LiteraRua Olhares periféricos, vozes dos porões, marginais, irreverentes, marditos, infames, malditos. Inclassificáveis. Poesia das ruas. Arte política, coletiva. Malandragens discursivas? Pode um subalterno falar? Aprender a escutar é preciso? Este livreto é uma provocação. Convite a múltiplas miradas: pinturas, poesias, m´úsicas e contos de redes político-culturais autônomas, ou melhor, inomináveis. Sem projetos estéticos ou políticos unificados. Passadofuturopresente. Assistêmicas. Anárquicas. Um embalo à autopoiesis. Espie. Espreite. Copie. Ecoe. Invente.
Marginália II (Letra: Torquato Neto / Música: Gilberto Gil) Eu, brasileiro, confesso Minha culpa, meu pecado Meu sonho desesperado Meu bem guardado segredo Minha aflição Eu, brasileiro, confesso Minha culpa, meu degredo Pão seco de cada dia Tropical melancolia Negra solidão Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Aqui, o Terceiro Mundo Pede a bênção e vai dormir Entre cascatas, palmeiras Araçás e bananeiras Ao canto da juriti Aqui, meu pânico e glória Aqui, meu laço e cadeia Conheço bem minha história Começa na lua cheia E termina antes do fim Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Minha terra tem palmeiras Onde sopra o vento forte Da fome, do medo e muito Principalmente da morte Olelê, lalá A bomba explode lá fora E agora, o que vou temer? Oh, yes, nós temos banana Até pra dar e vender Olelê, lalá Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo
What the Water Gave Me, Frida Kahlo (1938)
Les amants - RenĂŠ Magritte, 1928
Man Ray- Le Baiser 1935
ARNALDO BATISTA – NAVEGAR DE NOVO Everybody's going to notice Todo mundo vai notar Que o futuro está em nossas mãos Está muito claro Que eu estou do seu lado Já faz muito, muito tempo agora Que a humanidade chora De vontade de sair Está muito claro Que está muito caro O modelo do meu carro Que eu comprei só a seis meses E que já está fora de moda E que está muito dura a vida Nesta cidade de S. Paulo Com meu bem fui ao cinema Não me deixes tão sozinho Por que não se instalam núcleos Habitacionais menores Pra haver maior descentralização Para existir o verde Pra haver espaço Por que não ter confiança Num Brasil que ainda é criança E que um dia, eu espero, Ainda vai se abrir Conquistar o espaço Navigaire de novo Descobrir as novas terras que existem por aí I'm sure of that Acima da velocidade da luz Pois não existem tais barreiras Já que a luz é relativa também
Andy Warhol. Before and After. 1961
BAUDELAIRE – O ALBATROZ Às vezes, por prazer, os homens da equipagem Pegam um albatroz, imensa ave dos mares, Que acompanha, indolente parceiro de viagem, O navio a singrar por glaucos patamares. Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés, O monarca do azul, canhestro e envergonhado, Deixa pender, qual par de remos junto aos pés, As asas em que fulge um branco imaculado. Antes tão belo, como é feio na desgraça Esse viajante agora flácido e acanhado! Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça, Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado! O Poeta se compara ao príncipe da altura Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar; Exilado no chão, em meio à turba obscura, As asas de gigante impedem-no de andar.
Franz Kafka - Diante da Lei Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo chega a esse porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde. - É possível - diz o porteiro - mas agora não. Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta e o porteiro se põe de lado o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso o porteiro ri e diz: - Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala porém existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a simples visão do terceiro. O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar mais de perto o porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo, a longa barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a permissão de entrada. O porteiro lhe dá um banquinho e deixao sentar-se ao lado da porta. Ali fica sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido e cansa o porteiro com os seus pedidos. Às vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, perguntalhe a respeito da sua terra natal e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que havia se equipado com muitas coisas para a viagem, emprega tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Com efeito, este aceita tudo, mas sempre dizendo: - Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa. Durante todos esses anos o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos amaldiçoa em voz alta e desconsiderada o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo. Torna-se infantil e uma vez que, por estudar o porteiro anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião. Finalmente sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está ficando mais escuro em torno ou se apenas os olhos o enganam. Não obstante reconhece agora no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de altura mudou muito em detrimento do homem: - O que é que você ainda quer saber? pergunta o porteiro. Você é insaciável. - Todos aspiram à lei - diz o homem. Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar? O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio ele berra: - Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.
NOEL ROSA - FILOSOFIA O mundo me condena, e ninguém tem pena Falando sempre mal do meu nome Deixando de saber se eu vou morrer de sede Ou se vou morrer de fome Mas a filosofia hoje me auxilia A viver indiferente assim Nesta prontidão sem fim Vou fingindo que sou rico Pra ninguém zombar de mim Não me incomodo que você me diga Que a sociedade é minha inimiga Pois cantando neste mundo Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo Quanto a você da aristocracia Que tem dinheiro, mas não compra alegria Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente Que cultiva hipocrisia
SERGIO VAZ - A fina flor da malandragem Duzão é piloto, e o que da fuga à essa malandragem. Na madrugada, a bordo de um Mercedes, dirige certos por vias tortas. Aninha já passou o ferro em várias madames, dizem por aí que pra mais de vinte. Cabeção tem olhar de rapina e um iceberg no coração, quando entra no banco já vai direto no caixa. Colorau não age na quebrada, gosta de fazer mansão. Lu ganha a vida distribuindo suas ideias através de um pó branco comprimido, a molecada fica alucinada. Nada contra quem mexe, mas ela nunca meteu a mão no pó dos outros. Vavá não pode ver carro parado que leva, se não der na chave leva nas costas. Lourival mete o cano desde criança, o pai se virava no alicate, e nunca teve medo de cerca elétrica. Como teve problemas de berço, Mariana pega o filho dos outros e devolve por uma quantia mínima. Julião põe medo em muita gente, também pudera, já enterrou vários com uma pá na mão. Salete limpou a casa de Sonia, quem deu a fita foi a Rose, que se bobear limpa até as casas dos parentes. Marcio resgatou Sales da cadeia, e saiu do presídio pela porta da frente, ninguém fez nada. Elizabeth quase não ri, é uma espécie de gerente da boca, na rua dizem que ela é a patroa. Nego Jan vende tudo que pega: relógio, TV, DVD, Eletrodomésticos em geral, carro, moto, corrente de ouro, roupa de marca, e demais mercadorias. Sua lábia é mais afiada que lâmina de gigolô. Zóio tem problemas com a injustiça e está no semiaberto, passa o dia na oficina e a noite dorme no 3º andar. Quando pode, Guida e preto Will, parceiros de caminhada, o visitam no domingo. Luciana não tem medo de sangue, já ajudou a cortar vários desconhecidos, muitos cagam de medo de morrer na mão dela. Wilsinho não tem medo de nada, já passou o revólver até no carro da polícia. As pessoas acima são suspeitas de ter a coragem de trabalhar, e enfrentar o dia a dia com a dignidade que só o sofrimento ensina, e por mais simples que sejam, nunca se evadiram da responsabilidade de lutar. A malandragem fica por conta de quem lê.
ANDRÉ ABUJAMRA – Imaginação O canto da baleia O voo do beija-flor O latido do cachorro A bengala do avô O barulho do grilo na mata Japonês fazendo pastel Um elefante dourado, de pijama voando no céu Búlgaras peladas, fazendo abdominal Três turcos malvados, sem dentes com cara de mau Pipocas salgadas e doces Gigante com cueca de anão Urso panda dançando ballet Baiano tomando chimarrão Minha imaginação... É minha imaginação... É mentira que a Lua não existe É verdade quando aparece o eclipse É mentira que o Sol não existe não É verdade quando é noite no Japão É mentira que o Maracanã tá lá no Maranhão É verdade quando conheci Humberto É mentira que o aeroporto em Curitiba nunca fecha É verdade quando o céu tá encoberto O mundo de dentro da gente é maior do que o mundo de fora da gente O Universo de dentro da gente é o Espaço Sideral
Choro Esdrúxulo – Jards Macalé Não quero crítico, nesse meu cântico. Não sou melódico, não sou histórico, não sou filósofo, nem sou nenhum sinfônico, pois não conheço ritmo. Também não sou esquelético, gosto de música, embora lírica. Adoro química, admiro a força elétrica e da ciência gosto, não sou científico, sou um tanto pernóstico em matéria magnética. Sou magnífico, emboladístico, pois sou metódico no radiodístico. Deixo patético o radiofônico, sou matemático num cântico chorístico. Eu tenho físico, não sou anêmico, não sou elástico de pneumático. Sou veranístico e enigmático, sou diabólico e pertenço ao ramo artístico. Itamar Assumpção - Sujeito a Chuvas e Trovoadas Falam isso, falam aquilo, falam assado, falam cozido Mas na verdade... na verdade Eu sou sujeito a chuvas e trovoadas Sendo assim desse jeito Nunca terei namorada Eu fico sempre entre a cruz e a espada Será que compro feito ou será que faço em casa Se isso posso ócio já não posso Isso é o osso isso é só isso Ninguém é fácil nem é manso bicho Meu negócio é mulher pra qualquer negócio Resta-me saber o que tem a ver Filmes que não vi com o disco do Djavan que ouvi Já que tudo leva a crer não ser por aí O caminho que vai dar aqui Viver às vezes é morrer de tédio e de vício Também de ataque de míssil Viver é virar de ponta cabeça o avesso
MARCELINO FREIRE – DA PAZ Eu não sou da paz. Não sou mesmo não. Não sou. Paz é coisa de rico. Não visto camiseta nenhuma, não, senhor. Não solto pomba nenhuma, não, senhor. Não venha me pedir para eu chorar mais. Secou. A paz é uma desgraça. Uma desgraça. Carregar essa rosa. Boba na mão. Nada a ver. Vou não. Não vou fazer essa cara. Chapada. Não vou rezar. Eu é que não vou tomar a praça. Nessa multidão. A paz não resolve nada. A paz marcha. Para onde marcha? A paz fica bonita na televisão. Viu aquele ator? Se quiser, vá você, diacho. Eu é que não vou. Atirar uma lágrima. A paz é muito organizada. Muito certinha, tadinha. A paz tem hora marcada. Vem governador participar. E prefeito. E senador. E até jogador. Vou não. Não vou. A paz é perda de tempo. E o tanto que eu tenho para fazer hoje. Arroz e feijão. Arroz e feijão. Sem contar a costura. Meu juízo não está bom. A paz me deixa doente. Sabe como é? Sem disposição. Sinto muito. Sinto. A paz não vai estragar o meu domingo. A paz nunca vem aqui, no pedaço. Reparou? Fica lá. Está vendo? Um bando de gente. Dentro dessa fila demente. A paz é muito chata. A paz é uma bosta. Não fede nem cheira. A paz parece brincadeira. A paz é coisa de criança. Tá uma coisa que eu não gosto: esperança. A paz é muito falsa. A paz é uma senhora. Que nunca olhou na minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. A paz é muito branca. A paz é pálida. A paz precisa de sangue. Já disse. Não quero. Não vou a nenhum passeio. A nenhuma passeata. Não saio. Não movo uma palha. Nem morta. Nem que a paz venha aqui bater na minha porta. Eu não abro. Eu não deixo entrar. A paz está proibida. A paz só aparece nessas horas. Em que a guerra é transferida. Viu? Agora é que a cidade se organiza. Para salvar a pele de quem? A minha é que não é. Rezar nesse inferno eu já rezo. Amém. Eu é que não vou acompanhar andor de ninguém. Não vou. Não vou. Sabe de uma coisa: eles que se lasquem. É. Eles que caminhem. A tarde inteira. Porque eu já cansei. Eu não tenho mais paciência. Não tenho. A paz parece que está rindo de mim. Reparou? Com todos os terços. Com todos os nervos. Dentes estridentes. Reparou? Vou fazer mais o quê, hein? Hein? Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo lá embaixo. Carregando na avenida a minha ferida. Marchar não vou, ao lado de polícia. Toda vez que vejo a foto do Joaquim, dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um cisco no peito. Sem fim. Ai que dor! Dor. Dor. Dor. A minha vontade é sair gritando. Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus! Matando todo mundo. É. Todo mundo. Eu matava, pode ter certeza. A paz é que é culpada. Sabe, não sabe? A paz é que não deixa.
Portrait of George Dyer Riding a Bicycle - Francis Bacon 1966
Marcel Duchamp: 5-Wat Self Portrait 1917
OSWALD DE ANDRADE Vício na fala Para dizerem milho dizem mio Para melhor dizem mió Para pior pió Para telha teia Para telhado teiado E vão fazendo telhados. TORQUATO NETO Agora nao se fala mais toda palavra guarda uma cidade e qualquer gesto é o fim do seu inicio; Agora nao se fala nada e tudo é transparente em cada forma qualquer palavra é um gesto e em sua orla os passaros de sempre cantam nos hospicios.
TRADUZIR-SE (Ferreira Gullar/Fagner)
Uma parte de mim é todo mundo Outra parte é ninguém Fundo sem fundo Uma parte de mim é multidão Outra parte estranheza e solidão Uma parte de mim, pesa Pondera Outra parte, delira Uma parte de mim almoça e janta Outra parte se espanta Uma parte de mim é permanente Outra parte se sabe de repente Uma parte de mim é só vertigem Outra parte, linguagem Traduzir uma parte noutra parte Que é uma questão de vida e morte Será arte? Será arte?