Dedicamos este livro a nossa querida irmã Ana Lúcia (in memoriam) e ao Sr. Lourival Portela, os quais nos ensinaram que a felicidade mora em nossos corações.
Produção e Editoração: Lourival Rodrigues Portela Junior Revisão: Lívia Portela Capa e Diagramação: Palitto Studio – Getulio Salviano
Portela Junior, Lourival Rodrigues Família Portela - Relatos Caruaru – PE : 2016 112p.: 15x21 cm. 1° Ed – Tiragem 1.500 1. Biografia. 2. Relatos CDU - 929.012
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Edição Especial 2016
SUMÁRIO
Capitulo 1 – Um breve histórico .................................. 07 Relatos da Ana Maria …………………….........................09 Relatos do Francisco José............................................ 22 Relatos do Antonio Carlos............................................ 28 Relatos do Francisco das Chagas Portela .....................35 Relatos do Washington Luis ........................................ 44 Relatos do Marcos Portela............................................ 46 Relatos do Lourival Junior........................................... 59 Relatos do Ricardo Cesar ............................................ 67 Relatos do Portela Neto .......................….................... 96 Relatos do Paulo Henrique .......................................... 100
UM BREVE HISTÓRICO SOBRE A FAMÍLIA PORTELA Em um período inusitado de grandes festejos na cidade de Teresina no distrito de Pau Seco no estado do Piauí, no ano de 1947, meu pai, Lourival Rodrigues Portela, no seu passeio diário a cavalo, notou uma morena notável de cabelos cacheados, e bateu logo a vontade de conhecê-la, digamos que um amor à primeira vista; Iniciava assim uma grande relação amorosa com minha mãe, Maria Luísa de Sousa Portela. Deste caloroso relacionamento viriam filhos e filhas, que serão os grandes protagonistas desta obra, que irá relatar momentos de grandes alegrias e principalmente de boas lembranças que irão colorir as páginas dessa grande obra. Momentos que marcaram as memórias vivas dos filhos Ana Maria, Francisco José, Antônio Carlos, Francisco das Chagas, Washington Luís, Marcos Jovelino, Lourival Júnior, Ricardo César, José Lino, Paulo Henrique. Certamente que eu não poderia deixar de citar a nossa querida irmã Ana Lúcia e o Sr. Lourival, os quais lhe dedicaremos essa obra que será escrita por todos os queridos irmãos e sem dúvida eles dois terão um capítulo especial em nossas boas lembranças. Esperamos proporcionar ao leitor uma “Boa Viagem”!!
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D. MARIA LUISA DE SOUZA PORTELA
“O amor de mãe por seu filho é diferente de qualquer outra coisa no mundo. Ele não obedece lei ou piedade, ele ousa todas as coisas e extermina sem remorso tudo o que ficar em seu caminho.” Agatha Christie 08
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RELATOS DA ANA MARIA
LEMBRANÇAS “Podes correr, caminhar, tropeçar, dirigir ou voar, mas não percas de vista o objetivo desta viagem, nem deixes escapar a oportunidade de ver o arco-íris no caminho” Antonia Janckenko Na grande caminhada da vida, voei, sonhei, tropecei, porém sempre com o objetivo de não deixar escapar a oportunidade de ver o grande arco-íris... E pensando nele as lembranças borbulham meu cérebro e transbordam o coração de emoções e saudades. Dividindo essas lembranças em épocas e tempos, devo dizer que a criança que habita dentro de mim fala mais alto. E nesse compasso sobrevou a cidade de Teresina, cidade quente, de sol abrasador, que já na década de 1957 esse cenário se fazia presente. E foi assim que a conheci 09
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através da grande figura masculina que representava meu pai. Disse-me na ocasião: “Nessa cidade se frita ovo nas calçadas”. Contudo, ali foi apenas uma passagem, nosso grande objetivo, digo o dele... Era a Fazenda Atalaia onde morava meu tio, tias e avó materna Curdulina, que não gostava de ser chamada de vovó e sim de Dindinha. Era uma casa grande de chão batido, com redes espalhadas pelos cômodos, uma varanda onde sempre podíamos nos balançar numa das suas grandes redes... No terreiro havia galinhas, patos, marrecos e capotes, aqui no sudeste são chamados de “galinha d'angola”. Ao lado do terreiro, o pomar com seus pés de laranja lima, mangas, cajus, melancias e os canteiros de verduras. Canteiros esses suspensos por conta das galinhas que tudo ciscavam a procuram de minhocas e outros alimentos. Tinha também o curral... Doce lembrança das vaquinhas, do leite quentinho que tomava na caneca ainda de madrugada conduzida por meu pai, o madrugador das manhãs. Os reconfortantes banhos a beira do poço, banhos de caneca, para o grande despertar juntamente com o café de coador muitas vezes feito por ele... Que doce lembrança! Sendo eu a mais velha da prole, que na ocasião éramos apenas quatro! Espanto! Sim depois vieram mais sete... O caçula na época o segundo Francisco Portela, mimado pela Dindinha que andava sempre de chupeta correndo atrás de sua queridinha... E a Bita? Uma ovelhinha marrom manca de uma pata que rodopiava pela casa seguindo a Dindinha por todos os cantos. Meus dias eram sempre cheios de aventuras, subindo em árvores a procura de frutas onde lá mesmo as comia e chupava, me deliciando! Era assim que brincávamos e nos divertíamos, eu e meus irmãos menores. Nesta época eu tinha sete anos e os irmãos desciam a escadinha em suas idades... Os porcos que perambulavam nos arredores da casa, comiam melancias e se lambuzavam pelos chiqueiros 10
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fazendo muito barulho! O capítulo da matança do porco, que para os adultos era festivo, para nós crianças era de muito choro e tristeza. Como também o das galinhas caçadas no terreiro para servirem de almoço. Nessa ocasião nossa mãe nos tirava de perto, uma vez que a galinha não morria, segundo ela éramos a causa e ficava dizendo: “Saiam daqui cambada senão essa galinha não vai morrer!”. A noite chegava logo, com o céu bordadinho de estrelas, era o momento em que os adultos sentados no chão numa grande roda, debulhavam o milho e o feijão, que colhidos durante o dia teriam que ser trabalhados na debulha para secar uma parte ou servirem de alimentos no dia seguinte. Em época de “farinhada”, o cenário era o grande forno ao lado da casa, nessa ocasião os homens eram as figuras centrais do trabalho. Por ser muito curiosa é que conheci e acompanhei um pouco esse trabalho. Descobri que dali é que saía o beju, tão apreciado no café da manhã, como também a gostosa farinha que tanto apreciava no feijão com legumes: jerimum, banana verde, quiabo e maxixe. A noite também era palco de grande aprendizagem, do meu contato direto com os livros. O Sr. Lourival o grande visionário, percebendo que a maioria dos adultos eram todos analfabetos transformou a sala da casa numa grande sala de aula, com bancos de madeira compridos e uma mesa que completava o seu ambiente de trabalho. Não lembro se havia lousa, lembro apenas das cartilhas de ABC, onde lá aprendi a magia de como combinar as letras e descobrir o mundo da leitura. Doce encantamento! Sentiame a mais importante de todos, pois eu já sabia ler e as pessoas grandes ainda não... Já era nessa época vaidosa e exibida! E foi nesse cenário que ali nasceu o grande e forte curumim, Washington, a Dindinha quando brava nos chamava de “cambada de curumim”, O único piauiense da prole. De gênio forte que já sabia o que queria, pois aos nove anos começou a trabalhar já morando em Fortaleza. 11
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FORTALEZA Depois de uma breve estadia em Fortaleza, o casal Lourival e Maria Luíza aguardavam a chegada de mais um rebento: Marcos, o queridinho da vovó Jovelina (Jove). Nessa ocasião lembro que morávamos na casa da vovó Jove e vovô Cazuza, aquele caixeiro viajante pelos mundos do Piauí e Maranhão. Nesta casa tinha um pé de azeitona, uma fruta roxinha e doce como mel. Uma árvore de grande porte onde subíamos para colher seus frutos e saborear lá de cima mesmo, eu ficava com a boca roxinha e achava lindo! Ainda lembro da vovó sentada na rede com aquele cachimbo que fedia. E que ela não gostava do barulho que fazíamos! Como esquecer das manhãs de domingo, em que eu era levada por meu pai a uma rádio com programa ao vivo de música. Esse programa era ouvido em casa pelos ouvintes como também as pessoas poderiam participar ao vivo, na própria emissora de rádio. Que memória doce e afetiva! Também íamos às tardes de Circo, com seus palhaços e uns macacos rodopiando... Acredito que o Francisco e o Antonio Carlos não tinham idade para nos acompanhar. Minhas lembranças dessa casa giram em torno de uma árvore muito grande e frondosa de uns frutinhos muito doces chamados azeitona. Gostava de subir e saborear, ficando com a boca roxinha. Foi em Fortaleza que tive o contato com minha primeira professora, D. Madrileide. Íamos ás aulas em sua casa, eu e o primo Mário Junior. Recordo-me de uma casa com uma grande varanda onde gostava de me balançar na rede, aguardando a chegada do meu pai para o almoço. Todos os dias ele trazia uma caixinha de “uva passas”... Até hoje guardo a lembrança e a memória afetiva desses momentos! Antes do nascimento do Marcos falei à minha mãe que, se viesse outro menino eu iria morar com a minha 12
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madrinha, tia Nenê. E realmente quando me chamaram para ver meu novo irmão de cabelos ruivos e olhos grandes, já estava eu de malas pronta. Fiquei parada na porta e nossa mãe exclamou: “Venha ver seu irmãozinho!”. É claro que não fui morar com ninguém! Aos poucos fui aprendendo a gostar também dele como dos demais. Continuei sendo a queridinha do papai... E me divertia muito com tantos meninos! ITAPIPOCA E lá fomos nós de mudança para Itapipoca, emprego novo do Sr. Lourival! Lembro que nos mudamos num caminhão de carroceria, apenas eu e meu pai juntos com a pequena mobília. Todos os irmãos menores na boleia com nossa mãe levando no colo o pequeno Marcos Jovelino. Que delícia de viagem! Debaixo de um céu estrelado e um ventinho gostoso que batia em nosso rosto! Só lembro que adormeci e acordei ao chegar. Foi nessa pequena e querida cidade que muitos acontecimentos ocorreram, principalmente a chegada de nossa pequena e risonha Ana Lúcia. Ela nasceu na maternidade da cidade e quando fui vê-la. Ah! Amor à primeira vista. Nossa casa ficava a beira da linha do trem. A chegada do trem na Estação todos os dias por volta das nove da manhã era um acontecimento que todos corriam para ver e ouvir os vendedores a gritar oferecendo seus produtos: olha a tapioca! Milho verde, seriguela, olha a ata! E outros mais que já esqueci... Pessoas descendo e outras embarcando ao som da Maria Fumaça! Doce deleite aos olhos das crianças. Também me deliciei viajando nesse trem de Itapipoca para a cidade de Curu. O trem não passava por Fortaleza para lá viajávamos de ônibus, que partia de um ponto onde o proprietário era o Sr. Cafita. Grande figura! Desse período as lembranças são mais fortes, talvez porque eu já tinha crescido e já começava a entender que os 13
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adultos eram complicados e pude sentir em minha alma infantil o sofrimento... Estávamos no ano de 1959, período de uma grande seca no Nordeste e nosso pai trabalhava para um político da cidade, sendo responsável de “alistar” os “caçacos”, assim eram chamados os homens que vinham dos confins dos sertões a procura de trabalho e alimentos, fugindo do sol abrasador e falta de água. Tinham abandonado suas casas, suas terras, suas criações e famílias do grande sofrimento que os atingia. Meu pai me levava algumas vezes ao seu local de trabalho, hoje penso que assim procedendo, procurava me introduzir para a grande jornada de minha própria vida. O que mais observava nessas ocasiões era maneira de falar dessas pessoas. Vejamos algumas falas: “Sr. Lourirral, arrente anda, anda e não encontra nada...” queriam os retirantes assim dizer com isso que já haviam caminhado tanto a procura de trabalho e comida e tudo em vão. O alistamento constava de colocá-los em uma extensa lista para construção de açudes. Ali também chegavam pequenos carregamentos de: farinha, rapadura, leite em pó e carne seca. Nosso pai dava a cada um dos retirantes uma caderneta onde anotava os mantimentos que acredito, serem controlados à cada família. Em nossa casa esses alimentos não faltavam eram utilizados como complementos de nossa alimentação diária. Além das verduras e os temperos plantados e colhidos por nossa mãe. Sem contar na galinha do almoço a cabidela. Quanto a maneira de colher o sangue da galinha, me reservo ao direito de não detalhar. O nosso café da manhã quase sempre era regado com o leite quentinho, café, jerimum cozido ou batata doce. Nosso irmão Antonio Carlos gostava muito de café de com farinha na caneca... Quando era época do milho verde, as pamonhas e canjicas faziam o maior sucesso, quem não gostava! As noites anteriores o preparo das pamonhas é um 14
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capítulo a parte, como também do milho assado, que deixava todos “empazinados”... Foi em Itapipoca que a prole cresceu, com o surgimento da segunda geração dos Portelas, composta por: Lourival Junior o temporão. Pois ele nasceu, quando Ana Lúcia completara sete anos. Ricardo o chorão, Portela Neto o irrequieto. Já o grande caçula Paulo Henrique, nascido após a minha partida para a cidade de Guanabara, como era denominada na época a cidade do Rio de Janeiro. O mesmo quando chegou morávamos em Fortaleza, no bairro Jardim América. Numa casa que ficou marcada por uma bomba que puxava água do poço de forma manual. Essa bomba foi palco de muitas histórias, era necessário muitos meninos para deixar os “potes” cheios com toda água de uso do dia. Ainda mencionando nosso caçula, Paulo Henrique, quero registrar que o conheci com apenas um mês de idade, quando de minha passagem de férias com a mudança para a minha querida SAMPA… São Paulo. Toda essa retrospectiva é apenas para situar os fatos de forma cronológica em minha memória. O Grupo Escolar frequentado por mim e o Francisco José, onde meninos e meninas estudavam em salas separadas. O leite servido no lanche, às vezes com chocolate naquela caneca não dá para ser esquecido! Usávamos nos pés os “tamancos” que soavam como música quando andávamos de forma rápida para chegar antes do sinal de entrada. Os modelos tinham pequenas diferenças para meninos e meninas. Não me lembro de ir para a escola em companhia de outros irmãos, meu companheiro inseparável era sempre o Francisco José. Antes do nascimento do Lourival Junior a construção de nossa casa de taipa atrás do açude da Nação, foi uma grande conquista do casal Maria Luísa e Lourival. Lembro bem nosso pai amassando o barro e eu colocando entre as ripas que seguravam e amarravam as paredes. Numa ocasião ele segurou minhas mãos cheias daquele barro e 15
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falou: “Essas mãos são de piano!”... É quando lembro, que bem pequena perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, logo respondia: “Professora de piano!”. Mas, voltando para Itapipoca, já mocinha os banhos de cachoeira na serra dos Picos são inesquecíveis. Naquela época os jovens faziam caminhadas e pic-nic aos domingos. Nosso lazer consistia no passeio a pracinha após a missa das dezoito horas, como também ao cinema do Cafita para assistir aos seriados de “Dick Tracy” e “Tarzan e a tribo de Nagazu”, as séries preferidas do nosso querido Francisco, o marinheiro da família que deu a volta ao Mundo no Porta Aviões Minas Gerais. As novenas rezadas por Maria Luísa, sempre acabavam em confusão. Antonio Carlos era o protagonista, com suas piadas e risos que causava em todos nós. Enquanto respondia a reza, beliscava os irmãos resultando em sua saída aos pés dos santos de devoção de nossa mãe. Antonio Carlos era a alegria em pessoa com suas piadas, brincadeiras e palhaçadas sempre assustando e pregando uma peça em alguém. Francisco José que o diga! Segundo tia Cleusa, era o filho mais bonito de nossos pais tudo isso por conta de seus lindos olhos. Tivemos uma infância maravilhosa! Os banhos de chuva, uma de nossas diversões preferidas, corríamos pelas ruas batidas de terra e mergulhávamos no córrego que atravessava as ruas próximas de nossa casa. Aos domingos brincava de fazer comidinha em nossas panelinhas de barro, tudo de verdade. A brincadeira era só para as meninas, até que um dia a panela de feijão virou no meu pé e não teve graça nenhuma! Queimadura forte, no dia seguinte nem pude ir à escola. Na maioria das vezes brincava só com meus irmãos, de bila, pião, subir em árvores, chupar caju no pé, comer mangas subindo nas mangueiras de algum vizinho, colher siriguela e ata de “vez” para amadurecer bem escondidas. Ninguém fazia isso melhor que o Antonio Carlos! E as tardes de assar castanhas! Sinto o aroma que exalava quando eram 16
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quebradas, de preferência quando comíamos depois de tanto trabalho. Aos meninos cabia a tarefa do fogo, de mexer na panela com um cabo de vassoura, com os cuidados devido ao leite que podia nos queimar. Dá para comparar com outra infância de alguma época! Podemos afirmar que fomos muito felizes, apesar das dificuldades, e da luta de nossa mãe costurando até de madrugada para dar conta das encomendas, onde o pagamento que receberia muitas vezes já estava comprometido na venda, ou melhor dizendo na linguagem da época “bodega!” O início do ano escolar era outro momento aguardado com alegria por todos nós, menos para o Antonio Carlos que não gostava dos bancos escolares... Seu boletim sempre muito colorido, causando grandes aborrecimentos principalmente ao Lourival! O mesmo não se dava com o Francisco José, as melhores notas sempre foram suas. Todo início de ano o ritual de encapar livros e cadernos, arrumar a farda era mágico. Meus livros passavam para o Francisco José e assim sucessivamente... Nada de comprar tudo novo todos os anos como acontece atualmente. Éramos crianças privilegiadas por frequentarem o grupo escolar, a escola na época não era para todos. Com isso nós levávamos muito a sério os estudos, pois ouvia de nosso pai que o maior legado que ele poderia dar aos filhos era o estudo! AS FÉRIAS Depois de um ano de muito estudo e de longas caminhadas sob a batida de nossos tamancos, as férias chegaram! Ah! Que delícia! Contava nos dedos sua chegada, Fortaleza era o destino certo. A casa da tia Nenê e tia Cleusa. Não lembro como se dava essa divisão... 17
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A viagem até Fortaleza, fazíamos em quatro a cinco horas de ônibus, numa estrada de terra sem parada. O ônibus saía cedinho do “ponto do Cafita”. A passagem comprada com antecedência para não correr o risco de perder a viagem. A ansiedade era tanta que geralmente eu não dormia a noite anterior... A mala de madeira marrom, só tinha ela! Meu pai na maioria das vezes me levava até Fortaleza, depois quando já estava crescidinha com quinze anos, escrevia para uma das tias me pegar na rodoviária com dia e hora marcada. Nessa altura um funcionário do tio Luíz já conhecido, me esperava levando-me até sua loja, uma Distribuidora de Óleo, localizada no centro da cidade. Naquela época o ano letivo findava em novembro, tínhamos três meses de férias, as aulas retornavam em março. Quanta aventura durante esse período! Além das casas de tia Cleusa e Nenê, muitas vezes íamos para a cidade de Quixadá, terra de Raquel de Queiroz. Alguns dias juntamente com Meyre Marci, prima e filha do tio Chaga e Hilária. Sua casa ficava próxima da pedra da Galinha Choca, ponto turístico da cidade. Gostávamos de andar por lá de manhã para ver as lavadeiras lavando roupas nas pedras, cantando e conversando. O café da manhã era delicioso! Com muito queijo e leite fresquinho tirado da vaca. Quando voltava de lá todos achavam que Sandra e eu tínhamos engordado um pouco! O passeio de charrete pela cidade era um dos meus preferidos. Quase não se via carros, apenas cavalos e charretes. O clima de Quixadá era ameno e a cidade silenciosa! Todavia, as maiores aventuras aconteciam mesmo na casa da tia Nenê com a algazarra de seus irmãos, tia Amparo e os quitutes da “Teitão” como era carinhosamente chamada pelos filhos da tia Nenê. Conceição era o seu nome, uma negra linda trazida pequena para trabalhar na residência dos Limas. 18
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Minhas férias em Fortaleza eram marcadas pelos passeios na pracinha, cinema, missa nas tardes de domingo e as matinês de Carnaval. Nossas fantasias tia Nenê fazia, me vestia igualzinha a Sandra. Teve um ano que fomos de zebrinha! Bandeira Branca era a música que mais se cantava... Grande mulher essa Chiquinha Gonzaga! O mais gostoso de tudo isso são as boas lembranças da viagem de ônibus, Itapipoca-Fortaleza em companhia de meu pai. Aquele café tomado quentinho antes da partida do ônibus. A paisagem vista sempre da janela, ora a caatinga, ora as casinhas de taipa a beira da estrada, pequenos riachos, plantações de milho, feijão, a poeira e as pessoas que pareciam tão longe de minhas observações e encantamento. Geralmente meu pai silenciosamente lia um jornal, um livro qualquer coisa... Tudo era motivo de prazer em sua leitura. Findavam as férias e a vidinha seguia em frente, crescíamos, adolescência chegava e a vida nos mostrava outros quadros e novos sonhos buscávamos. Nossos destinos traçados e cada um procurou trilhar o seu, construindo sua própria história registrando assim no Grande Livro da Vida. Cito aqui os versos de Raimundo Gadelha: “Sonhava as cores dos meus próprios sonhos E nutria a alma com as valorosas sobras dos arco-íris”. MEUS AVÓS Forte são as lembranças do meu avô paterno, Cazuza. Com ele aprendi sobre os valores nutritivos das frutas. Principalmente da banana trazida embrulhada no jornal para comermos durante o almoço. Nessa época ele tinha uma banca de jornal em Fortaleza e morava entre as casas de nosso pai, tia Nenê e Cleusa. Muitas vezes fazia suco de jenipapo, não apreciado por uma grande maioria de seus netos, mas eu gostava ainda mais quando dizia que 19
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tinha muita “sustância”. Durante as refeições pedia aos netos que vestissem camisa. Todos os dias lia o jornal, recortava e guardava os artigos que achava mais importantes. Uma passagem de suas histórias de vida dividiu com nossa mãe Maria Luíza. Gostava de ouvir notícias no seu radinho de pilha e sempre quando ouvia uma notícia importante, compartilhava dizendo: “escuta Maria Luíza!” Outra passagem foi quando esteve, na época Guanabara, Rio de Janeiro participando de um Encontro Ecumênico no ano de 1955. Andando pelas ruas ele viu uma fila no Teatro Municipal e achou que fosse a fila pra fazer inscrição para um passeio à Lua, assunto veiculado na época. Quando percebeu que tratava-se do velório da Carmém Miranda. Disse ele para nossa mãe: “Maria Luíza! Quando vi aquela mulher pintada no caixão, que susto!”... Simplesmente, estava ele na fila errada, participando de importante fato histórico. O quarto onde ele dormia não deveria ter nenhuma fresta, as telhas eram revertidas com jornal uma vez que, sua dormidinha após o almoço era um momento sagrado e a casa deveria ficar em absoluto silêncio. O meu avô materno, não o conheci. Quando faleceu nossa mãe ainda era criança. Segundo o que ela me contou foi que ele era um vaqueiro e usava aquela vestimenta característica. Era um homem forte e tinha ótima saúde, mas que foi acometido de uma grande febre, sendo a causa de sua morte. Avó paterna Jovelina, o que mais marcou foi o seu velório em casa e a missa de sétimo dia, tinha na época mais ou menos sete anos. Fizeram para mim um vestidinho de “chita” com estampas branco e preto, lindinho! Não entendia porque os adultos choravam. Lembro que no dia seguinte nasceu Marcos Jovelino, 27 de julho de 1957. A Dindinha, avó materna tive mais contato, tanto no 20
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Piauí como em Fortaleza quando ficava uns dias em nossa casa. Gostava de ouvir as histórias que contava sobre os casarões antigos das fazendas e “almas penadas”, que por lá vagavam. Havia uma grande curiosidade de minha parte e não tinha medo. Lembro que na colheita do milho e feijão os adultos sentados no “paiol”, numa grande roda com uma fogueira acesa no terreiro, debulhavam os grãos para guardar em grandes latas e sacos para os períodos vindouros. Sempre havia muitos relatos de “causos”, é possível que eu adormecesse naquela doce e saudosa atmosfera! Hoje, cada um de nós saberá falar, escrever, sentir e compartilhar suas alegrias e seus momentos, que venha agora o próximo da grande lista do CLÃ DOS PORTELAS. Ana Maria Portela
Familia reunida no aniversário de 85 anos da D.Maria Luiza.
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RELATOS DO FRANCISCO JOSÉ NOSSA MÃE Descrever vivências onde nossa mãe esteja presente, basta fechar os olhos que elas surgem pipocando como vagalumes enfeitando noites de lua Cheia. Esta mulher que hoje faz 86 primaveras é um exemplo de sabedoria, serenidade, paz, amor ao próximo e acima de tudo muito forte, pois sua vida desde a infância é pautada em lutas e vitórias. Lutando para criar seus 11 filhos ao lado de um Grande Homem que sempre viveu além do tempo, ela sempre estava do seu lado o acompanhando apesar de seu alto grau de Hiperatividade era muito inteligente, um Visionário. Mesmo assim os dois estavam sempre de acordo lutando diariamente com o objetivo maior que o destino traçou para os dois, que foi nos criar, alimentando e educando com muito esforço, matando um leão a cada dia. Juntando Um Homem Visionário e uma Mulher com a Serenidade e Sabedoria, teremos a fórmula para a realização do que somos hoje. Cada filho com suas características particulares, mas o amor e reconhecimento por tudo que recebemos de ambos é que não conseguimos deixar à cada dia de sentirmos sermos agraciados e agradecidos, estando aqui hoje contando essas histórias e fatos pitorescos que vagueiam nossas memórias envolvendo esses dois Seres tão especiais. Obrigado Mamãe e obrigado Papai em memória. Escrever Sobre a Família Portela não é uma tarefa fácil. Confesso que iniciei a primeira versão em 2012, que foi modificada por eu achar que os fatos escritos naquela ocasião falavam mais de minhas vivências como filho que deixava a casa dos Pais e sem experiência nenhuma foi morar no Rio de Janeiro, do que propriamente das histórias vividas na infância guardadas lá em um cantinho da memória. Esta versão se perdeu quando meu computador deu “pau“ e sumiu tudo, incrível hein? Como minha 22
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memória ainda está fresca, tudo está guardado e já passei novamente para o papel, e são minhas vivências, compreendidas entre os anos de 1971 até 1978, quando casei, que fazem parte de meu livro de memórias que espero levar ao conhecimento de todos em breve. Mas como todo geminiano que, se preza, este breve poderá ser, sei lá quando, talvez amanhã ou no aniversário de meus 100 anos, pasmem, mas pode ser! Não vou divagar muito, senão caio no mesmo erro de vezes anteriores para não ter que parar mais uma vez. Tentarei descrever algumas passagens que estão cravadas lá no fundo da memória, pois são bem marcantes, e são apenas uma prévia do todo material já escrito para o lançamento oficial do livro previsto para dezembro. - Sugiro que as músicas citadas, se possível, sejam executadas durante a leitura para que o quadro de cada história seja completo para os ouvintes. A CADEIRA DE BEBÊ Nossa Mãe já me contou esta história, mas pelo fato de ter acontecido quando era muito pequeno, não consigo ver imagens, mas ela conta que eu com poucos meses de idade ficava sentado em uma cadeira de bebê em um canto da casa, e lá passava se deixassem o dia inteiro sem reclamar. Nesta cadeira de bebê, me alimentava, fazia as necessidades fisiológicas, dormia etc. Vejam que eu já meditava sobre o sentido do existir desde cedo, ou simplesmente ficava ali sentado em obediência porque já desde pequeno, era bonzinho e tranquilo, o que até hoje agradeço, Mamãe, admitindo saber que hoje pelas circunstâncias da vida, deixamos de ser bonzinhos e tranquilos, apesar de ser um esforço diário não perder essas virtudes, lançando mão de muito equilíbrio e sabedoria adquirida com as vivências que só a idade nos permite. Vejam que já naquela época eu começava a descobrir que o mundo era meu e eu precisava descobrir o 23
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quanto antes seus segredos e mistérios. Aprendizado e buscas constantes, pois sou muito pequeno se comparado ao tamanho do mundo que ganhei para me divertir e aprender com o objetivo final de encontrar o caminho de volta, e sei que sou também peça importante na engrenagem da vida por aqui. CONHECENDO O MAR Era um domingo de sol e Papai vestia um terno todo branco, pegou Eu e Ana Maria e nos levou para um passeio de domingo bem cedo. Como um sonho, não tenho certeza do local onde estávamos antes de sair, só sei que entramos em um automóvel que não lembro se era de amigo ou táxi. Sentamos os três no banco traseiro, e lá fomos em direção à praia que ficava ali perto da Nogueira Acioly onde morava Tia Neném. Foi a primeira vez que vi o Mar. Confesso a vocês que a imagem até hoje é um quadro muito bonito em minha mente. Chegando a beira do mar quando vi aquela imensidão que misturava Agua e Céu, confesso que foi a minha primeira viagem literalmente lisérgica, irmãos, pois a mistura de céu azul e água entre verde e azul misturavase e eu não sabia o que era água e o que era céu, pois tudo se juntava em um multicolorido tão grande que acho que chorei sem saber se de medo ou alegria, e hoje eu sei que foi a primeira vez que tive meu contato com DEUS, tamanha visão de grandiosidade a minha vivência. Se tivesse que escolher uma trilha sonora, sem dúvida esta trilha é a Cavalgada das Valquírias - Richard Wagner, que é o som que mais combina com aquilo tudo que acontecia naquele dia histórico da minha vida. Veja o quanto nosso Pai me abriu os caminhos para as coisas bonitas e sons que até hoje fazem parte de meu jeito de viver e aquele dia foi providencial, não tenho dúvidas! Lua em Quarto Crescente Outra vivência marcante aconteceu quando fomos buscar as telhas para a nossa casa de taipa que estava 24
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sendo construída na Revença em Itapipoca, acredito que em 1962. Deveria ser umas três ou quatro horas da madrugada. Uma noite onde a lua estava em quarto crescente e lá estava em uma carroça, nosso Pai, Eu e acredito que Antônio Carlos e Francisco das Chagas, ficando melhor chamar de Ticarrim e Chaguinha! O local de nosso destino era lá nas proximidades do Cruzeiro, um lugar que só recordo que tinha uma Cruz Muita Grande e lá ficava a Olaria. Não tenho a lembrança do nome do proprietário, mas sei que era um amigo de nosso Pai. Não me recordo também o motivo de sairmos na madrugada para aquela missão. Nesta noite o céu estava envolvido em um véu de estrelas e uma lua em quarto crescente e nós estávamos conduzindo aquela carroça sozinhos na estrada. A impressão que tenho é que o mundo naquele momento parou, e só nós quatro pertencíamos a ele formando um quadro muito simbólico. Não me lembro de encontrar no caminho, animais, outras carroças e nem qualquer passante desde o momento que saímos de casa até chegar com o dia já clareando. O rangido que as rodas daquela carroça faziam por causa do peso, até hoje não me saem da memória e me parece que só comparado a performance de Jimi Hendrix em Voodoo Child em uma apresentação ao vivo no festival de Atlanta em 1970, quem quiser confira que é a trilha sonora perfeita para o quadro. Aquela carroça cheia de telhas puxada por um burro, Ticarrim e Chaguinha por serem menores, iam sentados nas telhas, e nosso Pai e Eu andando. Eu na parte de trás da carroça como se estivesse empurrando e cuidando para que os meninos não caíssem. Nosso Pai ia à frente segurando as rédeas e puxando o burro. Aquela Lua em quarto crescente só me lembra de ser vista em fase igual ouvindo Caetano Veloso cantar Lua, Lua, Lua, Lua. A temperatura naquela noite era muito agradável, onde acredito que talvez fosse esse o motivo de termos ido à noite, pois durante o dia seria muito quente. Esta lua foi iluminando nosso caminho até chegarmos a casa. Até hoje sempre que a lua está nesta 25
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fase, é impossível não me transportar para aquele dia, aliás, para aquela noite Inesquecível. Mais uma vez nosso Pai como o Grande responsável por aquela viagem. CASACO DO EXÉRCITO Descrevo aqui um fato de coragem e inocência também muito marcante na minha vida em 1971. Aqui já com meus 20 anos de idade e com a perspectiva de ganhar o mundo e a cabeça cheia de sons vindos do festival de Woodstock, Beatles, Led Zeppelin, Rolling Stones, Jimi Hendrix, e mais mil ideias na cabeça, estava eu ensaiando para fugir de casa. Nós morávamos lá naquela casa do Jardim América. Pedi a Mamãe que fizesse pra mim um casaco igual a que os soldados do exército usavam, verde com quatro bolsos, dois menores em cima e dois grandes abaixo, igual ao que Fidel Castro e Che Guevara usaram por muito tempo. Após o casaco pronto, eu vestia e ia para a casa da Tia Cleusa que morava no bairro de Fátima. Eu desfilava com aquele casaco de casa até a casa da Tia Cleusa e fazia questão de passar bem em frente ao quartel do Exército, sem ter a mínima noção de que estávamos no auge da ditadura e eu inconscientemente desafiando a sorte correndo o risco de ser preso. Foi com este casaco que viajei para o Rio de Janeiro e quase que nunca tirava do corpo. Quando estava sozinho em algum lugar, eu lembro que ficava viajando e pensando na dedicação que nossa Mãe teve em atender meu pedido, e me abraçava como que protegendo o casaco, pois fazendo assim a lembrança dela nunca saia de perto de mim.
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Na foto Francisco JosĂŠ, Ana Maria e Lourival Jr, Dezembro de 2015.
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RELATOS DO ANTONIO CARLOS Inicio meus relatos com um fato ocorrido em 1958 onde aconteceu uma das “maiores secas” do nosso Ceará, porém nossa família foi privilegiada por termos um pai como o Sr. Lourival. Morávamos em Fortaleza, tendo chegado há poucos anos do Piauí, onde lá comecei a perceber as coisas da vida. Conheci a “selva”, vi a industrialização da cajuína caseira, a farinha de mandioca, o coloral, o arroz batido, acompanhei a colheita da mandioca, macaxeira, o piqui, o palmito, o gergelim, o coco babaçu e comi muitos bejús. Imaginando agora tudo aquilo que passei, chegando no fim de tarde vendo as pessoas passando com uma caça nas costas… Voltando ao início, fomos para Itapipoca em virtude da capacidade de inteligência e sabedoria do nosso pai, além do conhecimento que tinha na sua área de trabalho, ele foi designado para gerenciar o recenciamento no período da seca em Itapipoca. Fomos privilegiados, pois enquanto o povo passava necessidade, nós tínhamos tudo em relação a alimentação como leite em pó, queijo, farinha d'agua, arroz, feijão branco, rapadura, carne do sul, o fato é que a nossa família não percebeu a “seca”. Fomos morar em uma casa do Sr. Ezau, em frente à estação do trem e tinha uma linha de trilho bem em frente a nossa casa onde o trem fazia o desvio e a manobra, lembro bem que quando o trem estava vindo eu e o Chaguinha (Francisco Portela) colocávamos pregos grandes no trilho para fazer faca. Nós corríamos pra ver o trem parar na estação para ver o povo vendendo água de quartinha, tapioca, cocada, laranja, milho verde, pamonha, alfenim e puxa-puxa. Quando o maquinista chegava, as mulheres corriam para a máquina pra receberem “areia de praia” para elas lavarem as panelas como Bombril e quando o trem ia sair o maquinista jogava um jato de agua na meninada que faziam uma festa de alegria. Seu Ezáu tinha 28
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um sítio muito grande, plantava cajú e algodão e tinha dois filhos que faziam a colheita, o Mazim e o Ezaufran que chamou eu e o Chaguinha para fazer esse trabalho para ele. Na época do caju, era melhor porque a castanha pagava melhor. O algodão era leve mas, pegava muito sol e o peso não compensava muito, assim mesmo toda a semana nós tínhamos nosso dinheiro. Nos fins de semana ia na loja de tecido e comprava pano pra fazer uma camisa pra mim e outra para o chaguinha iguais e a mamãe costurava. Quase todo domingo a gente ia pra missa com uma camisa nova e muita brilhantina no cabelo. Mudamos para uma rua mais social onde morávamos bem próximo de gente importante como o Seu Cafita o gerente da agência de ônibus o homem mais conhecido na cidade, no final desta rua havia um riacho bem grande que quando chovia muito enchia tanto que não passava ninguém, só quando a água baixava. Neste riacho que era nosso lazer todo dia tomávamos banho, porém depois de fazer nossas tarefas, como deveres de casa, encher os potes com água da cacimba e eu junto com o Toza (Francisco José) ir no mercado comprar 01 litro de feijão, ½ litro de farinha, ½ litro de arroz e um pedaço de tocinho. Passando o riacho tinha um barracão que faziam festa de forró com sanfoneiro todos os sabádos e nessas festas já era conhecido e falado nas pessoas que não faltavam, o Zé da Benvinda marchante no mercado, não andava sem sua faca e sempre tinha um fato marcante. Quando a festa acabava às 04:00hs da manhã, a meninada ia pra lá procurar moedas que caiam no chão. Nosso período nesta casa foi muito bom, tinha no quintal vários pés de ata, nós enchíamos uma bolsa de palha e guardava até amadurecer. Certa vez o Washington guardou uma bolsa cheia de ata no canto da parede da cozinha atrás de uma tábua, porém a parede da casa era muito alta e estava muito desgastada no seu alicerce por fora, quando a mamãe 29
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percebeu que estava caindo fragmentos da parede, ela chamou o papai que na época estava adoentado em função de uma parada de bebida, então o papai disse: - Vamos tirar as coisas e levar pra sala ligeiro. O fogão estava com a lenha acesa quando ele tirou os últimos tissão que passou pela porta da sala, a parede da cozinha desabou por completo e o barulho foi tão alto que repercutiu na Fazendinha, um bairro que ficava a 3 quilômetros de distância . No outro dia o Washington encontrou a bolsa de ata intacta e somente com muita poeira. Então depois desse episódio tivemos de nos mudar para o bairro da Igreginha, nesse período já estávamos mais maduros e tínhamos mais responsabilidades. Mamãe costurava muito, dia e noite pois os custos aumentaram, a casa era alugada, nós todos se vestindo melhor e o papai como sempre na pinga e a mamãe costurava para o melhor alfaiate da cidade. Foi determinado tarefas para cada um dos filhos, encher os potes, varrer a casa, lavar a louça e aguar as plantas, então, ficávamos revesando as tarefas, a mamãe só preparava o almoço. Lembro bem que um dia não tinha nada, nem o dinheiro, daí a mamãe com sua criatividade culinária, pegou algumas bananas corudas, descascou dentro de uma panela grande, amassou bem botou bastante agua, açúcar e leite em pó, esse foi um dos melhores almoços. Nessa época houveram alguns apelidos criados: - Maria Pote Seco – Era da Ana Maria, porque tinha preguiça de lavar a louça e dizia que o pote estava seco. - Beirudo – Era do Chaguinha - Badual e Lapinha – Era do Washington , Badual porque a mamãe tinha um cliente gordinho com gestos estranhos e nós o apelidamos, dai um certo dia estávamos brincando dentro de casa com a porta fechada e bateram na porta, mamãe mandou olhar quem era e nós dissemos que era o Badual, então quando abrimos a porta era o Washington e o apelido de Lapinha porque tinha o pé pequeno e largo. 30
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Foi lá que fizemos novas amizades que nunca esquecemos, começamos a ficar mais soltos, ir no sitio da D.Tereza pra chupar manga e comer muita goiaba ao ponto de certa vez eu ficar embaixo do pé de goiaba agonizando de tanto que comi. O Sr. Lourival já começou a trabalhar na prefeitura e por intermédio desse emprego conseguiu dinheiro pra comprar um terreno na Boa Vista, onde lá construímos nossa casa de taipa, então começamos a melhorar de vida sem pagar aluguel e o terreno era grande que possibilitou plantarmos bananeiras, coqueiros, mamoeiros e cana. Papai fez um roçado onde plantou milho, feijão, melancia, jerimum, maxixi, quiabo, foi um tempo muito bom. Depois de um tempo conseguiu outro emprego em Fortaleza no Hospital dos Acidentados, daí ele vinha todo fim de semana, era uma alegria só, ele comprou a nossa primeira televisão em preto e branco, na nossa rua fomos a primeira família a ter uma tv, comprou uma bicicleta para nós, mas toda vez que ele chegava de viagem tinha conta pra pagar na oficina, fora as brigas com os irmãos. Um dia desses tinha havido uma briga nossa por causa da bicicleta, quando ia passando um amigo dele lá da feira, dai ele mandou levar a bicicleta trocando por feijão, daí haja choro o dia todo. Daqui por diante é que vai começar a segunda geração de filhos. A Ana Maria estudava na Escola Normal, o Toza já tinha saído do grupo escolar, eu e o Chaguinha estávamos no grupo quase concluindo a admissão ao ginásio, e em todo evento que havia no colégio, o Chaguinha era indicado para cantar uma música e fazia muito bem. O meu chama era a bola, comecei a me dedicar com o futebol, o Chaguinha e o Toza era a música e Ana Maria gostava de dançar e cantar e tinha um amigo chamado de “O Bom Cantor” que se espelhava no músico Eduardo Araújo, daí eles passaram a ser namorados. Aos domingos à tarde nós íamos pra missa e na volta não poderíamos voltar sem a Ana Maria, caso contrário 31
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teríamos de voltar pra buscá-la. O bom da missa é que existia o único cinema ao lado da igreja, o dono era o Sr. Cafita e como erámos muito amigo dos filhos dele, muitas vezes nós não pagávamos. Quando a missa terminava a correria era grande para o cinema, daí o padre teve de conversar com o Sr. Cafita para alterar o horário do filme para ser exibido somente depois de meia hora após a missa. Passei a estudar no ginásio Pio XII, o melhor colégio da cidade concorrendo com a Escola Normal, tinha Educação Fisica três vezes por semana, às 06:00hs da manhã. Eu jogava bola antes da física e depois no recreio e depois da aula. Ia almoçar, e quando era às 4 horas da tarde eu ia pro ginásio bater um racha. À noite ainda tinha um racha de salão. Começaram a me observar, dai comecei a jogar em vários times da cidade, iniciei nos campos dos bairros Fazendinha, Coqueiro, Boa Vista, Deserto, Estação, Cruzeiro, Picos, no campo da maternidade até mesmo o conhecido Perilo Teixeira. Onde eu jogava fazia sucesso, passei a jogar no meio dos grandes, foi daí que comecei a torcer pelo glorioso time do Fortaleza. Na pracinha tinha um coreto bem no centro onde a moçada se encontravam para resenhas de futebol e depois eles iam pro Bar Imperatriz, e eu sem perceber já começava andar com eles e quando a polícia chegava eles me colocavam embaixo da mesa e baixavam a toalha pra me cobrir. Com esses meus amigos, passei a frequentar lugares que eu não tinha tamanho e nem idade como bares das cidades, daí comecei a beber, e quando tinha festa no Clube Imperatriz, eles mandavam eu pular o muro pra beber com eles. Alguns amigos como o Danilo (Baratinha) ex-jogador do Ferroviário, Fortaleza e Ceará formou um time chamado “Fortaleza” e selecionou os melhores da cidade, e nós não tínhamos outro endereço, era de manhã, à tarde e à noite na casa do Danilo, papai já sabia onde me encontrar, quando eu não chegava, ele ia me buscar. Danilo veio embora pra Fortaleza e em pouco tempo depois a nossa família veio também, daí passamos a melhor 32
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fase de nossas vidas, viemos morar na Barão de Aratanha bem no centro da cidade, foi muito bom. Até aqui relatei minhas histórias de criança e adolescência pois jamais existirão fases melhores da minha vida. Daqui em diante todos nós conhecemos nossas vidas. Como ainda temos muita coisa pra escrever, deverá ficar para o próximo livro. Já pensou o que deverá conter nesse livro quando parte de nós já estará com a idade acima de 80 anos? Até lá com a permissão do divino Deus.
Antonio Carlos, Adson (primo) e o Francisco José
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RELATOS DO FRANCISCO PORTELA Que legal as suas memórias, Ana Maria! Bateu uma saudade forte da nossa infância e a figura do nosso Pai e nossa mãe Maria Luiza se agigantaram no meu íntimo. Gratidão é o que fica no coração! - No relato da casa da Dindinha, eu me lembrei do canto dos capotes, das galinhas em busca de comidas. Lembrei da carne de tatu e principalmente do chão batido em que eu procurava a minha chupeta. Nossa Mãe falava que quando eu acordava com os olhos remelentos, eu dizia: "Meus olhos não estão mais bonitos!". Bem, no decorrer da leitura foram surgindo imagens e boas lembranças, que posso destacar: - Quando você falou da Cartilha do ABC, eu lembrei do Colégio Anastácio Braga, da professora “D. Odete do pé branco”, e de uma frase, logo no inicio da cartilha: "É principalmente conversando que as pessoas se entendem". Quase todos os dias, na saída desse colégio, o Ticarrim aprontava brigas durante o recreio e chamava pra briga depois da aula. Aí eu acabava também envolvido. Era briga pra valer, murros, chutes, quedas no chão, etc, etc....depois a gente “se limpava” pra não dá chance do Seu Lourival saber, senão “era chute na bunda”...rsrsr...Quase todos os dias tinha briga...eu ficava “puto” com o Ticarrim mas não podia fugir das brigas...rsrsr Nessa época, nossa Mãe, cheia de tarefas pra cuidar de tanto menino, ficava nervosa e mandava a “peia”. Geralmente o Francisco José, o Ticarrim e eu....rsrs, a Ana Maria só presenciava às vezes.… Às vezes a pêia era com corda, com cabo de vassoura, tamanco, cipó, etc… o negócio era feio… quando ela terminava a pêia, até ela chorava junto com a gente!!! Éramos felizes e não sabíamos!! Não importava quanto a gente apanhava o amor por essa criatura linda, não era afetado, pelo contrário, quanto mais a gente apanhava mais amávamos nossa Mãe!! Coisas da vida! 35
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Lembro um pouco de outra casa onde moramos em Itapipoca, perto da igreja. As brincadeiras e aventuras gravam melhor na nossa lembrança: O Sitio da D. Tereza era como se fosse uma gigantesca floresta, cheia de pés de mangas e cajus. A gente costumava entrar e passar boa parte do nosso tempo brincando, comendo mangas, cajus e côco. Tinha uma casinha dentro do sitio, acho que era do caseiro. O Laerte é o único amigo que me lembro bem, com a ajuda do Antonio Carlos. Lembro da família dele mas não me recordo dos nomes. Se perguntar para o “Ticarrim” ele lembra de tudo...rsrsr Ainda em Itapipoca, em outra casa, perto do Cafita, as lembranças das brincadeiras com bilas, pipas (arraia), triângulo, flechas, gritos de guerra, banho nos açudes, etc… povoam a memória. A chegada do trem era sempre motivo de correria e risos. Agente colocava pregos grandes “caibral”, como chamava o Seu Lourival, nos trilhos. Quando o trem passava por cima, se transformava em verdadeiras “espadas” dos “guerreiros”....rsrsr As lembranças do Natal ainda permanecem bem nítidas: Os carrinhos coloridos, o pente também colorido, o doce de caju, etc… Se não dormisse cedo, acordava com um “osso de frango” debaixo da rede....rsrsr A imagem mais bonita que tenho na lembrança dos presentes de Natal, era na hora da brincadeira com o carrinho colorido: Após a chuva, a areia ficava bem limpa, sem nenhuma marca aí eu ia com meu carrinho e fazia a marca dos pneus sobre a areia… ficava observando aquelas marcas como uma “longa viagem” feita... Pronto, estava feliz com as brincadeiras... Quanto aos filmes do Cafita, eu só me recordo dos seriados "Dick Tracy", e "Tarzan e a Tribo Nagazu". Da época de vizinhos do Cafita, me lembrei das brincadeiras de Tarzan, em cima das arvores e a Ana Maria, fazendo o almoço, nas suas panelinhas de barro, embaixo da árvore. O almoço era quase de verdade... Lembrei das chuvas fortes que caíam em Itapipoca, 36
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da nossa cozinha que caiu por causa de uma dessas chuvas. Das atas do Washington que foram protegidas pela porta. Lembrei do rio que corria próxima a nossa casa e nos dias de chuva, animais passavam, sendo levados pela correnteza. Das brincadeiras em cima do pé de Siriguela, chamando o vento com assobios. Lembrei das missas das 18hs na Igreja Matriz e depois das caminhadas em volta da praça. Dos nossos presentes de Natal, que eram sempre muito coloridos, etc (eu ganhei um pente e um doce e nunca esqueci) Esse pente marcou minha vida pra sempre. Até hoje não saio de casa sem um pente no bolso....rsrs. Na minhas lembranças existe algo que para mim, era como um verdadeiro Guia. Eu sempre estava com saudades, da nossa mãe. Eu sempre sentia que ela estava precisando de mim pra ajudar a arrumar a casa, lavar louças e dar banho nos peraltas… Eu nunca me ausentava por muito tempo e nem chegava tão longe da nossa casa… alguma coisa no meu coração me chamava a atenção para voltar pra casa… Uma vez seu Lourival nos levou, eu, o Francisco José e o Ticarrim pra passar uns dias na casa da Tia Cleusa, em Fortaleza. Depois que passava a novidade da casa diferente, das comidas diferentes, dos lanches, de assistir a missa pela manhã, na igreja da 13 de maio, eu já começava a querer voltar pra casa. Eu pedi a Tia Cleusa pra voltar pra casa. Alguém foi me deixar na rodoviária e eu voltei pra Itapipoca. Quando eu cheguei em casa, vi o quanto nossa mãe estava precisando de ajuda. Ela disse: “Meu filho, você caiu do céu pra me ajudar”… rsrs. A lembrança do café com farinha, o almoço da nossa mãe fazendo "capitão" de feijão com torresmo, ou tripa assada… O melhor almoço do mundo! Não sei em que momento se encaixa a família do representante dos Correios de Itapipoca mas eu lembro dessa convivência, sem lembrar de nomes. Sei que 2 dos filhos serviram a Marinha mas não tive muita convivência com eles. Talvez o Washington ou o Antonio Carlos saibam 37
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mais… Voltando para Fortaleza lembro apenas da casa na Rua Barão de Aratanha. Lembro que quando chovia, as paredes “davam choque” e a gente ficava brincando de levar choque… rsrs. Depois fomos para a casa do Jardim América. Aí eu lembro dos banhos na lagoa da Maraponga, do futebol no campinho próximo. Lembro que fui matriculado numa escola de preparação para entrar na Escola de Aprendizes de Marinheiro. Estudei no Liceu para melhorar e recuperar alguns meses perdidos com aulas, etc… AGORA, UM POUCO DOS MEUS IRMÃOS: Na casa do Jardim América, eu me recordo que todos os dias, ou quase todos, eu tinha que dar banho nos “pequenos”: Lourival Junior, Ricardo Cezar e Portela Neto. Todos eles davam muito trabalho pra deixar tirar o “serôto” das pernas, dos pés, tinha que esfregar bastante....rsrs. Tinha uma torneira no quintal pequeno, ligava a mangueira ou era bacia cheia de água. Nessa época já tinha outra criaturinha branca dando trabalho, chamado Marcos...rsrs. Mais adiante um pouco, a lembrança da minha partida para o Rio de Janeiro, em 13 de dezembro de 1973. Uma manhã bem diferente de todas as manhã de minha infância. Um misto de sentimento de liberdade com uma forte saudade e tristeza pela separação dos meus familiares, pai, mãe e irmãos... Nossa mãe chorava tanto que eu sentia o Paulo Henrique se mexendo...Poucos dias ele acordou na Terra, nos braços de sua querida mãe e até hoje ele não consegue se afastar dela, nem por poucos dias. Após a partida do navio, com destino ao Rio de Janeiro, eu desci para meu alojamento e chorei até dormir de tanto... Sonhei com meus irmãos e meus pais, chorei durante o sonho e acordei chorando, com lágrimas 38
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escorrendo na face, tão forte era o sentimento. Assim foram todos os dias, no meu primeiro mês de chegada no Rio. Era sempre por volta de 18hs, na hora da Ave Maria. Eu descia para o alojamento e já sabia o que vinha pela frente. Achei interessante colocar nessas lembranças… sempre acham que somos fortes, etc, etc. Minhas lembranças com nosso Pai é sempre daquele pai que trabalhava muito, chegava em casa com sacolas de compras, carnes, buchadas, etc… Lembro também dos toques de violão. Imaginemos hoje, uma família com 9 homens e 2 mulheres! Só muita força e união do casal!! Há algum tempo atrás, postei no facebook um vídeo do Roberto Carlos e Michel Teló, cantando a musica do Roberto Carlos, "Meu querido, meu velho, meu amigo". Chorei bastante e me veio à memória, passagens de nossas vidas. O incentivo que ele me deu pra fazer um cursinho preparatório, para entrar na Escola de Aprendizes Marinheiro. Às vezes estava jogando bola no campinho, próximo de nossa casa, ele me chamava dizendo que estava na hora de ir para o curso. Fez toda a diferença, entre mais de 2.000 candidatos, eu fui o 76* colocado. Agradeço a ele pela força e confiança. Na festa de encerramento do meu período na Escola de Aprendizes Marinheiro eu me recordo da figura dele e de nossa mãe, chorando cada vez que meu nome era chamado para ganhar um prêmio. Fui o marinheiro mais aplaudido nesse dia!! Eu ganhei um cheque de R$ 200,00 (não sei qual era a moeda)… entreguei pra ele emocionado. Ganhei um relógio e uma caneta folheada, com uma dedicatória da 10* Região Militar. Minha mãe também chorava muito!! No dia da minha partida para o Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1973, foi um dos dias mais tristes que já senti. O navio se afastando e eu vendo eles dois, nossa mãe grávida do Paulo Henrique e ele sem saber o que fazer para 39
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ninguém lhe ver chorando… Foram 3 dias de viagem, três dias chorando todas as noites, antes de dormir. As lembranças dos irmãos também eram muito fortes. Washington, Marcos, Jun, Poné e Ricardo César. Depois de alguns anos fora de casa, viajando pela Marinha, quando eu chegava, ele me abraçava apertado e chorava um pouco, de forma que ninguém visse. Outra passagem que me emociona muito: Ele me acordou de madrugada, para ajudá-lo a matar um porco. Fiquei apenas olhando emocionado a perícia dele em fazer tudo tão rápido. Ao amanhecer tinha torresmo, carne assada e latas de gordura de porco guardada nas latas de 20 litros. Nesse dia ele pegou toda a carne, preparou para levar para a Tia Nenen. Ela tinha visitas dos filhos e amigos. Fomos todos e em meio a toda a alegria e descontração, ele simplesmente saiu e voltou pra casa. Quando procurei por ele me disseram que ele já tinha ido pra casa. Não participou da festa que ele preparou!! Outra vez, quando já se aproximava minha volta para o Rio, após alguns dias em casa, ele começou a tocar uma musica no violão. Eu estava de óculos escuro e comecei a chorar, quando ele percebeu, quebrou uma corda do violão de propósito e parou. Outa vez o encontrei chorando, perguntei o que era e ele não respondeu. Ah como eu que gostaria de saber o motivo!; Nesses momentos de reflexão sobre nosso Pai, a figura delicada, aconchegante e silenciosa da nossa Mãe se sobressai e ela se torna maior em nosso íntimo! SOBRE A ANA LÚCIA: Minha convivência com nossa irmã Ana Lúcia, foi muito boa. Vagamente me recordo dos seus primeiros anos. As lembranças mais marcantes foram já como adulta. Quando passava alguns dias de férias ou em viagem 40
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da Marinha, sempre que eu chegava ela me procurava e relatava que o nosso Pai não a deixava sair. Um belo dia, ela me pediu para que eu a levasse, juntamente com uma amiga para dançar, em algum lugar. Falei com nossa mãe, que comentou com o papai e ele deixou. Fomos para um clube na Beira Mar. Ela dançou e se divertiu bastante. Dancei com a amiga dela mas no dia seguinte eu soube que a amiga estava chorando porque estava apaixonada por mim e pediu para a Ana Lúcia falar que ela queria namorar comigo… coisas de marinheiro!! Outra passagem com ela foi em 1982, quando ela conheceu o Hervé. Com autorização do seu Lourival, ela ia passar férias na casa de um namorado dela, em Salvador. Esse rapaz era amigo do Marcos, da Marinha. Na Rodoviária de Fortaleza ela conheceu outro rapaz, o Hervé e por alguma razão do destino, começaram a conversar na viagem de Fortaleza a Salvador. Quando chegaram em Salvador já estavam decididos a namorar. A Ana Lúcia, ao chegar em Salvador, visitou a mãe do namorado e avisou que já estava voltando pra Fortaleza e terminou o namoro. Chegando de volta em Fortaleza foi um alvorôço!! Seu Lourival queria saber que "história é essa minha filha?!" Você sai de férias para conversar com um rapaz e volta com outro? Ela explicou, explicou mas ele estava inconformado com essa mudança tão imprevisível. Ele foi na Polícia Federal e descobriu que o rapaz era do bem, que era filho do navegador francês Jacques Cousteau e estava passando férias e conhecendo o Brasil. Outros detalhes não saberia dizer. Na noite seguinte, cheguei do trabalho e a Ana Lúcia me procurou para conversar. Ela falou que eu falasse para a mamãe e papai que não era por falta de amor a eles. Ela precisava seguir o destino dela, em busca de um futuro. Encontrei uma Ana Lúcia séria, decidida e firme em seu propósito. Ela viajou e um ano depois, voltou de férias e passou um mês conosco. Foram dias de muita alegria para toda 41
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familia. Especialmente eu relato um fato interessante: Como eu, por motivos bem pessoais estava estudando e praticando a Doutrina Espírita, ela me procurava todas as noites, após a minha chegada do trabalho, para conversar. Numa dessas conversas ela sempre perguntava "como era essa história de vida após a morte?". Eu procurava mostrar pra ela a perfeição da obra de nosso Deus e que não poderíamos deixar de lado essa perfeição e acreditar que a vida era somente essa aqui na Terra com todas as mazelas e dificuldades. Acho que ela compreendeu um pouco dessa sabedoria! Outro fato bem particular e uma vivência única com ela: Mais ou menos uns 15 a 20 dias antes de recebermos o comunicado do Itamaraty ao Governo do Ceará sobre o acidente dela em um barco em Cayenne, eu sonhei com ela. O sonho, resumidamente foi assim: Eu estava em casa e de repente senti um barulho vindo de fora, como um zumbido nos meus ouvidos. Saí e comecei a caminhar rápido procurando algo e não sabia o que era. De repente eu vi ao longe, uma figura caminhando rápido em minha direção, aos poucos identifiquei que era ela. Quando a distância ficou menor, percebi que ela estava chorando muito e eu senti fortemente minha intuição falando pra mim: A Ana Lúcia morreu!… Ela correu em minha direção, me abraçou muito emocionada e suas lágrimas eram muito comovidas. Abraçado com muito carinho, eu disse no ouvido dela: Ana Lúcia, você não morreu! A morte não existe é somente uma passagem! Essa vivência foi tão forte que eu acordei com o susto provocado pelas lágrimas dela escorrendo no meu peito!!
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Francisco Portela seus filhos Mario Hercules e Yara Portela com sua filha.
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RELATOS DO WASHINGTON LUIS Hoje, quero fazer um pequeno relato, porém de grande significância para minha infância, ao mesmo tempo, uma pequena amostra desta minha humilde vidência. Morávamos em uma casa no bairro da estação em Itapipoca, próximo a casa do Cafíta, era uma tarde de Março de 1965 mais ou menos, tinha chovido muito naquele dia e nos dias anteriores, havia um grande quintal em nossa casa onde tinham muitas fruteiras e uma cacimba sempre com muita água, dentre as fruteiras existentes no quintal, a minha preferida era a ATA, eu juntava muitas atas e as colocava para amadurecer em locais escondidos para fazer surpresa a nossa Mãe (LÓZ). Nesta tarde, como de costume, mamãe estava na cozinha juntamente com o papai, preparando o fogão de lenha para fazer aquelas tapiocas que tanto gostávamos, eu acabara de esconder uma bolsa de palhas cheia de atas nos fundos do quintal; foi aí que algo me tocou me motivando a dar uma olhada pela janela na parede lateral da casa, naquele momento, percebi o reboco da parede se desmanchando, corri então para o papai pedindo que ele viesse depressa olhar o que estava acontecendo, ele ficou um pouco pálido, mas se manteve firme, (hoje eu sei que foi para não nos apavorar) e em um gesto rápido, colocou as brasas em um flandre em formato de padiola e saiu carregando junto com a mamãe em direção a sala de jantar, (neste momento, posso sentir a minha aflição daquela tarde). Eu estava bem perto e ví quando eles cruzaram a passagem da cozinha para sala de jantar, e toda cozinha desmoronou provocando um barulho ensurdecedor, após o ocorrido, juntou uma multidão de pessoas, curiosas e solidárias à frente da nossa casa, passado o grande susto, nos reunimos na sala de jantar e rezamos um TERÇO...e me perguntei, e as minhas atas? no dia seguinte fui busca-las 44
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debaixo dos escombros, estavam todas intactas.
Na foto Marcos, Ricardo, Paulo Henrique, D. Maria Luisa, Washington, Lourival Jr, e Antonio Carlos comemorando o aniversĂĄrio de 80 anos da D.Maria Luisa.
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RELATOS DO MARCOS PORTELA Aos meus familiares já algum tempo tenho colocado minhas “lembranças” para funcionar e decidi relatá-las em nesse “livro” porque sinto que com esses relatos, principalmente, os irmãos filhos e netos, terão um conhecimento melhor de minhas vivências “mundo a fora”, além da gratidão de poder exercitar meus progressos de vida! Então segue alguns “escritos” os quais, tenho certeza, enriquecerão também o que você vivenciou em suas “indeléveis andanças”!!! De 1957 à 1972 ...Morávamos em Itapipoca, no bairro da estação Nossa casa era sempre bem movimentada e alegre, pois nosso irmão Antônio Carlos estava sempre “aprontando”. E você não parava! Terminava uma nova tarefa e já começava outra! A tardinha, após um longo dia de atividades domésticas e escolares, você sempre estava, como sempre com uma inenarrável disposição para fazer suas pequenas caminhadas! Eu e nosso irmão Washington lhe acompanhava! Caminhávamos por uma estradinha de areia fofa, até a casa de dona Nanoza e do sr. Isaú, um casal, amigos de nossos pais! Me chamava a atenção, tanto as palmeiras enormes emoldurando essa estrada, balançando suas verdes folhas, bem como as frutas “pretinhas” e doces que nosso irmão Washington apanhava e nos presenteava, além do céu azul de alvas nuvens, e uma suave brisa vinda das encostas da serra que contornava a cidade! Tardes sempre coloridas como que nos abençoando e nos enviando forças para tantas vivências futuras. ...E você aspirando toda essa atmosfera, como se 46
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buscasse respostas dos porquês de tantas responsabilidades ainda tão pequena!! ... Ainda nesta casa, neste bairro você sempre aos domingos me levava no colo, com todas minhas gordurinhas, ao catecismo juntamente com nosso irmão Washington! A Sala dos “ensinamentos” era lá mesmo na Estação, e pra não incomodar os participantes, você me colocava sentado no batente da janela, enquanto nosso irmão Washington brincava com pedras de seixo! ... Antes que esqueça, gostaria de lhe falar que desde muito criança sempre lhe acompanhei, percebendo seu forte anseio de busca pela “Verdade” e logo que você encontrou a Mensagem, e que nos visitou em nossa casa no Jardim América por ocasião de sua transferência do Rio de Janeiro para São Paulo, você trouxe os livros de Dona Roselis os quais espalhados em cima de sua cama, me chamou atenção do “Juízo Final”. E logo após sua partida me interessei pela leitura deste inarrável livro que você presenteou nossa mãe. E entre outras dissertações quis imediatamente saber sobre o enigma das doenças e sofrimentos dos seres humanos pois a dor que senti bem como minha mãe e meus irmãos era indescritível... e somente após a leitura deste livro é que compreendi seus motivos de nos “deixar”! ... Ainda em Itapipoca, durante a visita na maternidade, para conhecer nossa irmã Ana Lúcia, que acabava de nascer, você vestiu uma roupinha de marinheiro em mim e em no nosso irmão Washington! Talvez um prenuncio já naquela época por minha escolha de servir a Marinha de Guerra, pois eram roupinhas lindas: Eu de branco e nosso irmão de azul! (Inesquecível)!!! E durante esse saudoso evento pude constatar sua contagiante felicidade pelo nascimento de nossa irmã, pois você não precisava mais mudar-se para Fortaleza, para morar com nossa tia Nenem! 47
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... Algo que sempre admirei entre tantas outras virtudes foi a forma como você e nossa mãe encontraram para tratar de sua “escoliose”, a qual surgiu por volta de seus 18 anos, em que você estava ficando com um lado torto e que você tinha que dormir no chão, sem reclamar do desconforto! ... Após a construção de nossa casa de “Taipa”, no bairro “Revensa”, me lembro do seu orgulho em trazer nossa casa limpa e organizada, pois normalmente aos sábados, você derretia velas com querosene numa vasilha, passava no cimento (piso) da sala e com um pano eu e nosso irmão Washington sentávamos nesse pano e servíamos de “enceradeira”, puxados pelos outros irmãos Francisco e Antonio Carlos, até o piso ficar brilhando! Além de um jarro de flores artificiais que você fez com telhas, azulejos, breu e purpurina, o qual chamava a atenção das comadres visitantes de nossa mãe: Dona Nair, Dona Benoiza e tantas outras como nossa vizinha, Dona Vicência, esposa do Sr. Tiléu! Era realmente um lindo jarro o qual deixava o ambiente no mínimo nobre! ... O rádio sempre ligado, quando você estava em casa para acompanhar o “movimento” Jovem Guarda lançava quase diariamente músicas e cantores e chamava a atenção a rapidez que você acompanhava as músicas, transcrevendo para um caderninho as letras dessas referidas músicas! ... E aos domingos brincávamos de: “A Palavra é” imitando os quadros: musicais do Beota Jr. E J Silvestre que eram programas de televisão daquela época! momentos inesquecíveis, pois eram eventos que me fortaleciam como participante de uma querida família, de pais comprometidos com nossa educação e nosso futuro! ... Já em, Fortaleza, precisamente 1969, morávamos numa casa simples, no bairro Vila Manoel Sátiro, quando foi inaugurada uma linha de ônibus para a Praia do futuro e lá você nos levou para esse inesquecível passeio: Eu nossos 48
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irmãos Washington, Ana Lúcia, Lourival Júnior e Ricardo, o qual tinha apenas 3 anos incompletos. O ponto final do ônibus ficava um pouco distante do mar, pois naquela época as “dunas” de areia ainda emolduravam a região ainda paradisíaca. Então, logo que avistamos o lindo mar, depois de uma boa caminhada, subindo e descendo as dunas, o Ricardo entrou em pânico literalmente! E num choro compulsivo e gritos de pavor correndo pra lá e pra cá, você apenas dizia : (como faz até hoje) “deixa ele”!!! (risos). ... Enfim olhando por essas “janelas” posso lhe afirmar que você continua sendo minha maior referência de busca pela verdade: suas vivências para compartilhar com nossa mãe a educação minha e de meus irmãos e até mesmo sua severidade diante das fraquezas de todos nós, fazem tê-la como “baluarte” ao encontro da Luz!!! Muito agradecido aos céus por fazer parte de suas “lembranças” como irmão e amigo, participante dessa maravilhosa jornada de vivências! Marcos! O cheiro de café coado no pano, as brasas de carvão do ferro de passar, e o cuscuz de milho com côco, esfriando na janela da cozinha, faziam parte da “sinfonia” daquela modesta cozinha de nossa casa no bairro da Estação em Itapipoca, bem como de todas as cozinhas “orquestradas” por esse espírito de luz: minha mãe Maria Luiza! Companheira, mãe e acima de tudo uma amiga inseparável de seu lar e seus estimados filhos e principalmente de meu saudoso pai Lourival, ambos conduziam a harmonia, o progresso e principalmente a educação e ética de nossa família! Nessa época por volta dos anos 60, ele trabalhava na CEM (Combate de Erradicação da Malária) uma instituição dos moldes atuais da SUCAM(Superintendência de Combate aos Mosquitos), fazia incursões nas cidadezinhas circunvizinhas em seu cavalo, no qual às vezes levava meus irmãos mais velhos para passeios, curtos em seu grande 49
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dorso! Seu uniforme era garboso aos meus olhos infantis: de cor marrom com algumas insígnias coloridas sapatos pretos do tipo “garlocha” enfim quase um Bandeirante. Levava pendurado na cela uma bolsa de couro na qual guardava seu material de trabalho! Sempre que voltava tudo era festa, principalmente no cardápio sem muitas opções para seu salário daquela época: fussura de bode, mão de vaca, fava, toucinho de porco e algumas guloseimas tipo: doces quebra-queixo, peito de moça, broa de milho, piper, azedinhos e pé de moleque. Éramos vizinhos de Dona Nanosa e Sr.Isaú, que moravam numa bela casa com vista para a nascente onde corria um lindo riacho de águas cristalinas e que passava por trás de nossa casa, lá bem nos fundos! Palmeiras, coqueiros, bananeiras bem como frondosas árvores frutíferas, faziam parte daquele cenário paradisíaco nas encostas das serras que circundavam a cidade. Nesta mesma casa vivenciei as primeiras manifestações de força e coragem de minha mãe, pois, com gestos e palavras severas, enfrentou uma vizinha, que normalmente protegia sempre os malfeitos de seu irmão, quando o mesmo em suas delinquências, ameaçava bater em meus irmãos com fios de cobre, quando estes saiam de casa ou para brincar ou para ir à escola. Ela que habitualmente denota calma e aparentemente submissão à vida. Mudamos para uma casa maior, porém um pouco antiga que ficava do outro lado da estação de trens, pois minha irmã Ana Lúcia havia nascido e precisávamos de uma residência maior. Agora havia mais vizinhos e logo minha mãe fez amizades com uma senhora de nome Argentina, a qual tinha muitos filhos e que era também muito econômica. Normalmente suas refeições eram apenas a base de feijão de corda que minha mãe trocava por arroz passando estes por cima do muro. Meu pai acabara de adquirir um rádio de marca 50
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SEMP e minha mãe podia ouvir sua novela predileta o “Direito de Nascer” e ele as noticias da rádio Globo e BBC de Londres. Nessa época, por volta de 1962 grandes dificuldades começamos a vivenciar, pois meu pai começou a beber com mais frequência, devido principalmente por estar desempregado, deixando minha mãe muito apreensiva e com mais responsabilidades para a manutenção da casa e dos filhos. Começei a costurar com maior rapidez porque as confecções logo prontas eram entregues e o pagamento das mesmas mal dava para a compra dos alimentos. A crise politica que se instalou em nosso país, a Revolução industrial que se desencadeou em toda Europa, além das doenças endêmicas como coqueluche, catapora e sarampo que assolavam muitas crianças, fez minha mãe dedicar-se um pouco mais ao catolicismo ela que já era fervorosa “Filha de Maria”. Para completar esse quadro de preocupações a igreja anunciava o “Fim do Mundo” pois uma famosa atriz francesa daquela época lançou uma moda a “Mini Saia”. Com isso foi aconselhado as famílias a ficarem em suas casas, tipo um “toque de recolher”. Rezávamos com nossa mãe dois terços diariamente principalmente pela saúde de meu pai que acabara de internar-se em Fortaleza, pois a bebida deixava-o sempre muito debilitado e fragilizado, com acessos de loucuras que referiam-se às formas de pensamentos que o atormentavam. Mais tarde pude entender melhor aquela situação de meu pai com a leitura dos livros “O Juizo Final e Lao-Tsé” editados pela Ordem do Graal na Terra, os quais explicam detalhadamente as formas dos pensamentos e as fraquezas humanas. Um inverno rigoroso também prejudicava as lavouras e afetavam a escassez de alimentos. Raios, trovões e relâmpagos deixavam nossa mãe em plena vigília rezando com o terço nas mãos andando pela casa pedindo proteção ao seu lar e seus filhos, até mesmo 51
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porque a casa era velha culminando um risco da parede da cozinha cair. Com todas essas dificuldades ela resolveu escrever uma carta para suas cunhadas, principalmente a Tia Cleusa e Tia Nenem que prontamente passaram a nos ajudar. E já estava de volta de Fortaleza, com os devidos auxílios e também com meu pai, mesmo ainda em recuperação. Então, tivemos alguns meses de harmonia pois o Sr. Lourival retomava um pouco as responsabilidades da família, inclusive a alfabetização minha e de meu irmão Washington através das cartilhas de ABC. Meus irmãos se comportavam melhor, as refeições à mesa eram mais silenciosas, os horários de brincadeiras, bem como dormir e levantar-se além do cheiro das tapiocas e cuscuz com côco, o galo nos acordando com seu canto do quintal, devolviam novamente para minha mãe e também para todos meus irmãos a harmonia do nosso lar. Mudamos agora para uma casa maior em frente a igrejinha de São Sebastião, que foi entregue a minha mãe os cuidados com a limpeza e organização. Várias amizades entre as famílias vizinhas nos trouxe naquela época um pouco maior de interação e entretenimento para todos e minha mãe como sempre com sua postura “enlevada” conquistava as vizinhas e com isso éramos muito considerados além das amigas comadres e compadres que sempre nos visitavam nos prestigiando com “víveres” para nossas refeições. Infelizmente meu pai não conseguiu fortalecer-se e as influências de alguns “amigos” boêmios o levaram de volta à bebida, pois continuava desempregado e também o tempo da última internação foi muito curto para a eficiência do tratamento. Apesar de tantas dificuldades, a impressão é que minha mãe havia despertado para uma maior disposição para criar seus filhos e lutar pela saúde de seu querido companheiro pois o mesmo bebia com mais frequência. Costurava com mais afinco, varando a noite, porque ainda pela manhã já necessitava entregar as encomendas para Sr. Sinfrônio, um alfaiate pra quem ela 52
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costurava e às vezes ele pagava antecipadamente. Muitas vezes fiquei de plantão em frente a máquina de costura, pois ela dizia assim: - Marquinho eu vou tirar só um cochilo, fique ai um pouco e não me deixe dormir. Então nessas ocasiões ela me dava algumas tarefas como pregar botões e fazer os embainhados das calças o que me deixa hoje orgulhoso de ter aprendido. Apesar de tudo a vida também seguia com alegria. As visitas das minhas tias Cleusa e Nenem, além dos meus primos e do meu avô Cazuza, tornaram-se mais frequentes principalmente durante os festejos de São Sebastião e as festas de São Pedro e São João bem como os fogos de artifícios que eles traziam e soltavam logo que a fogueira era acesa e providenciada pelo Sr. Lourival com muito esmero. As guloseimas eram providenciadas por minha mãe como o aluá de milho com rapadura, pé-de-moleque, mucunzá, milho cozido, pamonhas doces e salgadas, bolos de milho, batata doce e macaxeira, além das batatas doces que assavámos na brasa da fogueira. Tudo isso muito apreciados por toda a familia, vizinhos, compadres e comadres que se chegavam para este inesquecível evento. Eram dias festivos alegres e incansáveis para todos os envolvidos, principalmente para meu pai e minha mãe, esta quase não saia da cozinha pois as tapiocas de côco, baião de dois e carnes assadas e cozidões durante todos os dias eram muito apreciados por meus tios e tias. Meu pai conseguiu um emprego na prefeitura e pudemos morar pela primeira vez em uma casa própria. Ficava no bairro da Revensa ao lado de uma lavanderia pública. Na realidade meu pai ganhou o terreno com umas armação de varas para a construção de uma casa de taipa, que foi construída com muita dedicação com os amigos, vizinhos e os irmãos, até a Ana Maria participou desse evento ajudando a encher os traçados das varas com barro e capim seco. Então minha mãe ganhou também uma cozinha com fogão de lenha e uma despensa, além de um grande quintal, com cacimba 53
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cheia d'agua, canteiros de cheiro verde, tomates, pimentões e plantações de frutas variadas como bananas, mamão e cana-de-açucar. Tudo isso construído por meu pai, muitas galinhas, patos e porcos enriqueciam o cenário daquele recanto alpendrado e que abrigava além de todos os nossos parentes que vinham de Fortaleza para passar as férias, as comadres e compadres fiéis a amizade daquele generoso casal. Um período farto de muitas alegrias, vivenciamos naquela casa ficamos mais unidos e mais devotos aos céus, pois meu pai também era incansável em suas ideias de progresso juntamente com minha mãe. Meus irmãos da segunda geração começaram a nascer um após o outro e logo já éramos dez irmãos. Meu pai havia conseguido um emprego em Fortaleza para administrar um Hospital pois ele era muito influente com os políticos da época devido seu saber notório como autodidata. Lia e escrevia muito bem os discursos e plataformas dos candidatos da cidade, transformando-os em prefeitos e vereadores. Nessa ocasião melhoramos nossas condições financeiras, inclusive deixamos de comprar fiado na mercearia do Sr. Antonio Assunção, enfim uma época de harmonia e progresso para toda nossa família, alguns anos de pura alegria principalmente com a chegada de meus três irmãos Lourival Junior, Ricardo Cesar, Lino Portela, além da minha querida e saudosa irmã Ana Lúcia, com sua singela presença quase poética. Passados três anos de inenarráveis alegrias, novamente estávamos de mudança. Dessa vez para Fortaleza devido às influências de nossas tias e também por conta de meus irmãos mais velhos que já haviam terminado o curso científico e precisavam continuar os estudos, os quais a cidade não oferecia. Começava um outro período de tristezas, pois meu pai logo começou a beber, perdendo novamente o emprego e mais uma vez minha mãe fortalecia-se em suas novenas e 54
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devoções, nossas tias Amparo, Dodô e também o vovô Cazuza foram morar conosco e ajudavam nas despesas além de minha irmã Ana Maria que começou a trabalhar. Moramos pouco tempo nessa infeliz residência e mudamos para o bairro do Jardim América, onde passamos também um curto tempo, mudamos em seguida para um bairro mais distante a Vila Manoel Sátiro, uma casa simples e modesta, porém tinhámos muitos amigos, eu e meus irmãos. Minha mãe e meus irmãos mais velhos saíram para trabalhar e meus irmãos menores eram confiados a mim, contudo a minha mãe sempre ao sair passava uma bondosa mão na minha cabeça, como passando literalmente suas energias para mim tudo dava certo. Costurava para uma renomada família no bairro da Aldeota e somente voltava às 06:00hs da tarde com R$10,00 cruzeiros para a compra de alimentos, alguns meses passaram-se e voltamos novamente para o bairro do Jardim América. Minha mãe dessa vez sofria muito mais consequências da bebida do meu pai, pois dessa vez existia a ameaça da divisão de seus filhos para morar com as tias Cleusa e Nenem e a partida para o Piauí com os filhos menores a deixara muito triste, meus dois irmãos mais velhos Ana Maria e Francisco José, sem muitas opções de qualidade de vida em Fortaleza, partiram para o Rio de Janeiro em busca de seus próprios destinos e minha mãe sucumbia em dor e sofrimento muito mais pela bebida de meu pai que entregava-se sem chances para ela ajudá-lo. Foram meses de muita agitação e sofrimento para minha mãe e todos meus irmãos, mas com sua fé sempre inabalável não se deixava vencer porém já nascia meu irmão caçula Paulo Henrique e tornava-se mais difícil o sustento dessa situação e da família, apesar da ajuda financeira de meus dois irmãos Antônio Carlos e Francisco Portela, que começavam a trabalhar em empregos conseguidos por nossa tia Cleusa. Minha irmã Ana 55
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Maria sempre que podia enviava por carta algum auxilio financeiro, o que era para minha mãe momentos de pura comoção e preces para que ela alcançasse seus objetivos no Rio de Janeiro. Dois anos depois de sua partida minha irmã estava de volta para levar definitivamente seus pertences que haviam restado, dessa vez ela iria para São Paulo e deixou de presente para minha mãe o livro “O Juizo Final”da escritora Roselis Von Sass, e como num facho de luz minha mãe numa atitude convicta nos designios dos fios de seu destino, teve a atitude de hospitalizar nosso pai novamente. Quando ele já estava de volta, pois passou poucos meses, ela, numa atitude por mim nunca vista, chamou-o para uma definitiva conversa e lhe deu um ultimato para deixar a bebida, pois seria a última oportunidade que ela estava lhe dando. Disse-lhe com palavras severas e postura altiva, mas cheia de amor, nosso pai a ouvia em silêncio. Então novamente mudamos de residência e mais uma vez estávamos morando em outra casa, dessa vez no bairro do José Walter, um conjunto habitacional que particularmente ainda deixa nossa mãe muito orgulhosa em ter novamente sua casa própria. Uma casa simples, muito quente em vista do telhado de amianto, porém tínhamos novamente um quintal para nossas brincadeiras e algumas galinhas para criar e um belissimo pé de goiaba para o deleite de meu irmão caçula Paulo Henrique e dos sobrinhos que sempre nos visitavam. Nessa casa vivenciamos muitas alegrias: a volta de alguns irmãos do Rio de Janeiro com suas digníssimas esposas mas trazendo em suas bagagens seus filhos e com essa alegria em família assim se renovava as forças desse casal emblemático D.Maria Luiza e Sr. Lourival Portela. Mas, uma outra grande dor vivenciamos com o falecimento da nossa querida irmã Ana Lúcia… nossa mãe e nosso pai uniram-se então em um só coração para suportarem tamanha tristeza e novamente ergueram suas cabeças e seguiram em frente… A partir dos acontecimentos, nosso 56
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pai parecia enfim reconhecer todas as virtudes da nossa mãe e ela por sua vez dedicava-se a ele com muito mais compreensão, ternura e compaixão, num zelo esmerado de ambos para facilitar a vida um do outro. E como se os dois cansados de tanto sofrimento não quisessem mais olhar para trás e sim apenas para um futuro feliz, que apesar de tudo ainda necessitavam construir, infelizmente nosso pai já encontrava-se fisicamente bem debilitado e os enfartos avizinhavam-se do mesmo um após outro, em vista de sua postura independente e um saber notório inenarrável, além de seu tempo meu pai conscientemente começou a organizar-se para deixar essa Terra e seguir seus anseios espirituais. Primeiro conseguiu um emprego para nossa mãe, depois organizou os documentos da casa junto à COHAB e aos poucos foi ficando silencioso, introspectivo e menos questionador com o mundo e as pessoas que o cercavam, para em seguida nos deixar eternas saudades. Nossa mãe agora, estava livre para dedicar-se aos seus mais profundos anseios: encontrar respostas para todos os “porquês” da sua vida! E juntando os fragmentos de suas verdades e intuições, além das vivências religiosas, filosóficas e espirituais por onde passou buscou inteirar-se da verdade através dos ensinamentos da mensagem do Graal de Abdruschin, e a partir desse momento é o que a faz convicta da verdadeira felicidade que todos seres humanos deveriam buscar diariamente. Finalizando esses relatos como boas lembranças indeléveis desse querido e admirado casal, ainda quero dizer o quanto agradeço aos “céus” por esta oportunidade única que me foi concedida pelos fios do meu destino e em poder compartilhar com muito orgulho dessa família, juntamente com todos os meus irmãos e de todos os memoráveis episódios os quais só me trouxeram sabedoria para também continuar buscando a pura “verdade” de minha estrada. Aos meus queridos pais, o Sr. Lourival Rodrigues 57
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Portela e D. Maria Luiza Sousa Portela, os meus mais sinceros e profundos sentimentos de gratidão, respeito, amor e carinho por tudo que sou como ser humano universal, em especial a minha querida “Boa Amiga” que continua em nosso meio exalando simplicidade, sabedoria, leveza, ternura e força para todos aqueles que anseiam a paz e a alegria em seus corações. Do filho, irmão e amigo de sempre, Marcos Portela.
Maria Luisa, Marcos, filhos e netos.
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RELATOS DO LOURIVAL JUNIOR Iniciar esses escritos para mim é uma viagem a um passado feliz, é entrar numa Nave chamada “Família”, onde carrega pessoas de gostos musicais diferentes, muitos sorrisos, muitas tristezas profundas, muitas ideologias, mas carrega também pessoas de grandes corações. E para essa viagem se tornar mais intensa, vou me permitir a nomear meus queridos irmãos com apelidos que eu batizei cada um deles. Escrevo esses relatos numa data marcante em minha vida onde completo meus 50 anos de vida, me silencio por alguns instantes por emoção de estar vivo com saúde para agradecer a essa minha família maravilhosa que me acolheu com muita generosidade e carinho. Nascido em 1966 e fazendo parte da segunda geração de filhos do Sr. Lourival e D. Maria Luiza, geração essa que passou a vivenciar fatos e histórias da família que já se sucediam e não entendíamos o por quê de tudo, uma nova geração de irmãos que simbolizavam uma nova união familiar. Sempre fui chamado de menino calado, e isso me permitia um livre trânsito na casa, onde eu não dava trabalho aos irmãos que me acolhiam, normalmente os mais velhos ajudam seus pais a criar seus outros irmãos e em casa não seria diferente, mas tem um detalhe que era o número de filhos homens que eram de maior quantidade em relação as mulheres, pois somente a Babais (Ana Maria) e a Aia (Ana Lúcia) ajudavam nossa mãe. Lembro da Aia brincando comigo no terraço da casa no Jardim América enquanto acontecia um barulho de discussão na cozinha, fatos como esse se sucediam e na maioria das vezes eu era recolhido do ambiente. Sem entender o que se ocorria, procurava na maioria das vezes estar em paz comigo mesmo buscando nas brincadeiras com meus irmãos aproveitar bem o dia. Lembro de um campo de futebol em frente de casa onde toda tarde 59
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tínhamos muita gente brincando e era um horário onde eu passava a ver outras pessoas, pois a maior parte do tempo ficava dentro de casa, pois o portão ficava sempre trancado. Mas minha infância foi divertida com meus irmãos Ué (Ricardo Cesar), Poné (Portela Neto) e o Paulo Henrique, que só veio 4 anos depois. Tínhamos um respeito muito grande ao Sr. Lourival e um carinho muito especial a D. Maria Luiza que sempre carinhosa e atenciosa nos alertava sempre que estávamos brigando ou sorrindo alto, para não atrapalharmos o sono do Sr. Lourival. Lembro de momentos em que o Sr. Lourival me levava ao trabalho no Instituto Dr. José Frota, e num momento de forte lembrança, vi meu pai carregando um corpo no ombro de uma pessoa que tinha morrido e ele não quis esperar a maca, e escutei de um funcionário do hospital dizer: “Esse Sr. Lourival é um cabra macho mesmo, eu não tinha coragem de fazer o que ele faz”, escutando aquele elogio, logo me levantei todo orgulhoso onde estava sentado bebendo leite numa lata e falei: “Ele é meu pai” e assim ficou gravado mais um momento de orgulho do pai que eu tinha. Aconteciam fatos constantes, um deles era que Eu, o Ué e o Poné, tínhamos momentos de aflição quando o Sr. Lourival nos pedia pra ir cortar o cabelo lá no “Dedé”, pois normalmente toda vez tínhamos de voltar pois, o Sr. Lourival não aprovava o corte que eu já tinha combinado com os irmãos de cortar cheio, e voltávamos chingando um ao outro. Na medida em que íamos crescendo outros momentos marcantes iam surgindo como o torneio de futebol no campo da 34 no José Walter em que eu consegui com o Washington as blusas do Bradesco, banco em que ele trabalhava e arrecadei dinheiro e fui comprar as medalhas e os números dos times e pedi pra D. Maria Luiza costurar nas blusas, erámos respeitados no bairro e esse torneio foi tomando uma proporção muito grande, sobre esse fato começo a analisar o meu papel de Líder que comecei a 60
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desempenhar. Toda criança adora ganhar brinquedos, e sobre isso não tenho o que reclamar sempre no Dia das Crianças nossa tia Amparo nos presenteava com carros iguais, que ela colocava embaixo de nossas camas, e nas festas na Cia. Docas em que Sr. Lourival começou a trabalhar íamos e recebíamos brinquedos grandes como caminhões, bolas, muito picolé e bombons, até um ano que eu perguntei ao Sr. Lourival se não iríamos naquele ano em que já se aproximava da data e ele sem querer responder, até que me falou que não estava mais trabalhando lá, fiquei bastante triste, mas entendi. Um desses brinquedos marcantes também teve uma Caloi Azul Dobrável que nosso irmão Uau trouxe no bagageiro do ônibus da Itapemirim ao voltar do Rio de Janeiro, ali começava a nossa saga de aprender a andar de bicicleta no meio da calçamento.... ah como éramos felizes! E às vezes havia uma disputa para quem acordava mais cedo pra ser o primeiro a pegar a bicicleta. Mas as festas, alegrias e churrascos só aconteciam quando os irmãos Uau (Washigton), Utim (Marcos) e o Tomiei (Francisco Portela) chegavam de suas viagens de navio trazendo muitos presentes para nós, foi numa dessas festas em que passei 3 dias com febre emocional por ter visto o Sr. Lourival matando um dos porcos que tínhamos criado com tanto carinho e que lembro muito bem o dia que fomos na feira de Messejana no Jeep 58 marrom comprar esses bacurins. Ali naquele momento percebi uma profunda tristeza dentro de mim e busquei no colo de D. Maria Luiza me consolar. A música começava assim a me preencher com os discos de vinil que os irmãos marinheiros traziam e tocavam literalmente o dia todo, e as músicas eram revezadas ora tocava Pink Floyd o famoso The Dark Side of The Moon, ora tocava Michael Jackson, ora tocava Beatles, o álbum Branco da maçã verde na capa, enfim o Rock começava a me influenciar e eu ia cada vez mais me 61
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enveredando no universo da música e ia apresentando aos irmãos Ué e Poné, assim fomos desenvolvendo a cultura musical em nossa adolescência e atraindo muitos amigos músicos que gostavam de nos visitar para conversar e escutar muito Rock In Roll. Na passagem do nosso irmão Teté á Fortaleza na primeira vez em 1978, vivenciei momentos marcantes, pois vi como ele fazia suas chinelas de couro e solado de pneu, ele vestido com seu macacão jeans e uma blusa branca por dentro que eu achava o máximo pois até então nunca tinha visto um homem vestido daquele jeito, tudo pra mim era empolgante. O que me causou tristeza foi no dia em que acordei e fui até ao quarto onde ele dormia e não o vi mais, ele já tinha voltado para sua estrada da vida, fui até a cozinha e perguntei a minha mãe por ele, ela entristecida e com a voz embargada falou: - Seu irmão viajou, mas ele disse que volta e vai trazer um brinquedo pra você. Sentia ali a preocupação, o carinho e a falta que o nosso irmão fazia na nossa família. Nossa mãe D. Maria Luiza já não tinha as filhas para ajudá-la pois a Babais já estava estabilizada em SAMPA e a querida Aia tambem já morava nas Guianas Francesas com um cabra arrepiado chamado Hervé, que durante a sua primeira visita a nossa casa, nos abraçamos muito e ela me contava como era o Novo Mundo que ela estava conhecendo e ali me fazia a viajar nos seus contos diários. D.Maria Luiza sempre me pedia pra ajudar aos irmãos quando fosse necessário e nunca esqueci dos ensinamentos que ela me falava: - “Você como mais velho, precisa ajudar seus irmãos, dê um bom exemplo para que eles possam te seguir.” E assim eu o fiz. Sei que fui protagonista de muitos momentos marcantes com meus pais, mas teve um fato que sem dúvida me deprimiu por muito tempo. Estávamos todos em casa, D. Maria Luiza na cozinha a preparar o jantar, o Sr. 62
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Lourival estava no banho e eu e os irmãos estávamos na sala assistindo a um filme, quando por volta de 18:30hs chega no portão de casa um Carteiro gritando: “Correio”! e nossa mãe grita da cozinha: - Lourival Junior veja ai que carta é essa uma hora dessas? Recebi o Telegrama das mãos do Carteiro e fui até a cozinha, e disse: - Mãe é um Telegrama. E ela respondeu: - Abra e leia. Iniciava ali uma longa leitura do ocorrido e triste fato do falecimento da nossa querida irmã Ana Lúcia… À medida que eu estava lendo as lágrimas iam escorrendo no meu rosto, a voz foi embargando e nesse momento recebo um abraço da minha mãe e choramos juntos até o papai chegar e ler com detalhes o telegrama… Lembro da mamãe com a blusa da Aia no ombro chorando bastante, ligamos para todos os familiares e comentamos sobre o ocorrido, sem dúvida foi um fato marcante. Mais uma característica relevante da nossa família, é a de restabelecer e assim fizemos, todo dia eu procurava a mamãe pra conversar e a acalentar lhe dando força para superar esse momento tão difícil. Quero lembrar dos momentos felizes que vivenciei junto com meus queridos irmãos, os momentos que tivemos com nosso avô Cazuza, respeitando seus momentos e sabendo que ele teve muitos filhos, e foi na nossa casa que ele resolveu viver seus últimos dias de vida, lembro que nosso pai nos limitava a fazer certas coisas e brincadeiras devido ao barulho, mas mesmo assim éramos felizes, lembro das refeições à mesa pontualmente onde o vôvo Cazuza distribuía as bananas a cada um e ao final do almoço ele se recolhia ao seu quarto pra tirar um cochilo na sua rede, lembro ainda dos jornais que o papai colocava nos caibros das telhas para fechar as brechas de luz, pois qualquer luminosidade para o vovô era motivo para o mesmo não dormir sossegado… sinto saudade do meu vô 63
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cazuza. Momentos únicos tivemos juntos com o meu pai e meus irmãos quando ele nos convidava para assistirmos juntos filme de Faroeste no Corujão 1, 2 ou 3 programa que era exibido sempre as madrugadas, ele nos acordava preparava suco de pega pinto (chá de raiz) com bolacha cream craker, e ali ele ia narrando o filme, fazendo comentários sobre quem era o artista e quem era o bandido, nesses filmes ele nos apresentou grandes atores como, John Wayne, Charles Bronson e Clint Eastwood e assim com esse aprendizado cultural passei a gostar de filmes até hoje, bons ensinamentos do meu pai... A bebida sempre foi um fato causador de transtornos na nossa família, principalmente quando o papai sai de casa dirigindo o seu Jeep 58 marrom, começava ali a preocupação da mamãe e eu como mais velho na casa, pois todos os outros irmãos mais velhos já trabalhavam, o Toniei era funcionário do Banorte, o Uau trabalhava no Bradesco, o Tais no Lojão Anfisa e o Utim no Hotel (balança mas não cai), a Babais e o Teté não sabiam o que se passava em casa pois já moravam em Sampa, e assim eu saia de casa de bicicleta a visitar os bares mais próximos de casa para acompanhar a farra do papai, acabava que me deparando com ele numa mesa rodeada de amigos de copo, já rolava um samba com violão, uma seresta com a gaita ou uma batucada com o pandeiro e enfeitando a mesa uma garrafa de Campari, no copo uma rodela de limão e gelo e assim o dia era pequeno pra tanta euforia, voltava pra casa e avisava a mamãe onde ele estava e ali ela já se preparava psicologicamente para recebê-lo, quando ele chegava em casa o Jeep ficava atravessado na rua, a mamãe já o esperava com o sermão decorado e ele já percebendo que estava perdendo a moral junto a sua família, ia direto ao banheiro tomar seu banho e depois deitar-se na sua rede. Não sabemos bem ao certo o motivo o qual nosso pai bebia tanto, talvez a ociosidade tivesse lhe consumindo, pois já não trabalhava mais, o fato de ter seus filhos crescidos, 64
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alimentados e trabalhando talvez bebesse por felicidade, quem sabe... Sentir saudades de um passado maravilhoso vivido junto com meus irmãos e meus pais me causa felicidades e muita emoção pois percebo que não teremos mais aquele mesmo ambiente, percebo que a idade nos consome e logo me vem a mente, não perco tempo procuro realizar tudo que estiver a meu alcance, visitar meus irmãos em São Paulo no dia 10 de Dezembro de 2015 foi uma realização para mim, além de que fui assistir ao show do guitarrista David Gilmour, da banda que eu mais curto até hoje que é o Pink Floyd, banda essa que me foi apresentada pelo Ton-iei com o disco de vinil do Prisma (The Dark Side of The Moon) e em seguida pelo Teté e assim a vida no conduz aos maiores e melhores encantos da vida, que é a FELICIDADE! Obrigado meu Pai! Obrigado minha Mãe! “Viver e não ter a vergonha de ser feliz”. (Gonzaguinha)
Eu e o Ué – Itapipoca 1969 65
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Eu, Ué e Poné Fortaleza Julho 1971
Eu, Ué, Poné e Paulo Henrique José Walter 1974
Eu, Tais, Utim e Teté Fortaleza Setembro 2014 66
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RELATOS DO RICARDO CEZAR Era o ano de 1973... Tudo era envolto só de brincadeiras, meu mundo restringia-se aos meus irmãos, às brincadeiras no jardim com meus amiguinhos invisíveis e em volta da casa, aos nossos pais e às expectativas e novas descobertas da infância, até que um dia minha mãe me chamou no quarto dela e do nosso pai… Ela me abraçou, sentada na cama, voltada pra janela… fazia um dia não muito claro, pois estávamos num período de chuvas, e foi um dia pra se guardar num cantinho especial do coração… era meu aniversário de seis anos. Tive a sensação de receber dela toda a proteção e segurança que uma criança é capaz de perceber num adulto, ainda mais sendo nossa mãe… A partir daquele dia passei à ver o mundo com outros olhos… era como se a vida abrisse uma pequena janela e à cada dia tudo ia tornando-se com mais sentido e clareza... ...E o que ela, nossa Mãe, me falou naquele momento que me chamou no quarto???... “Olha, hoje você está fazendo seis aninhos e já está se tornando um rapazinho, por isso seja mais obediente, preste mais atenção no que o Papai e Mamãe lhe dizem, e agradeça ao Papai do Céu por tudo”... A Casa Antiga… rua Júlio Cézar; Jardim América... Quando lembro da casa que morávamos no Jardim América, na rua Júlio Cézar, vizinho à casa do “seu Manel” , me recordo de coisas bem pontuais… e pra mim tenho sempre na lembrança a Casa Antiga… de um corredor grande que ia da porta de entrada até a porta do quintal. Tinha um quarto na frente da casa, com uma janela que dava pra um recuo, antes de chegar na rua... Certa vez vi nosso Pai, jogar por essa mesma janela, um guarda-roupa que Eu, Portela Neto e a Keila, nossa prima, filha do tio Dão havíamos acabado de pôr fogo… tentávamos “iluminar” o escuro que dentro fazia, riscando palitos de fósforos nos fiapos de linha que soltavam dos 67
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ternos do “Seu” Lourival… Imaginem!… Não, não imaginem!!!Lembro do dia que o “Retratista” parou em nosso portão e perguntou ao nosso Pai se ele gostaria que fizesse algumas fotos da gente... Lembro do dia em que brincando em cima de um banco de madeira que ficava no jardim, pulei em cima de um pintinho e ele morreu... Eu só chorava e nosso Pai ficou mais preocupado em me acolher e não me deixar triste… D. Maria Luiza só falou para que eu tivesse mais atenção, pois no jardim também ficavam as galinhas e os pintinhos... Lembro de uma brincadeira do Antônio Carlos... Numa noite ele pôs um palito de fósforos em brasa entre os dentes e um lençol sobre ele e foi pro final do corredor escondendo-se com as luzes apagadas, e de lá nos chamou… Não me recordo quem estava junto de mim, só sei que eram várias crianças… Quando estávamos indo na direção que ele nos chamava, eis que aquela figura surge… saímos correndo e gritando muito, e ele claro, rindo muito... Quando tínhamos pesadelos, era nossa Mãe que nos acolhia… Me recordo de dormir numa rede, no mesmo quarto que Seu Lourival e D. Maria Luiza dormiam, mas não lembro onde meus outros dois irmãos dormiam (Lourival Jr e Portela Neto)… O Paulo Henrique ainda não era nascido... Lembro de um dia estar brincando com o Portela Neto e um garoto que morava do outro lado da rua, ele devia ter nossa faixa de idade… Esse garoto nos desafiou, dizendo que não tínhamos coragem de comer areia… Como destemível filho de Lourival, não contei duas vezes. Brincávamos num canto do jardim, onde a areia era “fofinha” e tchaaá… uma mão bem cheia de areia na boca… não conseguia mastigar e sai correndo à procura da Nossa Mãe… só lembro dela lavando minha boca e o garoto que havia feito o mesmo, também saiu correndo... Outro episódio, não muito agradável, foi quando nosso Pai chegou em casa com um corte na perna, resultado de uma briga de bar… foi a primeira vez que vi 68
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sangue naquelas proporções… Era tudo meio confuso, nossa mãe chorava, eu via a cara de dor de nosso Pai, mas não entendia muito bem aquela cena, até que alguém nos tirou dali, e depois só lembro de nosso Pai com um curativo na perna… depois disso, ele carregou uma cicatriz em sua perna por toda vida... Lembro também de um passeio que fizemos, Eu, Portela Neto, Lourival Jr. e Francisco (Ton-i-ei) nos arredores dessa casa… Havia numa esquina uma casa com um Pé de Jasmim de muito cheiro… E hoje em dia, sempre que me deparo com um pé de Jasmim com seu cheiro característico, me remeto a essa cena de infância... A casa do nosso vizinho, o “Seu Manel”, tinha muitas coisas interessantes. Ele era Carroceiro vendedor de água e na entrada de sua casa havia sempre cavalos, carroças, havia galinhas e alguns cachorros também… Num dia nossa mãe me pediu pra ir deixar na casa do Seu Manel, umas sobras de ossos da comida do almoço, pros cachorros… logo na entrada da casa me deparo com os cachorros, eles perceberam meu medo e quiseram me morder, abocanharam de leve, mas o pior foi o desespero de sair correndo gritando pela nossa mãe... Lembro que eu gostava de ficar brincando no jardim, olhando pro céu, achava tudo gigante demais… Não tenho recordações dos meus primos e de minhas tias e também tios naquela época, se bem que eu só tinha uns três, quatro anos de idade… Não tinha mesmo nem noção clara de quem eram meus irmãos...sabia muito bem quem era meu Pai e minha Mãe. Hoje como adulto, minha profissão me deu ensejo de aprender e saber que os fatos vividos por uma criança, até seus sete, oito anos de idade são fundamentais e importantes na estruturação e construção de seus valores...A afetividade recebida e vivenciada de Pai e Mãe nesse período vai refletir-se em todas as outras fases de sua vida... A Mudança de Bairro... A casa do José Walter... 69
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Lembro de nossa chegada naquela casa de número 381 da rua 53 do conjunto José Walter. Naquele dia o céu estava nublado, a casa tinha cheiro de construção, mato cortado e umidade, ela parecia bem grande aos meus olhos… aqueles quartos que faziam eco quando a gente falava… e o quintal???… Ah, o quintal parecia uma verdadeira “Terra Prometida”... Não imaginava que muito das minhas brincadeiras, sonhos, assim como muitas descobertas e também frustações de criança e praticamente toda uma adolescência, iriam acontecer ali... Conjunto Prefeito José Walter, bairro da periferia de Fortaleza, um bairro da COHAB… Naquela época, no ano de 1972, tudo ficava distante devido a estrutura que a cidade oferecia, e esse bairro era de fato bem longe… So, so, so far way… E foi lá nessa casa, nesse bairro que nossa infância, minha, e do meus irmãos colados em mim… A expressão “colado”, não é meramente ilustrativa, mas bem real mesmo… Fazíamos tudo junto… Eu, Lourival Jr e Portela Neto, vivíamos um na sombra do outro… nossas alegrias e também nossas “faltas”... ...Nosso Pai, foi muito afetivo com todos nós, estava o tempo todo contando uma piada, uma estorinha curta, sempre fazendo alguma brincadeira engraçada… gostava muito de brincar com a gente… construía brinquedos de palha de coqueiro, de madeira, de corda, de frutas, de tudo que fosse possível… Ele fazia uns laços de palha de cocô, que mais pareciam com cobras… quando a gente puxava um fio da palha, a palha enrolava-se como se fosse uma cobra… Pra gente era o máximo ver aquilo!!! Gostava de vê-lo tocar com as colheres e a caixa de fósforos… E quando tocava gaita… aí o mundo parava pra ouví-lo… Esse mundo, era o meu mundo... Sendo ele autodidata em muitas coisas, fazia tudo com muita propriedade...Se ele dizia que alguém era “Imbécíl”, com certeza tinha seus motivos… Segundo ele, não admitia algumas incoerências perto dele... 70
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Lembro agora de um episódio que aconteceu envolvendo nossa irmã Ana Lúcia... Nossa irmã era jovem, bonita e cheia de sonhos… e nosso Pai era muito ciumento, e ficava no ”pé” dela… Um belo dia estávamos brincando de bola no jardim, e nosso Pai estava sobremaneira muito alegre… De repente chega um moço na frente da nossa casa e pergunta pela Ana Lúcia… Ai, ai,ai… Uma grande tempestade acabara de se formar em cima de nossas cabeças, naquele momento um movimento bem sinistro deu lugar à nossa brincadeira tão alegre… Seu Lourival sem rodeios ou perguntas indiretas, “na Lata”, foi logo questionando ao moço de onde ele conhecia a Ana Lúcia?; E o que ele queria na frente da casa dele, à procura da nossa irmã?... Reagi como uma criança que não entendia muito bem o que estava acontecendo, pois senti muito medo naquela hora... O moço me parecia meio atrevido e tentou enfrentar nosso Pai... Existe um ditame popular que diz: “Para o desatento e desavisado, o infortúnio mais cedo ou tarde o aguarda”, mais ou menos assim... Pois bem... Seu Lourival mais que prontamente, com movimentos precisos, abriu o portão da rua, nesse momento o moço deu dois passinhos pra trás e Seu Lourival falou algumas palavras que deram entender que ele estava avisando pro Moço partir dali mais que depressa...Talvez ele tenha, naquele momento já chamado o moço de imbecil e o mandado embora, mas foi tudo tão rápido, que não consegui acompanhar o movimento. O Moço balbuciou algo e lentamente saiu da frente da nossa casa, e Nosso Pai o acompanhou com o olhar e estava muito bravo também… Nossa brincadeira havia terminado… Eu deveria ter uns sete ou oito anos de idade... Ana Lúcia trabalhava no Centro Social do bairro, lembro que ela chegava sempre no final da tarde… Desse dia em diante nosso Pai passou a ir buscá-la no seu trabalho. 71
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Era nossa irmã Ana Lúcia que nos ajudava nas tarefas da escola e também nos afazeres de casa juntamente com D.Maria Luiza… Muitas vezes nosso Pai pegava nossas tarefas da escola pra ensinar… Lembro de uma “lousa verde”, onde ele fazia as anotações das tarefas com giz, e nós três ficávamos ali bem atentos a qualquer movimento dele… era divertido mas também um pouco tenso, pois ele queria tudo muito organizado... Lembro que os primeiros anos de escola, talvez os dois primeiros, eu e o Lourival Jr. estudávamos com a Ana Lúcia no colégio Pio X, que ficava na Av Duque de Caxias, próximo do antigo colégio Cearense, no centro de Fortaleza… Nosso Pai ia todos os dias nos buscar na escola… A viagem de volta pra casa era longa e na maioria das vezes eu pegava no sono no colo da nossa irmã... Uma lembrança inesquecível dessa época e que marcou minha vida com muito carinho, foi que nosso Pai trazia maçãs pra gente… Mas não era qualquer maçã… era aquela que vinha enrolada num papel vegetal roxo… A verdadeira maçã argentina… Nossa!!! Pra mim, fecho os olhos e vejo a cena... Nosso Pai já no portão de saída da escola com aquele saquinho de rêdinha amarelo com papel roxo… Me vejo cheirando as maçãs e a alegria daqueles momentos, e hoje compreendo perfeitamente a satisfação e alegria de um pai em realizar um desejo de um filho, por mais simples que seja esse desejo. Muito bom! Quando criança, não entendia muito bem e muito depois, já adulto é que soube do porquê de naquela época, comíamos maçãs só uma vez por mês, ...O motivo era que nosso Pai só podia comprar maçãs no dia em que recebia o seu salário do mês, pois as mesmas eram tidas como frutas caras, e não era todo mundo que tinha o privilégio de tal façanha na época… mesmo custando um pouco, ele assim mesmo as comprava pra gente... Nosso Avô Cazuza, veio morar conosco… Lembro muito dele sentado numa cadeira de balanço, na varanda da nossa casa, com o rádio colado no ouvido… Lembro da 72
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sua maneira de nos presentear com pedaços de bananas na hora do almoço, bananas essas bem maduras, que ele mesmo ia comprar… lembro da sua maneira calma de falar… lembro das confusões que ele fazia ao trocar os nomes dos objetos, já estava caducando por volta de seus setenta e seis anos. Era muito divertido, pra nós crianças, de ouvi-lo falar daquele jeito. ...lembro do quarto onde ele dormia, que durante a noite era totalmente escuro, pois ele pediu ao Nosso Pai que fechasse todas as frestas com jornal, pois a claridade do poste da rua o incomodava, e tínhamos que fazer silêncio absoluto, à partir do momento que ele entrava em seu quarto pra dormir, seja que hora fosse...lembro da dedicação do Sr Lourival e de D. Maria Luiza em cuidar dele, fazendo tudo com muito zelo e carinho… lembro do dia em que ele faleceu, cedo da manhã, passando minutos antes por baixo de nossas redes, armadas na sala, pra chamar pelo nosso Pai, que dormia em outra sala ao lado...desci de minha rede, indo até o quarto onde o Washington dormia, lá já estavam nosso Pai e o Washington deitando-o já desfalecido na cama...Não senti medo, só fiquei um pouco triste, por ver Sr. Lourival chorar, abraçando nosso Querido Vô Cazuza… Sr. Lourival não foi ao cemitério ver o enterro do nosso avô… Lembro de ficar em casa junto dele... Final da década de 70… A volta pra casa, dos irmãos Marinheiros do Rio de Janeiro. Francisco Portela, Washington e Marcos fizeram o serviço militar na Marinha… Guardo na lembrança aqueles momentos que eles tinham de partir no navio e a gente ia até o porto do Mucuripe ver os navios partirem… era um chororó danado… Mas o bom mesmo era quando eles retornavam… A casa ficava o tempo inteiro em clima de festa, cheia de marinheiros pra lá e pra cá… ganhávamos presentes, e o tudo era alegria… Via Seu Lourival muito feliz nessa época… Todos eles depois de servirem às forças armadas, 73
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voltaram pro Ceará e por um tempo moraram na nossa casa no José Walter, enquanto arrumavam empregos… Sr. Lourival participou intensamente dessas mudanças de nossos irmãos… às vezes entrava em confronto, numa ou outra discursão, mas depois ele mesmo tudo resolvia… Arrumava trabalho pra todos e assim deixava que tudo fosse tomando forma na vida de cada um... Num domingo desses lembro que estávamos na mesa na hora do almoço e ele rodeava a mesa toda dando atenção a um e a outro particularmente, principalmente às noras, pois o mesmo não fazia as refeições junto de nós, isso depois que nosso avô Cazuza faleceu...”talvez a pressa de viver o impedia de tal feito”… tudo nele era muito intenso! E o ouvi dizer que uma das coisas que mais o faziam realizado era ver a casa cheia e a mesa farta… É certo que tivemos muitas épocas difíceis, mas a confiança deles dois era inabalável… principalmente por parte da D. Maria Luiza… Silenciosamente e com resiliência, sempre conduzia tudo pra o melhor desfecho... Nas minhas recordações, esse período se confunde um pouco com o período em que Seu Lourival gostava de criar porco, pra abatê-lo no dia do aniversário da D. Maria Luiza… E em casa não tínhamos só “O Porco”, mas também galinhas, patos, carneiro, tatú, capotes, muitos pássaros presos numa grande gaiola, esses por sua vez, num belo dia a porta da gaiola amanheceu aberta e a maioria alçou vôo… Sr. Lourival ficou ao mesmo tempo triste e pensativo, tentando adivinhar o que teria acontecido… Tínhamos também o nosso cachorro que se chamava “Bala”, um vira–lata muito inteligente, valente e muito querido de todos nós... O aniversário da D. Maria Luiza era todo ano aguardado com muita expectativa e carinho por todos nós e acredito que por parte do Sr. Lourival, era uma verdadeira realização fazer toda aquela festança… e digamos, também muito trabalho... Lembro do cheiro de carne na brasa… Ele mesmo abatia, tratava toda carne, assava e servia todos… 74
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Ele acordava muito cedo pra deixar tudo em ordem pra festa… Logo em seguida acordávamos também pra ver todo aquele movimento… e eu ficava por ali querendo também ajudá-lo em alguma coisa. Ele convidava toda família Portela. Tia Cleuza chegava numa Kombi branca com o tio Luiz, Sérgio, Célio, Carlinhos, Marcia, Bebeto e Paulo Cézar… Tia Neném chegava com o tio Geraldo num opala dourado. A Sandra, filha da tia Neném vinha com o seu namorado, o Cézar, hoje seu esposo e daí começava a festa. Lembro que sempre havia muita música, com repertório variado. Lembro da tia Amparo, tia Cleuza e da tia Dodô cantando algumas músicas. O Sérgio costumava fazer dos baldes e panelas da D. Maria Luiza os instrumentos de batuque. Batia até quebrar todos. Sr. Lourival servia todo o pessoal do início ao fim da festa… por vezes parava pra participar, tocando umas músicas no violão, acompanhadas pelo Zézinho, irmão do tio Djalma, esposo da tia Amparo na época e pai dos nossos primos Evelyne e Djalma Jr… O Zézinho foi companheiro de violão por muito tempo junto do Sr. Lourival e sua gaita...Talvez nessa época eu já recebia minhas primeiras noções de musicalidade e instrumentação, juntamente com as predileções e influências dos meus irmãos mais velhos pelo bom Rock'in roll… Cada marinheiro tinha de voltar pra casa, com um aparelho de som 3X1, comprado em Miami ou numa loja do Rio de Janeiro… Lembro que O tio Djalma era especialista nesses aparelhos... Lembro que passada a euforia e comemorações da volta de cada Marinheiro pro Ceará, Sr. Lourival se encarregava de logo arrumar um emprego pra cada um dos recém chegados... Ele mesmo fazia questão de escrever pra diretoria ou presidência de algum banco e daí passado alguns dias chegava um telegrama, com aviso de urgência, pra que ele comparecesse numa agência do determinado banco e apresentar seu candidato. Comigo foi assim 75
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mesmo...Lembro quando tinha meus dezessete anos incompletos e fui trabalhar no Banco Real. Nosso Pai, todo feliz, me levou até a agência central do banco e lá o gerente já estava nos aguardando, pois minha vaga foi indicada pelo gabinete do próprio presidente, o qual Sr. Lourival, por intermédio de suas leituras dos jornais havia feito conhecimento. Os nossos vizinhos... Na rua de número cinquenta e três, do bairro José Walter, tínhamos vizinhos bem interessantes, dignos de um belo enredo pra um filme. Personagens bem marcantes como o Sr. Alberto, nosso vizinho do lado direito, e proprietário de uma Brasília branca impecável, que de longe seu cachorro avisava com seus uivos que ele estava chegando… Lembro de um episódio com esse vizinho, quando Sr. Lourival subiu no telhado da casa pra tentar desligar o fornecimento de energia, pois o mesmo estava bêbado e incomodando toda vizinhança, ouvindo músicas “nas alturas”… Lembro que esse mesmo vizinho por muitas vezes queria bater em sua mulher D. Anastácia e ela ia se refugiar na vizinhança… Em uma dessas ocasiões Sr. Lourival sabendo que a D. Anastácia estava na casa da vizinha, foi até lá e aconselhou-a de ir até o distrito policial (era conhecido por 8°distrito), dar queixas de seu marido… em poucos minutos a polícia chegou na casa dele e o levou preso, o mesmo ficando por lá a noite inteira… No dia seguinte Sr. Alberto foi solto e voltou pra casa já com um caminhão pra fazer sua mudança, pois a vergonha era grande... Tínhamos o vizinho da frente, O Evandro e sua esposa Dijé… Evandro sofria de algum tipo de esquizofrenia e gostava de passar o dia no bar da D. Ana, que ficava na rua 34, e sua mulher era toda “faceira” e trabalhava fora… Presenciei muitas vezes a cena que ela fazia quando ia recolher a folhas caídas do seu jardim, ainda mais sabendo que o Antônio Carlos estava por perto… Sr. Lourival gostava 76
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de imitar o jeito dela, pra fazer a gente rir… Lembro do seu Pedro e D. Margarida que tinham três filhas… Do Corcel amarelo que o “Seu Pedro” não conseguia por na garagem e a sua esposa D. Margarida ficava gritando do lado de fora: “disrroda a roda”… Do Seu Fernando e a D.Inês e seus filhos Jermano, o cientista, o Assis seu assistente, Elias, Fatima e Inês, família muito católica… Muitas vezes a rua inteira era acordada com música clássica vinda da casa do Seu Fernando… As invenções malucas pra lá de futuristas do Germano… Carro à gás butano, que por muito tempo nossa rua cheirava a gás, eles tinham central de rádio amador que se comunicavam com o mundo inteiro (a internet do passado)… Do Seu Vital e D. Rosa, pernambucanos de Cabrobó… Ele motorista de ônibus de viagens e ela cuidadora dos filhos, Vaneide, Vital Filho, Vanusa, Vanuel , Vânia e por último o Vicente… Seu Vital gostava de carros e mulheres, motivo de muitas brigas do casal, quando ele chegava com o colarinho sujo de batom, toda vizinhança ficava sabendo… ouvia, sem muito poder fazer… Na casa deles tinha um grande pé de manga, que subíamos até o ultimo galho pra ver toda a paisagem da redondeza… Uma vez eu, Lourival Junior e o Vital Filho construímos um carrinho de mão feito com madeira, pra vender na feira as mangas e também cocos… Seu Lourival nunca ficava sabendo dessas coisas… Dos nossos vizinhos mais próximos D. Sátira e “Seu” Gervásio e seus filhos Joãozinho, que queria ser Raul Seixas, Nozim que gostava de beber “umas cachaças“ e ficava valente, tinha um deles que era safoneiro, apelidado de cabeção, a Célia, muito amiga dos nossos irmãos mais velhos, participava de todos os “eventos” da nossa casa, a Francineide, a Rosinha, sobrinha da família, nossa coleguinha das brincadeiras, juntamente com as filhas da D. Margarida… e por último a família do “Seu” Antônio e da D. Doralice, a mesma veio a falecer nos braços de D. Maria Luiza, quando sua filha veio nos pedir ajuda pra levá-la de 77
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carro ao hospital, pois a mesma estava “passando mal”, do seu filho Simão Pedro e suas bicicletas impecáveis de tão bem cuidadas, suas filhas Madalena, a professora Socorrinha, Arimáteia que faleceu caindo do carro na “curva da viúva”, estrada que ia pra central de abastecimento de Fortaleza… Cito aqui esse episódio, pois lembro muito bem dele, quando brincávamos na rua, muitas vezes fazia aqui e acolá uma brincadeira com a gente… Na casa deles havia um cacimbão de água, que quando não havia água encanada era a única opção que tínhamos pra encher os baldes… lembro também de um pé-de-goiaba no quintal deles, subíamos no pé, e só descíamos quando não havia mais nenhuma goiaba pra comer… lembro de uma festa que eu e o Lourival Jr. fomos representar os reis magos, convidados por uma das filhas do “seu”Antônio, depois ganhamos, cada um, um caminhão de brinquedo… Dos vizinhos da esquina do campinho da rua 34, de um lado “Seu”Manel, um senhor de idade avançada, muito bravo e rabugento, visto pelo olhar de uma criança...senhor de poucas amizades...e do outro lado a D. Hozana e sua mãe, que ficavam aterrorizadas quando os jogadores de final de semana vinham pro campo, e elas comentavam que eles caiam de proposito pra mostrar a “ninhada”… a bola sempre caia dentro da casa delas… Antônio Carlos sempre ia jogar nos finais de semana e era ai que a gente assistia e ouvia esses tipos de comentários delas… Depois dos jogos, a turma toda do futebol ia pro bar da D. Ana… Me recordo de um amigo do Antônio Carlos que se chamava Nivaldo, que morava na outra esquina… Ouvi muitas vezes Sr. Lourival chamá-lo de imbecil, ele ia muitas vezes na nossa casa... Jogar de bola na rua, enquanto pequenos, depois no campinho da rua 34, já com as camisas do “Bradesquim”, doadas pelo nosso irmão Washington, quando era gerente da agência da rua São Paulo… comprar chocolate Galak branco e fatia de bolo Luiz Felipe na “bodega da Zéfita”, 78
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comprar também drops colorido numa vendinha perto da casa da tia Amparo, soltar raia no campinho da rua 34, brincar de pião e bila, brincar de amarelinha com as irmãs do Vital Filho, andar na bicicleta Caloi de guidon duplo que o Washington trouxe do Rio de Janeiro, com o Portela Neto na garupa, subir nas arvores do canteiro central da avenida C, sendo que haviam sido plantadas pelo primeiro cidadão de consciência ecológica que conheci, Sr. Pedro, que morava ali e observava e cuidava de todas com muito carinho… lembro da nossa vizinha dos fundos que vendia coxinhas de frango...do mecânico corcunda de nome Zah e seu irmão também mecânico de nome Jaime, lembro do bar do “Seu” Gonzaga que tinha um cheiro característico de “pano de chão sujo abandonado”... O bar e sorveteria Realce que aos finais de semana era sempre muito cheio, point das turmas da época, onde ficávamos admirando as motos que chegavam e estacionavam na frente, a mercearia do “Seu” Raimundo, onde a gente ia bem cedo comprar pão e pela primeira vez ouvi falar de leite com água e leite sem água, comprávamos fiado, pra pagar sempre no final do mês, sentar no banco da praça da igreja com toda a turma nos finais de tarde... Tudo isso e muito mais, foram os primeiros passos de uma grande história observada com muito carinho pelos nossos pais... Durante muitos anos, nosso Pai trabalhou no Hospital José Frota no centro da cidade, lá ele fazia serviços gerais, hoje seria a função de administrador, fez também muitas amizades… Lembro de um dia, que fomos fazer um lanche no refeitório do hospital e todos que o viam pelo trajeto o cumprimentavam e outros o paravam no caminho pra falar, era também bastante solicitado… Eu tinha nove anos de idade, necessitei fazer uma cirurgia de fimose, e foi lá no Hospital, com direito à voltar pra casa de ambulância...só lembro de ir pra sala de cirurgia e depois já em casa com os cuidados devidos… Foi também nessa época que ele nos levava à praia 31 79
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de março… Num desses passeios estávamos jogando bola na beira mar, e lembro que existiam algumas pequenas dunas de areia em uma boa extensão da praia. Brincávamos tranquilamente, quando de repente surge alguns garotos no alto das dunas, próximo onde estávamos e ficam nos observando… eram em torno de quatro ou cinco “pivetes”… Um de nós chuta a bola e a bola sobe a duna, e mais que depressa um dos pivetes pega a bola e fica segurando, olhando pra nós, como quem diz: vamos, dêem adeus ao brinquedo de vocês… Nosso Pai pede ao garoto pra devolver a bola, mas o mesmo sai correndo desaparecendo com nosso brinquedo… Sr. Lourival correu subindo a duna e logo em seguida volta, pra nossa tristeza sem a bola... Minha noção de tempo sempre dizia que era hora de chegar e dependendo das situações, era hora de partir, e claro, naquele momento era hora de partir… Nosso Pai pra deixar a gente tranquilos e que pudéssemos esquecer do episódio, chegando no ponto do ônibus sempre havia um vendedor de picolé, esperando sua freguesia… Que bola que nada… melhor foi a lembrança e gostinho do picolé “pasteurizado de morango”... Lembro também de um passeio na casa da tia Neném, quando ela morava na rua Nogueira Acioli… A casa dela ficava bem próxima da av. Monsenhor Tabosa, e lá as dunas faziam fronteira deixando as ruas da redondeza cobertas de areia... Lembro do vozeirão da Sandra, nossa prima dizendo: “Olha ai rapaz, os filhos do Tio Val”… Íamos entrando em casa, e logo a gente já estava brincando de correr no quintal comprido que a casa tinha… esquecíamos do tempo… lembro do pé de goiaba, dos coqueiros… Papai nos deixava bem a vontade… mesmo quando via a gente já em cima das árvores... Na casa da tia Cleuza era bem divertido… lembro que o Bebeto e o Paulinho sempre tinham um brinquedo legal… foi com eles que brinquei pela primeira vez com um Forte Apache… lembro bem da sensação de quando estávamos 80
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bem empolgados brincando, nosso pai aparecia e...”peguem suas bagagens que o trem vai partir”...Voltávamos de ônibus pra casa, e era sempre uma “viagem” de volta pra casa. Recordo-me que o Papai nos levou à um aniversário da Kendra, filha do Mário Junior, nosso primo… Renhilde, sua esposa, gostava demais do Papai… lembro quando chegamos na casa deles, e na sala havia uma mesa cheia balas de gelatina… lembro que os pais dela estavam lá, vindos da Europa… foi nessa ocasião que comi pela primeira vez balas de gelatina coloridas… Numa dessas incursões à casa do Mário Júnior, nosso pai entrou “mato à dentro”, lá bem próximo onde hoje é a Avenida Washington Soares...brincávamos em baixo de um cajueiro… nosso pai resolveu fazer um balanço com cipós que ele encontrou pelo caminho… Estávamos todos se divertindo, pois o balanço tinha dado certo...detalhe: deu certo pra nós que éramos crianças, e bem mais leve que ele… Quando nosso Pai resolveu que era a vez dele, de também balançar, o balanço quebra e ele se esborracha no chão… lembro que caímos na rizada e ele olhou pra gente com uma cara de quem não tava gostando muito daquela plateia, mas logo caiu na rizada também...era hora de partir... Lembro que na casa da tia Nénem trabalhava uma senhora negra, que a chamavam de Tetão… Tenho a lembrança de irmos visitar sua casa… era um terreno com uma casa recém construída e inacabada, com cerca de arame farpado, e lá tinha um poço d'água... Nosso Pai gostava demais dessa vida simples no meio do mato… lembro do cheiro de comida, feita em fogão de carvão e do banho de “cuia” que tomamos naquele dia, do lado de fora da casa… era um dia muito ensolarado... A lembrança de uma visita na casa do tio Dão… Sua esposa, tia Valdelice nos recebeu toda feliz… parecia um sábado de manhã… Nosso Pai entra conversando com ela e adentra até a cozinha… e nós ficamos por ali, como as crianças fazem de costume… De repente “seu” Lourival vem 81
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correndo na direção da porta e a tia Valdelice com uma vassoura na mão, falando algo que não dava pra entender... ela corria em sua direção, e nosso Pai olha pra gente e diz “Vamo embora”… Ele pulou a janela que dava pra rua e nós fizemos o mesmo, pois havia um sofá no pé da janela, que facilitou a fuga de todos nós… ele com a respiração meio ofegante olha pra gente meio desconsertado e vai aos poucos se recompondo, arrumando a camisa e o cabelo… e voltamos pra casa… Até hoje não sei o que realmente aconteceu naquele dia, mas foi engraçado também... Mas nada se compara aos passeios cheios de aventura que fazíamos quase todas as noites indo pra casa da tia Amparo… Tenho muitas lembranças da nossa Querida tia Amparo. Das latas de leite Moça que pegávamos em sua geladeira e bebíamos escondido dela, lá no quintal da sua casa, das festas de aniversário que ela fazia pra gente...as mais festejadas foram as festas do Paulo Henrique, dos seus presentes no dia das crianças e Natal, da extensão do seu telefone pra nossa casa… Quando me tornei adolescente, mesmo sem carteira de motorista, fui ser seu motorista particular, até o dia que bati o carro contra o muro da casa dela, na hora de entrar na garagem... Ela nos ajudou muito, quando fomos morar no José Walter… Ela tinha um carinho todo especial pelo seu Querido irmão Val, era assim que ela o chamava, e esse carinho estendia-se à todos nós filhos do casal Lourival e Maria Luiza… Eu gostava demais quando íamos pra casa dela, pois D. Maria Luiza ia sempre conosco… O Paulo Henrique era bem pequeno… Era apenas uns quatro quarteirões de distancia da nossa casa pra casa dela… as ruas todas feitas de paralelepípedo e tudo muito irregular e cheios de buracos também… as casas eram conjugadas e pra acrescentar havia muitos cachorros soltos nas ruas... Numa dessas noites, o Sr. Lourival já calejado de tanto espantar os cachorros literalmente no grito, resolveu levar consigo, dentro das calças, um facão de mais ou menos uns cinquenta centímetros… e lá fomos nós… Eu e 82
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meus irmãos bem faceiros, caminhando e brincando pelo caminho, quando de repente os cachorros começaram à latir na rua... bem distante já podia–se ouvir os latidos… Na medida que agente se aproximava da rua da nossa tia, mais os cachorros também se aglomeravam… Nosso Pai sacou o facão, que mais parecia uma espada e, riscava o chão… No atrito com as pedras saiam muitas faíscas, e ele fazia isso várias vezes… Imaginem nossas carinhas de perplexidade e encantamento de ver tudo aquilo… Mágico! Os pobres cachorros saiam em disparada de “rabos entre as pernas”... D. Maria Luiza só dizia algumas palavras: “Filho, já chega!”… E depois ele ria, lembrando pra gente como os cachorros fugiam, dai ele soltava uma de suas expressões que ficaram marcantes: “Tá feito Vaca?!?”… Era interessante que na volta pra casa, a gente não via mais nenhum dos cachorros… Era muito divertido… E muitas vezes o passeio terminava quando a gente ia comprar drops colorido numa vendinha perto da casa da tia Amparo... Andar com ele era aventura e diversão na certa, coisas bem inusitadas sempre aconteciam... Agora a lembrança de ir no centro da cidade de Fortaleza, na praça do Ferreira tomar Caldo de Cana e comer um pastel, tenho certeza absoluta que meus irmãos jamais esqueceram… Era mágico!!! Aquele Caldo de cana bem geladinho à prova de dor de garganta, moído na hora… Caia numa vasilha de alumínio escura de tanto que era usada, amassada e suja, claro… E o pastel, que raramente vinha com recheio de carne ou queijo...Pedíamos com recheio, mas ficávamos procurando a cada mordida, até o final do pastel, pra saber onde havia ficado a carne ou o queijo...rsrsr...muito bom lembrar disso...Lembro que a alegria era contagiante entre nós, quando Seu Lourival anunciava a hora de ir tomar o Caldo de Cana com Pastel, depois de termos passeado no centro da cidade...D. Maria Luiza também sempre estava presente...Fomos muito felizes, e sabíamos!!!...Nessa época Sr. Lourival trabalhava nas Docas do Porto do Mucuripe...Lembro de uma grande 83
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festa de Natal, onde nós ganhamos uns caminhões grandes, vinham dentro de um saco transparente cheio de bombons... ...Fomos estudar no colégio 21 de julho, um colégio particular. Nosso Pai ia nos deixar pela manhã e quando terminava a aula, voltávamos sozinho pra casa, sem errar o caminho...Na maioria das reuniões de Pais da escola, era Ele quem participava...Portela Neto era sempre o que melhor ia bem nos estudos...era líder e também orador de turma...Nosso Pai ficava cheio de orgulho...Passamos à estudar no período da tarde e sempre quando chegávamos era Ele quem passava à limpo nossas tarefas, como disse anteriormente...O cheiro de livro novo no Inicio de cada ano escolar era marcante...fazíamos a maior festa, no dia que ele chegava com o material todo novinho... A Ana Lucia escrevia nossos nomes em todo material...Bom demais lembrar disso também...A Ana Lúcia se ocupava de tudo direitinho...Quando ela foi morar em Cayenne, repeti de ano...Senti muito a sua falta, aliás, todos nós... Me recordo que nessa época, eu sentia muitas dores de cabeça, que foram curadas com gemada de ovo de pata, feitas com muito carinho pela Nossa Mãe... Fui crescendo e entendendo que nós tínhamos duas irmãs...A Ana Lúcia, que estava sempre pertinho da gente e que nos ajudava e ajudava nossa Mãe e a Ana Maria, que morava longe e que quando o carteiro chegava no portão de casa e gritava: “correio”, nós já sabíamos que naquele dia teríamos noticias dela… éramos habituados a isso… Isso aconteceu com o Francisco José também… Durante muitos anos eu sabia que tinha um irmão que morava no Rio de Janeiro… D. Maria Luiza viajou muitas vezes pra lá, quando voltava de viagem, trazia fotos... e eu cresci na expectativa que um dia estaríamos todos morando na mesma casa com nossos pais… Me recordo de uma viagem da D. Maria Luiza ao Rio de Janeiro, no ônibus da Itapemirim, por três dias e três noites… Só tínhamos noticias quando o ônibus chegava ao destino final… No dia 84
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marcado pra ela chegar, esperávamos noticias e as noticias não chegavam, ou seja , o telefone da D. Anastácia não tocava… Nosso Pai foi até a rodoviária e era assim na época, pra saber o que teria acontecido… E lá soube que o ônibus havia tido um acidente e por pouco não aconteceu algo mais grave… tudo ficará bem, e Sr. Lourival ficou aliviado quando conseguiu falar com D. Maria Luiza, já no Rio de Janeiro na companhia dos nossos irmãos... Outra predileção do nosso Pai era ir às feiras livres da cidade… Parangaba, Messejana, na av. José Bastos, lembro de todas. Lembro de ter ido, uma vez à feira de Parangaba com nosso Pai, num fusca branco... Aguardávamos o final do plantão de trabalho da D. Maria Luiza, no Hospital Frotinha, bem cedo do dia… Eu, Portela Neto e o Paulo Henrique… Um detalhe aqui precisa ser dito: D. Maria Luiza cumpria uma jornada de trabalho de doze horas, chegava lá as seis da tarde e saía sempre às seis da manhã. Chegávamos por volta das cinco da manhã, e nosso Pai avisava pra quem estivesse lá no plantão, junto dela, que nossa mãe estaria saindo naquele momento, e quem pudesse ou quisesse que ficasse… D. Maria Luiza muitas vezes ficava constrangida em sair e deixar o posto de trabalho uma hora antes, mas as amigas sempre facilitavam as coisas pra ela, pois ela sempre estava disponível e atenciosa com as amigas de trabalho, mas na maioria das vezes íamos pra feira comer panquecas feitas na hora, enquanto ela terminava sua jornada... E numa dessas incursões à Parangaba, à medida que iamos adentrando a feira, os cheiros de temperos, de comidas cozidas em fogareiro de lata envolvia tudo… Chegamos a uma barraca, sentamos numa mesa baixa com bancos de madeira e lá enquanto ele comia panelada ou sarrabulho, que ele gostava muito, nós comíamos “panquecas”, feitas de farinha de trigo, ovos e açúcar, que nunca mais, em qualquer outra ocasião na minha vida comi igual… Era muito bom fazer esses passeios com nosso Pai… Eu sentia que ele se divertia e nós mais ainda… Ah… ele 85
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sempre levava algo pra D. Maria Luiza comer, era uma tapioca, uma panqueca, uma fatia de bolo… nunca deixou de levar algo pra ela... Vivemos muitas coisas boas, mas também muitas coisas tristes. Uma das coisas tristes que lembro muito bem, era no dia que íamos cortar o cabelo. Íamos sempre os três juntos, eu, Portela Neto e Lourival Jr com o Sr. Lourival num salão de barbearia, próximo da nossa casa do José Walter… Numa ocasião, acho que eu já tinha uns onze anos de idade, chegamos lá e o tal barbeiro foi logo perguntando como iriam ser os cortes… Nosso Pai sempre respondia: O mesmo de sempre, corte tradicional… Só que nesse dia o Nosso Pai não ficou pra acompanhar até o final… Falou pra gente, quando terminássemos, deveríamos voltar pra casa, os três juntos… É necessário aqui mencionar algo, pra ajudar melhor compreender a cena que vivemos e que ficou marcada pra sempre: o corte tradicional na época era literalmente sentar-se na cadeira do barbeiro e num piscar de olhos já estava tudo pronto, pois o tal barbeiro passava uma máquina, que mais parecia um alicate quadrado, onde ele punha uma gillete e saia apertando aquele aparelho na nossa cabeça, e muitas vezes o aparelho grudava no couro cabeludo, puxando os cabelos, arrancando-os e deixando um vazio… ou seja, nossas cabeças ficavam parecendo uns cocos descascados à faca… muito triste isso… E ai a gente voltava pra casa mais que depressa, pra não encontrar ninguém dos nossos coleguinhas da época pelo caminho… Mas agora vem o melhor da “História”… Eu e o Lourival Jr, como éramos os maiores, talvez achássemos que poderíamos resolver a situação e sairmos ilesos e felizes na cena… Muito timidamente, pedimos ao barbeiro pra que ele não cortasse do jeito “tradicional”, como nosso Pai queria… O barbeiro, conhecendo o Sr. Lourival, não ficou muito convencido da nossa proposta, mas tentou disfarçar e cortou um pouco menos que de costume… E lá vamos nós, todos felizes e contentes de volta pra casa, um rindo do 86
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outro, porque a anatomia de nossas cabeças nunca foram lá esses modelos de simetria… Chegando em casa Nosso Pai foi fazer o check-list e logo viu que alguma coisa não tava certa… Voltamos no barbeiro, e Sr. Lourival, foi logo perguntando pro barbeiro; “O que ele pretendia com aquele feito?”… Não sabíamos o que fazer de tão desnorteados que estávamos… O barbeiro bem descontente com nossa proeza deu o troco...Foi o pior corte “tradicional” que já fiz até hoje… Nunca mais voltamos lá! Felizmente nossos cabelos cresceram… Lembro de um episódio bem parecido também… Eu já era um pouco mais crescido, devia ter uns dezesseis anos, e tava na “moda” cortar os cabelos curtos e deixar um “rabinho” atrás, no “pé” da cabeça… Quando chego em casa me deparo com Sr. Lourival conversando com o Washington e a Valda no jardim, e quando ele me vê faz um elogio, e pede pra ver como ficou o corte por detrás...surpreso fica ao ver o tal “rabinho”… Ele me pergunta se eu estava “feito vaca”, entra e vai pegar uma tesoura e corta o “rabinho”… fiquei muito triste, e fui consolado pela Valda e o Washington... Outros episódios tristes, era quando ele estava muito contrariado com os acontecimentos e por algumas vezes descontava suas contrariedades nas mesmas proporções de nossas teimosias… Quando teimávamos e ficávamos fazendo barulho perto dele e ele começava a zangar-se, quando menos esperávamos recebíamos o troco… Quando íamos dormir ele vinha nos consolar e pedir desculpas, com seus cheiros de barba por fazer inesquecíveis... O Acidente do nosso irmão Washington, que ficou alguns dias “fora do ar” no hospital… Lembro de ir algumas vezes no hospital, e lá tinha muito cheiro de éter, num apartamento no final de um longo corredor… O quarto estava sempre cheio de amigos e amigas dele… amigos de quando ele trabalhou no Bradesco… Nossa Mãe andava muito triste nesses dias… talvez me recordo disso, por que ele foi o primeiro marinheiro a voltar pra casa, e brincávamos muito quando ele estava em casa… Lembro do 87
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ronco da sua moto Honda CG 125 amarela… Sr. Lourival não era muito simpático com a ideia do Washington andar de moto, e D. Maria Luiza não falava muito sobre o assunto… Muitos anos depois, após o falecimento do Sr. Lourival, descobrimos o porque dele não simpatizar que os filhos não tivessem motos… O Washington encontrou na casa da tia Neném, uma foto dele, Sr. Lourival numa grande moto... ele em sua juventude possuiu moto e era um dos líderes de sua turma na época... A partida de nossa irmã Ana Lúcia foi mais triste ainda, pois já erámos crianças crescidas, não necessitávamos de muitos cuidados, mas ainda sentíamos muito sua falta desde sua ida pra Cayenne...Via nosso Pai nervoso, pois as noticias que chegavam eram pontuais e curtas, e também via nossa Mãe muitas vezes chorar baixinho...Sr Lourival nessa época já trabalhava como administrador na Fazenda, em Canindé... As mudanças foram acontecendo e estávamos crescendo... Nesse período Sr. Lourival trabalhava na Fazenda e nós já estávamos estudando em colégio de segundo grau...Com a mudança da Ana Lúcia pra Cayenne, nossa mãe se desdobrava nas tarefas de casa...D.Maria Luiza sempre muito intuitiva, fazia tudo com muita calma e sempre silênciosa vivenciava juntamente com cada um de nós, e muito sabiamente, deixava que cada um dos filhos fizesse sua parte...e em nosso Pai aqui e acolá começava á manifestar-se alguns anseios inconscientes...Bastava sentir-se muito apregoado em sua rotina de trabalho, e lá estava ele, mudando tudo que foi construído com zelo em alguns anos, pra se lançar num universo, criado por ele mesmo, cinzento e incerto...Se fosse apenas pra “relaxar”, como usualmente é dito, mas percebia-se e era revelador, sua mudança de caráter, chegando mesmo com pinceladas de loucura, quando ele experiênciava o álcool ... Penso eu, que bastaria a boa vontade em melhorar e reconhecer os 88
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erros, tudo seria bem diferente... O Álcool é uma das formas enganadoras de sentimentos… Depois que amadureci, me veio o entendimento e compreensão das suas várias atitudes… suas fugas, seus receios e medos contrastados com suas qualidades... repousava nele um homem culto, cheio de sensibilidade e amor ao próximo, apreciador das coisas verdadeiras e simples da vida, amante da Natureza, das plantas e animais… Amava nossa Mãe à sua maneira, com gestos de carinho e muita atenção, talvez em compensação aos muitos desfeitos e contrariedades provocados… Com a mesma capacidade de falar de maneira objetiva, com palavras rebuscadas, reconhecer de ouvido os acordes de uma música, ouvida no rádio e instantes depois tocá-la numa gaita, falar de algum autor erudito, ouvia o rádio, lia o jornal, assistia à TV e muitas vezes escrevia aos jornais artigos do cotidiano, gostava de falar de geografia e politica, cinema e artes, era também capaz de mexer na terra pra criar um canteiro de legumes e hortaliças no fundo do quintal, criar animais… dizia ainda muitas vezes, que um dia iria morar “nos matos”, pois a cidade já não era mais seu habitat, levaria somente sua lamparina, a rede e o rádio… D. Maria Luiza e nós, não estávamos incluídos nesse seu projeto… Falava apenas pra desabafar, da atmosfera que os fatos da época mexiam com ele… ou era fuga mesmo... Usava sempre um lenço de tecido nos bolsos, assim como um pente de bolso, usava vaselina como gel de cabelo, que na época comprava-se em pedaços na farmácia… quando acabava a vaselina, ele usava mesmo o óleo de cozinha direto nos cabelos… usava as gravatas e calçava as meias que ganhava à cada ano por ocasião do dia dos Pais… acessórios presenteados por intermédio de nossa querida tia Amparo… Só não entendia o porquê dele só ganhar, cintos, lenços, meias e gravatas todos os anos… gostava de usar uma lamparina à querosene todas as noites ao pé da rede, antes de pegar no sono… levantava cedo da manhã e logo 89
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queria “desmanchar o circo”, como ele mesmo dizia em relação a não deixar ninguém deitado dormindo até tarde… Depois que já estávamos um pouco mais crescidos, podíamos dormir um pouco mais nos finais de semana... Nosso Pai era também um, digamos assim, “Admirador da Velocidade”, e claro tinha muita coisa pra contar… Lembro de sua predileção por Jipes… Lembro que ele nos levou pra passar uns dias na Fazenda em que trabalhava, em Caridade, cidade que ficava próxima do município de Canindé, no interior do Estado. Íamos sempre nas férias, ou quando tinha um bom feriado...Me recordo dele falando que precisava ir até Canindé para buscar um Jipe que havia comprado...e fomos juntos, como sempre, Eu, Portela Neto e Lourival Jr… Só lembro que pegamos esse Jipe, mas o mesmo não andava mais que trinta quilômetros por hora… Nosso Pai tentou forçar pra que ele andasse mais rápido e dai o Jipe quebrou… Olhamos um pro outro e nosso Pai meio bravo disse: Vocês vão embora que'u fico pra levar o Jipe pro conserto… Pensei assim: Como nós vamos embora e como ele vai consertar esse Jipe aqui no “meio do nada”… Ora, isso lá era problema pro Seu Lourival.... Gostava demais quando ele tinha que resolver algo e de repente do nada ele resolvia tudo em poucos minutos… e foi o que aconteceu… Estávamos na beira da estrada e daí o primeiro carro que apareceu, ele fez sinal pra parar… Nós três entramos nesse carro de carona e ficamos esperando Seu Lourival na cidade mais próxima dali… uns quarenta minutos depois ele chega com o Jipe e fomos pra Fortaleza com a confiança de que tudo daria certo... e deu certo! Lembro perfeitamente do barulho que a aderência dos pneus faziam naquela estrada de asfalto comido pela erosão… Ele, Sr. Lourival tinha uma verdadeira admiração e afeição por esse tipo de carro… Foi com esse Jipe que eu pus em prática, de fato, meu aprendizado de motorista… Qualquer chave era suficiente pra pôr o motor pra funcionar… Fato que não demorou muito pra que o Sr. 90
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Lourival descobrisse. Fazíamos verdadeiros rallys pelos terrenos descampados do bairro, muitas vezes até a gasolina acabar… Fazíamos tudo isso na sua ausência, enquanto ele viajava pra fazenda, onde trabalhava… quando chegava sempre percebia que havíamos “mexido” no Jipe... Nessa época eu já tinha uns quinze anos, e nosso pai estava numa transição muito boa, alegre, de certo modo disciplinado, com vontade de trabalhar e entusiasmado pela vida… talvez, ao meu ver, tenha sido sua última fase mais produtiva, enquanto trabalhador. Em nossa casa vivíamos uma certa “fartura”, ou melhor dizendo, uma boa colheita, pois vivíamos tempos melhores do quê aqueles que nossos irmãos mais velhos viveram… estudávamos em escola particular, viajávamos nas férias com nossos amigos, ganhávamos mesadas, mesmo que só dava pro lanche numa saída com os amigos, mas já era substancialmente relevante e bem vinda, nossa mãe comprava algumas roupas e calçados pra gente no centro da cidade, comíamos bem e tomávamos muito refrigerante... O trabalho na fazenda lhe trouxe muito entusiasmo pra muitas coisas em sua vida. A Fazenda em Canindé me deixou muitas lembranças, gostava demais de ir pra lá… Viajamos muitas vezes em cima de uma camionete… Enquanto a camionete percorria o asfalto tudo era tranquilo… o vento no rosto, a paisagem dos carros… mas quando estava próximo da fazenda, tínhamos que pegar uma estrada de barro batido de cor vermelha… chegávamos no destino final cobertos de barro vermelho… Sr. Lourival até fez um bom trabalho por lá… Organizou trabalhadores, construiu açudes, escola e até mesmo uma pequena mercearia, onde ele mesmo vendia artigos diversos e alimentos, levados de Fortaleza pros moradores comprarem... Vi muitas vezes ele montar um cavalo que se chamava Capitão… um cavalo arisco, que ninguém tinha 91
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coragem suficiente pra montá-lo, senão ele mesmo… destemido que ele era tirava de letra… era montar e o cavalo saía em disparada… No período de chuvas, vi um riacho de pedras se tornar um riacho de aguas clarinhas, onde a gente caminhava com água na canela… acordávamos bem cedo pra tomar leite mungido, apanhado numa caneca, direto das tetas das vacas... Numa dessas manhãs o Paulo Henrique, devia ter uns sete ou oito anos de idade, tomou o leite e não aguentou… Depois de tomar o leite, sempre íamos comer pão, bolo, cuscuz e o que mais tivesse sendo servido na casa grande da fazenda… O Paulo Henrique nesse momento sumiu… Procurávamos por ele, quando de repente encontramos um rastro que levava à um banheiro no final do corredor nos fundos da casa… havia uma escada até o banheiro e o rastro só aumentava… subimos e encontramos o Paulo Henrique sem roupas, porque o leite havia lhe dado uma diarreia, e ele tentou, mas não chegou à tempo no banheiro… depois de limpado a sujeira, nosso Pai lhe deu bananas pra comer... Foi na Fazenda que eu aprendi à montar cavalo, à gostar de jipe, o carro preferido do Seu Lourival… ele teve vários... Nosso Pai viajava pra Fazenda e o jipe ficava na garagem… Eu e o Lourival Junior nos acostumamos a “brincar” com esse novo brinquedo… Juntávamos nossos colegas do bairro e íamos andar no jipe até a gasolina acabar… muitas vezes íamos até o posto comprar gasolina numa garrafa, pra poder voltar pra casa… deixávamos o jipe na garagem bonitinho e tudo bem… Certa vez quando fui ligá-lo, não reparei que estava em marcha, ele deu um salto pra cima da parede, deixando uma rachadura, quase acontecendo um acidente...Fazíamos tudo muito calculado nos mínimos detalhes, pra tirar o jipe da garagem, que nem D.Maria Luiza percebia nosso movimento...só ia perceber nossa ausência algumas horas depois... Nosso Pai só não gostava de chegar de viagem e não 92
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encontrar nenhum de nós em casa… Lembro de uma vez que ele chegou de surpresa… Estávamos os três procurando o quê fazer, “desbravando” as terras do Montenegro, terreno grande, fácil de entrar, pulando ou passando por baixo das cercas, que ficava na fronteira do bairro José Walter, com lagoas, mangueiras, pés de caju e muito grande em extensão… o mato alcançava os joelhos… Coincidência ou não, nesse dia fomos expulsos por um dos moradores que havia no terreno, e na correria, com muito medo, perdi meus chinelos… conseguimos sair do terreno ilesos, porém sujos de lama, pois havia brejo de nascentes de água e eu estava descalço… Atravessamos a rua e eu sentia vergonha daquele estado… caminhávamos em direção a nossa casa… Uns dois quarteirões antes de chegar em casa, ouvímos os gritos do Seu Lourival, chamando por nossos nomes… nos entreolhamos e confesso que não sabia se chorava, ou se me escondia em qualquer lugar… sentia pavor ao ouvi-lo gritar… mas não havia outro jeito, tínhamos que voltar pra casa com medo ou sem medo, com gritos ou sem eles… Me recordo bem da cena… Seu Lourival parado no portão e quando nos viu estava muito bravo, cara fechada de poucos amigos… À medida que entravamos, ganhávamos o “passaporte carimbado” no pescoço… Cai no chão num pavor indescritível, levantei-me na velocidade de um raio e corri pra dentro de casa, eu não sabia o que fazer… D. Maria Luiza chegou pra nos socorrer e ele só gritava conosco… fomos tomar banho… Ele não admitia que ficássemos “perambulando” por ai, na sua ausência… Nossa Mãe, muitas vezes nos impedia de sair, mas com três pré-adolescentes em casa e um mundo inteiro à desbravar, era quase impossível pra ela, depois de tantos outros filhos… fazíamos de tudo pra sair, mesmo escondidos sem ela perceber... Quando chegava a hora de ir pra cama dormir, Seu Lourival sempre vinha fazer um carinho na gente e nessas 93
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ocasiões sempre se desculpava pelas grosserias e nos enchia de carinho e cheiros… Ali acabavam os ressentimentos… D.Maria Luiza pedia que tivéssemos mais atenção de não fazermos mais aquelas travessuras... Muitos anos passaram-se de todas essas vivências até os dias de hoje… Crescemos e vimos muita coisa mudar em nossas vidas, talvez meus irmãos tenham a mesma opinião... Na minha opinião o que não mudou foi o olhar que tenho diante das situações e de como me sinto capaz e verdadeiro... A DESPEDIDA... Tenho a lembrança daqueles últimos dias, em que sua respiração se tornava ofegante a cada movimento ou atividade que lhe exigisse um pouco mais de esforço… Seu olhar era distante e por vezes suplicante... Numa tarde de quarta feira, não compreendendo muito bem aquele sentimento que me envolvia, num misto de saudade, carinho e gratidão, me despedia daquele ser humano que findava parte de sua jornada aqui entre nós e iniciava uma nova fase de sua vida em outra matéria... Não imaginava que naquela quarta-feira muita coisa mudaria em nossas vidas... Eu trabalhava numa jornada de seis horas num setor do Banco Real em Fortaleza, atividade que ele, Sr. Lourival tanto valorizava… Saindo de casa à tarde pra ir pro trabalho, abrindo o portão sempre me deparava com ele sentado numa cadeira de balanço, em frente nossa casa, lendo o jornal… Nesse dia ele não estava lá como de costume… Olhei à minha direita e lá estava ele ao longe, como se estivesse dentro de um túnel que se formava e se estendia até o final da rua… Aproximou-se como sempre fazia, me abraçou e dando aquele “cheiro”, encostando seu rosto de barba por fazer ao meu rosto… suas mãos estavam frias… o 94
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meu olhar encontrou nele a fragilidade e a humildade que geram àquele sentimento de cuidado, e era como se ele quisesse me dizer algo mas, que nem ele mesmo sabia ao certo… nítido era seu cansaço e sua entrega naquele momento, que foi nossa despedida… Quando do retorno pra casa, um sentimento me inquietava e a vontade de chegar em casa era crescente… Do portão de entrada da nossa casa já vindo ao meu encontro uma vizinha me relata o acontecido… Sr. Lourival havia ido ao hospital “às pressas”… no instante seguinte o telefone toca e era nossa Mãe do outro lado da linha, que aos prantos, noticiava a partida do seu Querido Amado… Frações de segundos se passaram e me veio a ideia de ir vê-lo… Naquele momento também passou em minha mente o pensamento de que talvez chegando lá no hospital, eu pudesse encontrá-lo ainda com vida, ou fazer algo pra tentar trazê-lo de volta a vida terrena, pro nosso convívio... Recordar-se do passado, é trazer pro presente o que a vida nos proporcionou como oportunidade de aprendizado e crescimento… é a tentativa de reviver tudo outra vez com um novo olhar… talvez com novas atitudes, menos rigidez, mais paciência, dedicação e Amor... Tudo é tão rápido e o tempo parece nos envolver com seus acontecimentos...mas o tempo é um só… nós é que adentramos nesse tempo, preenchemos um espaço e nele fazemos nossa história… o como, o porquê, o quando e o onde essa história vai acontecer, só depende de nossas escolhas... Aprendi que a humildade, a alegria, a resiliência e a gratidão andam juntas... As sementes que semeamos vão sempre brotar novos ramos… O reconhecimento nos leva ao aprendizado... Minha Alma enche-se de Gratidão por ter tido o destino conduzido ao reencontro com esses seres humanos, que me deram abrigo e oportunidade de viver em seu convívio… seres humanos a que chamo de pais...
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RELATOS DO PORTELA NETO Nasci em 1968. Fui o terceiro da segunda geração. Mas escrevo essas linhas em 2016, num momento difícil do meu país e não posso disassociar o tempo e o espaço onde essas linhas são escritas. Minhas lembranças são proporcionais às dificuldades que minha mãe e meu pai enfrentavam na época. Nasci em Itapipoca e não tenho lembranças desse tempo. Lembro-me sim da casa que ficava na Rua Julio César, em Fortaleza, o campinho de futebol na frente de casa, o corredor comprido da casa, os pés de cana. Lembro dos banhos de quintal, um hábito que preservo até hoje e que meus filhos também adotaram. Me soa liberdade quanto faço isso. A lembrança de quando, brincando, pusemos fogo no guarda roupa onde ficavam os ternos de meu pai, mas não lembro do castigo (rsrs). A mudança para o Bairro José Walter, distante a época do centro da cidade, mas um desejo realizado de minha mãe, a casa própria, num tempo onde, deiferentemente de hoje, casa própria era utopia. O primeiro almoço ainda na mudança, sentado no colchão na sala com prato a minha frente. Depois ficar na ponta dos pés e olhar os móveis em cima do caminhão. Meu castelo, rua 53. Nunca tive um quarto só pra mim. Coisa dos mais velhos. O quarto e a cama de molas. Mas ali pude explorar a liberdade de dormir onde queria. Chegava a noite e escolhia o local, isso pela generosidade do meu pai em ter colocado armadores de rede praticamente em toda a casa. Alguns dias da infância foram determinantes na minha formação e na relação com meus irmãos. Os presentes que chegavam no final do ano, trazidos ou enviados pelos “super marinheiros”, a bicicleta azul dobrável, que no domingo pela manhã desembrulhamos, eu, Ricardo Cesar e Lourival Junior, que significava o 96
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rompimento com a classe social, pois quem não lembra da propaganda “eu quero a minha caloi”. O Natal na Companhia Docas, uma tarde inesquecível de lazer, brincadeiras, comidinhas, e os presentes. Meu caminhão tanque da Petrobrás com mangueirinha. Faziamos verdadeiras metrópoles na frente de casa no cimentado de calçada. Coisa chique na época a calçada cimentada! Os almoços de domingo, regados a kisuco feito na panela de pressão com água da torneira e gelo do gás da geladeira. Sabor que até hoje não consigo repetir. Já tentei, mas não se fazem mais geladeiras como antigamente. As tardes de domingo, camas no quintal, subir pelo pé de goiaba, e ler um bom livro. O meu preferido: A ilha dos mistérios perdidos. História que contei e até hoje conto e clássico aqui em casa pra colocar os pequenos pra dormir. Na adolescência, acordar pela manhã e ver a mesa sempre posta com café, leite, pão e manteiga. A famosa bananada pra ir pra escola. Ainda faço isso com Luiz Davi. O primeiro emprego, levado pelo meu pai até a Caixa Econômica Federal, e descobrir o arrojo de meu pai quando disse a frase: Bom dia, meu nome é Lourival Portela, um prazer. Trouxe meu filho pra trabalhar aqui! Ali ganhei notoriedade entre os amigos, afinal de contas trabalhava na Caixa Econômica. Mas também perdi ali uma parte importante da minha adolescência, pois foi uma época difícil, que dispensa comentários maiores. Receber os amigos em casa era coisa boa. Minha mãe, nem meu pai, nunca se negaram a receber os meus amigos. Mesa farta. Panelada, rim, sarrabulho, a famosa sopa na mesma panela de pressão, com tudo que meu pai botava o olho e que tivesse no fogão e o toque “master chef”: dois tabletes Knorr. Barriga cheia. A noite chegava, O famigerado Jornal Nacional que já ali conduzia mentes e corações. Não muito diferente do que faz hoje. Gostava de esperar o final do jornal pra mostrar a meu pai e minha mãe meu boletim. Sempre foi assim. 97
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Aguardava em silêncio, eles olhavam por boletim, olhavam pra mim, de novo pro boletim e no final, aquele sorriso e abraço. Mão na cabeça e parabéns. Missão cumprida. Nem tanto pelo 10,0 ou 9,5, mas, proporcionar alegria aos dois! O futebol do domingo, o BRADESQUINHO, com as camisas que Washington conseguia no BRADESCO. Time famoso na redondeza. Campeonatos sempre aos sábados no campinho da 34. No final corria pro jardim e bebia toda água que a torneira pudesse dar. Depois aquele banho de mangueira. Almoço de frango, que só nos fins de semana a gente podia. O Opala, bem o opala verde de Washington foi um capítulo a parte. Sempre que ele chegava, eu pegava a chave, dava uma geral e a noite sempre liberado pra dar uma volta. Ricardo César e Lourival Junior nem tanto. Uma vez tentaram dar partida com a chave da porta e no Chevette amarelo do Francisco Portela, fizeram ligação direta, mas quando dobraram a esquina ficaram sem gasolina alguns quarteirões depois. Registrando que pro meu pai, carro ficar sem gasolina era coisa que fazia ele perder o dia quando sabia. O Jeep 58 Marrom, tantas aventuras. Eu, Ricardo César e Lourival Junior. De bicicleta comprar um litro de gasolina em garrafa de coca-cola. Ligação da mangueira de combustível pra dentro da garrafa e o céu era o limite José Walter adentro de olho na garrafa. Consumia rápido. As visitas de meu pai aos filhos casados. Francisco e Washington no JEEP. Ele dirigia e minha mãe do lado. Nós quatro, Paulo Henrique, eu. Ricardo César e Lourival Junior atrás. Aventura total e rindo muito, pois minha mãe fazia a viagem inteira no papel de co-piloto. Olha o carro, olha o menino, olha o sinal, olha, olha, olha. E meu pai retrucava dizendo: Quando você não vem, eu sinto falta! Sou o homem que sou, o pai que sou, o marido que sou, o cidadão que sou, o ser humano que sou. A soma das energias desses seres humanos que a vida me deu. 98
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Meus irmãos, minha irmã, meus sobrinhos e sobrinhas pra quem sempre saúdo com a frase: E aí tio, Blz?. Sem esquecer jamais meu nome José Lino Portela Neto eu não poderia existir sem eles. Seu Lourival e Dona Maria Luiza..............Meu Pai e Minha mãe !!!!
Família do Portela Neto Waleska, Pedro Henrique, João Vitor e Luiz David
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RELATOS DO PAULO HENRIQUE PRIMEIRAS LEMBRANÇAS As minhas primeiras recordações de infância me remetem à casa em que morávamos na Rua Cinquenta e três, no bairro José Walter, em Fortaleza, quando ouvia a D. Maria Luiza cantando uma música de ninar enquanto embalava minha rede no corredor de casa, antes de pegar no sono sempre escutava ela pedir ao Sr. Lourival pra continuar me embalando pra ela terminar os afazeres na cozinha, depois que a canção acabava os embalos da rede é que me faziam sonhar… Eu devia ter uns quatro anos de idade (mais ou menos). Pela manhã eu acordava com o balançar da minha rede, mas dessa vez era por causa da passagem dos irmãos pelo corredor, e do papai desarmando sua rede. Eu ficava acompanhando as vozes e tentando reconhecer aqueles vultos que circulavam ao meu redor, o som do chuveiro e o cheiro do café que vinha da cozinha, sem falar no canto dos passarinhos que se ouvia lá do quintal… Aos poucos a luz do sol iluminava todo o ambiente e também as vozes iam diminuindo, era a minha vez de acordar e levantar pra escovar os dentes, tomar banho frio e tomar “café com pão”… Era assim que eu chamava o primeiro alimento do dia, podia ser uma vitamina de banana (retirada das bananeiras do quintal), ou um mingau de aveia ( ou maisena ), mas na sequência tinha que ter o “café com pão”. Eu não tinha pressa pra tomar meu café, mas sempre que o rádio tocava aquela musiquinha: “No ar, primeira hora, fonte brasileira de notícia.… Em Brasilia são sete horas, repita… Sete horas”, daí eu sabia que alguém ou alguma coisa estava atrasado, pois era uma correira só quando ainda havia alguém em casa na hora dessa musiquinha no rádio… Papai saia logo perguntando praquele que estivesse ainda em casa: - O que foi que 100
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houve? Porque não saiu ainda, está atrasado... Até hoje me recordo da famosa musiquinha e sempre as sete da manhã se ainda estiver em casa, sinto que estou atrasado para o comprimisso (seja qual for). Antes de começar a ir pra escola, Papai e Mamãe sempre me colocavam pra estudar junto com os demais, eu achava o máximo ter a mesma atenção e ficar junto com Ponê, Ué e Jumjum, estudando e aprendendo o ABC e as vogais, aquela cartilha que eu ganhei era igual a deles. Papai era mais rigoroso, e quando a gente errava ele fazia repetir tudo do começo, até acertar todas as letras. Ficar ali sentado no colo do Papai e repetindo letra a letra, até formar as palavras foi pra mim, uma das maiores descobertas da vida… Meu Pai me ensinando a ler, a mim e meus irmãos… Mamãe reforçando durante o dia o que Papai havia explicado, isso pra mim era a maior demonstração de carinho e cuidado que os Pais poderiam ter com seus filhos… O momento mágico de aprender o ABC, a pura descoberta de um mundo que meus pais estavam “doando” pra nós. Para mim eles eram as pessoas mais sábias do planeta, e foram os maiores “professores” que já tive na vida até hoje. Me lembro do quintal enorme que havia lá em casa, com galinhas, patos, marrecos, passarinhos nas gaiolas, porcos nos xiqueiros, tatus, etc… Sempre haviam bichos naquele quintal. De vez em quando eu notava que surgiam novos bichos, e também que outros desapareciam da noite pro dia, um mistério que mamãe nunca me contava… Descobri no dia que vi ela segurando uma galinha pelo pescoço e em sequida a galinha já estava na panela (toda depenada, tadinha!). No quintal haviam muitas árvores, bananeiras, pés de mamão, coqueiros, pés de cana-deaçúcar… De tudo um pouco podíamos encontrar ali... O momento de maior emoção pra mim, foi quando Papai me chamou pra mostrar o meu pé de goiaba, ele me colocou ao lado dos pequenos galhos daquela minúscula árvore e disse que um dia ela ficaria maior do que eu, e que 101
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eu poderia subir pra brincar e colher as goiabas.… Mas esse é um capítulo a parte que vou detalhar na frente. Lembro de muitas festas naquele quintal, quando Papai acordava cedo ainda com a luz da Lua, pra matar o porco e fazer torresmo e feijoada… Pela manhã muita gente que eu nem sabia quem eram, chegavam lá em casa pra comer e beber a vontade… Mamãe ficava na cozinha o tempo todo, e papai servindo os convidados e contando histórias enquanto aquele povo todo gritava, dançava, brigava e bebia até a noite chegar… Essas festas eu não gostava. As comemorações que mais me agradavam, eram quando papai reunia apenas a nossa família, irmãos que chegavam da Marinha ou de viagem, e confraternizações mais simples, quando depois de almoçar ele armava uma rede embaixo de uma árvore e coloca colchões no chão pra gente deitar também… Ali sim, eram momentos agradáveis e que me trazem boas recordações do nosso quintal. ESCOLA E TRABALHO Quando comecei a estudar, nos primeiros dias tinha muito medo de ficar sozinho naquele lugar, cheio de crianças que nunca havia visto, muito barulho e uma campainha que tocava sempre, e de repente o silêncio surgia e também retornava após cada toque, era a hora do recreio ou a hora de ir embora… Era muito confuso pra mim! Pela manhã Papai me colocava em cima mesa enquanto amarrava meu Kichute, sempre dizia pra eu prestar atenção que no dia seguinte eu teria que amarrar sozinho, mas no dia seguinte de novo ele estava lá amarrando meus cadarços… Mamãe me levava pra escola nos primeiros dias, no caminho ela me falava pra não ter medo, ficar comportado, obedecer a “Tia”, e que depois ela ia me buscar... Na hora do recreio ela me levava “Bananada” ou suco de laranja com biscoito… Me recordo quando a 102
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diretora da escola me dava uns bilhetes e dizia pra entregar para minha mãe, na maioria das vezes era o mesmo assunto, pra mamãe comparecer na secretaria. Só depois de alguns anos eu comecei a entender que aqueles bilhetes da diretora pra mamãe, eram na realidade cobranças de mensalidades atrasadas… Eu passei a entender o valor da educação, das aulas no colo do Papai pra me ensinar o ABC, e das noites perdidas de sono da mamãe costurando na máquina… Eu sonhava em trabalhar, pra ganhar meu próprio dinheiro e ter condições de pagar eu mesmo a escola… Esse era o meu pensamento a partir de então! Quando falava pra mamãe que eu queria trabalhar, ela me dizia sorrindo: “Tudo tem seu tempo, agora vá estudar...”. Um belo dia Seu Lourival me chamou de manhã e disse pra eu me arrumar que ele ia me levar pra apresentar no meu primeiro emprego, eu não entendi nada, mas obedeci e fomos juntos de ônibus até o centro, no caminho ele me explicava como deveria me comportar e cumprimentar as pessoas… Uma viagem enriquecedora e cheia de histórias que ele me contou sobre os seus últimos empregos e as situações mais inusitadas que ele já havia passado. Enfim, meu pai me proporcionou a primeira oportunidade de emprego da minha vida, e junto com isso, também me deu uma grande lição de persistência e sempre procurar fazer o melhor, independente do tamanho do obstáculo, não temer os desafios e aprender… sempre aprender com tudo e com todos!! FILHA E IRMÃ ALÉM DA VIDA Uma das cenas mais marcantes pra mim, foi quando vi D. Luiza chorando sentada na cama no quarto e seu Lourival tentando segurar as lágrimas e consolar a mamãe… Ela tinha acabado de ler um telegrama onde 103
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contava que nossa irmão Ana Lúcia havia falecido... Eu não entendia porque mamãe chorava tanto e não entendia menos ainda porque aquele homem sério e sempre tão forte, naquele momento parecia tão frágil… Foi a primeira vez que vi seu Lourival chorando… Ele parecia inconformado pelo fato de não ter feito nada para impedir o ocorrido, e sentia muita dor… também compartilhada com dona Maria Luiza. Mamãe que até então já havia superado vários obstáculos na vida, demonstrava todo sua delicadeza e sensibilidade com a dor que estava sentindo… Eu sentia que algo estava errado, e também sentia a falta da nossa irmã que estava longe, e que quando nos visitava sempre alegrava a casa e sempre deixava saudade. Após a notícia e durante os dias que seguiram, me lembro de vez em quando observar mamãe chorando, olhando para o céu e papai em silêncio pela casa… As recordações de Ana Lúcia estavam por todos os lugares da nossa casa… Mamãe sempre estava abrindo um pequeno baú onde guardava as fotos e as lembranças que ela trazia de sua viagens… Em cada uma delas mamãe me contava uma história, papai fica ouvindo e em seguida saia de perto para que ninguém percebesse sua fraqueza… Eu gostava de ficar ali na cama ouvindo e observando mamãe falar da nossa irmã como se ela ainda estivesse ali perto da gente. NOITES AO LUAR E RAIOS DE SOL A experiência que mais gostava de fazer era de ficar acordado de madrugada olhando para o céu e tentar agüentar ao máximo o sono… fazia de tudo pra não dormir, mas não tinha jeito, Mamãe ou Papai sempre apareciam no quarto ou na minha rede pra verificar se eu estava dormindo… Quando mamãe vinha me ver ela rezava comigo o “Pai nosso” e “Ave Maria”, quando papai vinha ele só perguntava se eu já tinha rezado, em caso positivo logo em seguida vinha a frase: - Então vá dormir. Em caso negativo 104
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em seguida vinha a mamãe pra rezar comigo. Inesquecível pra mim quando uma noite em que faltava energia elétrica no bairro, papai colocou a rede no jardim pra gente ficar olhando pro céu e observando as estrelas, enquanto ele tocava gaita e nosso cachorro (Bala) ficava uivando… Enquanto isso mamãe ficava a luz de velas costurando na sua máquina de pedal… Aquele céu, a música da gaita e o som da máquina de costura da mamãe eram pra mim quase uma música de ninar. Muito lindo também o dia em que papai me acordou cedo pra passear de bicicleta e ver o nascer do sol… foi o passeio mais alegre que já fiz ao lado do papai, ele me mostrava os raios de sol e apontava para o céu quando ainda se via a lua e algumas estrelas… Ele me explicava que as estrelas sempre ficariam ali, e era por causa do sol que não conseguíamos mais ver o seu brilho, mas que elas estavam lá… Uma verdadeira aula sobre os astros, de um homem simples que conhecia de tudo um pouco e que fazia questão de dividir e ensinar os filhos… Momentos únicos! O QUINTAL E O JARDIM Dois locais que me faziam feliz....o quintal e o jardim da nossa casa....No quintal mandava o seu Lourival, e no jardim Dona Maria Luiza era quem cuidava de tudo. Animais, árvores com frutas, flores e plantas ornamentais… Lá em casa tinha um pouco de cada coisa (ou de cada espécie). Passear pela bananeiras e brincar com as galinhas e com os patos eram os meus passatempos favoritos. Papai ficava me ensinando a alimentar os bichos e mostrava que não precisava ter medo… bastava respeitar os bichos e alimentá-los direito que eles se tornavam seus melhores amigos. Mamãe me ensinava como regar as plantas e como cuidar das flores, sempre me deixava sentir o perfume de cada uma delas, e contava como havia plantado cada uma, de onde elas vinham e como cuidar pra que elas pudessem 105
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crescer sempre. Quando papai plantou o pé de goiaba, ele me chamou e disse: -Hoje ele está menor que você, mas se você colocar água todos os dias, ele vai crescer e vamos construir uma casinha na árvore. O pé de goiaba cresceu e se tornou o local mais agradável pra mim durante toda minha infância, meu esconderijo e minha maior fonte de vitamina C. Papai me dizia que uma goiaba tinha mais vitamina C do que a laranja e que por isso eu podia comer a vontade… Mamãe sempre pedia pra eu tirar algumas goiabas pra fazer doce e cortar, quanto de açúcar e de água… Quando papai fazia o suco, podia ter certeza que sempre tinha bastante doce (risos). Mamãe dizia que o suco do Papai era açúcar com água e um pouco de goiaba.....eu chamava de “Açúco” de goiaba (risos). Sempre que acontecia algo diferente da rotina, uma discursão ou algo triste, eu me escondia no pé de goiaba… e lá ficava pensando na vida… Algumas vezes escutava Papai conversando com a Mamãe na cozinha que ficava bem embaixo da goiabeira. Me recordo de um dia quando cheguei da escola, vi Papai conversando com um pedreiro e apontando para a goiabeira, quando me aproximei escutei ele falando que seria necessário cortar a árvore para fazer um segundo andar na nossa casa....Imediatamente corri pra Mamãe e falei o que tinha ouvido, ela sorriu e disse pra eu ficar calmo, daí eu falei que, se ele fôsse cortar a minha goiabeira eu ia denunciar ele para o Ibama e pra polícia… Mamãe sorriu de novo e me abraçou… Em seguida ela falou que depois iria conversar com Papai e pedir pra não cortar a goiabeira… À noite, antes de dormir, Papai foi na minha rede, me deu um cheiro, sorriu e disse que ia dar um jeito pra fazer o segundo andar sem precisar cortar o pé de goiaba… Dormi aliviado! Assim foi feito e todas as pessoas que visitavam nossa casa ficavam surpresas quando viam uma goiabeira 106
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no meio do corredor da cozinha… A promessa que Papai havia feito pra mim quando plantou o pé de goiaba se tornou realidade… Minha casa na árvore ficou melhor e maior do que eu imaginava… Era a maior casa na árvore de todas! FELIZ NATAL E FELIZ ANO NOVO Durante muitos anos as festas de final de ano sempre foram lá em casa, seu Lourival matava um porco, dona Maria Luiza fazia os pratos natalinos e festivos deliciosos… A família sempre se reunia nas noites do dia 24 de dezembro e no último dia do ano… A casa cheia de gente, eu de férias da escola ficava esperando as ultimas semanas do ano pra dormir tarde e pra acordar cedo pra brincar mais e curtir as férias… Tinha os presentes que papai colocava embaixo da nossa rede ou da cama… o presente que mais me marcou foi um cachorro do Pluto ( amigo do Mickey ) que tinha uma cordinha na coleira e quando eu puxava ele abanava o rabo e sacudia as orelhas, foi o melhor presente que o “Papai Noel” me trouxe. Me lembro também de um final de ano que eu estava doente (acho que era cachumba), onde tive que ficar deitado no quarto enquanto ouvia as músicas, o povo festeiro e o barulho dos fogos na passagem de ano… Acordei com a Mamãe me cheirando e desejando feliz ano novo. Com o tempo e depois que Papai morreu, as pessoas foram deixando de ir lá em casa, as festas ficaram reservadas e com poucas visitas e Mamãe, quando não viajava pra passar o final do ano em São Paulo, preferia ficar sozinha, sem festas.... Lembro de um ano novo (acho que 2005) quando ficamos só eu e Mamãe em casa, recebemos algumas visitas e ela insistiu em não sair pra lugar nenhum, ela queria ficar em casa e descansar pra acordar no novo ano com mais força e mais Luz… Jantamos e ficamos assistindo TV por algum tempo, 107
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quando o relógio mostrou a passagem da meia noite, ela me abraçou e ficamos olhando para o céu iluminado pelos fogos… Ela me falou algumas palavras sobre o que desejava para o novo ano, e me disse pra ter mais paciência, e que tudo tinha seu tempo… Ficamos um bom tempo abraçados e choramos juntos… Depois disso o silêncio… Ela enxugou as lágrimas, eu também… Ela foi para o quarto, rezou e se despediu com um boa noite, eu fui até o quarto, liguei o ventilador pra ela e a cobri com lençol enquanto ela me dizia pra eu ir dormir também porque já estava tarde. Fiquei até ás quatro da manhã assistindo TV e pensando nas palavras dela… pensando na vida e como minha mãe era forte e corajosa… Desejei apenas ter a mesma força e a mesma fé que ela tinha pra enfrentar o diaa-dia. Quando o sono chegou, fui até o quarto dela, me ajoelhei no canto da cama e rezei… Pedi a Deus para preservar a saúde dela e me dar forças pra nunca abandonar minha mãe. Foi uma passagem de ano do jeito dela, sem festa, tranquila e intensa. AMOR E JUSTIÇA Apesar de ter vivido tão pouco tempo ao lado do Sr. Lourival, tive muitos momentos marcantes com ele… Guardei na memória os detalhes das nossas conversas quando ele ficava sentado lendo jornal e eu ficava perguntando o que significava aquelas palavras que não conhecia, pra cada resposta ele tinha uma história pra contar… E quando mamãe estava perto, às vezes fazendo tricô ou crochê, ela também perguntava e tirava suas dúvidas… Eram momentos extremamente enriquecedores. Mamãe quando começou a ler seus livros sobre as leis da natureza e sobre a mensagem da Luz da Verdade, ela sempre lia em voz alta para Papai escutar… quando ela não entendia o significado da palavra na frase, logo seu Lourival explicava, eu ficava deslumbrado com a voz da Mamãe lendo em voz alta e com a inteligência do Papai ao explicar o 108
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sentido daquelas frases e todo o contexto do livro. Naquele momento eu observava os dois juntos ali trocando ideias e buscando o entendimento sobre as coisas espirituais e sobre a vida… Para mim os dois simbolizavam sentimentos fundamentais para nossa vida e para nossa família… O Amor e a Justiça!! Mamãe iluminava nosso caminho com muito AMOR, paciência e coração, ela buscava a conciliação, a conversa e sempre tinha uma palavra amiga, pensava antes de fazer qualquer coisa… Enquanto Papai buscava o lado racional, a JUSTIÇA, a seriedade e tinha o imediatismo como regra, se precisava fazer algo, simplesmente fazia, e pronto. Eles simbolizavam pra mim o AMOR e a JUSTIÇA… A Calma e a Agitação, o Carinho e a Disciplina, o olhar para o céu e o manter o pé no chão, o pensar no futuro e o viver o agora. Meu Pai e minha Mãe pra mim são exemplos de vida, exemplos de Paz e Amor, de Coragem e Fé… Se pudesse voltar a vida e escolher novamente meus pais, com certeza eu escolheria a Dona Maria Luiza e o seu Lourival, para me educar e me guiar na vida terrena !!
Sr. Lourival Portela 109
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Desculpem a ousadia…
Preciso falar. Preciso deixar registrado aqui a minha gratidão em poder ter lido essa história linda, narrada com tantas lembranças distintas e graciosas. Logo nas primeiras páginas entendi o porquê do meu pai ter resistido tanto quando ofertei-me para fazer a revisão do livro, acho que no fundo ele sabia que seria difícil ler isso antes de todos da minha geração e não me emocionar a ponto de querer externar essa explosão de sentimentos que agora ocorre em meu peito. Quantas lembranças singelas e carinhosas… Quanto Amor… Que linda iniciativa! Toda família deveria ter um momento desse. E nisso, parabenizo meu pai por encabeçar esse projeto. Agora a família Portela fica um pouco mais alegre, um pouco mais unida, pela história aqui contada, pelo carinho aqui ofertado. Vózinha (ia chamá-la de Malu, mas sei que não gosta de apelidos, então, reescrevi…)! Quanta força, quanto afeto! Nesse momento admiro mais ainda essa pessoa linda e iluminada que tanto me ensina sobre o amor, a paciência. Vôzinho… É um prazer conhecer sua história, seus gestos marcados na memória daqueles que tiveram a oportunidade se ser seus filhos. Reconheço em seus gestos muito do meu pai e muito de mim. Agradeço por poder agora entender de onde vem meu gosto pelas letras, pela música, pela vida e sua pressa. Guardo seu livro de poesia do Vinícius de Moraes com muito carinho. Nele me inspiro e escrevo versos como os que peço licença para deixar aqui por sentir que refletem esse momento:
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Nós pelo Universo Em tempos de tormenta, Atam-se laços cada vez mais fortes. Nós cegos, esmeros. Abraçam-se mortes e sortes. Nós belos, sinceros. Em tempos de calmaria, Preservam-se os traços mais nobres Nós singelos, fraternos. Eternizam-se os abraços de suporte Nós dispersos pelo universo. Pai, gratidão pelo projeto maravilhoso! Gratidão por ter me dado a oportunidade de participar ativamente dele. Agora entendo onde aprendestes a ser esse pai, que é único! Não tenho nem palavras para definir. Só mesmo agradeço, sou privilegiada, sempre! Que nossas lembranças sempre sejam registradas e compartilhadas para que aprendamos cada dia mais sobre a riqueza de nossas vidas. Com carinho, filha, neta, Lívia Portela.
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