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Melvin R. Starr
ossos inquietos A primeira crônica de Hugh de Singleton, cirurgião
Tradução de Valéria Lamim Delgado Fernandes
São Paulo
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Veja o que outros falam sobre OSSOS INQUIETOS Cuidadoso e curioso, o cirurgião Hugh é um personagem envolvente que parece ser totalmente real. – Rikki B. EUA Com certeza adorei o livro e mal posso esperar pelo próximo. Um dos melhores romances medievais que li nos últimos anos. Mais do gênero, por favor, e logo! – David C. Reino Unido Gostei do cenário, do período, dos personagens bem realistas e do senso de humor seco. – Donna B. EUA Gostei da história e das informações úteis sobre a vida na Grã-Bretanha do século 14. Uma forma fascinante de aprender história. Não vejo a hora de ler a sequência. – John H. Reino Unido Li o livro todo de uma só vez; é realmente o melhor mistério medieval que li recentemente. Ensino história medieval, por isso é sempre bom ler algo escrito por alguém que realmente sabe o que está falando. Mal posso esperar pelo próximo! – Sarah T. EUA A primeira crônica de Hugh de Singleton é uma excelente leitura. – Richard A. Reino Unido Para mim, seu romance foi uma leitura, em geral, agradável e uma aventura gratificante pela história de Bampton na companhia de personagens reais e divertidos. Se eu voltar ao Reino Unido, com certeza vou parar para dar uma espiada na igreja de St. Beornwald. – Anne Marie C. Irlanda Uma história maravilhosa que poderia ter tido como ghost-writer um verdadeiro cirurgião do século 14. Não vejo a hora de ler outros trabalhos dele. – Jill M. EUA Uma grande leitura! Gostei dos detalhes e do glossário. Espero que venha mais! – Ross D. Austrália Como enfermeira aposentada, gosto de ler a história da medicina. Este livro saciou minha fome e deixou-me com um gostinho de “quero mais”. Estou enviando uma doação para ajudar a bela igreja antiga citada na história. – Patricia N. EUA É um livro marcante que, para mim, foi impossível deixar de lado. Estou ansioso para ler a próxima crônica com grande expectativa. – Roger F. Reino Unido
6 A primeira crônica de Hugh de Singleton foi excelente do começo ao fim. Divertida, educativa, interessante, inteligente e realista – tudo em uma única obraprima. Espero ansiosa a segunda. – Annie E. EUA Apenas algumas linhas para dizer o quanto gostei de ler Ossos inquietos. Ele vai para a prateleira com meus outros mistérios medievais favoritos. Espero que este livro seja o primeiro de muitos. – Sue G. Reino Unido Um romance excelente! A trama é muito bem pensada e acontece de modo agradável, com número suficiente de viradas, mudanças e pistas falsas para manter o leitor entretido. – Gary M. EUA Que romance fora de série! Uma trama excelente, uma leitura fácil... Li todos os livros da série Cadfael e Ossos inquietos supera todos eles. Mal posso esperar pelo próximo livro da série. – Peter S. Reino Unido Excelente estreia de um bom novo protagonista... o autor mostra um belo domínio da história. Podemos esperar com animação que este será o primeiro de muitos. – Suzanne C. EUA Nunca escrevi para um autor antes, mas eu realmente acho que tenho que agradecer a você por Ossos inquietos. Gostei tanto deste livro! Sou muito fã de histórias policiais medievais e esta provavelmente está entre as melhores. – Roger G. França De modo geral, este é um grande romance e vou comprar qualquer outro que vier desse autor. – Ruth I. EUA O livro contém informações fascinantes sobre a cirurgia medieval. Ossos inquietos é uma leitura deliciosa e não vejo a hora do próximo da série. – Chris P. EUA Acabei de ler Ossos inquietos há pouco e adorei! Foi como um sopro de ar fresco medieval. – Annie C. EUA Você criou uma verdadeira noção de espaço, junto com personagens, de que o leitor pode gostar e pelos quais se interessar. Hugh é um grande herói e espero ansiosa outras de suas aventuras. – Maria H. EUA Foi uma leitura maravilhosa; mal posso esperar para ver para onde as aventuras do mestre Hugh vão levá-lo. – Travis B. EUA
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agradecimentos
Em uma tarde de junho de 1990, minha esposa e eu descobrimos uma pousada agradável chamada The Old Rectory, na pequena vila de Mavesyn Ridware. Tony e Lis Page, os proprietários, tornaram-se bons amigos. Quase uma década depois, eles se mudaram para Bampton e Susan e eu conseguimos visitá-los em 2001. Reconheci de imediato que a cidade poderia ser perfeita para o romance que eu pretendia escrever. Tony e Lis, a quem sou muito grato, foram ótimas fontes para a história de Bampton. John Blair, do Queen’s College, em Oxford, escreveu vários artigos que esclarecem a história de Bampton. Esses artigos foram muito úteis, especialmente para entendermos a situação estranha de uma paróquia medieval que tinha três vigários. Quando descobriu que eu havia escrito um romance não publicado até aquele momento, Dan Runyon, da Spring Arbor University, convidou-me para palestrar para suas turmas sobre as experiências de um escritor novato. Dan enviou alguns capítulos para seu amigo, Tony Collins, diretor editorial da Monarch Books, da Lion Hudson. Obrigado, Dan!
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E obrigado a Tony Collins, a minha editora Jan Greenough e ao pessoal da Lion Hudson por sua boa vontade em publicar um autor novo sem currículo na área. Antes de me aventurar como escritor, passei 39 anos ensinando história. A experiência deu-me um respeito maior pelos professores, que se esforçaram para incutir um pouco de sabedoria em minha jovem mente. Agradeço a: Jack Gridley, professor da oitava série de extraordinário conhecimento e bondade. Celestine Trevan, que exigia uma escrita clara e concisa em suas aulas de inglês no ensino médio. Dan Jensen, que tinha um entusiasmo contagiante para ensinar história e também pegava pesado com textos mal escritos. E muitos outros para listar aqui. Mel Starr Ascensão de Cristo, 2008
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Bampton
1. A igreja de St. Beornwald 2. Castelo de Bampton 3. Casa de Galeno 4. Moinho 5. Capela de Santo AndrĂŠ 6. Fonte da Senhora
para Aston & Oxford
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ctred imaginou ter descoberto ossos de porco, mas não sabia por que eles estavam no fosso que ficava na base do muro do castelo de Bampton, nem deu importância
a isso. Então, ele encontrou a caveira. Uctred, um vilão preso à terra do Lorde Gilbert, terceiro barão Talbot e lorde do castelo de Bampton, havia abatido muitos porcos. Ele sabia a diferença entre a caveira de um homem e a de um porco. Lorde Gilbert chamou-me para examinar os ossos. Todos sabiam de quem poderiam ser os ossos. Somente dois homens haviam desaparecido recentemente em Bampton. Estes deviam ser os ossos de um deles. Sir Robert Mallory era o pretendente da bela irmã de Lorde Gilbert, Lady Joan. Logo depois da Páscoa, diziam alguns que ele e seu escudeiro foram chamados ao castelo para tratar de negócios com Lorde Gilbert. Que negócios eram eu não sei, mas
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suspeito que parte da conversa estava relacionada ao dote. Dois dias depois, ele e seu escudeiro passaram a cavalo pelo portão do castelo em direção à estrada do norte que levava a Burford. O porteiro viu quando partiram. Ninguém mais os viu depois disso. Ele nunca chegou à propriedade de seu pai, em Northleech. Como ele passou pelos muros do castelo de Bampton, morto, sem ser visto, e voltou lá para dentro, ou quase isso, ninguém pode dizer. Crime parece ser uma possibilidade. Fui chamado ao castelo por causa de minha profissão: cirurgião. Se, quando escolhi esse trabalho, eu soubesse que limpar sujeira de ossos faria parte de meus deveres, eu teria continuado a primeira vocação que escolhi para mim: clérigo. Sou Hugh de Singleton, quarto e último filho de um cavaleiro menor do condado de Lancashire. A propriedade de Little Singleton faz jus ao seu nome, pois é pequena. Meu pai tinha o terreno no feudo de Robert de Sandford. Era um lugar agradável para se crescer. Plano como uma mesa, com correntezas lentas e sinuosas, o Wyre fazia seu percurso desde as montanhas, vistas a dezesseis quilômetros ao leste, até o mar, à mesma distância em direção ao noroeste. Como eu era o caçula, a propriedade não fazia parte de meu futuro. Meu irmão mais velho, Roger, iria recebê-la de qualquer forma. Lembro que, quando eu era um rapazote, ouvi sem querer meu irmão discutindo com meu pai sobre uma escolha de noivas que poderiam trazer consigo um dote que aumentaria suas terras. Nisso eles se saíram relativamente bem. O dote de Maud tinha o dobro das propriedades de meu irmão. Depois de três filhos, Roger dobrou o tamanho de sua cama também. Maud nunca foi uma moça fraca. A cada herdeiro que ela gerava, seu volume aumentava. Isso não parecia incomodar Roger. Herdeiros são importantes. O padre de nossa aldeia, Aymer, dava aulas na escola da propriedade. Quando eu tinha nove anos, período em que a peste negra apareceu, ele falou com meu pai e meu futuro foi acertado. Como eu mostrava aptidão para os estudos, iria para a universidade. Aos catorze anos, fui enviado para Oxford com o intuito de me tornar clérigo e, quem sabe, advogado ou sacerdote no final. Não durou muito tempo, pois, em meu segundo ano na universidade, um colega se irritou com a cerveja aguada que lhe serviram em uma taverna da Rua Principal
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e, com um bando, destruiu o lugar. O proprietário procurou ajuda e a briga tornou-se uma rixa violenta conhecida desde então como a Baderna no Dia de Santa Escolástica. Quase cem estudiosos e cidadãos morreram antes de o xerife restabelecer a paz. Quando tive coragem de sair de meu alojamento, fugi para Lancashire e só voltei no último trimestre. Em vez disso, eu poderia ter herdado Little Singleton se a peste negra tivesse sido um pouco pior. Roger e um de seus filhos morreram em 1349, mas em dois dias diferentes, na semana anterior ao Dia de São Pedro. Assim, na Festa de Santa Maria, meu terceiro irmão morreu um dia depois de cair doente. O padre Aymer disse que um desequilíbrio dos quatro humores — ar, terra, fogo e água — era a causa da doença. A maioria dos sacerdotes e, na verdade, os leigos também acreditavam que esse desequilíbrio era atribuído à ira de Deus. Sem dúvida, os homens haviam lhe dado razões suficientes para ficar irado. A maioria dos médicos atribuiu o desequilíbrio ao ar. O padre Aymer recomendou que queimássemos madeira úmida para fazer fogueiras cheias de fumaça, que o sino da igreja fosse tocado em intervalos regulares e que usássemos uma bolsa de especiarias em volta do pescoço para perfumar o ar. Eu era apenas uma criança, mas pareceu até para mim que nem essas precauções deram bons resultados. O padre Aymer, que não faltava às suas obrigações, como faziam alguns sacerdotes miseráveis, morreu uma semana depois de dar a extrema unção a meu irmão Henry. Observei da porta, a uma distância respeitosa da cama de meu irmão. Posso ver em minha lembrança o padre Aymer inclinado sobre meu irmão ofegante e moribundo, com sua bolsa de especiarias balançando de um lado para o outro enquanto falava de modo cantado as palavras do sacramento. Assim, meu sobrinho e sua mãe herdaram Little Singleton e eu fui para Oxford. Eu achava o programa da universidade pouco interessante. O padre Aymer havia me ensinado latim e um pouco de grego, assim não precisei me esforçar para avançar meus conhecimentos dessas línguas. Completei o trivium e o quadrivium dentro do prazo de seis anos, mas preferi não me ordenar depois de receber o diploma de bacharel. Não tinha vontade de continuar bacharel, mesmo não tendo nenhuma dama em mente com quem eu pudesse dar fim à minha solidão. Eu queria continuar meus estudos. Pensei que talvez pudesse estudar direito, mudar-me para Londres e aconselhar reis. O número de conselheiros
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reais que acabaram na prisão ou na forca deveria ter me convencido a desistir dessa ideia extravagante. Mas os jovens raramente são desestimulados a seguir ideias tolas. Veja como eu apreciava pouco a vida como vigário em uma aldeia solitária ou mesmo a vida de um reitor com recursos para me sustentar. Não porque eu não quisesse servir a Deus. Penso que meu desejo nesse sentido era maior do que o de muitos que aceitaram o chamado, servindo à igreja enquanto serviam a si mesmos. Em 1361, quando eu terminava o mestrado em Ciências Humanas, a peste atacou novamente. Oxford, como antes, foi a mais atingida. As faculdades ficaram bem reduzidas. Perdi muitos amigos, porém, mais uma vez, Deus escolheu poupar minha vida. Orei muitas vezes desde então para que vivesse de modo a lhe agradar por ele ter feito isso. Eu morava em um quarto na Rua São Miguel, com outros três estudantes. Um fugiu para a cidade ao primeiro sinal de que a doença havia voltado. Os outros dois morreram. Não pude fazer nada para ajudá-los, mas tentei fazer com que se sentissem confortáveis. Não! Quando um homem está coberto de pústulas prestes a estourar do pescoço à virilha, não há como ele se sentir confortável. Eu levava água para eles, colocava panos frios na testa febril deles e esperava a morte com eles. William de Garstang foi um amigo desde que se matriculou no Balliol College, cinco anos antes. Viemos de aldeias com menos de dezesseis quilômetros de distância uma da outra, embora a dele fosse muito maior e tivesse uma feira semanal, mas só viemos a nos conhecer quando nos tornamos estudantes. Uma hora antes de morrer, William fez um sinal para que eu me aproximasse de sua cama. Não me arrisquei a permanecer perto dele, mas ouvi seu suspiro áspero, manifestando sua vontade de me deixar seus poucos bens, entre eles três livros. Deus trabalha de muitas formas misteriosas. Entre os semestres, em agosto de 1361, ele escolheu fazer três coisas que mudariam minha vida para sempre. Primeiro, li um dos livros de William, chamado Surgery [Cirurgia], de Henri de Mondeville, e aprendi as surpreendentes complexidades do corpo humano. Eu lia o dia todo e ia até altas horas da noite. Fiz isso até meu estoque de velas acabar. Quando terminei, li o livro novamente e comprei mais velas.
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Segundo, eu me apaixonei. Não sei seu nome nem onde ela mora, mas um olhar de relance me disse que ela era uma dama distinta e estava acima de minha posição social. O coração, no entanto, não segue convenções sociais. Eu só deixava o livro de Mondeville de lado o suficiente para buscar algo para comer. Eu a vi quando saí da hospedaria. Ela cavalgava em um palafrém cinzento com uma graça que lhe era fácil. Um homem que imaginei ser seu marido a escoltava. Outra mulher, também muito formosa, cavalgava com eles, mas não lhe dei muita atenção. Seis cavalariços vinham atrás desse trio: eu poderia ter identificado a família da dama pelas túnicas azuis e pretas que eles usavam, mas também não dei muita atenção a isso. Se eu subisse a ponto de um dia chegar ao bispado, poderia escolher uma mulher e abandonar os votos de castidade. É o que fazem muitos que optam pelo chamado. Sacerdotes seculares de ordens inferiores devem ser mais prudentes, mas muitos deles têm mulheres. Eles normalmente não são punidos por isso, desde que sejam fiéis à mulher com quem vivem e sustentem seus filhos. Mas, para mim, a ideia de violar um voto era tão repulsiva quanto uma vida solitária, dedicada somente à igreja. E a igreja já é a noiva de Cristo e não precisa de outro esposo. O que vi sobre a égua cinzenta usava uma túnica vermelho-escura. Como estava quente, ela não precisava de capa ou manto. Usava um capuz simples, dobrado para trás, de modo que o cabelo cor de castanha visivelmente emoldurava um rosto perfeito. Belas mulheres já haviam me impressionado. Acontecia com frequência, mas não como dessa vez. Sem dúvida, foi isso que eu disse da última vez também. Segui o trio e seus cavalariços a uma distância discreta, esperando que parassem na frente de alguma casa. Fiquei frustrado. O grupo seguiu para a Estrada Oxpens, atravessou o riacho do moinho do castelo e desapareceu a oeste enquanto fiquei ali, observando da ponte, completamente perdido. Por que eu deveria me apaixonar por uma mulher que parecia ser esposa de outro homem? Quem pode saber? Parece tolice quando me lembro daquele dia. Não parecia na época. Tirei a mulher de minha mente. Não! Mentira! É impossível tirar uma bela mulher da cabeça, assim como o é tirar um calo do dedo, e inquietante da mesma forma. No entanto, tentei.
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Voltei para o livro de Mondeville e terminei a terceira viagem por suas páginas. Eu estava confuso, mas não com o estilo de escrita de Mondeville, que me causou perplexidade. A profissão que imaginei para mim não mais atraía. Dar conselhos a príncipes não parecia interessante. Curar o corpo humano débil e ferido agora ocupava quase todos os meus pensamentos quando eu estava acordado. Tive medo do salto para o desconhecido. Oxford estava repleta de estudiosos, advogados e clérigos. Nenhuma surpresa aguardava quem optasse por se juntar a eles. E a cidade também era o lugar de médicos, que se consideravam muito superiores aos barbeiros, que normalmente costuravam feridas e faziam flebotomias quando esses procedimentos eram necessários. Até o trabalho de um médico, com pomadas e doses, era comum. Mas as páginas do livro de Mondeville me disseram como eu sabia pouco de cirurgia e o quanto eu tinha de saber se optasse por essa profissão. Eu precisava de conselho. Em minha opinião, não há homem mais sábio em Oxford do que o mestre John Wyclif. Há homens que têm opiniões diferentes, sem dúvida. Muitas vezes, são estudiosos a quem o mestre John superou em discussões. Tato não é uma de suas muitas virtudes, mas o cuidado com seus alunos, sim. Eu o procurei para ouvir seus conselhos e o encontrei em sua sala no Balliol College, inclinado sobre um livro. Eu não queria perturbá-lo, mas ele me recebeu calorosamente quando viu que era eu que estava batendo em sua porta. — Hugh... entre. Você parece bem. Sente-se. Ele apontou para um assento e voltou a sentar-se onde estava enquanto eu me sentava no lugar que me havia sido oferecido. O estudioso ficou olhando em silêncio para mim, esperando que eu dissesse o motivo de minha visita. — Busco um conselho — comecei. — Eu pretendia estudar direito, como muitos aqui, mas uma nova profissão me atrai. — Direito é seguro... para a maioria — observou Wyclif. — Qual é esse novo caminho que lhe interessa? — Cirurgia. Tenho um livro que fala de velhos e novos conhecimentos no tratamento de ferimentos e doenças. — E somente com esse livro você se aventuraria em uma nova profissão?
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— O senhor acha que não é prudente? — De modo algum. Enquanto os homens ferirem a si mesmos e aos outros, médicos serão necessários. — Então eu sempre teria emprego. — Sim — disse Wyclif, fazendo uma careta. — Mas por que você veio buscar meu conselho? Sei pouco sobre esses assuntos. — Não o procurei por seus conhecimentos cirúrgicos, mas para me ajudar a pensar bem antes de tomar minha decisão. — Você já procurou o conselho de outro? — Não. — Então aí está seu primeiro erro. — A quem mais devo procurar? O senhor conhece um homem que me possa dizer como é a vida de um cirurgião? — Certamente. Ele pode aconselhar sobre qualquer carreira. Eu o consultei quando decidi seguir carreira em teologia. Fiquei em silêncio, pois não conhecia ninguém tão capaz como o mestre John afirmava, capaz de aconselhar tanto em teologia como em cirurgia. Talvez o indivíduo não morasse em Oxford. Wyclif percebeu minha consternação. — Você busca a vontade e a direção de Deus? — Ah!... Entendi. O senhor está perguntando se orei sobre esse assunto? Sim, orei, mas Deus está em silêncio. — Então, sou sua segunda melhor opção. — Mas... o senhor acabou de dizer que nosso Senhor poderia aconselhar sobre qualquer profissão. — Eu estava brincando. É claro que eu, como qualquer homem, venho em segundo lugar depois de nosso Senhor Jesus Cristo... ou talvez em terceiro ou quarto lugar. — Então o senhor não irá me orientar em minha decisão? — Eu disse isso? Por que você quer se tornar um cirurgião? Você gosta de sangue, de feridas e males? — Não. Receio não ter estômago para isso. — Então por quê? — Para mim, o estudo do homem e de seus males e curas é fascinante. E eu... eu gostaria de ajudar os outros.
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— Você pode fazer isso como sacerdote. — Sim, mas perdi a coragem de lidar com a alma eterna de outro homem. — Você arriscaria o corpo, mas não a alma, de um homem? — O corpo não pode durar para sempre, por mais que um cirurgião ou médico possa fazer, mas a alma humana pode subir para o céu ou ser condenada ao inferno... para sempre. — E um sacerdote pode influenciar a direção, para o bem ou para o mal — Wyclif concluiu meu pensamento. — Exatamente. A responsabilidade é muito grande para mim. — Quem dera se todos os sacerdotes pensassem como você — murmurou Wyclif. — Mas amputar um braço destruído na batalha não iria afligi-lo? — Isto é apenas carne, não uma alma eterna. — Você falou uma verdade, Hugh. Ajudar a aliviar a vida humana é uma atitude muito digna. Nosso Senhor Jesus Cristo realizou muitos milagres, e não foi apenas para aliviar o ser humano de suas aflições. Se quiser fazer o mesmo, você deve seguir os passos dele. — Não pensei nisto — admiti. — Então, pense agora. E, se você se tornar um cirurgião, tenha nosso Senhor como exemplo e seu trabalho irá prosperar. E então aqui está a terceira maravilha de Deus: uma profissão. Eu iria a Paris para estudar. Minha renda com a propriedade em Little Singleton era de seis libras e quinze xelins por ano: para financiar minhas despesas como estudante e para um período de até oito anos após concluir os estudos. Meu dinheiro daria para um ano em Paris. Eu sei o que você está pensando. Contudo, não gastei meus recursos com uma vida descomedida. Paris é uma cidade cara. Aprendi muito lá. Observei e depois participei de dissecações. Aprendi a fazer flebotomia, suturação e cauterização, remover flechas, colocar ossos quebrados no lugar e tratar de escrófula. Aprendi a extrair um dente e remover um tumor. Aprendi a fazer trepanação para aliviar uma dor de cabeça e a abrir uma fístula. Aprendi que ervas poderiam estancar hemorragias, aliviar dores ou limpar feridas. Investi tempo e dinheiro da maneira mais inteligente que conhecia, aprendendo as técnicas que eu esperava, um dia, serem meu meio de ganhar a vida.