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Arthur Conan Doyle

Vila Glicínia Título original: Wisteria Lodge

Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1908

Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de Wisteria Lodge publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Álvaro Pinto Aguiar.

I — A estranha aventura do sr. John Scott Eccles

Vejo anotado em meu bloco que se tratava de um dia muito frio e ventoso, em fins de março de 1892. Holmes recebera um telegrama, enquanto almoçávamos, e rabiscara às pressas uma resposta. Apesar de nada ter dito, percebia-se que o assunto ainda o preocupava, pois fora postar-se em seguida diante da lareira com ar pensativo, fumando o cachimbo e lançando ocasionalmente um olhar para o telegrama que tinha nas mãos. Subitamente, voltou-se para mim com um brilho malévolo no olhar. — Suponho, Watson, que você pode ser considerado um homem de letras. Como definiria a palavra "grotesco"? — Ridículo, extravagante... — sugeri. — Há certamente mais alguma coisa além disso — observou Holmes abanando a cabeça. — Uma sugestão dissimulada do trágico e do terrível. Se procurar recordar-se de algumas dessas narrativas com que tem atormentado um público paciente, verificará como é tênue a fronteira entre o grotesco e o criminoso. Lembre-se do incidente dos homens ruivos. Era bastante grotesco na aparência, e todavia terminou numa audaciosa tentativa de roubo. Ou então daquele outro, mais grotesco ainda, das cinco sementes de laranja, que terminou


numa conspiração homicida. Essa palavra põe-me sempre de sobreaviso. — Tem-na aí? — perguntei. Holmes leu o telegrama em voz alta: "Acaba de me suceder algo de terrível e grotesco. Posso consultá-lo? — Scott Eccles, Repartição dos Correios, Charing Cross". — Homem ou mulher? — indaguei. — Homem, naturalmente. Nenhuma mulher enviaria um telegrama com resposta paga. Teria vindo pessoalmente. — Vai recebê-lo? — Meu caro Watson, você sabe que vida aborrecida levo desde que conseguimos meter o coronel Carruthers na prisão. Meu cérebro é uma espécie de máquina veloz, que se reduz a pedaços quando não é aplicada no trabalho para o qual foi construída, A vida é uma sucessão de fatos corriqueiros, e os jornais andam fastidiosos; parece que a audácia e o espírito de aventura desapareceram para sempre do mundo do crime. Como, então, você pode me perguntar se estou disposto a examinar qualquer novo problema, por mais trivial que possa parecer? Mas, se não me engano, aí vem nosso cliente. Ouviram-se passos cadenciados na escada e, instantes depois, era introduzido na sala um homem alto e corpulento, de suíças e bigodes grisalhos e ar solene e respeitável. A história de sua vida revelava-se na fisionomia grave e nos modos circunspectos. Das polainas aos óculos de aros de ouro, era a figura típica do conservador, homem religioso, bom cidadão, ortodoxo e intransigente respeitador dos preceitos sociais. Entretanto, algo de extraordinário devia ter-lhe alterado a natural compostura e deixado vestígios nos cabelos revoltos, no rosto rubro e encolerizado e nos gestos nervosos e agitados. Entrou sem mais delongas no assunto que o preocupava: — Aconteceu-me algo extremamente esquisito e desagradável, sr. Holmes — principiou. — Jamais me encontrei em situação semelhante. É positivamente indecorosa... ultrajante. Tenho o direito de exigir uma explicação! Estava de tal modo enraivecido que bufava de cólera e tinha o rosto tumefacto. — Queira sentar-se, sr. Scott Eccles — disse Holmes em tom brando. — Antes de mais nada, permita-me que lhe pergunte por que resolveu procurar exatamente a mim. — Porque não me pareceu que o caso pudesse interessar à polícia. Todavia, quando lhe tiver exposto os fatos, verá que eu não poderia deixar as coisas como estavam. Nunca simpatizei com a classe dos detetives particulares. Não obstante, como ouvi falar do senhor... — Perfeitamente. Mas, em segundo lugar, por que não veio imediatamente? — O que quer dizer? Holmes consultou o relógio. — São duas e um quarto — disse. — Seu telegrama foi-me expedido por volta da uma hora. Contudo, quem olhar para seu aspecto e seu traje não poderá deixar de notar que sua inquietação data do momento em que se levantou. Nosso cliente alisou o cabelo despenteado com as mãos e tocou com


os dedos o rosto, que estava com a barba por fazer. — Tem razão, sr, Holmes. Nem sequer pensei em me arrumar. Nunca mais chegava a hora de deixar aquela casa. Antes, porém, de vir para cá, andei por diversos lugares em busca de informações. Falei com os agentes do proprietário da casa, e eles disseram-me que o sr. Garcia tinha pago pontualmente o aluguel e que tudo estava em ordem com relação à Vila Glicínia. — Calma, calma, meu caro — disse Holmes, rindo. — O senhor até parece o meu amigo, dr. Watson, que tem o mau hábito de contar suas histórias começando pelo fim. Queira ordenar as idéias e contar-me, na devida seqüência, quais foram de fato os acontecimentos que o fizeram sair de casa despenteado, com a roupa por escovar, as botinas e o colete mal-abotoados, à procura de conselho e auxílio. Nosso cliente lançou um compungido olhar à sua própria aparência em desalinho. — Devo ter-lhe causado uma péssima impressão, sr. Holmes, e não me recordo de, em toda a minha vida, me ter sucedido tal coisa. Mas vou contar-lhe tudo o que aconteceu, e, quando tiver terminado, estou certo de que encontrará razão de sobra para me desculpar. Não chegou, porém, a iniciar a narrativa. Ouviu-se um ruído do lado de fora, e dali a instantes a sra. Hudson abria a porta para fazer entrar dois indivíduos robustos que, pelo aspecto, pareciam pertencer à polícia, um dos quais era, na verdade, nosso bem conhecido inspetor Gregson, da Scotland Yard, funcionário enérgico, brioso e, dentro de suas possibilidades, capaz. Apertou a mão de Holmes e apresentou seu companheiro, o inspetor Baynes, do comissariado de Surrey. — Estamos ambos empenhados numa caça, sr. Holmes, e nossa pista trouxe-nos até aqui. — Ao dizer isso, voltou para nosso visitante seus olhos de buldogue. — É, por acaso, o sr. John Scott Eccles, da Popham House, Lee? — Exatamente. — Andamos em seu encalço toda a manhã. — Sem dúvida, foi o telegrama que lhes deu o rastro — interpôs Holmes. — Precisamente. Farejamos a pista na agência postal de Charing Cross, e ela conduziu-nos até sua casa. — Mas por que me seguem? O que querem de mim? — Queremos ouvi-lo, sr. Scott Eccles, a respeito dos acontecimentos que redundaram na morte, ontem à noite, do sr. Aloysius Garcia, na Vila Glicínia, nos arredores de Esher. Nosso cliente endireitou-se na cadeira com os olhos esbugalhados, enquanto as cores lhe fugiam do rosto atônito. — Morto? O senhor diz que ele está morto? — Sim, ele está morto. — Mas como? Um acidente? — Assassinato, sem a menor sombra de dúvida.


— Santo Deus! Isso é horrível! O senhor quer dizer... que eu sou suspeito? — Foi encontrada uma carta no bolso do morto, e por ela ficamos sabendo que o senhor tencionava passar a noite de ontem em casa dele. — É verdade. — Oh! Deveras?

O inspetor tirou prontamente do bolso seu caderno de notas. — Espere um pouco, Gregson — disse Sherlock Holmes. — Tudo o que você deseja é ouvir-lhes as declarações, não é verdade? — E é meu dever prevenir o sr. Scott Eccles de que elas podem ser usadas contra ele. — O sr. Eccles ia contar-nos sua história quando você entrou. Creio, Watson, que um uísque com soda não lhe faria mal. E agora, caro sr. Eccles, aconselho-o a que não se importe com esse aumento de auditório e nos conte tudo, exatamente como o faria se não tivesse sido interrompido. Nosso visitante ingeriu de um trago a bebida, e a cor voltou-lhe às faces. Lançando um olhar indeciso ao caderno de notas do inspetor, deu início, sem mais demora, a seu extraordinário depoimento. — Sou solteiro — disse — e, como tenho um temperamento sociável, possuo largo círculo de amizades. Entre estas, encontra-se a família de um antigo fabricante de cerveja chamado Melville, residente na Albemarle Mansion, em Kensington. Foi à sua mesa que conheci, há algumas semanas, um rapaz de nome Garcia. Era, ao que soube, de origem espanhola, e tinha uma ligação qualquer com a embaixada. Falava perfeitamente o inglês e, além de muito afável no trato, era um dos homens mais belos que já vi em toda a minha vida. "Entre mim e esse rapaz manifestou-se imediatamente uma sincera amizade. Ele parecia ter simpatizado comigo desde aquele primeiro encontro, e, dali a dois dias, foi visitar-me em Lee. Uma coisa puxa outra, e acabou por me convidar para passar alguns dias em sua residência — a Vila Glicínia —, situada entre Esher e Oxshott. Ontem à noite dirigi-me a Esher a fim de atender ao convite. "Antes de minha ida, ele me falara sobre o pessoal a seu serviço. Morava com um criado dedicado, seu compatriota, que cuidava de todas as suas necessidades. Esse homem, que sabia falar inglês, tomava conta da casa. Contou-me que tinha também um magnífico cozinheiro, um mestiço que encontrara em suas viagens, capaz de servir excelentes jantares. Lembro-me de me ter chamado a atenção para a singularidade de tal criadagem em pleno coração de Surrey, e de eu ter concordado, embora viesse a verificar que era muito mais singular do que havia imaginado. "Fui de carro para lá... cerca de três quilômetros ao sul de Esher. A casa era de bom tamanho, um pouco distante da estrada, e tinha-se acesso a ela por uma sinuosa vereda, ladeada de arbustos. Tratava-se de um velho edifício, em péssimo estado de conservação. Quando o carro parou no caminho coberto de mato, diante da porta manchada e escurecida pelo tempo, tive dúvidas quanto a meu bom senso em visitar um homem que afinal só conhecia superficialmente. Ele próprio veio me abrir a porta, e recebeu-me com provas de grande cordialidade. Fui entregue aos cuidados do criado, indivíduo de tez escuríssima e ar melancólico, que me conduziu a meu quarto, levando minha maleta. Todo o ambiente era desalentador. Jantamos sós, e, apesar de o dono da casa fazer o possível por se mostrar amável, o curso de seus pensamentos parecia interromper-se de vez em quando, e sua conversa era tão vaga e desconexa que eu tinha dificuldade em segui-la.


Tamborilava constantemente com os dedos na mesa, mordiscava as unhas e dava outros tantos sinais de inquietação nervosa. Quanto ao jantar, não foi nem bem servido, nem bem preparado, e a sombria presença do taciturno criado não contribuía decerto para nos alegrar. Afianço-lhes que muitas vezes, durante aquela noite, desejei poder inventar qualquer desculpa que me permitisse regressar a Lee. "Recordo-me de um fato que talvez tenha certa relação com o caso que esses cavalheiros estão investigando. Naquela ocasião, não lhe dei grande importância. Quase no fim do jantar, o criado apareceu com um bilhete. Notei que, depois de lê-lo, Garcia tornou-se ainda mais distraído e nervoso. Renunciando a qualquer pretexto de conversação, recostou-se numa cadeira, fumando cigarros consecutivos, absorto em seus próprios pensamentos, sem fazer o menor comentário ao conteúdo do bilhete. Senti-me satisfeito quando, por volta das onze horas, nos fomos deitar. Algum tempo depois, Garcia apareceu à porta do meu quarto (o quarto estava às escuras nessa ocasião) e perguntou-me se eu tinha tocado a campainha. Disse-lhe que não. Pediu-me desculpas por me ter incomodado a hora tão avançada, dizendo já ser quase uma da madrugada. Adormeci depois disso, e dormi profundamente o resto da noite. "E agora chego à parte mais espantosa de minha história. Quando acordei, já era dia claro. Consultei o relógio e verifiquei serem quase nove horas. Insistira na véspera para que me chamassem às oito, e por isso tal esquecimento surpreendeu-me muitíssimo. Saltei da cama e toquei a campainha para chamar o criado, mas não obtive resposta. Voltei a tocá-la repetidas vezes, com o mesmo resultado. Cheguei então à conclusão de que estava avariada. Vesti-me às pressas, e de péssimo humor desci rapidamente a escada, a fim de pedir um pouco de água quente. Poderão imaginar minha surpresa ao ver que não havia ninguém. Pus-me a gritar no vestíbulo, sem obter resposta. Percorri, então, todos os aposentos. Não encontrei ninguém. O dono da casa, na véspera, mostrara-me seu quarto. Bati-lhe à porta. Nada. Dei volta à maçaneta e entrei. O aposento estava vazio, e a cama não fora ocupada. Tinha-se ido com os outros. O patrão estrangeiro, o criado estrangeiro, o cozinheiro estrangeiro, todos tinham desaparecido durante a noite! Assim terminou minha visita à Vila Glicínia." Sherlock Holmes esfregou as mãos e sorriu satisfeito, diante da perspectiva de acrescentar mais esse estranho incidente à sua coleção de episódios fantásticos. — Sua aventura, pelo que vejo, é positivamente excepcional. Poderá dizer-me, sr. Eccles, o que fez depois? — Estava furioso. Minha primeira impressão foi ter sido vítima de qualquer brincadeira de mau gosto. Arrumei minhas coisas, bati a porta atrás de mim e pus-me a caminho de Esher, carregando minha maleta. Dirigi-me ao escritório dos irmãos Allan, os mais importantes corretores de imóveis da cidade, e soube que a vila tinha sido alugada por intermédio deles. Parecia-me difícil acreditar que aquilo constituísse um simples plano para me fazer passar por tolo, e comecei a pensar que o principal objetivo fosse fugir ao pagamento do aluguel. Estamos no fim de março, e o vencimento trimestral está próximo. Essa hipótese, porém, logo caiu por terra. O agente agradeceu-me a informação, mas disse-me que o aluguel havia sido pago adiantado. Tomei, então, o caminho de Londres, e procurei a embaixada espanhola. Ninguém ali conhecia o homem. Depois disso, fui procurar Melville, em cuja casa eu fora apresentado a Garcia. No entanto, averiguei que, na realidade, ele o conhecia ainda menos do que eu. Finalmente, quando recebi sua resposta a meu telegrama, vim para cá, pois sei que o senhor é pessoa capaz de dar bons conselhos em casos difíceis. Entretanto, inspetor, vejo agora pelo que disse quando entrou que a história não termina aqui e deve ter ocorrido uma tragédia. Posso afirmar-lhe que minhas palavras correspondem à pura verdade e que, além do relatado por mim, nada mais sei sobre o destino desse homem. Meu único desejo é auxiliar a justiça em tudo quanto me for possível. — Estou certo disso, sr. Scott Eccles, estou certo disso — proferiu o inspetor Gregson, em seu tom mais cordial. — Sinto-me na obrigação de lhe dizer que tudo o que acaba de nos referir está em perfeito acordo com os fatos chegados a nosso conhecimento. Por exemplo, aquele bilhete entregue durante o jantar. Notou, por acaso, o que foi feito dele?


— Sim, Garcia amarrotou-o e atirou-o ao fogo. — Que diz a isso, sr. Baynes? O detetive provinciano era um homem gordo, rubicundo, sempre bufando, e seu rosto de aspecto grosseiro era suavizado por dois olhos de extraordinária vivacidade, quase ocultos entre as saliências das bochechas e da testa. Com um lento sorriso, tirou do bolso um pedaço de papel descolorido e amarrotado. — Havia uma grade diante da lareira, sr. Holmes, e ele deve ter errado a pontaria. Apanhei-o do lado de fora, sem que as chamas o tivessem atingido. Holmes sorriu com ar de aprovação. — O senhor deve ter examinado a casa com muito cuidado para encontrar uma bola de papel como essa. — De fato, é meu sistema. Quer que o leia, sr. Gregson? O inspetor londrino acenou afirmativamente com a cabeça. — O bilhete está escrito em papel pautado comum, sem filigrana. É a quarta parte de uma folha, e foi cortado em dois sentidos com uma tesoura de lâmina curta. Foi dobrado três vezes e selado com lacre vermelho, colocado às pressas e comprimido com um objeto chato e oval. Está endereçado ao sr. Garcia, Vila Glicínia, e diz: "Nossas cores, verde e branco. Verde aberto, branco fechado. Escada principal, primeiro corredor, sétima à direita, estofo verde. Boa sorte. D." A letra é de mulher, e foi escrita com pena de ponta fina, mas o endereço foi feito com outra pena ou por outra pessoa. Como pode ver, trata-se de uma caligrafia mais grossa e firme. — O bilhete é deveras extraordinário — comentou Holmes, examinando o papel. — Devo cumprimentá-lo, sr. Baynes, pela atenção que dispensou aos pormenores na análise feita. Poderíamos talvez acrescentar algumas minudências sem importância. O sinete oval é, sem dúvida, uma abotoadura de punho; que outro objeto pode ter tal formato? A tesoura usada deve ter sido uma tesourinha de unha, de ponta recurva, pois, apesar de os cortes serem curtos, nota-se distintamente em cada um deles a mesma ligeira curvatura. O detetive deu uma risadinha. — Julguei ter espremido todo o suco desse bilhete, mas vejo que ainda sobrou alguma coisa — disse. — Confesso que não compreendo nada dele, a não ser que nos encontramos diante de um caso grave, cuja figura central, como de costume, é uma mulher. Durante essa conversa, Scott Eccles estivera em contínua agitação em sua cadeira. — Alegra-me que tenha encontrado o bilhete, pois ele vem corroborar meu depoimento — disse. — Tomo, porém, a liberdade de observar que ainda não me contaram o que aconteceu ao sr. Garcia e a seus criados. — Quanto a Garcia — disse Gregson —, é fácil responder. Foi encontrado morto esta manhã em Oxshott Common, a cerca de um quilômetro e meio de distância de sua casa. Reduziram-lhe a cabeça a um amontoado informe de carne sangrenta, mediante golpes violentíssimos desferidos com um saco de areia ou outro objeto semelhante, que, mais do que feri-lo, esmigalhou literalmente seu crânio. O lugar é deserto, e a casa mais próxima


fica a quatrocentos metros. Aparentemente, recebeu o primeiro golpe pelas costas; de qualquer modo, o assaltante continuou a golpeá-lo muito tempo depois de ele já estar morto. Deve ter sido uma agressão inesperada e brutal. Não havia pegadas no local, nem o menor indício que nos pudesse pôr na pista dos assassinos. — Houve roubo? — Não; não se trata de tentativa de roubo. — É muito doloroso... doloroso e terrível — comentou Scott Eccles em voz trêmula. — Mas, para mim, a situação é particularmente trágica. Nada tenho a ver com o fato de meu amigo ter saído para uma excursão noturna que o fez encontrar tão triste fim. Como posso estar implicado neste caso? — Por um motivo muito simples — respondeu o inspetor Baynes. — O único documento encontrado no bolso do morto era uma carta sua, na qual o senhor dizia que iria fazer-lhe uma visita exatamente na noite em que ele morreu. Foi o envelope dessa carta que nos revelou o nome e o endereço da vítima. Já passava das nove da manhã quando chegamos à casa dele, onde não encontramos nem o senhor nem mais ninguém. Telegrafei a Gregson para procurá-lo em Londres, enquanto examinava a Vila Glicínia. Vim então para a cidade, reuni-me a Gregson, e aqui estamos. — Creio que agora — disse Gregson, levantando-se — é melhor darmos a esse assunto um caráter oficial. Faça o favor de nos acompanhar até o posto policial, sr. Scott Eccles, a fim de tomarmos suas declarações por escrito. — Perfeitamente; estou às ordens. Mas ainda necessito de seus serviços, sr. Holmes, e peço-lhe que não poupe dinheiro nem trabalho para descobrir a verdade. Meu amigo voltou-se para o detetive de Surrey. — Espero que não se oponha a que lhe dê minha colaboração, sr. Baynes. — Pelo contrário, eu me sentirei muito honrado, sr. Holmes. — O senhor parece ter sido muito pronto e eficiente em tudo o que fez. Poderia informar-me se havia algum indício quanto à hora em que se deu a morte desse homem? — Ele estava desde uma hora da madrugada no lugar em que o encontramos. Tinha chovido mais ou menos a essa hora, e sua morte deve ter ocorrido antes da chuva. — Mas isso é absolutamente impossível, sr. Baynes — exclamou nosso cliente. — A voz de Garcia era inconfundível e posso jurar-lhes que foi ele próprio que falou comigo, em meu quarto, a essa mesma hora. — É esquisito, mas não de todo impossível — comentou Holmes, sorrindo. — O senhor já tem alguma idéia? — perguntou Gregson. — À primeira vista, o caso não me parece muito complexo, se bem que apresente inegavelmente alguns aspectos novos e interessantes. Todavia, é preciso que eu tenha melhor conhecimento dos fatos antes de poder aventurar uma opinião definida. A propósito, sr. Baynes, encontrou alguma outra coisa digna de nota, além do bilhete, quando examinou a casa? O detetive fixou meu amigo de maneira estranha. — Sim; descobri uma ou duas coisas muito singulares. Talvez, depois de terminado meu serviço no posto policial, o senhor possa se encontrar comigo e dar sua opinião a esse respeito. — Estou inteiramente à sua disposição — disse Sherlock Holmes, tocando a campainha. — Queira acompanhar estes senhores até a porta, sra. Hudson, e fazer o favor de mandar o


rapaz expedir este telegrama. Deve ser enviado com resposta paga de cinco xelins. Permanecemos sentados, em silêncio, durante algum tempo, depois de nossos visitantes se terem retirado. Holmes fumava incessantemente, as sobrancelhas contraídas sobre os olhos penetrantes, a cabeça inclinada para diante, na atitude de intensa concentração que lhe era característica. — Então, Watson — perguntou, voltando-se subitamente para mim —, que pensa de tudo isso? — Não consigo compreender nada dessa trapalhada em que Scott Eccles se meteu. — Mas e o crime? — Bem, se tomarmos em consideração o desaparecimento dos companheiros da vítima, diria que eles devem estar de algum modo comprometidos com o assassinato, e que fugiram da justiça. — Esta é, sem dúvida, uma hipótese viável. Por outro lado, deve convir que é muito estranho que os dois criados tivessem conspirado contra Garcia e o tivessem atacado justamente numa noite em que ele tinha um hóspede. Tinham-no sozinho, à sua mercê, qualquer outra noite da semana. — Então, por que fugiram? — Precisamente. Por que fugiram? É um fato importante; outro fato muito importante é a singular aventura de nosso cliente Scott Eccles. Ora, meu caro Watson, estará fora dos limites do engenho humano atinar com uma explicação para esses dois fatos importantes? Se se pudesse com tal explicação desvendar também o mistério daquele bilhete enigmático, com sua extravagante fraseologia, então valeria a pena aceitá-la como hipótese provisória. E se os fatos ulteriores, que chegarem a nosso conhecimento, se adaptarem ao esquema, nossa hipótese, então, pode pouco a pouco tornar-se uma solução. — Mas qual é essa hipótese? Holmes recostou-se na cadeira, os olhos semicerrados. — Como deve concordar, meu caro Watson, a idéia de uma brincadeira é inaceitável. Algo de grave estava para acontecer, como muito bem o demonstra a seqüência dos fatos, e o convite feito a Scott Eccles para ir à Vila Glicínia deve ter qualquer relação com isso. — Mas qual é a possibilidade dessa relação? — Sigamos nossa argumentação ponto por ponto. De início, existe alguma coisa irreal nessa amizade súbita e estranha entre o jovem espanhol e Scott Eccles. Foi o primeiro que a forçou, visitando Eccles no outro extremo de Londres logo no dia seguinte àquele em que o conheceu, e mantendo-se em estreito contato com ele até conseguir fazê-lo ir a Esher. Ora, o que pretendia esse homem com relação a Eccles? O que Eccles poderia oferecer-lhe? Não vejo nessa personagem nenhum atrativo; não é particularmente dotado de inteligência, nem possui gênio capaz de agradar ao espírito vivaz de um latino. Então, por que foi escolhido, entre tantos outros que Garcia conheceu, como especificamente útil a seu propósito? Terá ele alguma qualidade relevante? Creio que sim. É o protótipo da convencional respeitabilidade britânica, e justamente o homem suscetível de impressionar, com o próprio testemunho, um outro britânico. Você próprio acabou de verificar que nenhum dos inspetores sequer sonhou em pôr em dúvida seu depoimento, por mais extraordinário que pareça. — Mas o que deveria ele testemunhar? — Nada, como as coisas se deram; tudo, porém, se elas tivessem corrido diversamente. É assim, pelo menos, que interpreto a situação.


— Percebo; ele talvez pudesse servir para provar um álibi. — Exatamente; poderia servir para provar um álibi. Suponhamos, para argumentar, que os ocupantes da Vila Glicínia estivessem metidos em alguma empresa suspeita. Esta, fosse qual fosse, deveria ser executada, digamos, antes da uma hora. Adiantando os relógios, é perfeitamente possível que tivessem feito Scott Eccles recolher-se mais cedo do que pensava; de qualquer modo, é provável que, quando Garcia se deu ao incômodo de lhe dizer que era uma hora, não fosse realmente mais de meia-noite. Se Garcia pudesse fazer o que pretendia antes da hora mencionada, teria evidentemente uma poderosa defesa contra qualquer acusação. Ele teria sempre esse inglês irrepreensível, pronto a jurar perante qualquer tribunal que o acusado se encontrava em sua residência na ocasião do crime. Era uma precaução contra a adversidade. — Sim, sim, compreendo; mas como explica o desaparecimento dos outros? — Ainda não tenho todos os elementos na mão. Entretanto, não creio que existam dificuldades insuperáveis para a elucidação desse ponto. Todavia, é um grave erro alimentar idéias preconcebidas, pois, insensivelmente, a pessoa procura torcer os fatos a fim de adaptá-los às próprias teorias. — E o bilhete? — Quais são seus termos? "Nossas cores, verde e branco." Parece referir-se a corridas de cavalos. "Verde aberto, branco fechado." Trata-se, evidentemente, de um sinal, "Escada principal, primeiro corredor, sétima à direita, estofo verde." Isso não pode deixar de ser um encontro marcado. Quem sabe se, no fundo de tudo isso, não iremos topar com um marido ciumento? Indubitavelmente, a expedição era perigosa, pois, de outro modo, não teria acrescentado "Boa sorte. D." Esta inicial seria uma orientação. — O homem era espanhol. Por isso, talvez "D" signifique Dolores, nome de mulher muito comum na Espanha — sugeri. — Ótimo, Watson, perfeito... mas absolutamente inadmissível. Uma espanhola escreveria a um espanhol em sua própria língua. A autora desse bilhete é certamente inglesa. Mas, por enquanto, nosso único recurso é munirmo-nos de paciência até que esse excelente inspetor esteja de volta. Enquanto isso, podemos dar graças à nossa boa estrela por nos ter libertado durante algumas horas do insuportável tédio da ociosidade. A resposta ao telegrama de Holmes chegou antes do regresso do detetive de Surrey. Meu amigo leu-a e ia guardá-la entre as páginas de seu bloco, quando notou a expressão de curiosidade em meu rosto. Passou-o a mim por cima da mesa, com uma risada. — Estamos nos movendo em altas esferas — disse. O telegrama era uma lista de nomes e endereços: "Lorde Harringby, The Dingie; Sir George Foiliot, Oxshott Towers; sr. Hynes Hynes, J. P., Purdiey Place; sr. James Baker Williams, Forton Old Hall; sr. Henderson, High Gable; reverendo Joshua Stone, Nether Waisling". — Este é um modo muito simples de limitar nosso campo de operações — comentou Holmes. — Sem dúvida Baynes, com seu espírito metódico, já adotou algum processo análogo. — Não percebo bem o que quer dizer. — Ora, meu caro amigo, já chegamos à


conclusão de que o bilhete recebido por Garcia, durante o jantar, devia servir para marcar um encontro ou indicar-lhe um lugar. Se a interpretação desse bilhete está certa, para se chegar ao lugar indicado é preciso subir uma escada principal e procurar a sétima porta de um corredor, e é evidente que a casa deve ser muito grande. É igualmente certo que essa casa não pode distar mais do que dois ou três quilômetros de Oxshott, pois Garcia caminhava naquela direção e esperava, segundo minha interpretação dos fatos, estar de volta à Vila Glicínia a tempo de aproveitar de um álibi, válido apenas até uma hora da madrugada. Como o número de casas grandes nas proximidades de Oxshott deve ser limitado, recorri ao expediente de telegrafar aos agentes mencionados por Scott Eccles e obter uma lista dessas residências. Ei-la neste telegrama; a outra ponta de nossa embaraçada meada deve encontrar-se aí. Eram quase seis horas quando chegamos à graciosa vila de Esher, no Surrey, na companhia do inspetor Baynes. Holmes e eu tínhamos trazido o necessário para passar a noite, e arranjamos aposentos confortáveis no Buli Hotel. Partimos finalmente com o detetive para nossa visita à Vila Glicínia. Era uma escura e frígida noite de março. Feriam-nos o rosto um vento cortante e uma chuva miúda, moldura condizente com a região desolada que o trem atravessava, e com a trágica meta a que nos destinávamos.

II — O Tigre de San Pedro

Depois de uma fria e melancólica caminhada de cerca de três quilômetros, alcançamos o alto portão de madeira que dava acesso a uma alameda de castanheiros. Esse caminho sinuoso, envolto em sombras, conduzia a uma casa escura e baixa, cujo vulto negro se destacava no céu cinza. De uma janela da frente, ao lado esquerdo da porta de entrada, coava-se uma luz bruxuleante. — Há um policial de guarda — explicou Baynes. — Vou bater à janela. Atravessou o canteiro de relva e bateu com os nós dos dedos na vidraça. Através do vidro embaciado, vi vagamente um homem saltar de uma cadeira ao lado do fogo, e ouvi um grito agudo vindo do interior da sala. Logo em seguida, um policial pálido e ofegante, com uma vela na mão trêmula, abria a porta. — Que aconteceu, Walters? — perguntou Baynes secamente. O homem enxugou a testa e soltou um suspiro de alívio. — Alegro-me de vê-lo aqui, chefe. A noite pareceu-me interminável, e creio que já não possuo nervos tão bons como antigamente. — Nervos, Walters? Nunca supus que você tivesse nervos. — Ah!, sr. Baynes, é esta casa vazia e fúnebre e aquela coisa esquisita na cozinha que me põem assim. Além disso, quando o senhor bateu na janela julguei que fosse ele outra vez. — Ele quem? — O Demônio, chefe, não podia ser outro. Apareceu na janela. — Quem apareceu na janela e quando foi isso? — Foi há cerca de duas horas. Principiava a escurecer. Eu estava lendo sentado na


cadeira. Não sei o que me fez levantar a cabeça, e, repentinamente, vi uma cara que me fitava através ao vidro inferior da janela. E que cara, Deus meu! Estou certo de que a verei sempre em meus sonhos. — Calma, calma, Walters! Isso é maneira de um policial falar? — Bem sei, chefe, bem sei; todavia, não posso negar que ela me assustou. Não era preta nem branca, mas de uma cor que jamais vi; parecia feita de argila, sobre a qual tivessem esborrifado um pouco de leite. E o tamanho, então, chefe! Era o dobro da sua. E que olhar... dois olhos esbugalhados, fixos, e duas fileiras de dentes brancos como os de uma fera faminta. Garanto-lhe, chefe, que não fui capaz de me mover, nem ao menos de respirar, até ela desaparecer. Precipitei-me para fora e dei uma busca entre as moitas, mas, graças a Deus, não encontrei ninguém. — Se eu não soubesse que você é um homem como deve ser, Walters, seu nome ficaria marcado por causa disso. Ainda que fosse o Diabo em pessoa, um policial em serviço nunca deveria dar graças a Deus por não lhe poder pôr as mãos em cima. Tem certeza de que tudo isso não foi apenas uma visão ou produto dos nervos? — Isso, pelo menos, é fácil verificar — interveio Holmes, acendendo sua lanterna portátil. — De fato — prosseguiu, depois de um rápido -exame ao canteiro de relva —, as pegadas são de quem calça número 45, posso quase afirmar. Se o corpo for proporcional ao tamanho do pé, deve ser por certo um gigante. — O que teria sido feito dele? — Parece ter pulado a sebe de arbustos e fugido para a estrada. — Bem — sentenciou o inspetor com ar grave e pensativo —, fosse quem fosse e o que tivesse pretendido, está por enquanto fora de nosso alcance, e temos coisas mais urgentes a tratar. E agora, sr. Holmes, se me permite, lhe mostrarei a casa. Apesar da cuidadosa pesquisa, os vários quartos e salas não revelaram nada notável. Aparentemente, os ocupantes da vila tinham trazido muito pouca coisa consigo, e toda a mobília, até as mais insignificantes peças, tinha sido alugada com a casa. Grande quantidade de roupas com a marca Marx & Co., High Holborn, fora abandonada por eles. Já tinham sido feitas indagações telegráficas, que revelaram que Marx nada sabia de seu freguês, exceto que pagava bem. Diversas miudezas, como cachimbos, alguns ro-mances, dois dos quais em espanhol, um revólver de modelo antiquado e um violão, constituíam os poucos objetos de uso pessoal encontrados. — Até aqui, nada interessante — disse Baynes, passando cautelosamente de quarto em quarto com a vela na mão. — Mas, agora, sr. Holmes, quero chamar sua atenção para a cozinha. Era um compartimento alto e sombrio, nos fundos da casa, onde se via, num dos cantos, um enxergão de palha, que devia ter servido de cama para o cozinheiro. A mesa estava coberta de pratos sujos e restos do jantar da noite anterior. — Veja isto — disse Baynes. — O que lhe parece? Dizendo isso, aproximou a vela de um estranho objeto que se encontrava atrás do armário. Era uma coisa de tal modo enrugada, murcha e seca, que se tornava difícil dizer o que poderia ter sido. Apenas era possível verificar que era preta, e tinha o aspecto de couro, assemelhando-se a uma figura humana em miniatura. Ao examiná-la, pensei a princípio tratar-se de um negrinho mumificado; depois pareceu-me um macaco muito velho e


encarquilhado. Finalmente, fiquei na dúvida, sem saber se era animal ou ser humano. Tinha pendurada ao redor uma fileira de conchas brancas. — Muito interessante... realmente, muito interessante! — exclamou Holmes, observando a sinistra relíquia. — Mais alguma coisa? Baynes aproximou-se em silêncio da pia e iluminou-a com a vela. Viam-se ali os membros e o corpo de uma ave branca de grandes dimensões, reduzida brutalmente a pedaços, com as penas ainda agarradas à pele. Holmes indicou com o dedo as barbelas da cabeça cortada.

— Um galo branco — disse. — Interessantíssimo! É, de fato, um caso muito curioso. Baynes, entretanto, reservara para o fim o pormenor mais sinistro. Extraiu da parte de baixo da pia um balde de zinco contendo uma grande quantidade de sangue. Depois, de cima da mesa, agarrou uma bandeja em que se amontoavam fragmentos de ossos queimados. — Algo foi morto e queimado. Retiramos tudo isto do fogo. Esteve aqui, hoje de manhã, um médico que afirmou não se tratar de restos humanos. Holmes sorriu e esfregou as mãos. — Devo felicitá-lo, inspetor, pela maneira perspicaz e inteligente com que está agindo neste caso. Sua capacidade, se me permite dizê-lo sem ofensa, parece-me superior às suas oportunidades. Os olhinhos do cintilaram de prazer.

inspetor

Baynes

— Tem razão, sr. Holmes. Vegeta-se aqui no interior. Um caso como este pode oferecer grandes possibilidades para quem saiba aproveitá-lo, e eu espero não deixar fugir a ocasião. O que pensa destes ossos? — Diria serem de cordeiro ou de cabrito. — E o galo branco? — Curioso, sr. Baynes, muito curioso, e diria quase único. — Sim; esta casa deve ter sido habitada por pessoas muito estranhas, com hábitos esquisitíssimos. Uma delas morreu. Terá sido seguida e morta pêlos seus companheiros? Se for isso, nós os apanharemos, pois todos os portos estão sendo vigiados. No entanto, minha opinião a esse respeito é diferente. Sim, sr. Holmes, a minha opinião pessoal é muito diferente. — Já formulou, então, uma hipótese? — Trabalharei nela por minha conta, sr. Holmes. Se for bem sucedido, isso redundará em crédito para mim. Seu nome está feito; eu, porém, ainda preciso fazer o meu. Eu me sentiria satisfeito se pudesse dizer mais tarde que resolvi este problema sem sua ajuda.


Holmes riu gostosamente. — Está bem, inspetor — disse. — Siga seu caminho; eu seguirei o meu. Em todo caso, meus resultados estarão sempre à sua disposição se, por acaso, quiser servir-se deles. Penso ter visto tudo o que desejava ver nesta casa, e meu tempo poderá ser melhor aproveitado em outro lugar. Até a vista e boa sorte! Percebi por inúmeros pequenos indícios, que poderiam ter escapado a outra pessoa, que Holmes já tinha descoberto nova pista. Embora pudesse parecer impassível a qualquer observador casual, havia em seus olhos brilhantes e nos gestos vivos uma ansiedade, uma tensão contida que me faziam compreender que ele pressentira a proximidade de caça grossa. Como de costume, não me disse nada, nem eu lhe fiz perguntas. Bastava-me participar das emoções da aventura e prestar-lhe meu insignificante auxílio na captura, sem perturbar com inúteis interrupções aquele cérebro em contínua efervescência. Em tempo oportuno, eu seria inteirado de tudo. Esperei, portanto, mas, para meu sempre crescente desapontamento, esperei em vão. Sucediam-se os dias, e meu amigo não dava o menor passo em frente. Esteve certa manhã na cidade e soube depois, por uma casual alusão de sua parte, que visitara o Museu Britânico. Exceto por essa única ausência, consumia o tempo em longas e assíduas caminhadas solitárias, ou tagarelando com certo número de bisbilhoteiros da vila, cuja amizade cultivara. — Estou certo, Watson — observou um dia —, de que uma semana no campo lhe faria muito bem. É agradável ver despontar os primeiros rebentos verdes nas sebes e as aveleiras cobrindo-se de delicadas florinhas. Com uma pazinha, uma caixinha de lata e um livro elementar de botânica, pode-se passar horas muito instrutivas. Ele próprio fazia suas excursões pêlos arredores com esse equipamento, mas era muito escassa a quantidade de plantas que trazia para casa à noite. Às vezes, em nossos giros, encontrávamos o inspetor Baynes. Seu rosto corado e rechonchudo desfazia-se em sorrisos, e os olhos miúdos cintilavam ao saudar meu companheiro. Falava pouco sobre o caso, mas desse pouco depreendia-se não estar descontente com o curso dos acontecimentos. Confesso, contudo, ter ficado algo surpreso quando, cinco dias após o delito, ao abrir o jornal da manhã, deparei com estes dizeres em letras garrafais:

SOLUÇÃO DO MISTÉRIO DE OXSHOTT. PRISÃO DO SUPOSTO ASSASSINO. Quando li em voz alta esse título, Holmes deu um pulo na cadeira como se tivesse sido picado por uma tarântula. — Com os diabos! — exclamou. — Será possível que Baynes o tenha apanhado? — É o que parece — respondi, passando a ler a seguinte notícia: "Causou grande sensação em Esher e em toda a zona circunvizinha a notícia de que, às últimas horas da noite de ontem, foi efetuada uma prisão relacionada com o crime de Oxshott. Como todos devem estar lembrados, o sr. Garcia, da Vila Glicínia, foi encontrado morto na região de Oxshott. O corpo apresentava sinais de violenta agressão, e, na mesma noite, desapareceram seus dois criados, o que faz supor que ambos sejam participantes do delito. Presumiu-se, embora sem provas, que a vítima tivesse em sua casa objetos de


grande valor e o motivo do crime fosse o roubo. Foram despendidos todos os esforços pelo inspetor Baynes, em cujas mãos se encontra este caso, no sentido de descobrir o paradeiro dos fugitivos, pois ele tinha fundados motivos para crer que não se tinham afastado muito do lugar e se encontravam em qualquer esconderijo previamente preparado. Todavia, tinha-se como certo, desde o princípio, que eles mais cedo ou mais tarde seriam descobertos, porquanto o cozinheiro, segundo o testemunho de um ou dois fornecedores que o tinham avistado através da janela, era homem de aparência extraordinária — um mulato gigantesco, de catadura repelente, tez amarelada e acentuado tipo negróide. Esse indivíduo foi visto depois do crime, tendo sido encontrado e perseguido naquela mesma noite pelo agente Walters, ao ter a audácia de voltar à Vila Glicínia. O inspetor Baynes, considerando que tal visita deveria ter algum objetivo e que, portanto, podia se repetir, abandonou a casa e preparou uma emboscada entre as moitas do jardim. O homem caiu na armadilha e foi capturado ontem à noite, após violenta luta, durante a qual o agente Downing recebeu uma feroz dentada do selvagem. Sabemos que, quando o prisioneiro comparecer perante os magistrados, a polícia pedirá sua prisão. Esperam-se grandes revelações relacionadas com essa captura". — Claro que precisamos ver Baynes o quanto antes — exclamou Holmes, pegando o chapéu. — Temos o tempo necessário para apanhá-lo antes de partir. Descemos apressadamente a rua do vilarejo e, como havíamos previsto, encontramos o inspetor pronto para sair. — Já leu o jornal, sr. Holmes? — indagou, apresentando-lhe um exemplar. — Sim, Baynes, já o li. Peço-lhe que não se ofenda, mas quero dar-lhe um conselho de amigo. — Um conselho, sr. Holmes? — Examinei a fundo este caso e não estou convencido de que o senhor esteja na pista certa. Não queria que se expusesse demasiado, a não ser que esteja realmente seguro. — O senhor é muito gentil, sr. Holmes. — Afirmo-lhe que falo unicamente para seu próprio bem. Pareceu-me vislumbrar, por um rápido instante, um malicioso brilho nos minúsculos olhos do inspetor Baynes. — Concordamos em trabalhar cada um por seu lado, sr. Holmes. É o que estou fazendo. — Oh, muito bem! Não me queira mal por isso. — De forma nenhuma, sr. Holmes; estou certo de que suas intenções são as melhores possíveis. Mas todos nós temos nosso próprio sistema. O senhor tem o seu, e eu talvez tenha o meu. — Não falemos mais nisso. — Terei sempre o maior prazer em informá-lo do que souber. O tal cozinheiro é um perfeito selvagem, forte como um touro e feroz como o Diabo. Quase arrancou o polegar de Downing com uma dentada, antes de conseguirmos subjugá-lo. Praticamente não fala uma palavra de inglês, e não pudemos arrancar-lhe nada, exceto grunhidos. — E julga ter provas de que foi ele o assassino? — Eu não disse isso, sr. Holmes; não disse isso. Cada um de nós tem os próprios


métodos. Siga os seus, e eu seguirei os meus. Foi essa a combinação. Quando nos afastamos, Holmes disse-me, encolhendo os ombros: — Não consigo compreender esse homem. Tenho a impressão de que está se precipitando num abismo. Bem, como ele próprio diz, cada um de nós deve pôr à prova seu método e ver o que acontece. Há, porém, qualquer coisa na atitude do inspetor Baynes que ainda não consegui entender bem. — Sente-se naquela cadeira, Watson — disse Sherlock Holmes quando chegamos a nosso apartamento no Buli Hotel. — Quero pô-lo a par da situação, pois talvez precise de seu auxílio hoje à noite. Vou expor-lhe a evolução desse problema, tanto quanto me foi dado segui-la. Embora simples nas linhas principais, tem, contudo, apresentado surpreendentes empecilhos com referência à prisão dos culpados. Existem falhas nesse sentido, as quais precisamos remediar. "Voltemos ao bilhete entregue a Garcia na noite de sua morte. Podemos desprezar a idéia de Baynes de que os criados da vítima estavam implicados no crime. A prova disso está no fato de que o próprio Garcia fez com que Scott Eccles estivesse presente naquela noite na vila, o que só poderia ter o propósito de criar um álibi. Era, portanto, Garcia quem tinha um plano em mente, e, aparentemente, um plano criminoso, em cuja execução encontrou a morte. Digo criminoso, porque somente quem nutre um desígnio dessa espécie tem necessidade de estabelecer um álibi. Quem, pois, lhe tirou a vida? Certamente a pessoa contra a qual fora arquitetado o plano. Até aqui, parece-me que estamos pisando terreno seguro. "Portanto, agora podemos perceber o motivo do desaparecimento dos criados de Garcia. Estavam todos associados na mesma empresa misteriosa. Se ela fosse coroada de êxito, Garcia então voltaria, e toda a eventual suspeita seria afastada com o testemunho do inglês, o que faria com que tudo acabasse bem. Contudo, o empreendimento era perigoso, e, se Garcia não regressasse até determinada hora, era muito provável que sua vida tivesse sido sacrificada. Ficou por isso combinado que, se tal acontecesse, seus subordinados se refugiariam num esconderijo determinado, onde pudessem escapar às investigações e estar depois em condições de renovar o atentado. Não lhe parece que isso daria uma total explicação dos acontecimentos?" Como por encanto, todo aquele inexplicável emaranhado de fatos pareceu esclarecer-se diante de meus olhos. Admirei-me, como sempre, de que tal explicação não me tivesse acudido mais cedo. — Mas por que um dos criados teria voltado? — Podemos supor que, na confusão da fuga, tivesse esquecido qualquer coisa preciosa, da qual não pudesse separar-se. Isso explicaria sua insistência, não lhe parece? — Bem, e depois? — Depois temos o bilhete recebido por Garcia à hora do jantar, o que indica a existência de um cúmplice na outra ponta da meada. Nesse caso, onde se encontra essa outra ponta? Já lhe mostrei que só poderia encontrar-se em qualquer casa grande e que o número de casas grandes nestas redondezas é limitado. Meus primeiros dias aqui neste vilarejo foram dedicados a uma série de passeios, durante os quais, nos intervalos de minhas pesquisas botânicas, fiquei conhecendo as casas grandes dos arredores e a história das famílias de seus respectivos ocupantes. Uma casa, apenas uma, me atraiu a atenção. Trata-se da famosa e antiga granja jacobita de High Gable, a um quilômetro e meio de Oxshott e a menos de oitocentos metros do local da tragédia. As outras pertenciam a gente prosaicamente respeitável, que se mantém afastada de toda atmosfera romanesca. O sr. Henderson, da High Gable, porém, é inegavelmente um homem curioso, a quem podem suceder estranhas aventuras. Eis por que concentrei minha atenção sobre ele e seus familiares. "É um grupo de pessoas bastante singular, Watson, e o chefe da casa é, sem dúvida, a


mais singular. Procurei vê-lo sob um pretexto plausível, mas pareceu-me ler em seus olhos escuros, profundos, pensativos, que estava perfeitamente a par de meu verdadeiro objetivo. É um homem de seus cinqüenta anos, forte, enérgico, de cabelos grisalhos, sobrancelhas negras e espessas. Possui o andar imponente de um cervo, e a majestade de um imperador... uma figura, em suma, indômita e autoritária, cujo espírito candente se oculta por trás da pele pergaminácea do rosto. Deve ser estrangeiro ou, pelo menos, deve ter vivido muito tempo nos trópicos, pois é moreno-escuro e ressequido, mas rijo como um chicote. Seu amigo e secretário, o sr. Lucas, é indubitavelmente estrangeiro: tez cor de chocolate, ardiloso, melífiuo e felino, com uma venenosa suavidade no falar. Como vê, Watson, já entramos em contato com dois grupos de estrangeiros: um na Vila Glicínia, outro na High Gable. Nossas falhas, portanto, principiam a ser remediadas. "Esses dois homens, amigos íntimos e inseparáveis, constituem o núcleo da casa; há, no entanto, outra pessoa que, para nosso fim imediato, talvez seja ainda mais importante. Henderson tem duas filhas... uma de onze e outra de treze anos de idade, cuja governanta, a sra. Burnet, é uma inglesa quarentona. Existe também um criado de confiança. Esse pequeno grupo compõe toda a família, que viaja sempre reunida, pois Henderson viaja muito e está continuamente mudando de ares. Há muito pouco tempo regressou à High Gable, após um ano de ausência. Posso ainda acrescentar que ele é muito rico e lhe é fácil satisfazer qualquer capricho, por mais extravagante que seja. Quanto ao resto, sua casa está cheia de mordomos, lacaios, criadas e o habitual magote de criados, bem alimentados e com pouco serviço, como sucede em todas as grandes casas de campo inglesas. "Vim a saber de tudo isso, em parte através dos bisbilhoteiros da vila, em parte por observação própria. Não existe ninguém melhor como informador do que criados despedidos, irritados com os patrões, e eu tive a sorte de encontrar um nessas condições. Digo sorte; contudo, ela não viria a meu encontro se eu não fosse procurá-la. Como observa Baynes, cada um de nós possui seu próprio método. E foi graças ao meu que tive a oportunidade de encontrar John Warner, antigo jardineiro da. High Gable, despedido, num momento de cólera, por seu arrogante patrão. Ele, por seu turno, possuía amigos entre os outros criados da casa, os quais nutriam pelo patrão o mesmo temor e ódio. Essa foi a chave que me permitiu penetrar nos segredos da High Gable. "Gente curiosa, Watson! Ainda não tenho a pretensão de conhecê-la bem. Posso, porém, afirmar-lhe que é muito estranha. A construção é dividida em duas alas; os criados moram numa, a família, na outra. Não há entre eles nenhuma ligação, a não ser o criado pessoal de Henderson, que serve as refeições da família. Tudo é levado até certa porta, que constitui o único meio de comunicação. A governanta e as crianças raramente saem, salvo -ao jardim. Henderson jamais se afasta da casa sozinho. O secretário acompanha-o por toda parte, como uma sombra. Os criados comentam que o patrão anda apavorado com qualquer coisa. "Vendeu a alma ao Diabo por amor ao dinheiro", diz Warner, "e receia que o credor venha buscar o que lhe pertence." Ninguém sabe de onde vieram, nem quem são. Possuem um gênio muito violento. Já por duas vezes, Henderson agrediu pessoas às chicotadas, e unicamente sua bolsa bem-provida o conseguiu livrar de ser processado pêlos tribunais. "Por conseguinte, Watson, julguemos agora a situação à luz dessas novas informações. Podemos supor que a carta tenha partido dessa casa estranha, e que era um convite a Garcia para pôr em ação um plano premeditado. Quem pode ter escrito o bilhete? Naturalmente, alguém de dentro da cidadela e, com toda a certeza, uma mulher. Quem poderia ser senão a sra. Burnet, a governanta? Nosso raciocínio parece conduzir-nos nessa direção. Seja como for, tomemos isso como hipótese viável, e vejamos que conseqüências acarreta. Posso acrescentar que a idade e o temperamento da sra. Burnet afastam definitivamente minha primeira idéia, a de que pudesse haver um interesse amoroso nessa história. "Se ela escreveu o bilhete, presume-se que fosse amiga e cúmplice de Garcia. Qual seria, pois, sua provável reação ao saber que ele fora assassinado? Se tivesse perecido em alguma empresa criminosa, ela permaneceria calada. Em todo caso, conservaria no fundo do coração rancor e ódio aos que o tivessem morto, e provavelmente faria o possível para se vingar deles. Poderíamos, então, ir vê-la e procurar utilizar esse ódio em nosso proveito? Tal foi meu pensamento. No entanto, apresenta-se agora uma circunstância sinistra. Desde a noite do crime, a sra. Burnet desapareceu. Estará ainda viva, ou terá


encontrado a morte na mesma noite, como o amigo que ela havia chamado? Ou encontra-se apenas prisioneira? Este é um ponto que ainda precisamos esclarecer. "Você certamente já percebeu a dificuldade da situação, Watson. Não temos pretexto algum em que nos possamos apoiar para um mandado de prisão. Toda a nossa história parecerá fantástica, exposta a um magistrado. O desaparecimento da mulher não prova nada, pois naquela casa é comum que alguém fique invisível por uma semana. Todavia, ela poderá estar neste instante em perigo de vida. Tudo o que posso fazer é vigiar a casa e postar Warner de guarda no portão. Mas não podemos deixar que tal situação continue, e, visto que a lei é impotente para agir, devemos correr o risco sozinhos." — Que sugere então? — Sei qual é o quarto da sra. Burnet; é acessível do alto de um telhado que fica abaixo de sua janela. Proponho que estejamos lá esta noite, para ver se conseguimos penetrar no fundo do mistério. Devo confessar que a perspectiva não me era muito tentadora. Aquela velha mansão com atmosfera de crime, seus habitantes estranhos e temíveis, os perigos desconhecidos que iríamos arrostar e o fato de, agindo assim, nos colocarmos em posição legalmente comprometedora, tudo contribuía para esmorecer meu ardor. No entanto, havia algo no frio raciocínio de Holmes que me impedia de recusar qualquer aventura para que ele me convidasse. Sabia que assim, e só assim, era possível encontrar a solução. Apertei-lhe a mão em silêncio e selei minha sorte. Estava decidido, porém, que nossa investigação não teria um fim tão rocambolesco. Eram cerca de cinco horas, e as sombras daquela tarde de março principiavam a adensar-se, quando irrompeu em nosso quarto um aldeão profundamente emocionado. — Eles se foram, sr. Holmes. Partiram no último trem. A senhora conseguiu fugir deles, e eu a trouxe comigo. Está num carro lá embaixo. — Bravo, Warner! — exclamou Holmes, pondo-se de pé. — As falhas estão sendo sanadas rapidamente, Watson. No carro encontrava-se uma mulher semidesfalecida pela exaustão nervosa. Trazia nas feições aquilinas e pálidas os vestígios da recente tragédia. A cabeça pendia-lhe inerte sobre o peito, mas, quando a levantou para nos fitar com os olhos embaciados, vi que suas pupilas eram dois pontos negros no centro das enormes íris cinzentas. Estava evidentemente sob a ação de uma forte dose de ópio. — Fiquei de guarda ao portão, como o senhor me recomendou — explicou nosso emissário, que era na verdade o jardineiro despedido. — Quando a carruagem saiu, segui-a até a estação. Esta senhora parecia sonâmbula. Todavia, quando pretenderam pô-la no trem, voltou a si e lutou com todas as forças. Quiseram empurrá-la para dentro de um vagão; ela, porém, ofereceu resistência e conseguiu escapar-lhes. Tomei-lhe a defesa, coloquei-a num carro, e aqui estamos. Jamais esquecerei o rosto que me fitou da janela do vagão, quando a trouxe. Poucos dias me restariam de vida se aquele demônio amarelo de olhos negros me pusesse as mãos em cima. Levamos a mulher para dentro, colocamo-la no sofá, e em breve duas xícaras de café bem forte lhe aclararam o cérebro das névoas do alcalóide. Baynes fora chamado por Holmes, e em breves palavras lhe explicamos a situação.


— Caramba! O senhor obteve justamente a prova de que eu necessitava — gritou o inspetor, apertando entusiasticamente a mão de meu amigo. — Eu estava na mesma pista desde o princípio. — Como! O senhor também suspeitava de Henderson? — Exatamente, sr. Holmes. Enquanto o senhor se arrastava entre as moitas da High Gable, eu estava em cima de uma das árvores do pomar observando-o. Tratava-se apenas de saber quem obteria a prova primeiro. — Então, por que prendeu o mulato? Baynes soltou uma gargalhada. — Tinha a certeza de que Henderson, como ele próprio se chama, sabia que desconfiavam dele, e se manteria quieto em seu esconderijo enquanto se julgasse em perigo. Por isso prendi o pobre-diabo para fazer crer que ninguém se ocupava de sua pessoa. Estava convencido de que ele, com toda a certeza, procuraria afastar-se daqui o mais depressa possível, e nos daria a oportunidade de nos apoderarmos da sra. Burnet. Holmes pôs a mão no ombro do inspetor. — O senhor irá longe em sua profissão. Tem o instinto e a intuição necessários a um bom policial — disse. Baynes corou de satisfação. — Deixei um agente à paisana na estação durante toda a semana. Para onde quer que se dirijam os moradores da High Gable, ele não os perderá de vista. Mas que teria ele pensado, quando a sra. Burnet fugiu? Seja como for, seu homem apanhou-a e tudo acabou bem. No entanto, não podemos prender ninguém sem o testemunho dela, é claro. Portanto, quanto mais depressa ouvirmos suas declarações, melhor. — Ela está readquirindo as forças pouco a pouco — disse Holmes, observando a governanta. — Mas diga-me, Baynes, quem é esse Henderson? — Henderson — respondeu o inspetor — é dom Murillo, outrora chamado o "Tigre de San Pedro". O Tigre de San Pedro! Toda a história daquele homem me veio à mente como um relâmpago. Esse indivíduo celebrizara-se como o tirano mais cruel e sanguinário que jamais havia governado um país com a aparência de civilizado. Forte, destemido e enérgico, possuía uma capacidade que lhe permitiu impor durante dez ou doze anos seu jugo odioso sobre um povo aterrorizado. Seu nome era temido em toda a América Central, mas, no fim daquele tempo, houve uma revolta geral contra ele. Entretanto, tão astucioso como cruel, ao pressentir o perigo iminente fez transportar secretamente seus tesouros para um navio tripulado por correligionários fiéis. Foi apenas um palácio vazio que os revoltosos assaltaram no dia seguinte. O ditador e suas duas filhas, o secretário e as riquezas, tinham escapado. Desde essa época desapareceram dos olhos do mundo, e sua identidade era objeto freqüente de comentários na imprensa européia. — Sim senhor, dom Murillo, o Tigre de San Pedro — repetiu Baynes. — Se procurar recordar-se, verá que as cores de San Pedro são o verde e o branco, as mesmas citadas no bilhete. Adotara o nome de Henderson, mas consegui seguir-lhe as pegadas, em sentido inverso, através de Paris, Roma e Madri, até Barcelona, onde seu navio aportou em 1886. Seus inimigos procuraram-no durante todo esse tempo com o intuito de se vingarem. No entanto, só agora conseguiram encontrá-lo. — Descobriram-no há um ano — interveio a sra. Burnet, que se tinha sentado e acompanhava atentamente a conversa. — Já uma ocasião haviam atentado contra sua vida, mas há um espírito demoníaco que parece defendê-lo. E agora, mais uma vez, é o nobre e cavalheiresco Garcia que cai abatido, enquanto o monstro consegue escapar


impune. Mas outro virá, e ainda outro, até um dia ser feita justiça; isso é tão certo como o nascer do sol. Suas mãos finas contraíram-se, e o rosto cansado empalideceu sob o domínio do ódio de que se achava possuída. — Mas de que maneira a senhora se envolveu neste caso? — perguntou Holmes. — Como poderia uma inglesa tomar parte em semelhante atentado homicida? — Aderi à conspiração porque não havia outro meio no mundo de fazer justiça. Que importa à magistratura inglesa os rios de sangue que esse homem fez correr há alguns anos pelas ruas de San Pedro, ou o navio abarrotado de ouro que ele roubou? Para os senhores, são como crimes cometidos em outro planeta. Nós, porém, sabemos o que isso representa. Descobrimos a verdade no sofrimento e na dor. Para nós, não há no inferno demônio mais perverso que Juan Murillo, e não teremos paz nesta vida enquanto suas vítimas clamarem por vingança. — Inegavelmente — observou Holmes —, ele é tudo quanto a senhora diz. Estou a par de suas atrocidades. Mas, que mal esse homem poderia ter-lhe causado? — Vou explicar-lhe tudo. A política desse bandido era liquidar, sob qualquer pretexto, todo homem que, pêlos seus dotes, demonstrasse a possibilidade de um dia vir a transformar-se num rival perigoso para ele. Meu marido, sim, meu verdadeiro nome é sra. Victor Durando, exercia as funções de ministro de San Pedro em Londres. Ali nos conhecemos e casamos. Jamais existiu sobre a terra homem melhor do que ele. Desgraçadamente, Murillo ouviu falar de sua competência, chamou-o sob uma desculpa qualquer e mandou-o fuzilar. Pressentindo seu destino, recusara-se a levar-me com ele. Foram-lhe confiscadas as propriedades e eu fiquei na miséria, com o coração despedaçado. "Ocorreu, então, a queda do tirano. Ele conseguiu fugir da maneira que o senhor acaba de descrever. Mas o número infindo de pessoas cuja existência ele arruinou, e cujos parentes mais caros e mais próximos sofreram atrozes torturas e encontraram a morte em suas mãos, não poderiam deixar a coisa cair no esquecimento. Congregaram-se numa sociedade destinada a permanecer indissolúvel até que a missão estivesse cumprida. Coube a mim, logo após termos descoberto no falso Henderson o déspota caído, unir-me à sua família e manter os outros informados de seus passos. Alcancei meu intento tornando-me governanta de suas filhas. Mal sabia ele que a mulher que se sentava à sua frente a cada refeição era a mesma cujo marido ele despachara para o outro mundo sem a menor piedade. Eu sorria-lhe, cumpria minha obrigação para com suas filhas e esperava o momento oportuno. Um atentado foi levado a efeito contra ele em Paris, mas falhou. Andamos aos ziguezagues por toda a Europa, a fim de despistar os perseguidores, e finalmente regressamos a esta casa, que ele havia alugado ao chegar, pela primeira vez, à Inglaterra. "Entretanto, também aqui seus inimigos o aguardavam, sequiosos de justiça. Sabendo que ele voltaria a este lugar, Garcia, filho de um antigo alto dignitário em San Pedro, esperava-o com dois companheiros fiéis, de origem humilde, absorvidos os três por idêntico desejo de vingança. Pouco podia ele fazer durante o dia, pois Murillo cercava-se de precauções e não saía nunca sem ser acompanhado de sua sombra, Lucas, ou López, como era conhecido na época de seu fastígio. À noite, porém, Murillo dormia só, e o vingador poderia colhê-lo de surpresa. Certa noite, de antemão determinada, enviei a meu amigo instruções definitivas, porquanto nosso homem vivia de sobreaviso e mudava constantemente de quarto. Competia-me ver se as portas


estavam abertas e, por sinais feitos com luz verde ou branca, através de uma janela fronteira à estrada, informá-lo se tudo corria em ordem ou se seria melhor adiar o atentado. "Tudo, porém, nos saiu às avessas. Não sei por que motivo, eu havia provocado as suspeitas de López, o secretário. Aproximou-se de mim sorrateiramente e, mal acabei de escrever o bilhete, saltou sobre mim. Ele e seu amo arrastaram-me para meu quarto e submeteram-me a julgamento como traidora. Ter-me-iam apunhalado ali mesmo, se tivessem encontrado meio de escapar depois às conseqüências desse ato. Finalmente, após longa discussão, decidiram que meu assassinato era demasiado perigoso. Resolveram, contudo, livrar-se para sempre de Garcia. Haviam-me amarrado, e Murillo torceu-me o braço até eu lhes dar o endereço de meu companheiro. Juro-lhes que preferia que o tivessem arrancado de mim, se soubesse o que isso iria significar para Garcia. López endereçou o bilhete que eu havia escrito, fechou-o com lacre, colocou sobre este sua abotoadura de punho e enviou-o por intermédio do criado José. Como o mataram não lhes sei dizer, salvo que foi a mão de Murillo que o abateu, pois López ficara de guarda junto a mim. Acredito que o esperou entre as moitas que ladeiam o caminho, e saltou sobre ele no momento em que passava. A princípio, pensaram em deixá-lo penetrar na casa e abatê-lo como se se tratasse de um ladrão apanhado em flagrante. Todavia, refletindo melhor, acharam que, se fossem envolvidos num inquérito, sua verdadeira identidade seria revelada publicamente, e ficariam expostos a novos ataques, ao passo que, com a morte de Garcia, a perseguição talvez cessasse, pois tal morte certamente assustaria os outros conjurados e os faria desistir da empresa. "Tudo correria bem para eles agora, se não fosse meu testemunho do que tinham feito. Não tenho a menor dúvida de que houve ocasiões em que minha vida esteve pendente de um fio. Achava-me prisioneira em meu quarto, apavorada com as mais terríveis ameaças, maltratada de maneira cruel com o fito de me perturbarem o intelecto. Vejam este golpe aqui no ombro, e as manchas que me recobrem os braços. Quando, em certo momento, tentei chamar por socorro da janela, puseram-me uma mordaça na boca. Essa prisão intolerável durou cinco dias, durante os quais me deixaram praticamente sem alimento. Hoje à tarde trouxeram-me uma boa refeição, mas, mal a tinha ingerido, percebi que lhe tinham adicionado algum narcótico. Lembro-me, como num sonho, de ter sido arrastada para a carruagem no mesmo estado fui conduzida para um trem. Só então, quando as rodas já estavam quase em movimento, compreendi subitamente que minha liberdade dependia apenas de meu próprio esforço. Atirei-me para fora do vagão; eles tentaram fazer-me voltar e, se não fosse a intervenção deste bom homem, que me conduziu para um carro, jamais teria escapado. Agora, graças a Deus, estou definitivamente fora do alcance deles." Todos tínhamos ouvido atentamente aquela extraordinária declaração. Holmes foi o primeiro a quebrar o silêncio: — Nossas dificuldades ainda não terminaram — observou, abanando a cabeça. — Finda aqui nosso trabalho policial. Inicia-se, contudo, o trabalho legal. — Precisamente — disse eu. — Qualquer advogado hábil poderá justificar o fato sob a alegação de legítima defesa. Ainda que existam centenas de delitos anteriores a reclamar justiça, só por este eles poderão ser julgados. — Qual!... — exclamou Baynes alegremente. — Faço um conceito melhor de nossos juízes. Uma coisa é legítima defesa, outra é atrair um homem a sangue-frio com o intuito de matá-lo, por mais perigoso que ele possa ser. Não, não; verão que poderemos provar a boa razão de nosso procedimento, quando virmos os habitantes da High Gable no próximo júri de Guilford. Pertence à história o fato de que, apesar de tudo, algum tempo ainda deveria decorrer antes que o Tigre de San Pedro recebesse o castigo merecido. Astutos e audazes, ele e seu companheiro conseguiram despistar os perseguidores, entrando num prédio de apartamentos pela porta principal da Edmonton Street e saindo pela porta dos fundos na Curzon Square. Desde esse dia, jamais foram vistos na Inglaterra. Cerca de seis meses mais tarde, o marquês de Montalva e o sr. Rulli, seu secretário, foram encontrados assassinados em seus quartos no Hotel Escoriai, em Madri. O delito foi imputado aos niilistas, e os criminosos jamais foram presos.


O inspetor Baynes foi visitar-nos na Baker Street com um jornal em que vinham descritos o rosto trigueiro do secretário e os traços dominadores, os olhos negros e magnéticos e as sobrancelhas espessas de seu patrão. Não tivemos dúvidas de que a justiça, embora tardia, chegara finalmente. — Um caso muito confuso, amigo Watson — comentou Holmes mais tarde, no meio de sua cachimbada noturna. — Não lhe será possível apresentá-lo sob aquele aspecto coerente e compacto, que lhe é tão caro. Ele abrange dois continentes, atinge dois grupos misteriosos de indivíduos e complica-se ulteriormente diante da presença respeitável de nosso amigo Scott Eccles, cuja inclusão nos acontecimentos me vem demonstrar que Garcia possuía uma imaginação fértil e um bem-desenvolvido instinto de conservação. É notável unicamente pelo fato de que, no meio de um verdadeiro caudal de possibilidades, nós, com nosso digno colaborador Baynes, soubemos cingir-nos aos fatos essenciais, e desse modo orientar-nos em nosso obscuro e tortuoso caminho. Há algum ponto que não lhe tenha ficado bem claro? — Qual o motivo do regresso do cozinheiro mulato? — Creio que pode ser atribuído àquele estranho objeto encontrado na cozinha. O homem era um selvagem primitivo das florestas de San Pedro, e aquilo era seu fetiche. Quando ele e o companheiro fugiram para algum esconderijo previamente arranjado, sem dúvida já ocupado por outro cúmplice, o companheiro devia tê-lo persuadido a abandonar um traste tão comprometedor. Todavia, o coração do mulato ficara preso ao fetiche, e por isso voltou no dia seguinte para reavê-lo, ocasião em que, espreitando pela janela, viu que o compartimento estava ocupado pelo agente Walters. Aguardou durante mais três dias, mas, depois, sua religiosidade ou superstição o levou a realizar nova tentativa. O inspetor Baynes, com a astúcia que lhe é peculiar, tinha, em minha presença, fingido dar pouca importância ao incidente, mas, na realidade, percebera-lhe todo o significado, e, por essa razão, armou uma emboscada na qual o pobre-diabo caiu. Mais alguma coisa, Watson? — E o galo despedaçado, o balde de sangue, os ossos carbonizados e todo o mistério daquela fantástica cozinha? Holmes sorriu, enquanto procurava uma anotação em seu bloco. — Passei uma manhã no Museu Britânico procurando elucidar esse e outros pontos. Eis uma citação extraída do livro de Eckermann, O vodu e as religiões dos negros: "O verdadeiro praticante do vodu não empreende nada de importante sem efetuar certos sacrifícios destinados a tornar propícios seus imundos deuses. Em casos extremos, esses ritos assumem aspectos de imolação de entes humanos, seguidos de canibalismo. Contudo, de ordinário, a vítima comum é um galo branco, esquartejado vivo, ou uma cabra preta, cujo pescoço é cortado e cujo corpo é queimado". — Portanto, como você vê, nosso selvático amigo era muito ortodoxo em seus ritos religiosos. É um caso grotesco, Watson — acrescentou Holmes, fechando lentamente o bloco —, mas, como já tive ocasião de lhe fazer notar, do grotesco ao horrível vai apenas um passo.

Ilustrações: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House Voltar


Sherlock Holmes em: A caixa de papel達o Por Sir Arthur Conan Doyle

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Ao escolher alguns casos típicos, que demonstrassem bem os extraordinários dotes mentais de meu amigo Sherlock Holmes, esforcei-me, tanto quanto possível, por selecionar os que, apesar de oferecerem vasto campo para aplicação de suas qualidades, apresentassem o mínimo de sensacionalismo. Infelizmente, porém, não há possibilidade de separar inteiramente o elemento sensacional do criminal, e o cronista fica a braços com o dilema de sacrificar pormenores essenciais à narrativa, e dar assim uma falsa impressão do problema, ou usar o material oferecido pelo acaso e não pela escolha. Com este breve preâmbulo, volto às minhas anotações sobre o caso que se revelou uma sucessão de acontecimentos estranhos, embora apavorantes. Era um dia sufocante de agosto. A Baker Street parecia um forno, e o reflexo do sol sobre os azulejos amarelos da fachada da casa fronteira tornava-se intolerável aos olhos. Custava crer que fossem aquelas as mesmas paredes sombrias que mal se distinguiam através da névoa espessa do inverno. Tínhamos até baixado as cortinas das janelas, e Holmes estava recostado no sofá, lendo e relendo uma carta que recebera pelo correio da manhã. Quanto a mim, o tempo de serviço na Índia habilitara-me a suportar melhor o calor que o frio, e, assim, o termômetro a trinta e cinco graus não me incomodava. Mas o jornal matutino nada continha de interesse. O Parlamento suspendera os seus trabalhos, grande parte da população abandonara a cidade e eu ansiava pelas clareiras verdejantes de New Forest ou pelas praias recobertas de seixos de Southsea. A situação precária de minha conta bancária, contudo, havia me obrigado a adiar as férias, e, no tocante a meu companheiro, nem o campo nem o mar exerciam sobre ele a menor atração. Deliciava-se em permanecer no meio de cinco milhões de pessoas, qual aranha a desenvolver em torno de si os fios da teia, sempre alerta ao menor rumor ou suspeita de um crime inextricável. A apreciação da natureza não encontrava lugar entre seus inumeráveis predicados, e a única mudança que ele podia suportar era desviar seu espírito do malfeitor da cidade para perseguir o colega deste na província. Percebendo que Holmes estava demasiado absorto para conversar, pus de lado o jornal inútil e recostei-me na cadeira, concentrado em melancólica divagação. De súbito, a voz de meu amigo interrompeu-me o curso dos pensamentos. — Você tem razão, Watson — disse. — É de fato absurda essa maneira de resolver contendas. — Incrivelmente absurda! — exclamei. No mesmo instante, porém, compreendendo que ele fizera eco ao que eu estava pensando naquele momento, endireitei-me na Cadeira e fitei-o, atônito. — Como é possível, Holmes? — gritei. — Isso ultrapassa tudo quanto eu poderia imaginar.


Ele riu gostosamente de minha perplexidade. — Deve lembrar-se — disse ele — de que quando há pouco tempo li para você um trecho de um conto de Poe, no qual certa personagem acompanha pelo raciocínio os pensamentos íntimos do companheiro, você se mostrou inclinado a considerar o assunto simplesmente um tour de force do autor. Como se afirmasse que estava habituado a fazer a mesma coisa, mostrou-se incrédulo. — Oh! Não é verdade! — Talvez não tenha dito nada, meu caro Watson, mas o movimento de suas sobrancelhas deu-o a entender. Assim, quando o vi abandonar o jornal e pôr-se a pensar, aproveitei o ensejo para seguir o curso de sua meditação e, eventualmente, interrompê-lo com uma oportuna observação, a fim de lhe provar que o havia feito. — Todavia, eu estava longe de me dar por satisfeito. — No exemplo que você leu — disse eu —, o raciocinador tira suas conclusões dos atos praticados pelo homem que ele observa. Se não me engano, este tropeçou num monte de pedras, olhou para as estrelas, e assim por diante. Eu, porém, deixei-me ficar tranqüilamente em minha cadeira. Portanto, que indicação poderia ter-lhe proporcionado? — Você não é justo para com você mesmo. As feições foram dadas ao homem como meio de exprimir suas próprias emoções, fato que em si pode muito bem ser absurdo. — Quer dizer que você seguiu o curso de meus pensamentos pela expressão de meu rosto? — Do rosto e especialmente dos olhos. Talvez se recorde de como teve início seu devaneio, não é verdade? — Na verdade, não me lembro. — Então, vou dizer-lhe. Depois de ter atirado o jornal para o chão, gesto esse que me atraiu a atenção para sua pessoa, deixou-se ficar durante meio minuto com o rosto inexpressivo. Em seguida, seus olhos fixaram-se no retrato, recentemente emoldurado, do general Gordon, e percebi, pela mudança de sua fisionomia, que este lhe provocara uma série de reflexões. Estas, porém, não o levaram muito longe. Seu olhar voltou-se subitamente para o retrato ainda sem moldura de Henri Ward Beecher, que se encontra em cima de seus livros. Depois disso, você olhou para a parede e adivinhei-lhe claramente o pensamento. Você considerou que, se o retrato estivesse emoldurado, caberia exatamente naquele espaço vago e ficaria simétrico com o de Gordon, do outro lado. — Você acompanhou-me maravilhosamente! — exclamei. — Até aí, dificilmente poderia enganar-me. Mas, nesse momento, você voltou a pensar em Beecher, e seu olhar tornou-se fixo, como se estivesse estudando


através das feições o caráter do homem. Depois, seus olhos perderam a firmeza; no entanto, você continuou a mirar o retrato com ar pensativo, evocando os incidentes da carreira de Beecher. Tinha certeza de que não poderia fazer isso sem se lembrar da missão por ele empreendida a favor do norte, durante a guerra civil, pois recordo-me de tê-lo ouvido dar largas à sua indignação pela maneira como foi recebido pêlos mais exaltados de nossos compatriotas. Seu ressentimento era tão forte a esse respeito, que compreendi não lhe ser possível pensar em Beecher sem se recordar disso. Quando, um instante depois, vi seu olhar desviar-se do retrato, suspeitei que seu pensamento se voltara para a guerra civil, e, ao observar-lhe os lábios cerrados, os olhos cintilantes e os punhos crispados, fiquei absolutamente certo de que estava se recordando da admirável bravura demonstrada por ambas as partes naquela luta desesperada. Todavia, seu rosto novamente se carregou, e você sacudiu a cabeça. Refletia sobre a tristeza e o horror daquele conflito, e o inútil desperdício de vidas. Sua mão pousou quase inadvertidamente sobre o ferimento na perna, e um sorriso lhe pairou nos lábios, o que me veio demonstrar que notara o ridículo desse modo de resolver questões internacionais. Foi então que concordei com você, afirmando-lhe que era absurda essa situação, e fiquei satisfeito por ver que todas as minhas deduções eram exatas. — Exatíssimas! — confirmei. — E agora, depois de me ter explicado tudo, confesso que estou tão perplexo como antes. — Asseguro-lhe que foi uma experiência muito superficial, caro Watson. E nem lhe teria chamado a atenção para isso, se não fosse a incredulidade demonstrada por você outro dia. Entretanto, tenho aqui entre as mãos um pequeno problema que talvez se mostre de solução bem mais difícil do que meu modesto ensaio de leitura de pensamento. Leu por acaso no jornal um breve parágrafo relativo ao estranho conteúdo de certo pacote enviado pelo correio à srta. Cushing, residente à Cross Street, em Croydon? — Não, não li nada. — Ah! Deve ter-lhe escapado, então. Passe-me o jornal. Cá está ele, sob a coluna financeira. Quer fazer o favor de lê-lo em voz alta? Tomei o jornal que ele me devolvera e li o parágrafo indicado. Trazia o título "Um pacote macabro" e rezava o seguinte: — "A srta. Susan Cushing, residente à Cross Street, Croydon, foi vítima do que se pode considerar uma brincadeira de mau gosto particularmente revoltante, a não ser que se prove que o incidente tenha significado mais trágico. Às duas horas da tarde de ontem, foi-lhe entregue pelo carteiro um pacote envolto em papel pardo. Dentro encontrava-se uma caixa de papelão cheia de sal grosso. Ao esvaziá-la, a srta. Cushing deparou, horrorizada, com duas orelhas humanas, aparentemente recém-cortadas. A caixa fora despachada de Belfast, como encomenda, na manhã anterior. Não há a menor indicação quanto à identidade do remetente, e o caso torna-se ainda mais misterioso ao considerar-se que a destinatária é solteira, tem cinqüenta anos de idade,


sempre levou uma vida muito isolada e possui tão poucos conhecidos ou correspondentes que, para ela, é acontecimento raro receber qualquer coisa pelo correio. Todavia, há alguns anos, quando morava em Penge, alugou quartos a três jovens estudantes de medicina, dos quais foi obrigada posteriormente a desfazer-se devido aos hábitos irregulares e turbulentos deles. A polícia é de opinião que se trata de obra desses estudantes, que, por vingança, enviaram à srta. Cushing, com o intuito de aterrorizá-la, esses sobejos da sala de anatomia. Essa hipótese apresenta certas probabilidades pelo fato de um dos estudantes ser oriundo do norte da Irlanda e mesmo, como a srta. Cushing crê poder afirmar, de Belfast. Entretanto, o caso está sendo ativamente investigado, sob a direção do sr. Lestrade, um de nossos mais hábeis agentes policiais." — Isto é o que diz o Daily Chronicle — disse Holmes, quando terminei a leitura. — Vejamos agora nosso amigo Lestrade. Recebi um bilhete dele hoje de manhã, com os seguintes dizeres: "Suponho que este caso seja muito a seu gosto. Temos grandes esperanças de esclarecê-lo. No entanto, encontramos certa dificuldade em obter uma pista concreta. Já telegrafamos, naturalmente, para a agência do correio de Belfast, mas, como naquele dia foi entregue ali grande número de pacotes, não foi possível identificar o que nos interessa, nem a pessoa do remetente. A referida caixa é de tabaco para cachimbo, de meia libra, e não nos fornece nenhuma indicação. Segundo me parece, a hipótese relativa ao estudante de medicina é a mais viável, mas, se o senhor pudesse dispor de algumas horas, teria muito prazer em vê-lo por aqui. Encontrar-me-á, a qualquer hora do dia, em casa da srta. Cushing ou no posto policial.' "Que me diz disso, Watson? Sente-se com coragem para enfrentar o calor e me acompanhar até Croydon, com a vaga esperança de mais um caso para seus anais?" — Estava ansioso por fazer alguma coisa. — Aí tem, pois, a oportunidade. Chame o criado e peca-lhe que nos arranje um carro. Estarei pronto num instante; apenas o tempo de mudar de roupa e encher a charuteira. Caiu uma chuva forte durante a viagem de trem, e encontramos em Croydon um calor muito menos opressivo do que na cidade. Holmes fizera-se preceder de um telegrama, de modo que Lestrade, nervoso, vivaz e furão como sempre, aguardava nossa chegada na estação. Uma caminhada de cinco minutos conduziu-nos à Cross Street, onde residia a srta. Cushing. Era uma rua muito comprida, formada por fileiras de casas de tijolos, sóbrias e bem-conservadas, com degraus de pedra branca e pequenos grupos de mulheres tagarelando no limiar das portas. A meio caminho, Lestrade parou e bateu a certa porta, que foi aberta por uma criadinha. Fomos introduzidos na


sala da frente, onde se encontrava a srta. Cushing, mulher de fisionomia plácida, olhos grandes e meigos e cabelos grisalhos, que caíam em bandós sobre as têmporas. Via-se em seu regaço uma coberta de poltrona, já quase toda bordada, e, sobre um tamborete próximo, um cesto com novelos de fios de seda de diversas cores. — Aquelas coisas horrendas estão lá fora, no quarto de despejo — disse, ao ver Lestrade entrar. — Ficar-lhe-ia grata se as levasse daqui definitivamente. — É o que vou fazer, srta. Cushing. Conservei-as aqui até que este meu amigo, o sr. Holmes, as visse em sua presença. — Por que em minha presença? — Para o caso de ele desejar fazer-lhe alguma pergunta. — Que adianta fazer-me perguntas quando já lhe afirmei não saber nada a esse respeito? — Perfeitamente, minha senhora — interpôs Sherlock Holmes com seu tom conciliador. — Estou certo de que já foi muito importunada por causa desse desagradável assunto. — Já o fui, deveras. Sou amiga do sossego e levo vida retirada. É absoluta novidade para mim ter o nome nos jornais e a polícia em minha casa. Não quero ver aquelas coisas aqui, sr. Lestrade; se deseja examiná-las, deve fazêlo no quarto de despejo, lá fora. Era um acanhado quartinho, no estreito quintal dos fundos da casa. Lestrade entrou e trouxe de lá uma caixa amarela de papelão, embrulhada com um pedaço de papel pardo e um barbante. Havia um banco, num canto do quintal, em que todos nos sentamos, enquanto Holmes observava, um por um, os objetos que Lestrade lhe entregara. — Este barbante é extremamente interessante — ponderou, levantando-o contra a luz e cheirando-o. — Que me diz disso, Lestrade? — Foi besuntado com alcatrão. — Precisamente. Trata-se de barbante alcatroado. Terá notado, sem dúvida, que a srta. Cushing o cortou com uma tesoura, como se depreende das duas pontas desfiadas. Isso é importante. — Não vejo qual a importância de tal fato — retorquiu Lestrade. — A importância está no fato de o nó não ter sido tocado. Ora, este nó é


característico. — Foi feito com muita precisão. Já o notara também — acrescentou Lestrade com ar complacente. — Isso no que diz respeito ao barbante — continuou Holmes, sorrindo. — Vejamos, agora, o invólucro da caixa. Papel pardo com forte cheiro de café. Como? Não o havia notado? Creio não existir dúvidas. Endereço escrito em letra de forma e em caracteres muito irregulares: "Srta. S. Cushing, Cross Street, Croydon". Escrito com pena de ponta grossa e tinta de qualidade muito ordinária. A palavra Croydon foi a princípio ortografada com i, depois transformado em y. O pacote, portanto, foi enviado por um homem — a letra é visivelmente masculina — de limitada cultura e que não conhece a cidade de Croydon. Até aqui, muito bem! A caixa é de tabaco para cachimbo, de meia libra, amarela, sem nada de especial exceto duas marcas de polegar no ângulo inferior esquerdo. Está cheia de sal grosso, da qualidade usada para conservar peles e outros produtos comerciais de tipo inferior. E no meio dele é que se encontram estas singularíssimas remessas. Enquanto falava, retirou as duas orelhas da caixa e, colocando-as sobre uma tábua, em cima dos joelhos, pôs-se a examiná-las atentamente, ao passo que eu e Lestrade, curvados a seu lado, olhávamos alternadamente para aqueles despojos horrorosos e para o rosto atento e sagaz de nosso companheiro. Finalmente, repôs as orelhas macabras na caixa e deixou-se ficar algum tempo imerso em profunda meditação. — Com certeza, já deve ter observado — disse ele por fim — que estas duas orelhas não pertencem a um mesmo indivíduo.

— Sim, já o notara; mas, se isso é brincadeira de mau gosto da parte de alguns estudantes, a estes seria tão fácil subtrair da sala de anatomia duas orelhas diferentes como um par. — Perfeitamente; mas não se trata aqui de travessura de estudantes. — Tem certeza disso? — As aparências são absolutamente contrárias a tal hipótese. Os cadáveres usados para dissecação normalmente são injetados com um líquido próprio para conservá-los. Ora, estas orelhas não apresentam sinais desse líquido e, além do mais, são frescas. Foram cortadas com instrumento cortante malafiado, o que dificilmente aconteceria se fosse obra de um estudante de medicina. Por outro lado, não ocorreria por certo a esse estudante escolher sal grosso como elemento preservativo, mas sim o formol ou o álcool retificado. Repito que não existe aqui nenhuma brincadeira de mau gosto, mas que nos encontramos em face de gravíssimo delito.


Senti um ligeiro arrepio percorrer-me a espinha ao ouvir as palavras de meu amigo e ao ver a gravidade de sua expressão. Aquele prelúdio brutal parecia vaticinar estranha e inexplicável tragédia. Lestrade, porém, abanou a cabeça como quem tivesse ainda suas dúvidas. — Certamente, podem ser levantadas objeções à hipótese de uma travessura — disse. — Todavia, há razões muito mais fortes contra sua teoria. Sabemos que esta mulher levou vida tranqüila e respeitável durante os últimos vinte anos, tanto em Penge como aqui. Durante esse tempo, quase não se afastou de casa. Por que diabos um criminoso iria enviar-lhe as provas de sua culpabilidade, tanto mais que, salvo tratar-se de atriz consumada, ela parece entender tanto do assunto como nós mesmos? — É esse o problema que nos cumpre resolver — replicou Holmes —, e por minha parte iniciarei as pesquisas no suposição de ser correto o meu raciocínio e de ter sido cometido um duplo assassinato. Uma dessas orelhas é de mulher: pequena, de contornos delicados e com um orificiozinho para brincos. A outra é de homem, queimada de sol, descorada e também furada para brincos. Ambas as pessoas devem estar mortas; caso contrário, já teríamos sabido alguma coisa. Hoje é sexta-feira. O pacote foi posto no correio quinta-feira cedo; a tragédia, portanto, ocorreu quarta ou terça-feira, ou talvez antes. Ora, se estas duas pessoas foram assassinadas, quem, senão o assassino, teria enviado à srta. Cushing a prova do delito? Podemos, pois, considerar o remetente do pacote como o homem que nos interessa. Contudo, alguma razão poderosa deveria tê-lo feito mandar esta caixa à srta. Cushing. Qual seria? Teria agido dessa maneira a fim de mostrar-lhe ter sido o crime cometido, ou talvez para impressioná-la e afligi-la? Nesse caso, ela sabe de quem se trata. Saberá realmente? Duvido. Se soubesse, por que haveria de chamar a polícia? Poderia ter enterrado as orelhas, e ninguém ficaria sabendo de nada. É o que teria feito se quisesse proteger o criminoso. No entanto, se não tivesse a intenção de protegê-lo, teria dado o nome dele. Há aqui uma confusão que precisa ser esclarecida. Holmes falara rapidamente, em voz alta, olhando absorto por sobre a cerca do jardim. De súbito, pôs-se de pé e encaminhou-se para a casa. — Preciso fazer algumas perguntas à srta. Cushing — explicou. — Nesse caso, vou deixá-lo aqui — respondeu Lestrade —, pois tenho que tratar de outro assunto de menor importância. Creio já ter obtido da srta. Cushing todas as informações que me poderiam interessar. Encontrar-me-á no posto policial. — Passaremos por lá quando formos para a estação — respondeu Holmes. Momentos após, eu e ele encontrávamo-nos de novo na sala da frente, onde a impassível senhora continuava trabalhando tranqüilamente em seu bordado. Ao entrarmos, depô-lo no regaço e fitou-nos com os olhos azuis, francos e inquiridores.


— Estou convencida — disse-nos — de que toda essa história não passa de um engano, e que o pacote não me era destinado. Já o disse várias vezes àquele senhor da Scotland Yard, o qual, todavia, se limitou a rir de mim. Que eu saiba, não tenho um único inimigo no mundo. Por que iria alguém fazer tal brincadeira comigo? — Estou propenso a concordar com a sua opinião, srta. Cushing — replicou Holmes, sentando-se ao seu lado. — Creio ser mais que provável... Parou de falar e, olhando-o, fiquei admirado ao notar o singular interesse com que fitava o perfil da srta. Cushing. Nesse instante foi-me possível ler em seu rosto expressivo surpresa e contentamento, embora, quando ela se voltou para averiguar a causa de sua interrupção, ele já houvesse recuperado a impassibilidade habitual. Pus-me a estudar, por minha vez, seus cabelos lisos e grisalhos, a graciosa touca, os pequenos brincos dourados e suas feições serenas; nada, porém, encontrei que justificasse a evidente emoção de meu amigo. — Há uma ou duas perguntas... — Oh! Já estou farta de perguntas — exclamou a srta. Cushing com impaciência. — A senhorita tem duas irmãs, creio. — Como pode saber isso? — Logo que entrei nesta sala, vi sobre a prateleira da lareira o retraio de três moças, uma das quais é indiscutivelmente a senhorita, enquanto as outras se lhe assemelham de modo a não deixar dúvidas acerca do parentesco que as une. — De fato, tem razão. São minhas irmãs Sara e Mary. — E aqui a meu lado está outro retraio, tirado em Liverpool, de sua irmã mais nova em companhia de um homem que, pelo uniforme, me parece comissário de bordo. Vejo que nessa ocasião ela ainda não era casada. — Que grande observador! — É minha profissão. — Realmente, acertou. Todavia, ela casou-se poucos dias após com Browner. Na época dessa fotografia, ele fazia o serviço regular de navegação para a América do Sul, mas amava-a tanto que não se resignou a passar tanto tempo longe dela, e conseguiu transferência para o serviço costeiro entre Londres e Liverpool. — No Conqueror, por acaso?


— Não; no May Day, pelo menos na última vez que dele tive notícias. Em certa ocasião, Jim veio visitar-me. Foi antes de ele quebrar sua promessa; desde então, porém, sempre que desembarcava punha-se a beber, e bastavam uns poucos goles para transformá-lo num doido varrido. Ah! Dia fatídico aquele em que começou a beber! Primeiro deixou de me procurar, depois brigou com Sara, e agora que Mary deixou de me escrever, não sei como andam as coisas entre eles. Era evidente ter a srta. Cushing tocado em assunto que lhe era de extremo interesse. Como a maioria das pessoas de vida solitária, tinha se mostrado tímida a princípio, mas acabara por tornar-se excessivamente loquaz. Contounos numerosas particularidades a respeito do cunhado marinheiro, e depois passou ao assunto dos antigos pensionistas, os estudantes de medicina, de cujas travessuras nos fez longa relação, dando-nos seus nomes e os dos hospitais em que praticavam. Holmes ouvia tudo com atenção, fazendo ocasionalmente uma ou outra pergunta. — A propósito de sua segunda irmã, Sara — disse —, não compreendo como, sendo ambas solteiras, não pensaram em montar casa juntas. — Ah! Se o senhor conhecesse o gênio de Sara, compreenderia. Tentei morar com ela por ocasião de minha mudança para Croydon, e estivemos juntas até há cerca de dois meses, quando fomos forçadas a nos separar. Não quero falar mal de minha própria irmã, mas Sara sempre foi muito difícil de aturar. — A senhorita disse que ela se dava mal com seus parentes de Liverpool? — Sim, mas houve tempo em que eles foram étimos amigos, a ponto de ela se mudar para lá para estar mais perto deles. E, no entanto, agora vive dizendo o pior de Jim Browner. Nos últimos seis meses que passou aqui, não fazia outra coisa senão falar na maneira como ele bebia e em seu mau comportamento. Suspeito que Jim a apanhou fazendo algum mexerico, ficou seriamente zangado e aí está como principiou a inimizade entre eles. — Obrigado, srta. Cushing — disse Holmes, pondo-se de pé e fazendo uma vênia. — Parece haver-me dito que sua irmã Sara mora na New Street, em Wailington, não é? Passe bem, e creia que lastimo que tenha sido tão importunada num caso com o qual nada tem que ver. Ao sairmos dali, passava um carro, e Holmes fez sinal ao cocheiro. — Qual é a distância daqui a Wailington? — indagou.


— Não chega a um quilômetro e meio. — Muito bem. Suba, Watson; precisamos malhar enquanto o ferro está quente. Embora simples, este caso oferece alguns aspectos muito interessantes. Pare um momento na agência telegráfica mais próxima, cocheiro. Holmes expediu um breve telegrama, e durante o resto do trajeto permaneceu recostado no fundo da carruagem, com o chapéu caído sobre os olhos para proteger-se do sol. Nosso veículo parou diante de uma casa não muito diversa da que acabávamos de deixar. Meu companheiro ordenou ao cocheiro que esperasse, e estava para bater à porta quando esta se abriu e um jovem de maneiras circunspectas, vestido de preto e usando uma cartola muito reluzente, apareceu no limiar. — A srta. Cushing está em casa? — A srta. Cushing acha-se gravemente enferma — respondeu o jovem. — Apresenta desde ontem distúrbios cerebrais de extrema intensidade. Como seu médico, não posso arcar com a responsabilidade de permitir-lhe visitas. Tomo a liberdade de pedir-lhes para voltarem daqui a uns dez dias. Dizendo isso, calçou as luvas, fechou a porta e afastou-se a pé, rua abaixo. — Bem, o que não tem remédio, remediado está — observou Holmes em tom gaiato. — Talvez ela não estivesse em condições, ou mesmo não tivesse desejo de lhe dizer grande coisa. — Não pretendia que ela me dissesse nada; queria apenas vê-la. Não obstante, creio ter obtido tudo quanto desejava. Leve-nos a algum hotel decente, cocheiro, onde possamos almoçar; depois, passaremos pelo posto policial para ver nosso amigo Lestrade. Fizemos juntos uma agradável refeição, durante a qual Holmes não falou de outra coisa senão de violinos, explicando-me com grande satisfação como comprara pela ridícula soma de cinqüenta e cinco xelins, a um judeu vendedor de objetos de segunda mão, na Tottenham Court Road, seu Stradivarius, que valia no mínimo quinhentos guinéus. Esse assunto fê-lo divagar sobre Paganini, e ficamos, pelo espaço de uma hora, sentados diante de uma garrafa de clarete, enquanto desfiava histórias e mais histórias acerca dessa extraordinária personalidade. A tarde já declinava e a luz ardente do sol transformara-se em amena claridade, quando chegamos ao posto policial. Lestrade esperava-nos à porta. — Aqui está um telegrama à sua espera, sr. Holmes — disse. — Ah! É a resposta que aguardava. — Holmes abriu-o, leu rapidamente o texto


e guardou-o no bolso. — Vai tudo muito bem — acrescentou. — Conseguiu descobrir alguma coisa? — Descobri tudo! — Como?! — exclamou Lestrade, assombrado, fitando Holmes. — O senhor está brincando! — Nunca disse nada de mais sério em minha vida. Foi perpetrado um crime espantoso, e acredito tê-lo desvendado em todos os pormenores. — E o criminoso? Holmes rabiscou algumas palavras no verso de um cartão de visita e estendeu-o a Lestrade. — Eis o nome dele — explicou. — Todavia, não poderá prendê-lo senão amanhã à noite. Gostaria que meu nome não fosse mencionado no que diz respeito a este caso, porque prefiro associá-lo unicamente a crimes cuja solução ofereça reais dificuldades. Vamos, Watson. Encaminhamo-nos a pé para a estação, enquanto Lestrade fitava, entre atônito e satisfeito, o cartão que Holmes lhe entregara. — Este caso — declarou Sherlock Holmes enquanto cavaqueávamos naquela noite, saboreando nossos charutos nos aposentos da Baker Street — assemelha-se aos que você já descreveu sob os títulos de Um estudo em vermelho e O signo dos quatro, nos quais fomos obrigados a raciocinar, seguindo a ordem inversa, dos efeitos para as causas. Escrevi a Lestrade pedindo-lhe que nos forneça os detalhes que ainda nos faltam, os quais só poderão ser obtidos depois de ele ter capturado o homem. Isso podemos ter a certeza de que o fará, pois, embora desprovido totalmente de inteligência, é dotado de uma tenacidade de buldogue quando compreende o que deve fazer. Aliás, foi justamente essa tenacidade a causa de sua ascensão na Scotland Yard. — Então seus dados ainda não estão completos? — perguntei. — Estão quase completos no que se refere aos pontos essenciais. Sabemos quem é o autor deste crime revoltante, apesar de ainda ignorarmos a identidade de uma das vítimas. Você, naturalmente, já tirou suas próprias conclusões. — Imagino ser Jim Browner, o comissário de bordo de um navio de Liverpool, a pessoa de quem você suspeita. — Oh! É mais do que simples suspeita. — E, ainda assim, nada vejo senão indícios muito vagos.


— Pelo contrário, para mim nada poderia ser mais claro. Deixe-me recordar-lhe os pontos principais. Como deve estar lembrado, enfrentamos o caso com espírito completamente desarmado, o que, nestas circunstâncias, constitui sempre uma vantagem. Não tínhamos formulado nenhuma hipótese. Ali estávamos, simplesmente para observar e tirar conclusões do que nos fosse dado ver. O que se nos deparou em primeiro lugar? Uma excelente senhora, calma e respeitável, que parecia completamente alheia ao mistério, e um retrato que me revelava possuir ela duas irmãs mais novas. Instantaneamente, surgiu-me no espírito a ideia de que o pacote talvez fosse destinado a uma delas. Deixei de lado essa hipótese, que poderia, em tempo oportuno, ser confirmada ou abandonada. Dirigimo-nos depois, como deve estar lembrado, para o quintal, onde examinamos o singularíssimo conteúdo da caixa amarela. "O barbante do tipo usado no velame de navios, e, de súbito, o ambiente do mar invadiu nossas investigações. Quando observei que o nó era característico entre marinheiros, que o pacote fora expedido de um porto de mar e que a orelha masculina tinha um orifício para brinco, coisa muito mais comum entre marujos do que entre habitantes de terra firme, convenci-me de que os protagonistas da tragédia deviam encontrar-se nos meios marítimos. "Ao examinar o endereço do pacote, notei estar ele dirigido à srta. S. Cushing. Ora, a irmã mais velha seria, naturalmente, também srta. Cushing, mas, embora sua inicial fosse S, essa letra poderia pertencer da mesma forma a uma das outras. Nesse caso, deveríamos iniciar nossas pesquisas em base completamente nova. Entrei, portanto, na casa, com o intuito de esclarecer esse ponto. Talvez se lembre de que, quando eu estava para afirmar à srta. Cushing minha convicção de ter havido algum engano, calei-me subitamente. O fato é que acabara de notar algo que me encheu de surpresa e, ao mesmo tempo, restringiu consideravelmente o campo de minhas indagações. "Na qualidade de médico, Watson, deve saber que não existe parte do corpo humano que apresente tantas variações como a orelha. Cada uma tem as próprias características, e difere de todas as demais. Na Revista Antropológica do ano passado, você encontrará duas breves monografias de minha lavra sobre o assunto. Examinei, por isso, com olhos de entendido, as orelhas contidas na caixa, e verifiquei cuidadosamente suas peculiaridades anatômicas. Imagine, pois, meuespanto quando, ao olhar para a srta. Cushing, reparei corresponder sua orelha à orelha feminina que eu acabara de inspecionar. Não era possível pensar em coincidência. Ali estava o mesmo encurtamento da aurícula, a mesma curva larga do lobo superior, a mesma circunvolução da cartilagem interna. Em todos os pontos essenciais, era perfeita a semelhança. "Percebi logo a enorme importância de tal observação. Era evidente ser a vítima uma consangüínea e até, provavelmente, parente muito próxima. Comecei a falar-lhe de sua família, e você se lembra que ela nos propiciou informações particularmente preciosas. "Em primeiro lugar, o nome da irmã era Sara, e até há pouco tempo o


endereço de ambas era idêntico, o que tornava patente a causa do engano e a pessoa a quem se destinava o pacote. Falou-nos depois daquele comissário de bordo, casado com sua irmã mais nova, e ficamos sabendo que suas relações com Sara foram tão íntimas durante algum tempo que esta passara a residir em Liverpool a fim de ficar mais próxima dos Browners, embora uma desavença os separasse depois. Essa discórdia fizera cessar todas as relações entre eles durante alguns meses, e por isso, se Browner tivesse tido ocasião de remeter um pacote à srta. Sara, tê-lo-ia feito ao antigo endereço. "O assunto começava, então, a tornar-se extremamente claro. Sabíamos da existência desse marujo, homem impulsivo e de paixões violentas (lembre-se de que, para ficar mais perto da esposa, renunciou a carreira muito superior), sujeito também a freqüentes bebedeiras. Tínhamos razões para crer que sua mulher fora assassinada e que um homem, talvez um marujo também, havia sido morto na mesma ocasião. Imediatamente, o ciúme se nos apresenta como motivo do crime. Mas por que mandar à srta. Sara Cushing as provas do delito? Possivelmente porque, durante sua estada em Liverpool, ela teve alguma influência na sucessão de acontecimentos que levaram à tragédia. Repare que os navios da linha de Browner fazem escala em Belfast, Dublin e Waterford; presumindo, portanto, que Browner tivesse cometido o crime, embarcando logo após no May Day, Belfast teria sido o primeiro porto do qual podia expedir o macabro pacote. "Nessa fase, evidentemente, era possível uma segunda solução, e embora a achasse muito menos provável, resolvi elucidá-la antes de ir mais além. Um apaixonado repelido talvez pudesse ter matado o sr. e a sra. Browner, e a orelha masculina seria então do marido. Contra essa hipótese existiam muitas e graves objeções, mas era admissível. Por conseguinte, telegrafei a meu amigo Algar, da polícia de Liverpool, e pedi-lhe que me informasse se a sra. Browner se encontrava em sua residência e se Browner partira no May Day. Feito isso, dirigimo-nos a Wailington, a fim de visitar a srta. Sara Cushing. "Antes de mais nada, estava curioso por ver até que ponto os traços de família da orelha se tinham reproduzido nela. Por outro lado, talvez ela pudesse fornecer-nos informações importantes, coisa com que, aliás, eu não contava muito. Já devia ter ouvido falar sobre o assunto no dia anterior, pois em toda Croydon não se comentava outra coisa, e só ela podia ter compreendido a quem se destinava o pacote. Se fosse sua intenção ajudar a justiça, decerto já teria se comunicado com a polícia. Em todo caso, era nosso dever procurá-la, e por isso fomos até lá. Verificamos que a notícia da chegada do pacote, pois sua doença datava daquele momento, produzira nela efeito tão violento que a prostrara de cama com uma febre cerebral. Era mais que evidente ter ela compreendido todo o seu significado e, por outro lado, era igualmente claro que teríamos de esperar algum tempo antes de podermos contar com qualquer ajuda de sua parte. "Na realidade, porém, esse auxílio era-nos desnecessário. As respostas que desejávamos já nos esperavam no posto policial, pois dera a Algar instruções para remetê-las para lá. Não poderiam ser mais conclusivas. A casa da sra. Browner encontrava-se fechada havia mais de três dias, e os vizinhos


acreditavam que ela viajara para o sul, em visita a parentes. Algar certificarase, na companhia de navegação, da partida de Browner a bordo do May Day, que, calculo, entrará amanhã à noite no Tamisa. Ao chegar, será acolhido pelo obtuso mas resoluto Lestrade, e não tenho dúvidas de que obteremos então os pormenores que ainda nos faltam." Sherlock Holmes não viu frustradas suas expectativas. Dois dias mais tarde, recebia um envelope volumoso que continha um bilhete do detetive e um documento datilografado constando de várias páginas de papel de carta. — Lestrade apanhou-o, como eu esperava — disse Holmes, lançando-me um olhar significativo. — Talvez lhe interesse saber o que ele diz. "Meu caro sr. Holmes: De acordo com o plano por nós estabelecido a fim de poder provar nossas teorias, dirigi-me ao cais Albert, ontem às dezoito horas, e subi a bordo do May Day, propriedade da Liverpool, Dublin & London Stream Packet Company. Procedendo a indagações, fui informado de que efetivamente se encontrava ali um comissário de nome James Browner, que se portara durante a viagem de maneira tão estranha que o capitão se vira forçado a dispensá-lo de suas funções. Descendo à sua cabina, fui encontrá-lo sentado num caixote, com a cabeça entre as mãos, agitando-se como um demente. É um tipo corpulento, robusto, de rosto escanhoado e pele trigueira — meio parecido com Aldrige, que nos auxiliou no caso da falsa lavanderia. Quando soube do objetivo de minha visita, pôs-se de pé num salto felino, e eu já estava com o apito na boca para chamar dois homens da polícia fluvial que me esperavam do lado de fora quando ele, dando mostras de completa falta de ânimo, estendeu maquinalmente as mãos às algemas, sem opor a menor resistência. Levamo-lo imediatamente para a prisão, juntamente com o caixote, que pensávamos pudesse conter algo de acusador; no entanto, além de um facão afiado, como os usados pela maioria dos marinheiros, nada encontramos que merecesse nosso trabalho. Mas verificamos não serem necessárias mais provas, pois, uma vez diante do inspetor de serviço, pediu licença para fazer uma declaração que, como é natural, foi anotada literalmente pelo nosso taquígrafo. Mandamos tirar três cópias datilografadas, das quais lhe mando uma. A coisa, como sempre imaginei, resolveu-se de maneira extremamente simples. Todavia, fico-lhe agradecido pela sua gentil assistência na investigação deste caso. Com as melhores saudações, creia-me seu amigo devotado, G. Lestrade." — Hum! A investigação era realmente muito simples — comentou Holmes; — no entanto, não creio que assim lhe parecesse quando nos procurou pela primeira vez. Vejamos, entretanto, o que diz Jim Browner. Eis sua declaração,


feita diante do inspetor Montgomery, no posto policial de Shadwell, que tem a vantagem de ter sido registrada com as próprias palavras do criminoso: "Se tenho alguma coisa que dizer? Sim, muitíssimo. Sinto necessidade de aliviar minha consciência. Se quiserem, podem enforcar-me ou deixar-me em paz. Pouco me importa. O que posso afirmar é que não preguei o olho desde que fiz aquilo, e não sei se jamais conseguirei fazê-lo. Algumas vezes é o rosto dele que vejo, mas é o dela que me surge diante dos olhos com mais freqüência. Não consigo fazê-los desaparecer de minha frente. Ele fita-me, carrancudo e ameaçador; ela, porém, olha-me com surpresa. Ah! Pobrezinha! O que não teria sentido ao ver a morte estampada num rosto onde até então só vira amor! "No entanto, a culpa foi toda de Sara, e possa a maldição de um desgraçado cair sobre sua cabeça e fazer-lhe apodrecer o sangue nas veias! Não digo isso para me inocentar; tinha recomeçado a beber, como um bruto que sou. Mas tudo isso ela me teria perdoado; ela continuaria ligada a mim como uma corda à sua caçamba, se a figura daquela mulher nunca tivesse escurecido a porta de nosso lar. Pois Sara Cushing amava-me — esta foi a origem da tragédia —, amava-me até sua paixão desvairada se transformar em ódio venenoso quando percebeu que para mim tinham mais valor as pegadas de minha mulher na lama do que todo o seu corpo e alma juntos. "Eram três irmãs. A mais velha era uma boa criatura; a segunda, um demônio, e a terceira, um anjo. Quando me casei, Sara tinha trinta e três anos, e Mary, vinte e nove. No início, a felicidade era completa em nosso lar, e em toda Liverpool não existia melhor esposa do que minha Mary. Certo dia convidamos Sara para passar uma semana conosco, mas a semana converteu-se num mês, os meses sucederam-se, e ela acabou por tornar-se pessoa da casa. "Minha situação financeira naquela época era boa, tínhamos começado a economizar algum dinheiro, e tudo corria às mil maravilhas. Meu Deus, quem poderia supor que iríamos terminar assim? Quem poderia ao menos imaginálo? "Freqüentemente, eu passava os fins de semana em casa, e algumas vezes, quando o navio ficava retido à espera de carga, tinha sete dias de licença, o que me proporcionava maior contato com minha cunhada. Era uma bela mulher, alta, morena e enérgica, de porte altivo e tinha olhos que pareciam lançar chispas de fogo. Todavia, quando a pequenina Mary estava em casa, nem pensava nela, e isso eu juro pela esperança que tenho na misericórdia divina. "Às vezes, tinha a impressão de que ela desejava ficar só comigo ou procurava convencer-me a sair a passeio em sua companhia. No entanto,


jamais dei importância a isso. Mas certa noite meus olhos abriram-se. Tinha desembarcado e, chegando a casa, encontrei apenas Sara à minha espera. "— Onde está Mary? — perguntei. "— Oh! Saiu para pagar umas contas. "Fiquei impaciente e pus-me a andar de um lado para outro na sala. "— Você não pode ficar sossegado cinco minutos sem Mary, Jim? — disse ela. — É bem pouco lisonjeiro para mim que não possa contentar-se com minha companhia por tão pouco tempo. "— Não fique zangada comigo, minha cara — desculpei-me, estendendo-lhe a mão num gesto carinhoso. Ela, porém, tomou-a de súbito entre as suas, que queimavam como se estivesse com febre. Fitei-a nos olhos e compreendi tudo num relance. Não tivemos necessidade de falar, nem ela nem eu. Assumi um ar severo e retirei a mão de entre as suas. Ela permaneceu algum tempo em silêncio, depois levantou o braço e bateu-me no ombro. "— Paciência, meu velho — disse-me e, com uma espécie de risada irónica, saiu da sala. "Pois bem, desse dia em diante Sara passou a odiar-me de todo o coração. E de que ódio é capaz aquela mulher! Fui idiota por deixá-la continuar a viver conosco, um rematado idiota; mas nunca disse nada à minha mulher, pois sabia que a iria desgostar. Tudo ficou como antes; todavia, algum tempo depois, principiei a notar certas mudanças em Mary também. Ela, que sempre se mostrara confiante e inocente, tornara-se esquisita e suspeitosa. Queria saber onde eu estivera e o que havia feito, a proveniência de minhas cartas, o conteúdo de meus bolsos e outras tantas tolices. Dia a dia se tornava mais estranha e irritável, provocando discussões pêlos motivos mais fúteis. Tudo isso me deixava francamente perplexo. Sara passou a evitar-me; no entanto, ela e Mary eram inseparáveis. Percebo agora que ela conspirava contra mim e envenenava a alma de minha mulher. Entretanto, eu, cego e cretino, não via nada disso. Foi então que quebrei a promessa e recomecei a beber, mas não creio que o tivesse feito se Mary continuasse a ser a mesma de antigamente. Tinha, então, motivos bastantes para se sentir desgostosa comigo, e a cisão entre nós aumentava cada vez mais. Entretanto, apareceu em cena esse maldito Alec Fairbairn, e a situação piorou sensivelmente. "Foi para ver Sara que ele foi pela primeira vez à minha casa, mas logo suas visitas destinavam-se a todos nós, pois era um homem de maneiras insinuantes e arranjava amigos aonde quer que fosse. Rapaz agradável, audacioso, elegante, vira meio mundo e sabia falar do que vira. Era sem dúvida bom companheiro, e sua educação excedia a de um marujo. Por isso, julgo que houve uma época em que viajava mais como passageiro do que como tripulante. Durante um mês não fez outra coisa senão ir à minha casa, e nem por um momento me passou pela cabeça a ideia de que qualquer mal pudesse resultar de seus modos gentis e suaves. Finalmente, porém, algo me fez


suspeitar, e desde então minha tranqüilidade desapareceu para sempre. "Na essência, o episódio foi insignificante. Eu entrara em casa de improviso e, ao transpor a soleira da porta, notei um clarão de alegria no rosto de minha mulher. Contudo, quando viu que se tratava de mim, essa luz desapareceu, e ela voltou-se com ar desapontado. Isso bastou-me. Não existia ninguém, além de Alec Fairbairn, cujo andar ela pudesse confundir com o meu. Se naquele momento o tivesse ao alcance das mãos, tê-lo-ia morto, pois sempre que fico fora de mim procedo como um louco. Mary leu nos meus olhos a fúria demoníaca, correu para mim e segurou-me pela manga do casaco. "— Não, Jim, pelo amor de Deus! — suplicou. "— Onde está Sara? — perguntei. "— Na cozinha — respondeu. "— Sara — gritei —, não quero que Fairbairn ponha mais os pés aqui dentro. "— E por quê? "— Porque assim o ordeno. "— Oh! — exclamou —, se meus amigos não são dignos desta casa, eu também não o sou. "— Faça como quiser — repliquei-lhe —, mas se Fairbairn tornar a aparecer por aqui, mandar-lhe-ei uma de suas orelhas como lembrança. "Acredito que a tenha assustado com a expressão de meu rosto, pois não disse mais nada, e no dia seguinte abandonou nossa casa. "Ora, não sei se essa mulher agia assim por simples maldade, ou se pensava poder revoltar-se contra minha mulher, encorajando-a a trilhar seu caminho. Seja como for, ela arranjou uma casa a dois quarteirões de distância, onde alugava aposentos a marinheiros. Fairbairn costumava alojar-se lá, e Mary ia freqüentemente tomar chá com a irmã e ele. Quantas vezes ela foi, não sei dizer. Certo dia, porém, segui-a, e, ao chegar à porta, Fairbairn fugiu covardemente, pulando o muro do quintal. Jurei a minha mulher matá-la se a encontrasse novamente na companhia daquele homem, e levei-a para casa, soluçante e trêmula, branca como uma folha de papel. Já não existia entre nós a menor sombra de amor. Percebia o ódio e o temor que ela me votava, e quando, por causa disso, me punha a beber, o desprezo juntava-se a esses sentimentos. "Sara, entretanto, compreendeu que não lhe era possível ganhar o suficiente para viver em Liverpool. Por isso — pelo menos assim o creio — voltou a viver com a irmã em Croydon, mas a situação em minha casa continuou no mesmo estado vacilante de sempre. Finalmente, chegou esta última semana e toda a maldição e ruína que se seguiram.


"Foi assim. Tínhamos embarcado no May Day para uma viagem de sete dias, mas, devido a certa avaria a bordo, fomos obrigados a permanecer no porto durante doze horas. Deixei o navio e fui para casa, pensando na surpresa que iria causar a minha mulher e esperando que ela talvez ficasse contente por me ver de volta tão cedo. Essa idéia ainda me empolgava quando dobrei a esquina de minha rua, no momento em que passou por mim um carro, em cujo interior vi minha mulher sentada ao lado de Fairbairn, ambos conversando e rindo animadamente, sem notarem minha pessoa, que os observava imóvel na calçada. "Asseguro-lhes que, daquele momento em diante, já não fui senhor de mim próprio, e tudo me parece um sonho confuso ao recordar os acontecimentos. Nestes últimos tempos andara bebendo muito, e as duas coisas juntas uniamse para me transtornar completamente. Agora sinto qualquer coisa a bater-me na cabeça como o malho de um britador, mas naquela manhã tinha todo o Niagara assobiando e zumbindo nos ouvidos. "Corri desabaladamente atrás do carro. Tinha nas mãos um pesado bastão de carvalho e afirmo-lhes que, desde o princípio, comecei a ver tudo vermelho; no entanto, a corrida tornou-me também astuto e, de vez em quando, procurava ficar um pouco para trás, a fim de ver sem ser visto. Dentro de pouco tempo eles pararam na estação. Havia muitas pessoas junto à bilheteria, e pude, portanto, aproximar-me deles sem ser notado. Compraram bilhetes para New Brighton; fiz o mesmo, mas instalei-me três vagões atrás. Chegados a seu destino, desceram e dirigiram-se para a praia. Eu acompanhava-os sempre a cerca de uma centena de metros de distância. Vi-os, por fim, alugar um barco e sair remando, pois fazia muito calor e eles julgavam sem dúvida que sobre a água o ar estaria mais fresco. "Na verdade, era como se estivessem em minhas mãos. O dia estava algo enevoado, e nada se via para além de certa distância. Aluguei também um barco e fui no encalço deles. Conseguia distinguir-lhes o contorno do barco, mas iam quase tão depressa como eu e já deviam estar a um quilômetro e meio da praia quando os alcancei. A neblina formava como que uma cortina à nossa volta, e dentro dela estávamos os três. Deus meu! Jamais poderei esquecer a expressão de seus rostos quando viram quem estava no barco que se aproximava! Ela soltou um grito de pavor, ele pôs-se a praguejar como um alucinado e atirou um remo em minha direção, pois deve ter lido nos meus olhos um presságio de morte. Eu esquivei-me ao golpe e atingi-o com meu bastão, que lhe espatifou a cabeça como se fosse um ovo. É possível que a tivesse poupado, apesar de toda a minha loucura. Ela, porém, lançou os braços em torno dele, gritando desesperadamente e chamando-o 'Alec'. Desferi, então, novo golpe, e prostrei-a a seu lado. Sentia-me qual besta feroz que houvesse provado sangue. Se Sara estivesse presente, por Deus, ter-se-ia juntado a eles. Puxei de minha faca e... bem, chega! Já disse o bastante.


Experimentava certa alegria selvagem ao pensar no que Sara sentiria diante daqueles dois testemunhos do resultado de suas intrigas. Amarrei então os corpos ao barco, quebrei uma tábua do fundo e fiquei ali perto até submergirem de todo. Sabia muito bem que o proprietário da embarcação julgaria que ambos tinham perdido o rumo na névoa, sendo impelidos para o alto-mar. Limpei-me bem. Depois regressei a terra e reembarquei em meu navio, sem que pessoa alguma suspeitasse de tudo quanto se passara. Naquela noite, preparei o pacote para enviá-lo a Sara Cushing, e no dia seguinte remeti-o de Belfast. "E aqui têm toda a verdade. Podem enforcar-me ou fazer o que quiserem de mim, pois não poderão punir-me mais do que já fui punido. Não consigo fechar os olhos sem ver aqueles rostos a fitar-me. . . como o fizeram quando viram meu barco surgir ao lado do deles dentre a névoa. Matei-os rapidamente, mas eles estão me matando devagarinho; sei que, se isso durar mais uma noite, ficarei louco ou morrerei antes do amanhecer. O senhor não me porá sozinho numa cela, não é verdade? Pelo amor de Deus, não o faça. Oxalá seja tratado no dia de sua agonia como me tratar agora!" — Qual é o significado disso tudo, Watson? — proferiu Holmes, em tom solene, ao terminar a leitura. — Que propósito anima este círculo de desgraça, violência e terror? Deve tender para um fim. De outro modo, nosso universo seria governado pelo acaso, o que é inadmissível. Mas qual será esse fim? Eis o imenso, imutável e eterno problema, de cuja solução a mente humana se encontra mais longe do que nunca.


Sherlock Holmes em: O cĂ­rculo vermelho Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org


— Com franqueza, sra. Warren, não vejo qualquer motivo para estar inquieta, nem vejo por que eu deveria intervir neste assunto. O meu tempo é precioso e tenho outras coisas em que me ocupar. Assim se exprimiu Sherlock Holmes, e voltou a absorver-se em seu enorme álbum de recortes, no qual estava incluindo e classificando novo material. Mas a senhoria tinha a pertinácia e também a astúcia característica de seu sexo, e não se deu por vencida. — No ano passado, o senhor resolveu uma dificuldade para um pensionista meu, o sr. Fairdale Hobbs — insistiu ela. — Ah, sim!... Coisa muito .simples. — Todavia, ele não se cansa de falar nisso... sua gentileza e a maneira como o senhor esclareceu tão obscuro assunto. Lembrei-me das palavras dele, quando eu própria me vi envolvida na dúvida e na escuridão. Estou certa de que, se quisesse, poderia ajudar-me. Holmes era acessível pelo lado da lisonja e também, façamos-lhe justiça, pelo da cortesia. Essas duas forças conjugadas fizeram-no pôr de lado o pincel de goma-arábica, com um suspiro de resignação, e recostar-se na cadeira. — Está bem, sra. Warren, ouçamos o caso. O fumo não a incomoda? Obrigado, Watson... Os fósforos, por favor! Se não me engano, a senhora está preocupada porque seu novo inquilino se fecha no quarto e a senhora não consegue vê-lo. Ora, se eu fosse seu pensionista, garanto-lhe que não me veria durante semanas a fio. — Não duvido, sr. Holmes; mas o caso aqui é diferente! Ando apavorada, não consigo pregar o olho, tal é meu medo. Ouvir o ruído dos passos nervosos, de um lado para outro, desde manha cedo até altas horas da noite, e não avistálo um momento sequer... está além de minhas forças. Meu marido está tão impressionado como eu; mas ele trabalha fora o dia todo, ao passo que eu não tenho um instante de sossego. Por que vive escondido? Que terá feito? Com exceção da criada, fico todo o santo dia sozinha com ele em casa, e sinto que meus nervos não poderão suportar por muito tempo tal situação. Holmes inclinou-se para a frente e pousou os dedos longos e finos sobre os ombros da mulher. Quando desejava, possuía um poder quase hipnótico de acalmar o próximo. Toda a expressão de temor desapareceu dos olhos dela, e as feições agitadas tranqüilizaram-se e readquiriram a aparência normal. Ela sentou-se na cadeira que ele lhe indicara. — Se me encarregar deste caso, será preciso pôr-me a par de todos os pormenores — advertiu. — Reflita com calma. A mais simples minúcia pode ser essencial. A senhora disse que esse homem apareceu há dez dias e pagou duas semanas adiantadas de quarto e comida? — Perguntou-me quais eram as condições, e eu lhe respondi: "Cinqüenta


xelins por semana". No sótão da casa existe uma salinha e um quarto de dormir, ambos mobiliados. — E então? — Ele afirmou que pagaria cinco libras por semana se eu aceitasse suas condições. Que havia de fazer? Sou pobre, sr. Holmes; meu marido ganha pouco e esse dinheiro significava muito para mim. Tirou uma nota de dez libras do bolso e mostrou-a. "Terá outro tanto de quinze em quinze dias, durante muito tempo, se atender às minhas condições", disse-me. "Se não quiser, nada mais teremos a conversar." — E quais eram essas condições? — Bem, ele queria ter a chave da casa. Até aí, nada de extraordinário, pois os pensionistas habitualmente a têm. Além disso, devia deixá-lo inteiramente só, e nunca perturbá-lo sob nenhum pretexto. — Nada vejo de extravagante nisso. — Parece razoável, sr. Holmes. Entretanto, isso excede todos os limites do bom senso. Há dez dias ele vive ali, e nem meu marido, nem eu, nem a criada, conseguimos pôr lhe os olhos em cima uma única vez. Ouvimos seu andar rápido, de um lado para outro, noite e dia, sem cessar, pois nunca mais saiu de casa, exceto na primeira noite. — Ah! Então saiu na primeira noite? — Sim, senhor, e voltou muito tarde, depois de todos nos encontrarmos já deitados. Avisou-me disso depois de ter alugado o apartamento, e pediu-me que não trancasse a porta. Ouvi-o subir as escadas quando já passava da meia-noite. — E as refeições? — Recomendou-me expressamente que, quando tocasse a campainha, deveríamos colocar a refeição sobre uma cadeira do lado de fora da porta. Quando terminasse, tocaria de novo, e nós retiraríamos os pratos da mesma cadeira. Se tem necessidade de alguma coisa, escreve em letra de forma num pedaço de papel e coloca-o do lado de fora.

— Em letra de forma? — Sim, senhor. Escreve em letra de forma e a lápis a coisa que deseja, e nada mais. Aqui está um desses pedacinhos de papel que eu trouxe para lhe


mostrar: SABÃO. Eis outro: FÓSFORO. Este ele deixou na primeira manhã: DAILY GAZETTE. Entrego-lhe esse jornal todas as manhãs, com a primeira refeição. — Caramba, Watson! — exclamou Holmes, fitando com grande curiosidade os pedacinhos de papel que a sra. Warren lhe entregara. — Este é na verdade um caso muito estranho. A reclusão eu compreendo, mas por que escrever em letra de forma? Dá mais trabalho. Por que não escrever, simplesmente, em caracteres normais? Que significa isso, Watson? — Ele não quer revelar a própria letra.

— Mas qual será o motivo? Que importância pode ter para ele que sua senhoria veja uma palavra escrita com sua caligrafia? É possível, contudo, que seja como você diz. Mas qual a razão de mensagens tão lacônicas? — Não consigo entender. — Isso abre um agradável campo à especulação inteligente. As palavras foram escritas com lápis grosso, de tipo comum. Repare que o papel foi rasgado nesse ponto, depois de a palavra ter sido escrita, de modo que o s de sabão está cortado ao meio. Sugestivo, não lhe parece, Watson? — Ele o teria feito por precaução? — Exatamente. Havia provavelmente qualquer sinal, qualquer impressão digital, qualquer coisa, enfim, que poderia trair-lhe a identidade. Escute, sra. Warren, a senhora afirma que esse homem é de estatura mediana, moreno e usa barba. Que idade terá ele? — Deve ser ainda novo... não deve ter mais de trinta anos. — Muito bem, pode dar-me outras indicações? — Fala inglês corretamente, porém pelo sotaque parece-me estrangeiro. — E estava bem vestido? — Elegantemente vestido... um perfeito cavalheiro. Usava roupa escura... nada que desse na vista. — Não deu o nome? — Não. — E não tem recebido cartas ou visitas? — Absolutamente nada.


— Mas, naturalmente, a senhora ou a criada entram no quarto pela manhã, não é verdade? — Não; ele próprio cuida de tudo. — Santo Deus! É sem dúvida extraordinário. E quanto à bagagem? — Trazia apenas uma enorme mala castanha... nada mais. — Bem, parece que não contamos com muito material. Tem certeza de não ter saído nada do aposento... absolutamente nada? A sra. Warren extraiu da bolsa um envelope, do qual fez cair sobre a mesa dois fósforos queimados e uma ponta de cigarro. — Estavam na bandeja hoje de manhã. Trouxe-os porque ouvi dizer que o senhor é capaz de descobrir grandes coisas através de simples ninharias. Holmes encolheu os ombros. — Não vejo nada de significativo nisso — observou. — Esses fósforos foram evidentemente usados para acender cigarros, o que se pode verificar pelo pequeno tamanho da parte queimada. Para acender um cachimbo ou um charuto, consome-se metade do fósforo. Mas, por Deus, esta ponta de cigarro é muito interessante! Se não me engano, a senhora disse que seu pensionista usa barba e bigode, não é? — Sim. — É estranho! Eu diria que este cigarro só podia ter sido fumado por uma pessoa de rosto barbeado. Caramba, Watson! Até seu modesto bigode se teria chamuscado. — Talvez tivesse usado boquilha — sugeri. — Não, não; a extremidade indica o contrário, não é possível haver duas pessoas no quarto, sra. Warren? — Não, sr. Holmes. Ele come tão pouco, que às vezes pergunto a mim própria como consegue manter-se em pé. — Está bem; creio que vamos ter de esperar até possuirmos outro elemento. Afinal de contas, a senhora não tem do que se queixar. O aluguel está pago, e não se pode dizer que ele seja um inquilino incômodo, apesar de estranho. Ele lhe paga regiamente, e, se deseja manter-se oculto, a senhora não tem o direito de interferir. Não temos o menor pretexto para violar sua clausura, até que surja qualquer razão para pensarmos que existe no fato um motivo criminoso. Aceito a investigação deste caso, e pode ficar descansada que farei o possível para resolvê-lo. Comunique-me se acontecer algo de novo, e conte com meu auxílio, se dele tiver necessidade.


Depois de a senhoria ter saído, Holmes declarou: — Incontestavelmente, Watson, este caso oferece aspectos interessantes. Pode, é claro, não ter significado nenhum, e tratar-se apenas de mera extravagância individual, mas pode também ser muito mais profundo do que parece à primeira vista. A idéia que nos acode de imediato ao espírito é certamente a possibilidade de que naquele quarto esteja morando uma pessoa inteiramente diversa da que o alugou. — Por que supõe tal coisa? — Ora, pondo de parte a ponta de cigarro, não é curioso que a única vez que o pensionista saiu fosse logo depois de ter alugado o quarto? Ele voltou... ou melhor, alguém voltou, quando todos estavam dormindo. Não possuímos prova alguma de que a pessoa que regressou tenha sido a mesma que saiu. Além disso, o pensionista falava bem inglês. Todavia, este outro escreve "fósforo", quando devia ter escrito "fósforos". Suponho que a palavra tenha sido tirada de um dicionário, onde os vocábulos aparecem apenas no singular. O estilo lacônico talvez esconda a ignorância da língua inglesa. Sim, Watson, há bons motivos para suspeitar de que tenha havido uma troca de inquilinos. — Mas com que intenção? — Ah! Eis o problema. Sem dúvida, a linha de investigação a seguir apresentase bastante clara — disse meu amigo, retirando da estante um grosso álbum, no qual colava, diariamente, a seção dos principais jornais londrinos reservada a avisos de pessoas desaparecidas. "Deus meu!", exclamou, folheando-lhe as páginas. "Que coro de gemidos, choros e lamentações! Que amontoado de acontecimentos estranhos! Todavia, este é sem dúvida o campo mais precioso que jamais houve para quem se dedica ao estudo dos fatos extraordinários! A pessoa que nos interessa encontra-se só, e não pode receber cartas sem quebra do absoluto sigilo que as circunstâncias lhe impõem. Como pode chegar até ela uma notícia ou qualquer recado do mundo exterior? Ao certo, por meio de anúncios publicados num jornal. Não parece haver outra solução, e felizmente já sabemos qual é esse jornal. Aqui estão os recortes do Daily Gazette dos últimos quinze dias: 'Senhora com uma estola preta no Prince's Shating Club...', podemos passar adiante. 'Certamente Jimmy não quererá despedaçar o coração de sua mãe. . .', isso parece não ter importância. 'Se a dama que desfaleceu no ônibus de Brixton. . .', não me interessa. 'Todo dia meu coração anseia. . .' Lamentações, Watson, lamentações infindáveis. Ah!, eis algo mais provável. Ouça isto: 'Tenha paciência. Encontrarei qualquer meio seguro de comunicação. Por enquanto, esta coluna. — G.' Este anúncio foi publicado dois dias depois da chegada do inquilino da sra. Warren. Não parece plausível? O nosso ente misterioso podia entender inglês, apesar de só saber escrever em letra de forma. Vamos ver se encontramos mais alguma coisa. Sim, aqui está... três dias mais tarde: 'Estou tomando providências. Paciência e cautela. As nuvens passarão. — G.' Uma semana em branco depois desse aviso. Vem em seguida


algo mais definido: 'O caminho está se tornando mais claro. Se me for possível escrever em código, lembre-se do combinado: um, a; dois, B; e assim por diante. Terá notícias em breve. — G.' Isso veio no jornal de ontem; o de hoje não traz nada. Pareceme muito apropriado ao pensionista da sra. Warren. Se esperarmos um pouco, Watson, creio que o caso se tornará mais inteligível." E, de fato, assim sucedeu, pois na manhã seguinte encontrei meu amigo em pé, junto à lareira, com as costas voltadas para o fogo e um sorriso radioso de satisfação que lhe iluminava o rosto. — Que pensa disto, Watson? — gritou, apanhando o jornal de cima da mesa. — "Casa alta, de tijolos vermelhos, com remates de pedra branca. Terceiro andar. Segunda janela à esquerda. Depois do crepúsculo. — G." Parece-me bastante claro. Acho que depois do almoço devemos fazer um pequeno reconhecimento pelos arredores da casa da sra. Warren. Ah, minha cara senhora, que notícias nos traz? Nossa cliente entrara de improviso na sala, com uma energia tão explosiva, que nos indicava ter ocorrido um fato novo e inesperado. — É caso de polícia, sr. Holmes! — berrou. — Não quero saber de mais nada! Ele terá de sair de lá! Imediatamente, com bagagem e tudo. Ia falar com ele diretamente, mas achei melhor ouvir sua opinião primeiro. Minha paciência está esgotada, e quando penso que chegaram a bater em meu marido... — Bateram em seu marido? — Maltrataram-no. — Mas quem o maltratou?

— Ah! É isso que nós queríamos saber! Aconteceu hoje muito cedo. Meu marido é encarregado do livro de ponto da firma Morton & Waylight, na Tottenham Court Road. Costuma chegar à fábrica antes das sete. Ora, hoje de manhã, não dera ainda dez passos pela rua quando dois homens o atacaram pelas costas, lhe puseram um pano sobre a cabeça e o jogaram dentro de um carro parado junto à calçada. Depois de rodarem com ele durante uma hora, abriram a porta e empurraram-no para fora. Ele ficou tão tonto com a queda que nem chegou a ver o destino do carro. Ao voltar a si, verificou que estava em Hampestead Heath; então, tomou um ônibus e foi para casa, e lá o deixei, deitado no sofá, para vir imediatamente procurá-lo a fim de lhe contar o sucedido. — Muito interessante — comentou Holmes. — Ele chegou a observar a aparência desses homens... Ouviu-os falar?


— Não; está completamente aturdido. Sabe apenas que se sentiu levantado do chão como num passe de mágica, e devolvido à terra como por encanto. Os atacantes eram pelo menos dois ou três. — E a senhora relaciona essa agressão com seu pensionista? — Ora, nós moramos lá há quinze anos e nunca nos sucederam tais coisas. Já estou farta dele. Afinal, o dinheiro não é tudo. Farei com que saia de minha casa antes do anoitecer. — Um momento, sra. Warren. Não aja precipitadamente. Começo a suspeitar de que essa história é mais importante do que parecia à primeira vista. É evidente, agora, que algum perigo ameaça seu inquilino. E é igualmente evidente que seus inimigos, que se encontravam à espera dele nas proximidades da casa, confundiram seu marido com ele, devido ao nevoeiro matinal. Ao perceberem o engano, soltaram-no. Quanto ao que teriam feito se não tivessem se enganado, só nos resta conjeturar. — Diga-me então o que devo fazer, sr. Holmes. — Desejaria muito ver seu pensionista, sra. Warren. — Não sei como poderá fazê-lo, a menos que arrombe a porta. Ouço-o sempre abrindo-a, quando desço a escada depois de deixar a bandeja sobre a cadeira. — Ele precisa recolher a bandeja. Certamente podemos esconder-nos e vê-lo nessa ocasião. A senhoria refletiu um instante. — Há um pequeno quarto em frente. Poderia talvez colocar um espelho, de forma que, se o senhor estivesse atrás da porta... — Ótimo! — exclamou Holmes. — A que horas ele almoça? — Por volta da uma. — Então o dr. Watson e eu estaremos lá a tempo. Passe bem. Ao meio-dia e meia, subíamos as escadas da casa da sra. Warren — um prédio de tijolos amarelos, alto e esguio, na Great Orme Street, uma viela estreita situada a noroeste do Museu Britânico. Como fica na esquina, esse edifício permite uma boa visão da Howe Street, com suas casas mais requintadas. Holmes apontou-me, sorrindo, uma delas, que se salientava pela altura numa fileira de prédios de apartamentos. — Veja, Watson! — observou. — "Casa alta, de tijolos vermelhos, com remates de pedra branca." É aquele, sem dúvida, o posto de sinalização. Já conhecemos a casa e o código; o resto é simples. Há um cartaz com "Alugase" naquela janela. Trata-se evidentemente de um apartamento vazio, ao qual


o cúmplice tem acesso. Então, sra. Warren, quais são as novidades? — Está tudo pronto. Se quiserem subir agora, eu os conduzirei até lá. Ê melhor deixarem os sapatos aqui embaixo. Ela arranjara um excelente esconderijo. O espelho fora colocado de tal modo que, sentados no escuro, podíamos ver distintamente a porta em frente. Mal nos tínhamos instalado ali, depois de a sra. Warren ter se retirado, um tinir distante anunciou que nosso misterioso vizinho tocara a campainha. Logo em seguida, a senhoria apareceu com a bandeja, colocou-a sobre a cadeira junto da porta fechada e retirou-se a passos firmes. Acocorados um ao lado do outro, no ângulo da porta, não perdíamos de vista o espelho. Subitamente, enquanto o ruído dos passos da sra. Warren se extinguia no andar inferior, ouvimos o ranger de uma chave girando na fechadura, vimos a porta entreabrir-se e duas mãos finas introduziram-se velozes na fresta e levantaram a bandeja da cadeira. Quase no mesmo instante, porém, largaram-na precipitadamente, e eu vislumbrei, numa visão fugidia, um lindo rosto moreno, horrorizado, fitando a estreita abertura da porta do quarto onde nos encontrávamos. Em seguida, a porta fechou-se com estrondo, a chave girou novamente na fechadura e tudo ficou em silêncio. Holmes puxou-me pela manga do casaco e juntos descemos sorrateiramente a escada. — Voltarei à noitinha — disse ele para a sra. Warren, que nos esperava, ansiosa. — Creio, Watson, que poderemos discutir melhor a situação em nossa casa. "Minha hipótese, como vê, provou estar certa", observou-me, falando das profundezas de sua cômoda poltrona. "Houve uma substituição de inquilinos. O que não previ, Watson, era que fôssemos encontrar uma dama e, por sinal, uma dama invulgar." — Ela nos viu. — De qualquer modo, viu algo que a alarmou. Isso é evidente. A seqüência dos acontecimentos parece agora bastante clara, não acha? Um casal procura refúgio em Londres devido a um perigo terrível e iminente. Podemos avaliar esse perigo pelo rigor de suas precauções. O homem tem um trabalho qualquer que precisa executar, e deseja conservar a mulher rodeada de segurança, enquanto desempenha sua missão. O problema não era fácil, e no entanto ele o resolveu de maneira original, e com tanta eficiência, que a presença da mulher é desconhecida até da dona da casa, encarregada de lhe levar as refeições. Explicam-se, assim, as mensagens em letra de forma: serviam para impedir que lhe descobrissem o sexo pela caligrafia. O homem não podia aproximar-se da mulher, pois desse modo a deixaria à mercê de seus inimigos. Sem possibilidade de se comunicar diretamente com ela, recorreu à coluna especial de um diário. Até aqui, tudo está claro.


— Mas o que há por trás disso tudo?

— Ah! Muito bem, Watson! Você, como sempre, se mostra essencialmente prático! O que há por trás disso tudo? O problema da sra. Warren, extravagante e algo cômico na aparência, aumenta de proporções e assume um aspecto mais sinistro à medida que avançamos em nossas pesquisas. Uma coisa podemos afirmar: não se trata de um simples caso de fuga amorosa. Você viu a expressão no rosto daquela mulher diante do possível perigo. Por outro lado, sabemos da agressão contra o dono da casa, a qual, sem dúvida, se destinava ao pensionista. Tais pormenores, e o impenetrável segredo de que procuram rodear-se, fazem-nos acreditar que estamos diante de um caso de vida ou morte. O ataque contra o sr. Warren demonstra ainda que os próprios inimigos, sejam quem forem, não deram pela troca de inquilinos. O caso é muito curioso e complexo, Watson. — Que razão tem você para levar avante a investigação? Que terá a ganhar com isso? — Ora essa! E o amor à arte, Watson? Suponho que, quando você se formou, teve ocasião de estudar casos sem pensar na parte pecuniária. — Tratava-se de enriquecer minha cultura, Holmes. — Não há limite para a cultura, Watson. Ela constitui uma série de lições, das quais a maior é sempre a última. Esse é um caso instrutivo. Ainda que não me traga dinheiro, nem fama, vale a pena resolvê-lo. Ao anoitecer, teremos dado mais um passo para sua completa elucidação. Quando regressamos à casa da sra. Warren, a vaga tristeza de uma noite hibernal adensara-se numa cortina cinzenta, que envolvia tudo na monotonia de sua cor mortiça, quebrada aqui e ali pelos nítidos retângulos amarelos das janelas iluminadas e pela claridade baça dos lampiões de gás. Ao espreitarmos pela janela, do interior sombrio da sala de estar da pensão, uma luz mais tênue tremeluziu alta na escuridão da noite. — Alguém se move naquele quarto — murmurou Holmes, encostando o rosto magro e atento à vidraça. — Sim, vejo sua sombra. Ei-lo de novo! Tem uma vela acesa na mão. Está olhando para cá. Quer ter a certeza de que ela está alerta. Agora começa a fazer sinais com a luz. Tome nota também da mensagem, Watson, a fim de que possamos comparar depois os resultados. Um lampejo apenas — é um a certamente. Atenção, agora! Quantos contou? Vinte. Exatamente, deve significar T. E agora? Outro T. Provavelmente, vai iniciar uma segunda palavra. Adiante... TENTA. Parou. Não pode ter acabado! ATTENTA não tem sentido em inglês. Nem dividindo em três palavras. . . AT. TEN. TA, salvo se T.A. corresponde às iniciais de alguém. Lá está ele de novo! Mas o que é isso? ATTE... Com os diabos! Trata-se ainda da mesma mensagem. Estranho, Watson, muito estranho! Ei-lo que recomeça! AT...ora, está repetindo a mesma coisa pela terceira vez. ATTENTA, três vezes!


Quantas mais irá repetir? Não, parece ter terminado. Retirou-se da janela. Que pensa disso, Watson? — Parece-me uma mensagem cifrada, Holmes. O meu companheiro soltou de súbito uma gargalhada. — E não muito obscura, Watson — observou. — Foi transmitida em italiano, é claro! O A final significa que era dirigida a uma mulher. "Cuidado! Cuidado! Cuidado!" Que lhe parece, Watson? — Creio que você acertou. — Não pode ser outra coisa. É uma mensagem urgentíssima, repetida três vezes para chamar a atenção. Mas cuidado com quê? Espere um pouco; ele se aproxima novamente da janela. Avistamos outra vez o perfil indistinto de um homem agachado, e o tremeluzir da chamazinha através da janela, dando início aos sinais. Seguiamse mais rápidos do que antes — tão rápidos que se tornava difícil contá-los. — PERICOLO... PERICOLO... Ei, o que quer dizer isso, Watson? "Perigo", não é? Sim, por Deus! A coisa é grave. Lá está de novo! PERI. Ora essa, que diabo... A luz se extinguira repentinamente, o quadrilátero brilhante da janela desaparecera, e o terceiro andar formava uma faixa escura ao redor do alto edifício, em contraste com as demais fileiras de vidraças cintilantes. Aquele último grito de alarme fora cortado de modo imprevisto. Como e por quem? Idêntico pensamento ocorreu-nos a ambos no mesmo instante. Holmes pôs-se subitamente de pé, como que impulsionado por uma mola. — Isso é sério, Watson — gritou. — Algo anormal está acontecendo ali! Por que motivo semelhante mensagem seria interrompida? Eu devia avisar a Scotland Yard... mas não temos tempo a perder. — Quer que chame a polícia? — Precisamos primeiro definir melhor a situação. Talvez ofereça uma interpretação mais inocente. Vamos, Watson, atravessemos a rua e vejamos se conseguimos resolvê-la sozinhos. II Enquanto nos apressávamos ao longo da Howe Street, lancei um olhar por cima do ombro para o prédio que tínhamos deixado, e ali avistei, vagamente recortada contra a janela do andar superior, a sombra de uma cabeça, uma cabeça feminina, em atitude tensa, rígida, esperando ansiosamente, na escuridão da noite, pelo prosseguimento daquela mensagem interrompida. À


porta do prédio de apartamentos da Howe Street estava encostado um homem embuçado num grosso sobretudo. Quando a luz do vestíbulo iluminou nossos rostos, ele estremeceu. — Holmes! — exclamou. — Você aqui, Gregson? — bradou meu companheiro, apertando a mão do policial da Scotland Yard. — Os namorados voltam sempre a encontrar-se! Que motivo o traz aqui? — Suponho ser o mesmo que o trouxe — respondeu Gregson —, embora não consiga compreender o que o colocou nesta pista. — Fios diferentes da mesma meada. Estive interceptando sinais. — Sinais? — Sim, daquela janela. Interromperam-se de repente, e aqui viemos para saber a causa. No entanto, desde que o caso está em suas mãos, não vejo razão para continuar minhas pesquisas. — Espere um pouco! — disse Gregson com ansiedade. — Devo fazer-lhe justiça, sr. Holmes, ao afirmar-lhe que sempre me senti mais capaz quando o tinha a meu lado. Esta casa tem apenas uma saída; ele não pode escapar. — Ele, quem? — Ah! Vejo que pelo menos por uma vez nos adiantamos. Não pode deixar de reconhecer que estamos na pista certa. Ao dizer isso, bateu fortemente com a bengala no chão. No mesmo instante, um cocheiro, empunhando um chicote, saltou de uma carruagem estacionada do lado oposto da rua e aproximou-se de nós. — Permita-me que lhe apresente o sr. Sherlock Holmes — disse, dirigindo-se ao novo personagem. — Este é o sr. Leverton, da Agência Americana Pinkerton. — O herói do mistério da caverna de Long Island? — indagou Holmes. — Tïnho imenso prazer em conhecê-lo. O americano, jovem calmo e prático, de rosto anguloso e bem-escanhoado, corou a essas palavras elogiosas. — Estou empenhado no caso mais importante de minha carreira, sr. Holmes. Se conseguir prender Gorgiano... — Como! O Gorgiano do Círculo Vermelho?


— Oh! Pelo que vejo, sua fama já chegou à Europa! Bem, soubemos de tudo a respeito dele na América. Sabemos com segurança que é responsável por mais de cinquenta assassinatos, mas não temos ainda em mãos nada de positivo que permita prendê-lo. Tenho-o seguido desde Nova York, e há uma semana que não o perco de vista em Londres, à espera do mais leve pretexto para agarrá-lo. O sr. Gregson e eu acompanhamos seus passos até aqui, e, como há somente uma saída nesta casa, ele não poderá escapar. Desde que entrou, já saíram três pessoas, mas poderia jurar que ele não era nenhuma delas. — O sr. Holmes referiu-se a sinais — observou Gregson. — Espero que, como de costume, esteja a par de muita coisa por nós ignorada. Em rápidas e precisas palavras, Holmes explicou a situação tal como se nos apresentava. O americano bateu com os punhos fechados um no outro, sem poder conter seu desapontamento. — Ele notou nossa presença! — exclamou. — Por que diz isso? — Ora, a situação é clara, não lhe parece? Ele estava enviando mensagens a um cúmplice: há vários deles em Londres. Subitamente, como o senhor acaba de afirmar, quando o avisava de que havia perigo, interrompeu-se. Isso só pode significar que nos avistou na rua ou compreendeu a iminência do risco, e portanto devia agir sem demora a fim de evitá-lo. Qual é sua opinião, sr. Holmes? — Que subamos já para nos inteirarmos pessoalmente de tudo quanto aconteceu. — Mas não temos mandado de prisão contra ele! — Ele se encontra num apartamento desocupado, em circunstâncias suspeitas — lembrou Gregson. — De momento, é o suficiente. Depois de lhe termos posto a mão em cima, veremos se Nova York não pode ajudar-nos a metê-lo na cadeia. Por ora, assumo a responsabilidade de sua prisão. Aos nossos investigadores pode faltar inteligência; nunca, porém, coragem. Gregson subiu as escadas para prender aquele temível assassino com a mesma calma e naturalidade de movimentos com que teria subido a escadaria principal da Scotiand Yard. O homem da Pinkerton tentou tornar-lhe a dianteira, mas Gregson manteve-o com firmeza atrás de si. Os perigos de Londres eram privilégio da polícia londrina. A porta do apartamento da ala esquerda do terceiro andar estava entreaberta. Gregson escancarou-a. Dentro, tudo era silêncio e trevas. Risquei um fósforo e acendi a lanterna do policial. Ao fazê-lo, e no momento em que a luzinha trêmula se transformou numa boa chama, todos soltamos uma exclamação sufocada de surpresa. Sobre as tábuas nuas do soalho havia um rasto de sangue fresco. As


pegadas rubras estavam voltadas para nós e provinham de outra sala interior, cuja porta se encontrava fechada. Gregson escancarou-a com um empurrão e iluminou o local com a luz clara da lanterna, enquanto todos nós olhávamos ansiosos por cima de seus ombros. No meio do pavimento da sala vazia, encontrava-se, em desalinho, o corpo de um homem de estatura avantajada, cujo rosto moreno, irrepreensivelmente barbeado, se contraía num esgar terrível e grotesco. Sua cabeça estava no meio de uma enorme poça de sangue, que se estendia, num amplo círculo úmido, pelas tábuas de madeira clara. Tinha os joelhos encolhidos, as mãos espalmadas num gesto de agonia, e do meio de seu pescoço largo e trigueiro, inclinado para trás, surgia o cabo branco de um punhal, profundamente enterrado na carne. Apesar da compleição gigantesca, o homem devia ter caído fulminado, como um boi no matadouro, sob aquele tremendo golpe. No soalho, junto de sua mão direita, via-se uma enorme adaga de dois gumes e cabo de chifre, e, ao lado dela, uma luva preta de pelica. — Santo Deus! É Black Gorgiano em pessoa! — gritou o agente americano. — Alguém se antecipou a nós desta vez. — Aqui está a vela, sr. Holmes, no parapeito da janela — disse Gregson. — Mas que diabo o senhor está fazendo? Holmes atravessara o quarto, acendera a vela e movia-a de um lado para o outro por trás da vidraça. Depois, espreitou para fora, através da escuridão, apagou a vela e atirou-a ao chão. — Creio que isto vai nos ser útil — disse. Voltou para junto de nós e ficou absorto em seus pensamentos, enquanto os dois profissionais examinavam o cadáver. — O senhor disse que viu três pessoas saindo do prédio quando estava à espera lá embaixo? — perguntou, afinal. — Observou-as de perto? — Observei. — Havia entre elas um homem de cerca de trinta anos, barba preta, moreno e de estatura mediana? — Sim; foi o último a sair.


— Se não me engano, é esse o homem. Posso dar-lhe a descrição, e, além disso, possuímos um excelente exemplar de sua pegada. Isso deve bastar-lhe.

— Parece-me pouco, sr. Holmes, entre os milhões de habitantes de Londres. — É provável. Foi por esse motivo que julguei conveniente chamar esta senhora em seu auxílio. Ao ouvi-lo, todos nos voltamos subitamente. No limiar da porta via-se uma mulher alta e bela — a misteriosa pensionista de Bloomsbury. A passos vagarosos penetrou no quarto, com o rosto pálido e angustiado, sem desviar os olhos do vulto sombrio estendido no soalho. — Os senhores o mataram! — balbuciou. — Oh! Dio mio! Os senhores o mataram! Mas, de súbito, inspirou profundamente e deu um pulo de alegria. Pôs-se a bailar ao redor do aposento, batendo as mãos, ao passo que seus olhos brilhavam de satisfação e a boca deixava escapar uma torrente de graciosas exclamações em italiano. Impressionava e surpreendia ao mesmo tempo ver uma mulher como aquela dominada por tamanho contentamento diante de tal espetáculo. Parou repentinamente e fitou-nos com ar interrogativo.

— Mas quem são os senhores? São da polícia, não é verdade? Mataram Giuseppe Gorgiano. Não foi assim? — Somos realmente da polícia, minha senhora. Ela olhou em torno de si, perscrutando as trevas do quarto. — Mas onde está Gennaro, então? — indagou. — Gennaro é meu marido. Gennaro Lucca. Chamo-me Emilia Lucca e somos ambos de Nova York. Onde está Gennaro? Há pouco, ele me chamou daquela janela e corri para cá sem demora. — Fui eu quem a chamou — explicou Holmes.


— O senhor! Como? — Seu código não era muito difícil. Sua presença aqui tornava-se necessária, e sabia que bastava dizer-lhe "Vieni" para fazê-la vir imediatamente. A formosa italiana olhou estupefata para meu companheiro. — Não compreendo como pôde saber disso. Como foi então que Giuseppe Gorgiano... Ela estacou de repente e seu rosto se iluminou de orgulho e satisfação. — Ah! Agora compreendo! Meu Gennaro! Meu incomparável, meu esplêndido Gennaro, que me tem protegido de todos os perigos, foi ele quem, com sua mão vigorosa, abateu o monstro! Oh! Gennaro, como você é maravilhoso! Que mulher poderá jamais ser digna de tal homem? — Ouça, sra. Lucca — disse o prosaico Gregson, segurando-a pela manga do vestido, com a mesma falta de consideração com que o faria a um vagabundo qualquer de Notting Hill. — Ainda não compreendi bem quem é e o que faz aqui, mas entendi o suficiente para saber que temos necessidade de sua presença na Scotland Yard. — Um momento, Gregson — interpôs Holmes. — Calculo que esta senhora esteja tão ansiosa por prestar-nos informações como nós estamos por ouvi-la. A senhora já percebeu que seu marido será preso e processado pela morte desse homem? Tudo quanto disser poderá ser usado como testemunho contra ele. No entanto, se julga que seu marido agiu por motivos não criminosos, não lhe será possível prestar melhor serviço do que contar-nos os fatos com todas as suas minúcias. — Agora que Gorgiano está morto, não tememos mais nada — replicou. — Ele era um demónio, um verdadeiro monstro, e não haverá juiz no mundo que ouse punir meu marido por tê-lo liquidado. — Nesse caso — observou Holmes —, parece-me aconselhável fecharmos esta porta à chave, deixarmos as coisas como as encontramos e acompanharmos esta senhora até seu quarto, a fim de tirarmos nossas conclusões do que ela tem a dizer. Meia hora mais tarde, estávamos todos sentados na saleta da sra. Lucca, ouvindo a emocionante narrativa dos sinistros acontecimentos de cujo desfecho fôramos testemunhas fortuitas. Ela falava num inglês rápido e fluente, mas muito desajeitado, ao qual, por amor à clareza, procurarei dar forma gramatical. — Nasci em Posilippo, perto de Nápoles — principiou —, sou filha de Augusto Barelli, que foi decano dos advogados napolitanos e, em certa ocasião, deputado por aquela região. Gennaro era empregado de meu pai, e eu me enamorei dele, como acontece a qualquer mulher. Ele não tinha dinheiro nem


posição... unicamente sua beleza, força e energia, e por isso meu pai foi contrário a nosso casamento. Fugimos juntos, casamo-nos em Bari e vendemos minhas jóias, a fim de obtermos o dinheiro necessário para ir à América. Isso sucedeu há quatro anos, e desde então temos vivido sempre em Nova York. "A princípio, a sorte nos foi favorável. Gennaro teve a oportunidade de prestar dm favor a um senhor italiano, salvando-o das garras de malfeitores num lugar chamado Bowery. Conseguiu assim um amigo poderoso, que se chamava Tito Castalotte e era o sócio mais importante da grande firma Castalotte & Zamba, a principal importadora de frutas de Nova York. O sr. Zamba é doente, e nosso novo amigo Castalotte exerce plenos poderes na firma, que tem a seu serviço mais de trezentos funcionários. Contratou meu marido, nomeou-o chefe de seção e demonstrou-lhe de todas as maneiras sua benevolência. Castalotte era solteirão, e creio que considerava Gennaro como seu filho, do mesmo modo que eu e meu marido lhe queríamos como a um pai. Tínhamos alugado e mobiliado uma casinha no Brookiyn, e o futuro parecianos assegurado, quando surgiu a nuvem negra que em breve haveria de toldar completamente o céu. "Certa noite, ao voltar do trabalho, Gennaro trouxe consigo um compatriota nosso, cujo nome era Gorgiano e que também viera de Posilippo. Possuía um físico avantajado, como viram pelo seu cadáver. Mas não tinha somente o corpo agigantado; tudo nele era grotesco, imenso e terrífico. Sua voz ressoava em nossa casa como o fragor do trovão. Mal havia espaço para a gesticulação de seus enormes braços, enquanto falava. Todas as ideias, sentimentos e paixões daquele homem eram exagerados e monstruosos. Falava, ou melhor, rugia com tal força que seus interlocutores não podiam fazer outra coisa senão ouvi-lo, calados, esmagados por aquela tremenda torrente de palavras. Flamejavam-lhe os olhos ao fitar alguém, fazendo com que se ficasse completamente à sua mercê. Era ao mesmo tempo extraordinário e assustador. Dou graças a Deus por ele estar morto! "Visitava-nos com freqüência, e eu percebia que Gennaro não se sentia mais feliz do que eu em sua presença. Meu pobre marido ficava sentado, pálido e abstraído, ouvindo suas infindáveis divagações insensatas sobre política e questões sociais. Gennaro não dizia nada, mas eu, que o conhecia muito bem, podia ler-lhe no rosto certa angústia que jamais lhe notara. A princípio julguei tratar-se de simples aversão; depois, gradualmente, compreendi que era algo muito mais forte. Era medo — um medo profundo, secreto, incontrolável. Naquela noite — a noite na qual me compenetrei do terror que o devorava —, pus-lhe os braços em redor do pescoço e supliquei-lhe, em nome do amor que me devotava e de tudo o que lhe era caro, que não me ocultasse o motivo pelo qual a presença daquele brutamontes tanto o transtornava. "Ele me contou, e, ao ouvi-lo, senti um frio intenso invadir-me o coração. Meu pobre Gennaro, nos primeiros tempos de sua juventude atormentada e infeliz, quando o mundo inteiro parecia voltar-se contra ele e as injustiças da vida quase o enlouqueciam, filiara-se a uma sociedade napolitana denominada Círculo Vermelho, ligada à dos antigos carbonários. Os juramentos e os


segredos dessa fraternidade eram espantosos, e, uma vez admitido em seu seio, nenhum homem podia evadir-se. Quando fugimos para a América, Gennaro pensou que se desligara dela para sempre. Qual não foi, pois, seu horror, quando deparou certa noite, na rua, com o próprio homem que o iniciara em Nápoles, o gigante Gorgiano, conhecido no sul da Itália pelo cognome 'Morte', pois tinha os braços tintos do sangue de incontáveis assassinatos. Transferira-se para Nova York a fim de evitar a polícia italiana, e estabelecera uma filial daquela terrível sociedade na terra que o acolhera. Tudo isso Gennaro me contou, e chegou a mostrar-me um convite que recebera naquele mesmo dia, encabeçado por um círculo vermelho, para uma reunião em determinado dia, à qual sua presença não era simplesmente solicitada, mas imposta. "Isso já era bastante mau, mas o pior ainda estava por vir. Tinha notado, há algum tempo, que quando Gorgiano ia visitar-nos, o que fazia quase todas as noites, se dirigia constantemente a mim; e, mesmo ao falar com meu marido, aqueles olhos flamejantes, aterradores, bestiais, estavam sempre voltados para minha pessoa. Uma noite, finalmente, seu segredo desvendou-se. Eu despertara em seu íntimo o que ele chamava 'amor' — amor de bruto, de selvagem. Gennaro ainda não regressara a casa quando ele chegou. Entrou de modo arrebatado, apertou-me nos seus braços de gorila contra o peito, cobriume de beijos e implorou-me que fugisse com ele. Eu me debatia e gritava, quando Gennaro apareceu e se atirou ao monstro. Mas Gorgiano, com um murro, prostrou-o sem sentidos e fugiu de nossa casa, aonde nunca mais voltou. Foi um inimigo mortal que arranjamos naquela noite. "Poucos dias mais tarde, efetuou-se a reunião. Gennaro voltou com uma fisionomia que sugeria ter ocorrido algo terrível. A coisa ia muito além do que poderíamos imaginar. Os fundos da organização provinham do dinheiro extorquido a italianos ricos, os quais eram ameaçados de violências se se recusassem a contribuir. Parece que tinham feito isso com Castalotte, nosso amigo e benfeitor... Este não só se recusara a ceder às ameaças, mas levara o caso ao conhecimento da polícia. Os bandidos resolveram por isso castigá-lo, de modo a fazer dele um exemplo capaz de intimidar qualquer outra vítima. De fato, na reunião decidira-se fazer com que sua casa fosse pelos ares com uma explosão de dinamite. Foi tirada a sorte para saber quem se incumbiria de pôr em prática o atentado. Quando enfiava a mão na sacola, Gennaro viu delinearse no rosto de nosso inimigo um sorriso cruel. Certamente tudo fora preparado, pois foi o disco com o círculo vermelho, o mandato do crime, que ele encontrou ao abrir a mão. Devia matar o melhor amigo ou expor-se, e a mim também, à vingança dos companheiros. Fazia parte de seus métodos infernais punir todo aquele que temiam ou odiavam, não só prejudicando sua própria pessoa, como também as que lhe eram caras, e a certeza disso enchia de terror o espírito do meu infeliz Gennaro e punha-o quase louco de apreensão. "Passamos toda a noite nos braços um do outro, tentando encorajar-nos mutuamente, a fim de enfrentar os perigos que se nos deparavam. O atentado fora fixado para a noite seguinte. Ao meio-dia, meu marido e eu estávamos a caminho de Londres, não sem avisar nosso benfeitor da ameaça que pairava sobre sua cabeça, e enviar também à polícia informações, a fim de lhe


salvaguardar a vida no futuro. "O resto os senhores já sabem. Tínhamos a certeza de que os inimigos nos acompanhariam como nossas próprias sombras. Gorgiano tinha razões particulares para se vingar, e de resto sabíamos perfeitamente como era capaz de ser desapiedado, astuto e incansável. Tanto a Itália como a América estão cheias de histórias de seu poder espantoso, e nunca, como nesta ocasião, ele deixaria de usá-lo. Meu querido marido aproveitou os poucos dias de calma e segurança que nossa partida repentina nos concedera para me arranjar um esconderijo onde nenhum perigo me ameaçasse. Do seu lado, desejava estar livre para poder manter-se em contato com a polícia americana e com a italiana. Eu própria ignoro onde ou como vivia. O pouco que sabia era através das colunas de um jornal. Certo dia, porém, ao olhar pela janela, notei dois italianos observando a casa, e compreendi que de algum modo Gorgiano descobrira nosso esconderijo. Finalmente, Gennaro disse-me — sempre por intermédio do jornal — que me transmitiria uma mensagem, por meio de sinais, de certa janela. No entanto, quando esses sinais vieram, verifiquei não passarem de advertências, as quais subitamente se interromperam. É evidente para mim, agora, que ele percebeu estar sendo seguido de perto por Gorgiano e que, graças a Deus, se encontrava preparado para enfrentá-lo quando chegasse o momento. E agora, senhores, desejaria saber se temos algo a recear da justiça, e se algum juiz do mundo poderia condenar meu Gennaro pelo que fez!" — Bem, sr. Gregson — disse o policial americano, dirigindo-se ao agente da Scotland Yard —, não sei qual é o ponto de vista britânico neste caso; julgo, porém, que em Nova York o marido desta senhora receberá um voto unânime de louvor e agradecimento. — Ela terá de ir comigo à presença do chefe — respondeu Gregson. — Se suas declarações forem confirmadas, não creio que ela ou o marido tenham muito o que temer. Mas, que diabo, o que não consigo atinar, sr. Holmes, é como o senhor se viu metido neste assunto. — Cultura, Gregson, cultura. Procuro ainda novos conhecimentos na velha universidade. Aí tem, Watson, mais um exemplo trágico e grotesco para juntar à sua coleção. A propósito, que tal uma noitada de Wagner, no Covent Garden? Ainda não são oito horas e, se nos apressarmos, chegaremos a tempo para o segundo ato.


Arthur Conan Doyle

Os Planos do Submarino Bruce-Partington Título original: The Bruce-Partington Plans

Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1908

Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de The Bruce-Partington Plans publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.

Na terceira semana de novembro de 1895, um denso e escuro nevoeiro abateu-se sobre a cidade de Londres. De segunda a quinta-feira, duvido que se pudesse avistar de nossas janelas da Baker Street o perfil das casas fronteiras. Holmes passara o primeiro dia conferindo o índice de seu enorme livro de referências. No segundo e terceiro, ocupara-se do assunto que se transformara, nos últimos tempos, em seu passatempo favorito: a música medieval. Porém, no quarto dia, depois de termos afastado nossas cadeiras da mesa onde tomamos a refeição matinal, vimos a untuosa e espessa névoa passar ainda em pesada massa compacta diante de nossos olhos e condensar-se em gotas oleosas nas vidraças, e o temperamento impaciente e enérgico de meu amigo começou a dar sinais de já não poder suportar aquela existência monótona. Pôs-se a andar de um lado para outro em nossa sala de estar, invadido por uma febre de energia sufocada, mordiscando as unhas, tamborilando nos móveis, enfurecido com aquela inação. — Nada interessante no jornal, Watson? — perguntou-me por fim. Sabia perfeitamente que, para Holmes, algo interessante significava acontecimento ou fato ligado à criminologia. Havia notícias de revolução, falava-se numa eventualidade de guerra e na iminência da mudança de governo, mas nada disso entrava na esfera de interesse de meu companheiro. Nas colunas dedicadas à crônica criminal não via coisa alguma que não fosse vulgar e fútil. Holmes resmungou, desapontado, e recomeçou seu incessante peregrinar entre as quatro paredes da sala. — O criminoso londrino é incontestavelmente desprovido de imaginação — observou, com a voz lamentosa do caçador que vê fugir-lhe a caça. — Espreite por essa janela, Watson. Repare como surgem os vultos dos transeuntes, quase invisíveis, para desaparecerem novamente no aluvião de névoa. Como o tigre pela brenha, o ladrão ou o assassino pode vaguear livremente por Londres, num dia como este, sem ser pressentido, até o momento de dar o golpe, perceptível apenas para sua vítima. — Houve somente alguns furtos sem importância — comentei. Holmes teve um gesto de desprezo. — Este cenário vasto e sombrio está reservado para algo muito mais importante — replicou. — É uma verdadeira ventura para a comunidade que eu não seja um criminoso. — De fato! — exclamei, convicto. — Suponhamos que eu fosse Brooks ou Woodhouse, ou qualquer um dos cinqüenta homens que possuem justificados motivos para me tirar a vida; por quanto tempo conseguiria sobreviver à minha própria perseguição? Um chamamento, uma emboscada, e tudo estaria acabado. Ainda bem que nos países latinos, onde há tantos assassinatos, não há dias de nevoeiro como este: Salve! Eis finalmente uma coisa que pode quebrar esta insipidez mortal.


Era a criada com um telegrama. Holmes abriu-o e caiu na gargalhada. — Ora, ora! Qual será a última? — exclamou. — Meu irmão Mycroft vem por aí. — E o que há de extraordinário nisso? — perguntei. — É como se víssemos um bonde numa estradazinha de campo. Mycroft tem seus caminhos habituais, por onde corre inexoravelmente. O apartamento na Pall Mall, o Clube Diógenes, Whitehal... eis sua esfera. Aqui só apareceu uma única vez. Que cataclismo o terá feito sair dos trilhos? — Ele não o explica? Holmes passou-me o telegrama do irmão. "Preciso falar com você acerca de Cadogan West. Sigo imediatamente para sua casa. Mycroft." — Cadogan West? Já ouvi esse nome. — A mim não ocorre nada, mas para fazer Mycroft sair assim de seus hábitos... É o mesmo que um planeta desviar-se de sua órbita. E por falar em Mycroft, sabe o que ele é? Lembrava-me vagamente de ter ouvido falar dele por ocasião da aventura do intérprete grego. — Você me disse que ele desempenhava uma pequena função a serviço do governo britânico. Holmes deu uma risadinha. — Nessa época ainda não conhecia bem você, Watson, e é necessária uma certa discrição quando se trata de altos assuntos de Estado. Tem razão em pensar que Mycroft trabalha para o governo britânico. E em certo sentido ainda teria mais razão se dissesse que ele às vezes é o próprio governo britânico. — Meu caro Holmes! — Já esperava seu assombro. Mycroft embolsa quatrocentas e cinqüenta libras por ano, permanece em posição subalterna, não nutre ambições de nenhuma espécie, recusa-se a receber honrarias ou títulos, mas nem por isso deixa de ser o homem mais indispensável do país. — Mas como? — Ora, a posição dele é única; criou-a especialmente para si. Nunca houve coisa parecida, nem jamais haverá. Possui o cérebro mais metódico e preciso deste mundo, com insuperável capacidade de registrar fatos. Os mesmos dotes poderosos que dediquei à elucidação de crimes ele tem utilizado em seu trabalho especial. Vão ter-lhe às mãos as conclusões de cada departamento, e ele é o centro polarizador, a caixa de compensação que contribui para nosso equilíbrio político. Todos os outros funcionários são especialistas; sua especialidade, porém, é a onisciência. Suponhamos, por exemplo, que certo ministro necessite de uma informação sobre uma questão que envolva a marinha, a Índia, o Canadá e o bimetalismo. Poderá obter pareceres isolados de vários departamentos sobre cada assunto. No entanto, somente Mycroft estará em condições de focalizá-los ao mesmo tempo, e dizer com facilidade como cada um deles pode exercer influência sobre o outro. Começaram por utilizá-lo a fim de facilitar o serviço, por comodidade; hoje, tornou-se indispensável. Naquele grande cérebro tudo está riassificado, pronto para ser usado a qualquer momento. Em muitíssimos casos, sua palavra decidiu a política nacional. Vive exclusivamente para isso e não pensa em mais nada, exceto quando, a título de exercício intelectual, se digna atender-me quando vou procurá-lo, a fim de lhe pedir a opinião a respeito de alguns de meus modestos problemas. Contudo, Júpiter hoje resolveu descer à


terra. Que diabo terá acontecido? Quem será Cadogan West, e o que ele significa para Mycroft? — Heureca! — gritei, mergulhando na pilha de jornais sobre o sofá. — Sim, sim, cá está ele, não há dúvida! Cadogan West é o jovem encontrado morto, terça-feira de manhã, na estação de metro. Holmes endireitou-se na poltrona, subitamente interessado, o cachimbo a meio caminho dos lábios. — Isso deve ser grave, Watson, para fazer meu irmão desviar-se de seus hábitos. Tem de ser algo extraordinário. Que motivo o ligará a este incidente? Se bem me lembro, o caso nada tinha de especial. A impressão era a de um jovem que se tinha suicidado, atirando-se do trem. Não houve roubo, nem existia o menor fundamento para se pensar em violência. Não é assim? — Foi aberto um inquérito — respondi —, no qual surgiram muitos detalhes novos. Examinando-os mais atentamente, diria tratar-se com toda a certeza de um caso suspeito. — A julgar pelo efeito produzido em meu irmão, estou propenso a acreditar que se trata mesmo dos mais estranhos — comentou Holmes, acomodando-se melhor na poltrona. — Vejamos então os fatos, Watson. — O jovem chamava-se Arthur Cadogan West, tinha vinte e sete anos de idade, era solteiro e funcionário do Arsenal de Woolwich. — Emprego público. Note a relação com meu irmão Mycroft! — Desapareceu de Woolwich repentinamente, segunda-feira à noite. Foi visto pela última vez por sua noiva, srta. Violet Westbury, a quem deixou de súbito, no meio do nevoeiro, às sete e meia daquela noite. Não houve nenhuma discussão entre eles, e a jovem não sabe explicar o motivo de sua atitude. Depois disso, a única notícia a seu respeito foi o encontro do cadáver por um operário de nome Mason, encarregado da conservação da linha, pouco depois da Estação de Aldgate, ao longo da rede subterrânea de Londres. — Quando? — O corpo foi descoberto às seis horas da manhã de terça-feira. Estava atravessado sobre os trilhos, do lado esquerdo da linha que vai para o leste, num ponto próximo da estação, à saída do túnel. A cabeça estava esmigalhada, o que poderia ser atribuído à queda do trem. Só podia ter atingido a linha dessa maneira. Se tivesse sido transportado de alguma rua das vizinhanças, deveria ter passado pelas cancelas da estação, onde fica sempre um cobrador de bilhetes. Quanto a isso, parece não haver dúvida. — Muito bem. O caso parece-me bastante definido. O homem, morto ou vivo, caiu ou foi atirado do trem. Até aí está tudo muito claro. Continue. — Os trens que atravessam as linhas ao lado das quais o corpo foi encontrado correm de oeste para leste, alguns exclusivamente metropolitanos, e outros de Willesden e ramais adjacentes. Não há dúvida de que aquele jovem, quando encontrou a morte, viajava nessa direção, a uma hora avançada da noite, apesar de ser impossível determinar o lugar de seu embarque. — O bilhete naturalmente deveria indicá-lo. — Não havia nenhum bilhete em seus bolsos. — Nenhum bilhete! Caramba! Isso é realmente estranho, Watson. Se minha experiência pessoal não falha, não é possível chegar à plataforma do trem subterrâneo sem exibir a respectiva passagem. É de presumir, portanto, que o jovem a tivesse. Será que ela lhe foi tirada do bolso a fim de ocultar o nome da estação de onde provinha? É provável. Ou a teria deixado cair no vagão? Também é possível. De qualquer modo, é um pormenor muito interessante. Você disse que não houve roubo?


— Aparentemente, não. Eis aqui uma lista do que foi encontrado no corpo. A carteira continha duas libras e quinze xelins. Tinha também no bolso um talão de cheques da filial de Woolwich do Banco Capital and Counties, devido ao qual se pôde estabelecer sua identidade. Havia ainda dois bilhetes para o Teatro Woolwich, datados daquela mesma noite, e, além disso, um pequeno rolo de documentos técnicos. Holmes soltou uma exclamação de júbilo. — Aí está finalmente, Watson! Governo britânico... Arsenal de Woolwich... documentos técnicos... meu irmão Mycroft... tudo se encadeia com perfeição. Mas, se não me engano, ele está chegando para nos contar tudo de viva voz. Dali a um momento, a figura alta e corpulenta de Mycroft Holmes era introduzida na sala. De compleição robusta e maciça, havia nele algo que sugeria uma incrível inércia física. Contudo, sobre o corpo desajeitado surgia uma cabeça tão autoritária na vastidão da fronte, tão viva na expressão dos olhos profundos de um cinzento de aço, tão firme no contorno dos lábios e tão sutil no conjunto da fisionomia, que, após a primeira impressão, esquecíamo-nos do corpo volumoso para nos lembrarmos apenas da mente dominadora. Acompanhava-o nosso velho amigo Lestrade, da Scotland Yard, magro e austero. A gravidade emanada do rosto de ambos pressagiava um assunto de alta relevância. O policial apertou-nos a mão sem dizer palavra. Mycroft Holmes desvencilhou-se do sobretudo e deixou-se cair pesadamente numa poltrona. — Um caso desagradabilíssimo, Sherlock — disse. — Detesto profundamente ter de alterar meus hábitos, mas as altas esferas não quiseram ouvir desculpas. Na situação atual em que se encontra o Sião, é desairoso para mim ter de me ausentar do ministério. Todavia, trata-se de verdadeira crise governamental. Nunca vi o primeiro-ministro tão transtornado. Quanto ao Almirantado... parece-me uma colmeia alvoroçada. Já leu as notícias a respeito do caso? — Acabamos de lê-las. Quais eram os documentos técnicos de que fala o jornal? — Ah! Eis a questão! Felizmente, nada transpirou, do contrário a imprensa faria um escarcéu dos diabos. Os papéis que aquele desgraçado rapaz levava no bolso eram os planos do submarino Bruce-Partington. Mycroft Holmes expressara-se com uma solenidade que bem demonstrava a importância que atribuía ao fato. Seu irmão e eu permanecemos sentados, em ansiosa expectativa. — Você já ouviu falar nisso, não? Pensei que toda gente o soubesse. — Apenas de maneira vaga. — Seu enorme valor mal pode ser exagerado se eu disser ter sido esse, dos segredos de Estado, o mais ciosamente guardado. Posso até assegurar-lhe que se torna impossível uma batalha naval dentro do raio de ação de um Bruce-Partington. Há dois anos, conseguimos introduzir às escondidas uma avultada soma na previsão orçamentaria, a qual foi despendida na aquisição do monopólio da invenção. Envidaram-se todos os esforços no sentido de manter o segredo. Os planos, extremamente complicados, compreendem cerca de trinta patentes autônomas (cada uma das quais essencial para a execução do todo), que


são conservadas na caixa-forte especial de um departamento secreto, perto do Arsenal, com portas e janelas à prova de arrombamento. Sob nenhum pretexto os planos deveriam ser retirados dali. Se o construtor-chefe da marinha quisesse consultá-los, precisaria dirigir-se ao Departamento de Woolwich para esse fim. Contudo, eis que os encontramos nos bolsos de um jovem funcionário subalterno morto no coração de Londres. A nosso ver, é simplesmente espantoso. — Mas recuperaram-nos, então? — Não, Sherlock, não! Aí está a tragédia. Não conseguimos reavê-los. Dez documentos foram subtraídos de Woolwich. Nos bolsos de Cadogan West só havia sete. Os três mais importantes estão desaparecidos... roubados, evaporados. Você tem de abandonar tudo o que tiver em mãos, Sherlock. Não vêm ao caso, nesta altura, seus pequenos quebracabeças policiais de sempre. Cabe resolver agora um problema de magna influência internacional. Por que se teria apoderado Cadogan West dos documentos, onde estão os que faltam, como morreu ele, como veio ter seu cadáver ao lugar onde foi descoberto, de que maneira poderá remediar-se essa desgraça? Procure dar a resposta a todas essas perguntas e você terá prestado ao país um inestimável serviço. — Por que não lhes responde você mesmo, Mycroft? É tão inteligente como eu. — É provável, Sherlock; mas trata-se de obter pormenores. Consiga-os, e, de minha poltrona, fornecerei uma excelente opinião de perito. Você sabe, pôr-me a correr daqui para ali para interrogar guardas do metrô e deitar-me de bruços com uma lente encaixada no olho... não, não é essa minha especialidade. Você é a única pessoa capaz de esclarecer tal mistério. E se lhe interessa ver seu nome na próxima lista de honrarias... Meu amigo sorriu e sacudiu a cabeça. — Meu interesse é meramente esportivo — retrucou. — No entanto, o problema apresenta certos aspectos interessantes, e terei muito prazer em estudá-lo. Preciso, porém, de mais alguns dados. — Anotei nesta folha de papel os mais necessários, bem como alguns endereços que lhe serão úteis. Presentemente, o guarda oficial dos documentos é o famoso perito do Estado, Sir James Walter, cujos títulos e condecorações enchem duas linhas do anuário de referência. Envelheceu ao serviço da pátria, é um perfeito cavalheiro, hóspede favorito das famílias mais eminentes e, sobretudo, um homem cujo patriotismo paira acima de qualquer suspeita. É uma das duas pessoas que possuem a chave da caixa-forte. Posso ainda afirmar que os documentos se encontravam no departamento na segunda-feira, nas horas do expediente, e que Sir James partiu para Londres, por volta das três horas, levando a chave consigo. Quando se verificou o incidente, ele estava na Barclay Square, em casa do almirante Sinclair, e ali ficou até tarde. — Esse pormenor foi averiguado? — Sim; seu irmão, o coronel Valentine Walter, comprovou a partida de Woolwich, e o almirante Sinclair, a chegada a Londres. Sir James, por conseguinte, deixa de constituir um fator direto no problema. — Quem possui a segunda chave? — O sr. Sidney Johnson, funcionário de categoria e desenhista do Arsenal, homem de quarenta anos, casado e pai de cinco filhos. É taciturno e rabugento, mas empregado exemplar. Não goza de popularidade entre os colegas, não obstante ser um trabalhador incansável. Segundo as próprias declarações corroboradas unicamente pela mulher, permaneceu em casa durante toda a noite de segunda-feira, após o trabalho, e sua chave não deixou nem um momento a corrente do relógio, na qual se encontra pendurada. — Fale-nos a respeito de Cadogan West. — Trabalhava há dez anos nesse departamento, ao qual vinha prestando bons serviços. Tinha fama de irascível e violento, mas era considerado um rapaz de caráter e honesto.


Nada temos contra ele. No departamento, estava subordinado diretamente a Sidney Johnson. Suas funções punham-no diariamente em contato pessoal com os planos. Ninguém mais tocava neles. — Quem os guardou na caixa-forte aquela noite? — Sidney Johnson. — Bem, torna-se evidente quem os tirou de lá. Foram encontrados no corpo de Cadogan West. Não lhe parece que é bastante claro? — À primeira vista parece, Sherlock; no entanto, muitos pontos continuam inexplicáveis. Para começar, por que razão ele faria isso? — Presumo tratar-se de documentos de grande valor — insistiu Holmes. — Poderia obter facilmente com eles alguns milhares de libras. — Você consegue imaginar outro motivo plausível que o induzisse a levar os documentos a Londres, a não ser o intuito de vendê-los? — Não, francamente não. — Temos então de tomar essa hipótese como ponto de partida. O jovem West subtraiu os documentos, o que, entretanto, só seria possível mediante uma chave falsa.... — Várias chaves falsas, pois precisaria abrir também a porta do prédio e a da sala. — Suponhamos, portanto, que possuísse diversas chaves falsas. Levou os documentos a Londres a fim de vender o segredo, certamente com a intenção de repô-los no lugar, na manhã seguinte, antes que dessem pela falta. Todavia, em Londres, no decurso de sua desprezível missão, encontrou o próprio destino. — De que maneira? — Podemos supor que regressava a Woolwich quando foi morto e atirado para fora do vagão. — Aldgate, onde o corpo foi encontrado, fica muito distante da Estação da Ponte de Londres, lugar em que deveria descer a fim de seguir para Woolwich. — Poderíamos imaginar inúmeras circunstâncias que o tivessem feito ultrapassar a Ponte de Londres. Talvez houvesse no carro uma pessoa com quem se tivesse entretido em animada palestra, que degenerou em cena violenta, na qual veio a perder a vida. Ou talvez, ao tentar saltar do metro, caísse na linha e assim morresse. A tal pessoa fechou a porta; o nevoeiro estava muito espesso e nada foi visto. — Em face de nossos atuais conhecimentos sobre o assunto, não é possível melhor explicação; no entanto, Sherlock, veja quanta coisa você deixou de considerar. Suponhamos, para argumentar, que Cadogan West tivesse de fato resolvido levar esses documentos a Londres. Naturalmente, teria combinado um encontro com o agente estrangeiro, a quem deveriam ser vendidos, e ficaria com a noite livre. Em vez disso, comprou duas entradas para o teatro, acompanhou a noiva até o meio do caminho, e depois desapareceu repentinamente. — Um estratagema para despistar — interveio Lestrade, que ouvia a conversa com certa impaciência. — Aliás, muito estranho. Essa é a primeira objeção. Segunda: imaginemos que ele tenha chegado a Londres e visto o agente estrangeiro. Precisa repor os documentos antes do amanhecer, sob pena de darem pela falta dele. Levara consigo dez. Em seus bolsos foram encontrados ape- nas sete. O que teria acontecido aos outros três? Certamente não os teria perdido de propósito e, além disso, onde está o pagamento por sua traição? Era de


supor que se encontrasse uma grande soma de dinheiro em seu poder. — A mim tudo parece claro — observou Lestrade. — Não tenho dúvidas em relação ao ocorrido. Ele tirou os documentos para vendê-los. Avistou-se com o agente. Não chegaram a um acordo quanto ao preço. Dirigiu-se novamente para casa, mas o agente acompanhou-o. No metro, o espião assassinou-o, apoderando-se dos papéis mais importantes, e atirou o cadáver para fora do vagão. Isso explicaria tudo, não lhe parece? — E por que ele não estava com o bilhete? — Talvez indicasse a estação mais próxima da casa do agente. Por isso, este teve o cuidado de subtraí-lo do bolso da vítima. — Muito bem, Lestrade, ótimo! — comentou Holmes. — Sua hipótese é bastante viável. Entretanto, se for verdadeira, o caso está terminado. Por um lado, o traidor encontra-se morto; por outro, os planos do submarino Bruce-Partington já se encontram com toda a certeza no continente. O que nos resta fazer? — Agir, Sherlock... agir! — gritou Mycroft, saltando da cadeira. — Todos os meus instintos se rebelam contra essa explicação. Ponha em ação suas faculdades! Vá ao local do crime! Fale com as pessoas implicadas nos acontecimentos! Pesquise tudo! Jamais, durante toda a sua carreira, se apresentou melhor ocasião de servir seu país. — Está bem, está bem! — disse Holmes, encolhendo os ombros. — Vamos, Watson! E você, Lestrade, pode acompanhar-nos por uma ou duas horas? Iniciaremos nossas buscas com uma visita à Estação de Aldgate. Até logo, Mycroft. Trarei fatos novos antes do anoitecer, mas pressinto que você terá pouco a esperar. Uma hora mais tarde, Holmes, Lestrade e eu nos encontrávamos sobre os trilhos do trem subterrâneo, no ponto em que emergem do túnel, pouco antes de Aldgate. Um cavalheiro idoso, cortês, de faces rubicundas, representava a companhia ferroviária. — Aqui jazia o corpo do rapaz — explicou ele, indicando um lugar a cerca de um metro da via férrea. — Não podia ter caído lá de cima, pois, como vêem, estas paredes são inacessíveis. Só poderia, portanto, ter sido atirado de um trem, que, até onde nos é dado supor, deve ter passado aqui por volta da meia-noite de segunda-feira. — Verificaram se os vagões tinham algum sinal de violência? — Não, nem foi encontrado qualquer bilhete. — Alguma porta, por acaso, foi encontrada aberta? — Não. — Obtivemos hoje de manhã novos indícios — disse Lestrade. — Um passageiro que passou por Aldgate num metro comum, cerca das onze e quarenta da noite de segundafeira, declarou ter ouvido um pesado baque, como o de um corpo ao cair na linha, pouco antes de o trem entrar na estação. O nevoeiro, porém, estava muito denso, e ele não pôde ver nada. Na ocasião não deu grande importância ao fato... Mas o que diabo estará acontecendo ao sr. Holmes? Com uma expressão de vivíssimo interesse estampada no rosto, meu amigo fixava os trilhos no ponto em que estes, fazendo uma curva, saem do túnel. Aldgate constitui um entroncamento, e ali se entrecruza uma vasta e emaranhada rede de desvios. Era neles que se fixavam seus olhos vigilantes, perscrutadores, e eu lhe notei na face ativa e sagaz o contrair dos lábios, o tremor das


narinas e a curvatura típica das espessas sobrancelhas, tudo o que eu conhecia tão bem. — Os desvios — murmurou —, os desvios! — O que têm eles? O que quer dizer? — Suponho que não haja grande número de desvios num sistema ferroviário como este. — De fato, existem muito poucos. — E além disso uma curva. Desvios e curva. Por Deus! Se assim fosse! — O que é, sr. Holmes? Encontrou algum indício? — Uma idéia... mera suposição. Mas, sem dúvida nenhuma, o caso aumenta de interesse. Único, absolutamente único, e, todavia, por que não? Não vejo o menor sinal de sangue na linha. — Quase não havia nenhum. — Segundo eu soube, o ferimento era bastante grande. — O osso estava esmagado, porém externamente a ferida não parecia grave. — E, no entanto, era de esperar que tivesse havido sangue. Poderia inspecionar o trem no qual viajava o passageiro que ouviu o baque de um corpo? — Receio que não, sr. Holmes. A composição do trem já foi desfeita, e os vagões foram redistribuídos. — Posso garantir-lhe, sr. Holmes — afirmou Lestrade —, que todos os vagões foram cuidadosamente examinados. Tratei disso pessoalmente. Fazia parte das fraquezas mais características de meu amigo certa impaciência indomável ao defrontar-se com inteligências menos penetrantes que a sua. — É provável — disse, afastando-se. — Na verdade, não eram os vagões o que eu desejava examinar. Não nos resta mais nada a fazer aqui, Watson. Não o importunaremos mais, Lestrade. Julgo que nossas investigações nos devem conduzir agora a Woolwich. Na Ponte de Londres, mandou um telegrama a seu irmão, estendendo-o a mim antes de expedi-lo. "Vislumbro certa luz no meio das trevas, mas é provável que venha a extinguir-se. Entretanto, queria que você fizesse chegar às minhas mãos, na Baker Street, a lista completa de todos os espiões estrangeiros ou agentes internacionais cuja residência na Inglaterra é conhecida, com os respectivos endereços por extenso. Sherlock." — Isso poderá ser-nos útil, Watson — observou ele ao tomarmos lugar no trem de Woolwich. — Devemos sem dúvida a meu irmão Mycroft ter-nos posto em contato com um caso que promete revelar-se fora do comum. Seu rosto inteligente trazia ainda aquela expressão de energia intensa e concentrada que demonstrava que alguma circunstância nova e sugestiva lhe abrira estimulante campo para exercer seus notáveis dotes de raciocínio. Compare-se O cão de caça, de orelhas pendentes e cauda baixa, a vaguear em torno do canil, com o mesmo animal que, com olhos brilhantes e músculos tensos, fareja a caça próxima, e ter-se-á uma idéia da mudança operada em Holmes no decorrer daquela manhã. Que diferença do homem inerte e abatido que, em roupão cor de rato, andava ainda há poucas horas, de um lado para


outro, na saleta isolada pela névoa! — Aqui há um excelente material, um objetivo — disse-me. — Fui tolo por não ter visto desde o princípio suas possibilidades. — Ainda agora ele se apresenta para mim mais confuso que nunca. — Mesmo para mim a conclusão é confusa, mas aferrei-me a uma hipótese que poderá nos levar longe. O homem encontrou a morte em outro lugar, e seu corpo estava na capota do vagão. — Na capota? — Extraordinário, não acha? Reflita, porém, nos fatos. Será mera coincidência ter sido encontrado no ponto onde o irem se agita e oscila ao passar nos desvios? Não é esse o local onde se pode esperar que um objeto colocado na capota devesse cair? Os desvios não poderiam influir no que se encontrava dentro do trem. Ou o cadáver caiu da capota ou encontramo-nos diante de uma coincidência muito singular. Mas vejamos agora a questão do sangue. Naturalmente, não deveria haver sangue na linha se o corpo tivesse sangrado em outro lugar. Os fatos são sugestivos por eles próprios; reunidos, adquirem uma força cumulativa. — E o bilhete também! — exclamei. — Exatamente. Não conseguíamos explicar-lhe a ausência, e essa hipótese justifica-a. Tudo se articula com justeza. — Mas, supondo que tivesse sido assim, ainda nos encontramos muito longe de poder decifrar o mistério de sua morte. De fato, as coisas não se simplificam; tornam-se mais estranhas. — Talvez — murmurou Holmes com ar pensativo —, talvez. Meu amigo emudeceu e concentrou-se em seus pensamentos até a Estação de Woolwich. Ali chamou um carro de praça, e ao entrar nele tirou do bolso o papel que Mycroft lhe entregara. — Temos de fazer várias visitas esta tarde — disse. — Creio que Sir James Walter deverá ser o primeiro a merecer a nossa atenção. A residência do famoso perito era uma vivenda belíssima, rodeada de relvados verdes, que se estendiam até as margens do Tamisa. Ao chegarmos lá, a névoa começava a dissipar-se, e os raios pálidos e débeis do sol surgiam lentamente através da bruma. Um mordomo veio atender-nos. — Sir James! — exclamou com ar solene. — Sir James faleceu esta manhã. — Santo Deus! — bradou Holmes, estupefato. — Como ele morreu? — Os senhores desejam entrar e falar com o coronel Valentine, irmão dele? — Sim, é melhor. Fomos introduzidos numa sala fracamente iluminada, onde, instantes depois, nos recebeu um homem alto, aparentando cinqüenta anos, de feições delicadas e barba pouco espessa — o irmão mais novo do cientista morto. O olhar desvairado, o rosto sulcado de lágrimas e o cabelo despenteado descreviam com eloqüência o rude golpe desferido sobre aquela casa. Quase não conseguia articular palavra. — Foi esse horrível escândalo — disse. — Meu irmão era muito sensível em questões de honra, e não pôde sobreviver a tamanha vergonha. Perdeu completamente o ânimo. Sempre se orgulhou da eficiência de seu departamento, e semelhante catástrofe aniquilou-o.


— Esperávamos que ele pudesse dar-nos certas indicações úteis para o esclarecimento do caso. — Asseguro-lhes que constituía para ele um mistério tão impenetrável como para os senhores e para todos nós. Já tinha posto à disposição da polícia tudo quanto sabia. Naturalmente, estava certo da culpabilidade de Cadogan West, mas todo o resto lhe parecia inconcebível. — O senhor não seria capaz de nos sugerir qualquer indício útil? — Pessoalmente nada sei, exceto o que li ou ouvi. Não desejo passar por indelicado, sr. Holmes, mas deve compreender o abalo que acabamos de sofrer, e por isso peço-lhe licença para terminar este nosso colóquio. — Eis uma coisa pela qual não esperava — observou Holmes ao regressarmos ao carro. — Fico com dúvidas sobre se a morte foi natural, ou se o pobre velho se suicidou. Nesta última hipótese, isso não poderia ser tomado como sinal de remorso por negligência no cumprimento do dever? Deixe-mos essa pergunta para o futuro. E agora tratemos da família Cadogan West. A inconsolável mãe do morto habitava uma pequenina mas bem-cuidada casa nos arrabaldes da cidade. Estava demasiado abatida pela dor para que nos fosse de qualquer utilidade. Contudo, encontrava-se a seu lado uma jovem pálida, que se apresentou a nós como a noiva do rapaz, a srta. Violet Westbury, a última pessoa que o vira naquela noite fatal. — Não consigo compreender, sr. Holmes — disse ela. — Não consigo mais dormir desde que se deu a tragédia; vivo pensando, pensando incessantemente, noite e dia, no verdadeiro significado de tudo isso. Arthur era um rapaz simples, cavalheiresco e patriota como poucos. Preferiria cortar a mão direita a vender um segredo de Estado confiado à sua guarda. Para quem o conhecia bem, é a coisa mais absurda, impossível e fora de propósito. — Mas e os fatos, srta. Westbury? — Sim, sim; reconheço minha impossibilidade de explicá-los. — Ele estava necessitando de dinheiro? — Não; seus gastos eram mínimos, e ele ganhava um ótimo ordenado. Já tinha economizado algumas centenas de libras, e devíamos casar-nos pelo Ano-Novo. — Não lhe notou nenhuma perturbação ultimamente? Vamos, srta. Westbury, use da máxima franqueza conosco. O olhar penetrante de meu amigo notara certa mudança nas maneiras da jovem. Ela corou, indecisa. — Realmente — disse por fim. — Tinha a impressão de que qualquer coisa o preocupava. — Há muito tempo? — Mais ou menos há uma semana. Tornara-se pensativo e inquieto. Em certa ocasião, insisti com ele para que se abrisse comigo. Admitiu ter qualquer coisa que o perturbava com referência ao serviço. "É um assunto grave demais para que ouse falar, mesmo a você", respondeu. Nada mais consegui arrancar-lhe. A atitude de Holmes tornou-se grave. — Prossiga, srta. Westbury. Prossiga, mesmo se tiver a impressão de estar depondo contra ele. Não podemos saber a que isso nos pode conduzir.


— Francamente, nada mais tenho a dizer. Uma ou duas vezes pareceu-me estar a ponto de me confiar qualquer coisa. Falou-me uma noite acerca da importância dos documentos secretos, e tenho uma vaga idéia de me ter dito que sem dúvida os espiões estrangeiros pagariam uma fortuna para obtê-los. A fisionomia de meu amigo tornou-se ainda mais severa. — Nada mais? — Disse-me que éramos negligentes a respeito de tais assuntos... que seria fácil a um traidor apoderar-se dos planos. — Ele fez essas observações recentemente? — Sim, nestes últimos dias. — Agora, fale-nos da última noite em que o viu. — Tínhamos combinado ir ao teatro. O nevoeiro estava tão espesso que era inútil tomar um carro. Pusemo-nos a andar, e nosso caminho levou-nos às proximidades de sua repartição. De súbito, ele começou a correr, desaparecendo no nevoeiro. — Sem uma palavra? — Soltou uma exclamação; foi tudo. Esperei-o, mas não voltou. Regressei então a casa. Na manhã seguinte, quando a repartição abriu, vieram interrogar-nos. Por volta do meio-dia, soubemos da horrível notícia. Oh! sr. Holmes, se fosse possível ao menos salvar-lhe a honra! Ele a prezava tanto! Holmes sacudiu a cabeça tristemente. — Vamos, Watson — disse-me. — Ainda temos muito o que fazer. Em primeiro lugar devemos ir à seção de onde foram subtraídos os documentos. — Os indícios contra aquele rapaz já eram desfavoráveis, e nossas investigações os tornam ainda piores — observou Holmes, enquanto o carro se punha em movimento. — Seu casamento iminente fornece um motivo para o crime. Naturalmente, precisava de dinheiro, e essa idéia dominava-o, pois falou com a noiva a respeito disso. Quase chegou a torná-la cúmplice da traição, revelando-lhe seus projetos. A conjuntura apresenta-se muito má para ele. — Todavia, Holmes, não acha que o caráter da pessoa deve ser levado em conta? Além disso, por que haveria de abandonar a noiva no meio da rua e desaparecer daquele modo? — Exatamente! Há de fato várias objeções; contudo, os fatos que a elas se opõem são ponderáveis. O sr. Sidney Johnson, funcionário-chefe, veio a nosso encontro no átrio, e recebeu-nos com o respeito que o cartão de Holmes sempre suscitava. Era um homem de meia-idade, encovado, e as mãos tremiam-lhe com a emoção resultante dos últimos acontecimentos. — Que desastre, sr. Holmes, que desastre! Já soube do falecimento de nosso chefe? — Acabamos de sair de sua casa. — Tudo aqui está caótico. O chefe, morto, Cadogan West, morto, os documentos, roubados. Entretanto, quando encerramos o expediente na noite de segunda-feira, constituíamos o departamento mais eficiente do governo. Santo Deus! É horroroso pensar que justamente West fosse cometer tal desatino! — O senhor tem certeza, então, de que ele foi o culpado? — Não vejo quem mais possa ter sido. E, contudo, confiava nele como em mim próprio.


— A que horas fecharam a repartição na segunda-feira? — Às cinco. — Foi o senhor quem fechou as portas? — Sou sempre o último a sair. — Onde estavam os planos? — Naquela caixa-forte. Coloquei-os lá pessoalmente. — Não fica ninguém de guarda no prédio? — Fica; mas há também outras seções para vigiar. É um antigo soldado, pessoa de inteira confiança. Nada viu naquela noite. O nevoeiro, sem dúvida, era muito denso. — Se Cadogan West quisesse entrar no edifício fora de hora, teria necessidade de três chaves para poder alcançar os documentos, não é certo? — Exatamente. A chave da porta da rua, a do escritório e a da caixa-forte. — Só o senhor e Sir James possuíam essas chaves? — Eu não tinha as das portas... apenas a da caixa-forte. — Sir James era um homem de hábitos regulares? — Sim; creio que era. No tocante a essas três chaves, sei que ele as trazia sempre juntas no mesmo chaveiro. Eu próprio as vi muitas vezes. — E ele costumava levar esse chaveiro a Londres? — Assim dizia. — E o senhor nunca se separou de sua chave? — Nunca. — Então, West, se ele é de fato o culpado, devia ter uma duplicata. No entanto, nenhuma foi encontrada em seus bolsos. Outra coisa: se um funcionário deste departamento tivesse intenção de vender os planos, não lhe seria mais fácil copiá-los em vez de subtrair os originais, como foi feito? — Seriam necessários profundos conhecimentos técnicos para poder fazê-lo de maneira eficiente. — Creio, porém, que tanto Sir James como o senhor ou West possuíam essa competência técnica, não é verdade? — Sem dúvida; peço-lhe, no entanto, que não me envolva nessa questão, sr. Holmes. De que servem as especulações abstratas, quando os planos originais foram encontrados em poder de West? — Contudo, é estranho que ele fosse correr o risco de roubar os originais, quando teria podido copiá-los sem dificuldade, com resultados igualmente vantajosos para seu fim. — É esquisito, sem dúvida... No entanto, foi o que ele fez. — Todas as pesquisas relativas a este caso revelam algo de inexplicável. Quanto a esses documentos que ainda se encontram desaparecidos, segundo me disseram, são os de maior importância.


— Sim, de fato. — Acredita que alguém pudesse, com esses três documentos, mas sem os outros sete, construir um submarino Bruce-Partington? — Foi o que declarei ao Almirantado. Entretanto, estive hoje revendo os desenhos e já não estou tão certo disso. As válvulas duplas, que se fecham automaticamente, estão desenhadas num dos papéis recuperados. Enquanto o país estrangeiro que se apoderou dos planos não as tiver inventado, não poderá construir o submarino. Essa dificuldade, é claro, poderá ser facilmente superada. — De qualquer modo, os três desenhos desaparecidos são os mais importantes? — Sem a menor dúvida. — Agora, se me permite, gostaria de dar uma volta pelo prédio. Que me lembre, nada mais me resta perguntar-lhe. Holmes inspecionou a fechadura da caixa-forte, a porta da sala e, finalmente, as folhas de ferro da janela. Somente quando nos encontrávamos na parte externa do edifício é que ele deu mostras de um vivo interesse. Havia um grande loureiro abaixo da janela, e vários de seus ramos mostravam sinais evidentes de terem sido torcidos ou quebrados. Examinou-os cuidadosamente com uma lente, e fez outro tanto com alguns vestígios pouco nítidos rio terreno em redor. Por fim, pediu ao sr. Johnson que fechasse as folhas de ferro da janela e chamou-me a atenção para o vão que elas deixavam ao centro, o que facilitava a qualquer pessoa de fora ver o que se passava no interior da sala. — Estas marcas foram prejudicadas pêlos três dias de demora. Podem significar alguma coisa, mas também é possível que não tenham nenhum valor. Bem, Watson, penso que nada mais temos a fazer em Woolwich. Nossa colheita aqui foi bem magra. Vejamos se em Londres temos mais sorte. Todavia, antes de deixarmos a Estação de Woolwich, acrescentamos mais um feixe à nossa ceifa. O bilheteiro informou-nos confidencialmente que tinha visto Cadogan West — que conhecia bem de vista — na noite de segunda-feira, e garantiu-nos que ele embarcara para a Ponte de Londres, no trem das oito e quinze. Estava só, e comprou uma passagem de terceira classe. O empregado surpreendeu-se com seu aspecto nervoso e agitado. Estava de tal modo trêmulo que não conseguiu recolher o troco, no que foi auxiliado pelo bilheteiro. Uma rápida consulta ao horário dos trens revelou-nos ser o das oito e quinze o primeiro que West poderia ter apanhado, depois de ter se despedido da noiva às sete e trinta. — Procuremos reconstituir os fatos, Watson — disse-me Holmes ao cabo de meia hora de silêncio. — Não acredito que tenhamos, em toda a nossa longa série de investigações em conjunto, defrontado caso mais difícil do que este. A cada passo encontramos um novo obstáculo. Apesar de tudo, é certo que realizamos um apreciável progresso. O resultado de nossas pesquisas em Woolwich foi na maior parte desfavorável ao jovem Cadogan West; entretanto, os sinais da janela prestam-se a uma hipótese mais propícia. Suponhamos, por exemplo, que ele tenha sido sondado por algum agente estrangeiro. Isso pode ter sido feito mediante uma promessa que o teria impedido de falar sobre o assunto, a qual, apesar de tudo, exerceu influência em seu espírito, conforme se depreende das observações feitas por ele à noiva. Ora, muito bem. Imaginemos agora que, quando se dirigia ao teatro com a


jovem, tivesse distinguido subitamente, através da névoa, o vulto desse mesmo agente caminhando na direção do departamento. Rapaz impetuoso e de decisões rápidas, todas as suas outras preocupações desapareceram diante do dever. Acompanhou o homem, chegou junto à janela, presenciou a subtração dos documentos e lançou-se no encalço do ladrão. Deste modo superamos a objeção de que ninguém tiraria os originais, quando lhe seria mais fácil copiá-los. A esse estranho, porém, não restava outra alternativa senão apoderar-se deles. Até aqui, o raciocínio está bem concatenado. — E depois? — Depois começam a surgir as dificuldades. É lógico conceber que, em tais circunstâncias, o primeiro gesto de Cadogan West fosse o de agarrar o meliante e dar o alarme. Por que não o fez? Tratar-se-ia de funcionário de categoria elevada? Isso explicaria a conduta de West. Ou o ladrão teria logrado escapar protegido pelo denso nevoeiro, e West embarcou para Londres a fim de apanhá-lo na própria residência, presumindo-se que ele sabia onde morava? O caso devia exigir a máxima urgência, em vista de ele ter abandonado a jovem sozinha no nevoeiro e não ter feito o mínimo esforço para se comunicar com ela. Nesse ponto, nossa pista se perde e defrontamo-nos com uma imensa lacuna entre cada uma dessas hipóteses e o encontro do cadáver de West, com sete documentos no bolso, sobre a capota de um vagão do metro. O instinto sugere-me que trabalhe, daqui em diante, começando pelo lado oposto. Se Mycroft nos mandou a lista de endereços, talvez consigamos descobrir nosso homem e seguir assim duas pistas em vez de uma. Havia realmente um bilhete à nossa espera na Baker Street. Fora trazido em caráter de urgência por um mensageiro do governo. Holmes passou os olhos por ele rapidamente e o entregou a mim. "O cardume de espiões é grande; no entanto, poucos são os peixes de bom porte capazes de levar a cabo golpe de tal monta. Os únicos dignos de nota são os seguintes: Adolph Meyer, Great George Street, 13, Westminster; Louis La Rothiere, Campden Mansions, Notting Hill, e Hugo Oberstein, Caulfield Gardens, 13, Kensington. Deste último sabe-se que esteve segunda-feira na cidade e que a deixou agora, com destino ignorado. Sinto-me satisfeito com a notícia de que finalmente você conseguiu vislumbrar alguma luz. O gabinete aguarda com impaciência seu relatório final. As altas esferas insistem na máxima urgência. Todas as forças do Estado se encontram à sua disposição, caso você venha a necessitar delas. Mycroft." — Receio — disse Holmes, sorrindo — que todos os cavalheiros da rainha e todos os seus homens não nos possam valer neste assunto. Estendeu sobre a mesa seu grande mapa topográfico de Londres, e pôs-se a estudá-lo minuciosamente. — Muito bem! — exclamou dali a instantes, dando mostras de satisfação. — O vento, por fim, começa a soprar a nosso favor. Ora, viva, Watson, acredito piamente que, no fim de contas, seremos bem sucedidos — acrescentou, dando-me uma palmada no ombro, num súbito acesso de bom humor. — Agora vou dar um giro. É um simples reconhecimento. Nada farei de importante sem estar acompanhado de meu fiel camarada e ilustre biógrafo. Espere-me aqui, pois, na pior das hipóteses, dentro de uma ou duas horas estarei de volta. Se o tempo lhe parecer demasiado longo, pegue papel e tinta e inicie a narrativa de como salvamos a pátria. Senti-me invadido pelo seu bom humor, pois sabia perfeitamente que Holmes jamais abandonaria a habitual austeridade de maneiras sem ter boas razões para isso. Aguardei com impaciência seu regresso durante toda aquela infindável tarde de novembro. Finalmente, pouco depois das nove, apareceu-me um mensageiro com o seguinte bilhete: "Janto no Goldini, na Gloucester Road, Kensington. Peço-lhe para vir ter comigo imediatamente. Traga um pé-de-cabra, uma lanterna furta-fogo, um escopro e um revólver. S. H."


Belos apetrechos para um cidadão respeitável levar consigo através de ruas escuras, encobertas pelo nevoeiro! Ocultei-os debaixo do sobretudo e dirigi-me sem demora para o endereço indicado. Meu amigo estava sentado a uma mesinha redonda, junto à porta do bizarro restaurante italiano. — Já jantou? Então, faça-me companhia no café e num , cálice de curaçau. Experimente os charutos da casa. São menos mortíferos que os habituais. Trouxe os utensílios? — Estão aqui, no sobretudo. — Ótimo. Deixe-me apresentar-lhe um resumo do que já fiz, acompanhado de certas instruções a respeito do que ainda vamos fazer. Primeiro, é preciso lembrar que o cadáver do jovem foi colocado na capota do vagão. Isso tornou-se evidente desde o instante em que compreendi que o corpo tinha caído dela, e não do interior da carruagem. — Não poderia ter sido atirado de uma ponte? — Sou capaz de jurar que isso seria impossível. Se você reparar nas capotas dos vagões, verá que são ligeiramente abauladas e não há o menor anteparo em redor. Podemos afirmar, portanto, que o corpo de Cadogan West foi colocado sobre a parte superior de um dos vagões. — E como isso foi feito? — Essa é a pergunta a que devemos responder. Só existe uma possibilidade. Você sabe que os trens do metro correm fora das galerias subterrâneas em certos pontos do West End. Recordo-me vagamente de ter observado, ao percorrer esses lugares, algumas janelas pouco acima de minha cabeça. Imaginando, pois, que um trem parasse exatamente debaixo de uma dessas janelas, haveria qualquer dificuldade em depositar um cadáver sobre um dos vagões? — A idéia parece-me de todo inverossímil. — Não devemos esquecer-nos do velho axioma de que, quando todas as outras hipóteses falham, a que resta, mesmo que seja improvável, deve traduzir a verdade. No caso presente, todas as demais hipóteses são falhas. Quando descobri que o principal agente internacional, que acabava de deixar Londres, morava numa fila de casas à margem da linha do metro, fiquei tão satisfeito que você se surpreendeu com minha leviandade extemporânea. — Ah! Era esse o motivo? — Exatamente. O sr. Hugo Oberstein, da Caufield Gardens, 13, tornou-se meu objetivo. Iniciei minhas operações na Estação de Gloucester Road, onde um funcionário muito amável me acompanhou ao longo da linha e me permitiu verificar não somente que as janelas da escada de serviço da Caulfield Gardens se abrem sobre os trilhos, mas também que, fato ainda mais essencial, devido à intersecção de uma das linhas mais importantes, os trens às vezes ficam retidos, durante vários minutos, exatamente naquele ponto. — Magnífico, Holmes! O caso está resolvido! — Calma, calma, Watson. Fizemos progressos; a meta, no entanto, ainda se encontra distante. Ora, depois de ter estudado os fundos da casa na Caulfield Gardens, dirigi-me à parte da frente e convenci-me de que o pássaro tinha realmente batido a linda plumagem. A casa é espaçosa, mas, pelo que pude ver, está vazia no andar superior. Oberstein morava ali com um único criado, provavelmente cúmplice de inteira confiança. Devemos lembrar-nos de que Oberstein partira para o continente com o fito de negociar sua presa, não com a idéia de fugir. Não tinha razões para temer um mandado de prisão, nem jamais lhe teria passado pela cabeça a possibilidade de uma busca domiciliar por parte de um policial amador. Contudo, é precisamente isso o que vamos fazer. — Não poderíamos obter um mandado e legalizar a busca?


— Impossível, diante da falta de provas. — Que esperanças podemos alimentar? — Talvez a correspondência que houver lá dentro... — A coisa não me cheira bem, Holmes. — Caro companheiro, você ficará de guarda à rua. Eu me encarregarei da parte delituosa. Não é ocasião para hesitar diante de ninharias. Pense no bilhete de Mycroft, no Almirantado, no ministério, na alta personalidade que aguarda notícias. Precisamos agir. Minha resposta foi erguer-me da mesa. — Tem razão, Holmes, devemos agir. Ele levantou-se de súbito e apertou-me a mão. — Sabia que não iria abandonar-me no último momen to — disse-me. Por um instante vi em seus olhos algo insólito, que chegava a parecer ternura; quase imediatamente, porém, voltou a ser o homem prático e autoritário de sempre. — Temos cerca de oitocentos metros de caminho, mas não há pressa. Vamos a pé. Cuidado para não deixar cair os instrumentos. Sua prisão como pessoa suspeita traria complicações desastrosas! A Caulfield Gardens era constituída de uma dessas fileiras de casas de fachada lisa, com pórtico e pilares, produto característico dos meados da época vitoriana, no coração do West End de Londres. Na casa vizinha à que procurávamos parecia haver uma festa de crianças, pois através da noite ressoavam um alegre burburinho de vozes infantis e os acordes de um piano. O nevoeiro continuava espesso e protegia-nos como sombra amiga, Holmes acendeu a lanterna e dirigiu o jato de luz para a pesada porta. — Eis um obstáculo difícil de transpor — disse. — Além de fechada à chave, deve ter uma tranca. Creio que (seremos mais bem sucedidos nos fundos da casa. Há uma excelente arcada lá embaixo, sob a qual poderemos ocultar-nos no caso de um policial demasiado zeloso vir interromper-nos. Ajude-me a saltar o muro, Watson, e farei o mesmo por você. Um minuto depois, encontrávamo-nos no pátio. Mal alcançáramos a sombra, ouvimos os passos de um policial ecoarem na névoa. Logo que o ritmo cadenciado morreu ao longe, Holmes tentou abrir a porta inferior. Vi-o curvar-se e empurrar até que esta, com um estalido seco, se escancarou. Precipitamo-nos através da escura passagem, fechando a porta do pátio atrás de nós. Holmes precedia-me na escada curva e desprovida de passadeira. O pequeno jorro de luz amarelada da lanterna projetou-se sobre uma janela baixa. — Aqui está, Watson... deve ser esta. Abriu-a, e ouvimos de súbito um murmúrio abafado, áspero, que foi aumentando progressivamente até se transformar num estrondo fragoroso: era um trem que passava por nós na escuridão. Holmes percorreu com a luz da lanterna o peitoril da janela- Estava coberto de fuligem vomitada pelas locomotivas em trânsito. Contudo, a superfície negra estava apagada e raspada em alguns pontos. — Pode se ver onde apoiaram o


cadáver. Veja, Watson! O que é isto? Trata-se, sem dúvida, de manchas de sangue — afirmou, apontando para leves sinais descoloridos ao longo do caixilho da janela. — Ficaram impressas também na pedra da escada. A demonstração é completa. Esperemos aqui até que um trem pare. A demora não foi grande. O trem seguinte surgiu com estrondo na galeria, como o outro, mas retardou a marcha no espaço aberto e, em seguida, com um ranger de freios, parou exatamente debaixo de nós. Do parapeito da janela até a capota dos vagões a distância não chegava a um metro e vinte. Holmes cerrou a janela sem fazer ruído. — Até aqui nossa hipótese está comprovada — observou. — Que pensa de tudo isso, Watson? — É sua obra-prima. Jamais você se elevou a maior altura. — Nesse ponto discordo de você. Desde o momento em que deduzi que colocado sobre a capota, intuição, aliás, fácil de compreender, o resto era não fossem os graves interesses que o envolvem, o caso até aqui seria Nossas dificuldades, porém, ainda não foram superadas. Todavia, talvez nesta casa algo que nos possa auxiliar.

o corpo fora inevitável. Se insignificante. encontremos

Tínhamos subido a escada de serviço e entráramos no apartamento do primeiro andar. Era constituído de uma série de aposentos: a sala de jantar, sobriamente mobiliada, nada continha de interessante. O segundo aposento, um quarto, apresentava-se nas mesmas condições. A sala restante, porém, parecia mais prometedora, e meu companheiro preparou-se para fazer ali uma busca em regra. Estava repleta de livros e papéis, e evidentemente era utilizada como escritório. Rápida e meticulosamente, Holmes revistou o conteúdo de todas as gavetas e armários, mas nenhuma luz indicadora de êxito veio iluminar-lhe o rosto austero. Ao cabo de uma hora de trabalho, não tinha feito progresso algum. — Aquele velhaco apagou todos os rastros — disse. — Nada deixou que o incriminasse. Destruiu ou removeu toda a correspondência comprometedora. Esta é nossa última esperança. Era um pequeno cofre de ferro que se encontrava sobre a escrivaninha. Holmes abriu-o com o auxílio do escopro. Continha vários rolos de papel cobertos de cifras e cálculos, sem a menor indicação, porém, do assunto a que se referiam. A repetição das palavras "pressão da água" e "pressão por polegada quadrada" sugeria uma possível relação com um submarino. Holmes pô-las de lado com ar impaciente. Restava apenas um envelope que encerrava pequenos recortes de jornal. Deixou-os cair sobre a mesa e, de súbito, compreendi pela expressão de seu rosto que suas esperanças se haviam reavivado. — O que é isto, Watson? Hem? O que é isto? Recortes de uma série de mensagens insertas na seção de anúncios de um jornal. Os tipos e o papel parecem indicar o Daily Telegraph. Ângulo superior direito da página. Nenhuma data... mas é fácil pô-los em ordem. Este deve ser o primeiro: "Esperava receber notícias mais cedo. Concordo com as exigências. Escreva pormenorizadamente para o endereço contido no cartão. — Pierrot". — Eis o seguinte: "Demasiado complexo para descrevê-lo. Necessito relatório completo. O pagamento ser-lhe-á feito logo após a entrega da mercadoria. — Pierrot". — Agora vem este: "Negócio urgente. Preciso retirar oferta, a não ser que o contrato seja inteiramente


executado. Marque encontro por carta. Confirmarei por anúncio. — Pierrot". — E finalmente: "Segunda-feira, à noite, depois das nove. Duas pancadas. Apenas nós dois. Não seja tão desconfiado. Pagamento à vista na entrega da mercadoria. — Pierrot". — Uma cadeia absolutamente sem falhas, Watson! Se conseguíssemos ao menos descobrir quem está na outra ponta! Sentou-se, mergulhado em seus pensamentos, tamborilando com as pontas dos dedos na mesa. Pôr fim, levantou-se epentinamente. — Ora, afinal de contas, talvez não seja assim, tão difícil. Nada mais nos resta a fazer aqui, Watson. Acho melhor darmos um pulo até o Daily Telegraph e encerrarmos nosso dia de trabalho.

Mycroft Holmes e Lestrade compareceram no dia seguinte, após a refeição matinal, ao encontro que tínhamos marcado, e Sherlock Holmes os pôs a par de nossas atividades do dia anterior. O homem da Scotland Yard sacudiu a cabeça ao ouvir o relato de nossa violação de domicílio. — Não podemos usar esses meios, sr. Holmes — resmungou. — Não admira que obtenha resultados superiores aos nossos. Entretanto, qualquer dia o senhor pode ultrapassar os limites e meter-se em apuros, juntamente com seu amigo. — Pela Inglaterra, a terra natal e a beleza. Que tal, Watson? Imolados no altar da pátria! Mas o que você pensa de tudo isso, Mycroft? — Ótimo, Sherlock! Simplesmente admirável! Mas o que pretende fazer? Holmes apanhou o Daily Telegraph de cima da mesa. — Viu a mensagem de hoje de Pierrot? — Como?! Outra? — Sim, ei-la. "Hoje à noite. Mesma hora. Mesmo lugar. Duas pancadas. Assunto de importância vital. Sua própria segurança em jogo. — Pierrot." — Por Deus! — exclamou Lestrade. — Se ele for, nós o apanharemos! — Assim pensei ao mandar publicar o anúncio. Creio que, se puderem acompanhar-nos, por volta das oito horas, à Caufield Gardens, poderemos aproximar-nos de uma solução. Uma das características mais notáveis de Sherlock Holmes era a faculdade de afastar as preocupações e fixar o espírito em coisas de menor monta, quando se convencia de que não lhe era possível continuar a trabalhar com proveito. Lembro-me de que ele passou todo aquele memorável dia absorvido numa monografia, a qual se propusera escrever, sobre os Motetos polifônicos de Lassus. Quanto a mim, era completamente desprovido desse poder de abstração e, por conseguinte, as horas pareciam intermináveis. A enorme importância nacional do fato, a ansiedade reinante nos mais elevados círculos governamentais, a própria natureza da experiência que íamos tentar — tudo concorria para me pôr os nervos em frangalhos. Senti um grande alívio quando, finalmente, após uma ligeira refeição, nos lançamos em nossa expedição. Encontramo-nos com Mycroft e Lestrade em frente à Estação de Gloucester Road. A porta dos fundos da residência de Oberstein tinha sido aberta na noite anterior, e eu fui obrigado a entrar e abrir-lhes a do vestíbulo, pois Mycroft recusara-se, irredutível e indignado, a pular a grade de ferro. Às nove horas, estávamos todos sentados


no escritório, esperando pacientemente o nosso homem. Duas horas decorreram lentamente. Ao soar das onze, as badaladas vagarosas do grande relógio da igreja próxima pareciam fazer submergir todas as nossas esperanças. Lestrade e Mycroft agitavam-se impacientes em suas cadeiras e consultavam os próprios relógios duas vezes por minuto. Holmes mostrava-se silencioso e calmo, as pálpebras semicerradas, mas com todos os sentidos de sobreaviso. De repente, levantou a cabeça. — Está chegando — murmurou. Passos furtivos ecoaram através da porta. Foram um pouco adiante e voltaram. Ouvimos um arrastar de pés do lado de fora e, logo em seguida, dois golpes secos da aldrava. Holmes ergueu-se e fez-nos sinal para permanecermos sentados. O bico de gás do vestíbulo estava restringido ao mínimo. Abriu a porta da rua e, quando o vulto escuro deslizou à sua frente, voltou a fechá-la e trancou-a. "Por aqui", ouvimo-lo dizer, e, logo em seguida, o homem encontrava-se diante de nós. Holmes seguira-o de perto, e enquanto ele se voltava com um grito de espanto, agarrou-o pelo pescoço e atirou-o para dentro da sala. Antes que o prisioneiro pudesse recuperar o equilíbrio, a porta estava fechada, e Holmes, postado diante dela. O homem lançou um olhar em torno de si, cambaleou e caiu sem sentidos no soalho. Com o choque, o chapéu de abas largas voou-lhe da cabeça e o cachecol deslocou-se, apresentando a nossos olhos a barba longa e rala e as feições suaves e delicadas do coronel Valentine Walter. Holmes soltou um assobio de surpresa. — Desta vez, você pode considerar-me um asno, Watson — disse-me. — Não era este o pássaro que eu esperava. — Quem é? — perguntou, ansioso, Mycroft. — O irmão mais novo do falecido Sir James Walter, chefe do Departamento de Embarcações Submarinas. Sim, sim; agora começo a entender. Ele está recuperando os sentidos. Acho melhor deixarem o interrogatório a meu cargo. Tínhamos transportado o corpo exânime para o sofá. Um momento depois, nosso prisioneiro sentou-se, relanceou o olhar aterrorizado em redor e passou a mão pela testa, como se não pudesse acreditar nos próprios olhos. — O que é isso? — perguntou. — Vim aqui fazer uma visita ao sr. Oberstein. — Já sabemos de tudo, coronel Walter — respondeu Holmes. — Não posso compreender como um cidadão inglês tenha procedido dessa forma. No entanto, toda a correspondência e as relações que manteve em Oberstein são do nosso conhecimento. Sabemos também das circunstâncias relativas à morte do jovem Cadogan West. Permita-me aconselhá-lo a atenuar sua falta, arrependendo-se e fazendo uma confissão completa, pois ainda restam certas minúcias que só podemos obter de sua própria boca. O homem soltou um gemido e escondeu o rosto nas mãos. Esperamos algum tempo, mas ele se manteve silencioso. — Posso garantir-lhe — insistiu Holmes — estar de posse de todos os elementos


essenciais. Sabemos que tinha urgente necessidade de dinheiro; que tirou o molde das chaves de seu irmão e entrou em contato com Oberstein, que respondia às suas cartas por intermédio da seção de anúncios do Daily Telegraph. Estamos informados de que o senhor se dirigiu ao departamento de seu irmão, na noite de segunda-feira, protegido pelo nevoeiro, quando foi visto e seguido pelo jovem Cadogan West, que provavelmente tinha sérias razões para desconfiar de sua pessoa. Ele assistiu ao roubo, mas não pôde dar o alarme, pois suspeitava que o senhor estivesse encarregado de levar os documentos a seu irmão, em Londres. Pondo de parte todas as suas preocupações particulares, como bom cidadão que era, seguiu-o de perto através do nevoeiro e não o perdeu de vista até o senhor ter alcançado esta casa. Nessa ocasião ele interveio, e foi assim, coronel Walter, que o senhor juntou à traição o crime ainda mais abominável do assassinato. — Não! Não fui eu! Diante de Deus, juro que não fui eu! — gritou nosso desgraçado prisioneiro. — Conte-nos então como Cadogan West encontrou a morte e como colocaram o cadáver sobre a capota de um vagão. — Contarei tudo. Prometo fazê-lo. Eu me encarreguei do resto, confesso-o. Foi exatamente como o senhor disse. Precisava pagar um débito na Bolsa, e urgia obter o dinheiro. Oberstein ofereceu-me cinco mil libras para me salvar da ruína. Quanto ao assassinato, porém, estou tão inocente como os senhores. — Que aconteceu então? — West suspeitava de mim e seguiu-me, como o senhor disse. Não o notei senão ao encontrar-me diante da porta desta casa. A névoa estava demasiado densa, e não se distinguia nada a dois metros de distância. Eu tinha dado as duas pancadas convencionais na porta, e Oberstein viera abri-la. West aproximou-se subitamente de nós e perguntou-nos o que pretendíamos fazer com os papéis. Oberstein tinha na mão um cassetete pesado e curto, que sempre o acompanhava. West, ao tentar penetrar à força na casa, em nosso encalço, foi atingido com um golpe na cabeça desferido por Oberstein. A pancada foi fatal. Dali a cinco minutos, o rapaz estava morto. Jazia inerte no vestíbulo, e não sabíamos que decisão tomar. Oberstein lembrou-se então dos trens que paravam debaixo da janela dos fundos. Antes disso, porém, examinou os documentos que eu trouxera. Afirmou-me que precisava apenas de três, os de maior valor, e que ia ficar com eles. "Impossível", protestei; "haverá um tremendo escândalo em Woolwich se não forem restituídos." "Preciso ficar com eles", insistiu, "pois são de tal modo técnicos que é impossível copiá-los em pouco tempo." "Mas devo levá-los de volta esta noite", repliquei. Oberstein refletiu por alguns momentos e, depois, disse ter encontrado uma solução. "Fi-carei com os três de que preciso. Poremos os outros nos bolsos deste rapaz. Quando for encontrado, certamente lhe atribuirão a culpa de tudo." Eu não via outra saída, e por isso fizemos como ele tinha sugerido. Aguardamos meia hora à janela até que um trem parasse. A densidade do nevoeiro punha-nos a salvo de olhares indiscretos, e não tivemos a menor dificuldade em depositar o corpo de West sobre o vagão. Aí terminou o caso, no que me diz respeito. — E seu irmão? — Nada disse, mas já me surpreendera uma vez mexendo em suas chaves, e creio que desconfiava de mim. Percebi-lhe a suspeita nos olhos. Como sabem, o escândalo deixou-o


acabrunhado. Fez-se na sala um longo silêncio, interrompido afinal por Mycroft Holmes. — Não poderia reparar o mal que fez? Isso lhe aliviaria a consciência e possivelmente atenuaria seu castigo. — Como poderia fazer essa reparação? — Onde se encontra Oberstein com os documentos? — Não sei. — Não lhe deu nenhum endereço? — Disse-me que, se lhe escrevesse para o Hotel du Louvre, em Paris, as cartas, com toda a probabilidade, lhe chegariam às mãos. — Então ainda há remédio — observou Sherlock Holmes. — Farei tudo o que puder. Não nutro a menor simpatia por Oberstein, que foi o causador de minha desgraça. — Aqui tem papel e tinta. Sente-se a essa mesa e escreva o que vou ditar. Preencha o envelope com o endereço indicado. Muito bem. Vamos agora ao texto da carta: "Prezado senhor: Com referência à nossa transação, sem dúvida já terá notado que ainda falta nos planos um pormenor de grande importância. Possuo um desenho que os tornará completos. Para obtê-lo, porém, vi-me envolvido em ulteriores complicações, o que me força a pedir-lhe um novo adiantamento de quinhentas libras. Não confio na remessa do desenho pelo correio, e só aceitarei ouro ou notas como pagamento. Poderia ir ao seu encontro; todavia, minha ausência do país, neste momento, suscitaria suspeitas. Espero, portanto, encontrá-lo no salão de fumar do Charing Cross Hotel, sábado, ao meio-dia. Lembre-se de que aceitarei unicamente papel-moeda inglês ou ouro". — Isso será o bastante. Ficarei deveras surpreso se essa carta não trouxer nosso homem de volta. E trouxe-o de fato! É um episódio que já faz parte da história — da história secreta de uma nação, que é freqüentemente muito mais interessante do que suas crônicas públicas. Oberstein, ansioso por levar inteiramente a cabo o golpe mais brilhante de sua carreira, caiu na armadilha e acabou por cumprir uma pena de quinze anos numa prisão britânica. Em sua mala foram encontrados os inestimáveis planos do Bruce-Partington, que ele pusera a leilão em: todos os centros navais da Europa. O coronel Walter morreu no cárcere, ao final do segundo ano de sua sentença. Quanto a Holmes, regressou com novas forças à monografia sobre os Motetos polifônicos de Lassus, a qual foi lançada em edição limitada, e julgada pêlos conhecedores como a última palavra a respeito do assunto. Soube incidentalmente, algumas semanas mais tarde, que meu amigo tinha passado um dia em Windsor, de onde voltou com um alfinete de gravata que ostentava uma magnífica esmeralda. Quando lhe perguntei se o tinha comprado, respondeu-me que lhe fora dado de presente por uma nobre dama, em cujo interesse tivera a fortuna de levar a bom termo uma delicada missão. Não disse mais nada; creio, porém, ter adivinhado o nome da augusta senhora, e estou certo de que aquele alfinete de esmeralda trará eternamente à memória de meu amigo a aventura dos planos do submarino Bruce-Partington.


Ilustraçþes: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House Voltar


Arthur Conan Doyle

O Detetive Agonizante Título original: The Dying detective

Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1913

Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de The Dying detective publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.

A sra. Hudson, senhoria de Sherlock Holmes, era uma criatura dotada de paciência infinita. Não só seu apartamento do primeiro andar era continuamente invadido por legiões de pessoas de aspecto estranho e muitas vezes indesejáveis, mas seu extraordinário inquilino mostrava uma extravagância e uma irregularidade de vida capazes de pôr à prova sua resignação. O incrível desmazelo, a paixão pela música nas horas mais insólitas, os exercícios ocasionais de tiro ao alvo no interior do apartamento, as fantásticas e geralmente malcheirosas experiências científicas, e a atmosfera de violência e perigo que o rodeava, faziam de Sherlock Holmes o pior pensionista de Londres. Por outro lado, no entanto, ele pagava um aluguel principesco, e não tenho dúvidas de que todo o prédio poderia ser comprado com o dinheiro que Holmes pagou por seu apartamento durante o tempo em que vivi com ele. A pobre mulher tratava-o com a mais profunda reverência, e jamais ousava interferir em sua conduta, por mais descabida que fosse. Dedicava-lhe também grande estima, pois Holmes usava, no trato com as senhoras, de gentileza e atenção fora do comum. Embora detestasse o sexo oposto e não tivesse a menor confiança nele, fora sempre um adversário cavalheiresco. Sabendo como era sincera a amizade que esta senhora lhe dedicava, ouvi atenta e ansiosamente a narrativa que ela veio fazer-me em meu apartamento, no segundo ano de minha vida de homem casado, e com a qual me pôs a par do triste estado a que meu amigo estava reduzido. — Ele está à morte, dr. Watson — disse-me. — Há três dias que piora a olhos vistos, e não sei se conseguirá resistir até a noite. Não quis deixar-me chamar um médico. Hoje de manhã, quando lhe vi o rosto encovado e aqueles enormes olhos brilhantes fitando-me, não pude resistir mais. "Com sua licença ou sem ela, sr. Holmes, vou chamar um médico imediatamente", disse-lhe eu. "Se é assim, chame Watson", respondeu. Se estivesse em seu lugar, doutor, não perderia tempo, caso queira encontrá-lo com vida. Fiquei horrorizado, pois nada sabia de sua doença. É inútil dizer que me apressei a pôr o sobretudo e o chapéu, e, enquanto íamos no carro, pedi à boa criatura outros pormenores. — Pouco lhe posso dizer, doutor. Ele andava ocupado num caso lá para as bandas de Rotherhithe, numa viela junto ao rio, e voltou com essa moléstia. Caiu de cama na quarta-feira à tarde, e desde então tem permanecido deitado. Há três dias que não prova líquido ou alimento algum. — Santo Deus! Por que não chamou um médico? — Ele não o permitiu, já lhe disse. O senhor sabe como ele é autoritário! Mas não lhe resta muito tempo de vida, como verá logo que lhe puser os olhos em cima. Holmes oferecia realmente um espetáculo confrangedor. Na luz incerta daquele dia nevoento de novembro, o quarto do doente era um lugar triste, mas foi principalmente seu rosto lívido e descarnado, fitando-me do leito, que me gelou o coração. Os olhos luziam


devido à febre, havia no rubor das faces sinais de exaustão progressiva do organismo, e crostas escuras denegriam-lhe os lábios; as mãos exangues contraíam-se incessantemente sobre o cobertor, e a voz era áspera e entrecortada. Jazia inerte na cama quando entrei; contudo, minha presença fez emanar de seus olhos um brilho de lucidez. — Olá, Watson! Parece que a coisa vai mal — disse-me num fio de voz, na qual se percebiam ainda traços do antigo tom despreocupado.

Frederic Dorr Steele, 1913

— Meu caro amigo! — exclamei, dirigindo-me a ele. — Não se aproxime! Não se aproxime! — bradou, na voz cortante e imperiosa que só lhe ouvira em ocasiões de grande perigo. — Se chegar perto de mim, Watson, serei constrangido a fazer com que se retire desta casa. — Mas por quê?

— Porque assim o desejo. Não lhe basta isso? Sim, a sra. Hudson tinha razão. Estava mais autoritário que nunca; todavia, era triste vê-lo naquele estado. — Desejava apenas ajudá-lo — murmurei. — Exatamente! Você me será muito mais útil se fizer o que estou dizendo. — É claro, Holmes. A rispidez de suas maneiras abrandou. — Você não ficou aborrecido? — perguntou ofegante. Pobre amigo, como poderia ficar aborrecido, vendo-o reduzido àquela situação? — É para seu próprio bem, Watson — rouquejou. — Para meu próprio bem? — Sei o que tenho. É a chamada moléstia dos cules de Sumatra, mal que os holandeses conhecem melhor do que nós, apesar de não terem conseguido remédio contra ele. Só uma coisa é certa: é mortal e terrivelmente contagioso. Falava com uma energia febril, enquanto suas longas mãos se agitavam e torciam na ânsia de me afastar. — Transmite-se pelo simples contato, Watson... pelo simples contato. Conserve-se à distância e tudo estará bem. — Por Deus, Holmes! Você julga que eu posso tomar isso em consideração? Não o faria nem mesmo no caso de um estranho, quanto mais quando se trata de cumprir meu dever para com um velho amigo. Fiz de novo menção de me avizinhar, mas ele repeliu-me com um olhar furioso de cólera.


— Se você ficar onde está, falarei. Caso contrário, terá de sair deste quarto. Tenho um respeito tão profundo pêlos dotes extraordinários de Holmes, que costumo sempre ceder a seus desejos, ainda quando não os compreendo. Nesse momento, porém, todo o meu instinto profissional se insurgia. Podia aceitar suas ordens em qualquer outro lugar, mas, num quarto de doente, quem mandava era eu. — Holmes — disse-lhe —, você está fora de si. Um homem enfermo é como uma criança, e eu o tratarei como tal. Queira ou não queira, vou examinar seus sintomas e tratar de curá-lo. Meu amigo lançou-me um olhar irritado: — Já que preciso dos serviços de um médico, ainda que contra minha vontade, permita-me ao menos chamar um no qual eu deposite confiança. — Então você não confia em mim? — Em sua amizade, certamente; contudo, fatos são fatos, Watson, e, afinal de contas, você não passa de um simples clínico com experiência muito limitada e dotes medíocres. É doloroso ter de lhe dizer estas coisas, mas você não me dá outra alternativa. Senti-me profundamente magoado. — Tal observação é indigna de você, Holmes. Ela revela claramente o estado de seus nervos. Todavia, se não tem confiança em mim, não lhe imporei meus serviços. Deixe-me então chamar Sir Jasper Meek ou Penrose Fisher, ou outro qualquer dos melhores médicos de Londres. Mas alguém precisa ser chamado; quanto a isso, não há dúvida. Se pensa que vou ficar aqui vendo-o morrer, sem cuidar de você ou trazer alguém que o faça, engana-se redondamente. — Acredito em suas boas intenções, Watson — disse o enfermo, entre um soluço e um gemido. — Quer que lhe demonstre sua ignorância? O que sabe você, por exemplo, a respeito da febre de Tapanuli? Que noções tem da putrefação negra de Formosa? — Nunca ouvi falar nelas. — Existem muitas doenças desconhecidas, e ignoram-se muitos problemas patológicos com relação ao Oriente, Watson. Interrompia-se a cada frase, a fim de recobrar as poucas forças que lhe restavam. — Aprendi tudo no decurso de recentes pesquisas de caráter médico-legal. Contraí esta infecção quando me encontrava empenhado nelas. Você não poderá fazer nada. — Talvez não; mas sei que o dr. Ainstree, a maior autoridade viva em doenças tropicais, está atualmente em Londres. Qualquer objeção de sua parte será inútil, Holmes. Vou buscá-lo imediatamente — retorqui-lhe, dirigindo-me, resoluto, para a porta. Jamais experimentei tamanho choque. Num abrir e fechar de olhos, o moribundo, com um salto tigrino, tinha- me interceptado o caminho. Ouvi o estalido de uma chave girando na fechadura. Um momento depois, ele tinha regressado cambaleante à cama, exausto e arquejante, após tão violento desperdício de energia. — Não me tirará esta chave nem à força, Watson. Tenho-o em meu poder, caro amigo, e aqui ficará até eu resolver o contrário. No entanto, compreendo sua atitude para comigo. — Tudo isso foi dito aos arrancos, entre


esforços terríveis para tomar fôlego, — Sei que deseja unicamente meu bem. Percebo-o com clareza. Poderá fazer o que quiser depois; antes, porém, dê-me tempo para recuperar as forças. Agora não, Watson, agora não. São quatro horas. Às seis poderá ir. — Mas isso é uma loucura, Holmes. — Somente duas horas, Watson. Prometo deixá-lo partir às seis. Quer esperar? — Parece não haver outra alternativa. — Nenhuma outra, Watson. Obrigado, não precisa me ajudar a arranjar as cobertas. Por favor, mantenha-se à distância. E agora, devo impor-lhe outra condição. Você procurará auxílio, não o do homem a que se referiu, mas do que eu escolher. — Perfeitamente. — É a primeira palavra sensata que pronuncia desde sua entrada neste quarto, Watson. Há alguns livros naquela estante. Sinto-me um pouco esgotado. Será esta a sensação de uma bateria ao verter eletricidade num mau condutor? Às seis retomaremos nossa conversação. Isso, porém, devia suceder muito antes da hora aprazada, e em circunstâncias que me causaram uma emoção quase tão grande como a motivada pelo pulo em direção à porta. Permaneci alguns minutos olhando para aquele vulto silencioso estirado sobre a cama. Tinha o rosto quase oculto pelas cobertas e parecia dormir. Incapaz de me sentar para ler, pus-me a vaguear lentamente pelo quarto, examinando os retratos de criminosos célebres com os quais as paredes estavam guarnecidas. Afinal, em meu deambular sem destino, cheguei diante do consolo da lareira. Sobre ele viam-se, espalhados em desordem, cachimbos, bolsas de tabaco, seringas, canivetes, cartuchos de revólver e diversos outros objetos. Entre estes, uma caixinha de marfim branco e preto, de tampa móvel. Atraído pela sua beleza, já tinha estendido a mão para examiná-la mais de perto, quando... Que grito medonho ele soltou... grito que ao certo deveria ter sido ouvido da rua. Fiquei gelado de susto, e meus cabelos se arrepiaram. Voltando-me rapidamente, vislumbrei um rosto convulso e dois olhos alucinados. Permaneci tolhido, com a caixinha na mão. — Ponha isso aí! Depressa, Watson... já lhe disse! Voltou a reclinar a cabeça no travesseiro e emitiu um profundo suspiro de alívio, ao ver-me pôr de novo a caixa sobre a prateleira. — Não gosto que mexam em minhas coisas, Watson. Você bem sabe disso. E pare de me atormentar. Você, médico... é suficiente para levar um paciente ao hospício. Sente-se, homem, e deixe-me repousar em paz! Esse incidente produziu uma desagradável impressão em meu espírito. A irritação, violenta e infundada, acompanhada de palavras tão rudes, de tal modo diferente de sua habitual gentileza, revelavam-me como era intensa a desorganização de sua mente. De todas as ruínas, a de um cérebro esclarecido é a mais deplorável. Sentei-me numa cadeira, terrivelmente abatido, e esperei que o tempo passasse. Ele devia estar consultando o


relógio como eu, pois, mal haviam soado as seis horas, começou a falar com a mesma animação febril. — Ouça, Watson — disse-me —, tem dinheiro trocado no bolso? — Tenho. — Moedas de prata? — Uma boa quantidade. — Quantas meias-coroas? — Cinco. — Ah! Muito poucas! Muito poucas! Que infelicidade a minha, Watson! Apesar de tudo, é melhor pô-las no bolsinho do colete, e o resto de dinheiro no bolso esquerdo das calças. Obrigado. Isso manterá melhor seu equilíbrio. Era puro delírio. Estremeceu e deixou escapar novamente dos lábios aquele ruído, misto de tosse e soluço. — Agora acenda o gás, Watson, mas tenha muito cuidado em não levantar a chama, nem por um instante, acima da metade normal. Peço-lhe para agir com cautela. Obrigado, assim está ótimo. Não, não precisa fechar as cortinas. Faça o favor de colocar algumas cartas e jornais sobre esta mesa, a meu alcance. Obrigado. Agora um pouco daquelas quinquilharias que estão no consolo da lareira. Ótimo, Watson! Encontrará aí uma pinça para cubinhos de açúcar. "Queira pegar com ela essa caixinha de marfim. Ponha-a aqui entre os jornais. Muito bem! Agora pode ir buscar, no número 13 da Lower Burke Street, o sr. Culverton Smith." Para dizer a verdade, meu desejo de chamar um médico diminuíra, pois meu amigo estava num estado visível de delírio, e me parecia perigoso abandoná-lo naquele instante. Todavia, mostrava-se agora ansioso por consultar a pessoa indicada, sem embargo de sua relutância anterior. — Nunca ouvi tal nome — respondi. — É provável, meu bom Watson. Talvez fique surpreendido ao saber que a pessoa mais versada nesta moléstia, no mundo, não é um médico, mas um lavrador. O sr. Culverton Smith é um ilustre fazendeiro de Sumatra, atualmente de visita a Londres. Um surto epidêmico da doença em sua propriedade, distante de qualquer auxílio médico, forçou-o a estudá-la por conta própria, com resultados notáveis. Como é criatura muito metódica, não queria que você fosse procurá-lo antes das seis, pois tinha a certeza de que não o encontraria em casa. Se conseguir convencê-lo a vir aqui e conceder-nos o benefício de sua experiência, única no campo desta doença, cujo estudo tem sido seu passatempo favorito, estou certo de que ele poderá curar-me. Reproduzi as palavras de Holmes como se tivessem sido pronunciadas consecutivamente, sem explicar que eram interrompidas por súbitas faltas de ar e pelo contínuo contrair das mãos, que indicavam o sofrimento pelo qual estava passando. Naquelas poucas horas, seu aspecto piorara bastante. A vermelhidão do rosto era ainda mais pronunciada, os olhos luziam com maior brilho na concavidade das órbitas escuras, e um suor gélido cobria-lhe a fronte. Ainda conservava, contudo, o tom imperioso da voz que havia de acompanhá-lo até o último alento. — Conte-lhe exatamente como me deixou — disse. — Transmita-lhe com fidelidade a impressão produzida por mim em seu espírito... a de um moribundo... um moribundo delirante. Francamente, não consigo compreender por que razão todo o leito do oceano não se tornou uma única massa compacta de ostras, tão prolíferas me parecem essas criaturas. Oh! Estou divagando. É estranho como o cérebro


controla o cérebro. Que dizia eu, Watson? — Dava-me instruções para falar com o sr. Culverton Smith. — Ah! Sim; lembro-me agora. Minha vida depende disso. Insista com ele. Não estamos em muito boas relações. O sobrinho dele... eu suspeitava de algo criminoso e contei-lhe isso. O rapaz morreu em condições horríveis. Ele nutre certo rancor por mim. Procure abrandá-lo, Watson. Sei que não falhará, pois jamais me desiludiu. Existem, sem dúvida, inimigos naturais que limitam o aumento desses moluscos. Você e eu, Watson, fizemos nossa obrigação. Será, então, o universo submergido pelas ostras? Não, não; seria monstruoso! Você transmitirá fielmente a impressão que produzi em seu espírito. Deixei-o com a dolorosa impressão daquele esplêndido cérebro proferindo disparates como uma criança. Tinha-me entregado a chave, e apressei-me a guardá-la comigo, receoso de que ele se trancasse por dentro. A sra. Hudson esperava no corredor, trêmula e chorosa. Ao descer as escadas, ainda ouvi a voz aguda e penetrante de Holmes a expandir-se numa canção desconexa. Na rua, enquanto chamava um carro, um homem dirigiu-se a mim através do nevoeiro. — Como passa o sr. Holmes, doutor? — indagou. Era um velho conhecido, o inspetor Morton, da Scotland Yard, vestido à paisana. — Muito mal — respondi. Ele fitou-me de maneira tão singular que, se não fosse demasiado perverso, diria ter-lhe obrigado no rosto, à luz tênue do lampião, um lampejo de alegria. — Ouvi falar nisso — observou. Entretanto, o carro chegou e nós nos separamos. A Lower Burke Street era um conjunto de lindas casas residenciais situadas no vago limite entre Notting Hill e Kensington. O carro parou em frente a uma casa que apresentava um aspecto sóbrio e uma delicada imponência, com suas grades de ferro antiquadas, sua porta maciça e seus luzentes ornatos de bronze. Tudo isso condizia com o solene mordomo que surgiu, enquadrado na rósea claridade de uma lâmpada colorida pendente do vestíbulo. — O sr. Culverton está, sim, senhor. Dr. Watson? Muito bem. Levar-lhe-ei seu cartão. Meu humilde nome e meu título não pareceram impressionar o sr. Culverton Smith. Através da porta entreaberta, ouvi uma voz aguda e petulante: — Quem é esse sujeito? O que ele quer? Com mil demônios, Staples, quantas vezes já lhe disse que não desejo ser perturbado nas minhas horas de estudo? Percebi a voz do mordomo, submissa, gaguejando desculpas e explicações. — Não importa, não posso recebê-lo, Staples. Não admito que meu trabalho seja interrompido desta maneira. Diga-lhe que não estou em casa. Que volte amanhã de manhã, se deseja de fato falar comigo. Novamente o mesmo murmúrio respeitoso. — Está bem, está bem, dê-lhe meu recado. Pode vir amanhã de manhã, se quiser. Meu trabalho não pode ser retardado. Pensei em Holmes, debatendo-se em seu leito de enfermo e talvez contando inquieto os minutos, na expectativa de que eu pudesse levar-lhe socorro. A ocasião não era para cerimônias. Sua vida dependia de minha presteza de ação. Antes que o mordomo me tivesse transmitido o recado, eu o empurrara para o lado e irrompera na sala. Com um grito estridente de cólera, um


homem levantou-se de uma poltrona, ao pé da lareira. Vi à minha frente um enorme rosto queimado de sol, com uma pele grosseira e untuosa, vasto queixo duplo e olhos cinzentos, sombrios e ameaçadores, fitando-me sob as espessas sobrancelhas grisalhas. O largo crânio estava coberto por um barrete de veludo, posto elegantemente de lado sobre a superfície rosada e luzidia. A cabeça era descomunalmente grande, e todavia, baixando o olhar, vi, para minha surpresa, que a figura do homem era pequena e frágil, de ombros e costas torcidos como os de alguém que na infância tivesse sofrido de raquitismo. — Que história é essa? — bradou em voz estentórea. — Que significa essa intrusão? Não lhe tinha mandado dizer que só poderia recebê-lo amanhã? — Sinto muito — respondi —, trata-se, porém, de um assunto inadiável. O sr. Sherlock Holmes... A simples menção do nome de meu amigo produziu extraordinário efeito no homenzinho. A expressão de cólera desapareceu-lhe imediatamente do rosto. Sua fisionomia tornou-se tensa e vigilante. — Vem da parte de Holmes? — indagou. — Acabo de deixá-lo. — Que aconteceu? Como está ele? — Acha-se gravemente enfermo, em estado desesperador. Eis por que vim procurá-lo. O homem fez sinal para que me sentasse e voltou a acomodar-se na poltrona. Nesse momento vislumbrei-lhe o rosto, refletido no espelho que se encontrava sobre o consolo da lareira. Teria jurado ler nele um sorriso maligno, odioso. Todavia, convenci-me de que fora apenas o efeito de alguma contração nervosa, pois logo em seguida encarou-me com ar de sincera preocupação. — Lamento-o muito — disse ele. — Conheço o sr. Holmes apenas através de certos negócios em que estivemos empenhados, mas nutro o máximo respeito por seu talento e caráter. Ele é um curioso do crime, como eu o sou das moléstias. Para ele, o delinqüente, para mim, o micróbio. Eis minhas prisões — continuou, indicando-me uma fileira de frascos e tubos que se encontravam sobre uma mesinha. — Nesses meios de cultura cumprem pena alguns dos piores malfeitores do mundo. — É exatamente por causa de seus conhecimentos especializados que Holmes deseja vê-lo. Ele o tem em alto conceito, e julga ser o senhor o único homem em Londres que pode salvá-lo. O homenzinho estremeceu, e seu elegante barrete escorregou para o chão. — Como? — perguntou. — Por que acredita o sr. Holmes que eu o possa socorrer na contingência em que se encontra? — Por causa de sua experiência no tocante a doenças tropicais. — Mas por que ele julga que a moléstia que contraiu é de origem tropical?


— Porque no decurso de certa investigação profissional recente, esteve trabalhando nas docas entre marinheiros malaios. O sr. Culverton Smith sorriu benevolamente e apanhou o barrete do chão. — Ah? É isso? Vai ver que a coisa não é tão grave como pensa. Há quanto tempo está doente? — indagou. — Há cerca de três dias. — Tem sido acometido de delírios? — De vez em quando. — Hum! Isso me parece grave. Seria desumano não atender a seu pedido. Não tolero que ninguém me interrompa nas horas de trabalho, dr. Watson, mas este é, sem dúvida, um caso excepcional. Num minuto estarei pronto para acompanhá-lo. Lembrei-me de uma recomendação de Holmes. — Neste momento tenho outro compromisso — repliquei. — Está bem; irei sozinho. Sei o endereço de Holmes. Pode ficar certo de que estarei lá dentro de meia hora no máximo. Regressei ao quarto de Holmes com o coração apertado no peito. Por tudo quanto me era dado saber, receava que durante minha ausência tivesse sobrevindo algum acesso fatal; no entanto, para meu grande alívio, ele melhorara sensivelmente durante esse intervalo. Seu aspecto ainda era impressionante, mas já não delirava e podia falar, com voz fraca, é verdade, mas com uma lucidez e uma presença de espírito maiores que de costume. — Então, Watson, falou com ele? — Falei; já deve estar a caminho. — Magnífico, Watson! Magnífico! Você é o melhor dos mensageiros. — Ele queria vir comigo. — Isso não seria possível, Watson. Seria preciso impedi-lo a todo custo. Ele perguntou o que eu tinha? — Sim; falei-lhe a respeito dos marinheiros malaios do East End. — Muito bem! Fez tudo o que um bom amigo poderia fazer. Agora pode desaparecer de cena. — Mas devo esperar para ouvir a opinião dele, Holmes! — Está certo; contudo, tenho motivos para supor que sua opinião será mais franca e valiosa se ele se julgar a sós comigo. Há espaço suficiente para se esconder atrás da cabeceira da cama. — Meu caro Holmes! — Creio não haver outro remédio, Watson. O quarto não se presta para alguém se esconder, e por isso mesmo não dá margem a suspeitas. Contudo, aí atrás, Watson, ficará bem. Subitamente, sentou-se na cama, demonstrando uma viva atenção na fisionomia descarnada.


— Ouço o barulho de rodas de carro. Depressa, homem, se me quer bem! E não se mexa, aconteça o que acontecer... aconteça o que acontecer, ouviu? Não fale! Não faça o menor gesto! Limite-se a escutar com toda a atenção. Num instante, todo aquele inesperado acesso de energia o abandonou como por encanto, e suas palavras dominadoras e autoritárias perderam-se nos murmúrios desconexos e ininteligíveis do delírio. Do esconderijo para onde eu fora empurrado com tanta pressa, ouvi o soar de passos na escada e, em seguida, o abrir e fechar da porta do quarto. Depois, para minha surpresa, seguiu-se longo silêncio, interrompido apenas pela respiração irregular e ofegante do enfermo. Imaginei que nosso visitante estivesse de pé, ao lado do leito, olhando para a figura sofredora de meu amigo. Finalmente, quebrou-se o estranho silêncio. — Holmes! — exclamou o recém-chegado, no tom peremptório de quem procura acordar alguém. — Holmes! Não está me ouvindo, Holmes? Ouviu-se um roçar de panos, como se ele o houvesse sacudido rudemente pêlos ombros. — É o sr. Smith? — sussurrou Holmes. — Quase não ousava esperar que viesse. O outro riu. — Nem eu teria imaginado — redargüiu. — No entanto, como vê, estou aqui. Deve estar sentindo remorso, Holmes... — É muita bondade de sua parte... muita nobreza, Prezo muito o valor de seus conhecimentos especializados. Nosso visitante deu uma risadinha sarcástica. — Bem sei. Felizmente, você é o único homem em Londres que tem conhecimento deles. Já sabe o que tem? — A mesma coisa — respondeu Holmes. — Ah! Reconhece os sintomas? — Sem dúvida. — Ora, isso não me surpreende, Holmes. Não me espantaria se se tratasse da mesma moléstia. Se for esse o caso, os prognósticos são péssimos. O pobre Victor já era um cadáver no quarto dia... rapaz forte e cheio de vida como era. Foi de fato uma coisa extraordinária, como você disse, ele ter contraído, no coração de Londres, essa invulgar doença asiática... doença sobre a qual, além disso, eu tinha feito tão acurados estudos. Singular coincidência, Holmes. Houve grande habilidade de sua parte em notá-la, mas muita falta de caridade em sugerir que, entre esses dois fatos, existia relação de causa e efeito. — Sabia que o senhor era o culpado. — Ah! Sabia então? Bem, seja como for, não pôde prová-lo. Mas que história é essa de andar me difamando daquela maneira e depois vir ajoelhar-se diante de mim a pedir auxílio, mal se encontra em dificuldades? Que espécie de brincadeira é essa, hein? Ouvi a respiração áspera e difícil do enfermo. — Dê-me um pouco de água — balbuciou. — Está muito próximo do fim, meu caro, mas não quero que se vá antes de lhe dizer uma palavra. Eis por que lhe dou água. Cuidado, não a entorne! Muito bem. Compreende o que estou dizendo?


Holmes gemeu. — Faça tudo o que puder por mim. Esqueçamos o passado — murmurou. — Esquecerei tudo o que disse.... Juro-lhe que o farei. Cure-me e esquecerei tudo. — Esquecerá o quê? — Ora, a morte de Victor Savage. O senhor acabou por admitir que foi o autor dela. Esquecerei isso. — Poderá esquecer ou lembrar-se, como melhor lhe aprouver. Não o verei no banco das testemunhas, meu caro Holmes, mas num lugar muito diferente, onde não se diz nada, garanto-lhe. Pouco me importa que saiba como meu sobrinho morreu. Não é nele que estamos falando, mas no senhor. — Eu sei. — O sujeito que me procurou... esqueci o nome dele... disse-me que você contraíra essa doença quando trabalhava no East End, entre um grupo de marinheiros. — Não há outra explicação. — Você se orgulha de sua inteligência, Holmes, não é verdade? Julga-se muito esperto, não é? Pois agora encontrou outro mais esperto ainda. Reflita um instante, meu caro. Não se recorda de outra maneira pela qual pudesse ter apanhado isso? — Não sei dizer. Minha memória esvaiu-se. Pelo amor de Deus, auxilie-me. — Pois bem, vou ajudá-lo. Ajudá-lo a compreender o estado em que se encontra, e como chegou a ele. Quero que o saiba antes de morrer. — Dê-me qualquer coisa que me acalme esta dor! — Ah! Dói muito, não é? Sim, os cules costumam berrar ao aproximar-se o fim. Suponho que seja uma espécie de cãibra. — Sim; sinto cãibras. — Bem; mesmo assim poderá ouvir o que vou lhe dizer. Ouça, então! Não se lembra de nenhum incidente estranho que lhe tivesse acontecido pouco antes de aparecerem os primeiros sintomas? — Não; não consigo lembrar-me de nada. — Pense bem. — Estou muito mal para poder pensar. — Pois bem, eu o ajudarei. Não chegou nada pelo correio? — Pelo correio? — Uma caixinha, por exemplo. — Estou desfalecendo... vou morrer! — Escute, Holmes! Tive a impressão de que ele sacudia o moribundo, e foi a custo que me contive em meu esconderijo. — Precisa me ouvir. Precisa me ouvir, entendeu? Recorda-se de uma caixinha... uma caixinha de marfim? Chegou na quarta-feira. Você a abriu... lembra-se?


— Sim, eu a abri. Havia dentro uma agulha movida por uma mola forte. Algum jogo... — Não era jogo, como verá à sua própria custa. Idiota, procurou sua própria ruína. Quem o mandou atravessar-se em roeu caminho? Se me tivesse deixado em paz, não lhe teria feito mal algum. — Lembro-me agora — articulou Holmes com dificuldade. — A agulha! Saiu sangue. Essa caixinha... aí em cima da mesa. — Exatamente essa, com os diabos! E será melhor que eu a leve comigo. Assim se vai sua última esperança de prova. E agora que já sabe da verdade, Holmes, pode morrer ciente de que eu o matei. Você sabia demasiado a respeito do destino de Victor Savage, e por isso resolvi mandá-lo fazer-lhe companhia. Seu fim está muito próximo. Vou sentar-me aqui para vê-lo morrer. A voz de Holmes se transformara num sussurro quase inaudível. — Que quer? — perguntou Smith. — Que aumente a chama do gás? Ah! As sombras já começam a cair, não é? Sim, vou aumentá-la, pois assim poderei vê-lo melhor. Atravessou o quarto, e a luz, de súbito, tornou-se mais viva. — Mais alguma coisa, meu amigo? — Um cigarro e fósforos. Por verdadeiro milagre não gritei de alegria, tal foi meu assombro. Holmes falava em sua voz natural, um pouco fraca, talvez, porém a mesma que eu tão bem conhecia. Seguiu-se uma longa pausa, e tive a sensação de que Culverton Smith fitava meu companheiro, imobilizado de espanto. — Que significa isso? — ouvi-o dizer por fim, em tom seco e rouco. — O melhor meio de representar com êxito um papel é identificar-se com ele — disse Holmes. — Dou-lhe minha palavra de honra que há três dias não provava nem comida nem bebida, até o momento em que teve a gentileza de me dar aquele copo de água. Entretanto, foi do fumo que senti ;ais falta! Ah! Cá estão os cigarros! Ouvi o ruído de um fósforo sendo riscado. — Assim está muito melhor. Parece-me distinguir os passos de um amigo. De fato, ouviu-se um rumor de passos do lado de fora; a porta abriu-se e o vulto do inspetor Morton surgiu no limiar. —— Está tudo em ordem, e aí tem seu homem... — disse Holmes. O policial fez os avisos de costume e concluiu: — O senhor está preso sob a acusação de homicídio de Victor Savage. — E poderá acrescentar: de tentativa de morte de Sherlock Holmes — observou meu amigo com uma risadinha. — A fim de evitar trabalho a um inválido, o sr. Culverton Smith teve a bondade de dar nosso sinal convencionado, aumentando a chama do gás. A propósito, o prisioneiro tem uma caixinha no bolso direito do casaco, a qual seria melhor retirar. Obrigado. Se eu fosse o senhor, teria mais cuidado ao pegá-la. Ponha-a aqui. Poderá ser útil no processo. Houve um rumor súbito de luta, acompanhado de um tilintar de metais e de um grito de dor. — O senhor quer se machucar? — perguntou


o inspetor. — Faça o favor de ficar quieto. Chegou a meus ouvidos o estalido das algemas que se fechavam. — Bela armadilha! — gritou a voz aguda e zombeteira de Smith. — Isso o levará à cadeia, Holmes, não a mim. Ele pediu-me que viesse aqui para tratar dele. Compadeci-me dele e vim. Agora, certamente, irá afirmar que eu disse alguma coisa inventada por ele, a fim de corroborar suas suspeitas insensatas. Pode mentir quanto quiser, Holmes. Minha palavra vale o mesmo que a sua. — Santo Deus! — exclamou Holmes. — Tinha-o esquecido completamente. Meu caro Watson, devo-lhe mil desculpas. E pensar que pude esquecer-me dele! Não tenho necessidade de apresentá-lo ao sr. Culverton Smith, pois já se encontraram há algumas horas. Há um carro à espera lá embaixo? Eu o acompanharei assim que me vestir, pois talvez minha presença seja necessária no posto policial. — Jamais senti tanta falta disto — continuou Holmes, enquanto se reconfortava, nos intervalos de sua toalete, com um copo de clarete e alguns biscoitos. — Todavia, como sabe, meus hábitos são irregulares, e esse acontecimento significa muito menos para mim do que para a maioria dos homens. Era-me essencial impressionar a sra. Hudson, dando a meu estado imaginário uma aparência efetiva de realidade, a fim de que você, por sua vez, o transmitisse a Smith. Não ficou ofendido, não é mesmo, Watson? Deve reconhecer perfeitamente que, entre seus numerosos dotes, não se encontra a dissimulação, e que, se lhe revelasse meu segredo, jamais seria capaz de convencer Smith da urgente necessidade de sua presença aqui, circunstância de vital importância para meu plano. Sabendo de sua natureza vingativa, tinha plena certeza de que viria, a fim de verificar pessoalmente o êxito de sua obra. — Mas seu aspecto, Holmes... aquele rosto espectral? — Três dias de jejum absoluto não melhoram a beleza de ninguém, Watson. Quanto ao resto, não há nada que uma boa esponja não possa limpar. Com um pouco de vaselina na testa, beladona nos olhos, carmim nas faces e crostas de cera nos lábios obtêm-se efeitos satisfatórios. A simulação de doenças é assunto a respeito do qual, mais de uma vez, já pensei em escrever uma monografia. E certas divagações ocasionais a propósito de meiascoroas, ostras ou outra coisa qualquer produzem uma aceitável aparência de delírio. — Mas por que não deixou que eu me aproximasse de você, quando na realidade não havia perigo de infecção? — Ainda o pergunta, Watson? Imagina que não tenho respeito pelo seu talento médico? Acha que você, com seu astuto raciocínio, se deixaria enganar por um moribundo que, apesar de fraco, não apresenta alteração alguma no pulso ou na temperatura? A três metros de distância, era-me fácil iludi-lo. Se não o conseguisse, quem iria fazer com que meu Smith caísse na armadilha? Não, Watson, eu não tocaria nessa caixinha. Poderá ver, se a observar de lado, o ponto em que a agulha se projeta para fora, como um dente de víbora. Creio que foi por meio de um estratagema análogo que o pobre Savage, único obstáculo entre esse monstro e uma herança, encontrou a morte. Minha correspondência, porém, como sabe, é muito variada, e estou sempre em guarda contra todos os pacotes que me vêm ter às mãos. Compreendi, todavia, que se fingisse que ele obtivera êxito em seu intento poderia talvez obter uma confissão dele. Minha simulação foi realizada com a perícia de um verdadeiro artista. Obrigado, Watson, ajude-me a vestir o casaco. Depois de cumprida nossa missão no posto policial, creio que qualquer coisa nutritiva no Simpson não seria verdadeiramente fora de propósito.


Ilustraçþes: Frederic Dorr Steele e Walter Paget, cortesia The Camden House Voltar


Sherlock Holmes em: O desaparecimento de Lady Frances Carfax Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org


— Mas por que turco? — perguntou Sherlock Holmes, olhando fixamente para minhas botinas. Nesse momento, eu estava estirado numa poltrona de vime e, certamente, meus pés estendidos tinham atraído sua sempre vigilante atenção. — É inglês! — respondi-lhe, algo surpreendido. — Comprei este calçado na Latimer, na Oxford Street. Holmes sorriu com ar de entediada paciência. — Refiro-me ao banho! — replicou. — Ao banho! Por que fazer uso do banho turco, dispendioso e debilitante, em vez do revigorante banho doméstico? — Porque, nestes últimos dias, tenho me sentido velho e reumático. O banho turco é o que nós em medicina chamamos um purificador do sistema. A propósito, Holmes, não duvido de que a relação entre minhas botinas e um banho turco se apresente evidente para um espírito lógico; entretanto, eu lhe ficaria muito grato se a quisesse explicar. — O raciocínio não é muito obscuro, Watson — respondeu Holmes, piscandome o olho com ar malicioso. — Pertence à classe de dedução elementar que eu mesmo usaria como ilustração se lhe perguntasse quem lhe fez companhia no passeio de carro desta manhã. — Não concordo que um novo exemplo seja uma explicação — respondi-lhe com certa aspereza. — Bravo, Watson! Admoestação muito digna e coerente. Examinemos os pontos de meu raciocínio. Comecemos pelo último: o passeio de carro. Repare que tem a manga e o ombro esquerdo do casaco salpicados de lama. Se se tivesse sentado no meio do banco do carro, provavelmente não ostentaria esses salpicos, e, se tal acontecesse, por certo seriam simétricos. É evidente, portanto, que ficou a um canto, e por isso é também evidente que estava na companhia de alguém. — Tudo isso é muito claro. — Absurdamente corriqueiro, não acha? — Sim, bem vistas as coisas... — E igualmente pueril. Você costuma atar os cordões das botinas de uma certa maneira. Vejo-os agora atados com um complicado nó duplo, diferente do habitual. Logo, descalçou-as. E quem as atou novamente? Um sapateiro... ou o empregado da casa de banhos. É pouco provável que se trate de um sapateiro, pois seu calçado está quase novo. Que resta então? O banho. Facílimo, não lhe parece? Mas, com tudo isso, o banho turco serviu para alguma coisa. — Qual?


— Disse-me há pouco que o tinha tomado por sentir necessidade de retemperar as forças. Permita-me que lhe sugira que o faça de maneira completa. Que pensa de uma estada em Lausanne, meu caro... passagens de primeira classe e todas as despesas pagas regiamente? — Seria esplêndido! Mas por quê? Holmes recostou-se na poltrona e tirou do bolso seu inseparável livro de notas. — Uma das classes mais perigosas da sociedade — disse — é a da mulher nômade e sem amigos. É o mais inofensivo e, freqüentemente, o mais útil dos mortais; no entanto, constitui para os outros um inevitável incentivo ao crime. Não conta com a ajuda de ninguém, é migratória; tem meios suficientes para se transferir de um país para outro e de hotel para hotel. Perde-se, muitas vezes, num labirinto de pensões obscuras. É como uma galinha perdida num mundo de raposas. Quando desaparece, quase ninguém lhe sente a falta. Eis por que receio que tenha acontecido alguma desgraça a Lady Frances Carfax. Senti-me aliviado com essa repentina mudança do geral para o particular. Holmes consultou seus apontamentos. — Lady Frances — continuou — é a única descendente direta do falecido conde de Rufton. Como talvez se lembre, os bens de raiz couberam à descendência masculina, de forma que ela possui haveres limitados. Herdou, entretanto, grande variedade de antigas jóias espanholas, de prata, e brilhantes, que se recusa a deixar aos cuidados de seu banqueiro, levando-os sempre consigo. É uma figura verdadeiramente patética, essa Lady Frances, uma bela mulher, que conserva ainda um certo viço apesar da idade, mas, por estranho acaso, é a última remanescente do que, há apenas vinte anos, constituía uma ilustre linhagem. — Mas afinal, o que lhe aconteceu? — Ah! Isso pergunto eu. Está viva ou morta? Eis nosso problema. Lady Frances é uma senhora metódica e há quatro anos, invariavelmente, de duas em duas semanas, costuma escrever à srta. Dobney, sua velha governanta, há muito aposentada, que mora em Camberwell. Pois foi a srta. Dobney quem veio procurar-me. Há quase cinco semanas não recebe a menor notícia de Lady Frances. A última carta foi escrita do Hotel National, em Lausanne. Ao que parece, Lady Frances deixou esse hotel sem dar o novo endereço. Os parentes estão preocupados, e, como são riquíssimos, não pouparão despesas a fim de esclarecer esse mistério. — A srta. Dobney é a única fonte de informações que possuímos? Será possível que ela não tivesse outros correspondentes? — Existe um correspondente que constitui sempre boa fonte de informações, Watson. É o banco. As senhoras solteiras também precisam viver, e seus


talões de cheques são verdadeiros diários condensados. Os haveres de Lady Carfax estão depositados no Silvester. Já estive lá examinando sua conta corrente. O penúltimo cheque foi sacado em Lausanne para pagar as despesas do hotel; era, porém, de quantia elevada, e com certeza lhe sobrou muito dinheiro. Apenas um cheque foi sacado depois desse. — A favor de quem e onde? — A favor da srta. Marie Devine. Não há nada que indique onde o cheque foi emitido. Foi descontado no Crédit Lyonnais, em Montpeilier, há menos de três semanas. Importava em cinqüenta libras. — E quem é essa srta. Devine? — Consegui também descobrir isso. A srta. Marie Devine era criada de Lady Frances Carfax. Por que motivo ela lhe deu esse cheque, ainda não fomos capazes de saber; no entanto, tenho certeza de que suas pesquisas esclarecerão essa particularidade. — Minhas pesquisas? — É esse justamente o motivo de sua estada em Lausanne. Você sabe que não posso deixar Londres de forma nenhuma enquanto o velho Abrahams estiver com tanto medo de perder a vida. Além disso, por princípio geral, é melhor que eu não saia do país. A Scotland Yard sente-se abandonada sem mim, e minha ausência provoca sempre uma indesejável agitação nas classes criminais. Vá, pois, meu caro Watson, e se achar que meus humildes conselhos valem a ninharia de dois pence por palavra, eles estarão a seu dispor, dia e noite, nesta extremidade do telégrafo continental. Dois dias depois, encontrava-me no Hotel National, em Lausanne, onde fui acolhido com as maiores atenções por parte do sr. Moser, seu afamado gerente, o qual me informou que Lady Frances ali estivera hospedada durante várias semanas. Todos os que a tinham conhecido eram unânimes em reconhecer que dela irradiava grande simpatia. Não devia contar mais de quarenta anos. Era ainda bonita, e parecia ter sido muito linda quando jovem. O sr. Moser nada sabia a respeito das jóias, mas as criadas do hotel tinham reparado que uma pesada mala, existente no quarto dessa senhora, se encontrava sempre cuidadosamente fechada à chave. Marie Devine, sua criada, era tão estimada como ela. Ficara noiva de um dos chefes de empregados do hotel, e não havia dificuldade em fornecer seu endereço: Rue de Trajan, número 11, Montpeilier. Tomei nota de tudo isso e tive a sensação de que nem Holmes, em pessoa, teria sido capaz de obter esses dados com maior presteza do que eu. Todavia, restava ainda um ponto obscuro. Ninguém sabia explicar-me a razão da partida súbita de Lady Frances. Sentia-se muito satisfeita em Lausanne. Tudo fazia crer que estava decidida a permanecer durante toda a estação em seu luxuoso apartamento à beira do lago. No entanto, partira com o aviso de apenas um dia, perdendo uma semana de hospedagem paga


adiantadamente. Só Jules Vibart, o noivo da criada, ofereceu uma sugestão. Relacionava a partida repentina com a visita feita ao hotel, um ou dois dias antes, por um homem alto, moreno e barbudo. "Un sauvage.... un véritable sauvage!", exclamou Jules Vibart. Esse homem hospedara-se num lugar ignorado da cidade. Fora visto conversando animadamente com Lady Frances na avenida marginal do lago. Depois fora visitá-la no hotel, mas ela se recusara a recebê-lo. Era inglês, sem dúvida, mas ninguém soube dizer-lhe o nome. A dama partira logo em seguida. Jules Vibart e, o que era mais importante, sua noiva pensavam que entre a visita e a partida havia uma relação de causa e efeito. Apenas um ponto Jules Vibart não desejava discutir: o motivo pelo qual Marie deixara a patroa. Sobre isso não podia ou não queria dizer nada. Se eu o quisesse saber, teria de ir a Montpeilier e perguntar a ela. Assim terminou o primeiro capítulo de minhas investigações. O segundo foi dedicado ao lugar para onde se dirigira Lady Frances ao sair de Lausanne. A esse respeito houve um certo segredo, o que vinha confirmar a hipótese de ela ter partido com o propósito de despistar alguém. Caso contrário, por que motivo sua bagagem não fora abertamente endereçada a Baden? Tanto a bagagem como ela própria tinham chegado à estação terminal renana por vias indiretas, segundo informações do gerente local da Agência Cook. Segui, por conseguinte, para Baden, depois de transmitir a Holmes um resumo de minhas diligências, e recebi como resposta um telegrama de congratulações semiirônico. Em Baden não me foi difícil acompanhar a pista da desaparecida. Lady Frances estivera hospedada no Englischer Hof por uns quinze dias. Durante sua permanência ali, travara relações com o dr, Schiessinger, missionário que acabara de regressar da América do Sul, e sua esposa. Como acontece à maioria das senhoras solitárias, Lady Frances encontrou lenitivo e trabalho na religião. A personalidade extraordinária do dr. Schiessinger, sua profunda devoção e o fato de estar convalescente de uma moléstia contraída no exercício de seu apostolado, impressionaram-na vivamente. Lady Frances ajudara a sra. Schiessinger a tratar do piedoso enfermo, o qual passava o dia, consoante me contou o gerente do hotel, no alpendre, deitado numa poltrona, sob os olhares vigilantes das duas dedicadas enfermeiras. Estava preparando um mapa da Terra Santa, com referências especiais ao reino dos medianitas, a respeito do qual estava escrevendo uma monografia. Por fim, como sua saúde melhorara, ele e a mulher haviam regressado a Londres, na companhia de Lady Frances. Isso acontecera exatamente três semanas antes, e desde então o gerente de nada mais soubera. Quanto à criada, Marie, partira alguns dias antes, num dilúvio de lágrimas, depois de ter informado às outras criadas que deixava para


sempre o serviço de Lady Frances. O dr. Schiessinger, antes de partir, pagara a conta de todos. — A propósito — concluiu o hoteleiro —, o senhor não é o único amigo de Lady Frances Carfax que se interessa pelo paradeiro dela. Há cerca de uma semana, esteve aqui outra pessoa com o mesmo fim. — Deixou o nome? — indaguei. — Não; mas era evidentemente inglês, embora de um tipo pouco comum. — Um selvagem? — perguntei, relacionando meus dados à maneira de meu ilustre amigo. — Precisamente. Essa palavra descreve-o à maravilha. É um indivíduo corpulento, barbudo, queimado de sol, que parece achar-se muito mais à vontade numa pensão de província do que num hotel de luxo. Pareceu-me um homem rude, impulsivo, com o qual, por nada no mundo, eu desejaria entrar em conflito.

O mistério já começava a aclarar-se, assim como as figuras se apresentam mais distintas à medida que a névoa se dissipa. Eu me deparava com uma boa e piedosa senhora, perseguida sem descanso por um tipo sinistro, inexorável. Ela o temia, pois do contrário não teria fugido de Lausanne. Ele seguira-a. Cedo ou tarde, ela cairia em seu poder. Talvez já a tivesse nas mãos. Seria esse o motivo do prolongado silêncio? Poderiam seus bondosos companheiros de viagem protegê-la contra a violência ou possível extorsão por parte desse chantagista? Que horrível objetivo, que intenção tenebrosa se ocultaria atrás dessa infindável perseguição? Eis o problema que me competia resolver. Escrevi a Holmes explicando-lhe a rapidez e a segurança com que atingira o âmago da questão. Recebi, em resposta, um telegrama no qual ele me pedia que descrevesse a orelha esquerda de Schiessinger. O conceito de humor de Holmes é estranho, e às vezes injurioso, por isso não dei atenção ao inoportuno gracejo... Por outro lado, eu já chegara a Montpeilier à procura da criada Marie, antes de receber o telegrama. Não tive dificuldade em encontrar a ex-criada e em ouvir de seus próprios lábios tudo o que ela sabia. Era muito devotada a Lady Frances, e só a deixara por estar certa de que ficara em boas mãos e também porque, de qualquer modo, seu casamento iminente iria tornar essa separação inevitável. A patroa, conforme me confessou, angustiada, tinha-se mostrado um tanto irritada com ela durante a permanência em Baden, chegando uma vez a interrogá-la, como se duvidasse de sua honestidade, fato esse que tornara a separação mais fácil. Lady Frances dera-lhe cinqüenta libras como presente de núpcias. Como eu, Marie também desconfiava do estranho que fizera a ama abandonar Lausanne. Com os próprios olhos,, vira-o agarrar violentamente a senhora pelos pulsos na avenida que circundava o lago. Era um homem selvagem e de aspecto terrível. Acreditava que Lady Frances tivesse concordado em acompanhar os


Schiessinger até Londres unicamente de medo dele. Jamais falara com Marie a respeito disso; não obstante, numerosos e pequenos indícios tinham-na convencido de que a pobre mulher vivia em estado de permanente apreensão. Ao chegar a esse ponto da narrativa, ergueu-se subitamente da cadeira onde estava sentada, com o rosto contraído num esgar de surpresa e pavor. — Olhe! — exclamou. — Aquele canalha ainda está aqui! Lá vai a pessoa de quem estou falando. Através da janela aberta da sala de estar, avistei um homem gigantesco, moreno, com uma hirsuta barba negra, caminhando a passo lento pelo meio da rua e olhando com atenção os números das casas. Era evidente que, como eu, também ele viera em busca da criada. Agindo impulsivamente, corri para a rua e aproximei-me dele. — O senhor é inglês — disse-lhe. — E o que tem isso? — perguntou-me, franzindo o sobrolho. — Posso saber seu nome? — Não, não pode — respondeu-me secamente. A situação era embaraçosa; mas o método direto, porém, é muitas vezes o melhor. — Onde está Lady Frances Carfax? — perguntei. Ele fitou-me, aturdido. — O que fez dela? Por que a segue dessa maneira? Exijo uma resposta! — insisti. O homem lançou um rugido de cólera e atirou-se a mim como um tigre. Tenho demonstrado minha força em mais de uma luta, mas o desconhecido possuía um pulso de ferro e a fúria de um demônio. Sua mão já me comprimia a garganta e eu me sentia desfalecer, quando um operário francês, de barba por fazer e com uma blusa azul, surgiu de um botequim à nossa frente, brandindo um cassetete, com o qual aplicou um violento golpe no antebraço de meu agressor, obrigando-o a largar a presa. Durante alguns instantes, o homem permaneceu arquejante de cólera, indeciso sobre se deveria ou não recomeçar o ataque. Finalmente, com um grunhido feroz, abandonou-me e entrou na casa que eu


acabava de deixar. Voltei-me para agradecer a meu salvador, que ficara no meio da rua. — Bravo, Watson! — disse-me ele. — Bela trapalhada você fez! Acho melhor voltar comigo a Londres, no trem de hoje à noite. Uma hora mais tarde, Sherlock Holmes, em sua elegância habitual, estava sentado em meu quarto de hotel. A explicação de seu aparecimento inesperado e providencial era simplicíssima. Verificando ser-lhe possível afastar-se de Londres, decidira preceder-me na segunda etapa de minha viagem, e, disfarçado de operário, ficara no botequim à minha espera. — Bela investigação você fez, e de consistência verdadeiramente notável, meu caro Watson. Com franqueza: neste momento, não consigo recordar-me de nenhum disparate que possa ter omitido. O resultado completo de suas pesquisas foi alarmar meio mundo e não descobrir coisa nenhuma. — Provavelmente, você não teria feito melhor — repliquei, despeitado. — Não se trata aqui de "provavelmente". Eu fiz melhor. Eis ali o sr. Philip Green, seu companheiro de hotel, junto de quem talvez se possa encontrar o ponto de partida para uma investigação mais construtiva. Tinham trazido numa salva um cartão de visita, seguido imediatamente do mesmo velhaco barbudo que me agredira pouco antes na rua. Ao ver-me, estremeceu. — O que significa isso, sr. Holmes? — indagou. — Recebi seu recado e apressei-me a vir. Mas o que este homem tem a ver com o assunto? — Este é meu velho amigo e sócio, o dr. Watson, que nos ajuda em nossas pesquisas. O desconhecido estendeu-me a mão enorme e bronzeada, acompanhando o gesto de breves palavras de desculpa. — Espero não lhe ter causado nenhum mal. Quando me acusou daquela maneira, perdi a cabeça. Na verdade, não respondo por mim nestes dias. Tenho os nervos à flor da pele, e esta situação põe-me maluco. Contudo, desejo que me diga, antes de mais nada, como, com todos os diabos, conseguiu saber de minha existência. — Estou em contato com a srta. Dobney, governanta de Lady Frances. — Ah! A velha Susan Dobney, com sua touca! Lembro-me muito bem dela. — E ela também se recorda do senhor. Foi um pouco antes... antes de o senhor se convencer de que devia partir para o sul da África. — Oh! Vejo que sabe de tudo. Não preciso ocultar-lhe nada. Juro-lhe, sr. Holmes, que não havia no mundo homem que amasse tanto uma mulher como eu amava Lady Frances. Era um doidivanas, bem sei... mas não era pior do


que os outros jovens de minha condição social. Todavia, sua alma era pura como a neve. Não podia suportar a mais leve sombra de grosseria. Desse modo, quando descobriu tudo quanto eu fizera, já não quis saber de mim. No entanto, ela me amava... e, o que é mais estranho, amava-me a ponto de se conservar solteira, durante toda a sua longa e santa vida, unicamente por minha causa. Agora, passados tantos anos, e depois que fiz fortuna em Barherton, julguei que talvez pudesse procurá-la e enternecê-la. Soube que ainda não tinha se casado. Encontrei-a em Lausanne e fiz tudo para persuadila. Creio tê-la comovido, mas, dotada de um espírito forte, abandonou a cidade antes que procurasse pela segunda vez. Descobri que partira para Baden e, depois de algum tempo, soube que sua criada ficara aqui. Sou um tipo rude, recém-saído de uma existência de lutas, e, quando o dr. Watson me dirigiu a palavra daquele modo, fiquei fora de mim. Mas, pelo amor de Deus, diga-me o que aconteceu a Lady Frances. — É o que nos cumpre averiguar — respondeu Sherlock Holmes com particular gravidade. — Qual e seu endereço em Londres, sr. Green? — O senhor me encontrará no Langham Hotel. — Então permita-me aconselhá-lo a ir para lá e ficar à minha disposição até que eu precise de seu auxílio. Não desejo alimentar falsas esperanças, mas pode ficar certo de que farei todo o possível no sentido de salvar Lady Frances. Por ora, não posso dizer mais nada. Deixo-lhe este cartão a fim de que possa manter-se em contato conosco. E agora, Watson, se quiser arrumar a mala, telegrafarei à sra. Hudson para que faça tudo o que lhe estiver ao alcance, amanhã às sete e meia, por dois viajantes famintos. Ao chegarmos a nosso apartamento da Baker Street, encontramos um telegrama à nossa espera. Holmes leu-o com uma exclamação de interesse e atirou-o a mim. "Cortada ou arrancada", dizia a curiosa mensagem, cujo lugar de origem era Baden. — O que isso quer dizer? — perguntei. — Quer dizer tudo — respondeu Holmes. — Deve lembrar-se de minha pergunta, aparentemente fútil, a respeito da orelha esquerda do dr. Schiessinger, e à qual você não se dignou responder. — Já tinha deixado Baden, e não me foi possível obter informações. — Exato. Por esse motivo expedi um segundo telegrama ao gerente do Englischer Hof, e aí está a resposta. — E o que significa? — Significa, meu caro Watson, que estamos tratando com um homem excepcionalmente astuto e perigoso. O reverendíssimo dr. Schiessinger, missionário de regresso da América do Sul, não é outro, senão Holy Peters, um


dos mais perigosos patifes que a Austrália já produziu... e vale a pena lembrar que, como país jovem, tem apresentado exemplares dos mais perfeitos. Sua especialidade é insinuar-se junto a senhoras solitárias, explorando-lhes o sentimento religioso. A mulher que passa por sua esposa é uma inglesa, de nome Fraser, e é sua digna companheira. A tática empregada, que lhe é característica, sugeriu-me sua identidade; o defeito físico (foi mordido na orelha numa luta de botequim, em Adelaide, em 1889) confirmou-me a suspeita. Essa pobre senhora está nas mãos de um casal satânico, capaz de tudo, Watson. A hipótese de que já esteja morta é muito viável. Caso contrário, deve estar, sem dúvida, prisioneira e impossibilitada de escrever, seja à srta. Dobney, seja a qualquer outro de seus amigos. É muito provável que nem tenha chegado a Londres ou que tenha apenas atravessado a cidade; contudo, a primeira suposição é improvável, pois, dado o sistema de registro, não é fácil a estrangeiros burlar a vigilância da polícia continental. Por outro lado, a segunda hipótese é igualmente inverossímil, porque esses patifes não podiam encontrar um lugar melhor do que Londres para manter alguém cativo. Tudo me leva a afirmar que ela se encontra em Londres, mas, como não possuímos de momento nenhum meio de saber o local, nada nos resta senão tomar as providências necessárias, jantar calmamente e munir-nos de paciência. À noitinha, darei um pulo até a Scotland Yard, a fim de trocar idéias com nosso amigo Lestrade. No entanto, nem a polícia oficial, nem a pequena mas eficaz organização de Holmes conseguiram lançar maior luz sobre o mistério. Entre os milhões de habitantes que se agitam em Londres, os três que procurávamos eram tão invisíveis como se jamais tivessem existido. Foram feitas tentativas através de anúncios nos jornais, sem resultado. Foram seguidas pistas que falharam completamente. Todos os lugares escusos onde Schiessinger pudesse ser encontrado foram vasculhados em vão. Todos os seus antigos companheiros foram seguidos; estes, porém, não foram vistos com ele. Finalmente, depois de uma semana de pesquisas inúteis, brilhou um raio de luz. Na casa de penhores Bevington, na Westminster Road, foi empenhado um pingente de prata e brilhantes lavrado em antigo estilo espanhol. O homem que o empenhara era corpulento, calvo e de aparência eclesiástica. Verificou-se que tanto o nome como o endereço eram falsos. A orelha escapara à atenção do empregado, mas a descrição correspondia, sem sombra de dúvida, a Schiessinger. Nosso barbudo amigo do Langham Hotel viera três vezes em busca de notícias — a terceira, uma hora depois de recebermos a inesperada informação. Suas roupas, pouco a pouco, ficaram folgadas para o corpo emagrecido. Definhava de ansiedade a olhos vistos. "Se ao menos me dessem alguma coisa para fazer!", era seu lamento habitual. Holmes, finalmente, estava em condições de lhe satisfazer a vontade. — Começou a empenhar as jóias; talvez, agora, consigamos apanhá-lo. — Mas isso significa que aconteceu alguma desgraça a Lady Frances? Holmes acenou gravemente com a cabeça.


— Suponho que a tenham mantido prisioneira até agora; é evidente que não poderão libertá-la sem comprometerem a própria segurança. Devemos estar preparados para o pior. — Que devo fazer? — Essa gente não o conhece de vista? — Não. — É possível que no futuro eles procurem outra casa de penhores. Nesse caso, precisamos começar tudo de novo. Por outro lado, adiantaram-lhe um bom dinheiro pela jóia, sem lhe fazer perguntas; portanto, se ele necessitar de dinheiro com urgência, voltará provavelmente à Bevington. Com uma apresentação minha, ser-lhe-á permitido ficar à espreita na loja. Se o homem aparecer, siga-o até sua casa. Nada de indiscrições, porém, e principalmente, nada de violência. Dê-me sua palavra de honra de que não dará um passo sem que eu o saiba e sem meu consentimento. Durante dois dias, o nobre barão Philip Green (devo mencionar que ele era filho do famoso almirante do mesmo nome, que comandou a esquadra do mar de Azof, na Guerra da Criméia) não nos trouxe a menor notícia. Na noite do terceiro dia, irrompeu pela nossa sala de estar, pálido, trêmulo, cada músculo vibrante de emoção. — Nós o descobrimos! Nós o descobrimos! — berrou. A agitação tornava-o incoerente. Holmes tratou de acalmá-lo e fê-lo sentar-se numa poltrona. — Vamos, conte-nos por ordem tudo o que aconteceu. — Apareceu há apenas uma hora; desta vez foi a mulher, mas o pingente que tinha nas mãos era igualzinho ao outro. É uma mulher alta, descorada, com olhos de furão. — Sim, é ela — confirmou Holmes. — Quando saiu, pus-me a segui-la. Dirigiu-se para a Kennington Road e eu a acompanhei de perto. Pouco adiante, entrou numa loja. Uma empresa funerária, sr. Holmes! Meu companheiro estremeceu.


— E então? — perguntou com aquela voz vibrante que revela, por trás da máscara impassível, a alma em tumulto. — Começou a conversar com uma mulher que se encontrava atrás do balcão. Entrei. "Está demorando", ouvi-a dizer. A mulher do balcão desculpou-se: "Já devia ter sido entregue. Levou mais tempo por ser de tamanho invulgar". Ambas pararam de falar e olharam para mim. Fiz uma pergunta qualquer e saí. — O senhor portou-se de maneira brilhante. Que aconteceu depois? — A mulher abandonou a loja, mas eu me ocultara na entrada de uma casa vizinha. Acredito que lhe despertei suspeitas, pois lançou um olhar em redor. Em seguida, chamou um carro e partiu. Tive a sorte de encontrar outro e seguia. Desceu por fim em frente à casa número 36 da Poultney Square, em Brixton, Continuei até a esquina, onde deixei o carro, e pus-me à espreita. — Viu alguém? — As janelas estavam às escuras, exceto uma no andar térreo. A cortina, porém, estava abaixada, e não me foi possível distinguir nada lá dentro. Encontrava-me ali, sem saber o que fazer, quando vi parar uma carroça coberta, com dois homens na boleia. Estes apearam, tiraram alguma coisa do interior do veículo e transportaram-na até os degraus da porta de entrada. Sr. Holmes, era um caixão de defunto. — Oh! — Por um instante, estive a ponto de me atirar para dentro da casa. A porta fora aberta a fim de dar passagem aos dois homens e à sua carga. Enquanto me encontrava ali, a mulher que os fizera entrar avistou-me, e desconfio que me reconheceu. Vi-a estremecer e fechar rapidamente a porta. Lembrei-me, então, do que prometera ao senhor, e aqui estou. — Seu trabalho foi excelente — disse Holmes, rabiscando algumas palavras numa folha de papel. — Não podemos empreender nenhuma ação legal sem um mandado, e o senhor não poderá prestar melhor ajuda do que levar este bilhete às autoridades e conseguir-nos um. Talvez encontre certa dificuldade em obtê-lo, mas creio que a venda das jóias é motivo suficiente. Lestrade cuidará dos pormenores. — Mas eles podem assassiná-la enquanto isso. O que poderia significar o caixão, e para quem seria ele senão para Lady Frances? — Tentaremos tudo o que for possível, sr. Green. Não perderemos tempo. Deixe o caso em nossas mãos. E agora, Watson — acrescentou Holmes, enquanto nosso cliente se afastava apressado —, ele porá em ação a polícia regular. Nós, como de costume, somos os irregulares, e devemos escolher nosso próprio modo de agir. A meu ver, a situação é de tal forma desesperadora que justifica o emprego de medidas extremas. Precisamos ir à


Poultney Square sem perda de tempo. "Procuremos reconstituir a série de ocorrências", continuou, enquanto nosso carro passava velozmente defronte ao edifício do Parlamento, em direção à Ponte de Westminster. "Aqueles patifes induziram a pobre senhora a acompanhá-los a Londres, depois de a terem separado de sua fiel criada. Ainda que tivesse escrito algumas cartas, teriam sido interceptadas. Por intermédio de um de seus sequazes, alugaram uma casa mobiliada. Uma vez instalados, fizeram-na prisioneira e apossaram-se de suas jóias, as quais, desde o início, constituíram seu objetivo. Já começaram a vender parte delas, e devem sentir-se seguros, pois não têm motivos para pensar que alguém possa interessar-se pela sorte de Lady Frances. Se a libertassem, ela certamente os denunciaria; portanto, torna-se para eles questão de vida ou morte mantê-la aprisionada. Mas, por outro lado, não podem conservá-la eternamente fechada à chave. Logo, seu assassinato é a única saída que lhes resta." — Isso parece-me perfeitamente claro. — Façamos, agora, outro raciocínio. Quando seguimos duas seqüências distintas de idéias, Watson, encontramos sempre algum ponto de intersecção que pode nos aproximar da verdade. Comecemos não por Lady Frances, mas pelo caixão, e raciocinemos na ordem inversa. O incidente indica com evidência, creio eu, que ela está morta. Isso também vem demonstrar-nos que será sepultada com atestado de óbito e os demais documentos exigidos por lei. Se eles a tivessem assassinado, tê-la-iam, sem dúvida, enterrado num buraco feito nos fundos da casa. No entanto, esse caso está sendo realizado às claras, regularmente. O que isso quer dizer? Evidentemente, mataram-na de modo a simular morte natural e enganar o médico... envenenando-a, talvez. Todavia, acho estranho o fato de deixarem um médico aproximar-se dela, a não ser que faça também parte da quadrilha, hipótese que não me parece plausível. — Não poderiam ter arranjado um falso atestado de óbito? — Seria perigoso, Watson, muito perigoso. Não, não creio que o tenham tentado. Pare, cocheiro. Deve ser aqui a empresa funerária, pois acabamos de passar pela casa de penhores. Quer ir até lá, Watson? Seu aspecto inspira confiança. Pergunte a que horas é o enterro da Poultney Square, amanhã. A mulher da loja respondeu-me sem hesitar que o serviço fúnebre estava marcado para as oito da manhã. — Como vê, Watson, nada de mistério; tudo claro, límpido, irrepreensível! De qualquer modo, as exigências legais foram preenchidas e eles, claro, nada têm a temer. Bem, temos de tentar um ataque frontal. Está armado? — Tenho minha bengala. — Paciência. Havemos de nos sair bem. "Quem peleja por causa justa é três vezes mais forte." Não podemos de forma nenhuma aguardar a chegada da polícia, nem conservar-nos estritamente dentro da lei. Pode andar, cocheiro. Agora, Watson, confiemos em nossa boa estrela, que já nos protegeu tanto.


Holmes bateu com força na porta de uma casa grande e escura, localizada no centro da Poultney Square, a qual se abriu imediatamente, deixando entrever na penumbra do vestíbulo o vulto alto de uma mulher. — Que desejam? — perguntou de modo incisivo, olhando-nos com firmeza através das sombras. — Queremos falar com o dr. Schiessinger — respondeu Holmes. — Aqui não mora ninguém com esse nome — retrucou a mulher, procurando fechar a porta, no que foi impedida por Holmes, que introduzira o pé entre o batente e a porta. — Nesse caso, quero falar com a pessoa que mora aqui, seja qual for seu nome — insistiu Holmes, inabalável. A mulher hesitou um pouco, depois abriu a porta. — Está bem; podem entrar — disse. — Meu marido não teme ninguém. Fechou a porta, depois de termos entrado, introduziu-nos numa saleta à direita do vestíbulo, e acendeu o gás, antes de se retirar, dizendo-nos: — O sr. Peters já virá recebê-los. Dissera a verdade, pois, mal tivéramos tempo de observar a sala poeirenta e cheia de vestígios de traças, em que nos encontrávamos, quando a porta se abriu um homenzarrão calvo, de rosto cuidadosamente escanhoado, entrou a passos leves. Tinha as faces vermelhas, as bochechas caídas e um certo ar benevolente, que contrastava, porem, com uma boca cruel e implacável. — Aqui deve haver algum engano, cavalheiros — disse com voz untuosa e acomodatícia. — Devem estar no endereço errado. Talvez na casa ao lado... — Basta! Não temos tempo a perder — interrompeu meu companheiro com decisão. — O senhor é Henry Peters, de Adelaide, que se fez passar em Baden pelo reverendo dr. Schiessinger, missionário recém-chegado da América do Sul. Tenho tanta certeza disso como de que me chamo Sherlock Holmes.


Peters, como o chamarei daqui em diante, estremeceu e encarou fixamente seu extraordinário adversário. — Creia, sr. Holmes, seu nome não me atemoriza — replicou com frieza. — Quando um homem tem a consciência em paz, nada pode amedrontá-lo. Que veio fazer em minha casa? — Desejo saber do destino de Lady Frances Carfax, que o senhor trouxe de Baden em sua companhia. — Eu lhe ficarei muito grato se puder dizer onde ela se encontra — redargüiu Peters sem titubear. — Emprestei-lhe cerca de cem libras, recebendo como garantia apenas um par de brincos falsos pelos quais ninguém dá nada. Ela contraiu amizade com minha mulher e comigo em Baden (de fato, nessa ocasião, usava outro nome), e não nos abandonou até virmos para Londres. Paguei-lhe a conta do hotel e a passagem. Uma vez aqui, afastou-se de nós e, como já disse, deixou-nos em pagamento de seu débito essas jóias completamente sem valor. Se conseguir encontrá-la, sr. Holmes, eu lhe ficarei devendo um favor. — É minha intenção encontrá-la — respondeu Sherlock Holmes. — Darei busca a esta casa até descobri-la. — Tem em seu poder algum mandado? Holmes tirou do bolso o revólver. — Por ora, basta este. — Então o senhor é um ladrão vulgar. — Pode pensar o que quiser — replicou Holmes em tom jovial. — Meu amigo é também um bandido perigoso e juntos pretendemos revirar-lhe a casa pelo avesso. Peters abriu a porta da sala. — Chame um policial, Annie! — gritou. Ouvimos um ruge-ruge de vestido feminino no corredor, e o abrir e fechar da porta de entrada. — Nosso tempo é limitado, Watson. Se tentar deter-nos, Peters, na melhor das hipóteses, ficará ferido. Onde está o caixão de defunto que foi entregue aqui? — Que quer fazer com ele? Está ocupado; há um defunto dentro. — Preciso ver esse defunto.


— Jamais o consentirei. — Então será sem seu consentimento. Com um movimento rápido, Holmes empurrou-o para um lado e passou para o vestíbulo. Diante de nós havia uma porta entreaberta. Entramos. Era a sala de jantar. Em cima da mesa, sob a luz tênue de um candelabro, jazia o caixão. Holmes acendeu o gás e levantou a tampa do esquife. Quase desaparecida no fundo deste, encontrava-se estendida uma figura emaciada. O forte clarão produzido pela luz de cima iluminava-lhe a face idosa e enrugada. Nem o tratamento mais cruel, nem a fome, nem a gravidade da doença poderiam ter alterado tanto o rosto ainda jovem e belo de Lady Frances. A fisionomia de Holmes traía-lhe o espanto e também o alívio. — Graças a Deus! É outra pessoa. — Ah! Desta vez saiu-se mal, meu caro sr. Holmes — disse Peters, que nos seguira. — Quem é essa morta? — Pois bem! Se quer sabê-lo, trata-se de uma antiga ama de minha mulher. Chamava-se Rose Spender e fomos encontrá-la no Hospital de Pobres, em Brixton. Trouxemo- Ia para cá, chamamos o dr. Horsom, residente em Firbank Villas, número 13 — não se esqueça de anotar o endereço, sr. Holmes —, e cuidamos dela com carinho, como é dever de todo bom cristão. Ao cabo de três dias, faleceu; o atestado de óbito indicou como causa mortis depauperamento senil. Isso, entretanto, é apenas a opinião do médico, e o senhor, naturalmente, saberá melhor. Encomendamos o funeral à firma especializada Stimson & Co., da Kcnnington Road, que fará o enterro amanha de manha, às oito horas. Haverá algo de extraordinário em tudo isso? Enganou-se redondamente desta vez, sr. Holmes, e a culpa cabe-lhe por inteiro. Daria tudo na vida por uma fotografia de sua cara de idiota ao levantar a tampa do caixão na expectativa de ver Lady Frances Carfax, e ao deparar apenas com uma pobre velha de noventa anos. A expressão de Holmes mantinha-se impassível diante do sarcasmo de seu antagonista, mas os punhos fechados revelavam-lhe o intenso aborrecimento. — Vou dar uma busca pela casa — insistiu, — Ah! Chegaram! — gritou Peters, ao ouvir uma voz de mulher e passos ressoando no corredor. — Isso é o que vamos ver agora. Por aqui, inspetor, façam o favor. Estes homens entraram à força em minha casa e não consigo fazê-los sair. Auxiliem-me a pô-los na rua. Na soleira da porta surgiram um sargento e um guarda. Holmes apresentou-lhes seu cartão. — Aí está meu nome e endereço. Este é o dr. Watson, um velho amigo. — Por Deus, sr. Holmes! Nós o conhecemos muito bem — respondeu o


sargento. — Mas o senhor não pode permanecer aqui sem um mandado oficial. — É claro que não posso. Compreendo-o perfeitamente. — Prenda-o! — berrou Peters. — Sabemos onde encontrar esse cavalheiro se houver necessidade de prendêlo — replicou o sargento em tom solene. — Contudo, precisa se retirar, sr. Holmes. — Vamos, Watson, temos de sair. Um minuto depois, achávamo-nos de novo na rua. Holmes apresentava-se calmo, como sempre; eu, porém, estava rubro de cólera e humilhação. O sargento havia-nos seguido. — Sinto muito, sr. Holmes, mas é a lei. — Fez muito bem, sargento; não poderia agir de outra forma. — Acredito que tenha havido um motivo justo para sua presença naquela casa. Se lhe puder ser útil... — Procuramos uma senhora desaparecida que supusemos estar ali. Esperamos um mandado de um momento para outro. — Nesse caso, ficarei de olhos abertos, e, se suceder alguma coisa, eu lhe comunicarei imediatamente. Como eram apenas nove horas, continuamos nossas investigações. Dirigimo-nos em primeiro lugar ao Hospital de Pobres de Brixton, onde fomos informados de que efetivamente um casal caridoso ali se apresentara poucos dias antes reclamando uma velha caduca, que diziam ter sido sua antiga criada, e obtiveram permissão de levá-la para casa. Ninguém demonstrou a menor surpresa com a notícia de sua morte. Fomos, em seguida, à casa do médico. Confirmou ter sido chamado para assistir uma mulher prestes a morrer de pura senilidade. Assistira-lhe ao falecimento e passara o atestado de óbito na mais perfeita forma. "Assegurolhes ter decorrido tudo normalmente e não é possível suspeitar de qualquer deslize", afirmou. Não tinha notado nada de estranho na casa, se bem que achasse curioso gente daquela classe não possuir nenhum criado. Foi tudo quanto ele pôde informar. Seguimos por fim para a Scotland Yard. Com relação ao mandado, haviam surgido algumas dificuldades processuais. Era inevitável certa demora, pois não seria possível conseguir a assinatura do juiz antes da manhã seguinte. Se Holmes comparecesse lá às nove horas, poderia ir pedi-la, juntamente com Lestrade. Assim terminou o dia. Entretanto, por volta da meia-noite, nosso amigo sargento procurou-nos, a fim de nos avisar que avistara luzes nas


janelas da casa; no entanto, não vira ninguém sair ou entrar. Só nos restava munir-nos de paciência e aguardar o dia seguinte. Sherlock Holmes estava por demais irritado para conversar, e excessivamente inquieto para dormir. Deixei-o fumando como uma chaminé, as densas sobrancelhas negras contraídas, e com os dedos finos e nervosos tamborilando nos braços da poltrona, enquanto em seu cérebro deviam certamente agitar-se todas as possíveis soluções do mistério. Várias vezes durante a noite ouvi o rumor de seus passos de um lado para outro, através da casa. Por fim, já de manhã, logo depois de eu ter sido despertado, entrou em meu quarto como um raio. Estava de pijama, mas o rosto pálido com olheiras profundas revelava que passara a noite em claro. — Para que horas está marcado o funeral? Às oito, não é? — perguntou ansiosamente. — Pois bem! Agora são sete e vinte. Oh!, céus, Watson, onde eu estava com a cabeça? Depressa, homem, depressa! É questão de vida ou morte... noventa e nove possibilidades de morte para uma de vida. Jamais me perdoarei se chegarmos demasiado tarde! Ainda não tinham decorrido cinco minutos e já nos encontrávamos num fiacre, a todo o galope, ao longo da Baker Street. Mesmo assim, faltavam vinte e cinco minutos para as oito quando passamos pelo Big Ben, e ao soar das oito irrompemos pela Brixton Road. Entretanto, os outros também estavam atrasados. Dez minutos depois da hora fixada para o enterro, o carro fúnebre ainda se encontrava postado diante da porta da casa, e, somente quando nosso cavalo se deteve arquejante, o caixão assomou na soleira, transportado por três homens. Holmes atirou-se como um raio ao encontro dos carregadores e barrou-lhes a passagem. — Para trás! — exclamou, pondo a mão no peito do que vinha à frente. — Voltem com o caixão imediatamente! — Que diabo pretende fazer? Mais uma vez lhe pergunto onde está o mandado — gritou Peters, furioso, surgindo com o rosto vermelho do outro lado do ataúde. — O mandado está a caminho. O caixão ficará retido até ele chegar. O tom autoritário da voz de Holmes produziu efeito nos carregadores. Peters desaparecera subitamente no interior da casa, e os homens obedeceram à ordem do recém-chegado.


— Depressa, Watson, depressa! Tome esta chave de parafusos! — bradou, enquanto o féretro era recolocado sobre a mesa. — E aqui está outra para você, meu amigo! Dou-lhe um soberano se conseguir retirar a tampa em um minuto! Não faça perguntas... mãos à obra! Muito bem! Outro! Mais outro! Agora façamos força todos juntos! Está cedendo! Ah! Finalmente. Graças a nossos esforços reunidos, conseguimos retirar a tampa do caixão, e, no mesmo instante, um odor estonteante e insuportável de clorofórmio invadiu a sala. Dentro do ataúde jazia um corpo com a cabeça inteiramente envolta em algodão embebido nesse narcótico. Holmes retirou-o com presteza e descobriu o rosto marmóreo e espiritual de uma mulher de meia-idade. Rapidamente, passou o braço em torno da figura inerte e fê-la sentar-se. — Estará morta, Watson? Ainda há esperanças? Não é possível que tenhamos chegado tarde demais! Durante meia hora, pareceu-me que não restava nada a fazer. Sufocada pela falta de ar e intoxicada pelos vapores venenosos do clorofórmio, Lady Frances parecia irremediavelmente perdida. Mas, por fim, graças à respiração artificial, a injeções de éter e a todos os recursos que a ciência sugeria, um certo vislumbre de vida, um tênue vibrar de pestanas, um leve embaciar do espelho indicaram que a vida voltava lentamente. Parara um carro diante da casa, e Holmes, afastando a cortina, olhou para a rua. — Aí vem Lestrade com o mandado — observou. — Vai ficar desapontado quando souber que sua presa fugiu. E eis alguém — acrescentou, ao ouvir passos pesados no corredor — que mais do que nós tem direito de cuidar desta senhora. Bom dia, sr. Green; creio que, quanto mais depressa levarmos Lady Frances daqui, tanto melhor. Entretanto, podem continuar o enterro. A pobre velha que ainda jaz neste caixão poderá ir para seu eterno repouso sozinha.

— Se lhe interessa acrescentar este caso a seus anais, meu caro Watson — disse-me Holmes na tarde daquele dia —, ele servirá apenas como exemplo do eclipse temporário ao qual mesmo os cérebros mais equilibrados podem estar sujeitos. Tais deslizes são comuns a todos os mortais, e maior, portanto, é o mérito dos que são capazes de reconhecê-los e repará-los. A esse mérito eu julgo ter algum direito. Passei a noite acossado pela idéia de que um indício, uma frase estranha, uma observação curiosa, me fora apresentado e eu desprezara logo de início. E, de súbito, já no romper da madrugada, as palavras exatas acorreram-me à mente. Tratava-se da justificação apresentada pela empresa funerária, tal como me foi referida por Philip Green. Ela tinha dito: "Já devia ter sido entregue. Levou mais tempo por ser de um tamanho invulgar". Aludia ao caixão. Suas medidas eram fora do normal. Isso só podia significar que tinha sido feito segundo dimensões especiais. Mas por quê? Por quê? Lembrei-me repentinamente do tamanho do ataúde e do corpo franzino


da velhinha sumido lá no fundo. Por que um féretro tão grande para um cadáver tão pequeno? Para deixar espaço para outro corpo. Ambos seriam enterrados com um único atestado de óbito. Estaria tudo muito claro, se não fosse a momentânea obscuridade mental a que eu estava entregue. Às oito horas Lady Frances seria sepultada; nossa única esperança era chegar a tempo de impedir que o cortejo fúnebre saísse da casa. "Era remota a probabilidade de encontrá-la ainda com vida, mas era sempre uma probabilidade, como o resultado demonstrou. Essa gente, que eu saiba, jamais havia cometido um assassinato; provavelmente evitariam até o fim lançar mão da violência. Poderiam enterrá-la sem deixar o menor vestígio da causa de sua morte e, mesmo em caso de exumação, lhes seria possível escapar à ação da justiça. Esperava que tais considerações prevalecessem sobre o modo de agir deles. Agora lhe será fácil reconstituir com perfeição toda a cena. Você viu o horrível cubículo onde a pobre mulher esteve tanto tempo seqüestrada. Eles atiraram-se a ela, narcotizaram-na com clorofórmio, transportaram-na para baixo, despejaram o anestésico no interior do caixão, a fim de impedir que ela despertasse, e cerraram a tampa com parafusos. Um plano astucioso, Watson. Este fato, para mim, é novo nos anais do crime. Se nossos ex-missionários lograrem escapar às garras de Lestrade, nutro esperanças de que ouviremos falar em breve de outros casos brilhantes em sua futura carreira."


Arthur Conan Doyle

O pé-do-diabo Título original: The Devil's Foot

Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1910

Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de The Devil's Foot publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.

Ao anotar, de tempos em tempos, algumas das curiosas experiências e interessantes recordações associadas à minha longa e íntima amizade com Sherlock Holmes, defronto-me amiúde com as dificuldades oriundas de sua invencível antipatia por todo tipo de publicidade. Seu espírito ríspido e rabugento nutriu sempre o mais profundo desprezo pelo aplauso popular, e nada o divertia mais, ao final de um caso habilmente deslindado, que reverter o mérito do êxito a qualquer. agente oficial, e ouvir com um sorriso irônico o coro geral de congratulações indevidas. Foi de fato essa atitude da parte de meu amigo, e não certamente a falta de material interessante, que me fez apresentar ao público nestes últimos anos muito poucas narrativas. Minha participação em algumas de suas aventuras constituiu sempre um privilégio que me obrigava à máxima discrição. O leitor poderá imaginar, portanto, minha surpresa ao receber na última terça-feira um telegrama de Holmes — jamais se dá ao trabalho de escrever cartas quando é possível expedir telegramas —, concebido nos seguintes termos: "Por que não dar publicidade ao 'Horrível mistério da Cornualha' — o caso mais estranho que já tive em mãos?" Não faço a menor idéia do que o fizera lembrar-se do assunto, ou do capricho que o induzira a desejar que fosse entregue ao domínio público; todavia, apressei-me a coligir minhas notas sobre o caso, antes que outro telegrama viesse cancelar o precedente, e apresento-o agora a meus leitores. Foi na primavera do ano de 1897 que a férrea constituição de Holmes começou a dar alguns sinais de fraqueza diante do trabalho constante e duríssimo, e essa indisposição era talvez agravada por excessos ocasionais em sua vida privada. Em março daquele ano, o dr. Moore Agar, da Harley Street, cuja dramática apresentação a Holmes eu talvez ainda venha a narrar, declarou de modo peremptório que o famoso detetive particular devia abandonar toda e qualquer atividade e entregar-se ao mais completo repouso, se quisesse evitar um irreparável esgotamento nervoso. O estado de sua saúde não era assunto que pudesse despertar em Holmes o mínimo interesse, pois seu desprendimento moral era absoluto, mas resignou-se por fim, em face da ameaça de ficar definitivamente impossibilitado de trabalhar, a uma completa mudança de atmosfera e ambiente. Assim, no início da primavera daquele ano, estávamos reunidos numa pequena casa de campo nas proximidades da baía Poldhu, no limite extremo da península da Cornualha. Tratava-se de um lugarejo singular, muito propício ao temperamento sombrio de meu paciente. Das janelas de nossa pequenina casa caiada de branco, situada no alto de um arborizado promontório, dominávamos com o olhar todo o sinistro semicírculo da baía Mount, antiga armadilha mortal para todos os veleiros, com sua orla de penhascos negros e recifes traiçoeiros, sobre os quais inúmeros navegadores tinham encontrado uma morte trágica.


Graças à brisa setentrional que ali sopra, a baía parece plácida e abrigada, convidando o pequeno barco acossado pelas tempestades a procurar repouso e proteção. Súbito, muda o vento. Sopram violentas as lufadas do sudoeste, a âncora é arrastada, a praia surge a sotavento e finalmente trava-se a suprema batalha com os rochedos espumantes. O marinheiro velho e experimentado evita aproximar-se desse lugar maldito. Do lado da terra, a paisagem que nos circundava era tão tétrica quanto a do mar. Consistia numa região de charnecas ondulantes, desertas e de cor pardacenta, onde, de longe em longe, surgia um campanário que assinalava qualquer aldeia abandonada. Em todas as direções, sobre essas charnecas despontavam vestígios de uma raça definitivamente extinta, que deixara como única recordação estranhos monumentos de pedra, túmulos irregulares onde se encontravam depositadas as cinzas de seus mortos, e curiosos trabalhos de cerâmica, índices de lutas pré-históricas. O fascínio e o mistério desse lugar, com sua atmosfera sinistra de nações desaparecidas, exerciam influência sobre a imaginação de meu amigo, e ele passava grande parte do tempo em longos passeios e solitárias meditações pêlos campos áridos. O antigo dialeto da Cornualha também lhe prendera a atenção, e recordo-me de que Holmes descobrira certa afinidade entre esse dialeto e o caldeu, a qual derivaria dos traficantes de estanho fenícios. Holmes recebera uma encomenda de livros de filologia e preparava-se para desenvolver essa tese, quando, de repente, para minha tristeza e sua indisfarçada delícia, nos vimos envolvidos, naquela terra de sonhos, num problema mais emocionante, mais atraente e infinitamente mais misterioso do que os que nos tinham obrigado a abandonar Londres. Nossa existência simples, tranqüila, nossa saudável rotina foram violentamente interrompidas, e vimo-nos precipitados no meio de uma seqüência de acontecimentos que suscitaram a máxima emoção, não só na Cornualha como em toda a região ocidental da Inglaterra. Muitos de meus leitores talvez se lembrem do que veio a ser chamado na ocasião "O horrível mistério da Cornualha", se bem que à imprensa londrina tivesse chegado uma narrativa demasiado incompleta dos fatos. Agora, decorridos treze anos, darei a público os pormenores reais desse inconcebível acontecimento. Já disse que os campanários esparsos assinalavam as aldeias existentes nessa região da Cornualha. A mais próxima delas era o pequeno povoado de Tredannick Wollas, onde as moradias de cerca de duas centenas de habitantes se aglomeravam em torno de uma vetusta igreja coberta de musgo. O vigário da paróquia, o reverendo Roundhay, era uma espécie de arqueólogo e, como tal, Holmes estabelecera relações com ele. Homem de meia-idade, majestoso e afável, era dotado de uma notável bagagem de erudição quanto a fatos locais. A seu convite, fôramos tomar chá na sede da paróquia, e lá conhecemos também o sr. Mortimer Tregennis, cavalheiro independente, que ajudava o vigário a aumentar seus parcos recursos, hospedando-se em sua casa vasta e desordenada. O vigário, sendo solteiro, sentia-se feliz com esse arranjo, apesar de haver muito pouco em comum entre ele e seu pensionista, homem alto, moreno, de óculos, e cujo andar curvado sugeria uma verdadeira deformidade física. Recordo-me de que, durante nossa curta visita, notamos que o vigário estava muito loquaz, ao passo que seu pensionista se mostrava estranhamente taciturno, com um aspecto triste e pensativo, e deixou-se ficar quase sempre sentado, evitando nossos olhares, aparentemente preocupado com seus próprios problemas. Eis que os dois homens irromperam abruptamente em nossa pequena sala de estar, na terça-feira, 16 de março, pouco depois de termos terminado a nossa primeira refeição, enquanto fumávamos um cigarro antes do passeio cotidiano pêlos arredores. — Sr. Holmes — disse com voz agitada o vigário —, ocorreu durante a noite o fato mais trágico e extraordinário do mundo. É


verdadeiramente incrível, e podemos considerar sua presença aqui, neste momento, como dom especial da Providência, pois, em toda a Inglaterra, o senhor é justamente o homem de que necessitamos. Encarei o importuno vigário com ar de poucos amigos; Holmes, porém, tirou o cachimbo da boca e endireitou-se na poltrona, como um velho cão de caça que ouve o soar das trompas dos caçadores. Com um gesto, indicou o sofá, onde nosso ansioso visitante e seu perturbado companheiro se sentaram, lado a lado. O sr. Mortimer Tregennis parecia mais calmo que o clérigo, mas o tremor de suas mãos finas e o brilho de seus olhos escuros demonstravam que sentia a mesma emoção. — Falo eu ou o senhor? — perguntou ele ao pároco. — Parece que o senhor fez a descoberta, seja ela qual for, e o vigário tomou conhecimento dela por seu intermédio, por isso talvez seja melhor o senhor falar — disse Holmes. Lancei um olhar ao pároco, humildemente vestido, ao lado de seu pensionista, cuja indumentária era irrepreensível, e diverti-me com o ar de surpresa que a fácil dedução de Holmes lhes havia estampado nas faces. — Talvez eu deva dizer algumas palavras primeiro — objetou o vigário —, e depois o senhor decidirá se deve ouvir o sr. Tregennis ou se devemos correr imediatamente ao local da misteriosa tragédia. Devo explicar-lhe que nosso amigo, aqui presente, passou a noite de ontem na companhia de seus dois irmãos, Owen e George, e de sua irmã, Brenda, na casa deles, em Tredannick Wartha, situada junto à velha cruz de pedra no meio da planície. Deixou-os, pouco depois das dez, jogando cartas ao redor da mesa da sala de jantar, com excelente saúde e bom estado de espírito. "Hoje pela manhã, como de costume, levantou-se muito cedo, e antes do café saiu em passeio naquela direção, sendo alcançado pelo carro do dr. Richards, que o informou ter sido chamado com urgência a Tredannick Wartha. O sr. Mortimer Tregennis, como é óbvio, acompanhou-o. Ao chegar a Tredannick Wartha, deparou com um espetáculo inaudito. Os dois irmãos e a irmã estavam sentados à mesa, exatamente como os tinha deixado, com as cartas ainda espalhadas à sua frente e as velas gastas até o fim. A irmã jazia rígida, morta na cadeira, enquanto a seu lado os dois irmãos riam, gritavam e cantavam, completamente fora de si. Os três, a morta e os dois dementes, tinham estampada nas fisionomias a expressão do mais intenso horror, um esgar de pavor horrível. Não havia o menor sinal da presença de alguém na casa, à exceção da sra. Porter, a velha cozinheira e governanta, que declarou ter dormido a sono solto e nada ter ouvido durante a noite. Nada foi roubado ou remexido, e não há qualquer explicação do que poderia ter apavorado uma mulher a ponto de the causar a morte, e ter feito dois homens normais perderem completamente o juízo. Esta é, em resumo, a situação, sr. Holmes; se puder ajudar-nos a esclarecê-la, terá realizado uma grande obra." Eu esperava, de qualquer modo, persuadir meu companheiro a manter o repouso que constituía o objetivo de nossa viagem; bastou-me, no entanto, um olhar ao rosto atento e às sobrancelhas contraídas para compreender que seriam vãs todas as minhas súplicas. Ele se manteve sentado por algum tempo, em silêncio, com o pensamento absorto naquela misteriosa tragédia que viera perturbar o sossego das nossas férias. — Cuidarei deste caso — disse finalmente. — À primeira vista, parece tratar-se de um assunto de natureza excepcional. Esteve no local, sr. Roundhay? — Não, sr. Holmes. O sr. Tregennis trouxe-me a horrível notícia, e eu me apressei a vir com ele consultá-lo. — A que distância fica a moradia onde ocorreu tão singular tragédia?


— A cerca de um quilômetro e meio. — Então faremos uma caminhada juntos até lá. Antes de irmos, porém, desejo fazer-lhe algumas perguntas, sr. Mortimer Tregennis. Tregennis permanecera em silêncio durante todo o tempo, mas eu notei que sua agitação, apesar de mais bem controlada, era mais forte do que a emoção patente do vigário. Sentado, com o rosto lívido e abatido, o olhar ansioso fixo em Holmes, torcia convulsivamente as mãos finas. Seus lábios descorados tremiam ao ouvir a descrição da pavorosa desgraça que desabara sobre sua família, e os olhos escuros pareciam refletir ainda o horror da cena que tinham contemplado. — Pergunte-me o que quiser, sr. Holmes — respondeu prontamente. — É-me penoso falar a respeito do assunto; não obstante, contarei tudo o que sei. — Descreva os acontecimentos da noite passada. — Pois bem, sr. Holmes. Ceei lá, como o vigário já disse, e meu irmão mais velho, George, propôs, após a ceia, que jogássemos uma partida de uíste. Começamos a jogar por volta das nove horas. Eram dez e um quarto quando me despedi. Deixei-os sentados à mesa, todos muito alegres. — Quem o acompanhou até a porta? — A sra. Porter já fora para o quarto; por isso, saí sozinho, fechando a porta do vestíbulo atrás de mim. A janela da sala em que eles se encontravam estava fechada, mas a cortina estava aberta. Hoje de manhã, não notei nenhuma mudança, tanto na porta como na janela, e nada fazia supor que um estranho pudesse ter entrado na casa. Todavia, lá estavam meus irmãos enlouquecidos de terror, e Brenda, morta, com a cabeça pendente sobre o braço da cadeira. Enquanto for vivo, jamais poderei esquecer aquela visão dantesca. — Os fatos, tais como o senhor os narra, são realmente extraordinários — observou Holmes. — Pelo que me acaba de dizer, concluo que não encontra explicação para eles. — Foi obra do Demónio, sr. Holmes; do Demónio! — exclamou Mortimer Tregennis. — Não é coisa deste mundo. Algo deve ter surgido naquela sala, capaz de lhes apagar das mentes a luz da razão. Por meios humanos seria impossível realizar tal coisa! — Uma vez que o assunto transcende a natureza humana, receio que ele esteja acima de minhas forças. Entretanto, devemos esgotar todas as explicações naturais, antes de aceitar tal hipótese. Quanto ao senhor, suponho que se afastou de sua família por algum motivo, já que seus irmãos vivem juntos, e o senhor não mora com eles. — Exatamente, sr. Holmes, apesar de que este assunto já é coisa do passado, e foi encerrado há muito tempo. Possuíamos uma mina de estanho em Redruth, mas vendemos nossos direitos a uma sociedade e nos retiramos com o suficiente para levarmos uma vida tranqüila. Não nego que houve certo ressentimento entre mim e meus irmãos no tocante à divisão do dinheiro, mas tudo foi esquecido e perdoado, e nestes últimos tempos éramos ótimos amigos. — Voltando à última noite que passaram juntos, não se recorda de nada que possa lançar alguma luz sobre a tragédia? Pense bem, sr. Tregennis, pois o mais ténue fio da meada me será de grande auxílio. — Não me recordo de nada, sr. Holmes. — Seus irmãos encontravam-se em seu habitual estado de espírito? — Nunca os vi tão satisfeitos. — Eram pessoas nervosas? Mostravam-se apreensivos, como quem receia qualquer perigo iminente?


— Não. — Nada mais pode acrescentar, então, que me sirva de ajuda? Mortimer Tregennis refletiu profundamente por alguns instantes. — Ocorre-me agora uma coisa — disse ele por fim. — Quando estávamos sentados ao redor da mesa, eu estava de costas voltadas para a janela, e meu irmão George, que era meu parceiro, estava de frente para ela. Em dado momento, vi-o olhar fixamente por cima de meu ombro, tanto que me voltei e olhei na mesma direção. A cortina estava levantada e a janela, fechada, mas pude distinguir os arbustos do jardim e, por momentos, tive a sensação de ver qualquer coisa mover-se no meio deles. Não saberia dizer se era um homem ou um animal, mas calculei que fosse qualquer coisa. Quando perguntei a meu irmão para onde estava olhando, sua resposta coincidiu com a minha impressão. É tudo o que posso lhe dizer. — Os senhores não procuraram investigar? — Não; não demos importância ao incidente. — O senhor, por conseguinte, saiu de lá sem o menor presságio funesto? — Exatamente. — Ainda não compreendi bem como veio a saber do sucedido tão cedo nesta manhã. — Sou muito madrugador, e habitualmente saio a passeio antes do café. Esta manhã, mal me pus a caminho, fui alcançado pelo médico, que passou por mim de carro. Contou-me que a velha sra. Porter o mandara chamar com urgência por um garoto. Saltei para o carro e seguimos juntos. Logo que chegamos, entramos na sala trágica. As velas e o fogo deviam ter-se apagado muitas horas antes, e eles tinham permanecido sentados, na escuridão, até o romper da manhã. O médico declarou que Brenda devia estar morta há pelo menos seis horas. Não vimos o mínimo sinal de violência. Jazia apoiada sobre o braço da cadeira com uma pavorosa expressão de terror no rosto. George e Owen cantarolavam trechos de canções e agitavam-se como dois enormes macacos. Deus meu, que horror! Não pude resistir ao espetáculo, e o próprio médico estava branco como uma folha de papel. Chegou mesmo a cair sobre uma cadeira com uma espécie de vertigem, e, por pouco, não tivemos de tratar dele. — Estranho... verdadeiramente estranho! — comentou Holmes, levantando-se e pegando o chapéu. — Talvez seja melhor irmos já para Tredannick Wartha. Confesso que raras vezes deparei com um caso que fosse à primeira vista mais singular. As operações daquela manhã pouco serviram para que nossas pesquisas progredissem. Estas foram assinaladas, logo de início, por um incidente que me deixou na mente a mais sinistra impressão. A estrada que levava a Tredannick Wartha era estreita e sinuosa. Ao caminharmos por ela, ouvimos o ruído de um carro que vinha em sentido contrário, e afastamo-nos para um lado da estrada, a fim de lhe dar passagem. No momento em que cruzou conosco, entrevi fugazmente, através da vidraça da portinhola, um rosto contraído num horrendo sorriso, e que nos fitava. Aquele olhar insensato, aquele ranger de dentes passaram de súbito por nós como uma visão diabólica. — Meus irmãos — gritou Mortimer Tregennis, fazendo-se pálido como um cadáver. — Vão levá-los para Heiston. Acompanhamos com olhos esgazeados a carruagem negra, que desaparecia rapidamente de nossa vista. Volvemos em seguida os passos para a casa fatídica, cujos ocupantes tinham encontrado tão estranho destino.


Era uma habitação grande e clara, mais uma vila do que uma simples casa de campo, circundada por um vasto jardim que, graças ao ar ameno da Cornualha, já se encontrava coberto de flores primaveris. A janela da sala de estar dava para esse jardim, e por ela, segundo as declarações de Mortimer Tregennis, devia ter entrado aquela coisa demoníaca, que por um rápido instante transtornou a mente de seus irmãos por um simples efeito de horror. Holmes passeou lenta e pensativamente por entre os canteiros floridos e ao longo do caminho, antes de penetrarmos no portal. Lembro-me de que ele estava tão absorto nos próprios pensamentos, que tropeçou num regador cheio de água, despejando-lhe o conteúdo sobre nossos pés e na areia do jardim. No interior da casa, fomos recebidos pela velha governanta, a sra. Porter, que, com a ajuda de uma jovem criada, acudia aos arranjos domésticos. Respondeu prontamente a todas as perguntas de Holmes. Nada ouvira durante a noite. Os patrões tinham apresentado, nos últimos tempos, um excelente estado de espírito, e nunca os vira tão alegres e satisfeitos! Naquela, manhã, ao entrar na sala e ao deparar com aquele quadro sinistro, desmaiara de horror. Mal voltou a si, abriu a janela para arejar o ambiente e correu para a estrada, onde encontrou um garoto ao qual pediu que chamasse um médico. Se quisessem ver a srta. Brenda, ela estava na cama, no andar superior. Foram necessários quatro homens robustos para colocar os dois irmãos no carro do hospício. Não queria ficar nem mais uma noite na casa, e, naquela mesma tarde, iria juntar-se à sua família em St. Ives. Subimos as escadas e examinamos o cadáver. Brenda Tregennis fora uma jovem belíssima, se bem que já tivesse atingido a idade madura. O rosto moreno, de linhas perfeitas, era encantador, mesmo na morte, mas ainda apresentava sinais da convulsão que provocara sua última emoção terrena. Do quarto da extinta, descemos para a sala de estar onde se verificara a incrível ocorrência. Ainda se amontoavam na lareira as cinzas do fogo da noite anterior. Sobre a mesa, na qual continuavam espalhadas as cartas do baralho, viam-se quatro castiçais com as velas inteiramente consumidas. As cadeiras tinham sido encostadas à parede; no entanto, tudo o mais estava no lugar. Holmes percorreu a sala com passos rápidos e leves; sentou-se nas diversas cadeiras, aproximando-as da mesa, para reconstituir as posições. Verificou que ângulo do jardim poderia ser visto do interior; inspecionou o pavimento, o teto, a lareira; entretanto, nem por um momento notei aquele súbito brilho do olhar e aquela contração dos lábios que me fariam pressentir que entrevira um raio de luz naquela densa treva. — Por que o fogo estava aceso? — perguntou a certa altura. — Costumavam acender sempre a lareira nesta sala, mesmo numa noite de primavera? Mortimer Tregennis explicou que a noite fora fria e úmida; por esse motivo, tinham acendido a lareira depois de sua chegada. — Que pretende fazer agora, sr. Holmes? — perguntou. Meu amigo sorriu e pousou a mão no meu braço. — Creio, Watson, que vou voltar ao velho hábito de me intoxicar com tabaco, que você tantas vezes e com muita razão tem condenado. Os senhores vão permitir que voltemos


para casa, pois não acredito que aqui possa se apresentar algo de novo. Vou meditar sobre os acontecimentos, st. Tregennis, e, se me ocorrer qualquer coisa, o senhor e o vigário serão informados. Por ora, desejo a ambos um bom dia. Só muito tempo depois de nosso regresso a Poldhu Cottage, Holmes quebrou seu longo e obstinado silêncio. Afundara-se na poltrona, com o rosto magro de asceta quase oculto pelas densas espirais de fumo do cachimbo, as negras sobrancelhas contraídas, a fronte sulcada de rugas, os olhos absortos vagueando pelo espaço. Finalmente, pôs de lado o cachimbo e levantou-se. — Assim não dá, Watson — disse, soltando uma gargalhada. — Vamos dar um passeio até os penedos e procurar setas de pedra. Será mais fácil encontrar despojos neolíticos do que chaves para nosso problema. Fazer o cérebro trabalhar sem material suficiente é o mesmo que exigir de uma máquina o que ela não pode dar. Fica reduzida a pedaços. O ar do mar, o sol, e paciência, Watson... o resto virá por si. — E agora tentemos definir com calma a nossa posição — prosseguiu, enquanto contornávamos os penedos. — Procuremos agarrar firme o pouquíssimo que sabemos, de modo que possamos colocar nos devidos lugares os novos dados que surgirem. Antes de mais nada, suponho que nenhum de nós está disposto a admitir intrusões diabólicas em questões humanas. Principiemos por afastar da mente essa eventualidade. Muito bem. Restam assim três pessoas atacadas com crueldade, consciente ou inconscientemente, por um ser humano. Agora, estamos pisando terreno seguro. Ora, quando se verificou isso? Presumindo que seja verdadeira a narrativa do sr. Mortimer Tregennis, tal fato sucedeu logo depois de ele ter deixado a sala. Este ponto é importantíssimo. A hipótese é de que o incidente ocorreu poucos minutos depois. As cartas ainda se encontravam espalhadas sobre a mesa. Já passara a hora em que eles costumavam deitar-se; todavia, não tinham mudado de posição, nem afastado as cadeiras da mesa. Repito, portanto: o fato deve ter se verificado logo depois da partida de Tregennis, e antes das onze horas da noite. "A primeira coisa que devemos fazer é seguir, tanto quanto possível, todos os passos que Mortimer Tregennis deu depois de deixar a sala. Nisso não encontraremos dificuldade alguma, e parece-me que seus movimentos estão acima de qualquer suspeita. Você conhece bem meus métodos e, naturalmente, compreendeu o expediente algo desajeitado do regador, pelo qual obtive do pé dele uma impressão mais clara do que seria permitido obter por outro meio qualquer. O caminho arenoso e úmido reteve-a de forma perfeita. Como deve lembrar-se, a noite passada também foi úmida, e não me foi difícil, depois de obter um modelo, descobrir-lhe as pegadas no meio das outras e acompanhar-lhe os movimentos. Ele parece ter se afastado rapidamente na direção da casa do vigário. "Ora, se Mortimer Tregennis desapareceu da cena e alguém de fora pôde exercer uma influência letal sobre os jogadores de cartas, como podemos estabelecer a identidade dessa pessoa, e como foi possível criar em torno daqueles três desgraçados tão mortífera atmosfera de horror? A sra. Porter está isenta de qualquer suspeita. É evidentemente inofensiva. Existirão provas de que alguém subiu à janela do jardim, e, por meios ignorados, horrorizou os três irmãos a ponto de enlouquecê-los? A única hipótese nesse sentido é fornecida pelo próprio Mortimer Tregennis, quando afirma que seu irmão distinguira algo movendo-se no jardim. Isso é, sem dúvida, extraordinário, pois a noite estava chuvosa, enevoada e escura. Quem quisesse assustar aquela gente seria obrigado a encostar o rosto à vidraça, a fim de ser visto. Ao lado da janela, na parte exterior, corre um canteiro de flores de cerca de um metro de largura; não apresenta, porém, o menor sinal de pés. Por conseguinte, é difícil imaginar como alguém, do lado de fora, poderia ter produzido tão forte impressão sobre as três pessoas, praticando tão estranho e complexo atentado. Percebe as dificuldades com que nos defrontamos, Watson?" — Perfeitamente — respondi, cheio de convicção. — No entanto, se tivéssemos mais alguns elementos, poderíamos demonstrar que elas não são insuperáveis — continuou Holmes. — Estou certo de que você encontrará em seu vasto arquivo alguns casos quase tão obscuros como este. Por ora, vamos pôr de lado o problema até que apareçam dados mais precisos, e dediquemo-nos, durante o resto da manhã, à pesquisa do homem neolítico. Já me referi muitas vezes à faculdade de meu amigo de esquecer momentaneamente as coisas que o preocupam, mas nunca o admirei


tanto como naquela manhã de primavera, na Cornualha, onde, durante duas horas, discorreu a respeito dos celtas, pontas de flechas e fragmentos de cerâmica, com grande desembaraço, como se nenhum mistério sinistro aguardasse uma solução. Só à tarde, de regresso à casa, tornamos a falar no assunto. Estava à nossa espera uma visita, e não foi preciso dizer-nos de quem se tratava. Aquele vulto enorme, o rosto duro e sulcado de rugas, o olhar arrogante, o nariz aquilino, os cabelos grisalhos que quase vasculhavam o teto da sala, a barba — loura nas pontas e branca junto aos lábios, exceto as manchas de nicotina deixadas pelo eterno charuto —, tudo isso era muito conhecido tanto em Londres como na África, e só podia estar relacionado à extraordinária personalidade do dr. Leon Sterndale, o célebre explorador e caçador de leões. Sabíamos de sua presença na região, e tínhamos por uma ou duas vezes avistado sua figura gigantesca nos atalhos da charneca. Ele, porém, nada fizera para se aproximar de nós, nem nós, por outro lado, jamais sonháramos estabelecer relações com ele, pois sua misantropia era muito conhecida. Nutria um amor tão exagerado pelo isolamento que, nos intervalos de suas viagens, passava a maior parte do tempo numa pequenina casa de campo perdida na solidão dos bosques de Beauchamp Arriance. Aí, entre livros e mapas, dedicava-se a uma existência de absoluta segregação, atendendo às próprias necessidades, sem parecer interessar-se pela vida de seus vizinhos. Surpreendi-me, portanto, ao ouvi-lo perguntar a Holmes, com voz ansiosa, se tinha feito algum progresso na reconstituição do misterioso acontecimento. — A polícia do condado está absolutamente tonta — disse —, mas talvez o senhor, com a sua experiência mais vasta, consiga sugerir uma explicação plausível. O único motivo que me leva a interessar-me pelo caso é o fato de que, durante minhas numerosas estadias aqui, travei uma íntima amizade com a família dos Tregennis (aliás, pelo lado de minha mãe, poderia chamá-los primos), e seu trágico destino constituiu, como é natural, um profundo golpe para mim. Posso dizer-lhes que me encontrava já em Plymouth, rumo à África, quando soube do sucedido, e voltei no mesmo instante, a fim de colaborar no inquérito. Holmes arqueou as sobrancelhas. — Por causa disso, então, o senhor perdeu o vapor? — Seguirei no próximo. — Por Deus! Isso é que se chama amizade! — Como lhe disse éramos parentes! — De acordo... Primos por parte de mãe. Sua bagagem já estava no navio? — Alguma coisa; a de maior valor estava comigo no hotel. — Compreendo. Mas, com certeza, a notícia desse acontecimento não pôde ter sido publicada pêlos matutinos de Plymouth. — Não, recebi um telegrama. — Pode dizer-me quem lhe telegrafou? Pelo rosto magro e ossudo do explorador perpassou uma sombra. — É muita curiosidade, sr. Holmes! — Faz parte de minha profissão. Com um esforço, o dr. Sterndale recobrou a calma. — Nada me impede de dizê-lo. Foi o sr. Roundhay, o vigário, quem me telegrafou. — Muito obrigado — redargüiu Holmes. — Respondendo à sua primeira pergunta, devo


dizer-lhe que ainda não tenho uma noção clara deste caso, mas nutro fortes esperanças de chegar a uma conclusão. Seria prematuro dizer-lhe mais alguma coisa. — Suas suspeitas indicam algum rumo seguro? — Não; sobre isso nada posso afirmar. — Então, perdi meu tempo, e parece-me inútil prolongar minha visita. O famoso explorador retirou-se a passos largos, visivelmente irritado, e, ao cabo de cinco minutos, Holmes seguiu-o. Não tornei a vê-lo senão à tarde, quando regressou. Pelo passo lento e a fisionomia abatida, concluí não terem sido muito frutíferas suas investigações. Passou os olhos por um telegrama que o aguardava e atirou-o ao fogo. — Do Plymouth Hotel, Watson — explicou-me. — O vigário deu-me o endereço, e eu telegrafei para lá a fim de me certificar se a versão do dr. Sterndale era exata. Parece que de fato passou a noite lá, e parte de sua bagagem já fora embarcada para a África, enquanto ele voltava com o intuito de estar presente durante esta investigação. Que deduz você de tudo isso? — Que o assunto lhe interessa muito. — Interessa-lhe profundamente... sim. Há um fio, aqui, que até agora não conseguimos agarrar e que talvez nos conduza através da meada. Alegre-se, Watson, pois estou certo de que ainda não temos na mão todos os elementos essenciais. Quando tal suceder, nossas dificuldades se dissiparão. Eu mal sabia que as palavras de Holmes logo se veriam confirmadas, e que estava prestes a ocorrer um fato estranho e sinistro, que iria dar novo rumo às nossas pesquisas. Eu me barbeava junto à janela, na manhã seguinte, quando ouvi o tropel de patas de cavalo, e, erguendo o olhar, deparei com uma carruagem que vinha em disparada pela estrada. O veículo estacou à porta, e dele apeou nosso vigário, que entrou correndo pelo jardim, Holmes já estava vestido, e ambos nos apressamos ao seu encontro. Nosso visitante estava tão emocionado que mal podia articular palavra; todavia, após muito balbuciar e arquejar, conseguimos ouvir-lhe a trágica notícia: — Mortimer Tregennis morreu durante a noite, apresentando exatamente os mesmos sintomas encontrados nos outros membros de sua família. Holmes ergueu-se de súbito, vibrante de energia. — Pode levar-nos em seu carro? — Certamente. — Nesse caso, Watson, adiaremos nossa refeição. Estamos ao seu inteiro dispor, sr. Roundhay. Vamos depressa, antes que alguém entre no aposento e tire qualquer coisa do lugar. Tregennis ocupava dois quartos sobrepostos num ângulo da casa. O do andar térreo servia de sala de estar; o de cima era o quarto de dormir. As janelas de ambos davam para um campo de croque, junto do edifício. Tínhamos chegado antes do médico e da polícia, de modo que tudo se encontrava no lugar. Desejo descrever a cena exatamente como se apresentava naquela nevoenta manhã de março, cuja impressão jamais se apagará de minha memória.


A atmosfera do quarto estava incrivelmente sufocante, e estaria ainda mais irrespirável se a criada, que tinha entrado antes, não escancarasse a janela. Talvez isso pudesse atribuir-se a um lampião que estava aceso no centro da mesa. Junto a esta estava sentado o morto, reclinado na poltrona, a barba rala apontada para a frente, os óculos empurrados para a testa, o rosto trigueiro e magro voltado para a janela e contraído no mesmo espasmo de horror que transtornara as feições de sua pobre irmã. Os membros convulsos e os dedos crispados pareciam indicar que morrera num verdadeiro paroxismo de medo. Estava vestido, ainda que houvesse sinais de que o fizera às pressas. O leito em desalinho mostrava que dormira ali, e que o fim trágico se dera às primeiras horas da manhã. Para avaliar a energia ardente, oculta sob a aparência fleumática de Holmes, bastaria reparar na súbita transformação que ele sofreu ao entrar na sala fatal. Instantaneamente ele ficou tenso e alerta, com os olhos brilhando, a fisionomia impenetrável, os membros fremindo de energia. Saía para o campo de croque, regressava pela janela, rodeava o aposento, subia ao quarto, como um irrequieto cão de caça farejando a presa. No quarto de dormir, fez um rápido giro e terminou abrindo a janela de par em par, o que pareceu fornecer-lhe novo motivo de excitação, pois debruçou-se nela lançando estrepitosas exclamações de interesse e satisfação. Em seguida, desceu a escada correndo, pulou a janela, atirou-se de bruços no relvado, pôs-se de pé num salto e tornou a entrar na sala, tudo isso com a energia do caçador prestes a apanhar a presa. O lampião, de tipo comum, sofreu também um minucioso exame, principalmente no que se referia à sua capacidade. Inspecionou cuidadosamente com uma lente a fuligem que lhe recobria a parte superior, e raspou um pouco da cinza que havia aderido à superfície, guardando-a num envelope, que enfiou na carteira. Finalmente, ao chegarem o médico e a polícia, acenou ao vigário, e saímos os três para o relvado usado para jogar croquê. — Tenho o prazer de lhes comunicar que minha investigação não foi de todo infrutífera — observou. — Não posso permanecer aqui para discutir o caso com a polícia, mas eu lhe ficaria grato, sr. Roundhay, se quisesse apresentar meus cumprimentos ao inspetor e chamar-lhe a atenção para a janela do quarto e para o lampião da sala de estar. Cada um desses elementos é sugestivo, e, juntos, acho-os quase conclusivos. E agora, Watson, creio que nosso tempo pode ser mais bem aproveitado em outro lugar. A polícia, provavelmente, não via com bons olhos a intromissão de um diletante, ou talvez julgasse que estava seguindo uma pista mais segura. O fato é que ninguém nos procurou nos dois dias seguintes, durante os quais Holmes passou parte do tempo em casa, fumando e conjeturando. No entanto, gastou a maior parte do tempo em demorados passeios solitários pêlos arredores, dos quais voltava sem indicar, de modo algum, onde tinha estado. Uma certa experiência serviu para me revelar o rumo de suas pesquisas. Ele comprou um lampião exatamente igual ao que ficara aceso nos aposentos de Mortimer Tregennis na manhã da tragédia. Encheu-o com o mesmo combustível usado na casa do vigário, e calculou com exatidão o tempo necessário que ele levava para se esgotar. A essa seguiu-se outra experiência, de caráter tão desagradável que não me será fácil esquecê-la. — Você deve ter notado, Watson — observou ele, uma tarde —, que existe um único ponto comum de analogia nas diferentes informações que nos chegaram aos ouvidos. Refiro-me ao efeito produzido, em cada caso, pela atmosfera do aposento sobre as pessoas que entraram nele em primeiro lugar. Deve lembrar-se de que Mortimer Tregennis, ao descrever o episódio de sua última visita à casa dos irmãos, disse que o médico, quando entrou na sala, caiu sobre uma cadeira. Já se esqueceu desse pormenor? Eu não me esqueci. Agora, deve lembrar-se também de que a sra. Porter, a governanta, nos declarou que desmaiara ao penetrar na sala e só depois abrira a janela. No segundo caso, o do próprio Mortimer Tregennis, não pode ter esquecido a impressão horrível de asfixia que sentimos quando


transpusemos a porta da sala, embora a criada tivesse aberto a janela. Soube depois que essa criada se sentiu tão mal que teve de ir para a cama. Ora, Watson, deve convir que esses fatos são muito significativos. Em ambos os casos, temos provas irrefutáveis de envenenamento da atmosfera. Por outro lado em cada um deles, deparamos com um processo de combustão. No primeiro, o fogo ardia na lareira, no segundo, um lampião estava aceso. O fogo era necessário, pois a noite estava fria, mas o lampião... como se pode verificar pela quantidade de combustível consumido, foi aceso muito tempo depois do raiar do dia. Por quê? Sem dúvida porque existia alguma ligação entre esses três fatores: a combustão, a atmosfera sufocante e, finalmente, a loucura ou a morte daqueles infelizes. Está claro, não acha? — Assim parece. — Pelo menos podemos aceitar essa hipótese. Suponhamos, então, que em cada um dos casos alguma coisa foi queimada, tendo produzido uma atmosfera de misteriosos efeitos tóxicos. Muito bem. No primeiro, o da família Tregennis, essa substância foi colocada na lareira. A janela estava fechada, mas, naturalmente, parte dos vapores foi absorvida pela chaminé, ao menos por certo tempo. Por isso deve-se imaginar que os efeitos do veneno foram menores do que no segundo caso, em que houve menos escape de fumaça. Os resultados parecem indicar isso, pois no primeiro caso apenas a mulher, presumivelmente dotada de um organismo mais sensível, encontrou a morte, enquanto nos outros se apresentou o fenómeno da loucura temporária ou permanente, que é, com certeza, o primeiro estágio provocado pela droga. No segundo caso, o resultado foi total. Por conseguinte, os fatos tendem a confirmar a hipótese de um veneno que atua por combustão. Baseado nesse raciocínio, era natural que procurasse no quarto de Mortimer Tregennis qualquer traço dessa substância, É claro que o primeiro objeto que inspecionei foi a manga do lampião. E, de fato, encontrei nela certa quantidade de cinza escamosa, com uma franja de pó castanho, que ainda não fora de todo consumida. Como você viu, recolhi metade desse pó e coloquei-o num envelope. — Por que apenas metade, Holmes? — Não é meu costume, caro Watson, dificultar as investigações da polícia oficial. Costumo deixar-lhes todas as provas que encontro. Se possuírem habilidade para descobri-lo, boa parte do veneno ainda se encontra lá. E agora, Watson, vamos acender nosso lampião; tomaremos, no entanto, a precaução de abrir a janela, a fim de evitarmos a morte prematura de dois dignos membros da sociedade. Você se sentará numa poltrona junto da janela, a menos que, como pessoa de bom senso, se recuse a tomar parte esta experiência. Ah! Prefere ver como vai terminar? Eu estava certo de que conhecia meu Watson. Colocarei esta cadeira em frente à sua, de modo que possamos ficar ambos a igual distância do veneno e face a face. Deixaremos a porta entreaberta. Cada um de nós está em posição que permite observar o outro e pôr fim à prova se os sintomas se revelarem alarmantes. Está entendido? Muito bem! Tiro, então, nosso pó do envelope, ou o que resta dele, e ponho-o sobre o lampião aceso. Pronto! E agora, Watson, sentemo-nos e aguardemos os acontecimentos. Estes não se fizeram demorar. Mal me havia sentado, principiei a sentir um odor sufocante, almiscarado, sutil e nauseante. À primeira baforada, perdi todo o domínio do cérebro e da imaginação. Uma nuvem espessa e negra baixou-me sobre os olhos, e eu tive a intuição de que ela trazia em seu bojo, invisível ainda, mas pronto a saltar diante de meus sentidos dominados pelo pavor, tudo quanto havia de vagamente horrível, monstruoso e infinitamente perverso no mundo. Formas indistintas giravam e flutuavam na escuridão da nuvem, cada uma delas trazendo em si a ameaça ou a advertência de qualquer coisa iminente, o aparecimento de algo pavoroso, cuja sombra, só por si, bastaria para me fulminar a alma. Fiquei gelado de horror. Senti os cabelos arrepiarem-se, os olhos saltarem das órbitas, a boca escancarar-se e a língua pender para fora como um pedaço de couro. Era tal o tumulto em meu cérebro que tive a impressão de que minha cabeça ia estourar. Tentei gritar e apenas percebi, vagamente, um rouco coaxar, que devia ser minha voz, mas irreal e infinitamente distante. Nesse momento, num supremo esforço de fuga, irrompi através daquela nuvem de desespero e entrevi o rosto de Holmes, pálido, rígido, petrificado de terror — a mesma máscara que eu vira impressa nas feições dos dois cadáveres. Essa visão deu-me um átomo de lucidez e força. Saltei da poltrona, atirei os braços em torno de Holmes e com ele precipitei-me cambaleante para fora da sala. Momentos depois


estávamos estirados, lado a lado, sobre a relva, cônscios somente do sol radioso, cujos raios diluíam a infernal nuvem de pavor em que nos encontrávamos envolvidos. Lentamente, ela se evaporou de nosso espírito, como a bruma 'dos pântanos, e assim recuperamos a calma e a razão. Sentamo-nos no relvado, enxugando o suor viscoso de nossas testas e olhando apreensivos um para o outro, como querendo fixar os últimos traços da espantosa experiência a que nos tínhamos submetido. — Palavra de honra, Watson! — exclamou Holmes por fim, com voz ainda vacilante. — Devo agradecer-lhe e, ao mesmo tempo, apresentar-lhe desculpas. Essa prova, que, para mim só, seria imperdoável, é duplamente imperdoável porque envolvi nela um querido amigo. Não sei como devo pedir-lhe perdão. — Você bem sabe — respondi emocionado (pois jamais me fora dado ver Holmes tão afetuoso) — que para mim a maior alegria, o máximo privilégio consiste em poder ser-lhe útil. Meu amigo voltou imediatamente ao tom irônico que o caracterizava. — Seria supérfluo agirmos como loucos, Watson. Qualquer observador desprevenido afirmaria por certo que já o estávamos ao tentar tão temerária experiência. Confesso, porém, que nunca imaginei que o efeito pudesse ser tão violento e instantâneo. Entrou correndo em casa, reapareceu com o lampião ainda aceso, conservando-o à distância, e arremessou-o sobre um monte de galhos secos. — Devemos esperar que a atmosfera do quarto se purifique. Suponho, Watson, que não alimente a menor sombra de dúvida quanto à maneira pela qual essas tragédias ocorreram. — Absolutamente nenhuma. — A causa, no entanto, permanece tão obscura como antes. Sentemo-nos debaixo deste caramanchão para discutir o assunto. Aquela maldita droga parece ainda me apertar a garganta. Somos obrigados a admitir que, na primeira tragédia, o criminoso foi Mortimer Tregennis, apesar de ele ter sido a vítima na segunda. Não nos esqueçamos da história da briga de família, seguida de um apaziguamento. Todavia, não sabemos até que ponto foi o litígio, nem o valor efetivo da reconciliação. Quando evoco Mortimer Tregennis, com aquela cara de raposa matreira, com aqueles olhos redondos e astutos brilhando por trás dos óculos, não o julgo homem suscetível de perdoar alguém. Além disso, deve recordar-se de que a idéia de um vulto movendo-se no jardim, a qual nos desviou momentaneamente a atenção da causa real do trágico evento, partiu dele. Tinha motivos para nos despistar. E, finalmente, se não foi ele quem atirou essa substância no fogo no momento em que abandonou a sala, quem mais poderia tê-lo feito? A coisa sucedeu logo depois da partida dele. Se alguma pessoa tivesse aparecido, a família evidentemente teria deixado a mesa. Por outro lado, neste pacífico condado da Cornualha, não se fazem visitas depois das dez horas da noite. Portanto, todos os indícios apontam Mortimer Tregennis como o único culpado. — Então sua própria morte foi um suicídio! — Bem, Watson, à primeira vista tal hipótese não parece impossível. Um homem, sobre cuja consciência pesa a culpa de um crime tão hediondo contra a própria família, poderia muito bem, levado pelo remorso, infligir a si mesmo idêntico fim. Há, contudo, fortes argumentos contra tal suposição. Felizmente, existe alguém na Inglaterra que tudo sabe a esse respeito, e eu providenciei para que possamos ouvir os fatos, de seus próprios lábios,


ainda esta tarde. Ah! Aí vem ele um pouco antes da hora... Queira vir por aqui, dr. Leon Sterndale. Estivemos realizando dentro de casa uma experiência química, a qual reduziu nossa saleta a condições absolutamente inadequadas para receber tão ilustre visitante. Eu ouvira o ranger do portão do jardim e vira surgir na passagem a majestosa figura do grande explorador da África, que se voltou com certa surpresa para o rústico caramanchão sob o qual estávamos sentados. — Recebi há cerca de uma hora o bilhete com que mandava me chamar, sr. Holmes, e por isso aqui estou, apesar de não saber por que deveria obedecer às suas ordens. — Talvez possamos esclarecer a situação antes de nos separarmos — replicou Holmes. — Por enquanto, fico-lhe muito grato pela cortês aquiescência. O senhor vai desculpar-nos esta recepção ao ar livre, mas meu amigo Watson e eu quase fornecemos mais um capítulo ao que os jornais chamam de "O horrível mistério da Cornualha", e por ora preferimos uma atmosfera mais saudável. Entretanto, como o assunto que vamos discutir o interessa particularmente de modo bastante íntimo, é melhor que conversemos em lugar onde ninguém nos possa ouvir. O explorador tirou o charuto da boca e encarou fixamente meu companheiro. — Não consigo atinar qual possa ser o assunto que me interessa de forma tão pessoal e íntima — respondeu. — Refiro-me ao assassinato de Mortimer Tregennis — explicou Holmes. Naquele momento desejei estar armado. O rosto arrogante de Sterndale tornou-se rubro de cólera, seus olhos fuzilaram, as veias da fronte incharam, ao mesmo tempo em que se lançava de punhos fechados sobre meu companheiro. Conteve-se, porém, a tempo, e com um violento esforço recobrou a calma, uma calma rígida e fria, talvez ainda mais ameaçadora do que a explosão colérica. Gilbert Halliday, 1910 — Vivi tanto tempo entre os selvagens e afastado das leis — disse — que me habituei a fazer justiça por minhas próprias mãos. Rogo-lhe que não esqueça isso, sr. Holmes, pois não é meu desejo causar-lhe nenhum mal. — Nem eu tenho o desejo de molestá-lo, dr. Sterndale. A prova mais evidente disso é que, sabendo o que sei, mandei chamá-lo, e não à polícia. Sterndale deixou-se cair sentado no banco com um gemido, subjugado, talvez pela primeira vez, em toda a sua aventurosa existência. Da atitude de Holmes, calma e segura, emanava tão grande autoridade que a ninguém era dado resistir. Nosso visitante titubeou por instantes, abrindo e fechando as enormes mãos, presa de intensa agitação. — O que o senhor pretende dizer? — indagou por fim. — Se tenciona divertir-se à minha custa, está muito enganado. Deixemos de rodeios. O que quer de mim? — Vou já dizê-lo — retorquiu Holmes —, e faço-o na esperança de que minha franqueza seja correspondida. Meu próximo passo vai depender da maneira como o senhor se defender. — Defender-me? — Precisamente.


— Mas defender-me de quê? — Da acusação de ter assassinado Mortimer Tregennis. Sterndale enxugou a testa com um lenço. — Com franqueza, o senhor está ultrapassando os limites. Será que todos os seus êxitos dependem dessa prodigiosa capacidade de blefar? — Se alguém está blefando aqui — observou Holmes em tom severo —, é o senhor, dr. Sterndale, e não eu. Como prova, contar-lhe-ei alguns fatos nos quais baseei minhas conclusões. Nada direi de seu regresso de Plymouth, deixando grande parte da bagagem prosseguir viagem para a África, a não ser que tal atitude me indicou que o senhor era um dos fatores que deveriam ser considerados na reconstituição do drama... — Eu voltei... — Já me explicou as razões, mas eu as considero pouco convincentes e inadequadas. Mas deixemos isso de parte. O senhor me procurou para me perguntar de quem eu suspeitava. Recusei-me a responder-lhe. Dirigiu-se então à casa do vigário, esperou algum tempo do lado de fora e por fim regressou à sua residência. — Como sabe? — Eu o segui. — Não vi ninguém. — Pode estar certo de que isso sucederá sempre que eu o seguir. O senhor passou toda a noite em claro, e formulou certos planos que resolveu pôr em prática logo ao alvorecer. Saindo de casa ao romper do dia, encheu os bolsos com pedrinhas avermelhadas que jaziam num monte junto a seu portão. Sterndale estremeceu violentamente e fitou Holmes, aturdido. — O senhor venceu, então, a passos rápidos, o quilômetro e meio que o separava da casa da paróquia. Acrescentarei que usou o mesmo par de tênis que tem agora nos pés. Ao chegar lá, atravessou o pomar e a sebe lateral e colocou-se embaixo da janela do quarto de Tregennis. Embora fosse dia claro, o silêncio dentro da casa era completo. Tirou algumas pedrinhas do bolso e atirou-as contra a janela do pavimento superior. Sterndale pôs-se de pé num pulo. — Mas o senhor é o Diabo em pessoa! — exclamou. Holmes sorriu diante do cumprimento. — Foi preciso atirar dois ou talvez três punhados de pedras, para que Tregennis aparecesse à janela. Pediu-lhe, então, que descesse. Ele se vestiu às pressas e foi para a sala de estar. O senhor entrou pela janela. Seguiu-se entre ambos um rápido colóquio, durante o qual o senhor ficou andando de um lado para outro na sala. Saiu, em seguida, pelo mesmo caminho, fechou a janela e permaneceu no relvado do lado de fora, fumando um cigarro e observando os acontecimentos. Finalmente, depois da morte de Tregennis, retirou-se como viera. E agora, dr. Sterndale, como justifica tal conduta, e quais os motivos que o levaram a proceder assim? Se tentar lograr-me, por pouco que seja, dou-lhe minha palavra de honra de que passarei definitivamente o caso para outras mãos. O rosto de nosso visitante tornou-se lívido ao ouvir essas palavras. Ficou sentado por algum tempo, silencioso e pensativo, o rosto apoiado nas mãos. Por fim, com um gesto impulsivo, arrancou uma fotografia do bolso do casaco e atirou-a em cima da mesa rústica, diante de nós.


— Eis por que fiz isso — explicou. A fotografia reproduzia o busto e o rosto de uma mulher belíssima. Holmes inclinou-se para observá-la. — Brenda Tregennis — disse. — Sim, Brenda Tregennis — repetiu nosso visitante. — Há anos que nos amávamos. É esse o segredo de meu isolamento na Cornualha, de que toda gente se admirava. Só assim podia estar próximo da única criatura que me era cara no mundo. Não podia casar-me com ela porque tenho uma mulher, que me abandonou há muitos anos e da qual, por culpa das odiosas leis inglesas, ainda não pude divorciar-me. Durante anos Brenda esperou. Durante anos eu esperei. E eis o resultado de nossa espera. Um violento soluço abalou-lhe a figura gigantesca, e ele comprimiu a garganta com a mão. Depois, num supremo esforço, conseguiu dominar-se e continuou: — O vigário sabia de tudo. Era nosso confidente. Ele lhes dirá que ela era um verdadeiro anjo na terra. Foi por isso que ele me telegrafou e eu voltei. Que me importavam as bagagens ou a África, diante do que sucedera à minha querida Brenda? Aí tem, sr. Holmes, a explicação que faltava para meu procedimento. — Continue — solicitou meu amigo. O dr. Sterndale tirou do bolso um embrulho de papel e depositou-o sobre a mesa. Por fora estava escrito: "Radix pedis Diaboli", e logo abaixo, num rótulo vermelho, lia-se: "Veneno". Empurrou o pacote em minha direção. — Sei que o senhor é médico — disse. — Já ouviu falar neste preparado? — Raiz de pé-do-diabo! Não, nunca. — Isso, aliás, não compromete seus conhecimentos profissionais — acrescentou —, pois acredito que, com exceção da amostra existente em um laboratório de Budapeste, não há outro exemplar na Europa. Ainda não encontrou lugar nem na farmacopéia, nem nos tratados de toxicologia. A raiz tem o formato de um pé, meio humano, meio caprino; daí o nome fantástico que lhe foi dado por certo botânico missionário, É usada como veneno, em provas punitivas, pêlos curandeiros de algumas regiões da África ocidental, que a conservam em segredo entre eles. Foi-me possível obter esta amostra específica na zona de Ubangui, em circunstâncias verdadeiramente extraordinárias. Abriu o pacote, enquanto falava, e exibiu-nos certa quantidade de um pó castanhoavermelhado, semelhante a rapé. — E então? — perguntou Holmes em tom severo. — Vou explicar-lhe tudo quanto de fato aconteceu, pois já sabe tanto que é de meu interesse que conheça o resto. Já lhe expus minhas relações com a família Tregennis. Por causa da irmã, cultivava a amizade dos irmãos. Após certa desavença doméstica por questões de dinheiro, Mortimer afastou-se dos outros, mas parece ter havido uma reconciliação, e eu voltei a encontrar-me com ele, como fazia com os demais. Era astuto, sutil, intrigante, e por várias razões chegara a suspeitar dele; no entanto, jamais deu motivos para qualquer desavença séria entre nós. "Um dia, há cerca de duas semanas, esteve em minha casa, e eu lhe mostrei algumas de minhas curiosidades africanas. Entre outras coisas, dei-lhe a conhecer este pó, e contei-lhe suas estranhas propriedades, a maneira como estimula os centros nervosos cerebrais que controlam a sensação do medo e como provoca a loucura ou a morte do infeliz nativo exposto a seus efeitos pelo feiticeiro da tribo. Expliquei-lhe também a ignorância em que se encontrava a ciência europeia a seu respeito. Não sou capaz de lhe dizer como conseguiu apoderar-se dele, pois nem pôr um instante me afastei da sala, mas com certeza deve tê-lo


feito enquanto eu abria armários ou me inclinava diante de alguma caixa. O fato é que subtraiu certa quantidade de raiz de pé-do-diabo. Recordo-me perfeitamente de que me cumulou de perguntas sobre a quantidade e o tempo necessário para que produzisse o efeito desejado, mas eu estava bem longe de imaginar que tivesse um motivo pessoal para fazê-lo. "Não pensei mais no assunto até receber em Plymouth o telegrama do vigário. Aquele monstro supunha que eu me encontraria em alto-mar quando recebesse a notícia, e que me perderia durante anos no coração da África. Mas, contra sua expectativa, voltei imediatamente. Como é óbvio, mal me inteirei dos pormenores da tragédia,- compreendi que alguém usara meu veneno. Procurei então o senhor para ver se por acaso encontrara outra explicação. Mas não podia haver outra. Estava convencido de que o assassino era Mortimer Tregennis; por amor ao dinheiro e talvez com a idéia de que, se os demais membros da família ficassem loucos, ele assumiria, sozinho, a tutela do conjunto dos bens, usara contra eles o pó venenoso, enlouquecendo os dois irmãos e matando a irmã Brenda, a única criatura que amei na vida, e que me amava. Aí estava seu crime; qual o castigo que lhe cabia? Deveria eu apelar para a justiça? Onde estavam minhas provas? Eu sabia de tudo, mas conseguiria fazer um júri de aldeãos acreditar em tão fantástica história? A possibilidade parecia-me remota. Contudo, não podia arriscar-me a um malogro. Minha alma clamava por vingança. Já lhe disse, sr. Holmes, passei tão grande parte da vida longe da lei, que acabei finalmente por ditar eu próprio minhas leis. E assim sucedeu também neste caso. Decidi que ele devia compartilhar a mesma sorte que infligira aos outros. Ou isso, ou então eu faria justiça por minhas mãos. Em toda a Inglaterra, não existe neste momento homem algum que dê menos valor à própria vida do que eu. "Agora já lhe contei tudo. O resto o senhor mesmo nos deu a conhecer. De fato, como disse, após uma noite de insônia, saí cedo de casa. Prevendo a dificuldade de acordá-lo, apanhei um punhado de pedrinhas do monte a que se referiu e servi-me delas para lançá-las contra a janela. Ele desceu e fez-me entrar pela janela da sala de estar. Eu o acusei do crime. Afirmei-lhe estar ali como juiz e algoz. O miserável deixou-se cair numa cadeira, paralisado de terror diante de meu revólver. Acendi o lampião, despejei-lhe em cima o pó e coloquei-me fora da janela, pronto a executar minha ameaça de matá-lo, caso procurasse abandonar a sala. Morreu ao cabo de cinco minutos. Meu Deus! Que morte! Meu coração, porém, estava empedernido, pois Mortimer não sofreu nada que minha inocente Brenda não tivesse suportado antes dele. Eis minha história, sr. Holmes. Talvez, se amasse uma mulher, o senhor tivesse feito o mesmo. De qualquer forma, estou em suas mãos. Faça de mim o que quiser. Como já lhe disse, não há ninguém no mundo que receie menos a morte do que eu." Holmes permaneceu algum tempo em silêncio. — Quais eram seus planos? — perguntou por fim. — Tencionava embrenhar-me no centro da África. Meu trabalho ali ficou pela metade. — Pois vá terminá-lo — sentenciou Holmes. — Eu, pelo menos, não tenho a menor intenção de impedi-lo. O dr. Sterndale ergueu seu vulto gigantesco, inclinou-se gravemente e saiu do caramanchão. Holmes acendeu o cachimbo e estendeu-me a bolsinha de tabaco. — Algumas fumaças não venenosas constituirão um agradável derivativo — observou. — Espero que concorde comigo, Watson, em que este é um caso no qual não devemos interferir. Nossa investigação foi independente, e independente será também nosso modo de agir. Você teria coragem de denunciar esse homem? — Certamente que não — respondi. — Nunca amei, Watson, mas, se amasse, e minha eleita tivesse tido semelhante destino, com certeza agiria como nosso destemido caçador de leões. Quem sabe? Bem, Watson, não quero ofender-lhe a inteligência explicando o óbvio. As pedrinhas encontradas no peitoril da janela estabeleceram, naturalmente, o ponto de partida de minhas pesquisas. Eram em tudo diferentes das do jardim do vigário. Somente quando volvi a atenção para o


dr. Sterndale e para sua residência é que vi de onde provinham. O lampião aceso em pleno dia e os resíduos do pó na manga do lampião formaram um encadeamento fácil de seguir. E agora, meu caro, creio que podemos varrer da mente esse desagradável assunto, e regressar de consciência leve ao estudo daquelas raízes caldaicas, cujos vestígios devem ser encontrados com certeza no ramo da grande língua céltica que se fala na Cornualha.

Ilustrações: Gilbert Halliday, cortesia The Camden House Voltar


Arthur Conan Doyle

Seu Último Adeus Título original: His Last Bow

Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1917.

Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de His Last Bow publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VI, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Lígia Junqueiro.

Eram nove horas da noite de 2 de agosto — o mais terrível agosto da história do mundo. Já se podia imaginar que a maldição divina caia ameaçadora sobre a humanidade degenerada, pois na atmosfera parada e sufocante pairava um soturno silêncio e uma vaga sensação de inquieta expectativa. O sol já se pusera há muito, e, não obstante, uma faixa sangüínea, semelhante a uma ferida aberta, estendia-se ainda no horizonte distante. No alto, as estrelas brilhavam, e, embaixo, cintilavam na baía as luzes das embarcações. Os dois famosos alemães encontravam-se junto do parapeito de pedra da alameda do jardim, de costas para a extensa casa baixa, ornada de pesados frontões, olhando para a ampla curva da praia que se desenrolava aos pés da enorme rocha calcária, sobre a qual Von Bork, como águia errante, há quatro anos tomara o seu pouso. Estavam de pé, com as cabeças quase unidas, e conversavam em tom baixo e confidencial. Vistas de baixo, as pontas acesas dos seus charutos pareciam os olhos flamejantes de algum espírito maligno a perscrutar as trevas. Homem extraordinário, esse Von Bork — criatura que dificilmente encontraria paralelo entre todos os fiéis agentes do cáiser. Foram os seus dotes particulares que desde, logo o indicaram para a missão inglesa, a mais importante de todas, e, desde o momento em que a empreendera, esses dotes haviam-se tornado cada vez mais patentes à meia dúzia de pessoas que, no mundo inteiro, se achavam em contato direto com a verdade. Uma dessas era o seu atual companheiro, o barão Von Herling, primeiro-secretário da legação, cujo possante Benz, de 100 hp, atravancara a estrada, enquanto esperava o seu proprietário, a fim de levá-lo a Londres. — A julgar pelo rumo que tomam os acontecimentos, você provavelmente estará de regresso a Berlim dentro de uma semana — dizia o secretário. — Quando lá chegar, meu caro Von Bork, creio que ficará surpreso com a acolhida que lhe está sendo preparada. Estou a par de tudo o que se pensa nas mais altas esferas a respeito da atividade desenvolvida por você neste país. O secretário era um homem gigantesco, alto e de compleição robusta, dotado de um modo de falar pausado e persuasivo, que constituía o principal segredo de seu êxito na carreira política. Von Bork riu. — Essa gente não é muito difícil de lograr — observou. — Não se pode imaginar povo mais dócil e simplório. — Não diria isso — respondeu o outro, pensativo. — Eles possuem curiosas limitações, que é necessário aprender a observar. É essa simplicidade superficial que induz em erro o estrangeiro. A primeira impressão que se tem deles é de que são inteiramente maleáveis. Depois, subitamente, surge-nos pela frente algo de muito sólido, e verificamos que atingimos o limite e precisamos nos adaptar à realidade. Têm, por exemplo, as suas


convenções insulares, as quais, por si sós, devem ser olhadas com atenção. — Refere-se às regras de bom tom e a todo o resto? — suspirou Von Bork, como alguém que sofrera muito. — Refiro-me aos preconceitos britânicos com todas as suas ridículas manifestações. A título de ilustração, posso lhe citar um dos meus piores descuidos... permito-me falar-lhe dos meus descuidos, pois você conhece bem a minha obra para saber dos meus êxitos. O fato ocorreu na minha primeira chegada aqui. Eu tinha sido convidado para uma reunião de fim de semana na casa de campo de um membro do gabinete. A conversa era extraordinariamente indiscreta. Von Bork concordou com um movimento de cabeça. — Eu também estava lá — observou secamente. — Exato. Pois bem; como era natural, enviei a Berlim um resumo do que ouvira. Por infelicidade, nosso bom chanceler tem a mão algo pesada nesses assuntos e transmitiu uma nota em que mostrava estar ciente de tudo quanto fora dito. Isso, como é natural, fez com que eu fosse apontado como a fonte das informações. Não pode imaginar o dano que esse fato me causou. Posso lhe garantir que não houve nada de delicado na atitude dos nossos amigos ingleses naquela ocasião. Suportei dois anos esse estado de coisas. Agora, você, com essa sua pose esportiva... — Não, não; não a chame de pose, que é coisa artificial; isto é espontâneo. Sou um esportista nato. O esporte me agrada muito. — Justamente; ainda produz melhor resultado. Você compete com eles em corridas de iate, acompanha-os na caça, joga pólo, rivaliza com eles em qualquer competição, sua quadriga alcança o primeiro prêmio no Olympia. Ouvi mesmo dizer que chega ao ponto de praticar pugilismo com os jovens oficiais. E qual é a conseqüência? Ninguém o leva a sério. Você é considerado "um camaradão", "um tipo demasiado bom para ser alemão", um bebedor resistente, um freqüentador de clubes noturnos, um boêmio, enfim. E, no entanto, esta sua tranqüila casa de campo é o centro de metade das embrulhadas que ocorrem na Inglaterra. Quanto ao elegante esportista, é o mais astuto agente de espionagem da Europa. Isso se chama gênio, meu caro Von Bork...gênio! — Você me desvanece, barão! Entretanto, posso lhe garantir que os meus quatro anos neste país não foram improdutivos. Mas ainda não lhe mostrei o meu pequeno depósito. Quer entrar um instante? A porta do escritório dava para o terraço. Von Bork empurrou-a e, tomando a dianteira, apertou o botão da luz elétrica. Tornou a fechar a porta atrás do seu corpulento companheiro e baixou cautelosamente a cortina sobre a janela provida de grades. Só depois de ter tomado todas essas precauções é que volveu o rosto aquilino e queimado do sol para a sua visita. — Alguns dos meus documentos já seguiram — explicou. — Quando minha mulher e os criados partiram ontem para Flushing, levaram os menos importantes. Naturalmente, preciso pedir a proteção da embaixada para os outros. — O seu nome já foi incluído na comitiva. Não surgirão dificuldades para você ou para a sua bagagem. Afinal, pode ser que nem precisemos partir. Talvez a Inglaterra abandone a França ao seu destino. Sabemos que entre elas não existe nenhum tratado de aliança. — E a Bélgica? — Com a Bélgica sucede a mesma coisa. Von Bork meneou a cabeça. — Não creio. Existe um acordo determinado. A Inglaterra jamais suportaria tal humilhação.


— Pelo menos por enquanto, ela se manterá neutra. — Mas, e a sua honra? — Ora, meu amigo, vivemos numa época pragmática. A honra é um conceito medieval. Além disso, a Inglaterra não está preparada. Parece inconcebível; no entanto, nem o nosso tributo especial de guerra, de cinqüenta milhões, que, julgo, tornou nosso propósito tão evidente como se o tivéssemos anunciado na primeira página do Times, conseguiu despertar este povo da sua modorra. De quando em quando, surge uma interrogação. É meu dever procurar responder-lhe. De vez em vez, alguém se irrita; cabe-me acalmá-lo. Não obstante, posso afirmar-lhe que, quanto ao essencial, isto é, reserva de munições, preparativos contra eventuais ataques de submarinos, providências para a fabricação de explosivos de alta potência, nada disso está pronto. Como se pode, então, pensar numa intervenção da Inglaterra, mormente agora que instigamos essa sarabanda infernal da guerra civil irlandesa e Deus sabe lá que mais para manter-lhe os pensamentos voltados para si mesma? — Ela precisa pensar no futuro. — Ah! Isso é outro assunto. Suponho que, quanto ao futuro, já temos, em relação à Inglaterra, planos bem definidos e que as informações proporcionadas por você serão de interesse vital para nós. Com John Bull, se não for hoje, será amanhã, e, se preferir hoje, estaremos perfeitamente preparados. Se julgar melhor amanhã, vai nos encontrar ainda mais prontos. Acho que seria mais prudente ele combater junto de aliados; isso, porém, é lá com ele. Esta semana decide-se o seu destino. Mas você falava dos seus documentos... A luz brilhava em sua vasta calva, e ele sentou-se na poltrona, fumando tranqüilamente o charuto. Num canto da outra extremidade da enorme sala, forrada de carvalho e recoberta de livros, havia uma cortina. Von Bork afastou-a, deixando à vista um grande cofre com ornatos de bronze. Em seguida, destacou da corrente do relógio uma pequena chave e, após algumas manobras na fechadura, abriu a pesada porta. — Olhe! — disse, afastando-se para um lado e fazendo um amplo aceno com a mão. A luz batia em cheio sobre o cofre aberto, e o secretário da embaixada olhou com grande interesse as fileiras de compartimentos abarrotados de papéis, que o enchiam inteiramente. Cada um desses compartimentos tinha uma etiqueta, e seus olhos percorreram uma longa série de títulos, tais como: "Baixios", "Defesas portuárias", "Aviões", "Irlanda", "Egito", "Fortificações de Portsmouth", "Canal da Mancha", "Rosyth" e muitos outros. Todas aquelas divisões regurgitavam de documentos e planos. — Formidável! — exclamou o secretário, pondo de lado o charuto e batendo palmas com as mãos gordas. — E tudo isto em quatro anos, barão. Não me parece pouca coisa para um bebedor inveterado, que passa a vida em competições hípicas! Contudo, a jóia mais preciosa da minha coleção ainda está para chegar. Já tem o espaço reservado — observou, apontando para um compartimento vazio, onde se lia: "Sinalizações navais". — Mas você já tem uma notável coleção de documentos . — Papelada velha e inútil. O Almirantado pressentiu qualquer coisa e mudou todos os códigos. Foi um golpe terrível, barão... grave retrocesso em toda a minha campanha. Graças, porém, ao meu talão de cheques e ao prestimoso Altamont, tudo estará em ordem esta noite. O barão consultou o relógio e soltou uma exclamação gutural. — Infelizmente, não posso me demorar mais. Como deve imaginar, os acontecimentos estão se precipitando em Cariton Terrace, e todos nós devemos estar a postos. Esperava poder levar a notícia do seu grandioso lance, mas vejo que não me é possível. Altamont


não marcou hora para vir? Von Bork estendeu-lhe um telegrama: "Irei esta noite sem falta e levarei novas velas. Altamont". — Velas, hein? — Como vê, ele se finge de mecânico, e eu possuo muitos automóveis. No nosso código, tudo quanto possa ter importância é indicado sob o nome de peças de motor. Quando fala de "radiador", quer dizer "vaso de guerra"; uma "bomba de óleo" é um "cruzador", e assim por diante. "Velas" quer dizer "sinalizações navais". — Foi expedido de Portsmouth, ao meio-dia — observou o secretário, examinando a mensagem telegráfica. — A propósito, quanto lhe paga? — Por este trabalho especial, quinhentas libras; mas, como é natural, pago-lhe também um ordenado. — Que miserável! Não há dúvida de que estes traidores são úteis, mas lamento o dinheiro maldito com que os pagamos. — Com relação a Altamont, não lamento nada. Seu trabalho é admirável. Se lhe pago bem, pelo menos me entrega a mercadoria, conforme a sua frase pitoresca. Além disso, não é um traidor. Garanto-lhe que o nosso Junker, dotado do mais profundo pangermanismo, é uma pomba inocente nos seus sentimentos contra a Inglaterra, comparado a esse fanático irlandês-americano. — Oh! É irlandês da América? — Se você o ouvisse falar, não teria a menor dúvida. Algumas vezes custa-me entendê-lo. Parece ter declarado guerra tanto ao rei inglês como ao inglês do rei... Mas precisa mesmo ir? Ele deve chegar a qualquer momento. — Sinto muito, mas já é tarde. Nós o esperaremos amanhã de manhã, e, quando tiver feito passar esse livro de sinais através da portinhola, pelas escadas do Duke of York, poderá pôr um "Finis" triunfal à sua missão na Inglaterra. Que é isso? Um tocai? — exclamou repentinamente, apontando para uma garrafa coberta de poeira e fortemente arrolhada, que se encontrava numa bandeja entre dois copos. — Aceita um copo antes de partir? — Não, obrigado. Mas tenho a impressão de que vai haver um festim. — Altamont tem bom paladar em questão de vinhos e apaixonou-se pelo meu tocai. É um tipo muito sensível, e preciso enchê-lo de pequenas atenções. Tive necessidade de estudar bem o gênio dele. Eles tinham saído para o terraço e atravessaram-no até o outro extremo, onde, a um toque do motorista do barão, o motor do enorme carro pôs-se a funcionar. — Aquela deve ser a iluminação de Harwich, suponho eu — observou o secretário, vestindo o casaco. — Como tudo parece calmo e imóvel! Talvez haja outras luzes no decurso da semana, e as costas da Inglaterra se tornem menos tranqüilas! É possível que os céus também não permaneçam tão pacíficos se tudo o que nos promete o nosso bom Zeppelin se tornar realidade. Mas, quem é aquela mulher? Através da única janela iluminada, via-se um lampião, e, sentada a uma mesa, junto a ele, estava uma simpática velhota rubicunda, com uma touca na cabeça. Curvada sobre um bordado, absorta no seu trabalho, interrompia-o de quando em quando para acariciar um enorme gato preto que dormitava numa banqueta ao lado. — É Martha, a única criada que ficou comigo.


O secretário riu. — Quase poderia personificar a Britânia — comentou —, com aquele ar inteiramente absorto e seu aspecto geral de sonolência. Bem, até a vista, Von Bork! Com um último aceno de despedida, pulou para o automóvel, e dali a instantes os dois feixes de luz dos faróis irrompiam através da escuridão. O secretário recostara-se no macio encosto da luxuosa limusine, e a sua mente estava de tal modo absorvida pela ideia da iminente tragédia européia que nem percebeu que, quando o seu carro atingiu a entrada da cidade, por pouco não abalroou um minúsculo Ford que seguia em direção oposta. Assim que as luzes do automóvel se dissiparam ao longe, Von Bork pôs-se lentamente a caminho de seu escritório. De passagem, observou que a velha governanta apagara o lampião e se recolhera. O silêncio e as trevas em que se achava mergulhado o vasto edifício constituíam para ele inusitada experiência, pois a sua família era grande e a criadagem, numerosa. Sentia, porém, profundo alívio ao pensar que todos se encontravam a salvo e que, com exceção da velha criada, a casa inteira estava à sua disposição. Tinha ainda muita coisa para pôr em ordem no escritório, e meteu mãos à obra até o seu rosto vivo e atraente se tornar rubro com o calor das chamas dos documentos que ia queimando. Pegando uma maleta de couro, que se achava ao lado da mesa, começou a depositar nela, com todo o cuidado e método, o precioso conteúdo do cofre. Entretanto, mal principiara este trabalho, seus ouvidos aguçados perceberam o ruído distante de um automóvel. Soltou, no mesmo instante, uma exclamação de júbilo, fechou a maleta, trancou o cofre e precipitou-se para o terraço. Chegou exatamente a tempo de ver os faróis de um pequeno carro apagarem-se diante do portão. Um passageiro saltou dele e dirigiu-se a passos apressados em sua direção, enquanto o motorista, homem idoso, de compleição robusta e bigodes grisalhos, se acomodava melhor no assento, como quem se resigna a longa espera. — Então? — perguntou ansiosamente Von Bork, correndo ao encontro do visitante. Como resposta, o homem agitou acima da cabeça, num gesto de triunfo, um pequeno embrulho de papel pardo. — Pode felicitar-me hoje, meu caro. Aqui está finalmente o tão desejado toucinho. — As sinalizações? — Como lhe disse no telegrama. Aqui estão todas: sinais semafóricos, códigos de lâmpadas, Marconi... as cópias, bem entendido, não os originais. Isso seria demasiado perigoso. A coisa, porém, é perfeita, pode estar certo — acrescentou, dando com rude familiaridade uma palmada nas costas do alemão, que se contraiu com um movimento instintivo de repulsa. — Entre — disse. — Estou sozinho em casa. Estava apenas à sua espera. Naturalmente, uma cópia é preferível ao original. Se dessem pela falta dele, alterariam tudo. Tem certeza de que a reprodução é exata? O irlandês-americano entrara no escritório e atirara-se numa poltrona, estendendo as intermináveis pernas. Era um homem alto e magro, dos seus sessenta anos, de fisionomia aguda e queixo ornado com uma barbicha de bode que o fazia assemelhar-se vagamente a uma caricatura do Tio Sam. De um canto da boca pendia-lhe um charuto meio fumado, meio mastigado. Assim que se sentou, riscou um fósforo para acendê-lo de novo. — Preparando-se para partir? — indagou, olhando em redor. — Eh! amigo — acrescentou, enquanto o seu olhar pousava no cofre, cuja cortina tinha sido afastada —, não me diga que guarda os seus documentos naquilo! — Por que não? — Que diabo! Num lugar tão exposto como esse? E, depois, o senhor é um espião! Ora, qualquer ladrão americano seria capaz de arrombá-lo com um abridor de latas. Se eu


soubesse que qualquer das minhas cartas iria parar numa coisa assim, jamais as escreveria. — O mais hábil arrombador não seria capaz de forçar este cofre — retorquiu Von Bork. — Não há instrumento que consiga cortar-lhe o metal. — Mas, e a fechadura? — Também não. Possui um segredo duplo. Sabe o que significa isso? — Macacos me mordam! — redargüiu o americano. — Não é suficiente formar apenas uma palavra, mas também uma série de algarismos, para que ela funcione — disse, levantando-se e mostrando ao redor do orifício da fechadura um disco de dupla radiação. — Este de fora é para as letras e o de dentro, para os algarismos. — Bem imaginado, não há dúvida. — Não é, portanto, tão simples como você pensava. Mandei fazê-lo há quatro anos. É capaz de adivinhar a palavra e o número que escolhi? — Não. — Agosto e 1914, aí está. A fisionomia do americano exprimiu surpresa e admiração. — Com os diabos! Foi bem pensado! — Sim; na ocasião, poucos de nós poderíamos adivinhar a data. Mas aí está ela, e amanhã de manhã encerro as minhas atividades. — Bem, acho que vai precisar dar um jeito na minha vida. Não pretendo ficar sozinho neste miserável país. Pelo que vejo, dentro de uma semana ou menos, John Bull vai se colocar nas patas traseiras e começar o ataque. Prefiro observá-lo do outro lado do canal. — Mas você não é cidadão americano? — Ora, Jack James também era, e no entanto o meteram na cadeia em Portland. Não adianta a gente dizer aos guardas ingleses que é cidadão americano. "Aqui imperam a lei e a ordem britânicas", afirmam eles. E por falar em Jack James, meu caro, parece que você não se preocupa muito em proteger os seus auxiliares. — Que quer insinuar? — perguntou Von Bork em tom incisivo. — Bem, é o chefe, não é? Cabe-lhe providenciar que não caiam em desgraça. Entretanto, eles caem, e quando é que você se dá ao trabalho de socorrê-los? James, por exemplo... — Esse era louco. — Bem, realmente, no fim ele ficou meio maluco. Também não era para menos, tendo de trabalhar dia e noite com uma centena de agentes nos calcanhares, prontos para algemá-lo. E agora chegou a vez de Steiner... Von Bork estremeceu violentamente, e seu rosto bronzeado tornou-se pálido. — Que aconteceu a Steiner? — Aconteceu que foi apanhado, eis tudo. Invadiram sua loja ontem à noite, e ele, com todos os seus documentos, foi parar na prisão de Portsmouth. Você vai embora e ele, pobre-diabo, terá que aguentar o repuxo e ainda se dar por satisfeito se conseguir salvar a pele. Eis por que tenciono atravessar o canal tão depressa como você.


Von Bork era forte e dominava-se perfeitamente; contudo, era fácil perceber que a notícia o abalara. — Como teriam eles apanhado Steiner? — murmurou. — É o fato mais lamentável sucedido até agora. — Ora, por pouco não aconteceu coisa pior, pois tenho a impressão de que já andam na minha pista. — Não é possível! — Afirmo-lhe que é. A dona da pensão em que moro, no caminho de Fratton, já foi interrogada, e, quando eu soube disso, achei que tinha chegado o momento de me pôr a salvo. Mas o que não posso compreender é como a polícia consegue saber dessas coisas. Steiner é o quinto homem que você perde desde que estou a seu serviço, e, se eu não escapar a tempo, saberei muito bem quem será o sexto. Como explica isso? Não se envergonha de ver seus homens desaparecerem deste modo? Von Bork tornou-se rubro de cólera. — Como ousa falar dessa maneira? — Se não ousasse, meu caro, não estaria a seu serviço. Mas vou lhe dizer sem rodeios aquilo que penso. Ouvi dizer que vocês, alemães, quando um agente já cumpriu sua missão, não se importam com o fato de ele ser posto de molho. Von Bork pôs-se de pé num salto. — Você se atreve a insinuar que traí meus próprios agentes? — Não chego a tanto, meu amigo, mas há algo em tudo isto, e cabe a você desvendá-lo. Seja como for, não quero correr mais riscos. Vou para a pequenina Holanda, e quanto mais depressa melhor. Von Bork tinha dominado a sua cólera. — Temos sido amigos há muito tempo para discutir agora, no momento exato da vitória — disse. — Você realizou um trabalho esplêndido e correu perigos dos quais não posso me esquecer. Vá, pois, sem demora, para a Holanda, e em Rotterdam poderá tomar um vapor para Nova York. Daqui a uma semana, nenhuma outra linha de navegação oferecerá segurança. Levarei esse livro com o resto dos documentos. O americano conservava o pacote na mão, mas não fazia a menor menção de entregá-lo. — E a coisa? — perguntou. — O quê? — O cobre? O pagamento? As quinhentas libras? O artilheiro tornou-se exigente à última hora, e, se eu não lhe tivesse passado mais cem dólares, nada teria conseguido. "Nada feito!", respondia-me ele, e o fazia com convicção, mas os últimos cem o amoleceram. A brincadeira me custou ao todo duzentas libras, e por isso é lógico que eu não queira me desfazer da mercadoria sem receber a minha parte. Von Bork esboçou um sorriso amargo. — Você não parece ter em grande conceito a minha honra — observou. — Exige o dinheiro antes de me entregar o livro. — Negócios são negócios, meu caro.


— Muito bem; como quiser. Sentou-se à mesa e preencheu rapidamente um cheque, mas, antes de entregá-lo ao americano, estacou. — No fim de contas, se são essas as condições, Altamont, não vejo por que deva confiar mais em você do que você em mim. Percebe? — acrescentou, olhando por cima do ombro para o companheiro. — Aqui está o cheque, em cima da mesa. Reclamo o direito de examinar esse pacote antes de lhe entregar o cheque. O americano estendeu-lhe o volume. Von Bork desfez o nó do barbante que o amarrava e desembrulhou os dois papéis do invólucro. Perplexo, contemplou, em silêncio, o livrinho azul que jazia à sua frente, em cuja capa se lia em letras douradas: "Manual prático de apicultura". Pouco tempo, porém, sobrou ao célebre espião para contemplar esse título estranhamente comum. Um instante depois, sentiu-se agarrado pelo pescoço por mão de ferro, enquanto uma esponja embebida em clorofórmio era mantida diante de seu rosto convulso. — Outro copo, Watson? — perguntou Sherlock Holmes, estendendo a mão para a garrafa de tocai... O alentado motorista, que tinha se sentado à mesa, estendeu prontamente o seu copo. — Bom vinho, Holmes. — Verdadeiramente notável, Watson. O nosso amigo, ali deitado no sofá, garantiu-me que provém da adega particular de Francisco José, do Palácio Schönbrunn. Faça o favor de abrir a janela, pois o cheiro de clorofórmio não é agra dável ao paladar. O cofre estava entreaberto, e Holmes, em pé à sua frente, retirava documento por documento, os quais, após rápido exame, colocava com cuidado na maleta de Von Bork. O alemão roncava estentoreamente sobre o sofá, de pés e braços amarrados. — Não precisamos ter pressa, Watson. Ninguém nos interromperá. Quer tocar a campainha? Não há mais ninguém na casa, além da velha Martha, que representou de forma admirável o seu papel. Arranjei-lhe emprego aqui, logo que comecei a tratar deste caso. Ah! Martha, pode estar sossegada; tudo correu às mil maravilhas. A simpática velhota surgira no umbral da porta. Inclinou-se com um sorriso para. Holmes, mas volveu um olhar algo apreensivo para a figura estirada no sofá. — Não há perigo, Martha. Ele não sofreu absolutamente nada. — Alegro-me com isso, sr. Holmes. Apesar de tudo, era um bom patrão. Queria que eu partisse ontem com a mulher dele para a Alemanha; isso, porém, não conviria aos seus planos, não é verdade, sr. Holmes? — Por certo que não. Enquanto você estivesse aqui eu estaria tranqüilo. Todavia, esta noite tivemos que esperar algum tempo pelo seu sinal. — Foi por causa do secretário, sr. Holmes. — Já sei. O automóvel dele cruzou com o nosso. — Pensei que nunca mais fosse embora. E eu sabia que não estava nos seus planos


encontrá-lo aqui. — Claro que não. Bem, isso nos acarretou uma espera de cerca de meia hora até vermos apagar-se a luz, o que nos indicava que o campo estava livre. Procure-me amanhã em Londres, no Hotel Claridge, Martha. — Muito bem, sr. Holmes. — Espero que esteja pronta para partir. — Sim, senhor. Hoje ele expediu sete cartas, e eu, como de costume, copiei os endereços. — Ótimo, Martha; vou examiná-los amanha. Boa noite. Estes papéis — prosseguiu, enquanto a velha se retirava — não são de grande importância, pois, como é natural, todas as informações neles contidas já foram enviadas há muito ao governo alemão. Trata-se dos originais, que não era possível alguém fazer sair impunemente do país. — Então, são inúteis. — Não ousaria afirmar isso, Watson. Servirão, pelo menos, para demonstrar à nossa gente o que é conhecido e o que não o é. Muitos destes documentos foram obtidos por meu intermédio, e não preciso acrescentar que são totalmente falsos. Sentir-me-ia satisfeito, no declínio da minha existência, se visse um cruzador alemão sulcar as águas do Solent baseado nos planos das minas submarinas que forneci. Interrompeu o trabalho e segurou o velho amigo pêlos ombros. — Ainda não tive tempo de observá-lo à luz, Watson. Como os anos o têm tratado? Você parece o mesmo rapaz alegre de sempre. — Sinto-me vinte anos mais novo. Poucas vezes experimentei maior felicidade do que quando recebi o seu telegrama, no qual me pedia que fosse de automóvel encontrá-lo em Harwich. Mas você, Holmes... mudou muito pouco... a não ser por essa horrenda barbicha. — São os sacrifícios que a gente é obrigado a fazer pela pátria — explicou, alisando o apêndice piloso. — Amanhã, isto não passará de uma desagradável recordação. Com o cabelo cortado e outras pequenas modificações superficiais, reaparecerei sem dúvida no Claridge tal como era antes de me meter a macaquear o americano... perdão, Watson; receio, porém, que minha fonte de puro britânico esteja definitivamente poluída... depois desta empreitada americana. — Mas você tinha se aposentado, Holmes. Soubemos que vivia como um eremita entre as suas abelhas e os seus livros, numa pequena fazenda de South Downs. — Exatamente, Watson. E eis o fruto dos meus ócios, magnum opus dos meus últimos anos! Retirou o volume da mesa e leu em voz alta o título por extenso: — "Manual prático de apicultura, com algumas notas sobre a segregação da rainha". Escrevi-o sozinho. Contemple o resultado de noites de reflexão e dias laboriosos, em que estudei o trabalho dos pequenos enxames como o fazia antigamente com o mundo do crime de Londres. — Mas como recomeçou a trabalhar? — Ah! É o que muitas vezes tenho perguntado a mim mesmo. Se fosse apenas o ministro do Exterior, eu teria resistido. No entanto, quando o primeiro-ministro em pessoa se dignou visitar a minha humilde morada!... O fato, Watson, é que esse cavalheiro aí no sofá era demasiado astuto para a nossa gente. Pertencia a uma classe à parte. As coisas iam de mal a pior, e ninguém conseguia compreender a razão. Agentes eram alvo de suspeitas ou chegavam a ser apanhados; contudo, havia provas de uma força centralsecreta e poderosa. Tornava-se absolutamente necessário desmascará-la. Recebi urgentes e pertinazes solicitações para que me ocupasse do assunto. Esta aventura custou-me dois anos, mas foi desprovida de interesse. Quando lhe disser que iniciei a minha peregrinação


em Chicago, que ingressei numa sociedade secreta irlandesa em Buffalo, que dei sério trabalho à polícia de Skibbereen, conseguindo assim, mais tarde, chamar sobre a minha pessoa a atenção de um subordinado de Von Bork, que me recomendou a ele como homem promissor, você perceberá a complexidade do caso. Desde então fui honrado com a confiança do célebre espião, o que não impediu o malogro da maioria dos seus planos e a prisão de cinco dos seus melhores agentes. Eu os tinha debaixo dos olhos e apanhei-os no momento oportuno... Ora, ora, meu caro, espero que já esteja melhor! Esta última observação era dirigida ao próprio Von Bork, que, após muito resfolegar e piscar os olhos, ficara silencioso, ouvindo a explicação de Holmes. Diante dela, irrompeu numa torrente furiosa de invectivas germânicas, com o rosto transtornado pela cólera. Holmes prosseguiu no seu rápido exame dos documentos, enquanto o prisioneiro rugia e praguejava. — Apesar de pouco melodioso, o alemão é a mais expressiva de todas as línguas — observou quando Von Bork se interrompeu, dominado pelo cansaço. — Caramba! — acrescentou, fitando com mais atenção o canto de um traçado, antes de repô-lo no cofre. — Isto servirá para meter outro pássaro na gaiola. Não imaginava que o tesoureiro do Ministério da Guerra fosse tão velhaco, embora o tivesse há muito debaixo de olho. Caro Von Bork, o senhor irá responder por muitos crimes. O prisioneiro endireitara-se com certa dificuldade sobre o sofá e fitava o seu captor num misto de estupor e ódio. — Ainda ajustarei contas com você, Altamont — disse ele com vagarosa deliberação; — mesmo que leve a vida inteira, haveremos de ajustar contas. — Sempre a mesma velha cantiga — comentou Holmes. — Quantas vezes já a ouvi em épocas passadas... Era o estribilho favorito do saudoso professor Moriarty. Dizem que o coronel Sebastian Moran também o aprendera. E, não obstante, aqui estou eu, vivo, criando abelhas em South Downs. — Maldito, duas vezes traidor! — vociferou o alemão, retesando os músculos num supremo esforço e encarando o adversário com furor homicida. — Não, não sou assim tão ruim — disse Holmes, sorrindo. — Como certamente o demonstra a minha maneira de falar, o sr. Altamont, de Chicago, não tinha existência real. Servi-me dele e liquidei-o. — Quem é você, então? — Para falar com franqueza, não importa muito quem eu seja, mas, desde que isso parece interessá-lo, sr. Von Bork, posso afirmar-lhe que esta não é a primeira vez que entro em contato com membros da sua família. Trabalhei muitas vezes na Alemanha em tempos idos, e talvez o meu nome não lhe seja desconhecido. — Gostaria de saber — disse o prussiano em voz ríspida. — Fui eu quem provocou a separação entre Irene Adler e o finado rei da Boêmia, quando seu primo Heinrich era o encarregado dos negócios imperiais na Inglaterra. Fui eu ainda quem evitou o assassinato, por parte do niilista Klopman, do conde Von und Zu Grafenstein, irmão mais velho de sua mãe. Fui eu também... Von Bork esbugalhou os olhos, estupefato.


— Existe apenas um homem — gritou. — Exatamente — confirmou Holmes. Von Bork soltou um gemido e afundou-se no sofá. — E quase todas as minhas informações foram obtidas por seu intermédio — exclamou. — Que valor podem ter elas? Que fiz eu? Estou completamente arruinado. — São, sem dúvida, um tanto inexatas — replicou Holmes. — Necessitam de certas verificações, e não lhe sobrará tempo para fazê-las. Seu almirante talvez ache o calibre dos novos canhões muito maior do que ele imagina, e os cruzadores um pouco mais velozes. Von Bork fez um gesto desesperado. — Há também um grande número de pormenores que, com toda a certeza, virão à luz no devido tempo. Todavia, você é dotado de uma qualidade raríssima num alemão, Von Bork. Possui espírito esportivo e não me guardará rancor quando compreender que, tendo conseguido iludir tantos outros, acabou sendo iludido por mim. Afinal, você agiu com as melhores intenções pelo bem do seu país, e eu fiz outro tanto pelo meu. Que pode haver de mais natural? Além disso — acrescentou com certa doçura, pousando a mão no ombro do adversário subjugado —, é melhor assim do que cair diante de qualquer inimigo mais ignóbil. Os documentos já estão prontos, Watson. Se quiser me ajudar a levar o prisioneiro, creio que poderemos partir para Londres imediatamente. Não foi fácil retirar Von Bork, que era homem forte e destemido. Finalmente, agarrando-o pêlos braços, nós dois conseguimos arrastá-lo aos poucos pelo passeio do jardim, que ele percorrera com tão orgulhosa segurança quando, algumas horas antes, recebera as congratulações do famoso diplomata. Após um esforço final, foi alojado, sempre de pés e mãos amarrados, no banco traseiro do pequeno automóvel. — Temo que não se sinta tão cômodo quanto as circunstâncias o permitam — disse Holmes, depois de tudo arranjado. — Permite-me que acenda um charuto e o ponha entre os seus lábios? Toda a cortesia, porém, não produziu efeito naquele alemão encolerizado. — Deve lembrar-se, sr. Sherlock Holmes — observou —, que, se o seu governo o apoia neste procedimento, isso será considerado um ato de guerra. — E que dizer do seu governo e de tudo quanto aqui se encontra? — retrucou Holmes, batendo com a mão na maleta. — Não se esqueça de que é um simples indivíduo e não possui nenhuma ordem de prisão contra mim. Seu modo de agir é ilegal e ultrajante. — Perfeitamente. — Está raptando um súdito alemão. — E roubando os seus documentos particulares.


— Ainda bem que reconhece a sua situação, bem como a do seu cúmplice. Se eu gritasse por socorro ao atravessarmos a aldeia... — Meu caro senhor, se cometesse uma tolice desse género, iria provavelmente aumentar o número bastante reduzido das denominações das nossas hospedarias do interior, dando a algumas delas o título de "O Boche Amordaçado" ou coisa parecida. O inglês é paciente por natureza; contudo, no momento atual, seu ânimo se encontra algo exaltado, e seria prudente não excitá-lo em demasia. Não, sr. Von Bork, é melhor que nos acompanhe com calma até a Scotland Yard, de onde poderá mandar chamar seu amigo, o barão Von Herling, a fim de ver se ele ainda quer lhe dar o lugar que lhe tinha reservado na comitiva da embaixada. Quanto a você, Watson, ouvi dizer que vai entrar de serviço, e por isso creio que Londres não está fora do seu caminho. Fiquemos um pouco aqui neste terraço, pois talvez seja esta a nossa última oportunidade de conversar com tranqüilidade. Durante alguns minutos, ambos nos entretivemos em íntimo colóquio, recordando mais uma vez os dias passados, enquanto seu prisioneiro se debatia em vão para se livrar das cordas que o prendiam. Ao voltarmos para o automóvel, Holmes apontou para o mar iluminado pela lua e abanou a cabeça, pensativo. — Está se aproximando um vendaval do leste, Watson. — Não creio, Holmes. Faz muito calor. — Meu velho Watson! Você é o único ponto imutável numa era de transformação. De qualquer maneira, levanta-se um vendaval no leste, vendaval como nunca soprou sobre a Inglaterra. Será gélido e pungente, e muitos de nós poderemos perecer sob a sua rajada. Não obstante, é enviado por Deus, e, quando tiver passado, erguer-se-á à luz do sol uma pátria mais pura, melhor e mais forte. Ponha o carro em movimento, Watson, pois já devíamos estar a caminho. Tenho um cheque de quinhentas libras que preciso receber já, porque a pessoa que o passou é bem capaz de sustar seu pagamento, se puder.

Ilustrações: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House Voltar


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