da família. Contudo, se houvesse alguma zanga entre primos o Vendaval colocava-se no meio dos contendores rosnando ora para um para outro, tentando dessa forma afastá-los sem qualquer prejuízo fisico para ambos. Aquando da sua morte deixou em alguns deles um rasto de saudade muito grande que ainda hoje perdura, porquanto a lembrança dos seus ultimos dias de vida provoca em todos os que com aquele animal privaram e que tanto lhes deu, uma grande tristeza, porque o que eu vim saber pelas tais conversa que iam acontecendo cá em casa foram, de que o seu desaparecimento foi funesto, terrivel e muito doloroso. Trago-vos a esta simples narrativa a história deste cão, porque ele fez parte da vida dos membros mais velhos da «minha família», e como ouvia falar constantemente cá em casa desse animal, achei por bem fazer-lhe uma pequena homenagem, e creio não estar enganada se disser que ao lembrá-lo, todos aqueles da «minha família» que correram ao seu lado pelas ruas da terra onde cresceram e brincaram com ele nas serras em redor da casa, ficarão deveras satisfeitos. “Quem mais ama, mais espera.” Gabrille D”Anuncio

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VII “O amor que nasce de repente, é o que custa mais a sarar.”

Lá Bruyére

Podia estar para aqui a contar-lhes momentos e histórias sobre a «minha família», mas isso iria durar quase uma eternidade, e porque não é meu intuito castigá-los com palavriado sem sentido, vou-lhes agora contar um epísodio da vida de todos eles, que os ia afectando gravemente, muito embora quase nenhum deles se apercebesse de qualquer alteração na sua vida. É uma história de grande amizade e solidariedade que nunca foi palavra vâ e sem sentido na boca do Patriarca da «minha família». Essa solidariedade podia-lhe ter custado a liberdade quando ao pretender ajudar um amigo que tinha uma situação complicada e difícil, porque tal como ele tambem tinha um rancho de filhos e era muito difícil alimentá-los conveniêntemente, esse seu amigo por estar farto e cansado de lutar e não vêr melhorias no seu dia a dia, meteu-se em complicações com a policia politica que naquela época existia em Portugal, que levava preso quem estivesse descontente com a situação politica no país, ou quem dissesse`as clara para toda a gente ouvir, aquilo que só se podia dizer às escondidas dos informadores e esbirros dessa entidade repressiva que se infiltravam nas comunidades e onde menos se esperava, e iam imediatamente informar os seus superiores, que apareciam cobardemente e pela calada da noite, levando para os calabouços da P.I.D.E. ou campos de concentração quem não concordasse com a sua politica de repressão e morte . Num dia em que se encontrava embriagado, esse seu amigo por via dessa embriaguês, perdeu o tino nas acções e nas palavras, desatou a falar contra a vida de miséria que levava, começando a sacudir tudo o que lhe ia na alma e no coração e que se acumulara dentro de si durante tantos anos de trabalho e de sacrificio. Escusado será de dizer que entre os que o escutavam estava um desses informadores que de imediato foi contar aos seus superiores o que acabara de ouvir, dando azo a uma operação que culminou na prisão de quem falara, ficando esse seu amigo preso durante muito tempo, com as consequências que daí advieram para toda a sua família No sentido de angariar dinheiro para a família desse seu companheiro, que cuja 25


vida de difícil passou a dramática obrigando os seus filhos e a sua esposa por via da sua prisão a terem dificuldades ainda maiores, tomou a seu cargo a responsabilidade de os ajudar a sairem dessa situação quase extrema, decidiu organizar uma sessão de fados e guitarradas tentando dessa forma solidária e altruista ajudar os filhos e a mulher de um amigo e companheiro de sempre . Devido a esse acção humanitária, passou tambem ele a ser vigiado pela policia politica que tentaram sempre apanhá-lho em contrapé, contudo nunca o conseguiram porque a unica coisa que o Patriarca da «minha família» pretendia era dar de comer e de vestir aos filhos, afastando-se de qualquer complicação que pudesse surgir. No entanto só porque não queria problemas com a policia politica, não significava que ele concordasse ou aceitasse de bom grado tudo o que se passava em Portugal onde uma pequena elite mantinha quase todo um país em pobreza física e de conhecimento. Os filhos mais velhos e a sua esposa embora sem grande consciência do que se passava sentiram sempre nele a pressão do que tinha feito, e só alguns anos mais tarde é que ele contou tudo isto a um dos filhos, que posteriormente contou cá em casa toda esta história. Quando todos souberam desta atitude solidária e do trabalho por ele efectuado, mesmo com o perigo que isso podia representar, para todos eles, o orgulho que por ele sentiam e por ser a pessoa que era, acentuou-se muito mais. “ O amor não se compra nem se vende, ele é gratuito porque nasce espontâneamente na nossa alma e cresce de dentro do coração.”

Carlos S. Nunes

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VIII “Há uma Primavera em cada vida , é preciso cantá-la assim florida, pois se Deus nos deu vós é p`ra cantá-la” Florbela Espanca

Quando a Primavera despontava por toda a Terra numa orgia sinfónica de sons, cores e cheiros, que deixavam o ar impregnado de aromas inebriantes, perfumando a atmosfera, deixando no olfacto uma sensação que quase se podia considerar de droga natural, efémera e passageira, mas que ficou para sempre gravada na memória de todos eles. Na mesma proporção as cores que irradiavam das flores e das plantas, que se deixavam colher nos campos que rodeavam a casa onde viviam, transmitiam um colorido tal que nenhum pintor por muito que se tenha esforçado, conseguiu até aos tempos de hoje igualar ou colocar numa tela. Essa explosão de cores, de sons e de vida fixavam-se no olhar, na mente e nos seus corações fazendo-os sentirem-se como que fazendo parte integrante de um baile para o qual a própria natureza os houvesse convidado, colocando-os num quadro de expressões garridas, com nuances multicoloridas e exfusiantes de vida. Era exactamente este o quadro que se oferecia às crianças da «minha família» quando após uma noite bem dormida, e como lhes havia sido prometido no dia anterior, iam todos eles em rancho acompanhados pelo olhar vigilante do Pai, à serra passear, apanhar flores e também frutos, tais como as amoras silvestres que existiam em profusão por aquelas arribas. Para as colherem levavam consigo sacos de plástico ou outros recipiêntes, onde colocavam todas as que conseguissem apanhar, para posteriormente as transportarem para casa, onde iriam ser lavadas e depois transformadas em doce, que era feito com todo a Amor e carinho pela Mâe, que mais tarde e após o ter esfriado, colocava-o em doses generosas em cima de pedaços de pão escuro que eram devorados com imenso deleite e muito prazer.

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Era a pensar em tudo isto que assim que o sol despontava, já alguns deles estavam preparados para marchar ao encontro de mais uma grande aventura . Depois de um pequeno almoço que consistia invariavelmente em pão com manteiga e café forte ou cacau, lá iam todos eles tal qual um bando de pássaros à solta, saltitando pelos caminhos que os iriam levar às serras, em busca das tais aventuras, com as quais sonharam durante a noite enquanto dormiam. Enquanto caminhavam alegremente, a sua presença era notada ainda a alguma distância, porque a algarraza que faziam enchia o ar de risos e gargalhadas, espalhando uma alegria contagiante por onde passavam, deixando nos olhos e nos rostos de quem os via e ouvia, um rasto de divertimento e boa disposição. Seguiam contentes e muito satisfeitos a pensar que quando chegassem a casa pela hora do almoço, ou durante o resto do dia iriam puder contar à sua Mãe todas as peripécias dessa manhâ . Pelo caminho paravam numa rocha calcária de cor esbranquiçada, onde os mais sonhadores observavam o nascer do dia e o despontar do Sol e os seus primeiros raios que iam aquecendo a terra e derretiam muito lentamente as pequenas gotas de orvalho depositadas pela humidade da noite. Essas gotas que ficavam multicoloridas pela acção directa dos raios solares, mais pareciam para aqueles que as olhavam com olhos românticos e fantasistas, pérolas caídas do céu e colocadas por mão mágica e sedutora nas plantas e flores que orlavam aquelas serras. Nas pequenas odisseias que contavam à mãe, entravam os momentos em que os mais valentes e temerários se embrenhavam pelo meio das silvas para tentarem apanhar um lagarto ou um cobra e saíam de lá todos arranhados . Umas vezes esse desiderato era alcançado e lá conseguiam apanhar um lagarto ou a tal cobra, e quando o conseguiam era uma festa, uma alegria e um orgulho muito grande para quem havia praticado tal façanha, apresentando-o aos restantes como se de um troféu conquistado se trata-se, fazendo-o esquecer todos os arranhões e feridas causadas pelo emaranhado de espinhos expostos nas ramificações das silveiras mas, era tambem uma grande aflição para aqueles que tinham medo desses animais, porque sabiam que teriam que fugir à frente dos herois e que iriam ser constantemente gozados no caminho de regresso a casa. Nesse regresso a casa, uma das coisas de que eles não abdicavam era a de subirem mais alto na serra e matarem a sede numa bica de água que brotava do interior da terra pura, fresca e cristalina, dando-lhes a sensação e o prazer de estarem a beber o mais puro dos néctares, néctar esse que a natureza na sua imensa sabedoria lhes oferecia . Esse contar de aventuras, peripécias, histórias ou outra coisa que lhe quiserem chamar, eram quase sempre acompanhados pelo olhar benevolente e embevecido do Pai que escutava toda aquela tagarelice e chilreada de crianças felizes a tentar explicarem à Mãe todas as aventuras desse dia, no conteudo e da maneira a que só quem tem a inocência no olhar e nas acções consegue sentir e expressar . Durante estes passeios e aventuras, e tal qual os falcões que tomam conta das suas crias e nunca tiram os olhos de cima delas, tambem ele fazia o mesmo, no entanto tinha uma frase de sua autoria, que dizia inumeras vezes «sorte,sorte vila verde», que no seu entender tinha o significado de que não se pode cortar as asas a um pássaro que queira voar mas sim confiar na sorte e nos seus designios . Além das amoras que serviam para fazer o tal doce que era devorado,<enquanto o diabo esfrega um olho>, que era uma expressão recorrente da Mãe de toda esta gente, traziam consigo igualmente grandes braçados de flores de várias qualidades e cores; das quais se destacavam, as giestas que ostentavam umas pétalas de um amarelo vivo e muito bonito, presas a uma haste comprida de um verde escuro, e de uma flor a que pelo que eu os ouvia dizer se chamava, cristas de galo precisamente porque tinham na sua corola umas folhas de uma cor rosácea que davam a aparência da crista desse galináceo. Essas flores exalavam um perfume tão forte, tão intenso e tão inebriante, que qualquer pessoa que por eles passasse sentia-se transportado a um mundo de sensações 28


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que só as coisas simples da natureza nos podem proporcionar . “Só temos alegrias se as repartirmos ;a felicidade nasceu gémea.” Lord Byron

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IX “O amor verdadeiro começa quando nenhuma retribuição se espera.” A. de Saint-Exupéry

Outro momento que vos quero dar a conhecer, é aquele em que alguns dos filhos deste casal iam entregar o almoço ao Pai na Estrada dos Salgados que cujo nome nunca se soube de onde proveio. Mas dizia eu que iam entregar o almoço nessa tal estrada por onde passavam camiões com rodados maiores que um homem, e que seguiam por essa estrada indo carregar ou descarregar materiais para a construção civil, a uma empresa que era conhecida pelo nome de Alves Ribeiro que tinha um estaleiro perto daquele local. Essa estrada na época era de terra batida e com tantos buracos, que só a percorriam camiões de grande porte. Quando chovia era um lamaçal tal que muito pouca gente se atrevia a passar por ali, no entanto quando o tempo estava bom e seco, era a poeira que incomodava, mas isso não os preocupava porque eles colocavam-se do lado de onde soprava o vento evitando com essa estratégia que o pó levantado pelas rodas gigantes desses enormes camiões os pudesse atingir. Chegando ao local de encontro procuravam uma oliveira frondosa que lhes desse frescura e sombra, e aguardavam paciêntemente brincando uns com os outros, à espera que o apito da fábrica desse o sinal para um merecido descanso e para o almoço dos operários, entretanto iam olhando ansiosamente para o fim da estrada e quando finalmente o viam surgir lá ao longe com o chapéu do trabalho na cabeça, no seu andar elegante e bonito, com as pernas ligeiramente arqueadas, era uma correria doida ao seu encontro, a ver quem tinha direito ao primeiro abraço e ao primeiro beijo . A filha mais velha enquanto decorria toda aquela cena colocava uma manta grossa de retalhos por cima das ervas punha por cima dessa manta uma toalha limpa e preparava o prato, e quando o Pai chegava rodeado pelos outros filhos sentavam-se todos à sombra fresca das oliveiras a conversarem numa algazarra, que mais parecia uma discussão muito feia mas não; era antes a alegria e a exictação pelo momento partilhado. Pelo que eu conseguia ouvir da suas bocas muitas mais histórias haveria para contar 31


mas isso talvez fique para outra altura, contudo não resisto a contar-lhes resumidamente mais duas . A primeira tem a vêr com ginjas que eram colhidas numas arvores que existíam no tal pequeno quintal que existia por detrás da casa, e que cujas raízes ajudavam a suster as terras que se encontravam paredes meias com a casa. O Pai inventava um jogo no qual todos participavam e no qual quase todos ganhavam. O dito jogo consistia em terem um copo bem cheio de ginjas adoçando-as ainda mais, para tal umas vezes colocavam açucar por cima ou mel, quando o havia, outras vezes o jogo era feito com as ginjas simples tal qual as haviam colhidas das arvores. Depois com um alfinete ou uma agulha picavam para o interior do copo, tentando trazer agarrado o maior numero possivel desse fruto e aquele ou aquela que mais conseguisse trazer, mais comia e mais ganhava, escusado será de dizer que de quando em vez algum deles não trazia nada agarrado, e era uma guerra pegada e noutras vezes até um choro rasgado, mas jogo era jogo. Outro jogo de que eles gostavam particularmente era o da santa batuta que começava com uma ladaínha popular que de tanto ouvi-los conta-la também eu a aprendi e dizia assim: Santa batuta a dar à bruta A mim não dá Dá p`ra rir Dá p`ra chorar Pica no cu E bota a voar. Havia um chefe que invariavelmente era o Pai e era ele quem ditava as leis deste jogo, que consistia em que tudo o que fosse dito por quem mandava tinha de ser feito o mais rápidamente possivel, e o ultimo a chegar tinha o castigo de amouchar e levar palmadas nas costas e no rabo, este jogo tinha a particularidade, de os pôr a correr de um lado para o outro à procura daquilo que o chefe os mandara trazer para junto dele, que podia ser uma folha de figueira do quintal de uma senhora a quem chamavam Tia Encarnação, que não raras vezes vinha atrás deles com uma vassoura ou um pau para os retirar dali para fora, tendo somente intuito de os assustar e nunca o de os magoar ou causar qualquer mazela. Noutras ocasiões, tinham que ir entregar ao chefe uma pedra da calçada ou outra coisa qualquer, o primeiro a chegar com o dito artefacto era considerado campeão, mas sem direito a prémio, porque o prémio era-lhes dado pelo prazer e pelo gozo que lhes dava estarem todos reunidos numa comunhão de sentimentos que só quem ama incondicionalmente é capaz de sentir. Quero agora confessar-vos uma coisa, que hoje sei ser um sentimento muito feio, mas também sei que só quem ama profundamente é capaz de sentir. De cada vez que ouvia os filhos mais velhos falarem da casa de madeira com tanto carinho e afecto, não podia deixar de sentir que toda aquela empatia por uma casa que os viu nascer, crescer e fazerem-se gente me causava uma estranha sensação, que na altura não conseguia decobrir qual era, mas depois de os escutar tanta vez, aprendi que essa sensação se chamava cíume. O cíume pode em casos extremos pressupôr algum egoísmo e até inveja sobre algo que alguem tenha ou venha a têr, e eu amando tanto «a minha família» e não conhecendo o verdadeiro significado daquilo que sentia, confesso que essa sensação feria a minha sensibilidade e me deixava triste comigo mesma. Contudo com o tempo e com o conhecimento que a vida e as suas vicissitudes se encarrega de nos dar, aprendi que o cíume quando controlado, pode ser demonstrativo de um grande amor por alguem ou por alguma coisa. 32


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Se eu me pudesse deslocar do local onde estou e se a minha irmã de madeira aínda existisse, teria que lhe pedir mil perdões por ter tido cíumes dela, somente porque ela teve o privilégio de ter conhecido os primórdios da «minha família». Aquela casa de madeira podia não têr a beleza ou a segurança de um palácio, mas tinha a beleza que o amor pôe nos rostos simples de quem se ama e a paixão que a segurança de mil afectos coloca. Quando se entra naquilo que os seres humanos chamam de minha casa, ela não pode ser somente paredes, portas ou janelas, ela só o será se no seu interior existir gente que trará consigo de cada vez que franquiar a sua entrada, a tolerância, a bondade e a compreênsão.

“O amor é uma erva espontânea e não uma planta de jardim”

Ippólito Nievo

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X

“O amor e a amizade, são o triunfo da imaginação sobre a inteligência.” H.L. Mencken

Existem no percurso das nossas vida, pessoas que nos marcam profundamente, umas pelo seu carisma e atractividade fisíca, outras pela forma como expressam as suas ideias e opiniões, pelo seu trabalho em variados campos da vida humana ou por acções praticadas na sociedade. Depois há aquelas que nos marcam simplesmente porque sem sabermos muito bem porquê gostamos delas e pelas boas recordações que nos deixaram. E são essas boas recordações que alimentam a nossa mente e alma e que ciclicamente tomam de assalto os muros do castelo das nossas memórias, avivando passagens das nossas vidas que guardamos no mais profundo recanto do nosso cérebro, das quais não raras vezes basta só uma simples e inocente palavra dita por alguém que, sem o saber nos coloca nas mãos a chave que abre a porta às recordações mais dolorosas ou as mais sublimes e perfeitas. Foi precisamente numa conversa entre alguns dos membros da «minha familía», que tomei conhecimento de um facto triste e para mim incompreensível que realçou numa das filhas do Patriaca da «minha família», a recordação que agora evoco e que tem a vêr com familiares bastante chegados e amigos. Contudo antes de começar a contar tudo aquilo que ouvi da vós dela e que nestas páginas irei transcorrer tenho de vos dizer que o que para mim não tem compreênsão é a situação porque alguns dos familíares sobre quem recaiem essas recordações e de quem todos eles sempre gostaram muito, estarem neste preciso momento a passarem por uma situação instável e muito difícil. No entanto e porque o que de momento nos interessa é sabermos o motivo dessa recordação, guardarei talvez para o fim desta pequena história, para vos contar o porquê da minha imcompreênsão. Quando as primeiras palavras de evocação lhe saíram da boca, com elas vinham a vivência e a nostalgia de tempos passados fundidos com a tristeza do momento. Dizia ela 35


que grassas a um tio que morava numa terra às portas de Lisboa de nome Póvoa de Santo Adrião, onde tinha uns terrenos nos quais produzia essencialmente produtos hortículas, que depois vinha vender numa das ruas da capital, mais própriamente na Calçada de Campolide, é que conseguia saborear muitas das coisas que naquela altura lhes eram vedadas comprar pela falta de dinheiro. Pelo fui ouvindo a venda inicialmente era feita encima dos taipais de uma carroça puxada por um nobre animal, onde expunham todos os produtos colhidos ainda de madrugada. Soube através daquilo que nesse dia escutei, que as estradas daquele tempo eram bem mais dificeis de nelas se transitar do que hoje, por isso a extensão de terreno a percorrer seria bastante demorada à cadência dos passos de um animal de carga. Mais tarde talvez pela melhoria do negócio ou por imposição legal, passou a comercializar esses produtos numa carrinha de caixa aberta. Com a capacidade de se deslocarem mais depressa, e sem que esta humilde casa conheça como é òbvio, a distância entre o local da venda e a sua habitação, a rapidêz com que passaram a fazê-lo, de certeza que lhes deu a possibilidade de melhorarem o seu negócio. Esse tio e tia conhecedores das dificuldades que era criar uma troupe de crianças em crescimento e com algumas necessidades alimentares e sabedores de que a unica fruta que comiam era da mais barata, que naquela época e no tempo dela ainda iam comprando, especialmente melão e melancia, raramente entrando naquela casa de madeira bananas ou outra fruta considerada mais cara, de vez em quando apareciam com cabazes carregados de fruta, legumes e hortaliças, pondo um sorriso naqueles que naquela altura eram já nascidos, por se irem regalar com as tais bananas, os pêssegos e outro tipo de frutas que lhes eram oferecidos sem que lhes fosse pedido nada em troca. Nesse dia era uma verdadeira festa. Depois de tudo muito bem repartido, as frutas eram consumidas como se do melhor manjar se tratasse e os legumes e as hortaliças eram preparadas para a confeção duma daquelas sopas, que como os ouço algumas vezes dizerem, de colher em pé, ou seja bastante forte e entulhosa. Para qualquer um deles não seria de certeza o melhor petisco, mas pensando nas conversas dos filhos mais velhos e à distãncia de uma vida, para a Mãe da «minha família», seria um grande alivio poder dar uma refeição consistente às suas crianças e tudo graças à generosidade de duas pessoas de bom coração. Quando alguem nos oferece alguma coisa sem pedir o retorno material ou social dessa dádiva, a unica maneira que podemos ter de saldar essa divída é com uma moeda que tenha duas faces, a da gratidão para toda a vida e a da amizade sem restrições ou limites. A «minha família» sempre soube demonstrar amizade e gratidão por quem a toda a hora a ajudou e respeitou, e este caso não é excepção. O respeito que todos os membros da «minha família» nutriam por esses tios, só se podia comparar e era proporcional à amizade e estima que o Patriarca da família à qual com muita honra pertenço, devotava por quem os auxiliou em momentos dificeis. Por partilharem a consaguinidade, visto serem irmãs o agradecimento da Mãe daquela troupe, era transmitido em forma de amor e muito respeito. Das palavras ditas nessa conversa retenho na lembrança aquilo que um deles disse , que se recordava muito bem desse tio, apoiado numas canadianas devido a uma doença, que nenhum sabia qual era e lhe afectava a locomoção, e que mesmo com essa dificuldade lutava como podia para dar uma vida melhor aos seus. O seu exemplo de força, coragem e vontade de viver, ainda hoje vive bem forte nas mentes e no coração dos sobrinhos que com ele privaram, que honram a sua memória de cada vez que falam dele. “Tudo o que é tocado pelo amor, fica preservado da morte.” Romain Roland

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XI “Um grande amor não precisa de muitas palavras”

Provérbio Popular

Estando-me a aproximar do fim da primeira parte da história da «minha família», não podia deixar de falar na Mãe de toda esta criançada. Era uma senhora que como eu já disse não era muito bonita, mas transmitia no olhar e na postura corporal, algo que a distinguia das demais mulheres, fosse o que fosse que esta mulher tinha, o que é certo e sabido foi que o Pai de toda esta troupe se apaixonou por ela, começando assim uma linda história de Amor que só teve o seu epílogo quando ambos faleceram. Mas voltando a falar desta senhora, que depois do nascimento da primeira filha, dedicou-se por completo ao prazer da maternidade, vivendo para os filhos que foram surgindo com o decorrer dos anos, amandoos, acarinhando-os e acima de tudo tentando com as suas fracas posses financeiras, mas sempre com muito amor que eles se apresentassem da melhor forma possivel. Para o marido que tanto amou e respeitou guardou sempre um cantinho especial no seu corpo que se tornou ninho de amor e de afectos de cada vez que lhe dava mais um filho e na sua alma que nasceu para o homem que a ajudou a concebê-los a educá-los e a fazê-los crescer como pessoas de bem. Dos filhos tinha o gosto de dizer, que podiam andar com roupa passajada, mas jamais andariam sujos e a meter nojo. Tinha muita honra e muito orgulho nos seus filhos e filhas e no comportamento de todos eles, e ai de quem fizesse mal ou sequer tentasse fazer mal a algum deles, ela tranformavase numa leoa de garras bem afiadas sempre pronta a defender a sua ninhada contra tudo e contra todos. Tinha-lhes um Amor tão grande e com tal intensidade que seria capaz de virar o mundo de pernas para o ar só para os defender, resumindo tudo numa só frase, amava-os acima de qualquer consequência. Com o passar dos anos os filhos e filhas foram crescendo transformando-se a pouco e pouco, os rapazes mais velhos em jovens adolescentes fortes e vigorosos e as 37


raparigas em mulheres muito bonitas e interessantes, em especial a mais velha que exibia um cabelo comprido que lhe ficava um pouco abaixo dos ombros, com uma cor de um louro acobreado que fazia lembrar as espigas de trigo em plena época estival. As duas filhas ostentavam na face uns olhos limpídos e brilhantes como o mais raro dos diamantes conhecido apresentando nesses olhos uma cor muito parecida com a do mar em dias calmos e de muito sol. Como devem de calcular para estes jovens na força da vida era muito constrangedor e difícil viverem nas condições em que viviam, que para tomarem banho tinham que ir buscar água a um chafaris que não ficava muito perto, que para as necessidades básicas não existiam condições, e acrescido a tudo isto a filha mais velha começou a namorar com um rapaz que havia conhecido numa excursão, de cujo namoro nasceu um grande amor que finalizou tambem numa história de amor muito bonita Por tudo isto e porque sempre desejaram dar um melhor futuro a todos os seus filhos os dois, o Pai e a Mãe decidiram procurar uma casa que lhes pudesse dar todas as condições para uma vida melhor, mais comoda e confortavel, e é a partir do momento em que eles entraram na «minha casa», e que iria ser a sua casa, que eu fiquei a ser parte integrante desta história. “Só se ama verdadeiramente, quando se ama sem razão.”

Anatole France

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XII “Se tens afecto por alguem, não lhe escutes só a vós;ouve-lhe tambem o coração.” Augusto Gil

Depois de lhes dar a conhecer algumas das histórias da «minha família», quando ainda não viviam comigo, e que como atrás já vos disse tomei conhecimento atraves das conversas levadas a cabo cá em casa, chegou o momento de lhes começar a contar algumas das histórias que eu presênciei, e de como em quase todas elas fui parte integrante. Não preciso de vos recordar, de que mesmo gostando muito de mim, da«minha casa»existe uma parte de mim de que eu gosto particularmente, que é o terraço. Terraço esse que como já vos disse é relativamente grande e de forma retangular, nele eu fui testemunha dos primeiros passos de alguns membros da«minhafamília» que com os seus pézinhos descalços me calcorreavam sentindo a caricia que eu lhes transmitia através das «minhas lajes»; e com o seu caminhar por sobre mim sentiam o calor que evoluia do chão, aquecido generosamente pelos raios solares. Noites havia em que no céu não se vislumbrava nuvem alguma, e que a lua enviava para a terra, doces raios que se transformavam em estranhas cornucópias de luz, de um colorido brilhante e prateado a ressaltarem e a brincarem nos mosaicos do «meu terraço», que davam a ideia de um bailado etério e fugazmente fugidio, mas que mesmo assim ficava para sempre gravado no olhar, e nas mentes de quem assistia a esse espéctaculo de cor e de luz, para sempre ficará gravada na minha memória esse cenário de luz e cor, unico e inimitável. Existia cá em casa um instrumento musical, a que dão o nome de guitarra, esse instrumento tem a forma de uma pera e pode ser construida com madeira de Pau-Santo, Acer ou Mogno para os fundos e ilhargas e para os tampo «Spruce» ou madeira de Flandres. Na cabeça apresenta o formato de um caracol e é composta por doze cordas que percorrem quase toda a sua superfície desde o meio da «pera», passando por aquilo a que se pode chamar de braço, que faz a ligação à cabeça, esse instrumento quando tocada por mãos sapiêntes conhecedoras e experimentadas, solta sons umas vezes alegres, outras vezes 39


tristes, levando a ouvir quem os escuta, tons e sons de um timbre unico e inconfundivel . Essa guitarra era como já atrás vos disse, a paixão de toda a«minha família», mas muito em particular do Patriarca desta troupe, que de vez em quando se entretinha a dedilhála, com o prazer de quem toca no rosto inocente de uma criança ou no corpo de alguém que se ama. Nesses momentos era quase sempre acompanhado por toda a família, que escutava com atenção e enlevo aquelas mãos sensiveis e calejadas de uma vida de trabalho, a tocarem esse instumento e muito embora não sendo um tocador emérito e perfeito, conseguia mesmo assim, mercê da sua sensibilidade prazer e seu espirito autodidacta, retirar os sons mais bonitos e pungentes daquele instrumento, ao mesmo tempo que a sua vóz suave e bem timbrada ia cantando fados tradicionais ou canções populares de origem portuguesa ou brasileira contagiando toda gente à sua volta a acompanhá-lo e a cantar em coro o refrão dessas canções. Os anos foram passando, os filhos foram crescendo e chegou o momento da filha mais velha se casar com o moço, que como devem de estar recordados, conhecera numa excursão e a quem o chefe da «minha família» considerou desde muito cedo como sendo mais um filho, não somente porque era um moço trabalhador mas, porque era igualmente um rapaz simpático, afável, amigo do seu amigo e muito responsável. Conhecendo eu muito bem o carácter do chefe da «minha família», uma das facetas desse moço que conquistou o seu apreço e carinho, era a sua forma optimista e positiva de encarar a vida, que era transmitida a todos os que o conheciam e que lhe punha um sorriso constante no rosto e um trejeito gozão nos lábios, andando na maioria dos dias sempre alegre e bem disposto. Assim sendo com todos estes predicados pessoais e este conceito de vida, ele não teve qualquer receio de entregar a sua filha mais velha nas mãos de tal rapaz, porque desde o primeiro dia em que o viu, sentiu que ele era o homem certo para a fazer feliz, o que de facto veio a acontecer nos anos que se seguiram até à sua partida do nosso convívio. Ao consomarem o seu Amor, ela ficou grávida havendo por via disso que apressar o casamento o que veio a acontecer com ela já carregando no seu ventre, aquele que viria a ser o seu primeiro filho e o primeiro neto dos chefes da «minha família». Como na altura a vida deles ainda não se encontrava estabilizada tiveram que vir viver cá para casa. A «minha família», eram e continuam a ser pessoas de bom coração e de boa vontade, cá se arranjaram, permitindo-lhes assim viverem o inicio do seu casamento, aqui na «minha casa» dando-lhes o quarto onde dormiam as duas raparigas como seu primeiro ninho de Amor e de refugio. A filha mais nova por via disso passou a dormir num sofá cama que existia no chamado hal de entrada, não causando qualquer tipo de problema nem constrangimento a ela nem à restante família. Desse casamento nasceu um menino que a julgar pelo que todas as pessoas que o iam vêr e dar os parabens aos pais e aos avós radiantes de felicidade era um bebé lindo rechonchudo e de farta cabeleira escura, que ostentava nos lábios pequeninos, um trejeito malandreco que deixava adivinhar todas as traquinices que alguns anos mais tarde haveriam de surgir, quando por um simples prazer traquina pregava partidas inocentes aos primos fazendo-lhes a vida negra. Como já vos contei este bebé era o primeiro filho deste casal e igualmente o primeiro neto de uns Avós completamente babados que para festejarem a sua chegada cá a casa organizaram uma pequena festa de boas vindas, com fitas e balões pendurados pelas paredes a enfeitarem-me por todo o lado, e como não existe festa que se prese sem comes e bebes havia bolos e bebidas para quem quisesse festejar a chegada de um novo membro da família . Fiquei naquele momento cheia de inveja de todas as pessoas que se aproximavam do rebento querendo tocar-lhe, querendo dar-lhe um beijo, tentando apertá-lo com todo o carinho do mundo, assim como já o haviam feito os Avós impantes de felicidade e de tal forma embevecidos que não conseguiam deter as lágrimas de felicidade que iam rolando pelos rostos felizes de ambos.Todavia esse meu sentimento de inveja desapareceu de imediato 40


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quando pensei que mais tarde quando ele começasse a gatinhar, e a tentar equilibrar-se nas suas perninhas e que ao tentar dar os primeiros passos, seria eu quem estaria mais perto dele sentindo as suas mãos pequeninas nas «minhas paredes« e os seus pézinhos por sobre o chão, seria eu quem iria ajuda-lo a amparar-se dando-lhe todo o «meu terraço» para que aprendesse a caminhar rapidamente e em segurança. Os anos foram passando e a vida para este casal deixou a pouco e pouco de ser um fardo pesado, e foi-se tornando cada dia que passava mais facilitada isto porque os filhos mais velhos foram casando saindo cá de casa indo cada um viver para o seu canto, construindo a sua vida e ajudando a aumentar a família dando novos netos e netas a este casal, que foram sendo bem recebidos e acarinhados com tanto Amor como havia sido o primeiro. A palavra separação não se ouvia muitas vezes na boca deles, pelo que não podendo estar longe uns dos outros, habitavam com as suas esposas e os seus filhos perto da «minha casa» e das suas raizes. Cabe-me agora e por imperativo de consiência prestar as honras e a minha homenagem a todas as mulheres dos filhos deste casal, que mesmo vindo de fora do seio da «minha família», entraram com relativa rapidêz no espirito de Amor e Concórdia que sempre reinou entre todos eles, é que apesar de serem diferentes umas das outras e de terem ideias e conceitos de vida em alguns casos muito desiguais, consuante a personalidade e a vivência de cada uma delas, foram bem aceites no nucleo familiar, sustentando esta aceitação por parte do Patriarca e Matriarca, na premissa de que havia sido a escolha dos filhos e por tal teriam que merecer todo o respeito da parte deles. Atrás do tempo, tempo vem diz o povo e com toda a razão, o tempo só atenua as recordações, não nos faz esquecer nem das memórias nem das palavras que escutamos e muito menos do tempo que por nós vai passando e nos vai tornando mais conhecedores, mais paciêntes e porque não dizê-lo mais tolerantes com tudo o que à nossa volta se passa. Servem estas minhas palavras para vos dar a conhecer um dos muitos episódios passado cá em casa e que me marcou para sempre. Esse episódio veio-me demonstrar que o Amor sendo uma palavra das mais pequenas que existem no mundo, tem um significado tão intenso, tão forte que por muito que seja estudado, por muito que queiram dar-lhe uma explicação lógica nunca ninguem conseguirá entendê-lo, e é por esse mesmo motivo que os filósofos dizem, que o Amor sendo irracional é um sentimento, que na maior parte das vezes não se explica por palavras mas sim por acções, e foi uma dessas acções que eu presênciei. Num dado dia em que o Patriarca e a Matriarca juntaram todos os filhos e filhas, netos, netas, genro e respectivas noras, para um dos muitos almoços por eles patrocinado, houve um acontecimento que jamais esquecerei, porque foi uma dos episódios mais bonitos e mais sentidos que vivi na «minha casa», que ficou para sempre indelevelmente marcado com letras de sentimento no meu coração e na minha memória . Esse momento inesquecivel sucedeu já durante o repasto e, em que estando todos sentados à mesa no mais salutar convívio o Pai da «minha família», vendo uma mesa farta onde havia comida em abundância, as palavras que se cruzavam de um lado ao outro da mesa e a harmonia reinante naquela simples refeição colectiva na qual estavam todos presentes, ficou momentaneamente com os olhos marejados de lágrimas, a Mãe que se encontrava ao seu lado apercebendo-se disso perguntou-lhe o que se passava e por que não comia, ao que ele lhe respondeu olhando-a bem de frente com os olhos vidrados das lágrimas e da emoção, que tinha a barriga cheia de satisfação. Ela compreendendo toda a envolvência daquele momento abraçou-se a ele chorando igualmente de felicidade e satisfação. As memórias, os cheiros, os sons e as vozes são aquilo que fazem uma casa, que nunca seria mais do que cimento, areia, pedra e tijolo se todos os barulhos e aromas não se agarrassem às suas paredes. Por isso sendo eu uma casa feita de todos esses elementos e outros materiais que desligados uns dos outros podem valer muito pouco, mas que quando juntos elevam o seu valor, senti que naquele momento valia muito pouco, porque perante ao 41


que tinha acabado de assistir entendi o que ia no coração e na alma daqueles dois seres que se amavam tanto e a quem a vida nem sempre lhes sorrira, era algo de transcendente e de um sentimento tão profundo que somente quem assistiu àquela cena poderá compreênder. Percebi então naquele dia que aquele instante tâo curto condensou toda uma vida de luta e sacrificio, sempre com a esperança de que finalmente chegasse o dia em que pudessem olhar à sua volta tendo a família toda reunida e sem que tivessem medo do dia seguinte, e esse dia por fim havia chegado, trazendo com ele tudo aquilo por que os dois tanto lutaram e tanto desejaram para si e para todos os seus filhos . “Os anjos chamam-lhe Alegria Celeste,os demónios sofrimento infernal, os homens chamam-lhe Amor.” Heinrich heine

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XIII “Cantai e dançai juntos e alegrai-vos; mas que cada um seja um como as cordas de uma lira, que mesmo separada vibram ao som da mesma melodia.”

Khalil Gibran

Os dias foram seguindo o seu curso, transportando com eles dias bons e outros menos bons, mas como não se pode parar, lá iam andando sempre em frente enfrentando todos os problemas e situações complicadas que lhes apareciam quotidianamente. Mas um dia houve em que todos os membros da«minha família»levaram como que um murro no estômago, que os deixou abalados durante muito tempo e com toda a certeza para o resto das suas vidas, e o pensamento que ocorreu constantemente nas suas mentes foi o de pensarem para quê tanta luta e se valiam a pena tantos trabalhos e sacrificios para no fim tudo terminar numa simples e odiosa palavra. O que lhes vou agora contar, é das coisas mais dificeis que eu já fiz, mas por imperativo de memória, de respeito e compaixão, vou-vos contar o episódio mais triste que vivi aqui na «minha casa». As paredes da «minha casa» foram testemunhas impassiveis de uma luta inglória contra um inimigo invisivel, cruel, cobarde e traiçoeiro, que ataca às escondidas, e que está sempre de tocaia, esperando o momento certo e imutável para desferir o seu golpe traiçoeiro sem dó nem piedade. Esse golpe aleivoso e fatal veio refugiado numa doença com o nome de carcinoma do pulmão, que foi diagnosticado ao chefe da«minha família», maleita essa que só lhe iria permitir viver mais ou menos seis meses. O patriarca da família era aquilo a que se podia chamar de fumador inveterado, e pelo que sei, a uma pessoa com este vicio será sempre muito difícil que algum dia venha a deixar de fumar, e foi provavelmente o prazer que ele extraía do tabaco aliado a muitos outros fatores que contribuiram para o seu padecimento, apressando assim a sua partida do nosso convívio. Se a memória não me atraiçoa foi em plena primavera, que como bem sabemos era a estação do ano preferida por todos eles, que depois de algumas idas ao médico de família e após algumas análises efectuadas se começou a desconfiar que alguma 43


coisa não estava bem com ele, mas nunca se pensou que fosse um caso de doença tão grave, exististindo sempre a esperança que fosse um daqueles males que se tratam e curam com antibióticos ou qualquer outro medicamento, mas infelizmente não foi nada disso o que sucedeu. Como o mal estar nunca mais desaparecia decidiram leva-lo ao Hospital de Santa Maria onde lhe realizaram exames complementares que se vieram a confirmar nas piores das previsões. Os mensageiros dessa triste noticia foram os dois filhos mais velhos, que haviam sido convocados pelos médicos desse hospital para lhes transmitir o prognósticos desses exames. Tudo o que eu vos posso contar a partir daqui foi dito pelos próprios mais tarde, em conversas tidas cá em casa com os outros irmãos e alguns vizinhos, que se mostraram sempre interessados em saber o que se passava com ele e tambem alguma situações presênciadas por mim. Numa qualquer manhâ do mês de Maio, e numa altura do ano em que a terra se renova em gritos de força e vitalidade, e os raios solares começam a aquecer as almas e os corpos de toda a gente, que combinaram encontrar-se no hospital. Nesse dia e como que a querer contrariar a natureza, o Sol decidiu esconder-se por detrás das nuvens, e o amanhecer chegou triste e chuvoso polvilhado aqui e ali de nuvens negras que se enovelavam por sobre a cidade de Lisboa acompanhadas de um vento quente e desconfortavel, como que anunciando num presságio de que nada de bom se iria passar doravante nas sua vidas. Quando o filho mais velho chegou ao hospital para falarem com o médico, já a irmã lá se encontrava com os olhos raiados de vermelho de ter estado a chorar, visto já ter sabido através de algumas enfermeiras com quem já se informara, que a doença provavelmente seria mais grave do que se pensava . Depois de algum tempo de espera, um clinico relativamente jovem veio chamá-los convidando-os a entrarem num gabinete pequeno e muito acanhado que se encontrava decorado de forma muito simples, tendo somente um armário sem qualquer tipo de papeis ou outro artefacto que lhe pudesse dar um aspecto mais agradavel e convidativo tapando toda uma parede em frente da porta por onde entraram, e uma secretária que estava situada num dos cantos dessa pequena sala, o médico jovem sentou-se e olhando-os fixamente nos olhos pediu que um deles se sentasse na unica cadeira disponivel, o filho mais velho ficou de pé cedendo educadamente o lugar à irmã, ela sentou-se, e após um compasso de espera que pareceu para os dois uma eternidade foi direito ao que os havia levado ali, e sem grandes rodeios mas com uma expressão grave no rosto, deu-lhes a conhecer exactamente a gravidade da situação, e o que teriam que fazer a partir daquele momento. Embora já desconfiassem que nada de bom saíria daquela reunião com o médico que os havia chamado para lhes dar a noticia, cada um deles deles reagiu à sua maneira, ele para extravazar toda a sua raiva e frustração deu um murro numa das paredes nuas da sala, ela desatou a chorar baixinho escondendo o rosto atrás das mãos. Naquele triste e penoso momento ambos os seus corações sentiram como que sendo trespassados por milhões de punhais finos e muito aguçados. Após terem saído do hospital, e no regresso a casa onde teriam que dar a triste noticia a toda a família, a sua maior precupação era para com a Mãe pois nenhum deles sabia como ela iria reagir à triste noticia. Durante a viagem de retorno a casa não soltaram uma unica palavra, as suas bocas não se abriram para dizer fosse o que fosse, cada um deles imerso nas suas angustias e nos seus pensamentos, mas um só pensamento foi comum aos dois, estendendo-se mais tarde a todos os outros irmãos, era o de que a partir daquele momento, tudo iriam fazer para que os ultimos dias de vida, daquele que sendo o seu progenitor, para eles era muito mais do que isso, era alguem que tudo havia feito em prol de todos eles, sacrificando-se quase até à exaustão por todos sem excepção, que muitas vezes retirou literalmente da sua boca para dar aos filhos e agora havia chegado o momento, não da forma que eles desejavam mas da 44


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forma possivel demonstrar todo o Amor e Carinho que por ele nutriam. A mulher que caminhou sempre ao seu lado em todas as lutas travadas ao longo de um casamento feliz, a mulher que sempre esteve com ele nos momentos bons e nos momentos maus, a mulher que sempre que o ouvia dizer «não digas ovos, ou sorte sorte vila verde» se desmanchava a rir com gargalhadas sonoras e sentidas; a sua querida Esposa a Mãe dos seus filhos e a Avó dos seus netos, quando soube pela boca da filha, que não havia nada mais a fazer a não ser dar ao Homem que ela sempre amara um final de vida digno e merecido, ficou momentaneamente sem qualquer tipo de reação limitando-se a nada dizer abraçando-se à filha a chorar convulsivamente ficando assim, as duas abraçadas durante largos minutos chorando a impotência de nada poderem fazer, a dor de o irem perder cedo demais e a raiva pela injusteza da vida . Os meses que se seguiram antes da sua partida foram tempos de sentido unico, todos eles tentaram de todas as formas, dar-lhe tudo o que cada um podia. Nesse sentido os filhos casados e as suas esposas dormiam cá em casa à vez, tentando com a sua ajuda e a sua presênça minorar não só o seu sofrimento assim como o da Mãe. Todos os instantes eram aproveitados para estarem junto do Pai, e para passearem com ele, como um dos filhos fez levando-o a conhecer locais onde ele nunca havia estado, um desses locais foi o Casino do Estoril e outros sitios que jamais tinha visitado ou fazer coisas que nunca havia feito. Muitas pessoas poderão pensar que tudo o que eles faziam para dar o melhor final de vida para aquele ser que tanto amavam, se podia comparar ao mesmo tratamento que se dá a um condenado que se encontrasse no corredor da morte, à espera do dia fatal. Não o que todos eles fizeram foi o de tentarem mesmo que inconsciêntemente pagar da unica forma possivel tudo o que aquele homem havia feito e sofrido por eles. Houve muitas mais coisas em que cada um delecontribuiu sempre com a melhor das vontades e o maior dos carinhos, para o seu sossego e bem estar, algumas das quais não me recordo e houve outras situações que se passaram, mas que não vos contar porque não me parece que tenham grande interesse . Com o avançar da doença, o cabelo que era farto e escuro com laivos e tons cor de prata, foi caindo devido à violência dos tratamentos. Aquando do regresso desses tratamentos, cujos procedimentos médicos eram muito agressivos, ele vinha cansado, exaurido e certamente com muitas dores e quando o via deitado na cama a descansar eu só podia pôr-me a adivinhar o que ia dentro dentro da sua cabeça, os sentimentos que inundavam o seu coração e para quem ele dirigia os seus pensamentos . A energia e a alegria pela vida que sempre caracterizou o chefe da «minha família» uma vez por outra desaparecia, mas essa alegria e energia rápidamente surgiam de novo com a força e a garra que sempre foi apanágio da sua personalidade. Tal eram a sua garra e o seu querer que mesmo doente, ainda conseguia com o seu enorme sentido de humor e quase sempre de sorriso estampado no rosto alegrar a «minha casa e a minha família», transmitindo a todos os amigos que o visitavam e foram muitos, uma onda de força e de optimismo, só própria de quem sempre lutou várias lutas e as venceu quase todas. E se ele lutou tentando agarrar-se à vida com unhas e dentes lutando contra os designios da vida e do destino dando uma luta sem quartel à doença de que padecia com tudo o que tinha à mão, servindo-se amíude de uns (collants) de senhora ou até de uma corda, que prendia numa das colunas da cama fazendo flexões à força de braços, tentando dessa forma ganhar força e resistência. Quando não tinha à mão nenhuma dessas duas coisas era uma bola de borracha que servia para fazer ginástica aos pés e às pernas, no sentido de manter alguma forma física. Todavia muito difícilmente ele sairia vencedor dessa luta, porque era um combate desigual onde a maioria dos trunfos senão todos estavam do lado do adversário. Depois de tanto batalhar, de tanto combater um inímigo sem rosto e desleal, o desenlace fatal aconteceu no dia 5 de novembro de 1992 vindo a falecer no Hospital de Santa Maria para onde havia sido internado uns dias antes. Pelo que consegui 45


ouvir cá em casa, um senhor que se encontrava na mesma enfermaria em tratamentos disse a um dos filhos, que momentos antes da sua partida chamara os nomes de todos eles e da sua esposa. O Amor que sentia pelos filhos e pela esposa era tão grande, tão intenso e tão uniforme que na hora da despedida levou-os consigo no coração e nos lábios ao gritar os nomes de cada um. Todos estes mêses de luta, foram uma experiência emocional muito grande , muito sentida e muito dolorosa para mim e para todos os membros da«minha família», que com toda a certeza nos marcou para os dias restantes das nossas vidas. “Todos nascemos para amar.É o principio da nossa existência e o seu unico fim.” Benjamim Disraeli

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XIV “O amor, o verdadeiro amor, cresce, propaga-se e aprofunda-se com o tempo, não termina quando a vida acaba.”

Apóstolo zeno

Após o funeral muita coisa ouvi aqui na “minha casa” e uma das coisas que eu fui ouvindo repetidamente foi a de que todo o pessoal da agência funerária se espantou com tantas pessoas presentes na despedida do Patriarca da «minha família», e mesmo o responsavel da agência habituado a realizar tantos funerais, quando viu a praça em frente ao cemitério de Benfica repleta de pessoas que vieram despedir-se dele e prestar-lhe a derradeira homenagem, não foi capaz de conter as palavras que lhe sairam da boca, dizendo bem alto e em bom som “ena pá tanta gente!”. Aquelas palavras de espanto só foram ditas porque ele não conhecia a pessoa cujo funeral ia realizar e os muitos amigos que ele sempre teve e soube grangear ao longo de uma vida dedicada aos outros. Dezenas de amigos quiseram associar-se à dor da família, prestando-lhe uma das maiores homenagens com a sua presença, ajudando assim a «minha família» a melhor suportar o pesado fardo de o transportar até à sua ultima morada. Uma das muitas vizinhas que estiveram presentes no funeral, confessou cá em casa que ficou muito emocionada quando viu que os filhos instintivamente substituiram o pessoal da agência funerária, quando estes retiraram o ferétro de dentro da carrinha e suavemente o carregaram nas costas levando-o simbólicamente até à sua ultima morada, assim como ele carregou o amor que tinha por todos os filhos a partir do momento em que ajudou a concebê-los. Ainda hoje passados estes anos todos ouço essas palavras que escutei, e um unico pensamento me surge. Que todos eles ao pegarem com todo o cuidado e carinho a urna onde se encontrava o seu pai, nesse simples gesto simbolizaram todo o amor e respeito que por ele sempre devotaram. Nesse impulso vindo do fundo do coração que cada um sentiu, ficou tudo aquilo que sentiam por aquele homem simples, que passou por este mundo e deixou o seu rasto marcado em cada palavra que dizia e em cada acto 47


que praticava. Por isso apraz-me dizer, que cada ser humano não é o que quer ter ou o que pensa que é, mas tão somente aquilo que os seus mais próximos lhe reconhecem ser. Os dias foram-se escoando rotineiramente,no seu quotidiano imparável, mas agora sem a presença física do Patriarca da família; no entanto cada do seus filhos e filhas, esposas, genro e a sua mulher tentavam com as mais variadas atitudes esquecer os terriveis mêses anteriores e seguir em frente com as sua vidas, agora mais vazias e mais tristes. Todos eles sabendo que os males de alma e coração só têm cura quando nos apoiamos em alguem que nos escuta e nos entende e que mesmo que as palavras não saiam da boca elas brotam sempre do coração, eles entendiam-se somente por um simples olhar. E foi num desses momentos de entendimento tácito, que no mesmo ano em que ele morrera decidiram uma vez mais passar a noite de Natal todos juntos cá em casa, ainda por demais agora que a Mãe ficára sem a sua companhia de sempre e ia precisar como nunca do apoio de todos os filhos e restante família. E que melhor forma de lhe provar estivesse ele onde estivesse, que tudo o que lhes ensinara e tansmitira não tinha sido em vão, nem caído em saco roto, que antes pelo contrário as suas palavras ficaram para sempre marcadas de forma indelével nas sua mentes e nos seus corações. Esta ideia agradou-me logo de inicio porque penso que essa seria a melhor maneira de o homenagiarem em conjunto. Nessa noite da consoada não pude deixar de reparar que de vez enquando um dos filhos fugia para o «meu terraço» para que ninguem o visse a chorar sozinho, mas havia sempre um que dava pela sua falta na mesa, e vinha fazer-lhe companhia e consolá-lo. Durante breves momentos dessa noite senti como que uma pequena brisa doce muito suave e muito leve como se de uma caricia se tratasse passando pelas «minhas paredes», e dei por mim a pensar que poderia muito bem ser, ele ainda com a sua presênça a cuidar e a zelar por toda a «minha família». “A alegria e a tristeza são amigas inseparáveis, pois quando uma se senta à tua mesa, a outra dorme na tua cama.” Khalil Gibran

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XV “A ausência é para o amor o que o vento é para o fogo; apaga o pequeno e aviva o forte.” A. de Saint-Exupéry

Após o desaparecimento fisíco do chefe da «minha familía» e num dos muitos momentos vividos cá em casa durante os quais se falou dele e das suas multiplas paixões e de como se entregava a cada uma delas, um dos filhos, creio que o mais velho, falou da sua grande afeição por livros e pela sua leitura, este filho tal como ele nutria tambem o prazer de ler um bom livro, notei pelo seu tom de vós nostálgico e pelo olhar sonhador que a evocação dos momentos com ele vividos, lhe traziam à memória boas recordações. Como daquelas vezes quando por qualquer motivo de ordem pessoal se deslocavam a Lisboa, à zona da Praça do Rossio, arranjavam sempre tempo para subirem a rua do Carmo, onde mais ao menos ao meio e no sentido ascendente, situava-se à direita uma livraria com livros antigos de grandes escritores e ensaístas, na sua grande maioria já usados, que eram vendidos a preços baixos que eles aproveitavam trazendo-os consigo como um verdadeiro achado para muitas e prazeirosas horas de leitura. Sei da localização dessa loja e dos livros contidos no seu interior, pela descrição minuciosa que esse filho foi fazendo. Dizia ele que na parte mais interna da loja havia muito pouca luz e que tinham de fazer um grande esforço de visão para conseguirem visualizar alguns dos titulos ali expostos, na sua maioria encadernados de forma bastante artistica e escritos por vários autores mundialmente conhecidos. Um comentário que dele ouvi e que fixei por achar engraçado, era o de que o alfarrabista colocara esses livros no local mais esconço, escondido e a cheirarem a bafio, porque parecia querer perpéctuar esses livros sempre em seu poder, o que lógicamente não seria assim porque aquele era o seu modo de vida e era da venda daquelas obras que ele vivia. Naquele recanto parecia que o tempo parara e que os livros ali em exposição repousavam na paz do silêncio e na quietude da quase escuridão em que estavam, resguardados e imunes a qualquer agressão vinda do exterior, sem medo que alguem ao retirá-los das prateleiras acordasse os seus autores ou lhes roubasse o sentido para que foram criados. Raramente nesse local da loja compravam algum exemplar, na medida em que 49


eram os mais caros e alguns de edições raras e unicas, com encadernações feitas de forma artistica, incomparavelmente belas e originais. Por esse motivo nenhum deles tinha capacidade monetária para os comprar, contudo só pelo prazer que lhes dava olharem para essas obras escritas pelos melhores escritores portugueses e estrangeiros, quedavamse fascinados a olhá-los e a imaginarem o trabalho de pesquisa, de escrita e de criação de personagens que ainda hoje pululam o imaginário de quem as lê ou com a criação de mundos de fantasia idealizados por mentes fantásticas e de prodigiosa imaginação. No entanto numa zona menos recatada da loja, estavam expostos aqueles livros que mesmo sendo clássicos da literatura mundial, ainda assim eram mais acessiveis às suas bolsas e cujas edições seriam mais alargadas. Livros escritos por Julio Verne, Emilío Salgari, Walter Scott e tantos outros, que inventaram personagens que alimentavam a imaginação de um jovem cheio de ideais e em crescimento, fazendo tambem dele as aventuras e desventuras desses heróis garbosos e cheios de valentia. Nesses dias ao contar esses momentos, a sua vós ganhava um tom de muita saudade e alguma tristeza e dizia ele que ainda hoje passados todos estes anos da sua juventude e meninice, parece que ainda vê os olhos do pai a olhá-lo de uma forma quase extasiada, ao vê-lo entusiasmado e ansioso por lêr esses livros, que encostava ao corpo como se fosse o melhor e maior dos tesouros que alguma vez tivera. Quando ainda andava na escola era o pai com as suas fracas posses que lhos comprava, mais tarde começou a trabalhar num talho e com as gorgetas que os fregueses lhe davam, era ele que retríbuia todo o esforço que o pai fizera, ao comprar-lhe os livros de que ele gostava, alguns dos quais ainda tem em seu poder. Por tudo aquilo que o ouvia dizer, mas muito mais pelo sentimento que transparecia nas suas palavras, de certeza que recuava em pensamentos ao encanto dos dias em que ao seu lado, saía do autocarro na Praça do Rossio e subiam aquela rua asfaltada de paralelipipedos de cor escura, com ele de cigarro sem filtro ao canto da boca e sempre falando sobre as personalidades da vida publica e politica que décadas anteriores, tambem pisaram aquelas pedras, de alguns que sobre elas escreveram e que deixaram marca colectiva na memória de muitos lisboetas. Algumas pessoas poderão dizer e até pensar que de pequenos momentos como estes estão o universo da vida pessoal de muita gente cheio. Todavia nem todos os encaram e sentem do mesmo modo ou com a mesma intensidade e sentimento. Para muitos é mais uma, para outros será umas das muitas histórias que compôem a sua vida, que têm de ser guardadas num cantinho especial e muito íntimo e para toda a vida, perpectuando das mais variadas maneiras estes instantes tão fugazes, mas tão intensos e de um significado tão profundo que nada os fará apagar da memória de quem os viveu. Quanto a mim esta pequena mas sentida história, pôs-me a pensar, a mim que sou uma casa que como valor acrescido na sua existência, tem somente a experiência adquirida por uma vida vivida ao lado de gente maravilhosa e extraordinária que muito me ensinaram e me levam a refletir, que os anos vão-se seguindo uns após outros e nem a passagem inexorável do tempo ajuda a extinguir ou dissipar da memória, as recordações que a cada dia que passa e em cada conversa mantida, se torna ainda mais forte, mais consistente e sempre presente no nosso coração, nossas mentes e até nas nossas atitudes. “O amor é um som que relama um eco.”

Julío Dinís

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XVI

Mãe! Nome pequeno de tanta grandeza Mãe! Tão cheia de Amor e beleza Tu és o poder maior de carinho És a força que tudo quer carregar Levando homens e mulheres a amar Percorrendo sempre igual caminho. Rosa S. Couto

A Matriarca da família era uma senhora que já à largos anos padecia de uma doença chamada de diabetes, que tem como caracteristica principal a incapacidade do organismo de absorver a glicose proveniente dos alimentos . Essa maleita provoca em algumas pessoas tratamentos prolongados e casos há que têm de levar a internamentos hospitalares recorrentes, à amputação parcial dos membros inferiores ou superiores ou em situações mais graves à sua amputação total. Pelo facto de ter contraído esta doença, tinha já à imensos anos uma ferida numa das pernas, que uma vez por outra lhe causava um enorme desconforto e bastantes dores que suportava estoicamente e com muito sacrificio. Mesmo pelo facto de padecer dessa doença que lhe provocava bastante transtorno, conseguia sempre ter tempo para dar carinho e muito Amor aos filhos e aos netos, que vinham visitá-la cá a casa com muita frequência, retribuindo eles nessas visitas constantes todo a Paixão, Amor e Carinho que se deve de dar a uma Mãe e a uma Avó. Alguns anos depois de ter visto o homem que muito amára partir, chegou a sua vez de se lhe juntar partindo para a ultima viagem durante a noite, em paz e calmamente, indo ao encontro daquele a quem sempre dedicou todo o seu Amor e os melhores anos da sua vida. De cada vez que alguem fala cá em casa da Mãe, noto no semblante deles uma grande saudade dessa mulher simples que por amor ao marido e aos filhos abdicou dela e dos seus sonhos, colocando-os sempre em primeiro lugar no seu pensamento e nas 51


suas prioridades. O seu amor por todos eles era de uma intensidade tal e de uma força unica e sem limites que eu chego a pensar que ultrapassava o racional. Essa força tornada indestrutivel pelo poder dos sentimentos, que fluem do coração e se cimentam num abraço, num beijo e até no verter das lágrimas que uma mãe espalha pelo rosto, sejam elas de alegria ou de tristeza chama-se, amor. Amor que ela derramava sobre eles nos mais puros e simples gestos que somente uma Mãe que que ame verdadeiramente os seus filhos é capaz de oferecer. O seu coração muitas vezes chorou, quando queria alimentar os seus filhos e não tinha nada para lhes dar de comer. Nessas alturas de escassêz, improvisava uma refeição que algures nesta minha narrativa atrás vos descrevi. Certamente os filhos que passaram por essa época difícil e por esssas privações, hoje quando pensam nesses tempos amargos e algo dolorosos, devem de sentir que essas lágrimas de angustia e desespero, que a Mãe muitas vezes enxugou rápidamente para que nenhum deles a visse chorá-las, foram lágrimas que lentamente e com o passar dos anos se transformaram em lágrimas de felicidade e esperança, por vêr que aqueles por quem tanto chorou, tornaram-se em homens e mulheres de bem, trazendo ao mundo novos membros para a «minha família», renovando nos netos e netas, o amor que fervorosamente sempre dedicou aos seus filhos. Por isso penso que, (sim porque uma casa que tem sentimentos, tambem pensa), as pessoas que amamos não morrem nunca, só saiem da nossa presença física porque não as conseguimos vêr, mas de cada vez que nelas falamos honramos a sua memória e por consequência o seu passado. Tenho a certeza de que não existe melhor forma de os manter vivos dentro do nosso coração, do que falando neles, mostrando a toda a gente o quão importantes foram e continuam a ser nas nossas vidas . A importância que a Mãe teve nas suas vidas, sente-se e nota-se em cada gesto e em cada palavra de saudade, amor e carinho que saiem das suas bocas quando nela falam, porque eles sabem que a Mãe, começou a amá-los e a protegê-los desde o primeiro dia em que soube, que iria carregar no seu ventre o fruto mais belo, mais precioso e surpreendente da àrvore do Amor; um filho. Se como dizem os crentes que aceitam como verdadeira a existência de um ser omnipresente e omnipotente; então a crêr neles o paraíso existe, e é lá que os dois se voltarão a encontrar, continuando nos Jardins do Eden, a sua história de Amor, entre anjos e querubins que providênciarão para que nada lhes falte, tentando compensá-los assim de todos os sacrificios que passaram na vida por Amor aos filhos . A acreditar como verdade, de que todo o mal ou bem que foi praticado aqui na terra, terá a sua paga ou a sua compensação no céu ou no inferno, e tendo como certo que o acerto de contas, será feito no dia do juizo final, então terão que ser os dois a pedirem contas a quem de direito por tudo aquilo porque passaram aqui na terra . Alguns dias após a partida da Mãe pensaram em realizar uma pequena reunião, cá em casa para decidirem o que fazer não só com as coisas que haviam sido dela, como para pensar que destino me iriam dar, se me entregariam ao senhorio, ou se algum deles como eu tanto desejava ficava comigo . Um pouco antes de chegarem a esse ponto da reunião, encontraram no meio dos papeis que a Mãe deixou, uns retratos antigos muito puidos pela passagem do tempo, alguns recortes de jornais, poesias que o Pai havia feito e uns postais que os Pais lhes haviam enviado de uma das várias excursões a que com alguma frequência iam. Vários desses postais diziam coisas engraçadas que os puseram todos bem dispostos ao ponto de levar alguns deles a rirem a bandeiras despregadas, indo quase todos às lágrimas de tanto rir, porque o que ali estava escrito demonstrava não só a preocupação que ambos tinham pelo que se passava cá em casa, assim como definia bem o espirito humoristico dos dois e o grande Amor que devotavam aos filhos. No decurso de uma dessas excursões feitas a Espanha onde tiveram de se ausentar durante uma semana, todos os dias enviavam um postal com os mais variados dizeres. Num desses postais recomendavam ao filho mais velho para tentar evitar as guerras constantes entre os dois filhos mais novos, o Guinhos e o Vasquinho, a quem chamava de 52


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indios. Outros diziam para o Zé Henrique que era o passarinheiro de serviço da casa, nunca se esquecer de dar de comer aos pássaros, outro ainda alertava a filha mais nova para ter cuidado com os irmãos visto ser momentaneamente a unica mulher na «minha casa»; mas havia um que considero o mais engraçado de todos, que era aquele em que ele chamava pinguins a umas freiras de um convento onde pernoitaram, somente porque não permitiram que dormissem juntos, separando-os de qualquer contacto físico por uma noite, coisa que nunca aconteceu na vida deles e que nunca ninguem havia feito. Após estes instantes que demoraram bastantes horas em que todos eles se sentiram bem na casa que os viu «nascer», chegou o momento em que teriam que falar de «mim» e o que iriam fazer comigo. Confesso que estava assustada mas tambem esperançosa de que a solução que iriam encontrar seria a melhor para todos, porque a casa onde todos tinham vivido, crescido, se tinham feitos homens e mulheres e cujas paredes contavam histórias que mais ninguem conhecia e continham segredos que mais ninguem poderia vir a conhecer, não podia sair do seio daqueles a quem desde o dia em que os vi pela primeira vez, passei a amar e a reconhecer como a «minha família», assim rejubilei quando, como era apanágio deles sem qualquer discussão, ficou decidido que eu ficaria na família qualquer que fosse o filho ou filha que quisesse ficar a viver cá em casa. Depois do que acabara de ouvir só não saltei de contente porque sou uma casa e estou agarrada ao chão e só não gritei porque a fala é um dos sentidos que me é vedado ter. A alegria foi tanta que de cada vez que um deles se encostava nas «minhas paredes» era como que se os envolvesse num abraço forte, solidário e agradecido. E pronto termino por agora a história da «minha família» que como devem de calcular não acaba aqui, outras histórias virão, contadas por mim ou por alguem isso não interessa, o que importa é que sejam contadas e que fiquem para sempre registadas no coração de quem as vier a ouvir e a conhecer. “Quem se encostar nas minhas paredes, ouvirá uns susurros e umas palavras que a memória e a passagem do tempo nunca irão conseguir apaga.”

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Posfácio A palavra família é sem duvida alguma das mais importantes do nosso vocabulário, porque numa só estão concentradas todas as restantes palavras que personificam e representam, o que de melhor o ser humano tem . O Amor, o carinho, a paixão e a solidariedade. - Amor porque é o sentimento mais poderoso do Mundo; - Carinho porque é o sentimento que nos inunda quando olhamos para quem amamos; - Paixão porque é o sentimento que faz mover montanhas; - Solidariedade porque é o sentimento que nos enquadra enquanto seres humanistas e solidários. P. S. - A nossa família não é perfeita, mas tomara que todas as outras fossem tão imperfeitas quanto a que temos.

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Considerações I Aquilo que vos conto no episódio décimo desta pequena história da nossa família, foi-me avivada por uma conversa que tive com a minha irmã Teresa em sua casa na Brandoa durante um almoço e como é hábito mesmo que sejamos poucos nas nossas reuniões familiares, falamos sempre da nossa infância, das brincadeiras e travessuras que durante esses verdes praticámos, e não raras vezes também trazemos para a conversa familiares nossos que já partiram, o que neste dia invariavelmente acabou por acontecer. No decurso da conversa surgiu um facto que me transtornou bastante e foi precisamente esse facto que me levou a escrever mais esta pequena história depois de já à algum tempo ter dado por concluidas aquelas, que eu achei mais importantes e porque não dizê-lo mais engraçadas. O facto que fiquei a conhecer tem a ver com a tia esposa desse tio de que vos falo no já citado episódio décimo. No instante em que estas letras tingem de negro o papel onde as escrevo, essa tia enfrenta conjuntamente com a filha graves problemas de saude fisíca e higiénica, devido a nem sempre terem os recursos financeiros para comprar os artigos necessários ao seu bem estar. Sem conhecer as razões e os acontecimentos que levaram a esta situação e correndo o risco de estar a interpretar mal esta questão, será contudo para mim incompreensível que isto possa estar a acontecer a alguem que no final do seu nome ostente o mesmo apelido que o meu e mais não me atrevo a dizer, porque embora sejamos da mesma família e a obrigação da família é a de zelarem uns pelos outros e mesmo sabendo que possa estar a errar, não quero meter a foice em seara alheia.

Considerações II

As palavras família, casa, patriarca, matriarca, histórias e outras poderão parecervos que estão num numero elevado de vezes escritas nesta simples narrativa, mas em meu entender, e espero que no vosso, elas apresentam-se num contexto muito próprio da história que se conjugam perfeitamente.

A nossa família é muito grande e com toda a certeza os vários ramos da nossa 57


àrvore geneológica terão as suas próprias histórias por contar. Se porventura as histórias deste ramo geneológico da nossa família que vos contei, for o mote para que alguem da restante família se inspire e passe para uma folha em branco a sua própria história, ajudando quem sabe a completar esta, já me darei imensamente recompensado e feliz por ter aberto um caminho. Se com esta pequena e despretensiosa súmula histórica sobre alguns momentos por nós vividos e outros contados oralmente pelos mais velhos da nossa família, consegui proporcionar o sorriso pelas coisas alegres e divertidas porque passámos e a lágrima a assomar pelos momentos menos bons, mas que infelizmente todos nós recordamos, como no parágrafo anterior vos disse, já me sentirei bastante feliz e recompensado. Nunca foi minha pretensão escrever algo de transcendente ou que merecesse o apoio de toda a gente. Tudo o que escrevi foi da forma mais sincera e mais simples que a minha instrução e os meus conhecimentos permitiram, mas uma coisa vos garanto, cada sílaba, cada palavra ou frase que passei através da pena para este papel, foram escritas pela melhor mão que temos, a mão do coração. Alguns de vós poderão pensar que estarei a exagerar na forma e talvez até no conteúdo daquilo que aqui escrevo, mas podem ter a certeza de que não sou eu quem as escreve, é a vós do coração que me dita as palavras para a mão que as passa para o papel e é através delas que exprimo todo o meu sentir. O Pai com a sua inteligência e conhecimentos adquiridos pelo seu espírito autodidata, e a Mãe com a sua vocação para a maternidade e para o lar, fizeram sempre uma equipa muito perfeita e hómogenea. A Mãe tinha uma natural e inata propensão para gerar filhos, que faziam dela a ideal incubadora de amor e carinho que destilava constantemente sobre todos nós, em cada beijo e caricia que nos dava, e até nisso eles perfeitos enquanto casal. O Pai não era de dar beijos, mas a Mãe compensava essa falta, dando-os por ele. Lembro-me perfeitamente como se fosse hoje, de nos encontrar-mos todos sentados encima da cama do Pai e da Mãe a escutarmos atentamente as histórias que ele nos contava, enquanto a Lina ou a Teresa ajudavam na confecção do almoço ou do jantar, ficando a porta da cozinha aberta com o intuito de tambem elas ouvirem tudo o que se dizia. Como hoje bem sabemos, algumas dessas histórias eram verdadeiras, mas outras nem por isso. Actualmente pensando nessas histórias que alguns de nós escutavam de ouvidos bem abertos e de ingénua consciência desperta, não posso deixar de recordar que os exemplos que nelas nos eram transmitidos se transformavam em pequenas parábolas, nas quais o Pai fazia sempre questão de nos mostrar a moral contida em cada uma delas. à distancia de algumas dezenas de anos desses dias, relembro com muita saudade e nostalgia esses momentos e vogo em sonhos e pensamentos ao encontro do encanto e da magia desse instantes que não raras vezes se prolongavam por largas horas e até noite dentro. Considerações III: Os caminhos que cada um à sua maneira nos ensinaram a trilhar e que fizeram o que cada um de nós é hoje em dia, foram de certeza motivo de muitas conversas entre os dois. Recordo-me de o Pai naqueles dias em que vinha para casa já com um grão na asa, deitar-se na cama e sonhar em vós alta com o que gostaria que cada filho fosse no futuro. Dizia ele enquanto a Mãe cheia de sono e cansaço infrutiferamente pedia para ele se calar, que a sua «Balhulha» dos olhos verdes era muito parecida com a Mãe, isto porque a forma como ela tratava dos irmãos mais novos e mais tarde dos sobrinhos iriam fazer dela a Mãe perfeita. Do Vasco sonhava que fosse engenheiro ou outra coisa parecida, porque foi o unico que devido à melhoria das condições de vida pode estudar até mais tarde. Para cada um 58


a casa

de nós eles tinham um sonho. E será que todos se realizaram?. Não, claro que não, mas os sonhos são isso mesmo, pequenos castelos de areia fabricados pelos nossos desejos e imaginação, umas vezes aguentam-se fortes e firmes e são concretizados e outras o mais infímo sopro de vento os desfaz. António Gedeão no seu poema Pedra Filosofal dizia, «que o sonho comanda a vida» e seguindo este pensamento, os nossos Pais comandavam a sua vida e os seus sonhos cavalgando os sonhos que sonhavam. Sabemos que nem todos se realizaram, mas nenhum deles precisou de sonhar para formar homens e mulheres de boa índole e de bom coração, porque todos nós temos a firme convicção de que quando nos deixaram, levaram com eles a certeza de que haviam criado uma família da qual ambos se podiam orgulhar . Por tudo o que os nossos Pais por nós fizeram, suportaram e sofreram, tenho a certeza que posso agradecer por todos vós, meus irmãos, da unica maneira que sei e me é possivel. Honrando a sua memória e respeitando os seus nomes até ao fim dos meus, «nossos» dias. Se cada palavra dita ou cada gesto por um de nós realizado, que diga respeito a qualquer um deles, vier imbuído do grande amor e respeito que por eles sentimos, então todos os bons momentos e até os maus que com eles passamos, irão ser para sempre perpectuados enquanto formos vivos e enquanto tivermos memória para os transmitirmos às novas gerações de familiares. Caminharei Caminharei ao encontro do destino Caminharei mesmo que receosa(o) Ainda que com o coração pequenino Caminharei em frente,corajosa(o Caminharei sempre sem recuar Quero saber na verdade o que virá Caminhareirei mesmo a cambalear Mas quero conhecer o amanhâ. Caminharei mesmo sem norte Caminharei em direcção ao horizonte Caminharei embora sabendo que a morte Um dia virá comigo atravessar a ponte Caminharei enquanto a força der Enquanto em mim o coração pulsar Caminharei mesmo que o sofrer Esteja comigo para me acompanhar. Caminharei sozinha(o)ou contigo Caminharei sempre até Deus querer Caminharei em busca de um abrigo Onde possa enfim adormecer. Rosa S. Couto

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A volta ao mundo I Meus senhores vou-lhes contar Eu não venho albrabar Acreditem que é mentira Sem ter nunca ido ao estrangeiro Dei a volta ao mundo inteiro Toda a gente se admira II Na Espanha fui toureiro E até num jornal estrangeiro Veio a minha fotografia Não sei como aquilo foi Virei-me à palmada ao boi Que acordei na enfermaria III França------------------------------------------------------------------------------------------Casei com uma Georgette Que deu à luz uma camionete Com cinquenta passageiros. IV Na Italia que bonito Comi gato por cabrito E não me fiz abelhudo Pois disseram-me a gozar Não se esteja a admirar que o Papa cá papa tudo V Na América fui cowboi Fui considerado herói Por vencer o meia orelha Foi num combate renhido Que vazei um olho de vidro A esse chefe pele-vermelha

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a casa

VI Para a Alemanha embarquei Mas não me dei muito bem No país das invençoes E fui ao xadrês parar Só por ir a assobiar A Rosinha dos Limões VII P,ró Japão então segui E o comer que lá comi Até me faz fugir dos gatos Eram ratos a almoçar Ratos à noite ao jantar E ao café sopa de ratos VIII Na China fui azarento E para escapar a um fardamento Eu tive que andar de gatas Só por dito a um chinês Que o tinha visto uma vez Na baixa a vender gravatas IX Hoje cá em Portugal Eu sou o às do pedal Como eu não há no mundo Com uma máquina partida Venci a grande corrida De cacilhas ao Dafundo Vasco da Silva Nunes

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...O dinheiro não abundava naquela casa de madeira pelo que os presentes de Natal tinham de ser

necessariamente muito simples e baratos, a maioria

deles fabricados em folha de alumínio ou em madeira, mas só para poderem assistir à alegria estampada no rosto dos filhos, lá conseguiam arranjar algum dinheiro para poderem comprar as prendas de Natal,

e nesse dia ao olharem para a alegria dos filhos

ao manusearem aqueles brinquedos comprados com dificuldade mas com muito Amor, sentiam ambos

que todos os sacrifícios feitos para verem os filhos felizes, valiam a pena....


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