1 A vida entre as duas realidades Agora, porém, vivo com uma obra por realizar. James Montgomery Boice
Paulo disse certa vez que desejava partir desta vida e estar com Cristo (Fp 1.23). Para ele, isso seria um enorme ganho, seria “muito melhor”. Suponho que muitos cristãos compartilhem do desejo de Paulo. Esta vida e este mundo têm muito pouco interesse para eles. Esses corações estão em outro lugar. Outros talvez não estejam assim tão inclinados; este mundo lhes oferece muito e, por serem tão atraídos por ele, o céu ocupa uma posição distante. Falta algo às duas posições. Paulo disse que preferia partir, mas também disse aos filipenses que o viver é Cristo, acrescentando que “[...] o viver na carne traz fruto para o meu trabalho” (Fp 1.22). Paulo desejava estar no céu, mas também sabia que precisava viver na terra e que esta vida pode ser cheia de sentido, propósito e valor, pode gerar muito fruto. James Montgomery Boice, famoso não apenas pelo que disse, mas também pela sua voz inigualável, recebeu em abril do ano 2000 a notícia mais desoladora que alguém pode receber: foi diagnosticado de câncer no fígado. Em questão de meses, a doença lhe poria fim à vida. Em 1999, pouco antes do diagnóstico e depois de ter escrito muitos livros e comentários, experimentou 15
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um novo gênero: a composição de hinos. Naquele que viria a ser seu último ano de vida, ele escreveu a letra de pouco mais de uma dezena de hinos, e Paul Jones, músico cristão e organista, compôs as melodias. Os hinos refletem as doutrinas que ocupavam lugar especial em seu coração. Um deles em particular celebra a grande doutrina da Reforma, a que prega que a salvação é pela graça de Deus somente (em latim sola gratia). Com efeito, o hino vem a ser a história da vida de todo cristão. Começamos como pecadores, corrompidos e mortos. “Mas Deus” — duas palavras muito poderosas —, em seu amor e compaixão, estende sua graça, que nos leva à nova vida em Cristo (Ef 2.4,5). Boice afirma na quarta estrofe: “Gloriar-me-ei em meu Salvador, de todo mérito abrindo mão, dando glória a ele até que morra”. Arrisco-me a dizer que, se nós estivéssemos escrevendo esse hino, certamente acrescentaríamos um sincero amém, um ponto final e daríamos o trabalho por concluído aqui. Boice, entretanto, não para. Prossegue com uma quinta estrofe, que começa assim: “Agora, porém, vivo com uma obra por realizar”. A própria vida dele é prova de sua determinação de viver entre as duas realidades. Mesmo o câncer lhe tendo roubado as energias, perseverou, escrevendo hinos e servindo a Deus até seus últimos dias. Boice se rejubilava na glória do porvir, e nesse ínterim seu lar eterno tinha tudo a ver com sua vida na terra. Agora, diz ele, temos uma obra por realizar. Se houve alguém que anelava o céu, esse foi Dietrich Bonhoeffer. Preso pelos nazistas, Bonhoeffer passou seus últimos anos de vida numa cela de dois metros de largura por três de comprimento. No início, desesperou-se e quase sucumbiu à tentação de tirar a própria vida. Depois, pela graça, encontrou uma perspectiva completamente nova da vida entre as duas realidades. Na cela da prisão de Tegel, escreveu: “A esperança cristã da ressurreição […] manda um homem de volta à sua vida na terra de uma maneira completamente nova”. “O cristão”, continua, “não tem uma derradeira saída para fugir das tarefas e 16
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das dificuldades terrenas”. E concluiu: “Este mundo não pode ser descartado prematuramente”.3 Um ano depois, foi enforcado no campo de concentração de Flossenbürg. Também foi nesse ano que Dietrich Bonhoeffer escreveu algumas de suas obras mais duradouras e mais desafiadoras. Tanto Bonhoeffer quanto Boice estavam determinados a viver entre as duas realidades, a não desmerecer a vida neste mundo.
Um terceiro caminho Nem todos compartilham o mesmo ponto de vista de Boice e de Bonhoeffer. Como se mencionou anteriormente, alguns estão francamente dominados pela vida futura. Nas palavras de um antigo adágio, estão de tal modo voltados para o celestial que não se prestam ao terreno. São como Tales, considerado o primeiro filósofo grego. As estrelas e galáxias o intrigavam. Tales achava que, de alguma maneira, a resposta à pergunta fundamental sobre o significado da vida estava no alto. Dedicava-se tanto a essa busca que quase sempre andava olhando para o céu, totalmente abstraído do que havia ao seu redor. Diz a lenda que, certa vez, por estar completamente concentrado nas estrelas, sem olhar para o chão, o filósofo levou um tombo terrível. Alguns crentes estão de tal modo voltados para o celestial que, como Tales, são perigosos para si mesmos e para os outros. No fim das contas, essa visão não é mais do que escapismo. Os que vivem de acordo com ela costumam considerar as pessoas apenas “almas” e muitas vezes se veem inseguros quanto ao cuidado com a própria vida. Na Idade Média, as pessoas com essa convicção entravam para um mosteiro e, enclausuradas entre as paredes, serviam a Deus no plano espiritual. No mundo moderno, pessoas assim costumam viver em mosteiros criados por elas 3 BONHOEFFER, Dietrich. Letters and papers from prison. Carta de Dietrich Bonhoeffer a Eberhard Bethge, datada de 27 de junho de 1944. Nova York: Simon & Schuster, 1997, p. 336-337. 17
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mesmas, seguras no abrigo de suas paredes. Esses mosteiros assumem formas diferentes para cada indivíduo. Alguns sofrem do que poderíamos chamar de escatologia exacerbada. Escatologia é o termo que os teó logos usam para se referir ao fim dos tempos. Millard Erickson chama os obcecados por essa doutrina de “escatomaníacos”. A conversa dessas pessoas sempre gira em torno do arrebatamento, ou da segunda vinda de Cristo, e sem dúvida conhecem bem o livro de Apocalipse. Não há nada de errado em almejar a volta de Cristo. Paulo, Pedro e até João fizeram exatamente isso, e todos nos ordenam, de maneiras variadas, a fazer o mesmo. Mas também nos lembram de que nosso anseio pelo além não deve desviar nossa atenção do caminho que temos por trilhar na terra. Pedro diz aos destinatários de sua segunda carta que este mundo será desfeito pelo calor (3.10). Mas também lhes diz que, enquanto estivermos nesta terra, devemos viver uma vida de santidade e crescimento na graça (v. 11-18). Paulo nos diz que “o dia do Senhor” está próximo. Contudo, também nos informa que devemos passar o período que o antecede incentivando uns aos outros e trabalhando, em vez de passar o tempo de modo ocioso (1Ts 5.1-11). Em dado momento, até nos manda que, sempre que houver oportunidade, façamos o bem a todos — uma ordem que certamente implica fazer diferença neste mundo (Gl 6.10). O problema de uma escatologia zelosa demais é que ela nos distrai de nosso chamado e de nossa tarefa neste mundo, assim como àqueles que entraram para os mosteiros. Outros constroem um mosteiro moderno adotando a “mentalidade de fortaleza”. Estes se recusam a viver neste mundo e, em vez disso, constroem um totalmente cristão, do qual raramente saem. São obcecados por estações de rádio cristãs e livrarias cristãs e, quando precisam consertar uma torneira, certificam-se de que o serviço seja feito por um encanador cristão. Já que não podem estar no céu, constroem um aqui na terra. Concordam sinceramente com Paulo que morrer é lucro. Só não têm certeza 18
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se podem falar como Paulo, que a vida “na carne” (isto é, aqui na terra) é um trabalho frutífero (cf. Fp 1.22). Entretanto, ao contrário dos cristãos que vivem no mosteiro, seja no sentido literal ou figurado, alguns estão distraídos com este mundo e correm o risco de ser consumidos por ele. Para esses, a fé cristã significa pouco mais do que aprender a ser um pai ou uma mãe melhor; a controlar um talão de cheque; gerenciar um negócio ou encontrar serenidade interior. Para essas pessoas, este mundo obscurece o vindouro. Não estão enclausuradas em cem metros de um monastério. Estão presas aos assuntos deste mundo e são movidas por suas paixões. Podem até usar um linguajar cristão para batizar suas intenções, mas o coração dessas pessoas não está voltado para o seu lar. Modificando um pouco o ditado que já citamos, essa gente está tão voltada para o mundo terreno que o céu não lhe parece muito atraente. As paredes de um mosteiro aqui na terra poderiam provocar-lhes claustrofobia. Preferem quebrar os muros e se misturar, talvez até para se ser formadoras de opinião. Em vez de se afastar do mundo, sentem-se muito à vontade nele. Para elas, a convicção de Paulo, de que “o morrer é lucro”, não faz muito sentido. A resposta ao problema é mais profunda do que apenas procurar equilíbrio entre ser voltado para o mundo ou para o céu. Só se chega à solução adotando uma perspectiva radicalmente diferente, a perspectiva que Boice declara em seu hino; Bonhoeffer proclama da cela da prisão; Paulo expressa tão bem em sua carta aos filipenses; e que Edwards prega em seus sermões. Por um lado, essa perspectiva radical nos salva do escapismo e, por outro, de uma vida distraída, absorvida e consumida por este mundo. Entre ter uma mentalidade totalmente voltada para o céu ou uma totalmente voltada para a terra, existe uma terceira via: viver neste mundo com a perspectiva do vindouro. Falando com mais clareza, é uma visão do céu na terra. O que Paulo, Boice e Bonhoeffer afirmaram tão bem, outros também observaram. Cristão, o personagem 19
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de John Bunyan, não é levado diretamente ao céu assim que chega à cruz e o fardo do pecado cai de suas costas. Acontece exatamente o contrário. O peregrino retrata passos ora dolorosos, ora triunfantes, à medida que Cristão prossegue em seu caminho rumo à Cidade Celestial, seu lar eterno. Ele enfrenta desafios enormes, como o gigante Desespero no Castelo das Dúvidas ou a voz sarcástica das massas embriagadas pelo consumismo na Feira das Vaidades. À medida que Cristão prossegue, às vezes bem lentamente, sua jornada fica mais fácil conforme ele aprende a viver de acordo com a realidade da Cidade Celestial. Ele anseia entrar por suas portas e estar em casa, mas precisa enfrentar sua jornada. Seus olhos estão voltados tanto para a Cidade à frente como para a estrada embaixo de seus pés. Ao personagem ficcional de Bunyan devemos acrescentar o próprio Bunyan, que na prisão e no ministério serviu de exemplo de como viver entre as duas realidades, vivendo a esperança do céu na terra. Contudo, talvez nenhuma personalidade retrate essa ideia de maneira mais tocante do que Jonathan Edwards (1703-1758). Entre os que já leram alguma coisa de Edwards, certamente a maioria já deparou com seu famoso sermão intitulado “Pecadores nas mãos de um Deus irado”. Sabemos que Edwards tem muito a dizer sobre o inferno. O que talvez não saibamos é que Edwards tem muito mais a dizer acerca do céu.
A vida (muito) breve de Jonathan Edwards Jonathan Edwards nasceu, como se diz, numa época curiosa. O velho mundo puritano estava se dissolvendo, e um novo mundo surgia. As Colônias estavam prestes a se tornar uma nova nação quando a vida de Edwards chegou ao fim. Jonathan Edwards, porém, tinha ambos os pés firmemente plantados no mundo puritano e era cidadão do Império Britânico (sempre se referia à “nossa pátria” na correspondência com amigos 20
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escoceses). Contudo, o fato de estar nas Colônias teve grande influência sobre ele. Seu pai foi ministro, assim como seus avós, tios, primos e filhos. Era o único filho homem de Timothy e Sarah Stoddard Edwards, e irmão de dez moças (só isso já lhe garantiria um lugar na História). As irmãs lhe ensinavam latim, especialmente quando o pai estava fora, servindo como capelão de vários regimentos britânicos nas escaramuças contra os canadenses e os indígenas. Sua mãe incutiu-lhe o amor pelos livros, pelo aprendizado e pelo desenvolvimento intelectual. Seu pai foi-lhe exemplo vivo das provações e dos triunfos do ministério. Depois de formar-se em Harvard, o pai se estabeleceu na cidade de East Windsor, Connecticut, no exuberante e pitoresco vale do rio Connecticut. Foi ministro ali durante sessenta anos. Para o reverendo Timothy Edwards, o tempo em East Windsor foi a melhor e a pior época. A carta mais antiga remanescente de Jonathan é endereçada a sua irmã Mary, que vivia em Boston na época. Ele fala de “uma comoção e um derramamento extraordinários do Espírito de Deus”. Um reavivamento chegara a East Windsor. Existe uma carta de Timothy Edwards a seus diáconos escrita uma década antes. Ele agradece a eles o recebimento do salário em 1705, lembrando-lhes que o salário de 1704 ainda estava pendente, isso sem falar no salário de 1703. O jovem Jonathan aprendeu durante todos esses anos, nos bons e nos difíceis. Aos 13 anos, já estava pronto para a faculdade e saiu para estudar em Yale. Recebeu o diploma de bacharel (1720) e de mestrado (1723). Enquanto isso, com 19 anos de idade, pastoreava sua primeira igreja. A congregação era um grupo dissidente de uma igreja dividida e ficava nas cercanias das atuais Wall Street e Broad Street, na cidade de Nova York. Edwards preparava seus sermões meticulosamente, ia a cavalo pela margem do rio Hudson e, de algum modo, conseguiu aconselhar o grupo dissidente a voltar a sua origem. Depois de pedir demissão do cargo, Edwards viajou para casa para 21
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escrever sua dissertação de mestrado. Depois disso, permaneceu em Yale como monitor ou professor auxiliar por dois anos. Em New Haven notou — ou, para ser mais preciso, ficou absolutamente deslumbrado por — Sarah Pierpont. Por fim, foi chamado para servir como ministro assistente de seu avô materno, Solomon Stoddard, em Northampton, Massachusetts, ao norte do lugar onde passou a infância e próximo do seu amado rio Connecticut. Chegou em 1727 e, nesse mesmo ano, casou-se com Sarah. Como a família de origem de Edwards, eles também tiveram onze filhos, três meninos e oito meninas. Pouco depois de se casarem, Stoddard morreu, o que deixou Edwards como único pastor de uma das maiores igrejas das Colônias. Na década de 1730, o reavivamento chegou a Northampton e a outras cidades do vale do rio Connecticut. Nos primeiros anos da década de 1740, outra onda de reavivamento varreu a mesma região, mas desta vez foi muito além, e abrangeu todas as colônias. Conhecido como o “Grande Avivamento”, esse evento só teve impacto menor que a Guerra da Independência. Com seu colega reavivalista inglês, George Whitefield, Edwards estava bem no centro desse acontecimento. Contudo, conforme aprendera ainda menino, depois dos triunfos vêm provações. Na segunda metade da década de 1740, Jonathan Edwards desceu do monte e caminhou pelo vale. Esse vale particularmente foi um conflito com sua igreja que culminou com sua expulsão. Edwards notou que, após os reavivamentos, sua congregação, outrora espiritualmente fervorosa, tornara-se fria. Sua reação, entre outras, foi pôr fim a uma prática instituída pelo avô e com a qual havia muito não se sentia à vontade, a saber, a mesa da comunhão. Stoddard considerava que a comunhão (a Ceia do Senhor) era uma “ordenança de conversão” e dava acesso a todos, quer tivessem professado a fé em Cristo, quer não. O fato de Edwards ter posto fim à prática de Stoddard não caiu bem para o poder estabelecido da 22
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congregação. No famoso estilo congregacional, votaram pela expulsão de Edwards, em 22 de junho de 1750. Edwards dirigiu-se à fronteira. Na década de 1750, para que isso acontecesse, bastava viajar cerca de oitenta quilômetros rumo ao oeste, até o recém-criado posto avançado de Stockbridge, Massachusetts, terra de cerca de 250 moicanos e mohawks, e uma dúzia de famílias inglesas. Edwards, reavivalista, acadêmico e pastor, agora se tornara missionário. Serviu durante sete anos e aí também teve seus altos e baixos. Nos meses do inverno de 1757, foi convidado a ser presidente da Universidade Princeton. Aceitou o cargo, assumindo-o em janeiro de 1758. Depois de apenas algumas semanas na função, recebeu uma vacina contra varíola, em parte porque queria mostrar aos alunos que não tinham nada a temer e em parte pela fascinação de toda a vida pelos avanços da ciência. Contudo, contraiu uma “febre secundária”, nas palavras do médico que o atendeu. Depois de uma enfermidade breve, mas intensa, Edwards morreu em 22 de março de 1758. Mas não sem deixar um legado que continua causando impacto na igreja. Os textos acadêmicos sobre Edwards excedem os de seus colegas coloniais Benjamin Franklin e George Washington. Teólogos, pastores e leigos igualmente continuam estudando seu pensamento e sua vida. Hoje, três séculos após seu nascimento, Edwards continua tendo o que dizer. Retornaremos a esses episódios biográficos nos capítulos à frente. Este esboço serve apenas para nos dar um quadro geral de sua vida, diante do qual podemos enxergar suas ideias, entre as quais a de viver entre as duas realidades, sua visão em relação a vida neste mundo enquanto fazemos nossa peregrinação para o vindouro.4 4 Pode-se encontrar um esboço mais completo da vida de Jonathan Edwards em NICHOLS, Stephen J. Jonathan Edwards: A guided tour of his life and thought. Phillipsburg, NJ: P&R, 2001. Veja também os ensaios presentes em PIPER, John e TAYLOR, Justin, orgs. A God-entranced vision of all things: The legacy of Jonathan Edwards. Wheaton, IL: Crossway Books, 2004. 23
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Entendendo a visão de Edwards A ideia de viver entre as duas realidades brilha intensamente através da vida de Edwards e de seus sermões. Ele a investigou nas Escrituras, meditou sobre ela em momentos de quietude e lutou com suas implicações. Depois disso, foi para o púlpito e proclamou essa concepção em toda sua simplicidade e beleza às suas congregações em Northampton e Stockbridge. Essa perspectiva tornou-se uma mensagem ainda mais tocante em suas mãos, exatamente porque transformou profundamente sua própria vida. Com uma visão clara do que significa viver entre as duas realidades, seu conceito da vida cristã era tal que as realidades e a natureza da vida por vir influenciavam o tempo presente. Sua visão da igreja era de que esta consiste numa comunidade redimida vivendo esta vida de acordo com os princípios e ditames da vida por vir. Edwards era fortemente atraído pelo céu. Mas sua ideia não era puramente etérea. Ele não era vítima do escapismo que assola tantos cristãos sinceros. Sua visão da vida além tinha tudo a ver com esta vida. Para Jonathan Edwards, viver entre os dois mundos significava viver a visão do céu na terra. Essa é a vida realmente boa, a única digna de ser vivida. Naturalmente, porém, nem tudo foi perfeito em Northampton e Stockbridge. Essa visão, constante nos sermões de Edwards, nem sempre funcionava na prática. A comunidade redimida nem sempre vivia de acordo com o céu, e até o próprio Edwards prejudicava esse equilíbrio e perdia o gume afiado de sua visão celestial. Afinal, ele não era um super-herói. Essas falhas, porém, não diminuem o poder do seu exemplo. Na verdade, podem até servir para torná-lo ainda mais tocante. Alguns anos atrás, um anúncio de uma cadeia nacional de academias esportivas nos Estados Unidos terminava dizendo que, se corpo saudável e atlético vendesse em garrafas, todo mundo teria. Sempre pensei na eficácia dessa campanha. O fato é que o anúncio
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diz que não há atalhos para a boa forma física — simplesmente não é possível estalar os dedos e obtê-la. Sabemos que isso é verdade, mas não gostamos de ouvir, pois preferimos um jeito mais fácil. Se Edwards pudesse ter agitado sobre sua congregação — ou sobre própria vida — uma varinha mágica que fizesse que os membros e ele mesmo se tornassem imunes à preocupação excessiva com este mundo ou livres das tendências escapistas dos cristãos focados apenas no céu, ele certamente teria feito isso sem hesitação. Contudo, não existe varinha de condão. O anúncio está certo; isso não se vende em garrafas. Edwards sem dúvida viveu de acordo com a visão, mas nem sempre de modo perfeito. Podemos aprender com ele tanto pelos momentos em que agiu corretamente como nas horas em que errou o alvo. Nos capítulos seguintes, prestaremos atenção em alguns sermões ao mesmo tempo em que tentamos entender a arte de viver entre os dois mundos, de viver a visão do céu na terra. Cada um dos capítulos a seguir se baseia num sermão específico de Edwards. No capítulo 2, o último sermão de uma série baseada em 1Coríntios 13, intitulado “O céu é um mundo de amor”, prepara o terreno para nós na caminhada rumo ao céu. O capítulo 3 analisa “O prazer da religião”, um sermão de seus primeiros anos, pouco conhecido. Dá-nos uma perspectiva em relação a viver como cidadãos do céu diferente da que normalmente costumamos ter. Edwards nos diz que o cristianismo é a busca do prazer nesta vida — algo que em geral não atribuímos a um puritano. No capítulo 4, em “Abundantes em atos de caridade”, Edwards atrai nossa atenção para o chamado a viver e agir de modo justo. Também veremos nesse capítulo que Edwards serviu de modelo de seus ensinamentos quando viveu e trabalhou com os índios moicanos e mohawks em Stockbridge. Às vezes, olhamos para o mundo ao nosso redor e nos resignamos à ideia de que a justiça só será feita no mundo por vir. Embora isso seja verdade, não pode ser desculpa para não fazermos nada nesse meio-tempo. Edwards nos 25
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ajuda a pensar em como podemos ser agentes subversivos num mundo injusto. Nenhum de nós gosta de esperar. Não gostávamos de esperar quando éramos crianças e ainda não crescemos nesse aspecto. O sermão de Edwards intitulado “Eu sei que o meu Redentor vive” nos oferece uma intrigante perspectiva do que fazer enquanto esperamos, que é o assunto do capítulo 5. O capítulo 6 acrescenta à mistura o sermão “Servir a Deus no céu”, no qual Edwards com perspicácia nos provoca a perceber que o que faremos no céu é um ótimo modelo para o que podemos fazer agora. Certa vez, escrevendo à filha, Edwards contou seu desejo de que sua família toda “enfim se reunisse lá”, isto é, sua meta era que todos se encontrassem no céu. Seu objetivo não era simplesmente se encontrarem no final da jornada da vida. Para Edwards, esse objetivo lhe dava o princípio essencial e o direcionava em cada passo do caminho enquanto vivia entre esta vida e a futura. Analisaremos essa perspectiva dinâmica no último capítulo, quando estudarmos o sermão “A vida do verdadeiro cristão, uma jornada rumo ao céu” (p.106s.). A visão de Edwards acerca de viver entre as duas rea lidades não era apenas um conceito para ele. Também não foi criada por ele. Está entrançada no próprio tecido da Bíblia. Quando lemos Edwards, ouvimos os ecos desse glorioso tema das Escrituras. Compreendemos que somos peregrinos com destino a outro mundo e chamados para viver de acordo com costumes estrangeiros. Mas também aprendemos que a jornada é importante. Aprendemos o valor de viver entre as duas realidades.
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2 A CAMINHO DO CÉU Se o céu é um mundo de amor, o caminho para lá é o caminho do amor. Jonathan Edwards, 1738
Num primeiro momento, Edwards parece um por ta-voz improvável da ideia de viver a visão do céu na terra. Parece adequar-se mais à descrição de alguém excessivamente centrado no céu. Nossa tendência é pensar nele como um puritano rematado, tão fascinado com o mundo vindouro que esta vida e seus prazeres pouco o influenciavam; os olhos voltados apenas para cima, certamente nunca para baixo. Segundo a caricatura de Edwards, a única atitude digna nesta vida é fugir dela e da ira futura de Deus. Entretanto, isso é apenas o que parece. Cave um pouco mais fundo e descobrirá que essa visão do céu tem tudo a ver com a vida na terra. Ele tinha muito a dizer sobre o céu, mas não se limitava apenas ao doce porvir. Tinha tanto a dizer sobre esta vida que ultrapassava muito o simples escapismo ou a fuga da ira futura. Em nenhum lugar isso é tão evidente quanto em seu sermão “O céu é um mundo de amor”, o foco deste capítulo. (No Apêndice encontra-se um resumo desse sermão.)
O
verdadeiro por favor?
Jonathan Edwards
pode levantar-se,
Em 1738, Edwards deu início a uma série de sermões sobre o famoso poema de Paulo presente em
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