Um Lugar Para Morar

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Índice: Alexandre Patto Floriano Alves Benedito Santos Silva Arodi Garcia Francisco Gerardo Ribeiro Armando Malegne Sofia Habitação na velhice e as repúblicas de idosos Referências

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Um lugar para morar Para onde será que foi, aquele cheiro de casa? Se lá morasse alguém hoje, será que seria igual? E a saleta escura? Decerto ainda está lá… De olhos fechados, saberia esse alguém andar? Ir da cozinha à sala sem sequer tropeçar? Espera! Apaga a luz antes de sair… Mamãe vai ralhar se não apagar! Sai de fininho e sem acordar… Simples, e sempre foi nossa. Se casa é onde está o coração, por que não o contrário? Sim, o contrário! Pois tenho certo que o meu ainda mora por lá.

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As histórias que seguem são dos moradores da República de Idosos do Tatuapé, bairro da Zona Leste de São Paulo. São capítulos de vidas que, com tudo ou nada em comum, se cruzaram num único lar. 4 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 4

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“Eu só pensava que era feliz”

Alexandre Patto

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Alexandre Patto virou bicho. Afastado dos escritórios contábeis, não tinha contato com mais nada daquele cenário familiar. Não viu surgir computador e mal saberia atender um telefone. Um dia, depois de todos aqueles anos, de volta à metrópole, seu irmão lhe diria “Pô, não sabe nem atender um celular? Quem era que fazia os balanços? Quem era o chefe da auditoria na Varig?” Mas como poderia saber que de Lins, no interior de São Paulo, iria à capital, depois até o norte de Minas, Mato Grosso, até o Acre e mais além? Quando se formou em contabilidade não tinha imaginado viver da roça e ser seu próprio patrão. Muito menos passar aqueles anos tranquilos na colônia, onde o que se produzia era consumido, trocado e vendido. Foi assim, sem muita explicação que o tempo o afastou cada vez mais de São Paulo. Parou duas vezes até chegar ao lugar onde passaria metade de sua vida. A primeira foi na década de 70 quando, recémdivorciado, deixou para trás o filho de três meses e partiu para trabalhar em empreiteiras de derrubada de árvores no Mato Grosso. Tinha trinta anos e, enquanto alguns combatiam o trabalho de derrubada junto à empreiteiros, alegando que utilizavam trabalho escravo, ele vivia de carro importado e fartura. Um Landau. Vivia, mas só pensava que era feliz. Lá, Alexandre fez coisas que nunca tinha feito. Numa realidade paralela com sua bebida e dinheiro. A segunda parada também veio sem muito planejar. Mudou-se para o norte de Minas, embarcando num novo projeto. Foi o tempo de encontrar uma nova parceira e, já que a região sofria com a seca, migrar para o longínquo Acre, onde Antonio Alexandre Patto passaria longos anos, lugar que foi seu céu e inferno. Perdido, tão longe de Lins.

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Pedia a Deus todas as noites que lhe tirasse aquelas ideias da cabeça. Sem dúvida, queria matá-la. Traído. Nem um cigarro tinha dinheiro para comprar. “Volte para São Paulo”, seus irmãos diziam. Mas, no fundo, Alexanrde estava só. A solução que encontrou estava bem perto, num restaurante onde acabaria trabalhando por sete anos. De garçom foi a gerente, e aprendeu bastante de cozinha, o que viria a ser uma qualidade apreciada por Maria do Carmo. Foi durante alguns dias de férias no restaurante que conheceu Maria. Quatro de seus treze filhos ainda viviam lá, os mais velhos, que já haviam saído de casa, eram contra a mudança de Alexandre. Na verdade, pensavam que ele estava interessado nas terras, mesmo que a propriedade ainda não fosse regular. Eram oitenta hectares. A colônia era grande, uma das últimas do ramal e ficava perto do rio. Por isso tinham muito angelim, o que quase ninguém por lá tinha. Em compensação, não tinham mogno ou cerejeiras e dessa forma eram feitas as trocas. Com a chegada de Alexandre, se iniciava o processo de legalizaçao da colônia no Incra. Ele era um dos poucos que tinham alguma educação escolar por lá, tornou-se um líder natural. Lá nos assentamentos a maioria era analfabeta. Produziam café e farinha. Bem, foram precisos alguns anos e muitas viagens até a cidade e, por fim, conseguiram legalizar a terra no nome da mulher. Enquanto vivia no Acre, se envolveu também com manejo florestal, instituído no Brasil naquela época. A Embrapa criou um plano de manejo para desenvolver com pequenos produtores rurais do assentamento. Com capital disponibilizado para que os produtores investissem, Alexandre participou da iniciativa. Desenvolveram marcenaria, cursos de capacitação, compraram gerador e secador solar para madeira. Ficou legal por lá. A vida era simples. Dormiam ao anoitecer para levantar bem cedinho e ir para a lavoura. Impossível esquecer. Era aniversário de Maria e ela e lhe pediu que fosse à cidade. Trocavam parte da produção da colônia por outros produtos e, naquele dia, ela havia pedido que trouxesse para casa suprimentos e roupas para sua festa de aniversário. Alexandre chegou em casa só com uma caixa de óleo e um quilo de açucar. Bêbado, não sabia onde estava. Foi acolhido pela mulher, que o banhou e trocou. Tentou dar uma sopa, mas ele não aceitou comer nada. Enfim, colocou-o para dormir e acordar no dia seguinte sem nenhuma ideia do que tinha acontecido. Nem desconfiava do que tinha aprontado. Assim, depois de preparar o café para Maria, como fazia todos os dias, se viu intimado para uma conversa séria. Sentaram-se à mesa e ela perguntou se ele não achava que estava bebendo demais. Veio um ultimato e, ao menor esboço de argumentação, a resposta foi: “Não fale nada, a sua atitude é que vai dizer o que cê vai fazer ou não.” Mais tarde, perguntou o que havia ocorrido na noite anterior. A esposa contou que ele tinha sido trazido para casa carregado por dois outros homens e perdido o dinheiro. Arrependido, Alexandre foi à cidade no dia seguinte e vendeu um porco para comprar o que a mulher havia pedido. Jura que depois desse dia nunca mais bebeu nada. Só mais adiante perceberia, se daria conta do tempo perdido. Então perceberia ter entregado boa parte de sua vida à bebida. 7 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 7

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Rio Branco, Acre. Era uma reunião para reivindicações e também uma solenidade e todos foram para a cidade. Lembra do dia exato: 5 de setembro, dia da Amazônia e seu aniversário. Ele falaria durante quinze minutos, explicando o manejo realizado em suas terras. Só que estava com muitas dores, e chegava sua vez de falar. Foi então que desmaiou. Acordou depois de horas no hospital e foi operado às pressas. Era “nó nas tripas”. Pena que não acabou por aí. Pegou infecção hospitalar e saiu de lá com uma hérnia. Começava ali uma série de enfermidades que fariam mudar sua vida. Foram três meses de internação. Alexandre saiu do hospital livre da infecção, mas a hérnia precisou ser tratada em São Paulo. É que, por lá, os hospitais eram muito precários. Foi então que retornou, e veio só. Já em São Paulo, descobriu uma doença no coração. Artéria entupida devido ao cigarro. Na Beneficiência Portuguesa, passou por outra operação. Em sua colônia, no Acre, não havia telefone e o contato com a esposa foi limitado. Dois anos passados, até poder viajar e descobrir que ela não acreditava mais no casamento. Ficou pensando que tinham sido os filhos dela que colocaram coisas em sua cabeça. Mas, na verdade, nunca soube ao certo o que acontecera.

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Lins, interior de São Paulo. Alguns meses depois de nascer, Alexandre pegou a febre aftosa. Coisa bem grave para quem era apenas um bebê. Não podia mais tomar leite industrializado. Sua fonte de alimento era uma cabra, comprada justamente para isso. Seus parentes contam que riam até não poder mais. É que, toda vez que o bebê começava a chorar, a cabra corria para a cozinha, pois já sabia que era hora de tirar leite.

Antonio Alexandre patto (junho de 2011) UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 11

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“A gente era criança, mas não tinha infância”

Floriano alves

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Cemitério de Vila Formosa, São Paulo. Era tanta caveira que via por lá, que nem ligava mais, chegava até a dar chute se alguma ficasse no caminho. Ele dormia sempre no mesmo lugar, debaixo de uma árvore grande. E não tinha medo não, chegava de noite morrendo de sono, depois do turno limpando o hospital. Nunca tinha vivido assim e não ficou por muito tempo, porque quando descobriram arrumaram um quartinho. Mas não nega que tenha vivido por lá. Catava todas as velas que podia encontrar, juntando tudo num saco. Quem fosse visitar um morto e deixasse uma vela acessa podia esquecer, certamente ela não duraria muito tempo. Era só o sujeito virar as costas para que ela se unisse às que já estavam no saco. Floriano juntava, para depois vender para a fáblica, onde os tocos eram derretidos. Dia de Finados foi uma beleza! Encheu três ou quatro sacos e vendeu quarenta quilos de cera. Andava pelo meio das lápides e, com sua espátula, ia raspando uma por uma, não deixava sobrar nenhuminha. Embora alguns possam até ter imaginado, nada de sobrenatural no sumiço das velas.

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Floriano alves (setembro 2011) 16/11/11 09:54


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Aracaju. Floriano tinha oito anos, mas não levava vida de gente da sua idade. A mãe, inspetora de escola pública, viu que por lá não estava dando. Não tinha mais condições lá em Sergipe. Foi quando veio um pessoal de BH e ofereceu levá-lo junto, dar casa e estudo. Alice entregou. Não era o pai nem nada, o pai já tinha morrido na “Revolução do Lampião”. Mas no fim das contas o menino foi com o doutor Barros para Minas. Pior que ele fez de verdade o que havia prometido. De manhã, Floriano lavava o carro do doutor. Depois ia para a aula. “Vai estudar porque você não pode ficar sem estudar não”, o seu Barros falava. E até que foi tudo bem, até a mulher do doutor morrer. Depois disso ele desorientou. Ficou perdidinho. Por aí, Floriano já devia ter uns 18 anos. Só foi pisar em Aracaju de novo quando soube da morte da mãe.

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Durou só três anos, o casamento com Hermínia. E foi só durante esse tempo também que conviveu com a bebê. Ela era professora, e o pessoal de sua família todo formado. Por isso faziam pouco de Floriano. Se sentia pisado feito capacho. Assim, enquanto trabalhava numa empresa de material de construção, todo o dinheiro ia para sustentar uma vida que não o fazia feliz. “Hoje é quarta, amanhã é quinta. Amanhã eu vou embora.”. Foi isso o que disse. Arrumou as coisas e partiu para São Paulo. Na verdade, só três mudas de roupa e os documentos. Demorou quinze dias para chegar de trem. E como não tinha serviço, foi direto da estação para uma cidade na divisa do Mato Grosso. Lá sabia que poderia trabalhar numa plantação de amendoim. Só que catar amendoim não era muito sua praia. Já no primeiro salário deu o fora. São Paulo, Taubaté, São José dos Campos, Oswaldo Cruz, Belo Horizonte, Lorena, Imperatriz, Pindamonhangaba, Goiania, Curitiba, Oriente. Morou até em cidade que não tem nome no mapa. E trabalhou bastante na indústria de automóveis, na Ford, na GM, e até em outros tipos de fábrica. Também em construtotras. Até então tinha vivido bem.

São Paulo, 1993. Foi depois de uma demissão em massa na Camargo Corrêa que a situação ficou preta mesmo. E em São Paulo tudo é mais difícil. Dormiu na rua por quatro meses. Só fala que dormia, na verdade ficava acordado a noite inteirinha. Assim, olhando para um lado e para o outro. Não gosta nem de lembrar das coisas que viu. Até polícia perseguir e atirar em gente bem do lado dele. Sempre ficava debaixo de uma marquise que nem existe mais. De vez em quando, vinha um pessoal da igreja e ajudava. Uma vez uma moça até cortou seu cabelo e deu passes de ônibus para que pudesse ir atrás de trabalho. Nunca esqueceu disso. Descobriu os albergues por causa da sopa, e lá conseguiu arrumar um pouco a vida. O curso de costura industrial ajudou e o trabalho agora é fazendo pequenos ajustes em roupas, tudo com acabamento manual. Se for homem, tira a medida de pé, se for mulher, sentada. É um jeito especial para não deixar “prateleira” na calça.

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“Eu sabia que, na rua, se caísse não levantaria mais ”

benedito santos silva

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Ninguém viajava de cara limpa. Pudera, trabalhavam por viagem, e o salário dependia disso. Só que naquela época não tinha crack, era perventin. Também fumava maconha e bebia. Seja como for, sempre quis ter uma vida independente. Liberdade. E isso a estrada era capaz de oferecer. Mas Benedito perdeu a cabeça. Caiu no mundo. Antes de sair, os caminhoneiros ganhavam dinheiro só para a ida. Porque apenas chegando ao destino iriam descobrir qual seria a próxima parada. Assim, chegavam a ficar quatro meses sem voltar para casa. De São Vicente até Recife, oito a dez dias. E lugar para dormir era dentro do caminhão mesmo. Foram vinte anos nessa vida, no banco da frente de um caminhão rodou o Nordeste todinho. Íam bem juntos, ele e o toca fitas que era o seu único acompanhante. Benedito tinha se casado em 74, mas ela não estava mais lá. Morreu atropelada por um caminhão de gás, numa avenida de São Vicente. Além dele, deixou para trás a filha Regiane Cristina ainda pequena.

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Benedito santos (julho 2011) 16/11/11 09:54


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Numa de suas viagens, uma curva fez o Mercedes 11-13 sair da estrada feio. Benê tinha tomado duas cervejas e uma caipirinha para não dormir. Depois de dois cochilos, decidiu parar no posto. Então molhou camisa e rosto. Enfim voltou para o caminhão, mas só foi acordar depois de três dias, em BH. A filha foi visitar no hospital, certa de que seu pai iria morrer. Já o próprio, pensava: vaso ruim não quebra. Quando tentava respirar, doía tudo. Foram noventa dias engessado igual ao Cristo Redentor naquela cama de hospital. Mais tarde, quando viu o estado do caminhão, nem acreditou que tinha saído vivo daquela. Tinha feito até promessa, mas como promessa não se cumpre…Primeiro disse que, se ficasse bom, nunca mais dirigiria, mas desistiu da ideia. Para substituir a dívida com Deus, prometeu que subiria de joelhos as escadarias da Basílica de Nossa Senhora, em Aparecida do Norte. Só que chegando lá a coragem foi toda embora. Era muito grande aquela escada. No fim das contas, comprou uma vela com seu tamanho, e pronto. Considerou promessa paga.

Sao Paulo, 1985. Bem em frente ao Mercado Municipal era onde dormia e lá também esperava para descarregar caminhões de abacaxi. Dois mil abacaxis por dez reais e uma marmita. O trabalho durava a noite toda, da meia noite às seis ou sete da manhã e, geralmente, mais dois ajudavam a descarregar. Benedito sabia que, na rua, se caísse na sarjeta não levantaria mais. Sem dúvida foram seus piores dias, dormindo no papelão. E olha que já tinha passado umas boas, vários anos recluso também. Mas nunca tinha pensado que algo assim aconteceria com ele. Ficar morando na rua. Daquele jeito. Ele tentava estar sempre limpo, mas não tinha muito onde tomar banho, pelo menos a roupa conseguia manter lavada. E tinha que dormir com um olho aberto. Claro, coisa boa por lá é que não aparecia. Não raro ele, e quem mais estivesse deitado por lá, tomava jatos d’água durante a noite. Mas foi por ali mesmo que conheceu o japonês, seu Mario. Mostrou ao homem sua habilitação e ele quis saber o por quê daquela situação de rua. No fim, o japonês ofereceu uma chance de emprego para ajudar no frigorífico de seu irmão. A princípio era bem simples. Quando o caminhão chegasse, deveria ir até ele e carregar os traseiros de boi para dentro do frigorífico, pendurando nos ganchos que ficavam boiando por lá. Óbvio que aceitou experimentar. Só que nem o primeiro traseiro chegou ao gancho. Entrando no frigorífico a menos quinze graus, Benedito sentiu seu corpo pesado, e não pelo peso da carcaça. O choque era muito grande e, de repente, pá! As pernas pararam de obedecer. Não íam mais não. E apesar da bota e da roupa especial, o braço também custava se mexer. “Socorre, socorre!”, ouviu gritarem. Pois bem…Ficou todo roxo e foi parar no hospital. Parecia até que iam quebrar no martelo. 22 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 22

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Quando as coisas ainda estavam um pouco melhores, chegou até a levar a filha numa viagem. Apesar de não alcançar nenhum pedal, ela sentava no colo e fingia dirigir. Sempre gostou dessas coisas, a menina. Às vezes se enfiava debaixo do caminhão junto, querendo olhar tudo o que o pai fazia por lá. Só que, depois, não deu mais para ficar com ela. Por causa da bebida e tudo. Veio a sogra querer pegar, mas ele não entregou. Ao invés, deu para a própria mãe cuidar. E foi lá que ficou Regiane.

Depois de cinco viagens seguidas, finalmente tinha descontado uns cheques gordos e podia descansar. Doido para tomar uma cerveja, parou em Limoeiro e foi direto para uma boate. Como tinha estacionado por lá, todo mundo ficou pensando que o caminhão era seu. Paga daqui, paga de lá. Uma beleza. Viu que a nega não tirava o olho dele. E a boate foi esvaziando, esvaziando. Então ela veio, e chamou de benzão. Foi só isso para se derreter todinho. Passaram a noite juntos. No dia seguinte, abriu os olhos e só encontrou seus sapatos e o macacão. Carteira, dinheiro, documentos, chave: ela tinha levado tudo. A porta do quarto, escancarada. O coração saindo pela boca. E agora? Andou pra burro até alcançar o posto rodoviário, rodando o estepe do caminhão, e convenceu um homem que trabalhava por lá a ficar com ele em troca de dinheiro para uma passagem de volta. Foram seis dias de ônibus, para chegar de mãos abanando, sem caminhão. Nada fácil contar para o chefe o que tinha acontecido. Mais tarde, recuperaria o caminhão e ainda trabalharia com ele por mais dois anos.

Sempre gostou de dançar. Tudo que é baile Benedito está lá. Em Água Branca, Santana, Ipiranga. Em 2010, ganhou uma TV, prêmio do concurso de dança que durou cinco sábados. Ainda bem que era rock. O concorrente escorregou na pista. Já todo empapado, Benê ganhou. Vendeu mais tarde o prêmio por mil e duzentos reais. 23 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 23

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“Fui camelô e vendedor a vida inteira. ”

Arodi garcia

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Fenavinho, Bento Gonçalves. Aquilo que nenhum dos colegas queria vender ia parar na mão do Arodi. Se não havia o que falar sobre o lançamento, ele inventava. E a novidade era um saca-rolhas. Uma seringa retirava com facilidade a cortiça, o que não existia na época. Todo mundo achou divertido, mas não sabiam o que falar para vender e sobrou para ele. O segredo estava em observar os detalhes do produto, então, com o objeto entre os dedos, ficou pensando sobre o que poderia dizer. Para ele era fácil… Pensava um pouquinho, assim, e bolava uma conversa boa. Pegou garrafas de vinho vazias, encheu de água e tampou com rolhas. Demonstrou para todo mundo que passasse. “Com o saca-rolhas comum demora muito mais”, dizia. “Metade da cortiça vai para dentro do vinho. Uma trabalhera. Mas com este aqui é rapidinho. E o barulho? Você pode abrir uma garrafa como essa sempre, pode ser com água mesmo dentro… O que importa é que a sua vizinha vai ficar pensando que você toma champagne todos os dias!”. As donas de casa riram da ideia. Mais tarde, um programa de televisão local que fazia a cobertura da feira deu destaque para Arodi e seu saca-rolhas. Não se inibiu. Camelô é acostumado a falar com muita gente, gente de todo tipo. Então conversou com a repórter e repetiu toda a cena ao vivo. No fim das contas, o tal do saca-rolhas até que vendeu bem.

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Arodi (outubro 2011) 16/11/11 09:54


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Veio de Piraporinha, no interior de São Paulo. E boa parte da infância passou na capital. Sempre pegava o bonde da Aclimação, bairro onde morava, para ir ver o Corinthians jogar. Era só de bonde que dava para ir mesmo. Divertida, a molecada em bando fugia para não ter que pagar o bilhete.

Arodi é vendedor nato, ninguém teve que ensinar nada não. Ainda com seus vinte anos começou a trabalhar nisso. E tudo porque, desde pequeno sonhava ver o Brasil todinho. Criancinha, olhava o mapa, imaginando um dia conhecer todos os Estados. Talvez por isso mesmo nunca tenha se comprometido, se amarrado. Mas no fim das contas, viu de ponta a ponta. Viajava vendendo produtos de utilidade doméstica em feiras, que chegavam a durar até vinte dias. E muitas vezes uma emendava com outra, noutro lugar e cada lugar é de um jeito. A Festa do Candango, em Brasília, era muito corrida. Não dava tempo nem de dormir direito. Cinco dias, o dia inteiro. Já em algumas feiras no Nordeste, o calor deixava começar só no finzinho da tarde mesmo. Então o dia era livre, para almoçar, ir à praia, e, quem sabe, até vender algumas coisas por fora…Foram doze anos assim. Arodi também foi porteiro de hotel e trabalhou preenchendo diplomas com a letra gótica que aprendeu na escola, com aquela pena de dois bicos. E mais de camelô. É na rua que gosta de trabalhar mesmo. Sorvete também vendeu, mas o carrinho foi tomado pela prefeitura. Nunca chegou a se casar. Pelo menos não de papel assinado. A equipe não variava muito. De forma que amigos e até alguns namoros dava para ter viajando mesmo. Geralmente não dava problema. Quando voltava para São Paulo, morava em quartos alugados e pensões. Queria mudar… Esse negócio de todo dia a mesma coisa não dava.

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O produto é um homem-aranha. Brinquedinho de borracha que se joga na parede e vai descendo. Com uma placa dobrável de Eucatex ele vai até o centrão, na Rua do Arouche. Joga o homem-aranha lá em cima, no alto da placa que fica apoiada na parede, e espera ele descer. Chama atenção. Até criança cheia de brinquedo bom gosta, por que é simples. Não sabe bem do que é feito aquilo. Coisa da China. Mas vende para tudo que é gente, adulto também. No fim do dia, se é horário de rush, volta para a república de ônibus mesmo. Deixa a placa com uma moça que trabalha lá perto do Arouche, para não ter que carregar na condução lotada. De vez em quando, se não está muito lotado, até volta para casa de metrô. 29 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 29

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“Tinha vinte anos quando pisei no asfalto pela primeira vez”

francisco Gerardo ribeiro

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Sertão do Ceará, município de Sobral, 1965. A casa era pequena e abrigava gente demais. E num lugar que ficava no meio do nada. Francisca Maria da Conceição era devota de São Francisco e teve onze filhos, dez criados. Seis mulheres, cinco homens. Na frente de todos os nomes, fez homenagem ao santo. Teve Francisco Assis, Xavier, Inácio , Gerardo…Francisca Maria, Franci, Luzia, Luzanira e Raimunda. E o lugar ia ficando cada vez mais apinhado de irmãos e filhos dos filhos. A família crescia, mas o terreno não crescia não. Pé no chão, todos já nasciam para ajudar. Gerardo tinha vinte anos e nem sabia o que era escola. Na verdade, a rotina lá era seguir os passos dos pais mesmo. Eles trabalhavam na plantação e cuidavam do gado. Mil dias quentes e secos. Viviam no mato com aquela bicharada. Era tudo muito escasso. Faltava chuva. Não tinha água encanada, não tinha geladeira, não tinha TV, e muito menos rádio. Talvez por isso se lembre bem da primeira vez em que escutou rádio, aos dezoito. Não teve a chance que muitos têm. Mas em 64 decidiu ir embora de uma vez. Foi também quando pisou no asfalto pela primeira vez na vida. Destino: Rio de Janeiro. Aguentou menos de um ano e acabou em São Paulo, a convite de um irmão que também já tinha migrado. De um em um, quase todos eles acabaram saindo do sertão.

gerardo ribeiro (maio 2011) UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 35

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Fez duas coisas na vida, criar os filhos e trabalhar. Seis horas da tarde: início de expediente. A rotina era dura e o trabalho não era fácil. Logo chegavam mil e quinhentos quilos de farinha para que, no decorrer da madrugada, fossem feitos quase trinta e dois mil pãezinhos de cinquenta gramas cada. Ele tinha doze ajudantes, mas tudo devia que passar por suas mãos. A panificadora funcionava sob encomenda, e elas vinham de tudo que é canto. Um frigorífico sozinho já levava cerca de dez mil. Assim, foram anos trabalhando para o português, José Maria, dono do negócio. No ramo de padaria, contando também outros empregos, foram trinta e sete anos. Praticamente toda a vida desde que saiu do sertão. Foi graças a esse trabalho que conseguiu criar os quatro filhos. Por isso também, eles não são analfabetos como o pai.

Ceará, 1974. Aconteceu assim. Voltou aos trinta anos de idade, após ter passado dez longe de casa. Mas foi só para casar. Naquele pedaço só moravam duas famílias. A de Gerardo, e a outra. Virgínia era o nome da mãe deles. Teve vinte e dois, criou dezessete. E no meio desses, estavam as esposas de dois dos irmãos de Gerardo, e a dele também, Maria. Os pais de Maria e Gerardo eram amigos de infância, assim, tudo parecia acontecer naturalmente. Juntou algum dinheiro, casou e logo os dois estavam de volta a São Paulo, onde passaram todos os anos de casados. Foram quatro filhos. Somente há alguns anos, com os filhos mais crescidos, se separaram. Quem saiu de casa foi Gerardo, que não aguentava mais a situação.

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“De calça curta, tive que arrumar emprego e comecei a trabalhar”

Armando malegne sofia

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Vila Mariana, São Paulo, 1949. Dez anos de idade, e a vida não era nada de excepcional. Fora do comum, quer dizer. Prego no pé, catapora, caco de vidro e farpa…Tudo o que acontecia com qualquer criança. Na época, quem curava era o farmaceutico, porque médico não era tão facil assim que nem é hoje. Jogavam bola descalços, e a cidade era melhor. Levava quase uma hora para chegar da Vila Mariana ao Centro, de bonde. Com os irmãos, ia caçar passarinhos na 23 de maio, onde ainda tinha muito mato. O leite era mais gostoso. A maçã era mais gostosa, vinha só da Argentina. Sempre era sua mãe quem fazia a feira, e não faltava nada de comer, tinha tudo do bom e do melhor. Apesar de não ser muito de dar presentes, carrinhos e essas coisas, o pai não deixava faltar comida de qualidade. Antônio e Domingas, eram os nomes de seus pais. No Natal era tanta coisa que não dá nem para imaginar. Todo ano era montada uma árvore grande e repleta de bombons. Nossa Senhora. Eram muitos, centenas deles. E, pequenino, Armando pensava: “Se eu roubar um ninguém vai reparar”. Roubava mesmo, esticava o corpinho inteiro e alcançava alguns. Não podia demorar muito tempo para chegar o Natal, se não a árvore logo ficava pelada. Mas isso tudo não durou muito não. Uma pena. Já aos quinze anos começou a trabalhar no banco e disse adeus à vida que levava.

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Armando sofia (novembro 2011) 16/11/11 09:54


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Brasília,1960. Armando acompanhava a inauguração de Brasília, já que o Banco de Londres, onde trabalhava, também estava abrindo uma filial na capital. Foram dois anos lá, vendo aquela cidade crescer praticamente do nada. Por todos os lados canteiros de obra e poeira. E nesse interim, namorava por correspondência com Lucinda, uma portuguesa da Ilha da Madeira que vivia em São Paulo. Era bordadeira de mão cheia. Realmente, o que ela fazia valia dinheiro, de tão perfeito, mas não pagavam muito não. Foram cartas e mais cartas para sustentar aquele romance à distância. E, claro, sem a certeza de que um dia se concretizaria. Armando nem poderia imaginar o balanço final de toda aquela história. O casamento. Depois vieram Regiane, Sueli, Luciana e Priscila. Suas quatro meninas. E a separação veio em 78, dois anos após o nascimento da mais nova. Aos poucos, todas elas sairam de sua vida, ou ele saiu da delas. O balanço foi esse. Tinha vinte e três anos quando voltou de Brasília para casar, e também pediu as contas no banco. Queria casar sem dívidas e não demorou a arrumar emprego noutro lugar. Só que não estava preparado para aquilo. Gostava muito de rua. Foi errado, admite. Em 75, ganhou na loteria e o dinheiro deu certinho para comprar o apartamento em que moravam, na Vila Mariana. O divórcio terminou em briga. Mas mesmo assim seguiu com a vida, sem nem saber o que tinha acontecido com as meninas. Duro de lembrar. Teve outros relacionamentos, mas nunca mais se casou. E conforme o tempo passava, viu que os lugares onde morava pareciam cada vez menos com um lar.

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Crescimento da população idosa no Brasil A população idosa cresce de maneira significativa e alarmante no Brasil. Alarmante porque, tratando-se de um fenômeno recente no País, o poder público está apenas começando a lidar com as demandas dessa população. Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que esta população atinja no Brasil a cifra de 32 milhões de pessoas no ano de 2025. São considerados idosos aqueles com 60 anos ou mais, segundo convenção da própria OMS. Já o Censo de 2010 indica que eles já são 11,4% da população brasileira, o que significa cerca de 21 milhões de pessoas carecendo de políticas públicas específicas. Os gráficos da página a seguir mostram a evolução na pirâmide etária do País entre 1991 e 2010. Não é difícil notar o alargamento da parte superior da pirâmide, e o estreitamento da parte inferior, o que indica o fenômeno do envelhecimento da população.

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O idoso e a cidade A questão da moradia na velhice passa, inevitavelmente, pela relação da pessoa idosa com o cenário urbano. É um movimento duplo de crescimentos vertiginosos: o envelhecimento da população somado à urbanização acelerada. A Região Sudeste apresenta o maior grau de urbanização do Brasil, com 92,9% da população vivendo em áreas urbanas. Quando tratado o País como um todo, o grau de urbanização passou de 81,2%, em 2000, para 84,4, em 2010. Tendo em mente tal relação, as metrópoles brasileiras, mais especificamente São Paulo (cidade onde está localizada a República do Tatuapé), devem ser estudadas de acordo com suas particularidades, que, na maioria das vezes, acabam agravando o problema da moradia na velhice. Entre elas, uma dinâmica de ritmo excludente que marginaliza pessoas que já deixaram a idade produtiva. A questão foi abordada pela professora Maura Pardini Bicudo Véras durante evento de gerontologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, ocasião na qual palestrou. A docente apontou ainda outra característica de São Paulo que contribui para a perda da qualidade de vida de seus habitantes. Trata-se do zoneamento das regiões da metrópole, que acaba dividida em áreas residenciais, industriais, áreas comerciais, etc. Desta forma, o fluxo obrigatório e em grandes distâncias no dia-a-dia do cidadão não deixa espaço para convivência e impõe velocidade, muitas vezes impossível de ser acompanhada pelos mais velhos. Véras ainda ressaltou que nessas chamadas ˜cidades do capital” as áreas para convivência são insuficientes, não há parques, praças e nem mesmo bancos em número rezoável para a promoção de contato e convivência entre os habitantes. A hipótese de que a cidade não permite a sociabilidade e a circulação da pessoa idosa atribui às repúblicas um importante ponto positivo, já que elas se apresentam como uma forma de morar que integra o velho na comunidade e permite o convívio com o outro, na resolução de questões de cunho prático. Na verdade, o desafio é justamente promover a integração da moradia e do cotidiano do idoso com a sociedade na qual está inserido e com a cidade.

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A mercantilização do lar na terceira idade A modernidade levou a tradição dos cuidados com a pessoa idosa a um processo de adaptação. A realidade das famílias brasileiras mudou rapidamente e é possível observar menos filhos nas famílias e a mulher inserida no mercado de trabalho, fatores que contribuem para a procura crescente de lares alternativos na velhice, apesar do preconceito que ainda envolve a questão. Entretanto, pela falta de políticas públicas para atender plenamente à demanda, vemos, além de muitos idosos vivendo em situações inapropriadas, um movimento em direção à privatização da moradia na velhice. De forma que, o direito à moradia, garantido pelo Estatuto do Idoso, é desrespeitado. “Art.37 do Estatuto do Idoso – O idoso tem direito à moradia digna junto à sua família de origem, ou desacompanhado de seus familiares, quando assim o desejar, ou, ainda, em entidade pública ou privada.” Com isso, mais sofrem com problemas de moradia os idosos com situação financeira instável ou poucos recursos econômicos. Também acabam prejudicados aqueles que não possuem parentes ou próximos capazes de fornecer auxílio para a promoção de uma moradia digna. Daí surgem alternativas que muitas vezes tem caráter provisório, tais como os albergues, pelos quais passaram todos os personagens deste livro. Estima-se que um idoso custe, em média, nas Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs), dois mil e quinhentos reais por mês. Segundo a Profª. Drª. Maria Luisa Trindade Bestetti, do corpo docente da Universidade de São Paulo, existem em São Paulo disparidades gigantes que podem ser observadas se compararmos diversas ILPIs. Isso porque, após resolução da Anvisa, instituições extremamente diferentes recebem esta mesma classificação. Na prática, o que pode ser visto são ILPIs contando com doações e sem recursos suficientes para manter seus habitantes com dignidade e, num outro extremo, residências particulares de luxo nas quais um idoso chega a custar até 18 mil reais. 55 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 55

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Do que necessita e o que deseja o idoso, em termos de moradia Como defendido por estudiosos da gerontologia, uma visão biopsicossocial do envelhecimento é necessária para que se possa abordar os temas relacionados. Considerando, é de extrema importância para a garantia de moradias adequadas na velhice atentar para os fatores emocionais relacionados à palavra Lar. O apego ao lar ocorre por fatores de conforto, segurança e pertencimento, o que é válido para indivíduos de todas as idades. Ainda, com a chegada da velhice, fragilidades como perda parcial da autonomia física e a perda da independência financeira representam fatores de desestabilização emocional. Uma combinação de importante peso psicológico. Fica claro que a moradia não representa somente um lugar, espaço físico, mas que vai muito além disso. É também a busca por dignidade. Entre os aspectos que ajudam a facilitar a adaptação do idoso em seu novo lar, é notável a importância da manutenção da individualidade do mesmo, assim como instalações que estimulem a autonomia e a manutenção das atividades que deseje realizar. O Desenho Universal estabelece características para adaptação da moradia às necessidades de pessoas com dificuldade de locomoção. Também é necessário que o processo de envelhecimento não seja isolado, alheio à sociedade, e sim inserido e parte natural da mesma. Desta forma, qualquer que seja a alternativa de moradia na velhice, o sentimento de pertencimento à comunidade é muito importante. Portanto, as alternativas de moradia podem variar, tendo como alicerces as importâncias citadas. Percebe-se que, assim como casos de processos de envelhecimento são heterogêneos, as alternativas de moradia também precisam contemplar a diversidade de necessidades e desejos. 56 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 56

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Sobre políticas públicas Sem a intenção de abordar todas as políticas públicas para habitação na velhice, vejamos um panorama que nos leva às repúblicas de idosos, alternativas de moradia espelhadas nas repúblicas estudantis. A Política Nacional do Idoso foi implantada em 1994. Posteriormente, em outubro de 2003, o Governo Federal dispôs do Estatuto do Idoso que, entre outros direitos, prevê o direito a moradia digna na velhice. O estatuto oferece ainda instrumentos legais para impedir que os direitos dos idosos já garantidos pela constituição federal sejam desrespeitados. Trata-se da Lei nº 10.741. Mais adiante, em 2008, a Organização Mundial da Saúde publicou o Guia da Cidade Amiga do Idoso. Fruto de pesquisas realizadas em 33 cidades de diversos países do mundo. O guia expõe as necessidades e demandas para a busca de dignidade na vida urbana para os idosos. Para tal, a pesquisa foi feita com o envolvimento de grupos focais, cujos membros indicaram sua própria experiência em suas respectivas cidades. Em destaque para ponderações sobre o foco deste livro, alguns dos aspectos abordados na seção 7 do Guia, cujo tema é moradia. Entre eles, a viabilidade financeira, como fator de influência óbvia na escolha da forma de morar. Entre as sugestões apresentadas pelo documento, políticas públicas para baratear impostos prediais e subsídio à moradia pública ou privada. As conexões comunitárias também são apontadas como fator importante para o bem viver em qualquer tipo de moradia. Daí a importância da inserção da habitação e de seus ocupantes na sociedade, a relação com vizinhos e pessoas da mesma comunidade, o que é apresentado como “segurança psicológica” no ambiente. Vale ressaltar ainda a importância da facilidade de locomoção dentro dos ambientes, com possibilidade de adaptação dos mesmos, e 57 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 57

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o custo acessível dos serviços próximos à habitação. Ainda segundo a professora Bestetti, há um movimento das prefeituras, de organizações não governamentais e de grupos para a defesa da dignidade do idoso em direção ao uso do Guia e busca de soluções que tomem o documento como base. Serve como instrumento para auxiliar na criação de políticas publicas. Há ainda, entre as políticas públicas de maior repercussão, a Vila Dignidade, iniciativa do Governo do Estado de São Paulo em parceria com as prefeituras. Em 2009, o programa inaugurou no município de Avaré um condomínio de casas construídas segundo as normas do Desenho Universal para acessibilidade. O projeto prevê a construção de mais de vinte vilas especialmente para a população idosa. Para residir em um desses condomínios, a renda máxima dos idosos deve ser de dois salários mínimos e o mesmo não pode possuir vínculos familiares sólidos. Entretanto, a política habitacional que mais se aproxima do tema tratado é a da implantação de repúblicas de idosos em Santos, no litoral paulista. A iniciativa pioneira no Brasil inspirou outras, inclusive a criação da República do Tatuapé. Em 1995, idosos que frequentavam os centros de convivência apontaram dificuldades e problemas de habitação. A sugestão de morar juntos foi feita pelos próprios idosos, mesmo que sem a noção do conceito de república. Apropriando-se da ideia, a prefeitura implantou no ano seguinte a primeira república. Hoje são 4 unidades, abrigando 42 moradores. Segundo Celiana Nunes, chefe da Seção de Repúblicas da Prefeitura Municipal de Santos, o modelo de habitação preserva a dignidade do idoso por não transmitir a ideia de institucionalização. A seleção dos candidatos ocorre de forma semelhante à do Vila Dignidade: é preciso ter renda mínima de um salário mínimo e máxima de dois, e a questão dos vínculos familiares é tratada da mesma maneira. Também é 58 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 58

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preciso ter independência física e psíquica. Estima-se que cada morador gaste cerca de 90 reais por mês, contando com a contribuição simbólica para aluguel, e contas que são divididas entre os idosos de cada casa. São responsáveis pela alimentação e seus custos. O regulamento interno das repúblicas foi formulado com ajuda dos primeiros moradores e sofre alterações e mudanças de acordo com a necessidade e demanda dos habitantes no momento. Nunes aponta como aspectos positivos dessa alternativa de moradia a preservação da liberdade, da autonomia e da ideia de ter uma casa para si. Entretanto, alerta que não são todos que conseguem adaptar-se. Há casos de pessoas que estão morando na mesma república há mais de dez anos, com ótima adaptação. Por outro lado, muitos não passam nem alguns meses e preferem voltar às suas condições antigas, mesmo que mais precárias. São exemplos que reforçam a ideia da heterogeneidade nos processos de envelhecimento. Nunes ainda aponta para um movimento positivo de restabelecimento de vínculos familiares após algum tempo de vivência na república, e menciona casos de idosos que passaram a morar com estes parentes. Ela vê as chamadas “assembleias”v como fator essencial para o bom funcionamento das repúblicas. São reuniões periódicas, com a participação de funcionário da prefeitura, para a resolução de problemas cotidianos. Ao falar sobre possíveis iniciativas para a formação de repúblicas privadas, Nunes aponta como ressalva a falta de assistência psicológica e atendimento individual para resolução de conflitos, que considera primordiais para a sustentação das repúblicas de Santos. O grande mérito da iniciativa fica na melhora das condições de moradia dos idosos que participam do programa, sendo que, muitos deles viviam em cortiços e abrigos, locais que dificilmente atendem aos direitos garantidos legalmente para a manutenção da dignidade no envelhecimento.

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A República do Tatuapé História A Associação Reciclázaro é uma Organização Não Governamental que atua no resgate e apoio a pessoas em situação de risco. Entre os projetos da associação, está a Casa de Simeão, no Brás, Zona Leste de São Paulo. É um espaço de acolhida para idosos que estiveram vivendo na rua. O albergue, inaugurado em 2003, quer promover melhorias na vida destas pessoas e até a busca por condições para que possam morar sozinhas. Foi lá também que, mais tarde, surgiu a ideia de escrever um projeto de república, que beneficiasse aqueles que já haviam alcançado certa autonomia e procuravam mudar-se, mas que, ao mesmo tempo, não possuíam meios financeiros para morar sozinhos. O projeto foi redigido em 2007 e enviado à Cáritas Internacional, organização alemã que aceitou financiar os custos do aluguel. Segundo Andrea Gadioli, idealizadora da república e redatora do projeto, as repúblicas de Santos serviram como base. Em 2008, a associação conseguiu encontrar uma casa que permitisse aluguel para servir de república. A partir daí, selecionaram o primeiro grupo para ocupar a moradia. Gadioli indica que, apesar de a república ter sido criada com o objetivo de ser uma moradia permanente, houve casos que contrariaram este princípio. Pôde perceber que, para alguns, acabou sendo um meio para atingir a autonomia plena. Assim nasceu a primeira república de idosos da cidade de São Paulo. 60 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 60

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A República do Tatuapé é exclusivamente masculina. A decisão de mantê-la desta forma foi tomada por questões de cunho prático, já que os moradores encaminhados vinham sempre da Casa de Simeão, onde somente homens são aceitos. Entretanto, a separação da república por sexos tem sim consequências nas vivências da mesma, que serão abordadas mais adiante em comparação às repúblicas mistas de Santos. Na defesa e especificação de perticularidades do modelo de habitação, constam os seguintes itens em relatório da Reciclázaro: “ - O modelo não é rígido e deve se adaptar às realidades do grupo. - É importante que prévio à mudança de casa, o grupo se conheça, realize atividades em conjunto e divida alguns espaços de convivência. - Os regimentos foram feitos para serem modificados e é preciso ter isso presente. - Um sistemático processo de seleção das pessoas que irão morar na casa não garante a convivência harmoniosa, é preciso estar preparados para lidar com os conflitos que se originem. - A liberdade de ir e vir, de fazer e de não fazer é um bem muito prezado (precioso) para os idosos, é indispensável garantir tais condições. - A convivência lhes proporciona um sentimento de segurança que não obtêm em casas de acolhida com maior número de pessoas e isto é muito valorizado por eles. - O acompanhamento da equipe técnica deve estar em sintonia com o processo do grupo, deixando-o correr natu-

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ralmente. - O pagamento compartilhado das despesas faz com que as pessoas se apropriem do espaço. - É um modelo de intervenção de baixo custo que atinge resultados muito positivos. - A não determinação de tempo de permanência permite o sentido de pertencimento e de reconstrução de sonhos.”

A vida nas repúblicas Convivência Mesmo com seus pontos negativos, a convivência parece criar uma sensação de pertencimento, não permitindo que os moradores se isolem como poderia ocorrer em outros tipos de instituição. A professora Bestetti ainda enxerga na alternativa da república um meio de construção de novos vínculos e histórias coletivas, em contrapartida à mera manutenção de memórias distantes no tempo. Maneira de promover ligações com potencial de se estreitarem muito com a convivência. Segue trecho de relatório da Reciclázaro sobre a questão da convivência na república: “Essa experiência proporciona aos moradores uma maior integração social e participação efetiva na comunidade, instituindo novas relações, formando uma densa rede subjetiva de apoio e se localizando frente aos novos pontos de referência, além de fazer com que identifiquem suas competências e coloquem a prova antigas resistências enquanto se enxergam mais tolerantes, solidários e ativos frente ao convívio coletivo.” 62

É também de forma saudável que Celiana Nunes

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enxerga as relações de convivência nas repúblicas. Aponta o surgimento de relações de dinâmica semelhante à da convivência em família, como vínculos entre irmãos que vivem no mesmo ambiente. Tudo isso considerando, claro, a adaptação de cada indivíduo à habitação. Em sua tese “Gestão e vivências de velhices nas Repúblicas de Idosos de Santos”, do programa de pós-graduação em Antropologia Social da USP, Glaucia Destro aponta o que enxerga como um dos principais fatores de desentendimentos nas repúblicas. Ela minimiza as disparidades financeiras, já que a regra de seleção por salários mínimos nivela os moradores nesse quesito. Entretanto, aponta fatores culturais que parecem ter grande importância. Segue hipótese da autora sobre possível origem de conflitos: “Passei a considerar, então, que as diferenças e as discriminações entre eles se dariam mais em conseqüência do tipo de trajetória que cada qual havia percorrido. A partir da observação, compreendi que o acesso a certos refinamentos ao longo da vida, o que tem como resultado saberes especiais, linguagem verbal diferenciada ou mesmo corporalidades singulares, representa meios sutis e pouco explícitos para agrupamento e segregação, o que, em muitos casos, poderia até ser atribuído a personalidades individuais.” Além disso, vê-se nas dificuldades da convivência diária uma forma de desenvolver a tolerância, já que, com o mesmo princípio de repúblicas de estudantes, quem não sabe conviver não pode permanecer na habitação. “Aqui, um ajuda o outro, somos colegas. Um colega

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me traz café com leite para eu tomar remédio às 7 da manha todo dia.” A.

Alimentação Durante a observação da dinâmica cotidiana na República do Tatuapé, a questão da alimentação apareceu como um fator que estimula autonomia e autoestima, e que também pode estimular a convivência entre os idosos. Teoria pôde ser observada na prática por meio da fala de quase todos os moradores da República do Tatuapé. Em seus relatos sobre a vida no local, citaram poder cozinhar suas próprias refeições, com liberdade de escolher o que desejassem, fazer suas compras e comer também na hora desejada. Mesmo que as refeições estejam sendo preparadas individualmente, o espaço coletivo da cozinha reúne, inevitavelmente, os moradores. Isso ocorre principalmente na hora do jantar, período em que a maior parte dos idosos está na república. Assim, mesmo sem a procura por socialização, ela acaba ocorrendo de forma natural. “Vi vantagem em poder fazer minha própria comida. Moramos em dez, mas cada um cuida da sua vida.” B.

Liberdade de horários Outro ponto positivo abordado pela grande maioria dos moradores foi a liberdade de horários, liberdade total para ir e vir. A observação desse caso específico talvez venha em consequência das restrições de horários impostas pelos albergues. Lembrando que todos os moradores da República do Tatuapé são egressos de albergues. Entretanto, também foram apontadas restrições de horários e liberdades em residências particulares. Um idoso da 64 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 64

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república, por exemplo, afirmou que se morasse com sua filha ou com algum outro parente não se sentiria bem em manter seus hábitos diários, como assistir televisão até tarde ou até mesmo levantar de madrugada para pegar um copo d’água. “No albergue não pode sair a hora que quiser, nem entrar. Tem o horário de banho, café e janta.” C.

Estímulo ao trabalho É visto como fator positivo a necessidade de colaboração financeira para a manutenção da vida em república, tanto para a apropriação da habitação, quanto para estímulo à realização de atividades produtivas, quando possível. Na República do Tatuapé, a grande maioria dos moradores busca formas de conseguir alguma renda extra. As atividades produtivas provam ser estimulantes também para a formação de relações sociais com outros membros da comunidade, fato que também colabora na preservação da saúde mental do indivíduo.

Divisão por sexos Apesar da natureza masculina da República do Tatuapé ser de cunho prático, vale abordar o tema, que é relevante para a discussão da formação de repúblicas em geral. Na história das Repúblicas de Santos houve separação por sexos. Foi na primeira experiência, e a casa era dividida entre andares de homens e mulheres, configuração modificada posteriormente. A convivência de sexos opostos, no caso de Santos, se apresentou de forma positiva, segundo apontado pela seção responsável pelo projeto habitacional. Isso porque hábitos de limpeza e organização da casa são muitas vezes mais presentes nas mulheres das gerações em questão. Arraigados por conta de fatores culturais. A convivência

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promoveria troca de saberes e até uma transferência desses hábitos para os homens da casa. Na República do Tatuapé, a questão da limpeza e organização já se mostrou, por exemplo, razão de conflitos que talvez pudessem ser apaziguados com a convivência feminina. Ainda neste tópico, é necessário abordar também a sexualidade na velhice, que é tabu na sociedade brasileira. Tanto é, que questões como a AIDS em pessoas idosas são tão pouco discutidas que geram problemas de saúde pública e até mesmo problemas sexuais e de relacionamento, como consequência da falta de informação. Apesar dessa mentalidade, enraizada em nossa cultura, herança de uma geração pouco informada, alguns dos moradores da República do Tatuapé indicam o desejo de encontrar companheiras e até relatam suas experiências recentes. Deixam implícito por meio de comentários que a presença feminina talvez trouxesse maior equilíbrio na convivência. Tal conclusão é apresentada com o mero obejtivo de promover uma vivencia que seja a mais natural possível. Assim como na maioria dos ambientes aos quais os indivíduos são expostos ao longo da vida, as repúblicas de idosos tendem a apresentar natureza mista. Celiana Nunes relata que houve, inclusive, formação de casais nas unidades de Santos e ressalta a importância do acompanhamento psicológico e assistência ao grupo também para lidar com eventuais problemas relacionados à convivência com o sexo oposto.

Regimentos Internos Assim como desenvolvido nas Repúblicas de Santos, o regimento interno tem importância para a resolução de conflitos na República do Tatuapé. O documento é elaborado juntamente com os 66 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 66

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moradores, que apontam quesões relevantes, e possíveis causadores de conflitos. Entre elas, regras de limpeza, organização, etc. Gadioli aponta, inclusive, que alguns dos hábitos característicos de egressos de albergues tiveram que ser adaptados para a nova configuração de moradia. Um desses hábitos é o de guardar alimentos e outros objetos de cozinha dentro do quarto, já que no albergue não há acesso à cozinha. O regimento interno pode servir de instrumento para auxiliar também nessas questões e a realizar outros ajustes de comportamento. Vale ressaltar a importância da flexibilidade no documento e da revisão conforme surgir a necessidade.

Assistência e acompanhamento A República do Tatuapé conta com acompanhamento de profissionais da Reciclázaro, atendimento psicológico e assembleias. Assim como ocorre em Santos, essas reuniões parecem ser bastante importantes para a manutenção da boa convivência. Durante observação, fica claro que os moradores contam com as reuniões, e até aguardam suas datas para a relolução de problemas, pois percebem que podem ser discutidos com maior liberdade e mediação saudável, o que é visto de forma positiva. Nunes afirma que, em Santos, as repúblicas não seriam viáveis não fosse a assistência individual e coletiva: “Muitas vezes um problema pessoal, briga com membro da família, parente doente ou algo menor acaba incomodando o idoso de deprimindo-o de tal maneira que a convivência com o grupo é muito prejudicada. Por isso os atendimentos individuais são valorizados por nós” 67 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 67

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Ela ainda ressalta que, para estimular e manter a apropriação do ambiente por parte do idoso, todas as visitas ou qualquer outra atividade só ocorre mediante aviso prévio aos moradores e com a concordância dos mesmos. Mesmo que, no caso, a iniciativa seja do poder público, a autonomia para que os moradores decidam sobre a intervenção na república existe e é respeitada. Nunes aponta que as assembléias ocorrem periodicamente, podendo ser semanais, quinzenais ou mensais, dependendo da demanda atual do grupo. Ela ainda diz que, conforme necessidade, chegam a pedir reuniões mais frequentes ou mais esporádicas.

Considerações Finais Observando o aumento da longevidade e os avanços na medicina, que permietem cada vez mais um envelhecimento com manutenção da autonomia física, as repúblicas de idosos podem ser vistas como uma importante alternativa para habitação na velhice. Espera-se ver mais iniciativas governamentais no sentido da criação de repúblicas, já que apresentam um modelo bastante adequado e digno para um certo público, e geram custos relativamente baixos ao poder público. Outras prefeituras no Estado de São Paulo também já adotaram o modelo de repúblicas, nas cidades de Bauru, São José do Rio Preto e Praia Grande. A própria Reciclázaro mantém diálogo com a Prefeitura de São Paulo, tentando promover iniciativas em conjunto. Outro aspecto a ser ressaltado é a possibilidade de formação de repúblicas particulares, por iniciativa do próprio idoso, movimento que Bestetti considera possível. Ela afirma que já vê o surgimento de moradias em conjunto na cidade de São Paulo, mesmo que sem o conceito de repúblicas, citando casos de idosos que 68 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 68

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eram amigos e decidiram morar juntos por afinidades, conveniência e para dividir as despesas. A questão da moradia na velhice, em seu sentido mais abrangente, é um problema grave que deve se agravar ainda mais nos próximos anos, e é pouco abordado pela mídia. Portanto, concluímos que as repúblicas são ainda menos conhecidas e a divulgação de exemplos como os tratados neste livro pode estimular outras iniciativas, adaptadas à cada situação específica. Trata-se de uma alternativa de moradia flexível e capaz de comportar pessoas com as mais variadas histórias de vida. Tudo depende de boa gestão e de levar em consideração a heterogeneidade do envelhecimento.

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Agradecimentos Primeiramente, gostaria de agradecer a todos os moradores da República do Tatuapé, por terem aberto as portas da casa para mim, pela colaboração, confiança e amizade. Também agradeço a meu irmão Pablo, cuja colaboração foi primordial para a realização do projeto. A meu orientador, o professor Luiz Carlos Ramos, e a todos os docentes do jornalismo, que, sem dúvida, têm parte nesse livro.

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Referências OLIVEIRA, Glaucia Silva Destro. (2009) “Gestão e vivências de velhices nas Repúblicas de Idosos de Santos (SP) – São Paulo - Universidade de São Paulo ESTATUTO DO IDOSO (2003). Lei n.o 10.741, de 1o de outubro de 2003. POLÍTICA NACIONAL DO IDOSO, Lei n.o 8.842 de 04 de janeiro, artigo 3o, regulamentado pelo decreto n.o 1.948 de julho de 1996. CENSO 2010 – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Encontrado em: http://www.censo2010.ibge.gov. br/ SOARES, R. (2010) “Reflexões sobre espaço de moradia para idosos e Políticas Públicas” – Revista Kairós - Edição Número 8 – São Paulo FORTES, R. (2010) “Novas Formas de Morar: Repúblicas para Idosos” – Revista Kairós - Edição Número 8 – São Paulo LOPEZ, A., MINCACHE, G., ROSA, M., MUTCHNIK, V. (2010) “Sensações do morar e a concretização de moradia para idosos egressos de um albergue” - Revista Kairós - Edição Número 8 – São Paulo 72 UM_LUGAR_PARA_MORAR-FINAL.indd 72

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NOVAES, E., ARAUJO, P., LOPES, R. (2010) - “Instituições de longa permanência para idosos: possibilidades contemporâneas de moradia” - Revista Kairós - Edição Número 8 – São Paulo COMUNICADO IPEA “Condições de funcionamento e infraestrutura das Instituições de Longa Permanência para Idosos no Brasil” – (2011) – em: www.ipea.gov.br GUIA GLOBAL: CIDADE AMIGA DO IDOSO – Organização Mundial da Saúde - (2008)

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