SAAL 1974\2006
O Bairro da Bouça foi a última operação SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local) a ficar con� cluída. “30 anos depois aquilo foi para a frente – a vida de facto dá muitas voltas”, admite Siza. Este é o sítio onde a história acaba – ainda não sabemos é se acaba bem ou se acaba mal.
FBAULDCI.BNÚMERO ZERO Lisa Hartje Moura 4781
direito à cidade!
“Os classicistas crêem nos planos reguladores definitivos, somente realizáveis com os regimes ditatoriais. Em contrapartida, os arquitectos modernos lutam por uma planificação aberta e contínua que corresponda constantemente às ex� pectativas, sempre novas, da sociedade. Os primeiros desenham “cidades ide� ais” de tipo renascentista, abstractas, utópicas, perpetuamente frustradoras. Os segundos pensam em projectar, não a cidade, mas o projecto da cidade, uma hipótese do seu futuro que, com o tempo, se transformará em formas diversas e imprevistas.” Bruno Zevi
Hufeisensiedlung 1925/30
A urbanização Hufeisen é actualmente conside�
construção habitacional social alemão (GEHAG),
factores como o sentido de colectivo e solidariedade.
rada um ícone da construção social de Berlim
organizado por Martin Wagner, a Hufeisensie-
Tal como no projecto de outra urbanização, Garten-
(“Urbanização Ferradura”,Berlim)
dos anos 20. A urbanização, projectada por Bru�
dlung apresenta traços característicos que Bruno
stadt ������������������������������������������������� (“Cidade-Jardim”),Taut valoriza o jardim e o es�
no Taut e construída entre 1925/30, é a primeira
Taut já havia experimentado em urbanizações so�
paço verde como elementos fulcrais da arquitectura.
grande urbanização alemã com mais de 1000
ciais anteriores, como a simetria e assimetria dos
No seu todo, são evidentes os traços modernis�
casas, persistindo até aos dias de hoje e recen�
blocos de habitação e das ruas e o uso elementar
tas na concretização da forma e na constante
temente incluída na lista de urbanizações de Ber�
da cor como acentuação e forma espacial.
procura de harmonia entre espaço e luz.
lim distinguidas pela UNESCO.
Nesta são visíveis os ideais progressistas da arquitec�
Integrada num processo político e urbanístico de
tura e racionalização modernista com a inclusão de
Siemensstadt 1929/30, 1933/34 (“Cidade Siemens”, Berlim)
Tal como a Hufeisensiedlung, o projecto Sie-
Uma vez mais, o estilo modernista prevalece em
mensstadt decorreu do processo GEHAG em
todas as “interpretações”, resultando numa urba�
Berlim, de Martin Wagner, mas neste caso espe�
nização apologista de uma “limpeza do supér�
cífico, as habitações destinavam-se aos trabalha�
fluo”, até pela necessidade de redução de custos.
dores da fábrica da Siemens de Berlim.
À semelhança das urbanizações de Bruno Taut, o
Além de Hans Scharoun (arquitecto responsável),
espaço verde desempenha um papel importante de
colaboraram no projecto Walter Gropius, Otto Bar�
abertura do espaço e de lugar de convívio e, assim,
tning, Fred Forbát, Hugo Häring e Paul Rudolf Hen�
mais do que um local de habitação, a Siemensstadt
ning, sendo atribuída a cada um a possibilidade de
funciona ainda hoje como local de vivência.
interpretação pessoal na projecção das habitações.
Fachada da parte projectada por Hans Scharoun.
“Decidi criar beleza... ...através do contraste” Le Corbusier
Unité d’habitation 1947/52 (Unidade de Habitação, Marselha) A unité d’habitation de Marselha veio conjugar
só à falta de aço em França depois da guerra su�
a visão de Le Corbusier relativamente à vida em
ficiente para uma estrutura em aço, como tam�
comunidade com as necessidades e a realidade
bém pela falta de mão-de-obra qualificada.
de uma França pós-guerra. A sua construção compacta, destinada a mais
“Decidi criar beleza através do contraste. Encon-
de 1600 pessoas, com centro comercial e infan�
trarei o seu complemento e definirei um jogo
tário integrados, permitiu que se construísse
entre o rude e o elegante, entre o aborrecido e o
uma área verde em seu redor, semelhante aos
intenso, entre a precisão e o acidente. Obrigarei
exemplos de Berlim.
as pessoas a reflectir, daí a policromia violenta,
A Unidade introduziu ao mundo o béton brut
clamorosa e triunfante das fachadas.”
(betão à vista), que daria origem mais tarde à corrente do Novo Brutalismo. Tal deveu-se não
SAAL:
casas sim, barracas n達o!
O polémico programa que ficou conhecido pela
as cooperativas de Habitação Económica (CHES)
sigla SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local)
ou os Contratos de Desenvolvimento (CDH)…
foi apenas um dos que, nos primeiros governos
Ao SAAL cabia, basicamente, a auto-organização
provisórios e ainda nesse ano de grandes mu�
e a experiência do diálogo com os projectistas
danças, se criaram com o objectivo de acelerar
que devia pôr em prova tipos de casa e de bair�
e corrigir a herança do Estado Velho, neste como
ros menores (embora mais numerosos) e mais
noutros campos do atraso do país.
adaptados aos locais.
Mais do que um processo de participação ocasio�
Como propunha o diploma fundador do SAAL,
nal, o que os novos poderes ofereciam aos inte�
a proximidade, a reduzida dimensão, a ligação
ressados era a oportunidade de gerirem de forma
directa ao espaço público, a tipologia das casas,
organizada (e assistida por técnicos qualificados)
deviam ser discutidas e adoptadas, além da op�
a construção de cada novo bairro que iria substi�
ção (não obrigação) pela autoconstrução parcial
tuir os “bairros de lata”, as “ilhas” ou outras for�
apoiada. Estes critérios, pensávamos, poderiam
mas de precariedade em que estavam a viver.
reduzir os riscos que os grandes bairros de blo�
O programa SAAL não pretendia ser o programa
cos de grande altura não conseguiam evitar.
único para os novos tempos. Mas era o mais expe� rimental de entre os que se lançaram nos meses se� guintes: a reabilitação de bairros populares antigos,
Nuno Portas
Bairro da Bouça 1977/2006
Começámos a ver “As Operações SAAL” – o docu-
São oito da noite no Bairro da Bouça e o sr. Cardo-
mentário de João Dias em exibição em Lisboa – fa-
so trata todos os moradores pelo nome – ou por “sr.
zendo a história do serviço criado em Agosto de 1974
arquitecto”. Há vários a viver e a trabalhar ali. Nuno
pelo Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo,
Brandão Costa, vencedor do Prémio SECIL de Ar-
o arquitecto Nuno Portas, para, “em face das graves
quitectura 2008, foi para lá quando um dos equipa-
carências habitacionais, fazer arrancar programas de
mentos foi posto à venda: “O projecto é incrível até na
construção convencional a curto prazo e apoiar as
maneira como resistiu ao tempo, o sítio é fantástico e
iniciativas de populações mal alojadas”.
o ambiente é óptimo: há os moradores de sempre e
É aqui, no Bairro da Bouça, que o filme acaba: com
depois uma segunda geração de estudantes univer-
Alexandre Alves Costa, o arquitecto que coordenou
sitários, arquitectos, designers. (...)Não há perversão
o SAAL/Norte, a olhar para as 72 novas casas do
nenhuma. Os tempos mudaram e as pessoas que es-
bairro, e sobretudo para a segunda geração de mo-
tão ali são jovens, estudantes, recém-licenciados que
radores da Bouça, e a dizer que a festa foi bonita,
tiveram ali a oportunidade de comprar uma boa casa,
pá, mas só enquanto durou: “Estranhamente as
barata. Hoje as pessoas que lá estão há 30 anos con-
casas estão a ser vendidas a arquitectos, e a mim
vivem tão saudavelmente com os novos moradores
isso repugna-me muito. (...)Os moradores pobres
que até já é difícil distingui-los.”
que estiveram anos à espera daquelas casas aca-
Pode não ser o espírito do SAAL – mas é o espírito
baram por ter de resolver a vida de outra maneira
da melhor habitação social, aquela que nunca se faz.
– e as casas que eram para eles foram compradas
“O Porto é uma cidade segregada: há zonas onde
por pessoas sem problemas de precariedade eco-
vivem os ricos todos e zonas onde vivem os pobres
nómica, ao preço da chuva, com o bónus de ser um
todos. No Bairro da Bouça a arquitectura conseguiu
projecto do Siza, valorizadíssimo”. Ganhou-se “um
criar uma cidade plural e democrática em que pes-
belíssimo projecto, que se tornou “completamente
soas de proveniências diferentes vivem em casas
irrelevante em termos de habitação social. (...) Do
todas iguais”, continua Nuno Brandão Costa.
ponto de vista simbólico, aflige-se que tenha vindo terminar uma coisa que na altura teria tido uma utilidade social para agora viverem ali meia dúzia de colegas meus bem instalados na vida. Isso é que é perverso na maneira como isto acabou.”
“Não é obra perfeita. Mas seria isso o principal?” Álvaro Siza Vieira
Álvaro Siza também gosta do que vê: “O que
quem pôde ficar, ficou”, sublinha o sr. Cardoso.
aconteceu é compreensível – e saudável – e tam�
“As pessoas desmobilizaram quando perceberam
bém se passou em outros sítios. O Bloco de Mar�
que a casa não era realizável, e passado pouco
selha do Corbusier, por exemplo: durante anos
tempo até era difícil falar com elas sobre o assun�
esteve degradado e foi considerado um fracasso,
to era como se o SAAL nunca tivesse existido.
uma arquitectura socialmente inaceitável. Neste
Mantiveram recordações da festa, que foi boni�
momento está tudo a funcionar porque houve
ta: da manifestação não sei onde, do piquenique
uma geração – de professores, de arquitectos, de
não sei quê, disso não se esquecem, do que se
intelectuais – que quis ir para lá viver. Enquanto
divertiram com o processo”, afirma Alves Costa.
era para os pobrezinhos aquilo era um desastre.
Para toda uma geração de arquitectos o SAAL foi
Agora é um sucesso.”
fundador: “Internacionalmente, até aí, a arqui�
Durante 25 anos, a primeira fase era tudo o que
tectura portuguesa era desconhecida e
havia. Na década de 90 a Associação de Morado�
passou a haver um enorme interesse pelo que
res da Bouça conseguiu garantias da autarquia e
estávamos a fazer. Em Portugal continuamos a
convenceu o arquitecto a voltar ao projecto: “O
achar que aquilo foi uma coisa um pouco louca e
Siza esteve sempre de pé atrás, mas lá veio ver o
degradante, mas na verdade o SAAL deixou mar�
que era preciso”. Na primeira assembleia para atri�
cas em nós e nos outros”, argumenta Siza.
buir as novas casas, vieram “cento e tal sócios e
Havia uma revolução em curso no país, e isto
filhos de sócios”. Ficaram 12. A associação acabou
era o país a construir-se. Segundo Alves Costa,
por ter de leiloar as 60 habitações que lhe caíram
“O SAAL era uma utopia, mas achávamos que
no colo de um dia para o outro. “As pessoas viram
era uma utopia viável. Perguntávamo-nos ‘isto
o tempo a passar e as casas a não serem recons�
será possível, será mesmo verdade?’, mas não
truídas, foram décadas com as calças na mão. Foi
tivemos muito tempo para perguntas porque um
uma desilusão: estas casas eram para os sócios
ano e meio depois percebemos que era mentira.”
e eles é que deviam estar aqui, mas paciência: