Cultura e Evangelho

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Capítulo 1

U

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m dos temas que mais me fascinaram desde meus primeiros anos de estudos teológicos foi o da relação entre o cristianismo e a cultura. Com respeito a esta questão, eu vivia em uma situação ambígua e às vezes difícil. Era a Cuba dos anos de 1940 e 1950. A fé evangélica nos chegara de outra cultura. As pessoas que se opunham à nossa fé geralmente usavam o argumento de que aceitá-la era uma traição à nossa cultura e até uma aceitação de elementos estranhos provenientes de outra cultura cujas máquinas de comunicação ameaçavam devastar a nossa. Ainda que a Constituição da República estabelecesse uma separação clara entre a igreja e o Estado e não favorecesse nenhuma religião, na mídia, de mil maneiras diferentes, dava-se a entender que nossa cultura era, por definição, católica romana. Na escola não faltavam professores que diziam que o protestantismo era instrumento do imperialismo ianque, o qual o utilizava para enfraquecer nossa cultura e, assim, torná-la mais maleável a seus desígnios. Nos


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cursos de literatura e às vezes nos de filosofia, estudávamos Jaime Balmes, o apologeta católico do século 19 cujo livro, El protestantismo comparado con el catolicismo en sus relaciones con la civilización europea, publicado em 1842, defendia a superioridade da cultura hispânica e da religião católica. Agora, ao olhar retrospectivamente para aqueles dias, devo confessar que nós mesmos dávamos motivo para tais críticas e acusações. Um dos livros favoritos de nosso grupo de jovens na igreja fora escrito originalmente em francês pelo pastor reformado alsaciano Fréderic Hoffet e fora publicado em castelhano com o título de Imperialismo protestante. A tese daquele livro era a de que o protestantismo conduzia necessariamente a uma ordem social mais avançada e mais justa. O que aquele pastor fez foi comparar toda uma série de estatísticas, colocando de um lado os países protestantes e do outro os países católicos. De um lado a Itália, a Espanha, Portugal e a América Latina. Do outro, a Grã-Bretanha, a Alemanha, os Estados Unidos e a Austrália. As estatísticas pareciam irrefutáveis. O analfabetismo, os nascimentos ilegítimos, as doenças venéreas, o subdesenvolvimento econômico, a mortalidade infantil, as desigualdades sociais... todas as estatísticas negativas eram mais elevadas nos países católicos do que nos protestantes. E o contrário era certo: estatísticas positivas, como o nível de educação, longevidade, emprego, os níveis de renda, etc., eram maiores nos países protestantes. Consequentemente, dizia Hoffet, os graves problemas dos países católicos se devem a seu catolicismo, e os grandes avanços dos protestantes, a seu protestantismo. Para nós, aquele era um argumento contundente. Podíamos dizer a nossos colegas de sala de aula, em nossos debates intermináveis, que tudo que deviam fazer era olhar uns 150 km ao norte e ali

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veriam quanto valor havia no protestantismo e em suas consequências sociais e econômicas. Mas, embora não nos déssemos conta disso, o problema era que, ao fazer uso de tal argumento, nós estávamos justamente dando mais razões às pessoas que diziam que o protestantismo era um elemento estranho que subvertia e desvalorizava nossa cultura e que, portanto, ser um bom cubano era também ser um bom católico ou ao menos não ser protestante, visto que o catolicismo que existia na época em meu país contava com muito poucos bons católicos. Para complicar as coisas, vivíamos por volta do final de um dos períodos de maior diferença e tensão entre o catolicismo e o protestantismo. Embora as diferenças teológicas entre ambas as tradições tivessem se estabelecido no século 16, havendo guerras religiosas cruentas no século 17, o fato é que a contraposição entre elas nunca foi maior do que no século 19 e, até certo ponto, na primeira metade do século 20. O século 19 e os primeiros anos do século 20 marcaram o apogeu da modernidade. Esta representou grandes perdas territoriais e ideológicas para o catolicismo e o oposto para o protestantismo. O século 19 começou com a Revolução Francesa e a independência das colônias americanas, tanto espanholas quanto portuguesas e britânicas. Na política, a Revolução Francesa afetou muito mais o catolicismo do que o protestantismo. Isso se deveu, em primeiro lugar, ao fato de a própria França ser um país católico e, portanto, os ataques dos elementos mais radicais da revolução nesse país terem sido dirigidos principalmente contra o catolicismo, suas instituições e suas doutrinas. Bispos e sacerdotes se viram expulsos de suas dioceses e paróquias, e um bom número deles morreu guilhotinado devido à sua postura contrarrevolucionária. Conventos e

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igrejas foram fechados e profanados. O papa tornou-se objeto de zombaria1. A Revolução Francesa e as façanhas independentistas americanas trouxeram uma nova realidade política. Tanto a Espanha quanto Portugal e a Grã-Bretanha sofreram enormes perdas territoriais nos impérios que tinham conseguido formar. Os impérios português e espanhol nunca mais recuperariam o que tinham perdido e acabariam por desaparecer. Em contraposição a isso, o império britânico, apesar de perder 13 de suas colônias norte-americanas, alcançou uma enorme expansão na África, Ásia e Oceania. As perdas territoriais dos impérios tradicionalmente católicos foram acompanhadas por uma vasta expansão por parte dos britânicos, holandeses, dinamarqueses e outras potências protestantes. Muito mais impactante do que as perdas ou ganhos territoriais foi a capacidade ou incapacidade do protestantismo e do catolicismo de se adaptar às novas circunstâncias. Devido à sua estrutura centralizada e à ideia de que essa estrutura fazia parte da própria natureza da igreja, o catolicismo teve enormes dificuldades para se adaptar às novas realidades políticas. As antigas colônias espanholas e portuguesas não pensavam ter se rebelado contra o papa, mas sim contra seus governos coloniais. Por isso, a maioria de nossas primeiras constituições americanas afirmava que o catolicismo era a religião oficial do Estado. Porém, do ponto de vista das autoridades eclesiásticas, isto não era suficiente. O papado estava comprometido com uma visão centralizada e altamente hierárquica, de modo que, para ser bom católico, era preciso se sujeitar não somente ao papa, 1

Zombarias sintetizadas no famoso comentário atribuído a Joseph Stalin: “Com quantas divisões conta o papa?”

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mas também às autoridades civis por ele sancionadas. Isto tinha uma longa história em nossa América, pois o Padroado Real dera às coroas espanhola e portuguesa enormes poderes sobre a igreja em suas colônias. Assim, embora os rebeldes americanos vissem em suas ações apenas o desejo de se livrar do jugo colonial, o papa e seus conselheiros não podiam deixar de ver também uma rebelião contra a autoridade pontifícia. Como todos sabem, isso trouxe conflitos difíceis entre as novas repúblicas e Roma, com a consequência de que nossa América, ao mesmo tempo em que continuou sendo profundamente católica, em alguns lugares também se tornou profundamente anticlerical. Em contraposição a isso, quando as colônias britânicas na América do Norte se tornaram independentes, embora a oficialidade da igreja da Inglaterra se opusesse ao processo, várias outras denominações já haviam criado raízes neste hemisfério. Já que o protestantismo não tinha em sua maior parte a ideologia centralizadora que se tornara parte integrante do catolicismo, as igrejas nas antigas colônias britânicas – agora os Estados Unidos da América – não sofreram os descalabros de sua contraparte mais ao sul. Em alguns casos surgiram denominações novas, separadas das igrejas na Grã-Bretanha às quais haviam pertencido. Em geral, porém, as igrejas sofreram relativamente pouco no processo da independência norte-americana. Contudo, o conflito e contraste eram muito mais profundos. As novas repúblicas nascidas das revoluções no final do século 18 e início do século 19 estavam fundamentadas em ideais que se chocavam com boa parte da prática católica tradicional. Estes ideais incluíam, por exemplo, o direito do indivíduo a suas próprias opiniões, a selecionar e julgar suas leituras e a agir de acordo com suas

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próprias conclusões e convicções. Isto se opunha à pratica tradicional da Igreja Católica Romana, que publicava um Índice de livros proibidos, insistia que os fiéis deveriam concordar em tudo com os ensinamentos da igreja – inclusive com aqueles que os próprios fiéis desconheciam, mas deveriam aceitar pela fé implícita na igreja – e castigava no mínimo com a excomunhão as pessoas que divergiam de suas doutrinas. Nas novas nações – inclusive nas que se declaravam oficialmente católicas – foi-se impondo o princípio da autonomia do Estado, que não tinha obrigação nenhuma de se sujeitar aos ditames da hierarquia eclesiástica. Como meio de sustentar essa autonomia e de promover a liberdade de pensamento entre seus cidadãos, vários Estados começaram a se responsabilizar pela educação destes e a fazê-lo em escolas independentes do controle eclesiástico. Tudo isto era anátema para as autoridades católicas e em especial para Roma. Na própria Itália, os estados pontifícios se viam ameaçados pelo crescente nacionalismo italiano, que buscava a unificação da península. Tudo isso chegou ao ponto culminante durante o pontificado de Pio IX – o mais longo de toda a história. Este foi o papa que, por fim, perdeu os estados pontifícios, dos quais lhe foi permitido reter somente o Vaticano e outras pequenas possessões. Pio IX foi o primeiro papa a promulgar uma doutrina – a da imaculada concepção de Maria – com base em sua própria autoridade, sem a mediação de um concílio ou de outro corpo eclesiástico. Foi ele que, no ano de 1854, promulgou o Sílabo de erros, no qual se listavam erros que nenhum bom católico deveria aceitar. Entre esses erros se achavam o Estado secular, o direito ao livre juízo, a educação pública sob o controle do Estado e vários outros do mesmo tom. E foi Pio IX que ocupava a sé

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romana quando, por ocasião do Concílio Vaticano I, o papa foi declarado infalível. A reação do restante do mundo à promulgação da infalibilidade papal mostra até que ponto o papado perdera o poder verdadeiro. Quando, três séculos antes, o Concílio de Trento iniciou a reestruturação da igreja medieval, criando a estrutura centralizada que caracterizou o catolicismo romano desde então, houve forte oposição a seus decretos. Em alguns países católicos proibiu-se sua publicação e aplicação. Vários países apresentaram protestos formais contra os poderes que Roma parecia estar se adjudicando. Em contraposição a isso, agora que o Concílio Vaticano promulgava a infalibilidade papal, a resposta do mundo católico, especialmente na arena política, não foi mais que um grande bocejo. O papa poderia dizer o que quisesse a respeito de si mesmo. Afinal de contas, tirando seus seguidores mais fiéis, seriam poucos os que lhe dariam atenção. Enquanto isso, nos países protestantes entendia-se a declaração da infalibilidade do papa como a última e mais clara demonstração da apostasia católica romana. Em síntese, por uma grande variedade de razões, o catolicismo romano do século 19 e do início do século 20 se declarou inimigo acérrimo da modernidade, na qual via uma grave ameaça contra a fé. E, por sua vez, a modernidade se declarou inimiga do catolicismo e frequentemente também de todo o cristianismo ou de toda crença no que não pudesse ser comprovado por meios empíricos e supostamente objetivos. Em contraposição, as novas circunstâncias do século 19 beneficiaram o protestantismo. Já mencionei que foi durante esse século que as grandes potências protestantes estabeleceram colônias por todo o mundo. Nesses vastos impérios – algumas vezes com o

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apoio das autoridades coloniais e outras contra a vontade delas – as missões protestantes avançavam rapidamente, de modo que logo havia igrejas protestantes fortes na África, Ásia e Oceania. Estes impérios, pelo menos em seu governo interno – pois geralmente o governo das colônias era outra coisa –, sublinhavam o direito dos indivíduos a suas próprias opiniões, a livre pesquisa, a liberdade de culto e a autonomia do Estado perante a igreja. Até certo ponto, todas essas potências se declaravam democráticas, dando participação a pelo menos certa parte de sua população no governo e em suas decisões. O protestantismo abraçou logo isso tudo. O século 19 produziu uma grande variedade de sistemas teológicos protestantes, especial­ mente na Alemanha. Embora houvesse grandes diferenças entre tais sistemas, praticamente todos concordavam em um ponto: o protestantismo e a modernidade haveriam de andar de mãos dadas, pois o protestantismo é a expressão moderna do cristianismo. Quase todos aqueles teólogos famosos do século 19 diriam que o que quer que houvesse no cristianismo que não fosse compatível com a modernidade seria descartado como superstição, como relíquia de um tempo passado, quando as pessoas não pensavam criticamente, mas se submetiam à autoridade. Tudo isso não passava de deturpação do cristianismo, produto do obscurantismo medieval e da atitude totalitária do catolicismo romano. Embora nunca seguisse aqueles teólogos em suas posturas mais extremas, a maioria dos fiéis protestantes aceitou a ideia de que o protestantismo era a forma moderna e, portanto, mais avançada do cristianismo. Em nossa América mesmo, Diego Thomson, que se acredita ter sido o primeiro missionário protestante, chegou como arauto

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e expositor tanto da Bíblia quanto da modernidade. Os governos liberais nas nações recém-nascidas o receberam como um modo de se contrapor aos conservadores, em sua quase totalidade católicos tradicionalistas. Para eles, Thomson não era tanto o missionário, mas o educador que vinha propondo e demonstrando um novo método educacional – o lancasteriano – que, para aquela época, representava o ápice da modernidade. Em certo sentido, era tudo isso que estava por trás do livro de Hoffet, de que tanto eu quanto meus correligionários gostávamos tanto. Por isso, frequentemente ressaltávamos a nossos companheiros católicos que em nossas igrejas se praticavam princípios democráticos, que em nossas igrejas qualquer um podia falar, que todos nós líamos a Bíblia e chegávamos a nossas próprias conclusões. Em nossas igrejas celebrávamos o culto em nossa própria língua, e não em latim, de modo que todos pudessem entender o que se dizia, e nelas não se proibia ninguém de ler o que quisesse. Mas, embora eu não soubesse, nem sequer o suspeitasse, minhas lutas internas entre ser latino-americano e ser evangélico, ou, como disse antes, entre Balmes e Hoffet, não eram apenas minhas, mas faziam parte do ambiente daqueles anos em que o catolicismo romano ainda não havia chegado ao Concílio Vaticano II, e o protestantismo não tivera de se confrontar com o fracasso da modernidade. Nossos argumentos na escola eram reflexo de contrastes e conflitos muito mais amplos que eu mesmo só começaria a entender 20 ou 30 anos depois. Tudo o que foi dito não tem a finalidade de voltar a nos envolver em uma controvérsia entre católicos e protestantes quanto a quem tem razão, nem tampouco entre uns evangélicos e outros quanto a qual deve ser nossa atitude ante o catolicismo romano ou ante

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a modernidade. Tem, pelo contrário, duas finalidades. A primeira é fazer-nos ver que as questões que estamos colocando sempre têm lugar dentro de um contexto histórico e que para entendêlas é preciso levar em conta esse contexto. E a segunda finalidade é explicar por que já desde muito antes de iniciar meus estudos teológicos a questão da relação entre o cristianismo e a cultura me parecia inquietante. Seria possível ser evangélico plenamente, tão evangélico quanto qualquer um dos missionários que vinham da América do Norte, e ao mesmo tempo ser plenamente latino-americano, tão latino-americano quanto qualquer um? Então fui para o seminário, e ali a dificuldade do problema se confirmou. Ao estudar a história da igreja, tornou-se claro que o protestantismo floresceu e triunfou principalmente nos territórios que não tinham feito parte do Império Romano, ou em alguns que, embora tivessem sido conquistados pelos romanos, sempre estiveram às margens do Império. Isto pode ser visto claramente até os dias de hoje: onde se falam línguas românicas prevalece o catolicismo romano; e onde se falam línguas germânicas prevalece o protestantismo. Assim, Portugal, Espanha, Bélgica e Itália são países católicos, enquanto Holanda, Escócia e Escandinávia são protestantes. Além disso, os grandes conflitos entre o protestantismo e o catolicismo romano aconteceram justamente nos territórios onde a romanização não havia penetrado tanto como nos países do Mediterrâneo. Por um longo tempo a Inglaterra esteve na balança, sem que se pudesse saber para que lado iria cair. A Alemanha se viu dividida entre muitos Estados, uns protestantes e outros católicos, até que, depois de guerras cruentíssimas, decidiu-se pela tolerância. Contudo, o que ocorreu por fim foi que os territórios ao sul do país – os mais romanizados – acabaram sendo católicos, ao passo que os do norte são protestantes.

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O caso de Calvino é interessantíssimo. O grande teólogo da tradição reformada era francês, francês de convicções patrióticas; até escreveu sua famosa obra Institutas da religião cristã tanto em latim quanto em francês e a dedicou ao rei da França. Sua última versão, a de 1560, está em francês. O impacto de Calvino na França foi grande, ao ponto de haver no país guerras civis nas quais o tema da religião foi central. Apesar de tudo isso, porém, no final a França rejeitou o calvinismo, ao mesmo tempo em que a Escócia, a Holanda e algumas regiões da Suíça e da Alemanha o adotaram. A partir de então, raras vezes se escutaria aquele filho da França, rejeitado pelos seus e por sua cultura, falar em francês, ao passo que seriam milhões os que o leriam em holandês, inglês ou alemão. Será que Calvino, como eu – também sem querer e, no caso dele, sem nem sequer o saber –, se viu obrigado a escolher entre ser francês e ser protestante? A pergunta não parecia apenas inquietante, mas também desconcertante. Em suma, lá pelo final de meus estudos no seminário eu me encontrava em uma série de dilemas teológicos e culturais. Por um lado, não podia aceitar a tese segundo a qual o protestantismo não tem lugar na cultura latino-americana. Por outro, os próprios fatos pareciam provar o contrário. Por um lado, eu queria ser genuína e plenamente latino-americano. Mas também era e queria ser evangélico, o que parecia estar irremediavelmente ligado a uma cultura estrangeira. Por um lado, Hoffet; por outro, Balmes. Por um lado a fé, indiscutivelmente evangélica; por outro a cultura, indiscutivelmente latina. A tarefa parecia clara, mas o caminho era pedregoso e desconhecido. Se Calvino não conseguiu que sua fé evangélica chegasse a se plasmar na cultura francesa, haveria esperança de que nossa fé,

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igualmente evangélica, se plasmasse em nossa cultura latino-americana? Como poderíamos conseguir isto? De certo modo, esta tem sido uma de minhas principais preocupações teológicas por quase meio século, e por isso creio que está na hora de refletirmos um pouco mais sobre o tema aparentemente conhecido das relações entre a fé e a cultura, embora eu deva salientar antecipadamente que a prova da compatibilidade entre nossa cultura e nossa fé não está tanto em qualquer teoria que possamos propor aqui, mas no próprio fato de que já são dezenas de milhões os latino-americanos que abraçaram a fé evangélica e deram a ela um sabor genuinamente latino-americano. Em todo caso, quando fui convidado a lecionar a Cátedra Ritchie no Instituto Bíblico de Lima – prestigiosa instituição oriunda de uma das primeiras igrejas evangélicas no Peru –, pareceu-me que essa era uma oportunidade ideal para discutir um pouco mais sistematicamente o tema de fé e cultura; não com a presunção de dizer algo novo, mas com a finalidade de resumir algumas de minhas reflexões sobre este tema e convidar todos nós a pensar sobre ele. Além disso, a ocasião me pareceu especialmente adequada porque, com essa cátedra, honramos um daqueles pioneiros que nos trouxeram a fé evangélica, e a trouxeram vestida em culturas nórdicas. Quando chegou a terras peruanas em 1906, para dedicar os 46 anos que lhe restavam de vida à evangelização do continente, Ritchie trouxe consigo não apenas a Bíblia e a mensagem do evangelho, mas também toda uma herança cultural que fora se firmando na Escócia ao longo dos séculos. Visto que durante boa parte desses séculos a Escócia se viu repetidamente subordinada à Inglaterra e sua cultura, por um longo tempo houve na Escócia uma profunda consciência dos conflitos culturais e de como uma cultura

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dominante tende a se impor sobre as que lhe estão subordinadas. Por isso Ritchie, assim como outros daqueles primeiros missionários escoceses, veio a nossas terras entendendo claramente que era necessário que o evangelho criasse nessa parte do continente suas próprias raízes e tomasse sua própria forma. Apesar disso, porém, o evangelho que aqueles primeiros missionários pregaram, as igrejas que fundaram, as tradições que nos legaram sempre deram sinais de suas origens escocesas. Isso não deve nos causar estranheza. A questão da relação entre a fé e a cultura sempre foi um dos temas fundamentais de toda teoria e prática missiológicas. Cada vez que a mensagem do evangelho atravessa uma fronteira, cada vez que cria raízes em uma nova população, cada vez que é pregada em um novo idioma, coloca-se uma vez mais a questão da fé e da cultura. Por isso, é possível recontar toda a história da igreja do ponto de vista dessa questão: como ela foi se colocando e sendo resolvida a cada passo. No Novo Testamento, observamos como o cristianismo, nascido e formado dentro de uma cultura judaica, foi descobrindo – às vezes em meio a enormes debates – quanto dessa cultura se devia aceitar e quanto rejeitar. Basta ler as epístolas de Paulo para perceber que um dos principais temas de discussão naqueles primeiros tempos foi justamente o que fazer com os gentios que se convertiam ao cristianismo. Isto é, deveria se exigir que eles se tornassem judeus e adotassem todos os costumes e práticas judaicas? Ou havia um modo de ser cristão e de declarar-se, portanto, descendente de Abraão sem se tornar judeu? Logo o cristianismo começou a abrir passagem pelo mundo greco-romano, e então a pergunta foi como os cristãos deveriam ver a cultura desse mundo: deveriam rejeitar tudo que viesse dela como

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produto do demônio e do erro? Ou seria possível ver nela a mão e a ação de Deus? Mais adiante voltaremos a este caso específico. Depois vieram as invasões germânicas, e boa parte do cristianismo se germanizou. Ao chegar a Idade Moderna, voltaram a se colocar perguntas, dúvidas e debates acerca da relação entre a cultura dessa era e a fé da igreja, como vimos ao comparar a reação católica romana com a dos teólogos protestantes. Com o advento das grandes épocas missionárias – o século 16 para o catolicismo romano e o século 19 para o protestantismo – a questão voltou a se colocar. Cada vez que o cristianismo penetrava – ou tentava penetrar – em uma nova cultura, era preciso se perguntar qual deveria ser sua atitude ante ela. Isto é, seria questão de destruir a velha cultura para construir a nova fé sobre seus escombros? Seria questão de adaptar a pregação e o ensino aos modelos da cultura receptora? Seria questão de analisar essa cultura, dividindo-a em diversos elementos, para em seguida aceitar uns e rejeitar outros? Em suma, a questão de fé e cultura é tema obrigatório para qualquer discussão missiológica. Por outro lado, em épocas mais recentes, circunstâncias novas acrescentaram outra dimensão a esta questão. Trata-se da presença de uma grande variedade de religiões dentro de culturas que até pouco tempo atrás podiam ser consideradas cristãs, ou ao menos contextos onde a fé cristã dominava. Em regiões como a Europa ocidental, os Estados Unidos, a Austrália e a Nova Zelândia há fortes minorias muçulmanas, budistas, hinduístas, etc. Nota-se isso mais nos antigos centros coloniais, onde ocorreu um refluxo demográfico, de modo que existem fortes contingentes de imigrantes procedentes das antigas colônias. Assim, por exemplo, na Inglaterra há uma comunidade numerosa procedente da Índia, a maioria de

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religião hinduísta, mas também muitos muçulmanos ou seguidores de outras das religiões tradicionais do subcontinente índico. Do mesmo modo, ainda que em grau menor, começa a haver em todas as cidades da América Latina mesquitas, pagodes e templos das mais variadas religiões. Por causa de tudo isso, a questão da relação entre a fé cristã e a cultura adquire uma nova dimensão, pois já não se trata somente de como devemos entender a relação entre a fé cristã e as novas culturas onde ela é pregada, mas também de como devemos entender a relação entre essa fé e as culturas antigas que pouco a pouco se amoldaram a ela, mas onde agora se apresentam novas religiões que competem com o cristianismo. Assim, se no século 19 a pergunta que se colocava era como se poderia relacionar a fé cristã, por exemplo, com a cultura chinesa, atualmente essa pergunta continua sendo feita, porém uma outra lhe é acrescentada: que relação existe entre a fé cristã e as culturas em que ela tem se arraigado por séculos, por exemplo, a norte-americana? Se quando eu estudava no seminário, há meio século, a pergunta que nós, latino-americanos evangélicos, fazíamos era como relacionar nossa fé com nossa cultura, hoje continuamos a fazer essa mesma pergunta, mas com novas dimensões. Não se trata mais somente de ser evangélicos em uma cultura católica. Trata-se disso e de muito mais. Trata-se também de como ser cristãos evangélicos nas novas culturas para onde o crescente impulso missionário latino-americano está levando nossa fé. Trata-se de como ser cristãos evangélicos em uma cultura que está mudando, que vai se tornando cada vez menos monolítica e menos católica. E se trata de como ser cristãos evangélicos quando a modernidade chega a seu fim, e quando o enorme contraste entre o catolicismo e o protestantismo, que existia

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durante o apogeu da modernidade, também vai perdendo suas arestas. Por causa disso tudo, duvido que haja uma pergunta teológica mais urgente do que esta: a das relações entre a fé e a cultura. Neste ponto é preciso fazer um esclarecimento. O que pretendo fazer aqui não é desenvolver toda uma teoria antropológica acerca das culturas, do modo como funcionam, etc.; o que pretendo é muito menos e, simultaneamente, muito mais. Muito menos porque, no que se refere à teoria antropológica e etnográfica, só sei o que li em alguns livros básicos e, portanto, não creio que eu tenha nada novo a dizer. Bastante mais, pois o que pretendo é, em grande parte, um exercício teológico. Digo isto porque, em minha opinião, a boa teologia é aquela que concebe e vive a universalidade de Deus nas particularidades da vida e a eternidade de Deus nas vicissitudes da história. Por isso, o que eu gostaria de convidar meus leitores a investigar não é outra coisa senão isto mesmo: fazer teologia; porém à nossa maneira, dentro de nossos termos e com pertinência para os desafios que enfrentamos. Depois, o que consideraremos aqui – teologicamente, mas também a partir de nosso ponto de vista, o de uma igreja latino-americana que se questiona acerca de seu lugar nesta sociedade – é o que é essa cultura, o que significa, como funciona, que lugar tem no plano de Deus e, portanto, que lugar deverá ter na missão da igreja. O desafio que hoje enfrentamos consiste em entender correta e teologicamente o que é a cultura e qual é a relação da igreja com a cultura, porque somente assim poderemos entender a nós mesmos e a nossa missão. A própria ordem em que trataremos do tema deverá indicar nosso interesse teológico. Por isso, em vez de começar discutindo toda uma teoria acerca das culturas – o que são, como se formam,

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como se relacionam entre si, etc. – para depois passar para uma discussão teológica, seguiremos uma ordem teológica e, em meio a ela, destacaremos alguns pontos salientes referentes às culturas como fenômeno antropológico. Isto quer dizer que nos capítulos que se seguem começaremos definindo, ainda que de modo bastante breve, o que entendemos por cultura. Mas no processo desta mesma definição primeiro a relacionaremos com a doutrina da criação, para chegar à afirmação de que a própria cultura – ou ao menos o fato de que há cultura – faz parte da obra e dos propósitos criadores de Deus (capítulo 2). Como todos sabem, a doutrina da criação não quer dizer que as coisas são exatamente como Deus quer que sejam. Pelo contrário, entre a criação e nós está a queda. Portanto, no capítulo 3 consideraremos de que modo se manifesta a presença do pecado nas culturas. Um dos principais problemas que os crentes têm de enfrentar ao discutir o tema da fé e da cultura é que não há algo assim como a cultura no singular. As culturas sempre se apresentam a nós em uma variedade irredutível, e muitas vezes essa variedade acaba sendo conflituosa. Como cristãos, o que diremos acerca da variedade das culturas? Toda essa variedade será consequência do pecado? Será castigo ou bênção? Que paradigmas teológicos podemos empregar para entender não somente a variedade de culturas, mas também a unidade da igreja em meio a essa diversidade? Estas são as questões que discutiremos no capítulo 4. No capítulo 5 perguntamos que possibilidades há de se ver a ação de Deus nas culturas que parecem não ter escutado o evangelho. Estudaremos o principal paradigma empregado pela igreja antiga e uma parte de suas consequências.

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O capítulo 6 dará continuidade ao tema do 5, embora com maior ênfase em nossa missão hoje e em como uma melhor compreensão teológica das culturas e de sua relação com nosso Deus nos ajuda a entender melhor o caráter e o alcance de nossa missão. Por último, no capítulo 7 apresentaremos algumas reflexões breves acerca do tão conhecido tema da relação entre o culto e a cultura, na esperança de que isso nos estimule a pensar mais sobre ele. Passemos, então, ao que entendemos por cultura e a como ela se relaciona com a obra criadora de Deus.

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