UNIVERSIDADE FERDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE EDUCAÇÃO TUTORIAL
PROJETO DE PESQUISA: MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS E GESTÃO PARTICIPATIVA: CONTINUIDADES E MUDANÇAS SUBPROJETO: O MOVIMENTO DE MULHERES DE CARIACICA E NOVAS FORMAS DE PARTICIPAÇÃO
AUTORAS: Bárbara Leite Pereira; Fernanda Louzada Matos; Fernanda Meneghini Machado; Letícia de Jesus Freitas.
ORIENTADORA: Ana Targina Rodrigues Ferraz.
SUMÁRIO 1. A LUTA DAS MULHERES----------------------------------------------------------------- 3 1.1 O Feminismo no mundo --------------------------------------------------------- 3 1.1.1 Relação entre feminismo e marxismo ------------------------------------- 8 1.2 O feminismo na América Latina --------------------------------------------- 10 1.3 Feminismo e movimento de mulheres no Brasil ------------------------ 16 1.3.1 Mulher e pobreza ------------------------------------------------------------- 29 2. ASPECTOS RELEVANTES PARA A CONSTRUÇÃO DO MOVIMENTO AMUCABULI ------------------------------------------------------------------------------------30 2.1 perfil sócio-econômico de Cariacica ---------------------------------------- 30 2.2 Perfil das mulheres de Cariacica -------------------------------------------- 32 2.3 A AMUCABULI ------------------------------------------------------------------- 35 3. NOVOS RUMOS DO MOVIMENTO -------------------------------------------------- 40
1. A LUTA DAS MULHERES
1.1 O feminismo no mundo Ao construir esse tópico, foi necessário abordar acontecimentos em diversos lugares do globo que foram fundamentais para o amadurecimento do debate sobre a situação da mulher e conseqüentemente do processo de construção do feminismo no mundo. No século XVII, que antecede a Revolução na Inglaterra, ou seja, Puritana em 1940 e a Gloriosa em 1989, emergiram idéias de mudanças concretas na organização social do país.
Acelera-se o ritmo da atividade manufatureira, criam-se novas
formas de organização do trabalho e expande-se o comércio. Esse movimento revolucionário criou as condições indispensáveis para a Revolução Industrial do século XVIII, limpando terreno para o avanço do capitalismo, em um marco ideológico impregnado pelas idéias religiosas do puritanismo e pelo respeito crescente à razão e à ciência enquanto formas fundamentais de conhecimento (ALVES; PITANGUY, 1981). Este período (século XVII) para Alves e Pitanguy (1981) foi marcado pela intensa participação das massas na esfera política, sendo o século seguinte o da Revolução. As idéias de liberdade do cidadão frente ao arbítrio do Estado e a consciência de que esta só se constrói com a participação do individuo na esfera política, se afirmam enquanto princípios da ideologia liberal, que encontram na propriedade privada sua base material. Já no século XVIII, nos Estado Unidos, a luta pela libertação culminou na Declaração de Independência, mas abarcou somente o sexo masculino e tão somente a burguesia, foram ficando excluídos da idéia de igualdade as mulheres, índios e negros, além do homem branco de baixa renda. Na França, as mulheres revolucionárias dirigem-se à Assembléia pedindo revogação de aparatos legais que submetem o sexo feminino ao domínio masculino, reivindicando a mudança na legislação sobre o casamento que dá direitos absolutos do marido sobre o corpo e bens de sua mulher.
Neste país, este século também foi marcado por Revoluções, as quais a mulher participou ativamente ao lado do homem do processo revolucionário, mas sem conquistas políticas para seu sexo (Alves; Pitanguy, 1981). Para as autoras, é nesse momento histórico que o feminismo adquire características de uma prática política organizada, reivindicando seus direitos de cidadania. O movimento feminista na França assume um discurso próprio que afirma a especificidade da luta da mulher. Feministas da época publicam inúmeros documentos sobre a situação da mulher, abordando temas como trabalho, desigualdade legal, participação política e prostituição. Algumas escritoras, apesar da defesa dos ideais revolucionários e princípios do liberalismo, publicam textos questionando a opressão das mulheres e reivindicando sua inclusão na vida política e civil em igual condição de igualdade com os homens, tanto de deveres quanto de direitos, fato este que será repetido no século XIX pelas feministas sufragistas. Apesar da ampla participação da mulher na vida pública durante o período revolucionário, através de manifestos, redigindo cartas, mobilizando-se em motins contra a carestia, formando clubes políticos e outros principais eventos da Revolução. Essas ações, só demonstraram a ousadia dessas mulheres e a afronta ao governo. Portanto, em 1795 foram reprimidas por um decreto da Assembléia Nacional ao âmbito doméstico. Fecha-se assim, formalmente, o acesso da mulher à participação na esfera pública. De acordo com o próprio ideólogo da Revolução, Rousseau (apud ALVES, PITANGUY, 1981, p 35) “a mulher deveria ser educada a encontrar sua realização natural se colocando a serviço do homem, desde a infância até a idade adulta”. No século XIX, a consolidação do sistema capitalista trará conseqüências profundas tanto para o processo produtivo quanto para a organização do trabalho como um todo e para a mão de obra feminina em especial. O sistema de produção manufatureiro e posteriormente fabril com a introdução da maquinaria vai afetar o trabalho feminino, transferindo para as fábricas tarefas antes executadas a domicílio, aumentando o contingente feminino da mão de obra operária. Compartilhando com o homem as terríveis condições de trabalho vigentes no período, como jornadas de trabalho de até 18 horas, as mulheres, assim como as
crianças, sofrem uma superexploração vinda das diferenças salariais, além de executarem as tarefas menos qualificadas, mais subalternas ou somente aquelas ligadas às tarefas domésticas. Para a superexploração havia uma justificativa ideológica, supostamente as mulheres tinham quem as sustentasse. Outro fator agravava a situação da mulher no mercado de trabalho, além de sua desvalorização, sua força de trabalho na produção fabril gerava um rebaixamento do nível salarial geral. Logo, movimentos operários já organizados rejeitavam sua inserção no mercado de trabalho e nos sindicatos. A partir da crítica as relações de produção do sistema capitalista, no século XIX, estruturam-se as bases da teoria socialista impulsionados pelos movimentos reivindicatórios e revolucionários. Entendendo a condição da mulher como parte das relações de exploração na sociedade de classes, Friedrich Engels (apud ALVES; PITANGUY,1981) conclui que o surgimento da propriedade privada é a base para a inferiorizarão da mulher, pois a partir do casamento e da sujeição da mulher, o homem garantiria a transmissão da propriedade através da herança. Para August Bebel, apoiado nos argumentos de Engels, com o fim da propriedade privada e conseqüentemente do sistema capitalista, acabaria com as relações desiguais de poder de uma classe sobre a outra e do homem sobre a mulher. Em mundo todo, mulheres trabalhadoras quebraram o silêncio e através das constantes lutas por seus direitos, suas reivindicações chegaram à esfera pública e às organizações sindicais, participando de greves junto com os homens e com eles foram vítimas da repressão. No dia 8 de março de 1857, uma marcha de mulheres invade as ruas da cidade de Nova Iorque. São operárias da indústria têxtil protestando contra baixos salários e jornada de trabalho de 12 horas e são violentamente reprimidas pela policia. Cinqüenta e um anos depois no mesmo dia 8 de março de 1908 em Nova Iorque, operárias voltam às ruas, denunciam não só questões relativas ao trabalho, como as condições degradantes, mas também reivindicam uma legislação que proteja o
trabalho do menor e a extensão do direito ao voto às mulheres, à participação nas decisões públicas enquanto cidadãs. Segundo Alves e Pitanguy (1981), por esta história de luta, foi proclamado o dia 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. A luta do operariado no século XIX abrangia basicamente duas frentes: por melhores condições de vida (reivindicações trabalhista e por condições de higiene) e direitos de cidadania (votar e ser votado sem critério censitário e alguma remuneração aos parlamentares, para que quem fosse desprovido de renda também pudesse se eleger). O sufrágio universal foi a principal conquista dos homens trabalhadores, consolidada depois de eliminar o voto por renda. De acordo com Alves e Pitanguy (1981, p 44), nos grandes momentos da campanha sufragista, ela mobilizou até 2 milhões de mulheres, o que tornou esta luta “um dos movimentos políticos de massa de maior significação do século XX”. O sufragismo iniciou-se nos Estados Unidos em 1848 e durou 70 anos. Na Inglaterra foram 63 anos e no Brasil 40 anos. Nos Estados americanos e na Inglaterra a conquista do voto feminino se deu através de campanhas de mobilização da opinião pública, busca de apoio de parlamentares e partidos, passeatas, atos públicos, abaixo-assinados, numa luta incansavelmente retomada a cada nova legislatura. Nos últimos anos da campanha, o movimento passa a adotar práticas mais agressivas, devido a própria violência do governo, o que culminou em inúmeras prisões das sufragistas, por desordem pública. Diferentemente dos outros países, no Brasil, a luta pelo voto feminino não teve as características de movimento de massa, sendo alcançado separadamente em cada Estado até a promulgação definitiva do decreto-lei do direito de sufrágio as mulheres. Iniciou-se em 1910 e suas principais táticas era a pressão sobre os membros do Congresso e mobilização pública na através da imprensa. Em 1927 o Presidente Rio Grande do Norte inclui em sua Constituição a permissão do exercício do voto às mulheres. Esse fato repercutiu nos Estados, intensificando assim a luta das mulheres. Apesar de lei já vigorar em 10 Estados Brasileiros, somente em 1932 Getúlio Vargas promulga um decreto-lei, concedendo o direito de sufrágio as mulheres (ALVES; PITANGUY,1981).
Conquistados alguns direitos formais como o de votar e ser votadas, estudar e trabalhar, em 1930 e 1940, Alves e Pitanguy (1981) referenciam como reconhecimento da cidadania feminina. Entretanto, as mulheres não puderam usufruir de tais direitos de cidadania, pois este mesmo período esteve marcado pela preparação de uma nova guerra e, portanto houve um refluxo na organização das mulheres. A sua entrada maciça no mercado de trabalho para liberar a mão de obra masculina para as frentes de batalha não permitiu que as mulheres pudessem gozar do reconhecimento adquirido, estudar e preocupar-se com problemas de sua categoria. É com o final da guerra e retorno da força de trabalho masculina que a ideologia que valoriza a diferenciação de papéis por sexo, atribuindo à condição feminina o espaço doméstico, é fortemente reativada, no sentido de retirar a mulher do mercado de trabalho para que ceda seu lugar aos homens. As mensagens veiculadas pelos meios de comunicação enfatizam a imagem da “rainha do lar”, exacerbando-se a mistificação do papel de dona-de-casa, esposa e mãe. Novamente o trabalho externo da mulher é desvalorizado, tido como suplementar ao do homem (ALVES; PITANGUY, 1981, p 50). Dessa forma, a partir das décadas de 1960 e 1970, o feminismo incorpora outras frentes de luta, questionando não só as desigualdades da mulher referentes aos direitos trabalhistas e políticos, mas também a infundada crença na inferioridade “natural da mulher”, baseada em fatores biológicos que tentam encobrir uma hierarquia que delega ao homem posição de domínio. Para Alves e Pitanguy (1981, p 54): O ‘masculino’ e ‘feminino’ são criações culturais e, como tal, são comportamentos apreendidos através do processo de socialização que condiciona diferentes sexos para cumprirem funções sociais específicas e diversas. Logo, para a autora, sendo a hierarquia sexual fruto de um processo histórico, pode ser combatida e superada e o novo debate feminista luta contra a fatalidade biológica e mostra que a história é passível de ser transformada.
A luta contra a naturalidade da discriminação e da reprodução da ideologia de desvalorização, implica numa identidade própria que supere hierarquias, onde homens e mulheres se reconheçam como semelhantes. É importante ressaltar que a década de 70 foi um momento histórico de contestação, em que os movimentos trazem as questões que antes eram tratadas no campo individual, trazem agora para o campo político, tornando-o coletivo. Nesse contexto, o feminismo ressurge como um movimento de massas com “inegável força política e enorme potencial de transformação social” (ALVES; PITANGUY,1981, p 58). Surgem assim, muitas organizações de mulheres com atividades de grupos de trabalho, pesquisas, debates, cursos e publicações, além da participação em campanhas que levaram milhares de mulheres as ruas por reivindicações específicas.
1.1.1 Relação entre feminismo e marxismo De acordo com Marx e Engels no Manifesto Comunista em 1848: “A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe”. O Manifesto Comunista considera a existência de duas classes sociais fundamentais: senhores e escravos no escravismo; senhores feudais e servos no modo de produção feudal; burguesia e proletariado no capitalismo. No entanto, Camacho menciona que cada formação social possui um conjunto de classes além das classes fundamentais - as classes secundárias ou subclasses: o campesinato, as classes médias, entre outras. Em muitos casos determinada classe ou subclasse pode assumir um papel de dominação no processo social. De acordo com Woods (2001), para os marxistas a causa original de todas as formas de opressão, inclusive a das mulheres, consiste na divisão da sociedade em classes, dando a entender que após a revolução socialista, a questão da desigualdade entre homens e mulheres fossem ser superadas. Porém esse autor coloca que para que isso aconteça é necessário que sejam criadas as relações sociais ideais entre homens e mulheres.
Camacho acredita nessa relação entre marxismo e feminismo e cita algumas autoras que se intitulam Feministas Socialistas. Heidi Hartmann é uma autora que se define como Feminista Socialista; ela busca a aproximação da teoria marxista através da noção de patriarcado. Numa sociedade patriarcal o homem possui poderes. As relações sociais nessa sociedade são desiguais e o patriarca estimula essa desigualdade através de alguns métodos como a proibição da educação feminina por considerar as mulheres intelectualmente inferiores, até a violência física e psicológica, passando pela proibição do direito ao voto e aprovação de leis discriminatórias que impedem a igualdade entre os sexos, além da exclusão das mulheres das fontes essenciais de produção remunerada através dos lucros ou salários. Para Hartmann as feministas radicais têm dificuldades em perceber como o sexo se torna gênero focando muitas vezes na questão biológica e de reprodução esquecendo os fenômenos sociais da relação do homem com a mulher; enquanto o marxismo foca as mulheres mais no ponto de vista econômico, ignorando quase sempre suas relações com o homem. “O marxismo tem sido cego para o sexo (sex blind), o feminismo tem sido cego para a história (blind to history)”. (Hartmann apud Camacho, 2000). Ela acredita que deve se ter uma aliança que considere não só a luta de classes; tampouco só a questão feminina, mas o Feminismo Socialista. A opressão de gênero e a opressão de classe são duas faces da mesma moeda: o capitalismo patriarcal. Como socialistas feministas devemos organizar a prática que contemple tanto a luta de classes, como a luta antipatriarcal.” (HARTMANN, apud CAMACHO, 2000, p. )
1.2 O feminismo na América Latina O feminismo isolado e surgido a partir dos novos movimentos sociais, vistos na década de 1970 e 1980, no contexto de regimes autoritários, elitistas e corporativistas, agora são definidos, nas palavras de Alvarez (2001), como um campo de ação articulado e heterogêneo que tem gerado novos conflitos e contradições
dentro
do
campo
do
movimento
feminista
latino-americano
contemporâneo. Esses conflitos estão relacionados aos lugares, objetivos e prioridades do movimento e da política feminista, num campo cada vez mais minado por relações desiguais de poder entre as próprias mulheres. O processo de preparação para as Conferências de Huairou e Beinjing na AméricaLatina se constituiu em um movimento que revelou as diferentes faces e tensões do feminismo e a política de gênero nos anos 1990. Alvarez (2001) destaca eventos distintos desse processo e utiliza-os como exemplo para analisar a política feminista: os preparativos dos movimentos brasileiros para Beijing de 1993 e 1995, os encontros regionais realizados em Mar del Plata em 1994 e a participação das mulheres latino-americanas no Fórum de Organizações não governamentais (ONGs), em Hauirou e a Quarta Conferência Mundial Sobre a Mulher (QCMM), em Beijing em 1995. Alvarez (2001) sugere que a partir do processo de organização da Conferência de Beijing, podem ser observadas cinco tendências na política e organização do movimento feminista na América Latina. A primeira tendência refere-se ao aumento nos
espaços de
articulação
feministas nos anos
1990, mostrando
uma
reconfiguração de identidade política feminista latino-americana, diferente dos anos 1970 e 1980. A segunda tendência analizada, foi que a partir de Beijing que tornou-se possível a incorporação da agenda feminista, pelo Estado, pela sociedade política e pelas instituições dominantes. Terceiro, a autora demarca uma profissionalização, especialização e ONGuização dos movimentos feministas. Em quarto, a formação de redes de articulação de movimentos no mundo. E em quinto lugar, a transnacionalização dos discursos e práticas dos movimentos. Para contextualizar a análise dos movimentos feministas contemporâneo, Alvarez (2001) propõe ser necessário retratar como as feministas latino-americanas configuraram uma identidade distinta durante a década de 1970 e início dos anos 1980. Alvarez (2001) faz um resgate do movimento de mulheres surgido nas décadas de 1970 e 1980 e chama de segunda onda feminista. Para esta autora, os movimentos feministas nessa época deram as costas para o Estado, considerado excludente e
inimigo, e passaram a atuar em organizações clandestinas de esquerda, sindicatos, em grupos de mulheres comunitários, através da participação de mulheres trabalhadoras pobres, lutas de sobrevivência, no que mais tarde veio a ser conhecido como movimento de mulheres. Entretanto, tendo reconhecido a opressão machista dentro da oposição, onde próprios companheiros com freqüência rejeitavam ou esqueciam assuntos de interesse das mulheres, como: violência doméstica e sexual, financiamento público para creches e direitos reprodutivos, as feministas questionaram a esquerda e declararam a necessidade de inventar novas maneiras de fazer política e travar uma luta específica pelos direitos da mulher (ALVAREZ, 2001). A segunda onda do feminismo latino-americano nos seus primeiros anos, ainda contava com hierarquia organizacional herdada da esquerda, mas aos poucos adotaram práticas mais fluídas e menos hierárquicas, enfatizando que cada mulher falasse por si mesma. Ser uma feminista passou, então, a significar lutar por um conjunto de questões específicas das mulheres, aderir a determinadas normas de organização, como participação direta, informalidade e não especialização das funções. Era comum também a dupla militância, ou seja, participar de organizações de classe para avançar a luta geral e em grupos de mulheres para lutar por mudanças específicas das mulheres (ALVAREZ, 2001). Nos anos 80 com o retorno do regime democrático, Alvarez conta que a organização autônoma dos movimentos feministas foi abalada, pois passaram a atuar na política eleitoral e viam nos partidos políticos, órgãos legislativos e no Estado, espaços potenciais de mudança na situação das mulheres. Muitas feministas eram agora consultoras ou assessoras de governos, de fundações e agências da ONU, envolvidas em burocracias governamentais, parlamentos e sindicatos. Profissionais em Organizações não-governamentais, as chamadas ONGs nacionais e internacionais, nas questões do meio ambiente, direitos humanos, feministas liberais, feministas negras, feministas lésbicas, feminismo popular, ecofeminismo , feminismo cristão, etc.
Para Alvarez (2001), nos anos 1990, houve uma reconfiguração das identidades femininas, pela diversificação dos discursos e práticas, pela multiplicação dos espaços de atuação e variedade das arenas sócio-políticas e pela expansão de suas agendas. O feminismo se tornou menos unificado, menos homogêneo e mais diversificado. Todo esse processo foi indicado na preparação de latino-americana para Beijing que foi descentrando as práticas e a agenda feministas na América Latina. No Fórum de ONGs de Mar del Plata, Alvarez (2001) pontua que para muitas militantes as lutas não deveriam mais ficar confinadas às questões específicas ou de interesse exclusivos das mulheres, como violência sexual ou aborto, mas sim enfocarem a luta geral envolvendo questões como raça/etnia, classe, sexualidade, idade, por exemplo. A partir da ótica de gênero trabalharem a luta geral, ou ainda variar a luta conforme o momento histórico. Na ocasião, as participantes afro-latinoamericanas solicitavam que todas as ativistas dos movimentos de mulheres da América Latina, abraçassem a sua luta particular sobre o racismo. Com a multiplicação dos espaços em que as feministas latino-americanas atuavam nos anos 1990, suas reivindicações ganharam maior visibilidade política e impulsionaram a incorporação de algumas idéias feministas pelos Governos latinoamericanos. Foram criados ministérios, secretárias e delegacias especializadas para acelerar a igualdade de gênero e para integrar as mulheres no processo de desenvolvimento. Algumas reivindicações históricas ainda foram incorporadas a documentos oficiais da ONU, como os direitos reprodutivos, a participação eqüitativa na vida pública e familiar e políticas educacionais não-sexistas (ALVAREZ, 2001). Apesar de alguns avanços nas políticas para as mulheres, Alvarez (2001) destaca ainda outras questões que dificultam na promoção da igualdade de gênero. O neoliberalismo que encolhe o Estado e diminui os recursos financeiros, deixando o poder de intervenção da sociedade a cargo do mercado. Tornado-se assim, improvável a alocação de recursos para a igualdade de gênero. E a resistência dos arranjos dominantes de poder, pois incorporar reivindicações feministas perturba os regimes dominantes masculinistas e valores familiares cristão.
Atenção especial deve ser dado ao fenômeno de expansão das ONGs na década de 1990, pois estas passaram a desempenhar um papel importante na sustentação e articulação das teias para expansão do movimento feminista latino-americano. De acordo com Alvarez (2001), com a criação das instituições governamentais e legislação voltada para tratar das questões da mulher, houve a necessidade de instituições não-governamentais especializadas, para alimentar com rapidez e eficiência o processo de políticas públicas, coisa que muitos coletivos feministas informais e anti-hierárquicos tinham dificuldade em fazer. Na medida em que diminui a intervenção e eficácia do Estado, mais aumenta o número de ONGs e a alocação de recursos materiais nos setores mais profissionalizados do campo feminista. Os recursos vêm de agências bilaterais e multilaterias e de fundações privadas, geralmente estrangeiras (ALVAREZ, 2001). No processo de Beijing latino-americano, Alvarez (2001) argumenta que muitas participantes e observadoras do movimento de mulheres disseram que as ONGs feministas dominaram a dinâmica política e organizacional da Conferência. Estas ONGs receberam grandes financiamentos externos para organizar as atividades nacionais e regionais de preparação para Beijing e produziram os relatórios e publicações que seriam utilizados no evento. As redes nacionais e regionais, especializadas tematicamente, foram amplamente criticadas por algumas feministas, por não democratizarem as informações sobre o processo de Beijing, centralizar as decisões e monopolizar os recursos e a representação do movimento. Para Alvarez (2001), apesar dessa nova reconfiguração ter acelerado a incorporação das demandas feministas nas plataformas da QCMM e nos relatórios oficiais da ONU, muitas feministas insistem que as demandas do movimento não se esgotam na transformação do Estado ou somente no nível institucional. De acordo com Pisano (apud ALVAREZ, 2001, p 409), “o movimento feminista está se tornando uma conferência da ONU” e que ”[...] é ingênuo pensar que com a lógica dos lobbies e da negociação vamos atingir uma utopia que possa permear o imaginário humano”.
No Sexto Encontro Feminista da América Latina e do Caribe em El Salvador em 1993, Alvarez (2001) argumenta que criou-se um desconforto entre os movimentos chamados
de
“movimento
burocrático-institucional”
versus
as
“femininas
independentes”, “especialistas” versus “metafóricas”, “o movimento de mulheres” versus “o movimento de projetos de mulheres” e “as onguistas” versus “o movimento”. Outra crítica tecida por Alvarez (2001), de acordo com os fatos vistos nos encontros e depoimentos de muitas militantes sobre as ONGs, refere-se aos problemas de representatividade. Argumentam que a pluralidade e diferença devem ser consideradas para a formulação de uma política. Somente pelo fato de uma determinada discussão envolver algumas ONGs, não significa que a sociedade civil foi consultada. A autora comenta que as ONGs latino-americanas geralmente não são organizações com quadros amplos de associados com procedimentos rotineiros de consulta direta. A batalha travada pelas chamadas institucionalizadas, nesse processo de ONGuização e transnacionalização do campo feminista, como sugere Alvarez (2001), levou muitas feministas a privilegiarem a arena política convencional em detrimento das atividades de organização e mobilização de base. Conforme a autora e outras críticas feministas, este fato pode ser perigoso, uma vez que o projeto de transformação feminista pode ser ignorado ou silenciado pelas instituições dominantes e o trabalho de mobilização local e conscientização junto às mulheres das classes populares pode comprometer a própria busca por uma política de gênero mais eqüitativa. Como conseqüência do descentramento do movimento feminista a uma variedade de espaços extra e institucionais e organizações paralelas, ocorreram avanços feministas nas políticas e nos direitos. Além disso, o processo de Beijing, conforme Alvarez (2001, p 415), não se levou necessariamente a uma fragmentação dos feminismos, devido à ampliação dos espaços feministas, e sim confirmou que estes feminismos continuam articulados “por meio de redes político-comunicativas cada vez mais formalizadas que configuram um campo feminista latino-americano cada vez mais heterogêneo, policêntrico e disperso do ponto de vista do espaço e organização”.
O movimento feminista recente ao se expandir tanto com os públicos dominantes como com os públicos alternativos horizontal, ou seja, horizontal ou verticalmente, favorecem a um discurso de contestação e ligações cruciais entre movimentos e arenas políticas institucionais que ajudam a ampliam as plataformas nos sindicatos, dos partidos, das políticas nacionais e convenções internacionais (ALVAREZ, 2001). Em relação aos movimentos ambientalista e de direitos humanos, chamados de novos movimentos sociais, Alvarez (2001) sugere que esses movimentos não desapareceram como alguns autores afirmam. Eles talvez possam estar muito presentes nessas novas arenas políticas, como nas ONGs
e em órgãos
especializados do governo. De acordo com Alvarez (2001) nessas novas arenas políticas, tais como o Estado e ONGs profissinais, onde acontece a política feminista atual, ocorre novas hierarquias e desequilíbrios de poder e recursos materiais, culturais e políticos, do que nos movimentos de base, por isso o campo feminista tem constantemente renegociado e contestado a legitimidade e representatividade de tais grupos. Portanto, um dos maiores desafios enfrentados pelas feministas e outras ativistas progressistas de todo mundo, é o de criar mecanismos efetivos para a democratização dos espaços públicos dominantes nacionais e internacionais e as relações dentro desse campo feminista, e a sociedade civil é muito importante nesse processo (ALVAREZ, 2001).
1.3 Feminismo e movimento de mulheres no Brasil É possível identificar lutas organizadas de mulheres pelo direito da cidadania desde a Revolução Francesa no século XVIII. Na passagem do século XIX para o XX nos Estados Unidos e na Europa, o movimento sufragista espalha-se, através de um feminismo organizado em prol dos direitos políticos de votar e serem votadas. No Brasil, as manifestações feministas na época do sufragismo tinham como foco, assim como nos outros países, a luta pelos direitos políticos das mulheres, através da participação eleitoral onde elas poderiam ser eleitoras ou candidatas.
Segundo Pinto (2003), as primeiras vozes de contestação contra as condições das mulheres no final do século XIX e início do século XX, eram por vezes manifestações organizadas ou apenas vozes solidárias que se rebelavam contra as condições em que viviam na época, mas sempre ligadas a personalidades feministas que por sua excepcionalidade intelectual, contrariavam a ordem estabelecida para elas, se colocavam no mundo público e em defesa dos direitos de cidadania para as mulheres. Para a autora existiam pelo menos três diferentes vertentes no movimento feminista no Brasil. A primeira tendência, de alcance nacional e bastante institucionalizado, tinha como foco os direitos políticos para as mulheres e era liderado por Bertha Lutz. Essa vertente considerada pela autora como resultado de uma fase bemcomportada do feminismo, pois não questionava a posição de poder do homem, apenas a inclusão das mulheres como cidadãs. A segunda vertente do movimento não tinha como questão central os direitos políticos, mas defendia a educação da mulher e questionava a dominação dos homens e o interesse deles em restringi-las do mundo público. Essa vertente era composta por mulheres cultas, com vidas públicas excepcionais, na grande maioria professoras, escritoras e jornalistas que se expressavam por meio da imprensa feminista alternativa, onde tocavam em temas delicados como sexualidade e o divórcio. Pinto (2003) caracterizou esta fase como menos comportada do feminismo brasileiro do início do século XX. A última vertente do feminismo tem como questão central a exploração do trabalho e se manifesta pelos movimentos anarquista e comunista. Neste grupo encontram-se mulheres trabalhadoras e intelectualizadas, militantes de movimentos de esquerda que articulavam teses feministas como ideários anarquistas e comunistas. Pinto (2003) caracteriza essa fase como feminismo mal-comportado, pois ele defendia a liberação da mulher de uma forma mais radical. A principal organizadora dessa fase foi Maria Lacerda de Moura. Fazendo um resgate sobre as lutas das mulheres no Brasil, Pinto (2003) fala sobre a luta pelo sufrágio feminino, já em 1881 algumas mulheres lutaram de forma
individual pelo direito ao voto, com base na lei que assegurava o voto aos portadores de títulos científicos. Entretanto, este alistamento não era aceito em todas as capitais do país. Na Constituinte republicana de 1891 foi discutida a questão do voto feminino, tendo como defensores da proposta, Nilo Peçanha, Epitácio Pessoa e Hermes da Fonseca, posteriores presidentes. Novamente sem sucesso, o projeto não foi aprovado na Constituição que, no entanto, não as proibiu explicitamente. Para Pinto (2003), a não menção da mulher da Carta Constitucional revela que o senso comum da época não considerava a mulher como individuo dotado de direitos, mas uma naturalidade de sua exclusão. Eram considerados cidadãos brasileiros os homens nascidos no Brasil e eleitores. A Constituição aponta quem não é apto a votar, mas sequer cita as mulheres. E com base nesse esquecimento é que muitas mulheres requereram o alistamento por mais de 40 anos em que vigorou a Constituição de 1891. Em 1910 um grupo de mulheres funda o Partido Republicano Feminino. Pinto (2003) ressalta a peculiaridade e estratégia deste partido constituído por pessoas que não tinham direitos políticos. Seus programas e manifestações não eram considerados legítimos, pois não eram consideradas cidadãs dotadas de direitos. Entretanto, tinham uma clara posição de luta e de se tornarem representantes do interesse das mulheres na esfera política. Não defendiam apenas o direito ao voto, mas também discutiam sobre a exploração sexual, a emancipação e independência da mulher no mundo da política e do trabalho. As principais fundadoras do partido de acordo com Pinto (2003), além de Bertha Lutz, foram as professora Deolinda Daltro e a poetisa Gilka Machado que, para formar uma opinião pública e dar visibilidade à questão do voto feminino, organizaram, pela imprensa, enfrentamentos à ordem estabelecida, através de passeatas pela imprensa. O Partido Republicano Feminino desapareceu nos últimos anos da década de 1910 quando Bertha Lutz retornou a Paris e começou a organizar a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF), o que viria a ser a mais importante e conhecida
organização em defesa dos direitos da mulher e a maior expressão do feminismo da época. A história da Federação Brasileira para o Progresso Feminino está intimamente ligada à volta de Bertha Lutz ao Brasil. Pinto (2003) ressalta que Lutz pertencia a duas elites ao mesmo tempo, a econômica e intelectual, e isto dava a ela condições excepcionais e fundamentais para a construção de sua trajetória tão rara para uma mulher brasileira. Dotada de boas condições econômicas, pôde estudar em Paris e lá entrar em contato com as sufragistas. Formada em biologia e direito e, cientista no serviço público da época, teve boas condições culturais que permitiram posição de liderança e de vanguarda no movimento. Pinto (2003) ressalta que a apropriação do feminismo, a luta pelo voto e pelas questões relacionadas aos direitos das mulheres, deriva de núcleos familiares abastados, que educavam filhos eruditos e universitários. Foi das elites econômicas, intelectuais e culturais que surgiram as principais vozes feministas contrárias a opressão da mulher no Brasil. Ao longo da década de 1920 a idéia da Federação se espalhou pelo país e há notícia de criação das federações em mais cinco estados. A luta central da FBPF era pelo direito ao voto, e na busca de apoio político e da opinião pública, pressionaram os poderes constituídos, ou seja, senadores e deputados, e fizeram abaixoassinados. Pinto (2003) comenta que uma das maiores dificuldades da época era a comunicação e o fato da maioria das mulheres serem analfabetas e viverem confinadas dentro de casa. Já as mulheres que se destacaram na federação e na luta pelo voto, representando seus estados nos congressos, era um grupo altamente elitista. Foi, portanto, na luta das mulheres cultas das classes dominantes que a questão do voto feminino foi problematizada. Foi o feminismo bem comportado que agia no limite da pressão intraclasse, que pressionou por mudanças, mas não tentava pôr em xeque nenhum tipo de tema que abalasse as bases das relações patriarcais.
É importante ressaltar que a campanha pelo voto não se restringiu à FBPF, algumas mulheres tiveram grande destaque na luta pelo voto em seus estados, sem ter qualquer relação com a federação, havendo diversas formas de luta. Houve algumas lutas com sucessivas tentativas de mulheres de se alistarem como eleitoras ou candidatas, mas sem sucesso. A luta pelo direito ao voto chegou ao fim quando, em 1932 o novo Código Eleitoral atribuiu à mulher o direito a votar e de ser votada. Mesmo assim, a FBPF ainda atuou nos primeiros anos da década de 1930, pressionando mudanças na Constituição para novos direitos das mulheres, entretanto toda sua movimentação terminou no golpe de 1937. A segunda vertente do movimento feminista no Brasil, diferente a de Bertha Lutz e da FBPF, preocupada com ações dirigidas a quem detinha o poder, buscava formar um movimento de opinião a favor da libertação e emancipação da mulher. Nesta época, nas primeiras décadas do século XX, a luta pela liberdade de informação era uma constante entre todos os que pretendiam, de alguma maneira, reformar o regime político brasileiro ou mudar as formas hierárquicas que regiam as relações entre as pessoas no Brasil. O jornalismo feminista, como chamou Pinto (2003), sustentava pequenos jornais, pasquins e panfletos com publicações radicais para divulgar seu ideário feminista, a causa das mulheres e falar sobre sua condição. Isso acontecia em um país onde mais da metade da população vivia no campo e existiam altos índices de analfabetismo, principalmente entre as mulheres. Mas mesmo assim os jornais de diferentes tamanhos e alcances tinham importância para divulgar as notícias e construir opinião. A mensagem escrita era a única forma de comunicação de massas e foi através dela que às mulheres buscavam adeptas a favor das idéias de libertação. De acordo com Pinto (2003), uma das primeiras mulheres a fundar um jornal no Brasil foi Franscisca Senhorinha Motta Diniz. Em seu jornal, além da preocupação com o voto, alertava as mulheres para seus direitos civis, seus direitos no casamento e também sobre a importância da educação real para a emancipação das mulheres.
Já nas primeiras décadas do século XX, os imigrantes italianos, espanhóis e portugueses ao vir para o Brasil trabalhar nas fábricas, introduziram as idéias libertárias do anarquismo, que acabou pautando as primeiras grandes graves operárias, contribuindo para radicalizar o debate sobre a exploração do trabalho pelos capitalistas. Neste momento, surge a terceira vertente do movimento feminista, no momento em que as mulheres, imbuídas desse ideário anarquista são colaboradoras desse processo, através da imprensa. Foram nesses espaços revolucionários, mas não-feministas, que elas questionavam a opressão masculina e puderam perceber que a questão de gênero revelava desigualdades de poder e estruturavam as relações de trabalho, mostrando a condição de explorada da mulher. Elas reconheciam, já nesta época, as especificidades da opressão, apontando para a idéia da impossibilidade de se chegar à igualdade sem o reconhecimento da desigualdade nas fábricas. Um dos principais nomes do feminismo nessa época é o de Maria Moura (PINTO, 2003). Nesse momento da história, Pinto (2003) ressalta que talvez a única vitória concreta das mulheres, tenha sido o direito ao voto, pois manifestações dos movimentos de opinião e dos grupos que tornavam públicas as suas demandas, tanto das elites quanto entre a classe operária, foram caladas após o golpe de 1937, matando assim, o embrião da organização da sociedade brasileira nesse período. Conforme afirma Pinto (2003) outro fenômeno que ocorreu anterior à década de 1970 e durante o desenvolvimento do feminismo, foi a presença do movimento de mulheres entre as classes médias e populares no Brasil. Enquanto o feminismo questiona a opressão da mulher, a sua dominação em relação ao homem e a mudança de papéis atribuídos a elas pela sociedade, o movimento de mulheres atua a partir de sua própria condição de donas-de-casa, esposas e mães para intervir no mundo público. A autora registra que nesta época surgiram algumas organizações deste tipo, como os movimentos contra a carestia, os clubes de mães, o movimento pela anistia e outros mais. Estes movimentos têm sua especificidade em relação ao feminismo, mas não podem ser concebidos totalmente separados. Este tipo de movimento manteve-se presente até a década de 1970, principalmente nos bairros pobres, onde as
mulheres começam a lutar também por melhorias nos postos de saúde, nas escolas, nas creches e nos serviços públicos em geral. Essas organizações, principalmente os clubes de mães, tiveram grande apoio das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. A resistência que havia entre o movimento de mulheres e o feminista, a partir da década de 1970, começam a diminuir à medida que as mulheres percebem questões em comum na população feminina, devido ao aumento do número de mulheres pobres, trabalhadoras, negras, lésbicas, sindicalistas, etc, o movimento de mulheres acabou por incorporar o ideário feminista, de acordo com suas preferências identidárias (VERA SOARES, apud PINTO, 2003). Portanto, os movimento feministas no Brasil, conforme Pinto (2003), lutam por autonomia dentro do espaços político, defendem a especificidade da condição de dominação da mulher, a qual está naturalçizada nas relações sociais, e reconhecem as diferenças entre os problemas enfrentados pelas mulheres. O cenário brasileiro a partir das décadas de 1960 e 1970 esteve marcado pela ditadura militar, pela repressão e morte de militantes. A partir de 1968, foi grande o número de brasileiros exilados e entre estes, mulheres militantes ou apenas companheiras de homens militantes, que partiram para o exílio e entraram em contato com o ideário feminista. Grande maioria das feministas no Brasil, nos primórdios do novo feminismo que nascia na ditadura, esteve envolvida ou era simpatizante da luta contra a ditadura militar no país, tendo muitas delas sido presas, perseguidas ou exiladas pelo regime. Em Paris, uma ex-militante comunista, Danda Prado, fundou em 1972 um Grupo Latino-Americano de Mulheres que discutia a situação da mulher informalmente em um bar. Neste mesmo ano, surgiram encontros marcantes em Paris e uma das organizações mais importantes de mulheres neste país foi o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris, que durou de 1975 a 1979 e tinha como objetivo específico a mobilização contra a ditadura militar no Brasil. Pinto (2003) ressalta que o feminismo no Brasil era visto com desconfiança, tanto pelo regime militar direitista, quanto pela esquerda marxista exilada, que via no
feminismo uma ameaça à unidade da luta do proletariado contra o capitalismo e a própria relação de poder que os homens exerciam nessas organizações. Ainda em 1972, outros dois eventos marcaram a história do feminismo no Brasil e inauguraram a fase do novo feminismo. O primeiro foi o Congresso de grande visibilidade política, promovido pelo Conselho Nacional da Mulher (criado em 1949 por Romy Medeiros), que tinha como principal atividade o de lutar em prol das mulheres, através de iniciativas institucionais. O segundo foram as primeiras reuniões de grupos de mulheres em São Paulo e no Rio de Janeiro. O primeiro grupo foi fundado por Branca Moreira Alves, tinha caráter quase privado e discutia questões consideradas tabus, como o controle dos maridos sobre suas esposas e o planejamento familiar. As reuniões, conhecidas como grupos de reflexão, informais e com caráter privado, contando no máximo 20 mulheres, se juntavam por afinidades intelectuais, políticas ou por amizade e chegaram a fazer manifestações públicas importantes. Pinto (2003) comenta que a partir desses grupos, saíram nomes importantes da política e acadêmicas. Se até então o movimento estava restrito a grupos muito específicos, fechados e intelectualizados, chegando a se configurar como uma atividade privada, com o número reduzido de manifestações públicas por causa da repressão que ocorreu até o governo do general Médici. Em 1975 o general Geisel, assumira o governo e prometera uma política gradual e controlada, o que acabaria por favorecer a nova onda feminista. Mas o que marcou realmente este ano de 1975 foi a Organização das Nações Unidas (ONU), definindo este ano como o Ano Internacional da Mulher, realizando uma Conferência no México, dando a questão da mulher um novo status diante de governos autoritários e conservadores, que viam o feminismo com maus olhos. A partir daí, no Brasil, ocorreram vários eventos em comemoração ao Ano Internacional da Mulher e marcaram a entrada da mulher nas discussões sobre as questões do mundo público. Na ocasião de um desses eventos, foi criado o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira.
No ano de 1975 fervilharam acontecimentos e várias movimentações de grande importância para a organização feminista, como reuniões anuais da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), Organização do Movimento Feminino pela Anistia e diversos outros. Em 1979 o país segue rumo à redemocratização e o feminismo neste contexto tomou novos rumos, resgata militantes exiladas que voltaram com novas idéias, num cenário de maiores possibilidades de manifestação e maior articulação política. Com o processo de redemocratização mais avançado, por volta de 1982 surgia uma nova divisão entre as feministas: as que lutavam pela institucionalização do movimento e as autonomistas que viam na aproximação com a esfera estatal, uma ameaça a sua unidade e uma possível cooptação (PINTO, 2003). A partir de 1979 e do feminismo no campo político, Pinto (2003) destaca que ocorreram a conquista de espaços no plano institucional, através dos Conselhos da Condição da Mulher, das Delegacias da Mulher, mulheres em cargos eletivos e outras formas alternativas de participação política. Surgem neste contexto grupos feministas temáticos com novas questões, como a violência contra a mulher e sua saúde. Surgem também a partir dos anos 80, o feminismo acadêmico nas universidades do país e alguns Núcleos de Pesquisa em Estudos da Mulher. Durante os trabalhos de preparação para a Constituinte, Pinto (2003) ressalta que houve grande participação de movimentos feministas e de mulheres, mobilizadas principalmente pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado em 1985 junto ao Ministério da Justiça, mas resultante de uma mobilização que começou com a Campanha das Diretas-já, era dirigido na época pela socióloga Jaqueline Pitanguy. As mulheres, mesmo sem representação no legislativo, atuavam politicamente por meio de pressão organizada e apresentaram trinta emendas sobre os direitos das mulheres, atendendo a quase todas as reivindicações do movimento feminista. Depois de intensos encontros, seminários e assembléias, centenas de pequenos grupos de mulheres de todo país, elaboraram um dossiê de propostas que queriam
ver aprovadas na nova carta Constitucional, (PINTO, 2003). Entre os Direitos das mulheres aprovados na Constituição de 1988, estão: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição “ (Idem, L); “As presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação” (Art. 7º, XVIII); “licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário duração com prevista de cento de vinte dias” (Art. 7º, XVIII); “licença a paternidade, nos termos fixados em lei (Idem, XIX); proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos nos termos da lei” (Idem, XX); “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil” (Idem, XXX); “são assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos [...] bem como sua integração na previdência social” (Idem, XXXIV, Parágrafo único); “o titulo de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou a mulher, ou ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições previstos em lei” (Art. 189, Parágrafo único); “os direitos e deveres referentes a sociedade conjugal são exercidos pelo homem e pela mulher” (Art. 226, Parágrafo 5º); “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (Idem, Parágrafo 7º) (PINTO, 2003, p 78).
Durante o período de preparação para a Constituinte houve grande mobilização dos movimentos feministas, constituindo-se uma rede de articulação e de participação na, então, jovem democracia brasileira. Pinto (2003) ressalta que, neste período, o CNDM teve um papel decisivo na conquista de um conjunto de direitos garantidos na Constituição de 1988. Foi um importante organizador sem, no entanto, conseguir consolidar um espaço no aparato estatal. Houve também, a partir da década de 1980, de acordo com Pinto (2003), uma partidarização e institucionalização do movimento feminista no Brasil e já nas eleições de 1982, haviam militantes divididas entre peemedebistas e petistas. Nesta época, as ações políticas destes grupos giravam em torno de novas temáticas, mais específicas como violência e saúde. A questão da violência contra a mulher sempre foi tratada no Brasil como um tema restrito à esfera privada. A moral conservadora considerava o homem como os portadores do direito sobre a vida ou morte daqueles que vivem no interior da sociedade conjugal. Sua posição de mando dentro da casa justificava a violência cometida contra sua mulher e filhos. E será, portanto, contra essa moral conservadora e contra essa legislação arcaica, as quais justificam que o homem mate em legítima defesa da honra, é que as mulheres juntaram esforços. Foram surgindo pelo Brasil, inúmeras organizações de apoio à mulher vítima de violência e a primeira delas foi o SOS Mulher , inaugurado no Rio de Janeiro em 1981. Depois uma política pública que se popularizou foi às delegacias especializadas. Todas essas medidas, entretanto, não resolveram a questão da violência contra a mulher. Essas políticas de assistência às mulheres que se encontram e situação de fragilidade e vítima de violência permitiram que se fosse reconhecida como vítima agredida e daí ter direito ao tratamento adequado pelos órgãos públicos, constituindo-se um avanço quanto à questão da violência, mas ainda há muito que se fazer, pois o número de mulheres agredidas tem aumentado nas últimas décadas, conforme Pinto (2003), num fenômeno que extrapola inclusive as classes sociais.
Sobre a saúde da mulher, Pinto (2003) comenta que também se tornou preocupação central no movimento feminista após a década de 1980. Além de tratarem temas tradicionais da saúde da mulher, como maternidade e prevenção do câncer, outros temas polêmicos também eram abordados, como planejamento familiar, sexualidade e aborto. As feministas enfrentaram problemas de aceitação da população do planejamento familiar, pois este sempre fora entendido no Brasil como controle de natalidade das populações pobres. Já a questão do aborto e da sexualidade, foram questões centrais de discussão do movimento feminista, mas são temas que enfrentam muitos tabus. A Igreja Católica, grande formadora da opinião pública e o pensamento conservador burguês da época, não permitiam avanços sobre essa discussão. Essa bandeira de luta das feministas, apesar de enfrentar resistências, teve avanços em relação à saúde da mulher, pois foram criados grupos que buscavam formas alternativas de atendimento à mulher, sendo implantado ainda no ano de 1983, pelo Ministério da Saúde, o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Nas palavras de Pinto (2003, p 84), “o PAISM foi sem dúvida uma das mais bemsucedidas intervenções de um movimento social organizado na esfera das políticas públicas”, pois além de abranger todas as fases da vida da mulher e considerar os aspectos sociais, o movimento fiscalizava e controlava as políticas que lhe dizia respeito. Para Pinto (2003), na década de 1990, mesmo havendo um retraimento dos movimentos sociais, houve condições propícias para que as demandas dos movimentos fossem incorporadas aos discursos públicos. Há uma nova postura e respeito da sociedade sobre as teses e demandas dos movimentos identidários. Argumenta Pinto (2003) que existe um feminismo difuso na sociedade, fruto de muitos anos de militância do movimento feminista, e a percepção que este é um tema relevante e que pode garantir votos, por exemplo, nas campanhas eleitorais. Entretanto, essa absorção do discurso feminista na política e nas campanhas eleitorais, não garantiu que as mulheres fossem incorporadas aos quadros ministeriais, aumentando sua presença e participação na arena política.
Um grande articulador das questões das mulheres no campo da política junto ao Congresso Nacional, ao Legislativo e aos ministérios, defendendo projetos, propondo emendas e comissões, assessorando a bancada das mulheres e divulgando questões de interesse das mulheres, é o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), criado em 1989 em Brasília. Porém, Pinto (2003) argumenta que apesar do CFEMEA ter sido uma das mais importantes instâncias de intervenção do movimento feminista no campo da política, não tem aumentado o espaço de discussão das questões políticas fora do campo institucional e fala apenas para a elite do movimento, não para as mulheres em geral e dos movimentos populares. Pinto (2003) ressalta também como característica do período pós década de 1990, uma reconfiguração do movimento feminista que antes atuava através dos grupos de reflexão, associações fortes e manifestações públicas e agora há uma dissociação entre o pensamento feminista que se generaliza e o movimento que, através das ONGs, se especializa e se profissionaliza para tratar das questões das mulheres. Esse tipo de organização institucionalizada, privada e sem fins lucrativos, atua muitas vezes como uma espécie de terceirização do próprio governo. Pinto (2003) chama
atenção
para
essas
organizações,
pois
podem
trazer
grandes
transformações para o movimento feminista. Para a autora, este modelo traz sérias limitações, uma vez que essas entidades devem atender aos critérios dos organismos internacionais que as financiam. Portanto, a característica marcante do feminismo na virada do século, é o do feminismo de ONG e a segmentação das lutas, por meio de projetos destinados a populações específicas ou em defesa de causas específicas, mas em defesa dos interesses das mulheres e na articulação de redes nacionais de mulheres. Pinto (2003) destaca que este tipo de atuação em ONG, não pretende e não consegue ampliar os espaços de participação das mulheres na política institucional constituindo espaços alternativos de intervenção.
De acordo com Pinto (2003, p 106) “essa é a fase por que passa o feminismo no Brasil, mas a sua trajetória não acaba aqui” “[...] o feminismo tem uma longa história pela frente”. Após abordarmos os contornos que o movimento de mulheres e feministas teve ao longo da história até os dias atuais, discutiremos a seguir, questões específicas que orientaram estes movimentos e as formas como as mulheres organizaram suas bandeiras de lutas no Brasil, estando muito vinculada a questão dos direitos reprodutivos, pela questão da mão de obra feminina, em que veremos suas novas configurações no mundo atual, inclusive ao que se refere à pobreza e ao novo fenômeno da feminização da pobreza. Discutiremos também como esses movimentos de mulheres e feministas foram, e até hoje são, como veremos na análise dos dados, impulsionados e organizados pela própria Igreja Católica.
1.3.1 MULHER E POBREZA O capitalismo contemporâneo, com a trajetória que vem traçando nas duas últimas décadas, acentuou sua lógica destrutiva. Na era do neoliberalismo as principais políticas adotadas são a abertura comercial e financeira, a política de privatização, a redução dos direitos sociais e a desregulamentação do mercado de trabalho. É possível identificar uma série de medidas que resultam na perda do protecionismo e uma redução da já precária rede de direitos sociais. A reestruturação do trabalho com sua flexibilização, terceirização e desregulação evidenciam a prevalência do capital sobre a força humana. A política econômica adotada pelos governos desde o princípio da década de 90 em busca do superávit primário acarretou para o país um elevado nível de desigualdade, crescimento do desemprego, precarização do trabalho, baixo nível de saneamento, baixa qualidade de educação, falta de moradia, precarização da saúde entre outros, onde se tem o Brasil como um dos países de maior desigualdade no mundo
As mulheres permanecem ganhando, em geral, menos do que o homem e sujeitamse a realizar tarefas em situação precária adequando-se à flexibilização do trabalho defendida pelo projeto neoliberal. No Brasil dados revelam que as mulheres estão concentradas no setor terciário dos centros urbanos, as com maior escolaridade trabalham em empregos considerados médios, como secretárias, professoras, enfermeiras e as menos instruídas no emprego doméstico. Nesse processo com mudanças econômicas políticas e ideológicas e de grandes perdas sociais, as mulheres chegam em desvantagem tanto em relação à conquista de direitos, quanto às diferenças relativas ao recebimento histórico de salários mais baixos. Falu (1998) nos mostra que as mulheres constituem a maioria dos setores pobres e vivem em condições de máxima pobreza, sendo que, a maioria dessas mulheres vivem nas cidades e cumprem a função de chefes de lar. No Brasil o desemprego masculino foi de 6,7%, enquanto o feminino alcançou 13,9%, além do fato de as mulheres exercerem, muitas vezes, trabalhos informais sem acesso à segurança social, mal pagos e desvalorizados. (FALU, 1998) O conceito ‘feminização da pobreza’, introduzido pela estadunidense Diane Pearce em 1978, se refere ao fenômeno no qual as mulheres vêm se tornando mais pobres do que os homens. Este fenômeno pode ser constatado através do aumento no número de famílias pobres chefiadas por mulheres. (BUVINIC E GUPTA,1994:24; GARFINKEL E MACLANAHAN, 1986:13 apud NOVELLINO, 2004 S/P) Soares (2003) também aponta a rigidez das funções atribuídas pela sociedade às mulheres, a restrição de seu acesso aos espaços de poder, à educação e aos recursos produtivos como fatores que contribuem para a feminização da pobreza. Além da participação das mulheres e as considerações de gênero serem excluídas do processo de fomento de políticas, o que é um fator agravante desta situação. Em contraponto, Barsted (2007) mostra que organizações não-governamentais e o movimento de mulheres estão buscando levantar dados e informações para dar visibilidade a esses fenômenos na tentativa de interferir junto à opinião pública e
romper com a situação de naturalização das desigualdades e à permanência de práticas e de valores discriminatórios.
2. Aspectos relevantes para a constituição da AMUCABULI (Associação de Mulheres Unidas de Cariacica Buscando Libertação) 2.1 Perfil sócio-econômico de Cariacica O município de Cariacica, onde se insere a AMUCABULI, tem uma população de 324.285 habitantes, segundo o censo de 2000, sendo que 95% estão na área urbana. Cariacica é o terceiro maior município do Espírito Santo e sua população foi constituída originalmente por povos de origem indígena, negra e por imigrantes europeus. Em 30 de dezembro de 1890 o local se tornou município independente, desmembrando-se definitivamente de Vitória. As principais atividades econômicas do município eram agrícolas e foram aos poucos sendo substituídas por atividades de apoio à comercialização e transporte de mercadorias, incentivadas pela construção da Estrada de Ferro Vitória-Minas. Na década de 40, com a inauguração da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), a população urbana do município mais que o dobrou. A partir dessa época, acelera-se em Cariacica um crescimento desordenado do setor urbano, com inúmeros loteamentos clandestinos e invasões, o que facilitou a grande oferta de imóveis destinados à população de baixa renda, provocando, assim, sérios problemas sociais e ambientais para o município. Cariacica
tem,
portanto,
seu
desenvolvimento
vinculado
ao
processo
de
industrialização do Espírito Santo, e é área de expansão urbana periférica de Vitória. Passou por transição do rural para o urbano, com ocupações precárias em torno dos principais eixos viários, índices sociais e de desenvolvimento humano de médio a baixo, contrastando com índices de infra-estrutura e desenvolvimento mais alto, assim como o destaque na arrecadação de ICMS.
O município possui uma história política conturbada, marcada por corrupção, cassações
de
mandatos,
afastamentos
por
acusação
de
irregularidades
administrativas, assassinatos, etc, que contribuíram para que alguns chefes do Poder Executivo Municipal não terminassem seus mandatos. Tem-se um município com inúmeros problemas nas áreas social, política, econômica e cultural, agravados pelo descaso de muitas gestões municipais. O desemprego atinge quase 30% da população e há a predominância de pessoas com rendimento mensal de 1 a 2 salários mínimos (48.013 habitantes), o que equivale à 18% da população. Em relação à escolaridade cerca de 39% da população possui 4 a 7 anos de estudo. (IBGE). Conforme foi discutido no item que trata a pobreza urbana, é possível fazer a comparação destes dados do município de Cariacica com os do Brasil, em que as famílias pobres brasileiras são relativamente mais jovens, o nível de desemprego e de baixos salários é grande e os níveis educacionais são muito baixos. A mortalidade infantil está acima da média nacional, atingindo 15,1 a cada 1000 crianças nascidas vivas. Outro problema que atinge o município é a violência, o índice de homicídios é altíssimo, a cada 100.000 habitantes 112 são assassinados. Assim como nas demais Regiões Metropolitanas do Sudeste, a Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV), apresenta um quadro preocupante com relação à violência, comprovado pela alta taxa de homicídios, que de acordo com a Secretaria de Estado da Segurança Pública, corresponde a 70% dos casos registrados em 2005 no Espírito Santo. Em Cariacica, o número de homicídios corresponde a 27% do total da RMGV e a 19% do Estado do Espírito Santo (PMC, 2007). De acordo com este quadro apresentado de Cariacica verifica-se que os índices do município ratificam o que Soares (2003) postula sobre pobreza. Para a autora, a pobreza se manifesta de várias formas, entre elas a carência de renda, as más condições de educação e de outros serviços básicos; as condições de insegurança, a discriminação e exclusão sociais, além da falta de participação na tomada de decisões na vida civil, social, e cultural.
2.2 Perfil das mulheres de Cariacica De acordo com os dados do IBGE (censo 2000) são 324.285 habitantes residentes no município de Cariacica. O número de mulheres residentes no município maiores de 10 anos de idade é de 134.271 e da população masculina é de 127.446 habitantes. Isto significa que 51% dos habitantes do município de Cariacica são do sexo feminino. De acordo com dados de amostragem do IBGE (censo de 2000), nos municípios que têm entre 100000 e 500000 habitantes os responsáveis pelos domicílios permanentes são 464635. Deste total 72% são do sexo masculino e 27%do sexo feminino, e deste percentual apenas 5% tem cônjuge. Isto significa que em cada dez lares, quase três são sustentados por mulheres. Podemos então, fazer uma referência ao novo fenômeno abordado no capítulo anterior — o da feminização da pobreza. Esse fenômeno tem como características alguns fatores, como a rigidez das funções que a sociedade designa às mulheres e a ausência de oportunidades e autonomia, além do seu limitado acesso ao poder, à educação, à capacitação e aos recursos produtivos ocasionando a insegurança e o empobrecimento das famílias chefiadas por mulheres (SOARES, 2003). Segundo pesquisa realizada em 2007 pela Indago 1 requisitada pela Assessoria especial dos Direitos da Mulher da Prefeitura Municipal de Cariacica (PMC), cerca de ¾ das mulheres de Cariacica tem filhos, sendo o número médio de filhos de 3,1. Em 32% dos lares que compuseram a amostra da pesquisa, há pelo menos uma criança de 0 a 4 anos e em 18% pelo menos uma criança de 5 a 9 anos de idade. É possível verificar nesses dados que, sem creches, pelo menos 1/3 das mulheres ficam sem mobilidade não podendo desenvolver outras atividades fora do âmbito doméstico. Já a proporção de analfabetismo entre as mulheres residentes no município é de 10,6% e a taxa entre os homens é de 7,1%. De acordo com a pesquisa da Prefeitura Municipal de Cariacica (PMC), realizada em 2007 pela Indago, desmembrando 1
Indago Pesquisas e Marketing S/C Ltda é uma empresa que realiza pesquisa de mercado, de opinião pública e marketing para empresas e instituições brasileiras. Foi contratada pela Assessoria especial dos Direitos da Mulher da Prefeitura Municipal de Cariacica para realizar pesquisa quantitativa a respeito da condição das mulheres habitantes no município.
análise de analfabetismo por região urbana e rural, tem-se na população urbana a taxa de 8,7% e na rural de 15,9%, sendo que o analfabetismo das mulheres era da ordem de 10% na zona urbana e na Zona rural atingia o dobro, chegando a 20%. Logo, evidencia-se o descompasso entre a situação de homens e mulheres no sistema educacional, o que denota a necessidade do município efetivar a implantação de políticas públicas que impacte não apenas sobre o analfabetismo, como também o recorte de gênero nessa problemática educacional, pois a questão da educação é peça chave para que as mulheres adquiram capacitação para sua autonomia. Em relação aos dados do mercado formal de trabalho, a pesquisa da PMC mostra que dos 344.255 empregos formais disponibilizados em 2006 na Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV), Cariacica ficou com o 4º lugar com 34.277 postos de trabalho, representando 9.96% dos empregos formais da região. Verificou-se também que grande parte das vagas formais disponíveis é ocupada pelos homens cerca de 24.875 das 34.277, representando 73% dos postos de trabalho. Logo as mulheres ocupam apenas 27% dessas vagas, apesar de serem maioria no município, cerca de 51%. É importante ressaltar que a concentração dos empregos formais se dá nos setores de Comércio e Serviços, onde a questão de Gênero não é fator qualificativo para ocupação de suas vagas, o que não justifica essa disparidade (INDAGO, 2007). O rendimento médio mensal para o emprego formal é de R$ 640,00, sendo que para os homens o rendimento é de R$ 677,40, enquanto para as mulheres é de R$ 558,70, isto é, o salário das mulheres é 17.5% inferior ao dos homens. Logo, é possível perceber nesses dados, que em Cariacica se reforça a forma assimétrica como foi estruturada a sociedade, conforme discutido em itens anteriores, com uma clara divisão sexual do trabalho, deixando as mulheres em posição de desvantagem, recebendo menores salários, muitas vezes na mesma função. Segundo a mesma pesquisa, os dados relativos à violência, tirados da Secretaria de Estado da Saúde – ES (2005) revelam que as causas externas (acidentes, homicídios e suicídios) ocupam o 2º lugar entre as principais causas de óbitos em
todas as idades no município de Cariacica (24%), sendo a principal causa na faixa etária entre 15 e 19 anos. O Programa Sentinela, da Secretaria Municipal de Assistência Social e Trabalho, registrou que dos 160 casos atuais de violência contra a criança e o adolescente, 73% das vítimas são do sexo feminino, sendo que deste percentual 94% referem-se a casos de abuso sexual. As vítimas estão mais presentes nas famílias de periferia, com renda salarial de até 1 salário mínimo por mês. Conforme a Secretaria Municipal de Assistência Social de Cariacica (SMAS), estes são os casos notificados que demandam acompanhamento sistemático. Já os casos de violência cometidos contra a mulher, a Assessoria Especial dos Direitos da Mulher da PMC, registrou entre maio de 2005 e abril de 2007, cerca de 60 casos. Desses, 87% referem-se à violência física e psicológica. Na realidade apresentada, na qual se observa uma situação de grandes dívidas sociais para toda sua população e em especial para as mulheres, se encontra um grupo de mulheres organizado que procura trabalhar as problemáticas sociais e a questão de gênero – a AMUCABULI.
2.3 A AMUCABULI 2.3.1 Origens da AMUCABULI A AMUCABULI é uma entidade sem fins lucrativos, reconhecida como de utilidade pública municipal. Organizada desde 1979, a partir dos grupos de mulheres nas Comunidades Eclesiais de Base CEBs incentivadas e com grande apoio do Padre Gabriel , que procurou fortalecer o trabalho e despertar as mulheres para o engajamento nas lutas por melhores condições de vida. As Comunidades Eclesiais de Base ou CEBs eram pequenas comunidades ligadas principalmente à Igreja Católica que, incentivadas pelo Concílio Vaticano II (19621965), se espalharam principalmente nos anos 70 e 80 no Brasil, durante a luta contra a ditadura militar.
As CEBs incorporam os movimentos sociais e a base popular, fortalecendo as formas de organização autônomas, desvinculadas do Estado e da Igreja, como os clubes de mães, movimento do custo-de-vida, loteamentos clandestinos, grupos de teatro, defesa dos posseiros e seringueiros, luta pela causa indígena, etc. (BETTO, 1981) Essas organizações, umas com um alto nível de consciência política e outras aparentemente menos politizadas, como os clubes de mães, que se reuniam para o corte, costura e bordados, acabavam por revelar grande atuação e mobilização quando surge uma ação no bairro. Frei Betto (1981) ressalta que é na luta pela água no bairro que a dona-de-casa percebe as contradições do regime político e, conseqüentemente, a descrença nas promessas de políticos profissionais e despertam confiança na união do povo, sua organização e mobilização popular. Em Cariacica não foi diferente, as mulheres se organizaram em grupos e passaram a participar de associações de moradores e pastorais sociais da Igreja Católica (pastoral operária, do menor, da saúde, entre outras). O Padre Gabriel Maire teve participação ativa nesse período, aderindo a diversas lutas sociais e movimentações políticas tanto em Cariacica, quanto em outros municípios da Grande Vitória. E através das comunidades e outras organizações do bairro, os grupos de mulheres, além de se reunirem para rezar, discutiam sobre as necessidades dos bairros em que moravam marcados por carências infra-estruturais. Conforme a entrevistada 3. [..] então as mulheres se reunia né, vamos dizer pra rezar né, dali elas via assim a necessidade de iluminação pública no bairro, então vamo se reunir pra correr atrás disso, pra ir até a prefeitura atrás disso. Hã, a rua ta precisando de calçamento, vamos reunir pra isso, né, então foi assim que aconteceu essa associação (entrevistada 3).
Um
grande
acontecimento
marcou
a
movimentação
dessas
mulheres,
impulsionando a organização do movimento enquanto entidade para terem maior respaldo e visibilidade política. Este fato, foi o enfrentamento a alguns políticos que trocavam cirurgias de ligaduras de trompas por votos, o faziam, pois existia uma
grande dificuldade de se fazer essa cirurgia nos hospitais públicos, e essa era uma demanda das mulheres cariaciquenses. Teve o caso das ligaduras de trompa, minha mãe foi uma das pessoas que foram para a televisão fazer denuncia, ela foi ligada também naquela época. Foi em 1986 esse movimento, teve toda uma articulação em nível de município, e a partir disso nós conseguimos dar visibilidade ao movimento que era importante naquele momento marcar posição em relação, os médicos não poderiam fazer o que bem quisessem com o corpo da mulher, ela tinha o direito de saber, de decidir, então essa questão já perpassava no momento, então foi um momento, um marco histórico na vida das mulheres quando foi feita as denuncias e ele, o médico, teve o registro cassado pelo CRM. Foi um momento importante para o movimento de mulheres aquele momento. (Entrevistada 1)
Vale ressaltar que nos anos 80 as mulheres tinham dificuldade em ter acesso a métodos contraceptivos. Por um lado pela pequena atuação ou certo descaso do poder público na implementação de políticas públicas de saúde, que não davam conta de atender a demanda de controle de fertilidade e reprodução e por outro, devido a forte influência da Igreja Católica com sua leitura de dogma contra o uso desses métodos contraceptivos. As mulheres organizadas passaram, então a participar em associações de moradores e pastorais sociais da igreja católica e a manifestar suas reivindicações por meio de passeatas, atos públicos, campanhas, em que contavam com a participação em massa. Na fala das entrevistadas, as melhorias que os bairros mais carentes obtiveram foram atrav'es de muita luta e de choques com políticos locais, em que, tanto o Padre Gabriel, quanto outras pessoas estavam na liderança das reivindicações. Conforme a entrevistada 3: [...] foi muita luta mesmo né. A gente tem lá no nosso bairro a praça da conquista, vocês quando forem lá, vocês vão passar pela pracinha, então tinha muita gente que lutava e tava sempre, tinha aqueles confrontos né, porque sempre tem né. E lá a gente tinha seu Pedro, que sempre foi militante assim na luta e continua ainda, é isso aí gente, chegavam muitas ameaças né, igual a gente tem, nós temos a amiga Penha, que ela é uma das praticamente fundadoras, que andou muito com Padre Gabriel, ela já foi ameaçada várias vezes. Então sempre tem, se você não tiver assim um pulso forte, se você não tiver coragem, se você for pensar assim né na sua vida, você não trabalha, isso sempre tem. (entrevistada 3)
As principais bandeiras de luta do movimento na época de sua criação era conseguir melhorias para os bairros do município. Dentre as reivindicações, estavam iluminação pública, quadras poliesportivas, calçamento, moradia. As lutas eram
encaminhadas através de passeatas, manifestações, onde contavam com participação em massa. A escola foi uma luta grande das pessoas conseguirem né, a Escola Joana Maria da Silva né, foi nessas época né dos anos 80, 90 né. Tem a praça da Conquista que foi luta do povo. Calçamento, tem a escola né, agora assim recente, fala assim recente porque tem menos de 15 anos né, é a escola José Moises, então foi tudo assim, teve muita transformação. É farmácia, nós temos farmácia, supermercado, vários supermercado, é lojinhas, barbearias, igrejas, assim nem conta o tanto de igreja, outro dia a gente assim, na nossa associação de moradores, então a gente ta fazendo assim um levantamento, contanto o que que tem. Então foi assim, houve muita mudança, muita transformação. (entrevistada 3)
Nessa época, as mulheres conseguiam agregar um grande número de militantes nos encontros e passeatas, como se pode detectar na fala de uma das entrevistadas. Assim a gente fazia encontros no meio da semana com duzentas mulheres, a gente chegou até a duzentas e cinqüenta, de dois em dois meses, nos encontros assim as meninas até traziam pessoas para palestrar, assim era muito mais fácil, as passeatas né... ( entrevistada 5)
É importante destacar que a luta pela redemocratização era pauta de todos os movimentos sociais do período, logo possuíam um objetivo comum: derrubar o regime militar. Dentro desse contexto de luta contra o autoritarismo, o governo contraiu uma grande dívida externa e a inflação começou uma ascensão desenfreada. A legitimidade do regime militar é posta em xeque pelos seus apoiadores. Em 1984uma grande mobilização popular pelo restabelecimento das eleições diretas para presidente da república determina o fim da ditadura e o início da transição ao regime democrático. Embora a emenda que restabelecia as eleições diretas para presidente não tenha sido aprovada pelo congresso nacional, o candidato da oposição ao cargo saiu vitorioso na eleição congressual, dando início ao processo de desmonte de toda a legislação autoritária e ao restabelecimento das liberdades democráticas. O processo constituinte e a promulgação da nova carta constitucional em 1988 estabeleceu uma nova ordem jurídica na qual estão assegurados os direitos de cidadania, entre os quais os direitos sociais, e institui-se o princípio da participação popular na formulação de políticas públicas. Dessa forma, as lutas dos vários movimentos sociais se inclinam para a democratização dos direitos.
A partir dos anos 90 a AMUCABULI sentiu a necessidade de se organizar como pessoa jurídica para ocupar os espaços públicos construídos após a constituição de 1992, e a partir daí houve uma reconfiguração da organização do movimento, como mostra os itens seguintes.
2.3.3 Perfil Organizativo da AMUCABULI A associação possui uma diretoria executiva composta por seis membros que têm as seguintes funções: coordenação geral; financeira; formação, cidadania e gênero; comunicação, secretaria geral e secretaria adjunta. Além da Diretoria Executiva a entidade conta com um Conselho Fiscal que é o órgão fiscalizador da entidade, composto por três membros efetivos e três membros vogais. Tanto o Conselho Diretor quanto o Fiscal são eleitos em assembléia geral, pela maioria absoluta dos associados presentes. (ESTATUTO DA ENTIDADE) Durante a trajetória da AMUCABULI podemos observar que nunca houve a candidatura de duas chapas para a Diretoria Executiva. Segundo as entrevistadas isso acontece porque elas sempre procuram formar chapas heterogêneas, composta por representantes de várias localidades do município. Conforma mostra a entrevistada: A gente tem um processo de eleição composto por chapas né?! Na composição das chapas a gente procura manter a representação das bases. No caso, assim, a gente tem representação de doze lugares. Então aí a diretoria é composta por essas pessoas que são eleitas em uma assembléia geral [...] A gente nunca teve concorrência de mais de uma chapa, porque é como se fosse uma chapa de representação (entrevistada 5)
Podem ser sócios da entidade todas as mulheres pertencentes aos grupos de mulheres existentes no município, que comungam dos mesmos objetivos, independente de cor, religião ou ideologia política, inclusive adolescentes a partir de 16 anos de idade. A sede da AMUCABULI foi adquiridaatravés de doação direta da Cáritas 2 da Bélgica para a associação, essa intermediação foi possível devido ao vínculo de amizade 2
Cáritas é uma confederação de 162 organizações humanitárias da Igreja Católica que atua em mais de duzentos países. Atua na defesa dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável solidário na perspectiva de políticas públicas, com uma mística ecumênica. Seus agentes trabalham junto aos excluídos e excluídas, muitas vezes em parceria com outras instituições e movimentos sociais.
entre o Padre Gabriel Maire e representantes da Cáritas. Essa doação possibilitou a compra da casa em Jardim América onde é a localidade onde são realizadas as reuniões e onde são guardados os documentos e matérias para os cursos de geração de renda que a entidade oferece. As mulheres da Associação de Mulheres Unidas de Cariacica Buscando Libertação se reúnem durante a semana e nos finais de semana na sede e em espaços da igreja. A diretoria se reúne mensalmente para discutir rotinas administrativas e temas pertinentes à entidade. A pauta das reuniões é definida pela diretoria e é possível acrescentar pontos de pauta de acordo com a demanda. A entidade se organiza através de diversos grupos de mulheres nos bairros do município, grupos de produção, grupos de senhoras, participantes de movimentos sociais, grupos de terceira idade, de paróquia, etc, se reunindo em espaços geralmente cedidos pela Igreja Católica, associação de moradores ou em outros espaços públicos. Não possuem telefone próprio na sede, bem como não dispõem de materiais de divulgação como jornal, carro de som e internet, suas ações são divulgadas e suas reuniões marcadas através da comunicação oral entre os membros da associação e de avisos feitos durante as missas. Uma das formas de articulação dos grupos de trabalho da entidade se dá por meio de assembléias regionais e municipais que tem como foco a atenção especial a saúde da mulher, seus direitos e seu valor na sociedade como agente de transformação, e para tanto, promove parcerias com profissionais e instituições que atuam nesta área. Conforme estatuto da entidade, a AMUCABULI para a execução de suas diretrizes, poderá realizar convênios com entidades públicas e privadas, visando assim obter recursos para atender seus objetivos. A AMUCABULI, a medida que aparece e atua enquanto associação, passando a oferecer capacitação para geração de renda, dentre outras atividades com esse caráter, deixa de ser financiada pelas próprias militantes e passa a buscar
financiamento das suas ações através de projetos para captação de recursos e parcerias com o governo. Para as atividades de geração de renda as mulheres integrantes do movimento se reúnem com maior freqüência, geralmente semanal ou quinzenalmente. Nesses encontros elas desenvolvem trabalhos artesanais, fazem cursos de cabeleireiro, dentre outras atividades visando um retorno financeiro ou uma capacitação para geração de renda. As reuniões onde são deliberadas as demandas e ações do movimento, das mulheres e da comunidade acontecem uma vez por mês (reunião ordinária) nas primeiras segundas-feiras de cada mês, a partir das 14 horas e geralmente só conta com a participação da diretoria. As reuniões ordinárias acontecem com maior freqüência quando na necessidade de se planejar e organizar eventos como o 8 de Março, a Festa da Penha e a Festa das Mães. A AMUCABULI não se vincula a nenhum partido político. Foi possível detectar que as integrantes da associação possuem certa autonomia, tanto para participar de outros movimentos, como para seguirem sua ideologia política. No entanto, há restrições quanto a estar na associação e se candidatar para cargos no executivo e legislativo do município, como expressa uma entrevistada: Se alguém do grupo quer se candidatar, há, ó... ela tem que sair, pedir licença da associação. Porque se você tem que discutir a política a gente tem que lutar pra política em comum para todos, mas quando se chega no momento político partidário dentro da sede não pode. Porque são pessoas de vários partidos, são pessoas de várias ideias diferentes, se você abrir mão para um, você tem que abrir mão para todos e aí vira bagunça e a gente não consegue ter essa união que a gente tem. (entrevistada 6)
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2.3.4 Os Novos Rumos do Movimento: Formas de Ação e Atividades Desenvolvidas pela AMUCABULI
Ao analisar os diversos trabalhos e projetos realizados pela entidade, nota-se que o foco são as atividades voltadas à geração de renda. Sendo possível diferentes leituras sobre esta questão. Positivas e negativas. Carvalho (1999) nos mostra que com as responsabilidades domesticas e a necessidade de cuidar dos filhos, as mulheres tendem a procurar trabalhos com maior flexibilidade encontrados no setor informal e na produção doméstica, porém nestes setores geralmente a remuneração e mais baixa e não há estabilidade. Do ponto de vista do enfrentamento à pobreza, estes trabalhos atendem as expectativas dessas mulheres, pois em situação de carência extrema estas enxergam nestas ações a possibilidade de gerar sua própria renda e , por menos que seja, ajudar no orçamento familiar. Contudo, não se pode deixar de pensar nos efeitos perversos provocados pela adoção de tais práticas. Na medida em que é ascendente a preocupação da associação em desenvolver atividade de geração de renda, a articulação e a mobilização das mulheres em torno da defesa de seus direitos e do enfrentamento à discriminação e ao preconceito se tornam atividades secundárias, tendendo a transformar a associação numa prestadora de serviços. Esse processo denominado por Alvarez (2001) de ONGuização do campo feminista, levou muitas feministas em toda a América Latina a privilegiarem a arena política convencional em detrimento das atividades de organização e mobilização de base. Da mesma forma, segundo Teixeira, Dagnino e Silva (2002, apud Dagnino) o processo de construção democrática enfrenta hoje no Brasil um dilema cujas raízes estão na existência de uma confluência perversa entre dois processos distintos. De um lado, um processo de alargamento da democracia, que se expressa na criação de espaços públicos e na crescente participação da sociedade civil nos processos de discussão e de tomada de decisão relacionadas com as questões e políticas públicas. Por outro lado, o processo de encolhimento do Estado e da progressiva transferência de suas responsabilidades sociais para a sociedade civil, que tem caracterizado os últimos anos, estaria conferindo uma dimensão perversa e essas jovens experiências, acentuada pela nebulosidade que cerca as diferentes intenções que orientam a participação.
A AMUCABULI atualmente tem representantes nos conselhos municipais de assistência social, segurança alimentar juventude, Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIMES) e no Fórum Estadual de Mulheres. Os conselhos de políticas públicas são aqui entendidos como "canais de articulação de demandas e interesse de diferentes atores sociais coletivos. São espaços de decisão nos quais atores governamentais e representantes da sociedade civil disputam recursos públicos, estabelecendo prioridades para sua distribuição, definindo seus beneficiários e o modelo a ser adotado para sua distribuição. (FERRAZ, 2006: 65) A associação reconhece estes novos espaços de gestão participativa como um avanço da democracia: ...a passeata ela teve seu auge, hoje se consegue conversar, negociar, elaborar, discutir junto com o governo, não joga tudo lá e diz "nós queremos" e ponto final, vamos embora, mas se diz como quer, aonde quer e de onde quer. Então assim, eu vejo que essas mudanças, elas são muito boas. (entrevistada 5)
Porém aponta uma série de dificuldades como: acompanhar tantas mudanças, diferenciar sociedade civil e Estado, defender os interesses das mulheres e participar de tantos espaços e conciliar a realização de outras atividades ao mesmo tempo. ...o movimento tem que estar se monitorando o tempo todo porque senão uma hora não sabe quem é governo, quem é... quem é sociedade civil, as pessoas acabam trocando os papéis, acabam se perdendo e o movimento acaba ficando fragilizado. Em que sentido? Número de pessoas pequeno, aumento da burocracia – isto é uma das coisas que dificulta bastante para o movimento, fica emperrado na burocracia e acaba não fazendo as ações mais políticas. (entrevistada 5)
Na AMUCABULI a concepção de Estado, democracia e participação foi descrita entre as entrevistas de formas distintas, porém todas confluem no mesmo eixo de raciocínio: defendem o modelo de democracia participativa associado ao modelo de democracia representativa. A fala de uma das entrevistadas que contempla melhor todas as ideias mencionadas o demonstra: Democrático é ter liberdade de participar, de ir e vir, de poder falar, de poder votar, de poder trocar sua idéia né? E de poder estar participando, seja de qual movimento que for, ter vez, ter voz. (entrevistada 2)
A AMUCABULI tem buscado o enfrentamento da chamada "confluência perversa" por um lado através da ocupação de cadeiras nos conselhos de participação e nas conferências e, por outro, se responsabilizando pelas associadas através de atividades de geração de renda para que as mulheres consigam ser mantenedoras de suas casas e famílias. Como afirma ALMEIDA (2006) a preocupação em ocupar os espaços institucionais e a necessidade em buscar recursos financeiros para suas ações levou alguns movimentos a se atentaram em elaborar projetos para captação recursos, obter respaldo jurídico e capacitação de pessoal. Enquanto as ONGs adotavam essas práticas, alguns movimentos sociais tentavam manter a sua essência e identidade com uma atuação menos profissionalizada, especializada, mas outros passaram a desenvolver as mesmas práticas, identificando-se com o perfil de ação das chamadas ONGs com o intuito de ocupar os novos espaços e garantir financiamento para suas ações. O Estatuto da AMUCABULI está na terceira edição. As principais mudanças aconteceram para que a associação se adequasse às novas formas de participação e às novas possibilidades de alcançar seus objetivos. Neste sentido, é preciso chamar a atenção para a tendência apresentada pelo movimento de se transformar em uma organização prestadora de serviços, abandonando seu caráter reivindicativo e substituindo o enfrentamento e o confronto com atores do Estado e representantes do capital pela negociação e a parceria com os mesmos. Embora suas principais lideranças pareçam estar atentas a este processo, a tendência apresentada não é uma exclusividade da AMUCABULI, constituindo uma tendência de vários outros movimentos sociais sob a hegemonia do projeto neoliberal.
REFERÊNCIAS
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Leila
Linhares.
Gênero
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Desigualdade.
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ENTREVISTADO nº 04. 2007. Entrevista concedida a Bárbara Leite Pereira e Fernanda Meneghini Machado, Cariacica, 03 de setembro de 2007. ENTREVISTADO nº 05. 2007. Entrevista concedida a Bárbara Leite Pereira e Fernanda Meneghini Machado, Cariacica, 18 de setembro de 2007. ENTREVISTADO nº 06. 2007. Entrevista concedida a Bárbara Leite Pereira, Fernanda Louzada Matos e Fernanda Meneghini Machado, Cariacica, 08 de dezembro de 2007. Estatuto Social da Associação de Mulheres Unidas de Cariacica Buscando Libertação – AMUCABULI. FALU, Ana; Pobreza urbana e Gênero. Apresentação no Seminário sobre Pobreza Urbana ALOP e patrocinado pelo Banco Mundial, Rio de Janeiro, May 14-16, 1998 GOHN, Maria da Glória. Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola,1997. http://pt.wikipedia.org/wiki/Cariacica Acesso em 30 jan, 2008. http://www.achetudoeregiao.com/ES/cariacica/historia.htm Acesso em 30 jan, 2008. http://www.cidades.com.br/cidade/cariacica/000816.html Acesso em 29 jan, 2008. http://www.ijsn.es.gov.br/ Acesso em 29 jan, 2008. http://www.mileniodomar.org.br/uso&ocupacao/ES.htm Acesso em 29 jan, 2008. Instituto de Pesquisa e Marketing INDAGO. Prefeitura Municipal de Cariacica. Secretaria de Assistência Social, trabalho e renda. Assessoria Especial dos Direitos da Mulher. Junho de 2007. LÖWY, Michael; Maxismo e teologia da libertação / Michael Löwy; traduzido por Myrian Veras Baptista. – São Paulo: Cortez, 1991. MONTAÑO, Carlos; Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social./ Carlos Montaño. – 3. ed. – São Paulo: Cortez, 2005.
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em: