O que se ouviu e o que não se ouviu na Semana de 22 de Livio Tragtenberg

Page 1

O QUE SE OUVIU E O QUE NÃO SE OUVIU NA SEMANA DE 22

Livio Tragtenberg


2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Tragtenberg, Livio Romano O que ouviu e o que não se ouviu na Semana de 22/ Livio Romano Tragtenberg – São Paulo: L. R. Tragtenberg, 2020. 71 p. ISBN - 978-65-00-04094-4  1. História da Música Brasileira 2. Literatura Brasileira I. Título CDD 1.ed. – 709.04

Capa de Rogério Rauber

Projeto contemplado em Edital ProAC 2019 da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo.


3

ÍNDICE Introito interessado

4

Apresentação

10

1822 – 1922

12

O “poblema” Villa-Lobos

15

Antes da Semana de 22

19

“O garção de costeleta”

29

Um desajustado musical

30

O que se ouviu

45

O que não se ouviu

56

A trizteza do jeca

59

Desdobramentos

63

Parêntese interessantíssimo

64

Outros desdobramentos

67

Bibliografia

69

Agradecimentos a Rita Martins Tragtenberg, Lucila Romano Tragtenberg e Rogério Rauber


4

O ab surdo não h ouve

Walter Franco

Introito interessado Em 2022, celebra-se o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Inclusive, a existência deste livro deve-se a essa efeméride, que possibilitou a sua redação e publicação, através de um concurso público. No entanto, paira no ar, no tempo e na fortuna crítica a respeito da Sermana, um paradoxo. Apesar de oficializada como marco da chamada Arte Moderna no Brasil, quando nos debruçamos sobre o evento em si, ou seja, as três noites no Theatro Municipal em São Paulo, nos dias 13,15 e 17 de fevereiro de 1922 ; essa lenda de ruptura, vai sendo, passo a passo, ponto a ponto desmontada, recontada, e até mesmo desconstruida – para usar um expressão tão em voga – por um revisionismo severo e diverso. De um lado, uma historiografia comodista e meio chapa branca que não questiona a importância que foi se atribuindo ao longo do tempo a Semana, e que, em certa medida suscitou o debate em tôrno de uma postura inconformista com relação a vida artística da década de 1920, e que a esvazia dos conflitos que provocou. Apaga o que havia de questionador, para reduzi-la a efeméride de livro escolar, neutralizando-a como um evento unívoco. A Semana deu face e propaganda a um grupo de artistas que questionava os valores e pontos de vista conservadores, passadistas, até então hegemônicos num ambiente cultural paulistano, de artistas, acadêmicos, críticos, senhores de engenho culturais e da indústria do mecenato provinciano. Isso foi um enorme ponto a favor, sem dúvida. Mas, por outro lado, a sensação de frustração é recorrente para quem vai buscar na Semana um marco fundante de ruptura e transgressão, similar ao provocado pela estréia da Sagração da Primavera de Igor Stravinski em 1913, em Paris; ou ainda na publicação do romance Ulysses de James Joyce, uma semana antes da Semana, em 02 de fevereiro de 1922, e que foi logo censurado. Uma província elege os seus heróis e efemérides, como pode. Mas, au-del`a, da frustação e do, - nem sempre explícito ufanismo provinciano com relação a Semana -, esse pequeno livro, vai buscar em suas fraturas, suas lacunas e ausências, que refletem, ainda que em camadas não aparentes de um


5 momento histórico, cultural e estético na São Paulo dos anos de 1920, na “agitada cosmópolis periférica” como agudamente se referiu a ela, o escritor e jornalista Guilherme de Almeida ;1 os elementos que problematizem, com visão restrospectiva, sua abordagem. O sociológo Sérgio Miceli, afirma que “a despeito do projeto longamente acalentado de uma arte ‘brasileira’, desde o nativismo de José de Alencar e Sílvio Romero, até o caipirismo de Lobato, o modernismo converteu esse desígnio num resultado palpável – nacional estrangeiro – que não podia ser outra coisa senão o suporte expressivo capaz de reconfigurar experiências sociais contraditórias em formas e linguagens externas, reformatadas em função das constrições locais de absorção e produção.” 2 E por essas “experiências sociais contraditórias”, citadas por Miceli, podemos acrescentar que a modernização do gosto estético vinha acompanhada de um pacote completo de interesses econômicos e políticos da província, com os quais os modernistas da primeira geração estabeleciam as mais diferentes relações. Sérgio Miceli destaca ainda que, ”apesar de os integrantes do movimento modernista terem difundido a lenda de que se haviam firmado de conta própria (…) o cipoal de interações em que estavam envolvidos oferece um quadro distinto de comprometimentos, enstusiasmos, concessões, favores e serviços de uns aos outros.” 3 Ao final de sua obra Nacional Estrangeiro, o autor conclui: “ Naquele momento histórico por um conjunto de transformações de monta da sociedade brasileira, em meio aos presságios de um processo irreversível de internacionalização das linguagens e procedimentos do fazer artístico, nossos artistas modernistas fizeram o máximo que estava ao seu alcance para elaborar um híbrido (grifo nosso) com feição toda sua, misto de deglutição do alheio e antena de sociabilidade nativa, a que se denominou aqui arte nacional estrangeira.” 4 Destaco que esse hibridismo refletiu um aspecto da “sociabilidade nativa” que era justamente a tensão entre passado e presente, e o nacional e o estrangeiro, Ou ainda, de que formas a idéía de nacionalidade, identidade, enfim, de nacionalismo, iriam se projetar no idéario do modernismo; combinada as idéías de progresso, evolução e anti-conservadorismo. Houveram várias correntes na cultura brasileira, algumas delas radicalmente opostas, desde o Romantismo do século 19, de Gonçalves de Magalhães (18111882), de José de Alencar a Gonçalves Dias, que pretendiam expressar o elemento nacional, utilizando as formas e materiais da arte romântica européia, como Carlos Gomes, por exemplo. Até as aproximações posteriores a Semana, que iriam desembocar nas pesquisas musicológicas de Mário de Andrade, e também na poesia de Raul Bopp, Menotti del Picchia, do próprio Mário, na 1 – citado por Sérgio Miceli em Nacional Estrangeiro, Companhia das Letras 2003, pág.191. 2 – MICELI, S. – idem., págs. 20-21. 3 – ibidem, pág.24. 4 – ibidem, pág.194.


6

antropofagia de Oswald de Andrade, que gravitaram em tôrno dessa questão: o nacional, o estrangeiro, a identidade, o cosmopolitismo. Não seria diferente com Villa-Lobos. Caracterizado pela combinação de dois diferentes que resultam num terceiro, (emprestando `a biologia, uma acepção básica) o hibridismo pode gerar novas espécies, reais ou imaginárias, como o minotauro (corpo de homem e cabeça de touro), pégasus (cavalo com asas) e as sereias; assim como diferentes formas de abordagem de uma mesma idéia ou material na criação artística. A ópera Il Guarany, de Carlos Gomes (estreada em 1870), por exemplo, é uma de alto grau de hibridismo e acoplamento. Possui forma e linguagem musical da ópera italiana com rompantes veristas e temática indigenista, a partir do romance de José de Alencar. O Programa da Ópera Nacional, instituído em 1857, vissava amparar o gênero com apoio do Império, como relata o Jornal do Comércio 5: “Neste caso se encontra a ópera nacional. Nascida no meio de todas as dificuldades que soem acompanhar as idéias novas, quasi que asphixiada entre os braços daquelles que a amavão, deu nos primeiros dias de existencia o seu último alento. Graças porém ao governo, que a soube amparar, dando-lhe um pouco de vida de que carecia o seu corpo infantil e fraco, vai ella vivendo. Ao publico, porém, aquelle que ama a pátria e as suas instituições, cumpre animar e proteger uma tão importante creação, a cuja existencia estão ligadas as existências legitimas e reaes do conservatório de musica, da litteratura lyricodramatica e da musica nacional, característica, typo da nossa indole, usos e costumes.” Carlos Gomes teve o papel fundamental de dar formato, corpo e voz, ao movimento de afirmação da ópera nacional. Entenda-se aqui nacional, no sentido de feita no Brasil, ainda que o libretto não estivesse na lingual pátria, mas em italiano. O fato é que o público que frequentava a ópera, era composto pela burguesia florescente e a corte: um recorte da sociedade carioca da época. O alcance de identificação desse público com o que era nacional e seus símbolos era bastante difuso. Bastava que a temática se referisse a elementos locais. Concorria ainda, o fato de que o romance de José de Alencar representava, o que se chamava de literatura nacional. Se Carlos Gomes não praticou aquilo que mais tarde Oswald de Andrade iria chamar de literatura de exportação; pelo menos contrabandeou a temática local para o palco mais importante da Europa na época, em Milão na Itália. Aqui retomo a idéía do hibridismo, do nacional estrangeiro de Sérgio Miceli, invertendo a equação.


7 5 - Jornal do Comercio, em 23 de agosto de 1861. Foi mantida a grafia original.

Carlos Gomes praticou arte estrangeira nacional. Por isso emprego o têrmo contrabando. Não há juízo de valor moral ao usá-lo, mas acredito que representa uma possível resposta, um regurgitamento do material original; mas, nesse caso – ao contrário da antropofagia oswaldiana - o reafirma, dentro do gênero de ópera nacional, que se estabelecia no seio do movimento Romântico francês e do qual Giacomo Meyerbeer (1791-1864) foi um pioneiro, utilizando temas exóticos como em L’Africaine, estreado na Ópera de Paris em 1865. Buscando identificar os aspectos inovadores e positivos da trajetória de Carlos Gomes, escrevi `a época de seu sesquicentenário de nsacimento, em 1986: “A reinterpretação de Gomes encerra uma possibilidade e um compromisso. A possibilidade é de buscar, através de sua obra, revelar as tensões subterrâneas de sua linguagem musical em contraponto com o panorama cultural de sua época. O compromisso é reinterpretá-la `a luz de seu próprio percurso na atividade cultural até nossos dias. A história seria um dos agentes principais da interpretação de sua linguagem musical. Carlos Gomes foi um contrabandista de linguagens. Operou um “contrabando” de temas, formas, fôrmas e clichés. Adaptou um tema “nacional” `a forma alienígena. No entanto, esse contrabando – do qual uma inevitável área de estranhamento tanto ao nível estilístico, como temático – resulta num espaço onde os signos estão em conflito, alheios a sínteses purificantes. Uma nova interpretação, ou abordagem, da obra de Gomes deve trazer `a tôna, essas `areas sígnicas em tensão, como o impulso que justifica um retôrno ao compositor de costeletas.”6 Um dos aspectos mais interessantes do teatro musical, desde que se tornou um espetáculo com música, canto e cenas faladas, é que o tema, o enredo em si não é o protagonista; eles podem variar brutalmente, de uma referência histórica a um drama burgues, até uma trama bufa. No entanto, a linguagem musical permanence mais ou menos inalterada, organizada em formas de curta a longa duração. Assim, o conteúdo musical de Il Guarany, difere muito pouco das outras óperas de Gomes como Lo Schiavo, Fosca ou Condor, etc ; ainda que possam haver diferenças pontuais, em relação as criações contemporâneas a elas, nas casas de ópera da Itália. Portanto, o hibridismo nem sempre contempla resultados inovadores ou radicais, como a invenção de um coelho de três orelhas, ou de um pato de dois bicos, por exemplo, para ficarmos no campo da biologia. Foi ainda no século 19, uma estratégia de acomodação sintática e estética que respondia a questões extramusicais do período. Podem-se observar gradações nessas acomodações e acoplagens. E essas gradações compõem o amplo arco-íris dos nacionalismos 6 – TRAGTENBERG, L. - Defesa de Carlos Gomes contra seus entusiastas em Artigos Musicais, Coleção Debates, Editora Perspectiva, 1991.


8

nas artes no Brasil: de Il Guarany ao coelho de três orelhas… Do índio Pery solfejando um dó de peito sob uma floresta de pano pintado, a uma multidão de crianças e jovens estudantes entoando o canto indígena Nozani na ôrê kuá ou quaisquer outros arranjos corais de melodias tradicionais. Trajetórias de estilizações do hibridismo, ou ainda, seriam formas diferentes de contrabando? Acredito que não. O nacional tomado como temática, independe da linguagem musical propriamente dita. As abordagens podem conter maior ou menor grau de fidelidade, para entrarmos numa terminologia complicada, que envolve outros conceitos como “verdadeiro”, “falso”, “original”, e que pontuaram as polêmicas e discussões sobre o assunto. Não seria diferente com Villa-Lobos.


9 Entre outras coisas, como avaliar e qualificar um ponto de vista ou julgamento em relação a outro, sem subtrair o parti-pris de quem julga? Num emaranhado de cipós, as ideologias político-econômicas que se acoplam a idéia e ideal do nacional, representam interesses de grupos sociais que ora se complementam, ora se contrapõem. Não foi de outra forma com os diferentes grupos que clamaram e reinvidicaram o nacional e a guarda da identidade pátria no Brasil, desde o Descobrimento. Os interesses de momento, modulam essas idéias, um tanto abstratas, frente a premência dos fatos reais e urgentes. Antonio Candido escreve que “é difícil dizer no que consiste exatamente a Antropofagia, que Oswald nunca formulou, embora tenha deixado elementos suficientes para vermos embaixo dos aforismos alguns princípios virtuais, que a integram numa linha constante da literatura brasileira desde a Colônia: a descrição do choque de culturas, sistematizada pela primeira vez por Basílio da Gama e Santa Rita Durão. O Modernismo deu o seu cunho próprio a este tema, que de certo modo se bifurcou num galho ornamental, grandiloquente e patrioteiro com o Verde-amarelismo e todas as perversões nacionalistas decorrentes.” 7 Hibridismo em dois momentos: acoplamento e choque. Como se tivéssemos nos extremos da mordedura antropofágica: de um lado, Carlos Gomes, e de outro, Oswald de Andrade. Acoplamento e choque. Estilização e ruptura. Como um grande guarda-chuva as diferentes correntes que se abrigaram sob a denominação de modernistas, para além das situações geográficas – como o modenismo paulista, carioca, mineiro, pernambucano, etc – contemplavam uma amplitude similar a diversidade ideológico-política nas primeiras décadas do século 20, e portanto, o têrmo (modernismo) generalizante mais distancia, do que explica a natureza de criações e ações, entre elas, a própria Semana de Arte Moderna. 8 Ainda sobre a Antropofagia, Candido destaca: “devoração não é apenas um pressuposto simbólico da Antropofagia, mas o seu modo pessoal de ser, as sua capacidade surpreendente de absorver o mundo, triturá-lo para recompô-lo. (…) Daí, a sua atitude constante de preensão, traduzida na curiosidade, na insistência em manter contato com os outros, usálos de todas as maneiras para os transformar em suibstância de enriquecimento pessoal.” 9 Não seria diferente com Villa-Lobos. 7 - CANDIDO, A. – Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade, em Vários escritos. Livraria Duas Cidades, segunda edição, 1977, págs. 84-85. 8 – Me vem a mente certo tipo de generalização, que acaba, no uso coloquial, adjetivando a palavra, como na paródia de Noel Rosa A.b. Surdo, gravada em 1931: “é futurismo, menina...” 9 – idem., págs. 75-76.


10

Apresentação A primeira imagem que assalta a memória (daquilo que não vi, mas do que se conta), quando se fala da Semana de Arte Moderna de 1922, ao menos em termos da participação da música no evento, é a figura do compositor Heitor Villa-Lobos, grandalhão e claudicante, com um pé infaixado, cruzando o palco do Theatro Municipal de São Paulo. Passos mancos, mas não menos triunfantes, em se tratando da mitologia criada em tôrno da participação do compositor carioca na Semana. Essa imagem, representa um índice de como a expressão musical se apresentou na Semana: mancou. Índice de uma ausência. Ausência que é índice de uma situação mais ampla, que não envolvia apenas a cultura e as chamadas belas artes de então, mas as características da sociedade brasileira e em particular, da paulista(na). Puxando ainda por uma memória mítica daquelas noites, quando podia-se mirar no palco da contenda, sua majestade o piano, antes de Mário de Andrade criticar a “pianolatria” como uma chaga da prática musical brasileira; lá, com aquele sorriso amarelado de oitenta e oito teclas, reafirmando sua presença epicêntrica, como um símbolo do que então se definia como “música séria”. Como que reforçando a idéia de contrários, piano e Villa-Lobos iriam se unir em novos acordes, que iriam embaralhar os conceitos de “música séria”, “ música popular” e a mal-afamada “música moderna”, ao menos nas mentalidades de então. “A Semana não chega a ser propriamente a realização da modernidade, mas insiste em ser seu índice, daí um certo desequilíbrio entre o que se alardeia e o que se mostra.”1 Uma das razões de ser deste texto, é identificar o que não se ouviu, ou ainda, o que se entreouviu na música presente na Semana, quais razões e conceitos orientaram o estabelecimento do programa musical, colocando essa participação dentro de uma perspectiva histórica que inclui o passado distante e imediato, bem como o momento da Semana, e o que significou e significa o recorte que a Semana apresentou em termos da música praticada naquele momento no país. Essa escolha refletiu um viés cultural, mas também de classe. (Vinte anos nos separam da estupefação, que Villa-Lobos disse ter identificado na face do maestro Leopold Stokowski, quando anos de 1940 em visita ao Brasil como parte de um programa de “Boa Vizinhança” do governo norte-americano, quando tomou contato com a música de Cartola e outros músicos do samba carioca a bordo do transatlântico S. S. Uruguay no Rio de Janeiro. O evento tratava-se de uma farsa do status quo que concedeu “validação” da chamada “música popular brasileira” para o público, de um lado, e para o Estado Brasileiro, de outro.) A programação musical da Semana refletia uma visão do que se pretendia como “novo”, ainda que usasse, num ou outro momento, as velhas roupas do 1 – WISNIK, J. M. – O Coro dos ontrários,a música em torno da semana de 22. Livraria Duas Cidades, 1977, pág.64.


11 Imperador. Mais uma etapa de um processo de aculturação e assimilação que já havia se iniciado muito antes. Desde o período áureo da mineração, na época do Brasil Colônia nos séculos 17 e 18, especialmente nas Minas Gerais onde floresceu o nosso barroco musical - um tanto neo-classizado é certo -, já se verificava a presença das missões religiosas como promotoras da atividade musical, trazendo e formando mestres de capela, instrumentistas e cantores. Os serviços religiosos com acompanhamento musical, eram o universo dos compositores mestiços como Lobo de Mesquita (1746 – 1805), André da Silva Gomes (1752 -1823) e Padre José Mauricio (1767 – 1830), atuantes em Minas Geraes, São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente. É interessante destacar que no caso do Padre José Mauricio, “filho de pardos libertos”2 ou seja, negros, sofreu enormente em razão da cor da pele. Quando assumiu no Rio de Janeiro a função de mestre de música da nova Capela Real, foi alvo dos músicos portugueses vindos da Capela Real de Lisboa, a ponto de levar o Imperador a substituí-lo por outro músico, branco e português, Marcos Portugal. José Mauricio tinha um estilo musical próprio que já incorporava elementos do classicismo de Haydn e Mozart, trazendo leveza e transparência a trama polifônica em peças como a Missa de Requiem e a Missa em si bemol, entre outras. Compunha também modinhas de cunho popular, e pode ser considerado como um dos pioneiros desse gênero no Brasil com a publicação das modinhas de sua autoria como Beijo a Mão que Me Condena, No Momento da Partida, Meu Coração Te Entreguei (1837) e Marília, Se Não Me Amas, não Me Digas a Verdade (1840), entre outras. Era constante a presença de compositores e maestros profissionais das cortes da Europa, importados pelo Imperador a bom soldo, como o austríaco Sigismund Neukomm (1778 - 1858) que, aportando no Rio de Janeiro no início do século 19, por lá fica ao longo de mais de cinco anos, exercendo influência na música de concerto, sinfônica, de câmara e religiosa. Mais tarde, Antonio Carlos Carlos Gomes – o Tonico de Campinas – que encarnou a tradição e verve operística italiana do século 19, compõe Il Guarany, incorporando temática nacional a ópera italiana. Os compositores acadêmicos do final do século 19 e início do século 20, como Francisco Braga, Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno, Henrique Oswald, entre outros; ecoariam os ideiais do nacionalismo musical romântico. E entre os nacionalistas românticos, tardo-românticos, modernistas e márioandradistas, podemos destacar a obra de Lorenzo Fernandez, Luciano Gallet, Assis Republicano, Marcelo Tupinambá, Villa Lobos, Alexandre Levy, Francisco Mignone e Camargo Guarnieri. 2 – Num eufemismo típico da historiografia oficialesca brasileira, aqui, citado do site da Academia Brasileira de Música, disponível em: http://www.abmusica.org.br/academico/jose-mauricio-nunes-garcia/


12 A partir dos anos de 1930, a presença do compositor e professor alemão Hans Joachim Koelreutter exerceu uma forte influência, tendo introduzido idéías musicais relacionadas a música dodecafônica, a música atonal e as culturas não-ocidentais - como a hindu e japonesa -, antecedendo a influência majoritária que a música germânica do pós-Segunda Grande Guerra exerceria sobre os compositores brasileiros alinhados a música atonal e serial.

1822 – 1922 Após a proclamação da Independencia, em 1822, a vida musical brasileira urbana enfrenta dificuldades e suas frágeis instituições buscam se adaptar aos novos moldes de mecenato e mesmo de constituição legal. Ao final do século 19, o Conservatório Imperial de Música torna-se o Instituto Nacional de Música, reafirmando uma linha de nacionalismo romântico, nos moldes daquele praticado em boa parte da Europa por compositores como Edward Grieg, Antonin Dvorák, Bedrich Smetana e Pyotr I. Tchaikovsky. Nesse movimento, notava-se uma impregnação de fontes musicais populares e tradicionais que passaram a ser consideradas como elementos identitários; como índices na constituição da linguagem musical. Mas como, preservavam a estrutura musical do romantismo germIânico e francês, em termos de organização e disposição da forma musical, da harmonia, construção melódica, instrumentação e rítmica, esses elementos oriundos de outras fontes – que não a tradição acadêmica – desempenharam um papel ornamentativo que propiciou uma “côr local”, mesmo sob uma moldura rígida e pré-esquadrinhada. Era nesse período que os Estados Nacionais buscavam se moldar e se estabelecer, agrupando e organizando os elementos que forjassem as suas identidades próprias e que fossem elementos de unidade e reconhecimento de sua população, agora, sob uma nova organização politica. Assim, a cultura como um todo, agora aparelhada ao Estado, buscava alinhar-se, reorganizar-se, seja nas áreas de educação como também nas suas instituições musicais. O historiador Otto Maria Carpeaux 3 em sua obra Uma Nova História da Música, esclarece que “desde que no século XVI os flamengos, os espanhóis e os ingleses tinham deixado de fazer contribuições próprias para a música européia, esta fôra quase que exclusivamente obra de italianos, alemães e franceses. No começo do século XIX, com o romantismo, novos competidores aparecem: os escandinavos, os russos, os húngaros, os poloneses. É primeira onda de nacionalismo musical, percorrendo a Europa.” 4

3 – Me reporto aqui ao intelectual austríaco radicado no Brasil, como uma forma de provocação com relação a um certo pensamento da pesquisa musicológica universitária no Brasil que repele o humanismo e a abordagem de um não-especialista, desqualificando-a, alegando falta de “cientificismo” por transbordar sua abordagem com conhecimentos enciclopédicos e transversais. 4 – CARPEAUX, O. M. – Uma Nova História da Música. Ediouro, 1999, pág. 164.


13 Importante observar que a chamada “primeira onda de nacionalismo musical”, referida por Carpeaux, acontece ainda sob impacto da queda de Napoleão, que leva os monarcas europeus a buscarem reorganizar a geopolítica no continente, reunidos no Congresso de Viena em 1814, onde adotaram medidas que impediam o crescimento dos movimentos nacionalistas. No entanto, a entrada em cena de compositores de regiões não-ocidentais, como os russos, os techecos e os poloneses, por exemplo; colocaram novas questões musicais. Questionavam o monopólio estilístico da europa occidental, propondo novas aplicações composicionais em relação ao material folclórico. E no embrião das idéias nacionalistas do século 19, identificamos a questão chave com relação a linguagem nacionalista praticada na música de concerto desde estão. Que é, a questão do “elemento nacional” na música. Uma idéia que é controversa, complexa e carregada de “limos ideológicos e culturais” que foram se acumulando ao longo do últimos duzentos e poucos anos no Ocidente. O compositor húngaro Béla Bartók, pesquisador da música tradicional de seu país, argumenta que “a música camponesa de Europa Oriental esconde outras posibilidades; suas particularidades levam a novas concepcões.” 5 Portanto, o “elemento nacional”, não precisaria, necessariamente, ser incorporado de forma passiva, ornamentativa, `a estrutura musical e estilos vigentes. Não seria ele, incompatível portanto com renovação na linguagem musical. Foi através dessas correntes nacionalistas que a música, de forma geral, e a sinfônica, em particular, expressavam e fortaleciam os sentimentos ligados a construção de identidades nacionais e seus grupos sociais nas também nascentes repúblicas e Estados Nacionais. Uma vez distanciando-se da esfera de atuação da Igreja Católica, em têrmos de prática musical, a vida musical civil se fortaleceu e ganhou espaço na cidade como elemento constituinte da sociedade. Ela iria então, refletir os anseios dos diferentes grupos sociais e suas inquietações. Dessa forma, a expressão musical ganhou novos sentidos e, como uma das características principais do Romantismo reside na capacidade da linguagem em expressar sentimentos, emoções e sensações; o musicólogo Alfred Einstein acentuava que “a única coisa que um romântico não pode fazer, é música abstrata” 6. Desde já, colocam-se os conceitos antitéticos de representação/abstração na construção das narrativas sonoras e que permeam ainda as discussões em tôrno do nacionalismo e cosmopolitismo, não apenas na música de concerto, mas nas artes em geral a partir do século 19. Mais `a frente, iremos abordar de que forma também a idéia de nacionalismo musical é importada da Europa para o contexto brasileiro do século 19 e seus desdobramentos. Remeto, então, essas considerações `a época imediatamente anterior a Semana de Arte Moderna, onde existia um predomínio de um tardo nacionalismo Romântico, que repetia fórmulas narrativas esgotadas, como por exemplo o poema sinfônico, um canto do cisne foirmal de uma sociedade que ainda em 5 – BARTÓK, B. – Escritos sobre música popular. Siglo XXI, 1979, pág 65. 6 – EINSTEIN, Alfred – La Musique Romantique. Ed. Gallimard, 1959, pág. 15.


14 franca urbanização, e que se desenvolvia e se tornava complexa e multifacetada, praticando novos hábitos e simbologias, ainda era bastante carente de representações que refletissem sua nova realidade. Seria justamente uma crítica ao abandono dessas referências narrativas, na obra inicial de Villa-Lobos – presentes nos programas da Semana - que iria diferenciar os passadistas dos modernistas naquele momento. O “velho” nacionalismo romântico, seria substituido por um “novo” nacionalismo cosmopolita de Villa-Lobos, representante isolado nessa direção. Porque, como nota Alfred Einstein, uma vez mais, “o romantismo musical contém ao mesmo tempo as características da juventude e da velhice.” 7 Renovação e degeneração. Esse duplo vetor, foi também bastante característico na abordagem que outros compositores do período pós-Semana, da idéía da música nacionalista e do “elemento nacional”. Músicos como Luciano Gallet, Brasílio Itiberê, Souza Lima, Heckel Tavares, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, entre outros; se dedicaram a uma derivação maneirista do nacionalismo romântico, incorporando a ele, elementos das culturas populares urbana, rural e também indígena. Num contexto de transição estilística e também sociológica, a música de concerto na vida brasileira por ocasião da Semana, apresentava uma mudança de panteão. Aquilo que Alfred Einstein, no livro supracitado, chamaria da passagem dos “deuses universais para os deuses regionais”. Em sua analogia, Haydn, Mozart e Beethoven seriam os deuses universais no Olimpo da vida musical européía do inicio do Romantismo. A partir deles, ocorrerria o surgimento dos deuses de circunscrição limitada, regionais ou mesmo locais, que a diferenciação dos nacionalismos promoveu. Assim, das referências “universais” da música sinfônica romântica do século 19, de Verdi e de Wagner `as primeiras décadas do século 20, passou-se a se valorizar as características locais como fontes da criação musical. A parte o voluntarismo de Villa Lobos em viagens erráticas na juventude pelos interiores do Brasil, recolhendo ao sabor das indicações e localidades, melodias e ritmos, era preciso sistematizar, transformar em ciência o estudo e registro dessas fontes primárias. Não era trabalho para compositor, exceção feita a músicos como Béla Bartók e Zoltán Kodály, que desenvolveram um trabalho sistemático de gravação e transcrição das músicas populares da Hungria e região. 7 – idem, pág. .427.


15

O “poblema” Villa-Lobos Ainda a desigualdade. A passagem do menos ao mais é espontânea. A passagem do mais ao menos é refletida, rara - esforço contra o vício e a aparência de compreensão. Paul Valery1

“Oswald de Andrade é um problema literário”. Assim Antonio Candido inicia o seu texto Estouro e Libertação.2 Poderíamos, parodiando Candido, dizer que Villa-Lobos é um “poblema” musical? Segue Antonio Candido no texto citado: “Imagino, pelas que passa nos contemporâneos, as rasteiras que passará nos críticos do futuro.” 3 Certamente, podemos aplicar essas palavras do crítico em relação ao poeta do Pau Brasil, com relação ao compositor do Noneto. Esse movimento de infusão do “elemento nacional”, na linguagem musical já estabelecida, pode ser observado também na obra de Villa-Lobos. Que de um gigantismo sinfônico, pela escolha da forma poema sinfônico em várias peças do período as quais ainda se ressentem de uma certa estilização de si mesmas (da linguagem utilizada) por estarem atreladas a uma estética européia tardo romântica, ainda que utilizassem elementos reconhecíveis de temática autóctone, como em Uirapuru e Amazonas, ambos de 1917 ; parte para a composição do ciclo Canções Típicas Brasileiras 4. Escritas no período de 1919 até 1935, as Canções Típicas utilizam diferentes referências ou ainda “elementos nacionais”: desde cantos indígenas, a modinha, embolada, canto de macumba, berceuse (!) de caboclo, entre outros. Apesar de já contar com uma obra volumosa em 1922, Villa-Lobos ainda não havia conseguido romper o espaço da província carioca. Com sua participação na Semana de 22, acrescentou ao seu raio de ação, a província “periférica” paulistana. Note-se que foi na Semana de Arte Moderna, onde pela primeira vez apresentou sua música num teatro de concerto. Ou seja, na cosmopolita cidade maravilhosa até então, havia se apresentado apenas em pequenos teatros e auditórios. O crítico musical conservador do Jornal do Comércio, Oscar Guanabarino, era dedicado no trabalho de desvalorizar a obra de Villa-Lobos. O Rio de Janeiro vivia o seu eterno paroxismo. Qual seja, a convivência entre o conservadorismo político de Capital Federal (e depois, de ex-Capital) da República, e a nascente metrópole cosmopolita com sua multiplicidade de costumes e novas 1 – VALERY, P. – Introduction `a la méthode de Léonard de Vinci. Gallimard, 1951, p.29.

2 – CANDIDO, A. - Vários Escritos. Editora Livraria Duas Cidades, 1977, pág.35. 3 – idem, pág. 35. 4 – Com poemas de autores tão diferentes como Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Manoel Bandeira, Albert Samain, e cantos indígenas recolhidos por Roquete Pinto. Essa escolha eclética de textos revela que o ciclo não partiu de um projeto pré-concebido, mas foi-se completando de forma errática, a cada peça ao longo do tempo. Poderíamos encontrar ai, um traço da linguagem pós-moderna, que é a convivência de formas diferentes e mesmo, conflitantes, criando um mosaico não-simétrico sobreposto. Mas, trata-se, acredito, de uma questão meramente circunstancial, onde os textos foram sendo encontrados e a partir daí, o ciclo foi ganhando forma.


16 demandas sociais. Sua influente coluna no Jornal do Comércio pontificava o cânone acadêmico do período, ao qual se aferrava contra os ventos de mudança que iam muito além de estético, engolfando a cultura como um todo. O incremento do transporte marítimo possibilitou um crescente intercâmbio entre o Brasil e Europa. As viagens tornaram-se mais frequentes e com isso, os intercâmbios se multiplicaram, de uma forma geral. O relógio da província se atualizava com mais frequência em relação as metrópoles européias, em particular. Da solitária bolsa de estudos de estudos que era concedida pelo imperador D. Pedro II ao compositor Carlos Gomes para que fosse se aperfeiçoar em Milão na Itália, ao apoio oferecido pelos novos mecenas da elite rural e récem industrializada paulista e carioca, seguiu-se o mesmo padrão errático de um mecenato que baseava-se sobretudo nas relações sociais.5 A materialidade das artes plásticas, que se corporificava em quadros, esculturas, desenhos, etc; facilitava que o escambo social se efetivasse.

Quanto a música, era demasiado imaterial e exigia um compromisso menos interessado por parte do mecenas. Villa Lobos fêz a sua primeira viagem a Europa em 1923, após moção aprovada pela Câmara dos Deputados, mas os cortes nas verbas fizeram com que retornasse antes do previsto. Já em sua segunda viagem a Europa nos anos seguintes, obteve o patrocínio da rica família Guinle, do Rio de Janeiro. O récem instaurado mecenato republicano, inaugurava um novo padrão de capital social, 6 que os artistas teriam de constituir e gerir. A Semana propiciou que a obra de Villa Lobos repercutisse no escândalo e para além do escândalo. Seus admiradores tiveram a chance de expressar publicamente a grandeza de suas inovações e espírito criativo, por assim dizer, moderno. Além do um reconhecimento imediato, expresso publicamente `a época da Semana, Mário de Andrade sempre lhe dedicou um olhar crítico ao longo de intensa e longa relação com o músico. No Ensaio sobre a Música Brasileira, publicado em 1928, escreveu: “Mesmo antes da pseudo-música indígena de agora, Vila-Lobos era um grande compositor”. 7 5 – “Os integrantes da primeira geração modernista foram constituindo liames e vínculos de teor variado com as atividades e iniciativas dessa pequena elite de colecionadores e amantes das artes. Frequentavam suas festas e recepções, assistiam `as reuniões e conferências literárias promovidas em suas mansões, ofereciam-lhes graciosamente conselhos, opiniões e dicas para aquisição ou encomenda de obras, valiam-se de seus préstimos, contatos e indicações para obtenção de informações, pedidos, nomeações, ou, então, já num patamar um pouco mais institucionalizado de prestações e contraprestações de serviços artísticos especializados, dependeram de sua intercessão e apoio para o acesso ao auxílio pecuniário governamental, numa troca de favores que se fazia por vezes acompanhar da doação voluntária de obras” MICELI, Sérgio. – Nacional Estrangeiro. Companhia das Letras, 2003, pág.25. 6 -– Que define capital social como “o agregado dos recursos efetivos ou potenciais ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento ou reconhecimento mútuo”. “BOURDIEU, P. -The forms of capital”, em J. G. Richardson (org.), Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education, Greenwood, 1985, pág. 241. 7 – ANDRADE, Mário de – Ensaio sobre a Música Brasileira, Livraria Martins, 1962.


17

Fica a questão: haveria uma outra música que não fosse “pseudo-música indígena”, a não ser a música indígena original, praticada pelos índios em seu espaço, tempo e celebrações rituais? A crítica das artes, na década de 1920, era basicamente exercida nos grandes jornais e em poucos almanaques e revistas esporádicas. Esses eram o espaço de legitimação e de veto. Espaço limitado e sob estrito controle editorial, de construção e destruição de idéias, pessoas e carreiras. As colunas assinadas, vaticinavam o que deveria ser apreciado e desprezado pelo público leitor. Ao seu lado, Villa-Lobos não teve uma figura de peso na imprensa para antagonizar, como um Monteiro Lobato na sua cola; mas apenas críticos e difamadores de tablóide, como Oscar Guanabarino, por exemplo. 8 Por conta da própria fragilidade e pouca relevância social da música de concerto, ela nunca foi palco de debates relevantes, reservado aos campos da literatura e política. As idiossincrasias de seus personagens, na maioria das vezes se sobrepunham aos argumentos e idéias. Um retrato acabado de um provincianismo, um tanto diletante, com que a chamada música erudita era tratada e considerada. Pouco afeito aos códigos dos chamados “bons costumes” burgueses e as normas de comportamento de uma elite, em sua grande maioria, inculta; Heitor Villa Lobos abriria as comportas da realidade em sua música, transbordando e explicitando a complexidade etno-político-social de uma república de preconceitos, desigualdades e exclusão. Ainda que suas intenções não fossem ideológicas, de se confrontar com essa realidade e seus personagens. E como fazia isso? Ao incorporar fontes da música indigena e da cultura afrobrasileira em sua equação, tornava aparentes – dava voz - aos contrastes, as imperfeições e os conflitos em um discurso musical impuro, não homogêneo que escapava, inclusive, ao récem forjado cânone acadêmico do nacionalismo, predicado por Mário de Andrade, na construção de uma identidade e mesmo de uma moral nacional nas artes. Villa-Lobos era um inventor musical, não um taxidermista. Como um elefante numa loja de louças, ele escapava, transgredia normas, até mesmo para o ideário nascente do que iria sistematizar o poeta paulista no Ensaio sobre a Música Brasileira. Mais adiante neste texto, iremos abordar aspectos da personalidade de VillaLobos que contribuiram para complexizar suas atividades como folclorista, pesquisador musical, pedagogo e formulador de politicas públicas de educação musical. Voltando a Semana de 22, é sabido que a participação de Villa Lobos, se deu a partir de um convite de Graça Aranha, que já havia escrito para ele um libreto de ópera na juventude. 9 8 – Em referência a violenta crítica do escritor paulista a exposição da pintora Anita Malfatti, um verdadeiro parâmetro em têrmos de crítica conservadora. Ainda assim, foi grande o estrago que a atividade da crítica musical conservadora produziu no jovem compositor, durante muitos anos. 9 – Malazarte de 1921, partitura não localizada, segundo o catálogo do Museu Villa Lobos. Baseia-se numa peça de Aranha, escrita em 1911, com forte influência do pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche.


18

Como um dos organizadores e participante da Semana, Graça Aranha pronunciou a palestra A Emoção Estética na Arte Moderna, onde após um arrazoado com relação a conceitos estéticos como, o Gênio e o Belo; coloca a emoção que arte provoca, como fator central de sua razão de ser. E aí, um tanto confusamente, oscila entre o elogio do subjetivismo e do objetivismo na arte moderna.”10 Cito, inicialmente o trecho: “Há uma espécie de jogo divertido e perigoso, e por isso sedutor, da arte que zomba da própria arte. Desta zombaria está impregnada a música moderna que na França se manifesta no sarcasmo de Eric Satie e que o grupo dos "seis" organiza em atitude. Nem sempre a fatura desse grupo é homogênea, porque cada um dos artistas obedece fatalmente aos impulsos misteriosos do seu próprio temperamento, e assim mais uma vez se confirma a característica da arte moderna que é a do mais livre subjetivismo.” Sendo que num momento anterior, Graça Aranha, advogava a liberação de condicionantes psicológicas na nova fruição estética: “Este subjetivismo é tão livre que pela vontade independente do artista se torna no mais desinteressado objetivismo, em que desaparece a determinação psicológica.” 11 Não é a tôa que para quem buscava medir com as réguas da tradição da estética européia, a arte moderna seria sobretudo o campo de atuação de uma continuidade em relação aos valores de uma presumida estética “universal”, ou seja, “ a velha indústria do belo”, como escreveu Paul Valéry. Sobre esse quadro de adaptações ainda precárias, que Graça Aranha pintava e que, ainda que difusamente, buscava projetar sobre a realidade brasileira da época, a música de Villa Lobos era para ele, a expressão dessa transformação. Mais do que isso, era uma ruptura, ao menos, ética e filosófica. De personalidade musical complexa, o compositor das Danças Africanas, que foram apresentadas na primeira noite da Semana -, tinha também o seu lado de malandro carioca, mascate árabe do sertão; enfim, um personagem sobrevivente na selva selvagem brasileira. Para ele, o discurso da emoção estética, preconizado por Graça Aranha, era precedido pela conquista de um vocabulário pessoal, pela montagem de um repertório de fontes e referências que o habilitassem a frequentar os dois mundos: o da província e da metrópole. Entendeu que para se afirmar, em meios hostis, teria que assumir uma personagem, uma persona guerreira e irrascível. Ao ser reconhecido como exótico, viravaria o jogo verdadeiramente a seu favor, assumindo uma postura agressivamente exotica e a sua maneira, antropofágica; capaz de expandir seu campo de ação para além da jaula a que era destinado, como bicho estranho. podiam estar conjugados no mesmo ato, na mesma ação e criação. 10 – ARANHA, Graça - Espírito Moderno, Cia.Graphico-Editora Monteiro Lobato, 1925.págs. 16 e 17.


19 11 – idem.

Aspectos complexos que embaralham conceitos, ideologias e práticas, fizeram com que o início do século 20 na arte brasileira conjugasse verbos no passado, presente e num pretérito futuro, ao mesmo tempo. Ou seja, o que pode se observar de uma forma geral, mas não generalizante, é que as contaminações de ideários e práticas, muitas das vezes, conflitantes e contraditórias entre si, provocaram um período onde avanços e retrocessos Essas contaminações – aliás, como todas as demais, para além da perspectiva biológica – provocavam efeitos positivos e negativos concomitantes, no sentido do processamento de seus elementos estruturantes (e desestruturantes) internos e externos. Enfim, no “particular”, ecoando T. W. Adorno da Dialética Negativa. 12 Dessa forma, ao penetrar nessa selva selvagem, é dificil não se enredar num cipoal de falsas questões, ou pior ainda, de questões intencionalmente não abordadas e omitidas no eterno esporte nacional de jogar pra baixo do tapete, e no tortuoso processo de construção da chamada identidade nacional. 12 – ADORNO, T. W. – Dialética negativa. Zahar Editores, 2009.

Antes da Semana de 22 O rádio iniciou suas atividades no Brasil um pouco antes da Semana de 22. Conforme relatou José de Almeida Castro, 1: “O rádio nasceu no Brasil, oficialmente, em 7 de setembro de 1922, nas comemorações do centenário da Independência do país, com a transmissão, à distância e sem fios, da fala do presidente Epitácio Pessoa na inauguração da radiotelefonia brasileira. Roquette Pinto, um médico que pesquisava a radioeletricidade para fins fisiológicos, acompanhava tudo e, entusiasmado com as transmissões, convenceu a Academia Brasileira de Ciências a patrocinar a criação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que viria a ser a PRA-2.” 2 A primeira emissão comercial de rádio aconteceu em 02 de novembro de 1920 em Pittsburgh, nos Estados Unidos, portanto, apenas dois anos antes do início de suas atividades no Brasil. Antes que o rádio se tornasse um meio de comunicação de massa, o ambiente musical brasileiro anterior a década de 1920 desenvolvia suas atividades basicamente a partir de espaços sociais determinados, com suas práticas bastante específicas na geografia das cidades. Antes da enorme transformação que ele provocou na vida musical, o único meio de reprodução mecânica de música eram os gramofones nas mais diversas 1 - Fundador e ex-presidente da ABERT (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio Televisão). 2 - https://www.abert.org.br/web/index.php/notmenu/item/23526-historia-do-radio-no-brasil


20

configurações, que eram de acesso bastante restrito para boa parte da população. O desenvolvimento das formas e hábitos na vida musical urbana esteve intimamente ligado as práticas sociais e as maneiras com que as diferentes A vida musical era, sobretudo, uma forma de ocupação do espaço social, e nessa ocupação estabeleciam-se relações as mais diversas, como comerciais, emocionais, étnicas e políticas. camadas da população se relacionavam entre si. Ao analisar esses antecedentes históricos, buscamos elementos que possam ter forjado a formação do jovem Villa-Lobos em seu contexto na cidade do Rio de Janeiro, o que incluia hábitos e costumes praticados em seu contexto social, como também os gêneros e formas musicais praticadas. Além disso, é nesse pano de fundo histórico do século 19 que nascem e se desenvolvem questões essenciais para compreendermos certas características da vida musical urbana do período que contaminaram os debates culturais, nos quais se encontrou o modernismo brasileiro. Na cidade do Rio de Janeiro da segunda metade do século 19 e nas primeiras décadas do século 20, haviam de forma geral, três espaços sociais para a vida musical. Eram eles, a zona central com suas gafieiras e cafés-concertos (ou cantantes) frequentados pela boêmia, as associações musicais e teatros musicais; os subúrbios com seus terreiros e salões de baile, e por fim, os morros que mantinham os seus rituais religiosos e as práticas musicais restritas a vizinhança, uma vez que a perseguição policial contra eles era constante e impiedosa. Os relatos sobre os conflitos que se sucediam aos encontros religiosos, como a Festa da Penha, onde os negros – e os capoeiras, os bambas, na linguagem da época – aproveitavam a celebração religiosa para encontros e também extravasar em cantos próprios, a sua revolta contra a repressão que mesmo depois da abolição, ainda eram submetidos. As diferentes classes sociais ocupavam cada uma a sua região na cidade, mas a zona central da cidade, em particular, possibilitava um certo espaço de intersecção social e cultural. A récem ocupada região do mangue, com a instalação da Cidade Nova, em pleno centro do Rio de Janeiro, com seus cortiços e prostíbulos, reunia também parte da população negra. Lá, as tradições rurais, dos negros fugidos das fazendas do Vale do Paraíba, misturavam-se aos costumes e ritos daqueles que já habitavam o espaço urbano. Os negros desempenhavam novas funções na cidade, como de ambulantes e guarda-costas de politicos e ricos comerciantes. Musicalmente, essas intersecções resultaram em gêneros e sub-gêneros novos como o maxixe, tango brasileiro, polca-tango e variações de ritmos de dança originárias da europa como o Scottish, o fox etc. Entre os gêneros importados mais praticados `a época, estava a opereta, que era uma forma de ópera popular, curta, que o Harvard Dictionary of Music


21 resume da seguinte forma: “uma peça teatral com luzes e de caráter sentimental em estilo popular e simples, contendo diálogos falados, música, dança, etc.” 3 Em seu estudo, O Teatro de opereta no Brasil: gênero e história, Paulo M. C. Maciel e Maria de Lourdes Rabetti destacam que a opereta é uma “produção marcada por uma ausência de fronteira entre gêneros e pela presença de uma circulação de autores, arranjadores, também temas, processos e procedimentos de escrita musical e teatral, aspectos que caracterizam a comediografia ligeira; neste sentido, todos os elementos necessários ao empreendimento teatral marcam sua presença também no ato de composição dramatúrgica como componentes internos. Trata-se a dramaturgia da comediografia ligeira não de obra de fora desenhada por olhos dirigidos a uma cena imaginada ou desejada, mas de parte da encenação; continuadamente em construção e reconstrução, efêmera como o espetáculo, passageira como o olhar do espectador, e que desta transitoriedade compartilha, em fluxo interminável de produção, reprodução, reaproveitamentos.” 4 A flexibilidade e poder de adaptação logística do gênero era outro ponto fundamental que viabilizava a sua produção. Flexibilidade também que permitia `a opereta ser apresentada em diferentes tablados, desde tabernas a pequenos teatros e espaços adaptados de circos ou de salões de baile. Conforme relatam, “a presença da música em cena revela um terreno fértil para a recepção das operetas a partir de meados do século 19, por sua vez, a sua nacionalização é mediada por um dos gêneros dramáticos mais persistentes do teatro brasileiro, a comédia de costumes, cujo aproveitamento pelos autores passa pela incorporação de ritmos musicais como o lundu, a modinha, etc. Alguns dos teatros mais atuantes na cidade do Rio Janeiro ao final do século 19 e início do século 20, apresentavam operetas em seu repertório: Teatro Phoenix Dramática, Teatro Lyrico Fluminense, Teatro Ginásio Teatro – Empreza do artista Heller, Teatro São Luiz, Teatro República e Teatro Sant’Anna. A grande maioria dos títulos apresentados eram de extração francesa e italiana, mais não era incomum, criações nacionais ocuparem os espaços nos interregnos entre as produções principais.”5 Assim, dos fundos, da cozinha, invertida aqui na sala de espera dos pequenos teatros, as canções brasileiras encontravam espaço para se infiltrar. Em grande parte eram paródias ou comentários de fatos ou dos enrêdos das próprias operettas apresentadas. “Por esse caminho de entrecruzamentos, resgates e aproveitamentos, emerge uma presença efetivamente intensificada, conforme revela, agora, o cruzamento dos dados das séries resultantes da pesquisa nos acervos de partituras e libretos, sobretudo, dos anos de 1880. 3 - APEL, W. – Harvard Dictionary of Music. The Belknap Press of Harvard University Press, 1972, pág. 601. 4– http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276743123_ARQUIVO_texto_para_pu blicacao_-_Paulo_MacieleMariadeLourdesRabetti.pdf 5- idem.

Essa força multiplicadora de sua presença contava ainda com os procedimentos


22 de escrita musical adotados Em virtude da livre composição, as unidades eram relativamente autônomas, porém, a repetição de algumas delas indicava a existência de uma estrutura comum e ou formato original e também das modificações vivenciadas pela nacionalização do gênero: valsa e suas variantes (valsa-romanza, manola-valsa, valsa brilhante, suite de valsas, valsa popular): 36 ; Canção: 4; Tango e variantes (tango-havanera, tango brazileiro, havanera, tanguinho): 20; Polca e variantes (polca militar, polca brilhante, polca-tango): 12; Quadrilha e variantes (grande quadrilha, quadrilha brilhante): 27; Fantasia e variantes (fantasia de salão, fantasia brilhante): 13; Fado e variantes (fado Gonzaga, fado brasileiro - lundu): 3; Fox-blue: 1; Romance: 2; Modinha: 1; Trio: 1; Marcha: 5; Marchinha: 1; Samba: 3; Pout-pourri: 3; Desafio e bate pé: 1; Ballada Romatica: 1; Recitativo: 1; Entrada: 1; La sevillana: 1; Dueto: 1; Cakewalk: 1; Coro: 1; Barcarola: 1; Hino:1; Cena dos pandeiros:1.” 6 Herdeira de uma longa tradição que remonta os autos medievais, dos espetáculos de circo e de vaudeville, dos cabarets e do singspiel alemão, a opereta foi sobretudo um gênero satírico e crítico. Como sintetiza o historiador Alfred Einstein: “o elemento essencial da opereta era a crítica das instituições sociais, a paródia do grande estilo.” 7 Acrescente-se a isso que ela foi um gênero que propiciou com que atores e comediantes se integrassem a cena musical, com uma consequente popularização da linguagem e o fortalecimento da empatia com as platéias mais amplas. O reaproveitamento de figurinos, já não mais utilizados pelas grandes casas de ópera, era um exemplo de flexibilidade e pragmatismo que muitas das vezes criavam situações inesperadas, bizarras e mesmo cômicas em cena. As variantes formais que se constituíram a partir da prática dos compositores e também das necessidades práticas do ambiente e da vida musical da época, fizeram com que se adota-se de forma cada vez mais constante da pequena forma nas composições, no lugar das grandes formas, com destaque para as formas vocais curtas. Elas ocorriam a partir de um mesmo gênero, como a polca, por exemplo, que se desdobrava em variantes como a polca militar, polca brilhante, polca-tango; determinadas pelo uso teatral ou mesmo pelo efeito narrativo que se desejava projetar sobre o ouvinte. Ou seja, uma estilização basicamente funcional. Esse movimento de variação e adaptação ocorreu de forma similar em relação a instrumentação adotada nas diferentes situações e espaços. O piano, por seu alto custo e necessidade de espaço, era um ítem de mobiliário apenas nos lares da classe média e alta carioca. Ao passo que as classes populares só podiam ter acesso a instrumentos mais baratos e de fácil transporte, como o violão, o 6 – Ibidem. 7 - EINSTEIN, A. – La Musique Romantique. Gallimard, 1959, pág.339.

bandolim, o cavaquinho, o pandeiro e a flauta.


23 urbana pôde ganhar novos espaços, além dos já mencionados anteriormente, o reinado do piano precisou ser compartilhado.O repertório, majoritariamente escrito para piano ou em redução, precisava ser arranjado para essas outras formações, onde as cordas predominavam. Nesse processo de arranjo, as variações e, principalmente, as adequacões necessárias Esse fator, influenciou a música nos salões, que se tornou mais ágil, variada e acessível. Multiplicaram-se também, os instrumentistas de sôpro, com a instituição e organização das bandas militares. Como reflexo dessa diversificação, a música com relação aos instrumentos de chegada do arranjo, acabaram abrindo espaços para que ocorressem transformações que, pouco a pouco, foram alterando as próprias características desses gêneros musicais. Ainda que essas mudanças, fossem, muitas das vezes, meramente ornamentais com relação ao gîenero de partida, foram decisivas no sentido da apropriação, tanto por parte dos músicos como dos ouvintes, das danças de tradição européia. Essa aculturação, criou uma zona intermediária (de prática e de linguagem) entre a chamada música escrita e popular, que seria o campo fertil para a música popular carioca e brasileira.8 A opereta, e o teatro musical de forma geral, ao incorporarem diferentes linguagens, puderam se adaptar as mudanças de costumes e de formato, de maneira a responder com a agilidade da crônica e da sátira, e refletir as questões presentes na sociedade daquele momento. Entre os exemplos mais importantes de operetas que evidenciaram esse processo de reescritura e renovação histórica, podemos citar a Beggar’s Opera de John Gay, composta em 1724 e que foi adaptada posteriormente por Bertolt Brecht e Kurt Weill na Die Dreigroshenoper de 1928, estreada na Alemanha pré-nazista; e ainda no Brasil, recebeu outra adaptação na Ópera do Malandro de Chico Buarque, estreada em 1978, em plena ditadura militar. O compositor alemão Jacques Offenbach (1819-1880), foi um dos mais importantes criadores do gênero no século 19. Suas operetas crticavam tanto os monarcas despóticos e a moral hipócrita das côrtes, como os hábitos mercantilistas de uma burguesia urbana ascendente; mas, sobretudo, faziam a crítica das falibilidades e fraquezas do caráter humano. O Segundo Império, na França, sob Napoleão III, “assistia e aplaudia suas operetas, que o fustigavam”. 9 Offenbach foi um dos responsáveis pelo estabelecimento de um modelo de luxúria e mundanismo no imaginário da época. Nesse sentido, entre suas criações, destacam-se Orphée aux Enfers (1858) e La Vie Parisienne (1866) que “contribuiram por longos anos para criar a imagem de Paris como o Eldorado do prazer” 10, assim como outras produções famosas do período. 8 – “A burguesia aceitou com mais facilidade as formas musicais negras do povo e as adotou. Mas reagiu contra elas, deformando-as pela aculturação semierudita da classe, e convertendoas em música instrumental.” Mário de Andrade - Música, doce, música. Livraria Martins Editora, segunda edição, 1976, pág. 322. 9 – EINSTEIN, idem, pág. 342. 10 – ibidem, pág. 342.


24 Ao lado do entretenimento popular, frequentemente crítico e satírico, uma vez que parodiavam grandes clássicos e suas narrativas, personagens e mesmo suas dicções “doutas” de linguagem; a opereta abrigava artistas de diferentes origens, estilos e habilidades. Essa breve digressão sobre a opereta, justifica-se, na medida em que foi um exemplo bastante disseminado, das formas com que a cena musical e teatral do Rio de Janeiro da segunda metade do século 19, absorveu e reprocessou gêneros musicais e dramáticos importados - especialmente de matriz francesa e italiana -, reconfigurando-os segundo sua realidade material, técnica e artística, como em relação as temáticas adotadas que utilizavam a paródia e a sátira como recursos de linguagem principais, e que foram marcantes para as artes, de forma geral, nas décadas seguintes. Esse conversor11 de linguagem, e sua alta capacidade criativa, propiciou novas narrativas a partir de velhos modelos e uma nova articulação de materiais, numa constante carnavalização de temas, personagens, situações e, principalmente, das percepções da vida social.12

Essa capacidade em transformar observação cotidiana em materia criativa foi determinante no estabelecimento de uma cultura urbana carioca, que se projetou, de forma geral, tanto nas artes e nas músicas populares, quanto na chamada música de concerto que se seguiu a esse período. O teatro musical do café-concerto (ou cantante), assim como as paródias musicais dos pequenos teatros do centro da cidade, foram sucessivamente criando certos padrões de inconformismo com relação a moral e aos costumes, que se colocavam como hegemônicos, e na abordagem das mazelas politicosociais e raciais da metrópole carioca. O espetáculo de variedades, que atravessou os séculos 18, 19 e 20, abrigava, por sua vez, uma diversidade de expressões que o tornou atraente a públicos diversos, de diferentes classes e gostos sociais. `A opereta de J. F. Halevy, J. Offenbach e Franz Lehár, sucedeu-se de uma forma diferenciada, segundo os contextos culturais e musicais de diferentes países, foi sendo nacionalizada. Por exemplo, as criações do irlandês Arthur S. Sullivan (18421918), tornaram-se uma das matrizes do musical norte-americano em fins do século 19 e início do 20. 11 – A idéia de conversor resume os processos e procedimentos pelo qual um elemento, idéía, objeto de pensamento ou estético passa ao ganhar uma outra definição no tempo-espaço da linguagem. Pode-se dizer que ele depende da capacidade do conversor, para adquirir uma alta qualidade do processamento, para usarmos uma metáfora informática. Ou seja, quanto mais informado e capacitado fôr (no caso, qualitativamente), mais completa – mais interessante ou não, é uma questão que já faz parte de uma etapa posterior do processo – será a conversão de linguagem. 12 – Sobre o tema, consultar os estudos do antropólogo Roberto da Matta; bem como, os estudos do filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin.

(Atualmente no Brasil, após um período riquíssimo onde o teatro-circo e a chanchada floresceram ao longo do século passado, e nos quais a incentividade


25 e o espírito crítico de adaptação a nossa realidade, feram sua marca registrada ; as grandes produções de musicais, verdadeiras franquias dos originais da broadway, não permitem que haja a mínima alteração em suas encenações. Uma verdadeira colonização da cena teatral, e muito pior, do imaginário e gosto das platéias.) Esse paralelismo entre o chamado grande estilo, entre gênero, ou gêneros hegemônicos num determinado período histórico, e sub-gêneros e derivações de toda espécie com relação aos padrões estabelecidos pelo gênero originário, marcaram a vida musical nas cidades que agrupavam grupos humanos de diferentes origens e culturas. Ao longo dos séculos 18 e 19, passou-se a se designar essas expressões em campos distintos da sociedade como: arte popular e arte séria; acadêmica ou erudita (a escolha do palavrão – como dizia Mário de Andrade, fica por conta do freguês). Nesse contexto as adaptações “semieruditas” – a que também se referiu Mário de Andrade anteriormente - resultaram nas modinhas, lundus e maxixes, majoritariamente, instrumentais. Ao subtrair o texto, de tradições musicais oriundas de cantos rituais religiosos, pregões e músicas de trabalho, e ao contrário do que se verificou na música negra norte-americana onde os cantos de trabalho deixaram os campos e se reinventaram no blues urbano ; a forma instrumental “clareava” essas manifestações, que se incorporavam como estímulos basicamente rítmicos a linguagem instrumental, numa apreensão e incorporação mais subjetiva, de comunicação indireta. Mas, a chamada arte popular, e em nosso caso, especificamente a música, abordada apenas como reação a música séria, expressa uma visão redutora da questão, uma vez que não contempla o fato de que a própria chamada arte séria, deriva das formas, práticas e materiais da cultura popular do passado. Enfim, ambas, em seu paralelismo não-simétrico se interpenetram ao longo dos tempos, devendo-se abandonar qualquer idéia de pureza ou linearidade, a priori. Essa retroalimentação que caracteriza a cultura, embaralha os dados e inviabiliza que se aplique tanto a linearidade de um lado, como o dirigismo de certa crítica cultural sociológica, de outro; sendo que esta última, encontra explicações totalizantes nos fatos políticos e sociais para explicar os fenômenos da criação artística. Assim que, a partir de um determinado input, podem ser gerados os mais distintos outputs em têrmos de criação artística, todos eles com o seu grau específico de validade ou de validação social. Retomando, a partir dessas idéías, e aplicando-as ao contexto da segunda metade do século 19 na cidade do Rio de Janeiro, onde havia todo um burburinho palpitante na região central da cidade, com os teatros populares, os café-cantantes e gafieiras ; deve-se destacar que existia também uma vida musical nos subúrbios, de características diferenciadas do centro da cidade, sendo desenvolvidas por aqueles que, seja pelo extrato social, seja por


26 suas heranças culturais próprias, não participavam da cultura de entretenimento boêmia, o proletariado urbano. José Ramos Tinhorão destaca a Festa da Penha que reunia portugueses, negros e mestiços (oficialmente desde 1728), como um marco na reunião de compositores populares em formações musicais que que tanto se prestavam as celebrações sacras como as pagãs.13 Os subúrbios eram tomados por gafieiras, circos e, posteriormente, pavilhões 14, onde se apresentavam artistas populares que desenvolviam diferentes habilidades. Eram em sua maioria palhaços que atuavam em peças dramáticas curtas, e que tocavam instrumentos musicais e cantavam. Polivalentes eram também acrobatas e cuidadores de animais, e ainda podiam se encarregar da administração, limpeza e transporte das lonas e tablados. Eram artistas “faztudo”, como se dizia. Outro aspecto importante da vida musical carioca do século 19, foram as bandas militares: “as bandas de música da Guarda Nacional – organização paramilitar de responsabilidade de grandes proprietários, criada por lei de 18 de agosto de 1831 – foram as primeiras a incluir em seu repertório, além das marchas e dobrados de estilo, números de música clássica e popular, em competição com as bandas de negros brasileiros, únicas existentes até então para o fornecimento de música durante festas de adro e outras solenidades cívicas ou religioso-pagãs.” 15 (A referência a “banda de negros” de Benjamin de Oliveira acima, nos remete ao caso da Corporação Musical dos Homens de Côr de Campinas, no Estado de São Paulo. A cidade foi a última a abolir a escravatura no Brasil. Uma sociedade assim, tão conservadora, não permitia que os negros participassem de sua banda musical, a Banda Carlos Gomes, fundada em 1895 por um grupo de imigrantes italianos. Assim, os negros partiram para a criação da própria banda musical em 1933, que continua ativa até os dias de hoje. Ela ainda abriga um programa educativo aberto a todos, “sem distinção de raça, credo e idade”, fazendo valer o que consta em sua ata de fundação.) Voltando ao Rio do final do século 19. Havia então, uma grande dificuldade em se encontrar músicos que pudessem 13 – TINHORÃO, J. R. - Música popular de índios, negros e mestiços. Editora Vozes, segunda edição, 1975. 14 – “Essa forma de teatro combinada com circo, que mais tarde tomaria o nome de Pavilhão”, declarou Benjamin de Oliveira em entrevista de 1947 ao jornalista Brício de Abreu, que a publicaria sob o título “O maior artista negro do Brasil – Benjamin de Oliveira”, em seu livro Esses populares tão desconhecidos, Rio de Janeiro, E. Raposo Carneiro Editor, 1963, p. 36. Citado por TINHORÃO, J. R. – Os sons que vem da rua, Editora 34, segunda edição revista e ampliada, 2005. 15 – idem, pág.111.

participar dessas formações marciais que se espalhavam pelas principais cidades do país, como o Rio, Salvador e Recife.


27 Ao instituir-se a carreira militar para o participante das bandas, possibilitou-se um grande incremento de interessados, que desenvolviam praticamente carreiras paralelas como militares, e músicos da banda. Tinhorão esclarece outro ponto importante de conexão entre as bandas militares e a vida musical brasileira. Segundo ele, “no Rio de Janeiro, a ligação entre as bandas militares e a música popular seria favorecida pelo advento do Carnaval moderno `a moda européia, introduzido em 1855 por iniciativa do escritor José de Alencar numa tentativa de substituir o entrudo.” 16 Portanto, numa ação oficial para controlar e ocupar o espaço público do entrudo, cujos participantes saíam às ruas em grupos e jogavam nas pessoas ovos e bolas de cêra cheias de água (limões de cheiro). E que segundo a crônica da época, ás vezes, ao invés de água perfumada, jogavam líquidos mal cheirosos, causando incidentes. Esta prática foi proibida no Rio de Janeiro em 1853. Interessante que a doção oficial do carnaval, vem como um ato reprerssor e regulador da manifestação popular. Essa atitude de repressão, também viabilizou um processo contínuo de cooptação dos músicos negros e mestiços, que conviveriam numa dicotomia de inserção/exclusão, que permanece até os nossos dias. Era comum, o músico da banda militar sair do quartel ao fim do dia, e se juntar aos amigos músicos em rodas de choro na boêmia carioca; ou mesmo fazer um bico nalgum teatro, gafieira, igreja ou festa. As bandas militares também atuavam periodicamente nos coretos ocupando praças públicas, com o seu repertório de música instrumental que combinava marchas, dobrados, valsas em arranjos próprios. A demanda por esse material possibilitou o aparecimento de mestres de banda com habilidades técnicas cada vez mais desenvolvidas. Esse ambiente culminou com a criação do mais completo conjunto instrumental militar do país: a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, fundada em 1896. Foi uma corporação musical imprescindível na ampliação e formação de instrumentstas, ativa e atuante até os dias de hoje. Seu primeiro diretor musical foi Anacleto de Medeiros (1866-1907), compositor e instrumentista de choro exepcional.17 Ao assumir a Banda, Anacleto convidou a nata dos músicos de choro com quem estava habituado a tocar. O resultado musical foi muito original, a dureza e formalidade dos arranjos marciais, foram substituídas por uma leveza de fraseado e dinâmicas, características do choro, o que levou a uma aceitação imediata por parte do público em geral, ainda que a Banda se apresentasse majoritariamente em solenidades e ocasiões oficiais. Importantes para a cena musical urbana, os cafés-cantantes foram muito comuns no Rio de Janeiro na segunda metade do século 19. Eram espaços 16 – Ibidem, pág. 115. 17 – Uma abordagem original da música do compositor da Ilha de Paquetá, pode ser encontrada no LP que Rogério Duprat arranjou e regeu: EVOCAÇÃO IV – ANACLETO DE MEDEIROS, LP, Selo Eldorado,1981.

precários, onde geralmente um piano de armário castigado e um pequeno tablado (que servia de palco), ofereciam aos fregueses as mais diversas


28 atrações, de música vocal e instrumental `a números de dança, sendo esses últimos, nem sempre admirados, conforme comenta a crônica da época. Um legítimo ambiente de boêmia, enfim, de etílismo (não confundir com elitismo): Nesses Cafés-cantantes tinha dominado, no início do século XX, como lembraria o memorialista Luis Edmundo, `a cançoneta montemartroise, sobretudo a que se acomodava `a tendência patrícia pelo double sens, suja, maliciosa ou pornográfica: ‘cantoras do gênero lírico, vindas embora da Inglaterra, da Alemanha, da Espanha e sobretudo da Itália’ – recordava Luis Edmundo -, ‘no Rio de Janeiro não conseguem fazer grande sucesso. O canto lírico não se fez para o café-concerto do Brasil. O que nele se ama com fervor é a cançoneta brejeira e leve. Nada mais.” 18 Deduz-se dessas observações, associadas as outras relatadas por João do Rio e Jota Efegê, que o gosto popular carioca, inclinava-se mais para a leveza das canções e para a crônica de costumes. A brejeirice de uma cançoneta, talvez, fôsse de encontro ao cotidiano mais informal e a escala de universo do homem comum. O panteão fantasioso e mítico das narrativas históricas e literárias, que as chamadas óperas sérias românticas (sempre me incomoda ver essas duas palavras lado a lado, “arte” e “séria”), e mesmo operetas como O Conde De Luxemburgo de Franz Lehár, por exemplo, não encontravam acolhida no interesse e gosto popular. Ao passo que a opereta-bufa, alcançava e se comunicava com a dimensão cotidiana de um público que passava por transformações sociais e morais velozes na sociedade carioca de então. Captando as inquietações desse momento, emergem nomes de compositores como Chiquinha Gozaga (1847-1935) e Luis Moreira (1872-1920), entre outros tantos. No entanto, no início do século 20, iniciava-se um novo ciclo na vida musical carioca, os precários cabarets perdiam os seus artistas revelados, para os teatros de revista. “As humildes casas de chope, os trovadores do povo estavam passando sem alarde para os palcos do teatro de revista, onde haviam de brilhar daí em diante exibindo o seu talento para as primeiras gerações de famílias de classe média, afinal libertadas pelo advento da estrutura industrial dos velhos preconceitos patriarcais que faziam das diversões em público um privilégio masculino.” 19 Também sem alarde, desde “a abolição da escravidão em 1888, parte do contingente liberto residente no Vale do Paraíba, foi atraído ao Rio de Janeiro.” 20 18 – TINHORÃO, J. R. – Os sons que vem da rua, citando Luis Edmundo em O Rio de Janeiro do meu tempo, vol. 3, pág. 471. 19 – idem, pág. 147. 20 – NEVES Victor – Desde que o samba é samba… Roteiro para estudos, em Marcelo Braz (org.) Samba, cultura e sociedade, Editora Expressão Popular, 2013, pág.128.

Esse novo contingente trazia na bagagem


29 também melodias e cantos do chamado samba “baiano” e de “umbigada”. A partir desse movimento aglutinador da população liberta ou livre, iniciou-se nos morros uma trajetória de consolidação do samba urbano como expressão de sua realidade, e que seria nas décadas seguintes, a essência de sua resistência e identidade cultural. Em meio as restrições e proibições impostas as práticas musicais baseadas na herança africana dos escravos, elas encontraram, ainda, na geografia peculiar da cidade do Rio de Janeiro, espaços para que pudessem ser praticadas com um certo grau de isolamento, seja nos morros, como nos subúrbios distantes e nalgumas cerimônias religiosas de rua que já absorviam um certo grau de sincretismo. Cabe a pergunta: e onde estavam os compositores e músicos da chamada música séria desse período?

“O garção de costeleta”

21

Sob o Império, a vida musical da colônia avançava segundo os humores da corte e do Imperador de plantão. Importavam-se mestres de capela da Europa e instrumentistas que pudessem entreter o círculo da nobreza. Qualquer atividade didática e estruturante com relação ao meio musical, era uma mera consequência desse objetivo mundano. O Instituto Nacional de Música foi criado em 12 de janeiro de 1890, depois tornaria-se a Escola de Música da UFRJ). No ato de sua criação foi extinto o Conservatório de Música: a República substituía a Monarquia. O dossiê Miguez foi um ponto de partida. Nele, o compositor Leopoldo Miguez (1850-1902) relata: “o Sr.Dr. Antonio Gonçalves Ferreira Ministro da Justiça e Negócios Interiores em 1895, fez-me a honra de encarregar-me de uma comissão especial para visitar os melhores conservatórios franceses, belgas, alemães e italianos e estudar sua organização.” 22 Após visitar conservatórios na Alemanha, França, Áustria, Bélgica e Itália, conclui o inspetor globetrotter: ”os conservatórios alemães e belgas são, incontestavelmente aqueles cujos resultados são mais práticos e positivos, e onde a ordem e a disciplina são irrepreensíveis”, 23 após tecer críticas ao ambiente “liberal e indisciplinado” que encontrara em França e Itália… 21 – ANDRADE, O. – final do poema O Escaravelho de Ouro: “Venceu o sistema de Babilônia / E o garção de costeleta.” Publicado no volume Poesias Reunidas, Editora Civilização Brasiliera, quarta edição, 1974, pág. 195. 22 - MIGUEZ, L. - Carta a Carlos de Mesquita de 30/11/1883. Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional, pág, 3. 23 - idem, pág. 29.


30 Miguez encarnava um discurso e uma postura moralista e disciplinadora que soava bem aos ouvidos dos comandantes da récem proclamada República, que se propunha - ao menos assim se apresentava a sociedade brasileira -, a constituir-se um regime de austeridade e disciplina, onde se praticaria a “moral e os bons costumes”. O Instituto Nacional de Música precisava responder ao chamado da pátria e assim buscava crescer em números totais, com mais professores, alunos e instalações, para que pudesse ocupar o seu espaço educativo na República, traduzindo seus fundamentos, em ações na vida musical. Leopoldo Miguez, esteve `a frente do Instituto até sua morte, em 1902. Pode-se imaginar os conflitos e embates que o douto germanista enfrentou numa cidade onde a ópera italiana, a opereta e o teatro musical eram centrais na sua vida musical. O republicano de primeira hora, que não suportava “vegetar neste degredo, neste país de botocudos”24, iria iniciar uma longa tradição elitista na chamada música de concerto federal, agora, sem cetro, mas de casaca, e cujos reflexos podem ser sentidos até hoje. A passagem do “garção de costeleta” para o índio de casaca se deu nas primeiras décadas do século 20, e foi uma etapa onde, tentativa e erro de imitação, criaram em seus desvios, deformação e acoplamentos, que foram as mães da invenção. O certo é que foi um período impuro, instável e de contaminações estilísticas e, por isso mesmo, múltiplo e interessante. Não seria diferente com Villa-Lobos. Aliás, essa digressão histórica sobre a vida musical carioca no Rio de Janeiro do século 19, tem como objetivo e ponto de chegada, fornecer elementos ao leitor para que possa contextualizar o ambiente de formação da personalidade musical de Villa-Lobos. 24 – Carta de Miguez a Carlos de Mesquita, de 1883, citada por Monica Vermes em Por uma renovação do ambiente musical brasileiro: o relatório de Leopoldo Miguez sobre os conservatórios europeus, 2004. http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv8/miguez.html

Um desajustado musical Perguntam-me porquê vivo no estrangeiro. Na Europa e nos Estados Unidos já me aceitaram há muito tempo, enquanto no Brasil ainda discutem meus plágios.”1 Heitor Villa-Lobos

Muito já se escreveu sobre a juventude de Villa Lobos e suas relações com os chorões e músicos populares. Filho de Raul Villa Lobos, funcionário da 1 – Citado em O Globo em 05/03/1987, Segundo Caderno, pág.1.


31 Biblioteca Nacional e músico amador, e que proporcionou desde cedo, ao jovem Heitor frequentasse rodas de choro, reuniões musicais um pouco mais distintas e assim pudesse acessar um universo cultural e musical heterogêneo; esse ambiente combinava a informalidade dos músicos populares, boêmios, com a música de câmara em recitais e saraus. O depoimento que Pixinguinha gravou para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, fornece algumas pistas de como o jovem compositor era recebido e considerado no meio ao qual pertenciam os chorões e sambistas: “Ele era garoto. Ia sempre na minha casa na Rua Itapiru, número 97. Tocava violão muito bem, como sempre tocou. `As vezes, acompanhava meu pai. Mais tarde é que toquei uns chorinhos pra ele. Sempre gostou de música. Tocava violoncello no Cinema Odeon e fazia umas pausas complicadas (grifo nosso). Mas todo mundo achava Villa-Lobos meio esquisito, sabe? Não davam muito valor a ele. Villa-Lobos foi um sujeito que chegou “antes” a uma realidade que todos nós sabemos. Eu conheci Villa-Lobos muito antes de 1922. Como eu já disse, ele ia na minha casa porque admirava os “chorões”. `As vezes até fazia acompanhamento no violão. Era bom no violão. Mas o negócio era meio antigo e ele tinha uma formação moderna, por isso talvez não acompanhasse bem, para nós. Mas ele gostava. Eu o considero um gênio. Tem obras de Villa-Lobos que marcam. Não só os “Chorinhos” número 1 e 2, porém várias outras. Aquele “Uirapuru”, o efeito que ele tirou é material. Ele tinha que ter conhecimento. Villa-Lobos, para mim, é um Stravinsky, um Wagner, essa gente toda. Não é só questão de sentir, mas também do efeito que ele tira, no conjunto. Considero isso uma grande arte”. 2 Nesse depoimento gravado em 1968, Pixinguinha adota um tom respeitoso, reverencial em relação a Villa-Lobos, mas deixa escapar detalhes de uma convivência entre o compositor dos Choros, e os chorões e músicos populares em sua juventude, que revelam um certo grau de tensão e desajuste. Inicialmente, Pixinguinga pontua que Villa “fazia umas pausas complicadas” ao violoncello, o que denota já uma escapada do músico em relação as práticas convencionais de estilo. Aliás, o círculo de músicos que praticam o chôro, em geral, apresentam uma acentuada característica conservadora na postura estética. Talvez por exigir que seus músicos tenham um alto grau técnico para praticá-lo, o choro é um meio exclusivista, um tanto fechado. Ele aferra-se a um repertório fixado e venerado como uma biblía. É refratário a inovações, e foi praticado no final do século 19, por uma espécie de elite da música popular, a quem Mário de Andrade chamava de música “semierudita”. Daí, a sensação de desajuste a que Pixinguinha se refere mais de uma vez em seu depoimento. 2 - https://www.mis.rj.gov.br/acervo/depoimentos-para-a-posteridade/


32 Mais adiante, ele afirma que “todo mundo achava Villa-Lobos meio esquisito”. Essa generalização nos leva a crer que isso não ocorria apenas no meio do choro e da música popular, mas no meio musical em geral Villa era considerado um desajustado. Apesar de reiterar algumas vezes que ele “era bom no violão”, Pixinguinha admite que – por sua formação moderna – “não acompanhasse bem, para nós.” Revelando mais uma vez, uma impressão geral das rodas de choro, compartilhada por ele, inclusive. Em seguida a isso, como que para reparar as confidências negativas, retoma o tom laudatório, colocando-o ao lado de Stravinsky e Wagner, “essa gente toda”. A sinceridade desse depoimento nos informa muito mais que grande parte da bibliografia existente sobre o compositor e suas relações com a música popular. Uma bibliografia que, em geral, ao invés de análise, se afunda em adjetivos, em verdadeiros textos rebarbativos que estabelecem uma camada crítica oficialesca e vazia em tôrno da obra do compositor, e que escondem o que há de mais precioso em sua linguagem: a heterogeneidade como estratégia de criação. A convivência de Villa Lobos em diferentes meios musicais, possibilitou que realizasse uma síntese pessoal, pondo de lado os elementos “daquele negócio meio antigo” como se referiu Pixinguinha em relação`a prática dos velhos chorões. Buscou nas tradições da música popular, novos materiais que serviriam de matéria prima bruta; e essa arqueologia pessoal o levou, entre outras coisas, a sair do Rio de Janeiro atrás de novas geografias musicais pelo país. Ao justapor ou sobrepor novos arranjos e soluções entre o material popular e folclórico, e as informações da música européia de concerto, realizava, um uso ativo de seu conversor no sentido de banir hierarquias entre os materiais. E um estilo musical, constitui-se basicamente de uma série de hierarquias que regulam os diferentes formantes e suas especificidades. Pode-se notar que ao longo do tempo, as críticas e restrições a música de VillaLobos foram mudando de campo. Já observamos, que havia um certo desconforto do meio dos músicos populares com relação as estranhezas dele. Seguiram-se as apresentações de suas primeiras composições, críticas ferozes na imprensa, particularmente do vetusto Oscar Guanabarino que, aliás, se indispunha com todos, muitas das vezes por motivos pouco confessáveis, como foi o caso da polêmica com Leopoldo Miguez e a fundação do Instituto Nacional de Música. Foi criticado inicialmente pelos acadêmicos, por ser moderno; e mais tarde, pelos modernistas, por ser reformista, adesista e conivente com a ditadura de Getúlio Vargas. Aqui, no entanto, o foco de análise irá se ater as consequências que essas condicionantes sociais e políticas tiveram na própria linguagem musical de Villa. O texto musical, composto por camadas de escolhas e que revelam ausências intencionais, bem como, contaminações não explícitas, será o mapa e o guia, onde encontraremos codificados os processos de criação.


33 A intuição e inteligência o levaram a perceber que nos novos tempos, as particularidades de cada cultura despertavam enorme interesse, especialmente na Europa, que inicava um processo de abertura ao conhecimento de culturas não-européias. Essa percepção levou Villa Lobos a procurar novas fontes e horizontes musicais, até mesmo como reação a um certo desconfôrto com relação a realidade musical que o cercava. 3 Encontrou nas fontes musicais dos índios, um terreno não controlado e codificado por grupos já estabelecidos, como era o caso do choro urbano. Era uma nova fronteira que se abria ao bandeirante de Laranjeiras. A primeira viagem ás terras indígenas, como parte da Missão Rondon, de Edgard Roquette Pinto se deu em 1912, da qual trouxe um grande acervo de gravações.4 Nele constavam desde registros de conversas dos indígenas a também os seus cantos. Em seu livro Rondônia (1917), Roquette Pinto apresenta transcrições de partituras de cantos indígenas feitas por Astolfo Tavares, a partir das gravações, as quais Villa-Lobos também teve acesso. Para algumas dessas transcrições, ele realizou arranjos, e posteriormente, as incorporou em algumas de suas obras. Entre elas, essa melodia utilizada nos Choros n.3.:

Havia encontrado um material original, inédito de circulação nos meios urbanos, que ainda ressentia os parcos meios de reprodução. Eram melodias de uma crueza e beleza selvagens, pedindo para serem possuídas, aculturadas, incorporadas e reinventadas. Esse material apontava para além de invocações 3 – Conforme depoimento de Pixinguinha, mencionado anteriormente. 4 – O acervo pode ser ouvido no site: https://soundcloud.com/nimuendaju/sets/rondonia

representativas românticas e parnasianas do índio, que era idealizado na figura


34 do bom selvagem ou do guerreiro valente; como, por exemplo, no clássico poema indigenista I-Juca Pirama (1851) de Gonçalves Dias (1823 - 1864): Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo Tupi. Tinha `as mãos, a matéria prima bruta, sem intermediários literários, como no caso do Il Guarany de Carlos Gomes. Nesse contato direto com as gravações, pôde apreender sutilezas de emissão, de pausas e respiros; aqueles formantes complementares na comunicação oral que foram estudados por Roland Barthes e Roman Jakobson mais tarde 5, e que integram e informam o processo de comunicação oral. Mas a operação de linguagem que iria iniciar Villa-Lobos era sobretudo pessoal, de auto-conhecimento, uma equação própria que combinava uma releitura pessoal do acervo da música popular e da música escrita, com as suas experiências como observador e participante nas rodas de música pela cidade. E ainda, das experiências de uma tumultuada convivência com o meio acadêmico, em sua breve passagem pela escola formal de música, ao frequentar, a classe de Harmonia de Frederico Nascimento no Instituto Nacional de Música. Afinal, teve um percurso autodidata. 6 O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, observa que o narcisismo de nossa cultura ocidental “enxerga todo saber "outro" como uma versão precária de si mesma.” 7 Ao contrário da música acadêmica, que tematizava o indígena, mas empregava a linguagem do romantismo europeu, Villa-Lobos debruçou-se sobre a música indígena com o apetite da curiosidade. Não buscou aplicar a ele, regras ou procedimentos já usados. Ao invés de incorporar seu objeto como um elemento decorativo, exótico, e proceder uma aculturação de linguagem (reduzindo aos parâmetros da sua 5 – BARTHES, R. – Le grain de la voix. Éditions du Seuil, 1999. JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. Cultrix, 2008. 6 – Brincava ele, que tinha se formado pela “Universidade de Cascadura”, bairro do suburbia da zona norte do Rio, tendo Pixinguinha como mestre.”Villa estudava nos anos de 1910, o Cours de Composition Musical de Vincent D’Indy (1912), um apanhado da técnica romântica combinada a formulações estéticas de um nacionalista conservador. Citado por Donatello, Grieco, em Roteiro de Villa-Lobos, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, Pág. 17. Disponível em: http://funag.gov.br/loja/download/620-Roteiro_de_Villa-Lobos.pdf 7 – CASTRO, E. Viveiros de - Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. Ubu Editora, 2018, pág 11.


35 técnica, tudo o que extravazasse esses limites), domando, enfim a sua natureza; vai extrair dele o que oferece de específico e particular. Não como expressão de incompletude ou precariedade, mas trabalhando as lacunas e novas geometrias presentes nesse material. Assim que nesse processo de acoplamento e contaminação sintática, construiu a sua malha estrutural da composição como uma colcha de retalhos, adotando o fragmento como unidade de medida, e sobretudo, o diferente, o outro como voz em um discurso essencialmente dialógico. Tornam-se sem propósito, os questionamentos quanto a autoria das melodias, e consequentes “plágios”. Pois encontra-se numa esfera de incorporação, numa dinâmica de apropriação e devoração do coletivo não letrado, pelo individualismo do conversor/autor. Distante portanto da dinâmica que transferiu saberes e hábitos de culturas tradicionais para a sociedade dos objetos e do lucro capitalista. Que transforma tudo em propriedade. Nem mesmo é o caso de se questionar em têrmos de legitimidade, tal apropriação cultural. Acontece que, naquele momento histórico, ocorreu um processo de validação. Ou seja, a cultura indígena, validando uma nascente República em busca de símbolos que representassem uma pretensa unidade nacional, e que validassem as suas concepções políticas e de Estado. Nos bailados Amazonas, e Uirapuru, ambos de 1917, o primeiro com argumento escrito pelo pai do compositor e o segundo, por ele próprio; são obras onde ocorre uma contaminação do elemento indígena atuando em diferentes esferas: no argumento, na construção temática, na composição e na instrumentação. E que, apesar de intitulados como poemas sinfônicos – que era o suprassumo da forma musical narrativa do Romantismo hipertrofiado de Hector Berlioz e Franz Liszt, e entre nós, ecoava na composição Marabá (1898) de Francisco Braga (1868 - 1945), por exemplo – são obras drámatico-musicais em que as lacunas de adequação da temática nativa e indígena com relação a forma musical sinfônica descritiva, tensionando sua linguagem. Essa dificuldade, no caso, colaborou para que Villa Lobos se distancia-se da fôrma musical de referência. O início do século 20, foi marcado pela composição de bailados na Europa e Rússia. As companhias profissionais de dança, em permanente turnê, viviam um processo de renovação coreográfica que pedia novas composições musicais. Era, portanto, um campo de trabalho concreto para os compositores como Debussy, Satie, Stravinski e Prokofiev. Villa Lobos, com sua argúcia, buscou também se aproximar do gênero. No entanto, Amazonas, teve apenas a sua primeira apresentação em Paris, no ano de 1929, doze após sua criação; e Uirapuru, no Teatro Colón em Buenos Aires, em 1935, dezoito anos depois de sua criação; como parte da programação oficial da visita de Getúlio Vargas a Argentina. Para exemplificar a forma como o fragmento se materializa em seu processo composicional, tomemos o início de Uirapuru, em que, a primeira entrada da flauta solo, anunciando o canto do pássaro, interrompe a seção inicial que apresentava uma atmosfera contrastante, densamente harmônica, debussyana


36 (e na instrumentação destaca-se o uso de duas harpas, característico do compositor de L’Aprés midi d’un Faune, composta em1894), vaga e indefinida. De forma blocada, segue-se ao canto da flauta, um ostinato de tutti vigoroso e pesado, que contrasta novamente com a natureza do solo de flauta. Os topos da composição são expostos de uma forma clara, isoladamente, como elementos de uma fórmula quimica. Para os dois baliados, Villa-Lobos utilizou o violinofone (tocado pelo spalla) 8; em Uirapuru, faz soar o instrumento no trecho final da peça, como se emergisse um animal raro na fauna orquestral, dialogando com seus “pares” instrumentais: a flauta, primeira invocação do canto do pássaro e o próprio violino acústico (o seu duplo) ao lado, na primeira estante. Por sua característica de ressonância metálica, o violinofone ganha em projeção de volume e direcionalidade (como um trompete), e tem seu timbre modificado em relação ao violino tradicional, com a supressão de frequâncias médiograves.9

8 - O volinofone foi criado pelo engenheiro elétrico alemão John Matthias Augustus Stroh, no ano de 1899, em Londres. Com o objetivo de possibilitar gravações fonomecânicas de peças do repertório de violino. O filho do inventor, comercializou o instrumento a partir de 1901. O instrumento é constituido por uma campana metálica que substitui a caixa de ressonância.Uma membrana acoplada a campana capta as vibrações do cavalete. 9 - Um video com o trecho mencionado do Uirapuru, com o violinofone, está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wbJK2kByiI8


37

Reproduzo em seguida, o argumento escrito por Villa-Lobos, conforme seu manuscrito 10. UIRAPURU´ (“Le petit oiseaux enchanté) (Lenda do pássaro encantado) (BAILADO BRASILEIRO): (Conta uma lenda que a magia do canto noturno do Uirapurú era tão atraente que as indias a noite se reuniam, `a procura do trovador mágico das florestas brasileiras, porque os feiticeiros lhes contaram que o Uirapurú era o mais belo cacique que existia sobre a terra e era o rei do amor). Noite tropical e enluarada. Numa floresta, calma e silenciosa, aparece um índio feio, tocando uma flauta de osso pelo nariz, querendo desafiar o passaro encantado da floresta, que, com o seu canto magico, atrái as jovens indias. Ao ouvirem o som da flauta, surge em grupo alegre as mais belas selvícolas da região do Pará. Decepcionam-se, porem, ao descobrirem aquele indio feio e, indignadas, enxotam-no brutalmente com pancadas, empurrões e pontapés. Anciosas, procuram pelas folhagens das arvores o Uirapurú, certas de encontrarem um lindo jovem. São testemunhas desta anciedade os vagalumes, os grilos, as corujas, os bacuráus, os sapos intanhos, os morcegos e toda a fauna noturna. De quando em vez, ouvem-se ao longe alguns trilos suaves, que, anunciando o Uirapurú, irradiam o contentamento de todo aquele ambiente. Seduzida pelo mavioso canto do Uirapurú, surge uma linda e robusta india de flexa e bodoque em punho, como uma adestrada caçadora de passaros noturnos. Ao ver o passaro encantado, lança-lhe a flexa, prostrando-o por terra. Surpreende-se porem, ao ve-lo transformado num belo indigena. É ele disputado por todas as indias, que tambem anciosas o esperavam, saindo vitoriosa, no entanto, a caçadora que o ferira. No auge da disputa, ouve-se o toque fanhoso e agourento da flauta de osso do indio feio. Temendo uma vingança do indio feio e mau, as indias procuram esconder o belo indio, que é ainda surpreendido pelo temido indio, que, feroz e vingativo, atira-lhe uma flexa, ferindo-o mortalmente. Pressurosas, as indias carregam-no em seus braços `a


38 beira de um poço, onde êle, subitamente se tranforma num passaro invisivel, deixando-as tristes e apaixonadas, ouvindo apenas o seu canto maravilhoso, que se vai sumindo no silencio da floresta.” PERSONAGENS : 10 - VILLA-LOBOS, H. – Uirapuru, Partitura. Milwaukee: AMP, 1948.

I – Indio bonito (1) II – India caçadora (1)

III – Indio feio (1) IV – Indias (32) - 35 figuras

O bailado foi também transformado em filme pelo cineasta israelense Sam Zebba em 1950, com duração aproximada de 17 minutos, baseado no argumento original.11 O argumento traz diferentes camadas de acoplamento, tanto literário, como cultural. Numa ficção que combina elementos de descrições do Novo Mundo, de lendas ameríndias e também elementos da narrativa folhetinesca, típica dos teatros populares do final do século 19 no Rio de Janeiro. No livro Visão do Paraíso, publicado em 1959, Sérgio Buarque de Holanda, detalha relatos imaginários, descrições edênicas de eldorados, de figuras encantadas, oferecendo descrições de figuras e tribos indígenas capazes de mágicas e metamorfoses cheias de mistério. Buarque de Holanda analisa também a lenda das índias guerreiras amazonas, as índias icamiabas da Amazônia, cujas descrições se assemelham as índias-personagens de Uirapurú por suas características violentas e libidinosas. (Em 1910, o balé Pássaro de Fogo havia feito a fama de Igor Stravinski na Europa e, em especial, na França. Essa notícia não deve ter escapado a Villa Lobos. Não se esta aqui relacionando esse fato a escolha do tema para o bailado, mas é um indício de como as temáticas mágicas de culturas antigas ou distantes, atraía muita atenção por seu exotismo, especialmente na França.) Ao observarmos o argumento original de Uirapurú, podemos encontrar diferentes camadas de sobreposição, tanto de lendas míticas e folclóricas, como de situações dramáticas que fogem ao contexto delas mesmas. Inicialmente, a narrativa cênica-coreográfica, por carecer de diálogos ou descrições literárias que detalhem ou aprofundem suas narrativas, nos apresenta personagens esteriotipadas, o que torna mais fácil o acompanhamento da linha principal narrativa, são elas: indio feio (mau), indio bonito (bom), India caçadora e grupo de índias, que ora agem de forma malévola (ao flechar o pássaro), ora benévola (ao protegê-lo, quando transformado em índio bonito). Sem muitas sutilezas psicológicas, o espectador é conduzido por uma estrutura narrativa linear, mas com personagens fantásticos, um pouco a maneira dos contos de fadas, uma vez não chegam a ser arquétipos de um inconsciente coletivo. Em Uirapurú, não temos personagens pessoalizados, como Peri e Ceci (de Il


39 Guarany), com suas características idiosincráticas, mas estereótipos morais de baixo relêvo que se enquadram numa acepção moralista esquemática. A trama se desenvolve com lances, de certa forma, rocambolescos, típicos de um romance-folhetim, tão em voga no Rio de Janeiro da segunda metade do 11 – Um trecho do filme está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sOd3mo1vmzE

século 19. 12 O momento em que as índias disputam entre si o belo índio numa sugerida batalha campal, remete-nos mais a uma cena corriqueira de ação realista na agitada vida urbana – ou notícia oriunda de uma seção de fait-divers de algum tablóide sensacionalista -, do que de uma peripécia de narrativa fantasiosa. Pelo fato da estrutura dos relatos mágicos (contos de fadas), terem sua origem na tradição oral, suas descrições divergem segundo as diferentes tradições e localidades. É neles que encontramos figuras mágicas animais, por exemplo, como um pássaro que se transforma em humano e vice-versa. Portanto, Villa-Lobos nesse argumento nos apresenta um verdadeiro hibridismo narrativo, acrescentando ações “realistas” ou circunstanciais, numa moldura de mistério e idilismo. Da esfera do fantástico e sobrenatural, mergulha-se no casual e puramente “cênico”. A subjetividade se esvai e a sequência dramática se impõe aos devaneios ontológicos. A sensualidade paira, o canto do pássaro é bonito, no sentido de sedutor. As indias não buscam o regozijo auditivo do “canto mágico” do Uirapurú, estão buscando o índio bonito. E por ele, lutam. É curioso, que “uma linda e robusta india” tenha flechado o pássaro ao encontrá-lo. Mais ainda, porque descreve o argumento que ela “surpreende-se porem, ao ve-lo transformado num belo indigena.” No entanto, no site do Museu Villa-Lobos, lê-se outra redação do argumento para a cena: “Um índio ciumento, não suportando aquela adoração, flecha-o mortalmente.” 13 Segundo essa outra versão, que faz mais sentido dramático, o índio feio é o único antagonista do índio bonito, o Uirapurú. Existe ainda hoje certa dúvida cronológica com relação a data de composição do bailado. Mas, uma generalizada imprecisão com relação a cronologia, titulos, versões e adaptações das obras de Villa-Lobos, deve-se – acredito -, a um processo contínuo de reaproveitamento de materiais, reconfiguração de idéias e composições, segundo as necessidades e oportunidades de ocasião. Dessa forma, uma mesma obra musical poderia receber diferentes versões ampliadas ou resumidas -, reinstrumentadas e mesmo re-tituladas. Certamente ocorreu o mesmo com relação ao texto do argumento de Uirapurú, que deve ter passado por mais de uma versão, desde a sua redação original no manuscrito da partitura. Por outro lado, poderíamos interpretar que a índia caçadora, frustrada por, ao se aproximar do canto sedutor, não ter encontrado o objeto desejado (o índio bonito), e por isso tenha cometido o assassínio. Por uma lógica reversa, essa ação negativa, foi o caminho para que alcançasse


40 o seu objetivo original. 12 – Sobre o tema consultar as obras de José Ramos Tinhorão. Os romances em folhetim no Brasil: 1830 ˆa atualidade. Livraria Duas Cidades, 1994; e Marlyse Meyer, Folhetim: uma história. Companhia das Letras, 1996. 13 - http://museuvillalobos.org.br/villalob/musica/uirapuru.htm

Acredito, no entanto, que esse tipo de especulação psicologizante, passasse ao largo das intenções dramáticas do compositor. Se observarmos o catálogo de obras de Villa Lobos, anterior a 1922, sobressaem-se composições de grande forma, como uma série de poemas sinfônicos de duração média entre 15 e 30 minutos, Amazonas (1917), Centauro de Ouro (1916), Fantasma (1918), IARA (1917), Lobisomem (1917), Myremis (1916), Naufrágio de Kleônicos (1916), Saci Pererê (1917) e Tédio de Alvorada (1916), esta última, foi transformada posteriormente no bailado Uirapurú ; como também Sinfonias de 1-5 para grande orquestra, entre outras peças sinfônicas e instrumentais. E, por fim, óperas, como: Aglaia (1909), Comédia Lirica (1911), Elisa (1910), incorporada `a ópera Aglaia, e transformada posteriormente na ópera Izaht (1912/1918), Jesus (1918), Malazarte (1921) com libreto de Graça Aranha e Zoé (1920). Chama a atenção o fato de que Villa-Lobos tenha se ocupado de formas musicais ligadas objetivamente a palavra, ao texto narrativo e a cena operística (já havia escrito`a época, um número similar a toda a produção operística de Carlos Gomes); e subjetivamente, como nos bailados. De toda a forma, são composições que se baseiam em narrativas literárias. Tratam dos temas os mais diversos, de assuntos históricos a folclóricos e mitológicos. Esse período evidencia um interesse que, em termos de linguagem musical, faz a passagem dos modelos instrumentais e narrativos da ópera e poema sinfônico românticos, em especial a ópera de matriz francesa e germânica, para a criação de um gênero intermediário, onde, o sujeito referia-se a temas brasileiros, mas o objeto, ainda mantinha um pé na Europa. Um percurso inevitável que, além de uma educação sentimental, instrumentalizou o compositor a buscar novas formas de expressão musical que dessem conta das paisagens e sujeitos que evidenciassem aspectos pitorescos e próprios da vivência brasileira. Para tanto, era preciso encontrar fendas na técnica, tanto de instrumentação, como de forma musical. É sintomático que Villa Lobos ao mesmo tempo seja considerado por Olivier Messiaen como,”o melhor orquestrador de sua época”, e que tenha recebido sistemáticas e perenes críticas negativas quanto a sua habilidade e capacidade


41 em têrmos de orquestração! Abrindo a própria picada, na floresta da instrumentação, teve como aliado expressivo, justamente a função narrativa, exercitada em suas obras de programa, seja nos poemas sinfônicos ou nas óperas. Pode-se dizer que sua orquestração é uma narrativa literária, assim como era para Gustav Mahler em suas Sinfonias. Paradoxos de uma identidade e personalidade criativa que foi sendo elaborada num período histórico marcado pela transitoriedade, e podemos aplicar a respeito de Villa Lobos, o que Adorno escreveu sobre Alban Berg: “a música de Berg é inseparável do homem, das qualidades singulares de sua estrutura psíquica.” 14 As estruturas psíquicas, que pressupõem um conjunto estável, quando submetidas a permanentes mudanças, alteram os modos seletivos de relação com o objeto, e as relações com a realidade, num embate constante entre o Id e o Ego, para utilizarmos uma terminologia freudiana. Ou ainda, entre a pulsão criativa e a percepção de realização efetiva. Em sua trajetória pessoal e criativa, observa-se que o princípio de realidade vai se acercando de sua personalidade e tomando o comando das ações. Tinha diante de si uma realidade complexa, da qual precisava fazer uma leitura, e depois, estabelecer uma estratégia para conviver com ela, segundo seus desejos e objetivos. Segundo Roberto da Matta, “nós sabemos, graças aos achados da antropologia social, que a posição de certas instituições e ideologias variam de sistema para sistema, havendo possibilidades de combinações e dominâncias diferentes de certas ideologias e domínios. Cabe a uma sociologia crítica desvendar essas várias combinações explicando porque essas diferenças ocorrem desse modo. Para tanto, contudo, é preciso primeiramente estar aberto para uma perspectiva que relativize até certo ponto o arranjo institucional e a consequente dominância de certas ideologias e conjuntos de valores.(…) O que, em outros termos, equaciona o “tradicional” a um sistema onde o todo predomina sobre as partes ; ao passo que o “moderno” é o sistema onde o individuo é o sujeito tudo lhe sendo submetido. Sabemos que tal sistema nasceu num certo momento histórico, formalmente a partir do século XVIII e que daí em diante se abriu uma brecha em nossa formação social; brecha que permite reconhecer atomizações permanentes dentro de nossa totalidade social.” 15 A transversalidade vivencial que caracterizou o período de formação do compositor carioca, das rodas infomais da música popular ao estudo da música escrita, propiciou que o seu todo fosse composto pelo agrupamento de fragmentos, com engates, ou ainda, transições. Escapando ao pêso social – e ao papel determinado numa sociedade extremamente hierarquizada – do “garção de costeleta”, Villa Lobos estruturou sua formação com o conhecimento de uma técnica musical em transição (a partir do estudo do Cours de D’Indy e seu arsenal de soluções e procedimentos já classificados), que contemplava o


42 acervo harmônico-melódio do Romantismo tardio e dos nacionalinalismos passadistas e emergentes da Europa e da Rússia. É interessante notar que a música do Grupo dos Cinco - e a linguagem do nacionalismo sinfônico russo -, tenha chegado a ele, através de Debussy. Ou seja, filtrada. Faz sentido, num universo crivado de mediações, onde ainda as 14- ADORNO, T. W. – Berg : O mestre da transição minima. Editora UNESP, 2010, pág.23. 15 – MATTA, R. da – Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro, Zahar Editores, terceira edição, 1981, págs. 17 e 18.

escassas informações que chegavam em forma de partituras e concertos públicos eram erráticas e pouco atualizadas. Nos poemas sinfônicos, pôde experimentar, percorrer e topografizar a orquestra como uma floresta selvagem, com sua flora e fauna diversas, seguindo uma tendência do final do século 19 de hipertrofiar o conjunto, ou partes dele que antes desempenhavam um papel secundário, como a percussão e os teclados, com o uso da celesta e das cordas dedilhadas, e o acréscimo de mais de uma harpa. Dessa forma, teatralizava a orquestra, aumentando o seu repertório colorístíco, e incorporando sons referenciais que ilustravam as narrativas dos poemas sinfônicos, por exemplo. Assim, pode dar conta da significação estética principal do Impressionismo que, segundo Mário de Andrade “foi substituir a descrição programática pela sugestão descritiva”.16 Ia além, como tinha em mãos matéria original, bruta e desconhecida – originárias das fontes da música indígena e popular –, ao utilizar-se de uma descrição programática, alcançava também a subjetividade do desconhecido, do não referenciado. Nesse verdadeiro teatro invisível das formas musicais, a orquestração teve seu papel enriquecido, tornando-se ao mesmo tempo forma e conteúdo, seguindo a lição de Debussy17 ao limite da melodia de timbres de Anton Webern. A metáfora geográfica, faz sentido, pois ao conceber a orquestra sinfônica como uma floresta virgem, deu destaque aos animais raros ou aos de personalidade forte. Passou a tratá-la como veículo de exceções e de idiossincrasias, ao invés de paisagem equilibrada e contínua.18 Essa operação de deformação da paisagem, da sua perspectiva e equilíbrio, se deu a partir da idéia de espacialidade e narrativa. Critérios de orquestração que iam bem além das lições exuberantes de palheta instrumental do tratado de Berlioz. Dessa forma, a orquestra passou a acomodar diferentes topologias na mesma peça. O desequilíbrio da velha estrutura a quatro vozes, tornou-se narrativa. Ao invés da orquestra como síntese do mundo – segundo a concepção totalizante de Richard Wagner -, ela agora transitava por fragmentos, em blocos conectados por tênues pontes entres si. Ou ainda, por interrupções com “corte seco”, para usar uma terminologia da edição cinematográfica. E Villa Lobos já havia praticado tudo isso em seus poemas sinfônicos de juventude, com o auxílio da narrativa literária do argumento. Pôde com naturalidade, saltar, cortar, editar, resumir, ampliar as seções e os formantes,


43 uma vez que estava apoiado na condutividade da narrativa literária subjacente. Ao compôr para o filme O Descobrimento do Brasil de Humberto Mauro, de 1937, portanto na infância do cinema sonoro no Brasil, Villa Lobos usou diferentes materiais, desde música composta especialmente para o filme (com 16 – ANDRADE, M. de – Pequena História da Música. Livraria Editora Martins, oitava edição, 1977, pág. 154. 17 – Como, por exemplo, nas Seis Epígrafes Antigas (1914), retrabalhadas a partir de uma música cênica escrita para acompanhar a declamação das 12 Chansons de Bilitis de Pierre Louÿs' para 2 flautas, 2 18 – Assim como o interesse das pessoas, num Zoológico, se volta para os animais raros e exóticos.

coral de 100 vozes!), a trechos de outras obras suas como, o Chôros n. 3 (1925), Nonetto (1923), Tres Poemas Indígenas (1926) e a Canção do Marinheiro (1936). Tal variedade certamente possibilitou uma grande diversidade nas possibilidades de corte das imagens. O curioso é que, na música propriamente escrita para o filme tenha privilegiado a continuidade musical, com a apresentação e desenvolvimento de longos trechos que transbordavam as sequências imagéticas. Por ocasião da estréia do filme, em 1937, Villa Lobos concedeu entrevista esclarecedora sobre sua criação: “É dividida em duas grandes partes toda a obra musical, sendo que a primeira descreve a viagem das caravelas comandadas por Pedro Alvares Cabral e a segunda todos os fatos e incidentes passados em terra brasileira, desde o desembarque ao regresso a Portugal. Imaginando ainda, possíveis situações que se poderiam ou deveriam intercalar aos fatos narrados na carta de Pero Vaz Caminha para que, desse modo, houvesse maior oportunidade de compor ambientes musicais, como por exemplo o trecho denominado – Alegria – que, para os desterrados e tripulantes era como a lembrança das festas campestres da sua terra. Seguindo-se a Impressão Moura na hipótese de que dentre os tripulantes existissem mouros, quer como navegadores ou escravos. O Adagio sentimental traduz a saudade que os fidalgos navegantes sentiam de sua gente. Mais adiante tripulantes rudes e selvagens, no porão das caravelas, sonham com festas bárbaras das suas tribus. Durante a travessia do Atlantico pelas caravelas que viajavam indecisas, nos trechos musicais acima citados, surgem de quando em vez, ambientes de dúvida, revolta, alucinação, tristeza, animação e confiana dissimuladas, lástima das náus perdidas, visões de terra, preces, benção e conselhos. Todos esses estados d’alma estão entrelaçados com tempestades, tufões e calmarias, representados com temas característicos de cores vivas. O trecho intitulado Festa nas selvas é o momento em que os navegantes descortinam terra e meditam. O ambiente da 2a parte, é baseado em temas ameríndios pré-colombianos colhidos por Jean de Lery e outros historiadores estrangeiros e nacionais, alguns imaginados `a maneira melódica dos temas citados com esse material e as observações colhidas in loco, pessoalmente, pelo autor ou por intermédio de


44 fonogramas de temas autoctonos brasileiros, foram criados vários gêneros de canções e dansas primitivas. Para o momento em que é transportado o grande Jequitibá com que se fez a Cruz para a 1a Missa no Brasil, foi escrito um trecho religioso sendo denominado Procissão da Cruz. Contrastando dois temas de gêneros opostos como sejam: um autenticamente indigena em que lastima monotonamente a queda das grandes arvores das florestas, onde não mais poderiam cantar os pássaros sagrados e outro sobre um tema ambrosiano Criador Alma Siderum, atribuído a Sto. Ambrosio, Bispo de Milão e Criador de Hinos Populares Cristãos. Para celebração da Missa, foi composto um grande coro duplo a seco, sendo que o 1o, masculino, é baseado no tema do Kyrie classico do missal gregoriano e o 2o, feminino, numa combinação de vários temas ameríndios escritos sobre o texto de um linguajar tupi-guarani.” 19 Como se nota, o compositor elaborou o seu próprio texto paralelo em relação ao roteiro do filme, depois de assistir as imagens na moviola. Relacionou paisagens e situações, identificou personagens subtraídos das imagens silenciosas e dramatizou sentimentos e sensações. Isso demostrava que seu método de trabalho foi consciente no estabelecimento de um diálogo dramático entre música e imagem, recolhendo elementos e obras da história da música de diferentes épocas, seja para citá-los diretamente, seja para recriá-los e parodiá-los estilistícamente. Uma vez elaborado o guia descritivo, a música ocuparia o seu próprio espaço narrativo e expressivo, independendo de outras condicionantes cinéticas da imagem, como o sincronismo e os cortes, num procedimento que era bastante comum no cinema mudo, dada a autonomia de imagem e música. Aliás, Humberto Mauro 20 relata que em diversos momentos, foi a música que determinou a duração de algumas sequências e planos. Esclarece bastante essa menção com relação a música para o filme, uma vez que descreve a a estrutura musical e o processo composicional de Villa Lobos, em têrmos narrativos. E a luz de nosso objeto, que é a música presente na Semana de Arte Moderna, evidencia um projeto (precário e inconstante, como todo projeto criativo vivo) já em curso quando de seu encontro com os modernistas da primeira geração paulista. A digressão anterior que abordou a música no Rio de Janeiro do século 19, e em especial os gêneros dramático-musicais, hibridos, como a opereta e o teatro musical dos cafés-concerto, propiciou um panorama no qual Villa Lobos conviveu em seus anos de formação. Tudo o que se escreveu aqui, foi no intuito de relacionar-se, dialogicamente, com a personalidade criativa do compositor, trazendo elementos para subsidiar aquilo que de particular, formou e informou sua obra. E são exatamente esses os elementos principais: a heterogeneidade, acoplamento, falta de submissão acadêmica a qualquer relação pré-estabelecida ou regrada, com relação ao material do outro. Relação antropofágica com o outro - e aqui me refiro a fonte indígena e popular -, mas nessa chave, uma


45 19 – Entrevista concedida por Villa-Lobos ao Jornal do Comercio, Rio de Janeiro, em 05/12/1937, pág. 11. O que desmente a hipótese de Villa Lobos teria composto a música sem ter visto as imagens do filme. 20 - Conversa com Humberto Mauro. Cinemateca do MAM, Rio de Janeiro, 1972. Entrevista para Miguel Borges, Alex Viany, David Neves Cosme e Alves Neto. Sobre o assunto, consultar também o elucidativo texto As Suítes do Descobrimento do Brasil de Villa-Lobos e a trilha musical do filme de Humberto Mauro: bricolagem e sequencialidade na construção da narrativa audiovisual de Tatyana de Alencar Jacques, disponível em https://www.anppom.com.br/revista/index.php/opus/article/view/opus2018a2404

apropriação que reinventa. Ao exclamar: “- O folclore sou eu!”, Villa Lobos se referia exatamente a essa incorporação, onde o outro e o eu, se amalgamam de forma a se dissolverem as hierarquias e o resultado expressa-se nas sínteses provisórias e imperfeitas desse processo. ... o folclore sou eu, é voce, somos nós, são eles... E a crítica quanto ao fato de que ao incorporar os elementos da música indigena em suas composições, não propiciava um maior conhecimento didático destes – sendo que nunca houve intenção educacional nessas composições -, e de que tratava-se de apenas efeito ornamental; a ela, Villa Lobos rebatia com um uso agressivo desses elementos numa aproximação que fazia nos confrontar com a diferença, portanto, já distante daquele imaginário diletante do indianismo romântico. Os materiais sonoros ameríndios provocavam, nos anos de 1920, um estranhamento e uma surpresa. Num primeiro momento eram percebidos como exotismo, e depois, quando já incorporados a ideologia nacionalista e devidamente domesticados por arranjos musicais medíocres, como fator de afirmação do nacional. Mas eram, eles, os indígenas, estrangeiros dentro do Brasil. O índio era mais estrangeiro que o francês, o italiano e o alemão no universo das artes; excetuando-se aquele idealizado, sublimado no bom selvagem romântico. Ele seria o contrário, mas não exatamente um oposto do que formulou Sérgio Miceli, citado anteriormente: o índio seria o Estrangeiro Nacional. E isso Villa Lobos percebeu profundamente. Foi sua chave mestra conceitual.

O que se ouviu Como nota Wisnik, “Coexistem, pois, na Semana, pelo menos três níveis distintos de atividade: o acontecimento, a proposta estética, a produção artística.”1 E desses níveis, certamente aquele que foi mais bem sucedido foi o do acontecimento. A Semana projetou-se como marco, como referência histórica e cultural.


46 No entanto, uma análise retrospectiva nos mostra que foram nos anos seguintes que se concretizaram em obras, algumas de suas propostas estéticas. Como, por exemplo, a antrofofagia de Oswald de Andrade, que foi uma ruptura e questionamento dos parâmetros estéticos conservadores, e portanto, 1 – WISNIK, J. M. – O coro dos contrários, a música em tôrno da semana de 22. Livraria Duas Cidades, pág.64.

identificada com o que o modernismo paulista esboçava no início dos anos de 1920. Complementa Wisnik : “convém igualmente distinguir ao estudar a participação da música no movimento, três aspectos de sua realização: 1. A música como acontecimento; 2. A música no contexto das idéias modernistas; 3. A linguagem musical propriamente dita.” 2 As polêmicas e discussôes que se sucederam a Semana, na insípida crítica musical jornalística `a época – e ainda hoje! - , bem como nos artigos publicados dos próprios participantes da Semana, extenderam-se ao longo dos mêses seguintes e fizeram reverberar o acontecimento, iniciando assim a construção de uma reputação. Nesse período, observou-se as idas e vindas de participantes, mais ou menos engajados nas idéias progressistas, como foi o caso da pianista Guiomar Novaes 3, evidenciavando que o comprometimento com idéías progressistas era de bastante variada monta entre eles, a ponto da palestra de Menotti del Picchia utilizar trechos de prosa que iam de Oswald de Andrade a Plinio Salgado! Os programas musicais das três noites da Semana : Primeiro dia : 13 de fevereiro Primeira parte – Conferência de Graça Aranha – A emoção estética na arte moderna. Com música executada por Ernani Braga. Música de câmara – Villa Lobos – Sonata II para piano e violoncello (1916) Villa Lobos – Trio Segundo para violino, violoncello e piano (1916) Segunda parte – Conferência de Ronald de Carvalho – A pintura e a escultura moderna no Brasil. Piano – Ernani Braga Villa Lobos – Valsa mística da Simples Coletânea (1917) Villa Lobos – Rodante da Simples Coletânea (1919)


47 Villa Lobos – A fiandeira (1921) Música de câmara, octeto – Villa Lobos – Tres danças africanas (1916): 2 – idem, pág. 64. 3 – Guiomar Novaes critíca, em carta enviada ao jornal O Estado de S. Paulo, a paródia que Erik Satie fêz da Marcha Fúnebre de F. Chopin na peça D’Edriophthalma da obra Embryons Dessechés (1913), que foi executada como ilustração na palestra de Graça Aranha da primeira noite, e certamente foi a peça musical mais radical na Semana, uma sarcástica ironia musical.

1. Farrapos 2. Kankukus 3. Kankikis A Sonata II para violoncello e piano é um exemplo de como a idéia mesma de cromatismo torna-se tema, no primeiro movimento. Contrapondo a isso, o segundo movimento aproxima-se de um recitativo, com uma melodia bastante lírica e harmonizada em suave ostinato, estabelecendo uma hierarquia de elementos que ecoam a música francesa romântica de Saint-Saens e César Frank. O Scherzo insinua o vitalismo e gaiatismo rítmico, com ataques curtos, como se fosse um elemento alheio a lógica que vai se desenvolver, intervindo como uma impregnação, um objeto estranho. No entanto, ele não chega a desestabilizar ou mesmo a propôr um novo caminho, emerge e submerge num e noutro ponto, e ao final, transforma-se num motto de um acompanhamento para uma melodia inexistente, num ambiente clássico de jogo que a proópria forma scherzo propõe. No último movimento, a rítmica se estabelece de forma retórica afirmando sua independência no discurso musical. O cromatismo é o veículo do comentário harmônico. A música também se torna comentário de si mesma e a reiteração motívica conduz a narrativa. Aliás, a reiteração será uma das marcas mais distintas da construção temática de Villa Lobos, com a adicão e subtração contínuas de notas no motivo, ou ainda com repetições de uma mesma nota. Esse estilema está presente em inúmeras obras do compositor, como no tema inicial da Bachianas Brasileiras n. 3, por exemplo. O Trio Segundo para violino, violoncello e piano se apresenta numa atmosfera harmônica onde a flutuação tonal é conduzida por seções temáticas, que propiciam uma certa independência a cada instrumento. O conjunto, blocadamente, apresenta seus materiais em módulos, ora melódicos, ora rítmicos, sob um fluxo harmônico dominante do piano. A Berceuse-barcarolla, apresenta um reiterativo motivo pendular (como a forma melódica propõe), onde tanto o violino como o violoncello derivam em caminhos próprios, utilizando notas suspensas que adicionam subjetivismo em relação ao motivo rítmico-harmônico.


48 O diabolus rítmico é retomado no terceiro movimento, onde a exploração timbrística ganha espaço. Esse diabolus expressa-se em motivos curtíssimos em stacatto, utilizando pequenas pausa internas que enfatizam a sensação de interrogação da frase musical. No entanto, uma interrogacão abstrata, sem consequência ou resposta. No último movimento, Villa Lobos reestabelece a unicidade na conversa instrumental e a discursividade direcionada. Historicamente, a música de câmara é reconhecida como um estilo conversacional, por exelência. Da conversa amena a discussão, sendo que o ápice desse percurso dialógico na música ocidental foram os últimos quartetos de Beethoven. O que se seguiu a eles, até Olivier Messiaen, tiveram nessas obras uma referência de limite ou anti-paradigma. A Valsa mística, incorpora a linguagem derivante e cromática, de forma que a fluência harmônica desliza em cadências não resolvidas, até que uma abrupta resolução tonal ao final da peça vem afirmar a ordem tonal e a retórica do enunciado musical, como que colocando um ponto final disciplinador a indefinição harmônica anterior. Nela, Villa Lobos adota o paralelismo entre subjetividade e não direcionamento tonal, no qual o cromatismo é o agente de dissimulação harmonica. O resultado é uma valsa que dança sobre si mesma reafirmando, esse elemento de linguagem que será constante em sua obra: a reiteração. Já Rodante, da mesma Simples Coletânea, toma o piano como objeto timbrístico. Manipulado mais como como mecanismo sonoro, que como instrumento musical. A nota repetida insistente, afirma a natureza maquinal da idéia musical. Ela, como que ganhando motto, desencadeia um formante harmônico-melódico mais complexo, circular (daí, o título Rodante), que se repete, sugerindo um motor ou artefato mecânico similar. A melodia, como voz cantante em primeiro plano, desempenha a função de dinamizadora rítmica desse elemento harmônico-melódico, abandonando o discurso da causalidade nos elementos musicais, melodia/acompanhamento, figura e fundo. A Fiandeira, contemporânea dos Estudos para piano (1915) de Claude Debussy, faz do uso da ressonância como seu objeto principal. Poderia se dizer que foi escrita para a caixa acústica do piano e os efeitos acumulativos que ela propicia ao sobrepor diferentes notas. O compositor obtém esse efeito através de um uso pouco convencional do pedal sustain do piano. O pedal foi incorporado inicialmente ao cravo em meados do século 18, e desenvolvido como ferramenta do instrumento em sua evolução histórica. Posteriormente, com o pianoforte, suas funções foram ganhando destaque e sendo incorporadas – e grafadas – pelos compositores de uma forma mais padronizada. O piano moderno, utilizado `a época da composição em questão,


49 tem três pedais: sustain, (`a direita), una corda (`a esquerda) e sostenuto (ao centro). Na peça em questão, Villa Lobos indica o uso do pedal sustain, cuja função é de controlar a quantidade e a duração da ressonância de sons tocados individualmente e em sequência, liberando as cordas dos abafadores. Dessa forma, a ressonância geral no instrumento se potencializa, enriquecida pela livre combinação dos harmônicos de cada frequência principal. O pianista Ernani Braga, que executou a peça na Semana, relata a polêmica com Villa Lobos em relação a forma de se tocar a obra: ”o autor exigia na peça, e principalmente no final, um pedal continuo que me parecia insuportavelmente cacofônico.” 4 A indicação na partitura orienta que deve-se usar ao longo da parte final, “sempre com o mesmo ped, n’uma ressonancia toda relativa.” Braga, não concordava com a indicação e realizou de forma própria a pedaleira da peça. Isso gerou revolta no compositor, conforme o próprio pianista relata noutro momento do texto citado. José Miguel Wisnik,5 destaca que havia um descompasso entre os intérpretes, em especial, os dois pianistas solistas, Guiomar Novaes e Ernani Braga, que eram representantes já consagrados da “pianolatria” nacional, e as idéias modernizadoras da Semana, mostrando que sua adesão ao evento era puramente circunstancial. Não`a tôa, Villa Lobos trouxe do Rio de Janeiro o grupo de câmara que já estava familiarizado com suas obras e idéias. Formavam um conjunto coeso e comprometido com a sua música. A segunda parte do programa musical da primeira noite, trouxe as Tres Danças Africanas em versão para 2 violinos, viola, 2 violoncelos, flauta, clarinete e piano. Foram escritas originalmente para piano solo, a partir de temas dos índios Caripunas, do Mato Grosso, ”cuja raça seria formada do cruzamento com negros,” 6 Nessas peças, observa-se a explicitação do código “estrangeiro” que ocupa o protagonismo através do uso da emblemática sincopa, como motivo condutor. A transparência harmônica escapa dos efluvios nebulosos da politonalidade afrancesada e dos cromatismos deslizantes e fugidíos, comuns a outras peças do período. A retórica rítmica, novamente, é soberana, e sua afirmação, a razão de ser dessas peças. Nelas, Villa Lobos dá um passo a frente em direção a integração do outro, na constituição de um si mesmo instável e provisório. O reflexo abandona o espelho e se incorpora como um novo ente no corpo que busca, não se reconhecer, mas se formar, ampliando-se. Segundo dia: 15 de fevereiro Primeira parte – Palestra de Menotti del Picchia com textos de Oswald de Andrade, Luiz Aranha,


50 Sérgio MIlliet, Tácito de Almeida, Ribeiro Couto, Mário de Andrade, Plinio Salgado, Agenor Barbosa e dança pela senhorinha Yvonne Daumerie. Piano solo – Guimar Novaes 4 – Braga, Ernani – O que foi a Semana de Arte Moderna em São Paulo, em Presença de Villa Lobos, Museu Villa Lobos, 2 ` volume, pág. 68. 5 – Em O coro dos contrários, págs. 74 a 79. 6 - Segundo o site do Museu Villa Lobos, em http://museuvillalobos.org.br

E. R. Blanchet – Au jardin du vieux Serail Villa Lobos – O ginete do pierrozinho (1919-20) C. Debussy – La soirée dans Granade C. Debussy – Minstrels Segunda parte – Palestra de Mário de Andrade no saguão do Teatro Municipal Renato Almeida – Perennis Poesia Canto e piano – Frederico Nascimento Filho e Lucília Villa-Lobos Villa-Lobos – Festim Pagão (1919) Villa-Lobos – Solidão (1920) Villa-Lobos – Cascavel (1917) Villa-Lobos – Quarteto Terceiro (1916) Paulina D’Ambrósio, George Marinuzzi (violinos), Orlando Frederico (alto), Alfredo Gomes (violoncello) A já célebre pianista paulista Guiomar Novaes apresentou um repertório que dava conta da sua dimensão de moderno na música. Escolheu composições que propiciavam ao intérprete dar vazão a um brilhantismo virtuosistico. A peça do inexpressivo compositor suiço Émile-Robert Blanchet (1877 - 1943) é o que chamamos de perfumaria brilhante, ou seja, um amontoado de gesticulações e rompantes que exploram a idiosincrasia do se tocar piano. Quanto ao Debussy escolhido, a primeira peça, La soirée dans Granade de Estampes (1903) acrescenta uma cor local espanhola ao ritmo de uma habanera , esmaecida e reflexiva, escrita com uma exploração timbrística que utiliza as diferentes regiões do piano. Na segunda peça, do Livre I dos Prelúdios (1909 - 1910) Minstrels, o compositor explora a teatralidade ligeira dos menestréis com uma escrita no limite do humorístico. Já a peça de Villa Lobos, O ginete do Pierrozinho, é um hai-kai brutalista, no qual a clareza de cada elemento apresenta sua natureza musical peculiar num


51 jogo de reiteração e repetição que subverte qualquer intenção de causalidade linear. A música avança no tempo (a peça dura apenas em tôrno de 1 minuto e 40 segundos) sem sair de seu lugar. As peças para canto e piano, por seu lado, apresentaram um retrato ainda em formação da vocalidade de câmara do compositor. Em Festim Pagão, sobre poema de Ronald de Carvalho, Villa Lobos se apropria de recursos da música descritiva e cênica para a construção de uma moldura sonora que envolva a temática lúgubre do poema. Entre um verso e outro, o piano embala um balé soturno “de sátiros cornudos”, conforme o poema; provocando a visualidade subjetiva do ouvinte. De forma um tanto melodrámatica, a idéia da música pede para transbordar, extravasar o formato da peça. A descrição e a sugestão também são as marcas de Solidão, com texto do próprio compositor, e que apresenta mais uma maneira de se descrever musicalmente a chuva. Arabescos cromáticos sugerem o movimento do bicho peçonhento em Cascavel, texto de Costa Rego Jr., com direito a longos “esses” sibilantes nap arte vocal. A escrita vocal dessas peças, de forma geral, pouca avançam em relação ao cancioneiro de câmara Romântico. Evidenciam ainda, as dificuldades de se adaptar as técnicas vocais na emissão da lingua portuguesa, de forma a torná-la inteligível ao ouvinte. Este seria um dos pontos principais sobre o qual se debruçou Mário de Andrade no Ensaio. E ainda hoje, se trata de uma questão não resolvida, tanto em relação ao repertório do passado, como em relação as obras contemporâneas que insistem em empregar a técnica vocal herdada da música lírica. Finalizando a segunda noite, o Quarteto Terceiro, o “quarteto de pipocas”. Ele já havia sido estreado em 1919 no Rio de Janeiro, e trata-se de uma composição de escrita rítmicamente engenhosa, especialmente no segundo movimento, pleno de pizzicatos e glissandos e de alternâncias de unidade métrica na própria frase musical. `A parte um politonalismo, a francesa, ecoando Maurice Ravel e seu quarteto de 1903, a forma musical evidencia mais uma vez, a recusa do compositor com relação a forma sonata, mais especificamente a idéia de recapitulação. As seções, blocadas, impulsionadas geralmente por motivos ou idéias rítmicas, não permitem a rememoração, ou ainda, a nostalgia do já ouvido. Os blocos se apresentam também como idéias timbrísticas: com cordas duplas, harmônicos naturais e artificiais e pizzicatos com harmônicos, O último movimento, Allegro con fuoco, é uma música que transborda a formação camerística, daí a extrema tensão que o compositor obtém ao desequilibrar a escala da escrita com a do instrumental, pede um conjunto maior, sinfônico. Terceiro dia: 17 de fevereiro


52

Primeira parte – Villa Lobos – Trio Terceiro (1918) Paulina D’Ambrósio (violino), Alfredo Gomes (violoncello) e Lucília Villa-Lobos (piano) Canto e piano – Maria Emma (canto) e Lucília Villa-Lobos (piano) Villa Lobos – Historietas (1920) - Lune d’octobre - Voil`a la vie - Jouis sans retard, car vite s’écoule la vie Segunda parte – Piano solo com Ernâni Braga Villa Lobos – Camponesa Cantadeira, da Suite Floral (1916) Villa Lobos – Num berço encantado, da Simples Coletânea (1919) Villa Lobos – Dança Infernal (1920) Música de câmara Villa Lobos – Quarteto simbólico – (Impressões da vida mundana) para flauta, saxofone, celesta e harpa ou piano, com vozes femininas em coro oculto (1921) Pedro Vieira (flauta), Antão Soares (saxofone), Ernâni Braga (celesta) e .Fructuoso de Lima Vianna (piano); O Trio Terceiro é também uma obra de reiteração temática. A célula principal no primeiro movimento, por exemplo, é daquela natureza aditiva já mencionada e exemplificada com o tema inicial das Bachianas Brasileiras n. 3. Sobre ela, Mário de Andrade escreveu, `a época: ”Em vez de uma melodia propriamente dita, Villa Lobos concebeu um tema curto, coisa já menos comum na primeira fase dele, e o tratou `a maneira de um leitmotiv wagneriano. Essa frase aparece uma centena de vezes durante a peça toda não só na sua integralidade, como numa admirável variedade de formas e desmembramentos.” 7 Historietas é uma coleção de seis peças para canto e piano, composta em 1920. Os poemas, em portugues e frances, são de Ronald de Carvalho. A poesia, de feição marcadamente simbolista, utiliza versificação livre e um panteísmo esfumaçado, numa estilização de outras matrizes. O poema Lune d’octobre se inicia assim: Au long de ces canaux Le clair de lune Des lagunes Danse dans l'eau dans l'eau...


53 Aux soupirs assoupis Des mandolines, En sourdine Meurent les lys, les lys, les lys, (…) Como o texto, a música de Villa Lobos segue a tendência ao vago e esfumaçado, repetindo procedimentos e efeitos que o compositor já havia adotado em composições anteriores, como em Ondulando para piano, de 1914. É notável como certos poetas modernistas, mantiveram a postura de seguir escrevendo em francês. Difícil estabelecer um paralelo entre esse poema e Cocktail de Luís Aranha, ou mesmo Paulicéía Desvairada, por exemplo. 7 – ANDRADE, M. de – Villa-Lobos, Diário Nacional, em 15/09/1929.

A segunda peça, Voil`a la vie, depois integrada a série Epigramas Irônicos e sentimentais (1921-23), com texto de Ronald de Carvalho, é uma cançãominuto (na verdade ela dura menos de um minuto). Nela, Villa Lobos recorre a uma ambientação sonora homogênea ao piano, como uma paisagem constante, sobre a qual flutua uma linha vocal com notas repetidas que beira o coloquial, sem saltos artificiais, buscando manter uma entoação próxima a melodia natural da fala. Aqui, mais uma vez, se estabelece um antagonismo entre a escrita e a realização, baseada numa técnica vocal inadequada, mas adotada como padrão. Jouis sans retard, car vite s’écoule la vie, terceira peça apresentada, é uma canção onde o piano reage a alguns estímulos da voz, segundo Wisnik “a música diz o texto adotando inflexões prosódicas e colorindo-o de timbres e conotações, já que sua estrutura imita os movimentos básicos do texto, entre a liberação e a perda de energia.” 8 A música, ainda, alterna atmosferas dramáticas (soando as vezes como redução de uma partitura orquestral) com grandiloquência harmônica e momentos de impulsividade rítmica. A linha vocal incorpora arroubos passadistas, num resultado híbrido. A série de oito peças Epigramas Irônicos e Sentimentais, onde os textos se aproximam dos poemas-minuto, em duração, mas não em feitura ou temática, se tomarmos como referência as criações de Oswald de Andrade. O poemaminuto, forma a qual Oswald se dedicou desde o Manifesto Pau-Brasil, refletia uma necessidade de concentração e de velocidade de comunicação, bem como desapego ao adjetivismo da velha poética parnasiana, com os freios do verso e as regras de composição poética. O aforismo e a piada se tornaram então, fórmulas de objetivação do poema curtíssimo, que não explicava, impactava. Esse ciclo, foi a plataforma para que Villa Lobos experimentasse a pequena forma, a concisão estilística, a miniaturização da idéia musical. Apesar de Oswald de Andrade reconhecer a inovação musical empreendida por Villa Lobos, não aconteceu uma parceria entre ambos, presumidamente combatentes da mesma barricada. Conta-se que Oswald ao voltar de viagem a


54 Europa nos anos de 1920, teria comentado que “lacunas” na formação cultural do compositor dos Choros, estariam comprometendo a imagem da intelligentsia brasileira junto ao ambiente artístico parisiense. Certamente, essa atitude pode ter sido determinante para que se estabelecesse uma distância entre ambos. Uma pena, teria sido a parceria ideal entre texto e música no contexto cultural do modernismo. Na peça Camponesa Cantadeira, da Suite Floral (1916), é onde se reconhece de forma mais clara a influência do pianismo francês de Ravel, com o uso de rompantes harmônicos inesperados, cheios de crescendos e decrescendos, e uma melodia clara. Poderia muito bem ter sido utilizada como música-tema no cinema do século 20, graças a sua capacidade de comunicação melódica 8 – WISNIK, J. M. – O coro dos contrários. A música em torno da semana de 22. Livraria Duas Cidades, 1977, pág. 154.

imediata e fácil memorização. Em Berço encantado, Villa Lobos compõe novamente para a caixa de ressonância do piano. Imitando o movimento pendular do berço numa atmosfera fluída, explora o piano como objeto ressonante, explorando as especificidades sonoras das regiões grave, média e aguda. Uma narrativa musical sem condução, sem um objetivo ou ponto a ser alcançado, apenas a fruição de cada momento timbrístico em natureza sonora. Na Dança Infernal (1920), o demo é o ritmo. A célula temática se contrapõe insidiosamente ao motto continuo da batida da dança. Um pouco como em O Aprendiz de feitiçeiro de D’Indy, o motivo diabólico é assimétrico em relação a si e aos demais elementos, uma exceção e uma extravagância, como se pudemos ver o manto vermelho do tinhoso em agitados movimentos diabólicos. Dessa forma, Villa Lobos nos apresenta o seu texto programático traduzido em escrita musical. Finalizando o terceiro dia de apresentações na Semana, o Quarteto simbólico, a peça mais interessante do programa. Segundo Wisnik, “no Quarteto simbólico a passagem está claramente configurada. Villa Lobos tende a trabalhar com células curtas; nesse caso, as impulsões não são dadas pela expansão horizontal infinita da melodia, mas pelo retôrno cíclico dos motivos, sob a forma de justaposição e superposição dos elementos. Assim um grande e variado número de motivos se sucede e retorna pela combinação polifônica de sua diversidade”.9 O estranhamento já se estabelece no próprio título da obra, que contrapõe dois universos semânticos: o subjetivismo das “Impressões”, com o objeto concreto “da vida mundana”. Portanto faz supor, um olhar voyeur, certo dandismo, sobre a realidade; extraindo dela pontos de vista subjetivos. A apresentação da peça na Semana teria contado com jogo de luzes, sendo que encontramos apenas uma descrição genérica sobre isso do próprio compositor:


55 “consegui uma execução perfeita, com projeção de luzes e cenários apropriados a fornecerem ambientes estranhos, de bosques místicos, sombras fantásticas, simbolizando a minha obra como imaginei”. 10 Provavelmente, se referia a grandes telões pintados, que eram muito utilizados na época para ambientações de óperas e balés. 11 9 – idem, pág. 161. 10 - HORTA, L. P. – Villa-Lobos, Uma introdução, Jorge Zahar, 1987, pág. 41. 11 – Tal era a consciência cênica do concerto público, que Villa Lobos instituia um verdadeiro roteiro de direção cênica, para organizar as suas apresentações. Por exemplo, quando iria se apresentar como solista ao violoncello, conforme descreve Cechim Filho: ”Villa-Lobos sentava-se para o início do concerto. Apagavam-se totalmente as luzes da platéia e do palco. O teatro ficava completamente `as escuras por alguns segundos. Em seguida, acendia-se um pequeno farol iluminando sómente as cordas e o arco do violoncello. Villa-Lobos era visto da platéía apenas como uma sombra Mas o arco e as cordas ficavam bem visíveis. Parecia que o violoncello estava tocando sózinho.” Citado por CHECHIM FILHO, A. – Excursão Artística Villa-Lobos, [s. e], 1987, pág. 51.

Propunha, como um teatro de luzes, que a fruição da música criasse um paralelismo com as diferentes cores projetadas. Em sintonia com outras experiências já realizadas por Alexander Scriabin (1871 – 1915), entre outros. A formação instrumental do Quarteto reflete também essas intenções que, para além do inusitado da instrumentação, constrói uma sonoridade aérea, leve, obtida a partir da combinação dos sôpros, da celesta, com seu timbre vítreo na sua tessitura médio-agudíssima, e também na harpa e sua capacidade limitada de projeção sonora. De início, esse conjunto com projeção sonora limitada - uma vez que os instrumentos com maior projeção, como a flauta e saxofone, são usados mais frequentemente nas regiões menos penetrantes -, corporificava uma sensação arcaizante que pairava sobre o resultado colorístico, em que a harpa nos remete a lira antiga. Adicione-se a essa formação instrumental, que se distanciava das formações tradicionais de câmara como o quarteto de cordas, trio de cordas, trio com piano, etc; um coro de vozes femininas, indicado na partitura como “oculto”. É inevitável estabelecer um paralelo com a peça Sirénes (Sereias), dos Trois Nocturnes de Debussy (1899) que também faz uso similar de vozes femininas, apenas vocalizando a linha melódica, sem texto. No Quarteto simbólico, o aforismo musical projeta-se como forma, e o abandono da idéía de recapitulação cria um frescor no fluxo sonoro, estabelecendo na audição um estado de constante atenção, que não oferece o apoio preguiçoso da recapitulação, como na forma ternária clássica. Essa disposição temporal dos elementos promove uma aguçada percepção do tempo vivido, como formulou o filósofo Henri Berson, numa escuta que elabora constantemente a polimorfa aritmética das sensações. A agógica, a cinética musical, pelo blocamento e seccionamento das estruturas sonoras, ganha autonomia em relação ao estilo. Deixa de ser uma ferramenta expressiva – junto as dinâmicas - de uma estética em particular, transmitida a partir de clichêts construídos ao longo da composição, como os accelerandos,


56 ritardandos e rubatos. As suspensões de fluxo de tempo, expressas em fermatas de curta, média e longa duração, refletem interrupções do próprio discurso musical; sendo essa, uma das características principais da estética moderna. Por tudo isso, a apresentação do Quarteto simbólico, foi o momento em que a programação musical da Semana mais se aproximou do que seus participantes, aparentemente, entendiam como música moderna. 12 O que se ouviu na Semana, antecipava certas questões cruciais que viriam a ser colocadas logo a seguir, como o debate a respeito de identidade nacional e de nacionalismo. Gravitava no centro dessas questões, a figura de Villa Lobos. De aberração para a crítica conservadora, a símbolo da modernidade musical brasileira, ele mesmo iria se confrontar, a partir da primeira viagem a Europa no 12 – A peça de Erik Satie, escapava a percepção positiva que o grupo paulista queria acoplar a idéia de modernidade. Satie, já promovia a alguns anos, a desconstrução daquilo que ainda se buscava erigir na Paulicéia, o moderno. Escreveu ele em Memórias de um Amnésico de 1912: “Todo o mundo vos dirá que não sou um músico. É justo.”

ano seguinte a Semana, com sua auto-imagem. Uma construção que teria como elemento determinante, sua alta capacidade intuitiva e arrojo em responder e perceber espaços e lacunas sócio-culturais a serem ocupadas, bem como as regras invisíveis que regem as relações humanas em sociedade. Estrangeiro para o brasileiro – que é, afinal, um estrangeiro de si mesmo – e nacional para o estrangeiro, que reconhece em sua obra alguns elementos icones de uma percepção média do que seja o país tropical. Sob esse paradoxo, Villa Lobos estabeleceu suas estratégias estéticas até o início dos anos de 1930. Firmou sua reputação no exterior, em particular, na França, patrocinado pela burguesia paulista e o Estado brasileiro. Criou sobre materiais recolhidos por etnógrafos ou por experiência própria em viagens pelo país, trafegando no fio da navalha entre conceitos tão manipuláveis como autenticidade, identidade e nacionalidade. Numa sociedade fundada na dominação e exploração, tanto econômica como cultural, quem diz afinal o que é autêntico? Nacional? Ou o que determina a identidade de um país? Importante enfatizar a transversalidade da trajetória de um criador como Villa Lobos. E uma das consequências dessa trajetória foi justamente a sensação de não pertencimento aos grupos sociais organizados, os quais frequentou. Seja aquele dos músicos populares, seja dos acadêmicos da música de concerto, foi sintomático que, com 25 anos, fazia vários bicos de trabalho, tocando violão em cinemas, em teatros de revista; e por algum tempo no cabaré Assírio, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Trajetória pendular, que vai de uma estratégica auto proclamada espontaneidade e personalidade instintiva – personas de posicionamento pessoal que usava como autodefesa contra os chatos de plantão -, `a posição de formulador e normatizador estatal de política de educação musical. De ícone do “moderno” nos anos de 1920 a “reformador” no Estado Novo.


57

O que não se ouviu Para o crítico musical conservador Oscar Guanabarino, o despropósito com relação a Semana e a arte moderna, era geral. Segundo ele, em artigo publicado em 22 de fevereiro de 1922, “Tínhamos tido notícia da organização de uma embaixada d’arte moderna destinada a explorar o provincianismo paulista. Não ligáramos importância alguma a esse argumento que merece a denominação de mambembe, visto não existir no seu seio o menor vislumbre de autoridade artística.” 1 Para além da arrogância e do pseudo-cosmopolitismo contra o rancho - a província paulista -, nota-se que a legitimidade de Villa Lobos e seu grupo de músicos eram visceralmente contestados pelo stablishment musical carioca através de seu porta-voz mais militante na imprensa. 1 – GUANABARINO, O. – Jornal do Comércio, 22/02/1922.

Graça Aranha, que já havia escrito um libreto de ópera para Villa Lobos, é quem o convida para participar da Semana, junto aos patrocinadores paulistas da Semana que bancam os seus concertos na paulicéia. Como vimos, na programação musical não constou nenhum compositor paulista(no), sendo essa participação local, restrita a alguns intérpretes musicais. Então, o que não se ouviu na Semana? Não se ouviu, além da música urbana popular – seja paulista ou carioca, ambas muito diferentes entre si – a música de concerto, criada e praticada por paulista(nos). Mário de Andrade, que co-organizou a Semana, não identificava em nenhum compositor local, a chama “futurista” da música moderna que fizesse juz a sua inclusão. E ele conhecia melhor do que ninguém a cena musical paulista(na). Por exemplo, Mário se derramava em elogios a Marcelo Tupinambá (1889 – 1953), e chegava a afirmar, em artigo de 1924, que ele “é atualmente, entre os nossos melodistas de nome conhecido, o mais original e perfeito.” 2 A trajetória desse compositor, aliás, pode ser tomada como um exemplo típico do ambiente conservador paulistano, que certamente contribuiu para o embotamento de talentos e iniciativas criativas mais ousadas. Tupinambá, aliás, pseudônimo de Fernando Álvares Lobo, original da cidade de Tietê, mudou-se para a capital para estudar engenharia civil na Escola Politécnica de São Paulo, em 1911. O diretor dessa instituição era radicalmente contra o fato de que um aluno de engenharia andasse a compor músicas. Teria dito ao jovem estudante: “Quem vai confiar num engenheiro que faz maxixes?" 3 Daí, a adoção do pseudônimo – creio, com uma certa dose de ironia - de indígena antropófago. Como pôde, Tupinambá desenvolveu sua carreira musical sendo que em 1914, escreveu a revista musical São Paulo Futuro com Danton Vampré, que estreou no Teatro São José, na Capital, numa demonstração de que a idéia de futuro e


58 desenvolvimento já faziam parte do imaginário da província. Inclusive, a melodia de São Paulo Futuro, Um maxixe curtindo, foi utilizada pelo compositor francês Daruis Milhaud, em sua conhecida composição Le Boeuf sur le Toit (1920), bem como outras tantas melodias da música popular brasileira. Essa obra era considerada,`a época, uma peça de música moderna. 4 2 – ANDRADE, M. de – Música, doce música. Livraria Martins Editora, 1977, pág.120. 3 - SEVERIANO, J. e MELLO, Z. H. de. A canção no tempo, volume 1, Editora 34, 1999. 4 - Outras melodias utilizadas de Tupinambá foram:Viola Cantadeira (tanguinho/canção sertaneja; 1917), O Matuto (caterete/canção cearense; (1918), Tristeza de Caboclo (tanguinho; 1919),Maricota, Sai da Chuva (tanguinho; 1917),Que Sodade! (cena sertaneja; 1918),Sou Batuta (tanguinho; 1919). Mais informações sobre as demais melodias utilizadas de outros autores, disponível em: http://daniellathompson.com/Texts/Le_Boeuf/boeuf_table.htm e http://daniellathompson.com/Texts/Le_Boeuf/boeuf.pt.29a.htm

Marcelo Tupinambá teve parcerias em canções com poetas tão díspares como Coelho Neto, Menotti del Picchia, Mário de Andrade e Ronald de Carvalho. Assim como no Rio de Janeiro, a revista musical estava bastante em voga na São Paulo do início do século 20. A Companhia Arruda, que levara a cena São Paulo Futuro, era das mais ativas, apesar de um ambiente e público incipientes, como relata uma edição da revista A Vida Moderna: “as melhores companhias, sem excluir as mais ricas e suntuosas companhias estrangeiras nunca puderam demorar-se num teatro em S. Paulo, mais que dois ou três meses, aquelas que mais se apoderaram da afeição entusiástica do público, não esgotaram quatro meses de permanência num teatro.” 5

Ritual antropofágico dos índios Tupinambás em gravura de Hans Staden.

Como uma sucursal, uma baldeação para as companhias estrangeiras, tanto aquelas de Revistas musicais como de operetas e as companhias de música lírica, que vinham para o Rio de Janeiro e depois seguiam para Montevideo e Buenos Aires; São Paulo apresentava uma vida cultural descontínua.


59 Nesse ambiente, é interessante destacar o extrato sócio-cultural de aguns dos poetas e escritores participantes da Semana, em especial da figura que seria a mais radical: Oswald de Andrade. Relata, Maira Mariano que: “Oswald de Andrade, por sua vez, antes de se consagrar como poeta modernista e autor de peças com amplo teor social, escreveu em parceria com Guilherme de Almeida, em 1916, Mon Coeur balance e Leur âme, que foram muito elogiadas. (…) mas pouco a pouco os elogios foram trocados por críticas, por terem sido escritas em francês. (…) Eis o que diz o Estado de São Paulo sobre a peça: ‘ A comédia (cremos não errar chamando-lhe assim) é em quatro atos e escrita em francês. Por que em francês? Perguntará o leitor, intrigado, achando que um Almeida e um Andrade, escrevendo no Brasil, para brasileiros, estavam na obrigação de escrever na lingua deles e do país. Dizemos que eles são moços, quase uns meninos, e que 5 – A Vida Moderna – n. 340, 1918, ano XIV. Citado em MARIANO, Maira – A comédia brasileira nas revistas literárias do pré-modernismo, pág. 65. Disponível em : https://periodicos.sbu.unicamp.br › ojs › pit500 › article › download

o verdor dos anos explica essa e outras extravagâncias.“ 6 Ora, em 1916, Oswald tinha 26 anos, e apenas seis anos depois estaria participando da Semana de Arte Moderna; e ainda, distante apenas oito anos da publicação do Manifesto Pau Brasil! De escritor de comédia ligeira em francês a autor do romance social Os Condenados (1922) em apenas seis anos. Trata-se de uma mudança rápida e profunda que observada de uma forma mais ampla, retratava as vertiginosas mudanças que a sociedade, a cidade e o meio cultural passavam. Uma outra figura que nos conta da situação cultural e social da São Paulo do final do século 19, é Alexandre Levy (1864-1892). Filho de imigrantes franceses judeus, o pai estabelece a Casa Levy, um comércio de música no centro da cidade. Pianista precoce, Alexandre Levy compõe obras de câmara sob influência da música romântica alemã. Torna-se também diretor de uma sociedade privada de concertos, a Sociedade Haydn, na qual chega a reger alguns concertos. Em 1887, viaja a França, para estudos. De volta a São Paulo, compõe obras de feição nacionalista, incorporando ritmos e melodias folclóricas como nas Variações sobre um tema popular brasileiro (1887) e no Tango Brasileiro (1890). Seu falecimento precoce aos 48 anos, interrompe uma trajetória criativa, que iniciava um movimento em direção não apenas ao nacionalismo de casaca, mas a incorporação de elementos da música popular em sua linguagem. Levy, filho de imigrantes comerciantes e músicos praticantes, percorreu uma trajetória de afirmação e do fortalecimento da vida musical erudita na cidade. Ao fundar uma sociedade de concertos, buscou contribuir com o aparelhamento e aperfeiçoamento dessa vida musical. O seu distanciamento da estética da música romântica européia se deu de forma similar ao de outros compositores (como o próprio Villa Lobos) que, ao deixarem o seu país em direção as “metrópoles” musicais da Europa, passaram – como num movimento contrário de afirmação pessoal e cultural – a valorizar os elementos de sua cultura


60 musical “periférica” e incorporá-los em suas criações. 6 – idem, pág. 69.

A tristeza do jeca Marco inicial: Teatro de Ópera D. Pedro I compareceu ao Teatro da Ópera na noite de 7 de setembro de 1822, envergando no braço direito, preso por um laço de fita verde e amarela, o dístico de ouro "Independência ou Morte", onde executou o "Hino da Independência", de sua autoria. A São Paulo do século 19 assistiu a um tímido crescimento em sua vida cultural, sua primeira casa de espetáculos foi o Teatro da Ópera ou Casa da Ópera, situado no Pátio do Colégio. Era um sobrado de taipa, com 350 lugares de capacidade e apresentava um repertório bastante variado. Durante o Império, foram construídos três teatros de pequena capacidade na cidade de São Paulo. Eram eles, o Teatro do Palácio, que ficava nos baixos do Palácio do Governo no Pátio do Colégio, também chamado de o Teatro de Ópera, e tinha um caráter quase que particular para os ocupantes do prédio. Sabe-se apenas que foi utilizado no século XIX até 1860, quando foi desativado.

Teatro de Ópera, Pátio do Colégio, São Paulo.

O outro teatro era o Batuíra, um barracão armado no fundo de uma taberna com não mais de 200 lugares, e frequentado pelos estudantes da Faculdade de Direito. Era de propriedade do cidadão português Antônio Gonçalves da Silva Batuíra e funcionou de 1870 a 1880 na Rua da Cruz Preta (atual Quintino Bocaiúva). O terceiro teatro era chamado de Teatro Provisório, no centro, e inaugurado em 1873. Foi demolido em 1899, após ter sido chamado de também de Apolo e Minerva. O Teatro São José começou a ser construído em 1854. Foi inaugurado em 1864


61 sem que a obra estivesse completa, cheio de problemas (aliás, uma constante na história cultural da metróple paulistana). Era um teatro com a capacidade de 1.253 lugares e estrutura de palco capaz de receber espetáculos grandes. Um incêndio consumiu totalmente suas instalações em 1898.

Teatro São José em 1862, ainda inacabado.

Charge de Ângelo Agostini, de 1867, retratando o presidente da Província de São Paulo, José Tavares Bastos, segurando o Teatro São José, onde mama o empresário Antônio Bernardo Quartim, contratado para sua construção.

O Teatro Sant’ana inaugurado em fins do século 19, no centro da cidade, abrigou inúmeros espetáculos teatrais de revista e operetas; tendo sido reinstalado em outra localidade central no ano de 1921, até seu fechamento definitivo em 1957. O Teatro Politeama, inaugurado em 1892, tinha uma grande capacidade de espectadores, 3.000 lugares, apesar de sua estrutura ser um amplo barracão de zinco e madeira. Era inicialmente um circo, mas depois abrigou companhias líricas – inclusive do exterior – e também apresentações eqüestres. Um incêndio em 1914, encerrou suas atividades. O Teatro Colombo, situado no atual Largo da Concórdia, no Brás, foi inaugurado em 1908 e tinha a capacidade de 2.000 lugares. Recebia companhias dramáticas e líricas italianas, entre outras apresentações. Funcionou também como cinema popular, até ser consumido por um incêndio em 1966.


62 Em 1911, a municipalidade inaugura o Theatro Municipal de São Paulo, com a ópera Hamlet, do francês Ambroise Thomas. Ele passa a ser a referência na cidade em têrmos de música lírica e sinfônica. Ao largo, a música popular paulistana foi uma atividade amadora que se desenrolava nos cabarés, bailes populares e serestas ao ar livre. Comparativamente a história da música popular no Rio de Janeiro do século 19, existem poucos relatos e fontes de registro primário com relação a essa atividade na São Paulo de então: “ressalte-se, antes de tudo, as dificuldades heurísticas, tanto de localização de fontes extremamente rarefeitas quanto de uma utilização mais sistemática e crítica das mesmas fontes, já que a caprichosa memória coletiva da cidade de São Paulo, quase sempre em crise de auto-estima e obliquamente marcada pelo estigma de ser o “túmulo do samba”, também incentivou um natural désdem pelas fontes, filtrando lembranças e

produzindo um difuso ofuscamento de seu próprio passado musical.” 1 Essa observação traça resumidamente um retrato da historiografia musical paulista e chama a atenção para uma “crise de auto-estima”, que me parece crônica. O próprio paulistano do início dos anos de 1920, que em grande parte tinha suas raízes no interior do Estado, nutria, ele mesmo, contraditóriamente, uma série de preconceitos com relação a cultura musical interiorana. A nostalgia do interior e uma “saudade dos bons tempos”, presentes em boa parte das canções do período, eram uma percepção antecipadora de que aquela “São Paulo do futuro”, não os incluia, não lhes pertencia. É certo que na segunda metade do século 19, o fluxo de imigração européia na cidade, notadamente de italianos e espanhóis, marcaram as gerações seguintes de paulistanos de forma que as ondas migratórias que se sucederam, especialmente a dos nordestinos, colocaram em diálogo heranças culturais e comportamentais que resultaram no “genérico” urbano paulistano: meio interiorano, meio italiano, meio negro e meio nordestino. A historiadora Márcia Camargos, destaca que “não isenta de contradições e antagonismos, a Semana de Arte Moderna pretendeu projetar-se como o aontecimento dessa tendência. Pregando o resgate de uma cultura nativa autêntica, os modernistas oscilaram entre a admiração da vanguarda parisiense e o repúdio aos preceitos francófilos responsáveis pelo academicismo vigente. Ora partiam em defesa da internacionalização, (…) ora lutavam pela brasileirização da criação artística e literária.” 2 O crescimento da cidade e a convivência compulsória dos diferentes grupos sociais, étnicos, e de diferentes regiões do país, não resultou exatamente num compartilhamento de experiências e hábitos, mas num seccionamento do espaço urbano em regiões claramente demarcadas segundo o tipo de população predominante em cada área.


63 Inexistia, como ainda hoje, um sentido de pertencimento comum. As diferentes São Paulos, mantinham-se isoladas, com suas heranças culturais e práticas musicais por consequência. Como nota Nicolau Sevcenko, “afinal São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos, nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros, nem americana, nem européia, nem nativa, nem industrial, apesar do volume crescente de fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café, não era tropical, nem subtropical”.3 Dessa forma, como a grande maioria dos participantes da Semana de Arte Moderna provinham da burguesia e da classe média, a cidade que habitavam era aquela ocupada por sua classe social, com os teatros de ópera e opereta, além dos clubes 1 – MORAES, J. G. V. de – Metrópole em Sinfonia. História, cultura e música popular na São Paulo dos anos 30. Texto citado do prefácio de Elias Thomé Saliba. Estação Liberdade, 2000, págs. 11-12. 2 – CAMARGOS, M. – Semana de 22. Entre vaias e aplausos. Boitempo, 2002, pág 21.

sociais e os cafés-concerto. Portanto para eles, esse era o meio cultural a ser renovado; dessa experiencia social de “velho”, é que os modernistas reinvidicavam sua contestação e a busca pelo “novo”. Tratava-se de uma atualialização, como dizemos hoje em dia, “do protocolo” de padrão estético; representava um movimento de afirmação de novas relações sociais e das formas de expressão e percepção de uma sociedade em mudança. E como destaca Vinci de Moraes:”haviam sentimentos ambíguos nos autores, pesquisadores e compositores com relação `a cultura popular, pois, se ao mesmo tempo ela era uma atitude de redescoberta do país, portanto integrada ao projeto modernista, tembém era a tradição de um passado que queriam combater.” 4 3 – SEVCENKO, N. – Orfeu extático na metrópole, São Paulo, sociedade e cultura nos freementes anos 20. Companhia das Letras,1992, pág.31 4 – MORAES. – idem, pág. 235.

Desdobramentos Defesa de Villa Lobos contra seu entusiasmo Se Villa Lobos representou o sôpro inovador na programação musical da Semana, nos anos que se sucederam tornou-se uma voz representante da normatização e mesmo, do conservadorismo. Parodiando o texto de Theodor W. Adorno 1, o Villa Lobos compositor, em sua trajetória já bastante conhecida e estudada na qual integra-se ao governo


64 getulista e ao Estado Novo para desenvolver o programa de canto orfeônico; precisaria ser defendido contra o Villa Lobos pedagogo e, finalmente, o Villa Lobos medalhão, que reencarna o “garção de costeleta”, o “Macho Villa Bolos” como ironizou o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante. De forma sintética, observa-se um percurso do compositor dos Chôros e Noneto em direção ao maneirismo de si mesmo, que se refletiu na cristalização de procedimentos e soluções; num maneirismo de si próprio que progressivamente foi adotando em sua obra. No fundo, um movimento de academização de sua linguagem. O viés pedagógico e ideológico, colocou freios inventivos na livre criação. O freio dos compromissos extra-musicais assumidos, determinavam fortemente que 1 – ADORNO, T. W. – Em Defensa de Bach contra sus entusiastas, em Prismas, Ariel, 1963, escreveu: “Fazemos de Bach (seus religiosos entusiastas) um compositor para festivais de orgão, celebrados em cidades barrocas bem conservadas: fizeram-no um fragmento de ideologia”.

suas composições tivessem um papel a cumprir. Cívico, até. Monumento em vida, assumiu compromissos de educador e formulador de políticas públicas num contexto autoritário e, como tudo nesse país, precário, transitório e não confiável. Bradava ele: “Todos os povos fortes devem saber cantar em coro – dizia-se. Sómente a Educação resolverá os problemas brasileiros. O canto orfeônico, praticado na infância e propagado pelas crianças em seus lares dará gerações renovadas na disciplina, nos hábitos de vida social, homens e mulheres que saibam, pelo bem da terra, cantando trabalhar e por ela cantando dar a vida. Nenhum argumento de sentido patriótico ou sentimental foi esquecido.” 2 O programa incluía todo um corpo ideológico que buscava pela música, alcançar a disciplina e o controle do comportamento social desde a infância, segundo um código militar, característico de regimes totalitários; que elegem um panteão de símbolos, hinos e celebrações coletivas, para projetar esse poder sobre as pessoas 3. Nesse panteão, a figura do maestro, encarna a figura do chefe, o ponto de atração para onde tudo converge e do qual se espera o gesto de comando. Como um preposto do chefe de estado, o maestro estabelece toda uma cadeia de hierarquias, que expressa em seus menores detalhes e normas, a idéia de subordinação e disciplina individual em prol de uma suposta coletividade unitária. 4 2 - VILLA-LOBOS, H. - A Educação Artística no Civismo. Em Presença de Villa-Lobos, vol. 05, MEC/Museu Villa-Lobos, 1970, pág. 94. 3 – Sobre isso Roberto da Matta, em Carnavais, Malandros e heróis, analisa o antagonismo entre o carnaval e o dia da pátria, entre o cortejo e o desfile populares e cívico-militares. 4 – Sobre o tema, ver o estudo de Norman Lebrecht, O mito do maestro: grandes regentes em busca do poder. Civilização Brasileira, 2002.


65

Parêntese interessantíssimo Duas figuras emblemáticas na história da música brasileira de compositor atuando no serviço público: Cartola e Villa Lobos. Em 1957, trabalhando como lavador de carros em Ipanema, Cartola foi redescoberto pelo escritor Stanislaw Ponte Preta. Depois disso, graças a amigos, passou a trabalhar como contínuo, primeiro no Diário Carioca e depois servindo cafézinho no Ministério da Indústria e Comércio.Conforme relata o biógrafo do músico, Denilson Monteiro:

foto do Arquivo Nacional

“Graças à fiel e batalhadora companheira, Zica, Cartola conseguiu um emprego como vigia de uma barraca da COFAP (Comissão Federal de Abastecimento e Preços) situada lá na Mangueira. Quando o órgão foi incorporado pelo Ministério da Indústria e Comércio, o compositor teve sua carteira assinada como servente. Porém, o filho do ministro Macedo Soares reconheceu o compositor e conversou com o pai sobre a possibilidade de melhorar a situação do poeta da Estação Primeira. Angenor de Oliveira passou a contínuo, servindo cafezinhos ao ministro em seu gabinete, no privilegiado horário de 11h00 às 14h00. Esse emprego como funcionário público foi uma segurança na vida de Cartola, uma vez que ainda levaria um bom tempo até ele conseguir o sucesso que possibilitaria viver de sua música. Como diria: ‘Minha vida é igual a filme de mocinho, eu só venci no final’.1 No governo Vargas, Villa Lobos foi convidado a assumir a SEMA, Superintendência de Educação Musical e Artística. Órgão público criado em 1932 e vinculado ao Ministério da Educação e da Saúde até 1942. As boas intenções encontraram a oportunidade, só que num momento político difícil, marcado pelo autoritarismo e populismo getulista, do qual, Villa Lobos compartilhava o ideário. (Um pouco como aquela charge sobre o encontro de Jânio Quadros condecorando Che Guevara, em que um pensa em relação ao outro: “- Será que esse comunista sabe que eu sou louco?”


66 “- Será que esse louco sabe que eu sou comunista?”) O primeiro contato de Villa Lobos com a administração pública foi a convite de Mário de Andrade que encomendara a ele, no início da década de 30, a elaboração de um programa de educação musical para Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.2 Mais tarde, o educador Anísio Teixeira o convida para organizar e dirigir a 1 – foto e depoimento disponível em: https://imagesvisions.blogspot.com/2019/01/o-cafezinho-de-cartola.html?q=cartola A foto de Villa Lobos e Getúlio Vargas encontra-se no site do Museu Villa Lobos: www.museuvillalobos.org.br 2 – Ver a dissertação de mestrado de Analía Cherñavsky - Um maestro no gabinete: Música e Política no tempo de Villa-Lobos, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP, 2003.

SEMA, iniciando a elaboração do programa de canto orfeônico nas escolas públicas do Rio de Janeiro. O programa passa a ser adotado por outros estados. Convidado por Gustavo Capanema, então ministro da Educação de Getúlio Vargas, cria o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico e expande o programa a nível federal. A partir daí, desenvolve atividades como a organização de grandes eventos cívicos, onde não se poupam loas ao “pai dos pobres”, como era também conhecido Getúlio Vargas. Estabeleceu-se uma proximidade entre ambos. Apesar de pequenas divergências pontuais, facilmente superadas, são assim descritas: “Entre VillaLobos e Getúlio ocorria uma espécie de relação de negócios ou relação de trocas, onde ambas as partes agiam como parceiras.” 3 Era como se dissesem um para o outro : - “O Estado sou eu” 4 - “O folclore sou eu”. Um certo apagamento dessa relação entre o compositor e o Estado Novo, segue-se após a mudança de regime. “As biografias tradicionais escritas sobre o músico baseavam-se em um modelo composto entre 1946 e 1948, pouco tempo depois da derrocada do Estado Novo. Além disso, as primeiras obras tinham como fonte direta ou indireta uma autobiografia escrita por Villa-Lobos. Naquele momento, marcado pela crítica internacional ao fascismo, depois do painel trágico revelado durante a Segunda Guerra, qualquer tipo de relação com um regime considerado fascistizante procuraria ser ocultada, principalmente se essa relação fosse marcada por uma indicação para um cargo de confiança relacionado a uma missão de caráter estratégico para a manutenção do poder, qual seja, o controle das massas urbanas”. 5 A simples justaposição de situações antagônicas entre essas duas personagens, Cartola e Villa Lobos, nos apresenta a distância de trajetória que se cumpriu e por que não? – se cumpre ainda, “atualizada”, entre compositor popular e erudito no Brasil. E é preciso acrescentar ainda a componente racial a esse quadro. Mesmo que em determinados momentos, ambos tenham tido pontos de contato,


67 como no episódio Stokowski; e a historiografia oficialesca de Villa Lobos destaque que o compositor ajudou, a partir de sua posição social, a uma série de compositores populares (inclusive Cartola), sobre o qual não há porque se duvidar (vide depoimento de D. Zica ao MIS do Rio de Janeiro); ela reforça a idéía de que habitaram em dois mundos apartados, na sociedade carioca. Por essas e outras razões históricas, o nacionalismo musical praticado desde o indianismo romântico até o período posterior a Semana de 22, foi uma 3 – idem. 4 – frase atribuída a Luís XIV. 5 FILHO, M. A. – em Tocando conforme a música.Tese de mestrado investiga as relações de Villa-Lobos com Getúlio Vargas durante o Estado Novo em https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/setembro2003/ju227pg03.html Ver também o texto de José Miguel Wisnik – Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo) em o Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. Brasiliense, 1982.

apropiação, da mesma série inaugurada pelo Descobrimento: o português vestindo o índio. Fim do parêntese interessantíssimo.

Outros desdobramentos Ao me referir anteriormente neste texto ao início da radiofusão no Brasil, pretendi antecipar a influência decisiva que teria na música popular paulista(na), seja na divulgação, na configuração do repertório e na valorização e divulgação de outros gêneros como o humor, a rádio-novela e a contação de “causos”, de recorte essencialmente popular. O rádio ampliou a influência do imaginário urbano, e suas expressões, território adentro em direção ao interior. Foi certamente o maior incentivador da atividade de compositores, cantores e animadores de toda espécie, num meio urbano que até então não oferecia espaço para a atividade profissional. Como meio de comunicação de massa, sua expansão foi vertiginosa, se tomarmos o dado, segundo levantamento, que em 1932, São Paulo possuía apenas “mais de 100” aparelhos.1 Com o advento do radio, a percepção fragmentada de si mesma, vai aos poucos sendo substituída pelo reconhecimento de uma colcha de retalhos que foi e está sendo costurada ao longo do tempo. A cidade de São Paulo, passou a escutar a si mesma, e também a projetar-se para outros recantos. Reconhecimentos, surpresas e contrastes foram e ainda são emitidos através das ondas do rádio. Por ser um meio essencialmente popular, o radio, conforme decreto que regulamentou a radiofusão nos anos de 1920, foi concebido como uma extensão da escola formal. Assim, a parte esse objetivo “educativo”, tornou-se um veículo de forte influência nos costumes, no gosto estético e nas relações de consumo, em especial nas classes populares. A rádio-novela, a partir da década de 1940, tornou-se a forma dramática por excelência desse meio, reconfigurando as narrativas da opereta, do teatro-circo, da revista musical e do folhetim.


68 Com uma programação extremamente variada de estilos, o rádio foi o veículo que mais efetivamente realizou o projeto de difusão de identidades, só que no caso, regionais. Num país onde as diferenças regionais são tão grandes, soa mesmo autoritário falar em identidade nacional. Aliás, na história do Brasil, essa tal identidade foi constamente usada como um conceito ideológico, objeto de propaganda de governos e discursos autoritários. Talvez o desdobramento mais efetivo e resistente que a Semana de Arte Moderna tenha alcançado, é o seu estabelecimento, quase mítico no imaginário cultural do país. Um ícone de invenção, de criatividade e anti-conservadorismo. Villa Lobos, fazia questão de minimizar sua participação na Semana, afirmando 1 – MORAES, idem., pág. 55.

que nenhuma influência teve no seu projeto e desenvolvimento artísticos. Deve ter sido assim mesmo, faz sentido. O mesmo já não se pode dizer da influência de alguns de seus participantes em sua obra, como por exemplo, Mário de Andrade (influência que legitimou seu movimento em direção ao conservadorismo). Nas gerações seguintes, no entanto, a Semana ocupou maior ou menor espaço como referência, segundo as questões de cada momento. Assim seguiram-se a publicação do Ensaio de Música Brasileira (1928), polêmicas com relação as idéias de nacionalismo musical, em particular aquela que envolveu a Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil, escrita em 1951 pelo compositor Camargo Guarnieri, discípulo de Mário, e o compositor e professor alemão Hans Joachim Koelreutter. A polêmica se deu em tôrno da utilização do atonalismo e da retomada da questão da identidade nacional como reação a um “comunismo” internacionalizante. Koelreutter, que introduziu a técnica dodecafônica no Brasil, tinha uma real admiração por Mário de Andrade e chegou mesmo a músicar o libreto Café. 2 Francisco Mignone afirmava que Mário de Andrade havia deixado esse libreto para ele: “obra muito sofisticada que não tive coragem de musicar. Desisti cedendo o libreto a Camargo Guarnieri, que nada fez” 3. Posteriormente, o projeto foi realizado ironicamente, pelo antípoda do nacionalismo, Koelreutter, e estreado em 1996.Nos anos de 1960, a Semana de Arte Moderna voltou a ser citada e reinvindicada como uma das referências pela Tropicália, no âmbito da música popular. Já na área da música contemporânea, as questões da Semana, principalmente com relação a identidade nacional, foram deixadas para trás; ainda que seja mais correto afirmar que o nacionalismo é como um carrapato, persistente, fica inculcado e parece difícil de erradicar. Passados 100 anos, é preciso ter distanciamento crítico e sentido de pertinência para que a efeméride por si mesma não ofereça uma ocasião e um ambiente para que antigos ressentimentos e fantasias frustradas voltem a ressoar e a nos assombrar. O relógio anda prá frente:


69 As As As As

coisas vão coisas vêm coisas vão coisas

Vão e vêm Não em vão As horas 2 - Café, em Manuscritos Mário de Andrade, Acervo Mário de Andrade, IEB, USP. 3 – Em depoimento ao Jornal do Brasil em 1968.

Vão e vêm Não em vão Relógio – Oswald de Andrade

BIBLIOGRAFIA GERAL ABREU, Brício de - Esses populares tão desconhecidos, Rio de Janeiro, E. Raposo Carneiro Editor, 1963. ADORNO, Theodor Weisengrund – Berg : O mestre da transição minima. Editora UNESP, 2010. ___ – Dialética negativa. Zahar Editores, 2009. ___ – Defensa de Bach contra sus entusiastas, em Prismas, Ariel, 1963. ANDRADE, Mário de – Café. Manuscritos Mário de Andrade, Acervo Mário de Andrade, IEB, USP. ___ – Ensaio sobre a Música Brasileira, Livraria Martins, 1962 ___ - Música, doce, música. Livraria Martins Editora, segunda edição, 1976. ___ – Pequena História da Música. Livraria Editora Martins, oitava edição, 1977. ___ – Villa-Lobos, Diário Nacional, em15/09/1929. ANDRADE, Oswald de – Poesias Reunidas, Editora Civilização Brasileira, quarta edição, 1974. APEL, Willi – Harvard Dictionary of Music. The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, ed. Willi Apel, 1972. ARANHA, Graça - Espírito Moderno, Cia.Graphico-Editora Monteiro Lobato, 1925. BARTHES, R. – Le grain de la voix, Éditions du Seuil, 1999.


70 BARTÓK, Béla. – Escritos sobre música popular. Siglo XXI, 1979. BOURDIEU, Pierre -The forms of capital, em J. G. Richardson (org.), Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education, Greenwood, 1985, BRAGA, Ernani – O que foi a Semana de Arte Moderna em São Paulo, em Presença de Villa Lobos, Museu Villa Lobos, 2 o volume. CAMARGOS, Márcia. – Semana de 22. Entre vaias e aplausos. Boitempo, 2002. CANDIDO, Antonio – Vários escritos. Livraria Duas Cidades, segunda edição, 1977. CARPEAUX, Otto. Maria – Uma Nova História da Música. Ediouro, 1999. CASTRO, Eduardo Viveiros de - Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. Ubu Editora, 2018. CHECHIM FILHO, Antonio – Excursão Artística Villa-Lobos, [s. e], 1987. CHERñAVSKY, Analia - Um maestro no gabinete: Música e Política no tempo de Villa-Lobos, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP, 2003. DONATELLO, Grieco - Roteiro de Villa-Lobos, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. Disponível em: http://funag.gov.br/loja/download/620-Roteiro_de_Villa-Lobos.pdf EINSTEIN, Alfred – La Musique Romantique. Ed. Gallimard, 1959. FILHO, Manuel Alves – Disponível em https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/setembro2003/ju227pg03.html GUANABARINO, Oscar – Jornal do Comércio, 22/02/1922. HORTA, Luiz Paulo. – Villa-Lobos, Uma introdução, Jorge Zahar, 1987. JACQUES, Tatyana de - As Suítes do Descobrimento do Brasil de Villa-Lobos e a trilha musical do filme de Humberto Mauro: bricolagem e sequencialidade na construção da narrativa audiovisual. Disponível em https://www.anppom.com.br/revista/index.php/opus/article/view/opus2018a2404 JAKOBSON, Roman - Linguística e comunicação, Cultrix, 2008. LEBRECHT, Norman - O mito do maestro: grandes regentes em busca do poder. Civilização Brasileira, 2002. MACIEL, Paulo M. C. e RABETTI, Maria de Lourdes - O Teatro de opereta no Brasil: gênero e história,http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276743123_ARQUIV O_texto_para_publicacao_-_Paulo_MacieleMariadeLourdesRabetti.pdf MARIANO, Maira – A comédia brasileira nas revistas literárias do pré-


71 modernismo. Acessível em : https://periodicos.sbu.unicamp.br › ojs › pit500 › article › download MATTA, Roberto da - Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro, Zahar Editores, terceira edição, 1981. MAURO, Humberto - Conversa com Humberto Mauro. Cinemateca do MAM, Rio de Janeiro, 1972. Entrevista para Miguel Borges, Alex Viany, David Neves Cosme e Alves Neto. MEYER, Marlyse - Folhetim: uma história. Companhia das Letras, 1996. MICELI, Sérgio - em Nacional Estrangeiro, Companhia das Letras, 2003. MIGUEZ, L. - Carta de Miguez a Carlos de Mesquita, de 1883, citada por Monica Vermes em Por uma renovação do ambiente musical brasileiro: o relatório de Leopoldo Miguez sobre os conservatórios europeus, 2004. Disponível em: http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv8/miguez.html MONTEIRO, Denilson - Depoimento sobre Cartola https://imagesvisions.blogspot.com/2019/01/o-cafezinho-de-cartola.html?q=cartola MORAES, José Geraldo Vinci de – Metrópole em Sinfonia. História, cultura e música popular na São Paulo dos anos 30. Estação Liberdade, 2000. NEVES Victor – Desde que o samba é samba… Roteiro para estudos, em Marcelo Braz (org.) Samba, cultura e sociedade, Editora Expressão Popular, 2013. SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo, volume 1, Editora 34, 1999. TINHORÃO, José Ramos – Os sons que vem da rua, Editora 34, segunda edição revista e ampliada, 2005. ___ - Música popular de índios, negros e mestiços. Editora Vozes, segunda edição, 1975. ___ - Os romances em folhetim no Brasil: 1830 ˆa atualidade. Livraria Duas Cidades, 1994, TRAGTENBERG, Livio - Artigos Musicais, Coleção Debates, Editora Perspectiva, 1991. VALERY, Paul – Introduction `a la méthode de Léonard de Vinci. Gallimard, 1951. VIANNA FILHO, Alfredo da Rocha (Pixinguinha) –Depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, 1968. Acessível em: https://www.mis.rj.gov.br/acervo/depoimentos-para-a-posteridade/


72 VILLA-LOBOS, Heitor. - A Educação Artística no Civismo. Em Presença de VillaLobos, vol. 05, MEC/Museu Villa-Lobos, 1970. ___ – Uirapuru, Partitura. Milwaukee: AMP, 1948. WISNIK, José Miguel – O Coro dos contrários, a música em torno da semana de 22. Livraria Duas Cidades, 1977. ___ – Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo) em o Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. Brasiliense, 1982.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.